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JANETE COSTA Roberto Ghione Homenagem pública realizada no Centro Cultural Dragão do Mar, no 133º COSU de Fortaleza, em 18 de março de 2010. Homenagem pública no lançamento dos edifícios Cícero Dias, Janete Costa e Acácio Gil Borsoi em evento realizado pela Construtora Queiroz Galvão, Recife, em setembro de 2010. Tem pessoas que lutam um dia, e são boas Tem as que lutam anos, e são melhores Têm outras que lutam a vida inteira. Essas são as imprescindíveis. Janete pertencia, sem dúvidas, a este último grupo. Lutadora incansável na causa da cultura brasileira, ela soube percorrer com sabedoria o caminho que vá da informação ao conhecimento, e do conhecimento á cultura. Janete foi uma pessoa essencialmente culta, no verdadeiro sentido dessa palavra. Uma pessoa culta não é aquela que conhece de muitas culturas. Quem sabe de outras culturas é uma pessoa informada. Culta é aquela pessoa que a traves do conhecimento, consegue interpretar profundamente a cultura do lugar onde nasceu, do lugar onde vive, do lugar onde o destino a colocou para desenvolver seu trabalho e para servir aos seus semelhantes. A informação é importante. A cultura é sagrada. Janete iniciou seu processo de informação e de conhecimento na cultura universal. Apaixonada colecionadora de peças de arte, foi notória sua atração pelas mais diversas manifestações. Peças barrocas, clássicas, art nouveau, art decó, modernas, figurativas, abstratas... Ela conseguiu montar um acervo que testemunha sua paixão e seu amor pela cultura e pela beleza. Neste processo de aprendizado através da cultura universal ela evoluiu até sua consagração, até o ponto mais sublime do seu ser profissional: a interpretação, a valorização e a difusão da cultura da sua terra e da sua gente. Hoje ela é referencia indiscutível quando o tema é a cultura brasileira. Hoje os artesãos nordestinos reconhecem nela a madrinha que soube valorizar e prestigiar seus trabalhos. Saber ver. Virtude de uns poucos. Janete sabia ver com maestria. Sabia descobrir a beleza em produções sofisticadas tanto quanto em singelas peças de uso cotidiano; em obras de artistas consagrados tanto quanto na produção de humildes artesãos. E assim como sabia ver, sabia fazer.

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JANETE COSTA

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Page 1: JANETE COSTA

JANETE COSTA

Roberto Ghione

Homenagem pública realizada no Centro Cultural Dragão do Mar, no 133º COSU de Fortaleza, em 18 de março de 2010.Homenagem pública no lançamento dos edifícios Cícero Dias, Janete Costa e Acácio Gil Borsoi em evento realizado pela Construtora Queiroz Galvão, Recife, em setembro de 2010.

Tem pessoas que lutam um dia, e são boasTem as que lutam anos, e são melhoresTêm outras que lutam a vida inteira. Essas são as imprescindíveis.

Janete pertencia, sem dúvidas, a este último grupo.Lutadora incansável na causa da cultura brasileira, ela soube percorrer com sabedoria o caminho que vá da informação ao conhecimento, e do conhecimento á cultura. Janete foi uma pessoa essencialmente culta, no verdadeiro sentido dessa palavra.

Uma pessoa culta não é aquela que conhece de muitas culturas. Quem sabe de outras

culturas é uma pessoa informada.

Culta é aquela pessoa que a traves do conhecimento, consegue interpretar profundamente a cultura do lugar onde nasceu, do lugar onde vive, do lugar onde o destino a colocou para desenvolver seu trabalho e para servir aos seus semelhantes.

A informação é importante. A cultura é sagrada.

Janete iniciou seu processo de informação e de conhecimento na cultura universal. Apaixonada colecionadora de peças de arte, foi notória sua atração pelas mais diversas manifestações. Peças barrocas, clássicas, art nouveau, art decó, modernas, figurativas, abstratas... Ela conseguiu montar um acervo que testemunha sua paixão e seu amor pela cultura e pela beleza.

Neste processo de aprendizado através da cultura universal ela evoluiu até sua consagração, até o ponto mais sublime do seu ser profissional: a interpretação, a valorização e a difusão da cultura da sua terra e da sua gente.

Hoje ela é referencia indiscutível quando o tema é a cultura brasileira. Hoje os artesãos nordestinos reconhecem nela a madrinha que soube valorizar e prestigiar seus trabalhos.

Saber ver. Virtude de uns poucos.

Janete sabia ver com maestria. Sabia descobrir a beleza em produções sofisticadas tanto quanto em singelas peças de uso cotidiano; em obras de artistas consagrados tanto quanto na produção de humildes artesãos. E assim como sabia ver, sabia fazer.

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Suas produções são notáveis. Dona de um talento e de uma criatividade impar, ela tinha a capacidade de gerar emoção em construções banais e de transformar espaços intranscendentes em lugares memoráveis.

Compor. A composição é uma das chaves da nossa disciplina: a organização de elementos nas leis de ordem e harmonia que conduzem á beleza e ao bem estar.

O aprendizado dos processos de composição exigem intensos estudos, tanto das ordens clássicas quanto dos procedimentos abstratos e figurativos.

Janete dominava a composição com um talento nato. Qualquer peça que caia na sua mão transformava se em parte insubstituível de uma obra fascinante.

Ela tinha o don natural de articular peças, objetos, elementos visando instintivamente à harmonia do conjunto.

Janete soube superar com destreza o complexo de periferia que domina a cultura das nossas sociedades latino americanas. Ela era o centro: na vida profissional, na vida social e no conceito que tinha da produção local em relação ás influencias externas.

Sua obstinada luta para valorizar os artistas e os artesãos brasileiros, especialmente os artesãos nordestinos, a colocou no centro da cultura brasileira. E com ela, a centenas de artesãos da nossa terra, tão ilustres quanto anônimos.

Seu trabalho em prol da promoção social dos artesãos nordestinos permitiu difundir e valorizar uma riquíssima produção cu l tu ra l , a té en tão d ispersa e desconhecida, e inseri La em diversos âmbitos da sociedade.

A cultura popular, nunca considerada de valores significativos, assumiu, com a intervenção de Janete, uma dimensão jamais imaginada pelas pessoas que a produziam seguindo tradições transmitidas de geração em geração.

O “olhar com as mãos”, conceito que traduz a percepção da realidade a traves da produção artesanal, alcança um significado que dá merecida transcendência aos artesãos brasileiros. E a transcendência de Janete chega associada às pessoas que ela mesma promoveu. Seus inúmeros projetos, sabiamente e criativamente desenvolvidos para as temáticas mais diversas foram, invariavelmente, qualificados pelos aportes dos artesãos populares brasileiros.

Grande lição nos deixou: os valores da cultura estão em nos mesmos. Somos -nos o centro. Possuímos um processo cultural rico, variado e autentico que é preciso assumir e valorizar, independentemente das modas e das contaminações disciplinares que vem de fora. Lição que ainda precisa ser difundida e aprofundada na busca de uma cultura que saiba expressar os riquíssimos valores desta terra brasileira.

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Tempo e lugar. Coordenadas que marcam as ações nos processos de produção e de criação. Assumir as características do tempo e do lugar é o ponto de partida para uma produção com intenções de transcendência. Fazer arquitetura deste tempo e pertencente ao lugar onde atuamos é o desafio universal e atemporal da nossa profissão. Janete soube conjugar estas coordenadas de uma forma autentica e criativa.

Assumidamente contemporânea, ela estava sempre a par dos acontecimentos internacionais relativos à nossa profissão. Janete vivia no mundo, mas sempre com a consciência e o coração amarrados na terra natal.

Ela integrava com naturalidade os valores universais do projeto e do design com a cultura local. Inesperadamente, peças arraigadas na cultura popular, resultado de longos processos de transmissão de geração em geração, incorporadas nos trabalhos de Janete, assumiam uma especial contemporaneidade e singularidade, qualificadas pelo toque da mão. Sutil contraste, sabia integração entre a linha dura do design internacional e a naturalidade do traço artístico e artesanal. O tempo da vanguarda, o tempo de hoje convivendo amigavelmente com o tempo de sempre. O design do mundo no Brasil, qualificado pela cultura local, permanente e atemporal.

No mundo em que vivemos, capitalista e materialista, todo se quantifica. Sob esses parâmetros poderíamos dizer que Janete realizou incontáveis exposições nacionais e internacionais, em cidades como Beirute, São Francisco, Porto, Valencia, Paris, Nova York, sempre promovendo a cultura local, sempre mostrando a cara do Brasil.

Ela criou, espontaneamente, uma verdadeira escola de arquitetura de interiores, que desde Recife espalhou se por todo Brasil. Formou uma quantidade imensa de profissionais imbuídos, como ela, pelos valores da cultura local e pelo conceito da integração entre projeto de arquitetura e projeto de interiores. A antiga “arrumação de móveis” foi substituída, a partir da obra de Janete, pelo conceito de tratamento do espaço interior, hoje definitivamente incorporado na cultura disciplinar.

Realizou inúmeros trabalhos profissionais em diversas temáticas, como residências, hotéis, hospitais, exposições, bancos, restaurantes, teatros, galerias, museus. Em todos eles, com grande sensibilidade, integrou a cultura universal com os valores locais. Especialmente em muitos hotéis, substituiu a enjoada imagem do american way, por projetos com a cara do Brasil, com imaginação e espontaneidade, qualificados pelo toque dos nossos artesãos e artistas.

Dedicou os últimos anos de sua vida à promoção social dos inúmeros artesãos e artistas populares do Brasil, especialmente do Nordeste, proprietários de imaginação e técnicas que hoje estão definitivamente incorporadas ao patrimônio cultural brasileiro.

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Galdino de Caruaru, José Alves de Olinda, Cícero Aves dos Santos (o Veio) de Sergipe, o Nego de Olinda, Mestre Nuca de Tracunhaem, Marcos Siqueira de Garanhuns, Nevinha de Itabaiana (na Paraíba), Lourdes, Severino dos Anjos e Maria Amélia de Tracunhaem, Manoel Eudocio de Caruaru, Irinéia de Alagoas, Nicola de Candeias, Mestre Fida de Garanhuns entre muitos outros, saíram do anonimato e hoje são reconhecidos e prestigiados por profissionais e pela elite social, que nunca lês prestava atenção.

Essa cultura típica das nossas sociedades, de nunca valorizar o que se tem nas mãos, de buscar símbolos de status e de prestigio em culturas alheias, está sendo mudada e hoje nossos artesãos tem um merecido valor que se traduz na melhoria de suas próprias condições de vida.

Nos últimos anos de sua vida foi merecidamente premiada pelo Governo do Estado de Pernambuco e pela Fundação Norberto Odebrecht. Foi distinguida com o prêmio a Mulher mais Influente do Ano na categoria de Arquitetura e Design e ganhou o reconhecimento implícito das centenas de pessoas que aprenderam, trabalharam ou simplesmente conviveram com ela.

Mas qualquer dado quantitativo do seu extenso currículo profissional fica pequeno diante da qualidade humana de Janete pessoa. Quem teve a oportunidade e o privilegio de compartilhar com ela momentos da sua vida sabe disso.

Vinda do interior de Pernambuco, da cidade de Garanhuns, soube conquistar a difícil sociedade pernambucana e difundir com naturalidade os costumes interioranos.

Possuidora de uma vontade de fazer extraordinária, trabalhou praticamente até seu último dia de vida, quando se encontrava desenvolvendo os projetos do Museu de Arte Moderna Assis Chatobriand em Campina Grande, no interior da Paraíba, o Museu de Arte Popular em Recife e o Centro de Arte Popular CEMIG em Minas Gerais, situação que revela a dedicação e a entrega desta mulher excepcional. ganhavam seu respeito entravam com ela. a todo o grupo de trabalho.

Se as palavras que definem à Janete profissional são dedicação, talento e criatividade, as que a definem como pessoa são transparência e generosidade.

Na vida profissional abriu inúmeras portas e jamais entrou sozinha. As pessoas que ganhavam seu respeito entravam com ela. a todo o grupo de trabalho.

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Resulta impossível imaginar a Janete sem o grande companheiro da sua vida: Acácio Gil Borsoi.

Uma complementação total: Janete a tempestade, Borsoi a calma; Janete pura intuição, Borsoi todo razão; Janete a arte, Borsoi a técnica; Janete eclética, Borsoi moderno; Janete os acabamentos, Borsoi a construção; Janete desenhando com o dedo no ar, Borsoi debruçado nos seus desenhos, compondo, fazendo seus traçados reguladores; Janete uma explosão de talento e criatividade, Borsoi também.

Janete e Borsoi. Borsoi e Janete. Que integração perfeita! Que contraponto ideal! Que agradável par, unidos pelo amor. Quantas saudades.

Eternamente jovens. Quem trabalha persistentemente e criativamente nunca envelhece. Janete e Borsoi foram exemplares nisso. Eles nos deram lições de vida. Assumiam cada trabalho com a avidez de um principiante. E o resolviam como se fosse o último. Tanta energia contagiava e estimulava a todo o grupo de trabalho.

Janete era a representação da mulher latino americana, da mulher brasileira, da mulher nordestina. Ela era barroca, eclética, dinâmica, inesperada, integradora, transparente.

Sua personalidade refletia seu caráter de uma forma direta. A exuberância do clima tropical, o ecleticismo dos processos culturais, a diversidade de raças e os processos de mestiçagem, toda essa riqueza que distingue e enobrece nosso continente, particularmente o Brasil, pareciam encarnar nela.

Seus vestidos e complementos refletiam essa personalidade rica e instigante, assim como suas atitudes perante a vida e perante a profissão.

Mas nada refletia mais a personalidade de Janete que sua casa em Olinda. Localizada em pleno Centro Histórico, poderia ser o lugar ideal para o realismo mágico de Vargas Llosa, ou de Garcia Marquez, ou de Jorge Amado.

Entrar na casa de Janete e Borsoi é como entrar numa síntese da cultura brasileira. Toda a diversidade cultural brasileira, particularmente nordestina, está contida nela. Peças, objetos, quadros, obras de arte, livros, moveis, luminárias, compõem um ambiente ecleticamente organizado e fascinante.

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Produzida em etapas, a casa é o resultado da adição de três casas compradas sucessivamente. A última delas foi concebida como galeria de arte e local para hospedagem de amigos e familiares. Ela reflete o espírito social e acolhedor de Janete e Borsoi, assim como o amor de ambos pela arte e pelas manifestações da cultura.

Conheci a Janete e Borsoi 12 anos atrás, a traves de minha esposa Vera. Existiu sempre uma relação entranhável entre eles, um acordo tácito mutuo que considerava a Vera como uma filha intelectual.

Vera praticamente formou se no escritório de Janete e Borsoi. Viajou e trabalhou com eles durante muitos anos depois de formada. Até os últimos dias da vida de Borsoi estávamos fazendo trabalhos em parceria com ele. Essa relação me rendeu o enorme privilegio da convivência com essas pessoas extraordinárias, que hoje guardo no meu coração e formam a parte mais valiosa de meu patrimônio pessoal.

Essa convivência foi plena, tanto no âmbito profissional quanto pessoal.

Durante algumas visitas a casa de Janete e Borsoi despertaram minha curiosidade, dentre a enorme riqueza de objetos existentes, umas esculturas de mãos. Mãos humanas, em tamanho natural. Tinha uma meia dúzia de mãos em diferentes materiais, cores. Um dia, Janete explicava a amigos sua fascinação por essas mãos. Entendi imediatamente.

As mãos são a base da cultura artesanal que personaliza e singulariza as produções.

Mãos que esculpem a pedra, que talham a madeira, que dobram o ferro, que modelam a argila. Mãos que desenham, que produzem. Mãos que acariciam, mãos que amam. Mãos que resistem à produção industrial, que complementam o traço duro, que garantem a sensibilidade e a humanização dos processos culturais. Mãos tão caras á produção de Janete. Mãos de artistas e artesãos que ela soube valorizar e eles souberam corresponder.

Page 7: JANETE COSTA

Janete viveu sua vida intensamente, livremente, com a liberdade da consciência plena e os objetivos claros. Ela encarnou em vida os versos de Serrat que dizem:

Prefiro o tempo ao ouroa vida ao sonho crescer a sentar cabeçaa carne ao metale o sábio por conhecer que aos locos conhecidos.

Prefiro querer a poderpalpar a pisarganhar a perderbeijar a brigardançar a desfilare desfrutar a medir

Prefiro voar a correrfazer a pensaramar a quererpegar a pedirAntes que nada eu soupartidário de viver.

Queridos colegas:Janete atingiu o grau mais sublime que um humano pode almejar.Janete transcendeu. Ela foi além.Ela está presente em todos nos. Ela viverá eternamente no coração e na consciência dos amantes da cultura brasileira. Viva Janete!