introducao ao direito civil 2012-2

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GRADUAÇÃO 2012.2 INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL AUTOR: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA

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Page 1: Introducao Ao Direito Civil 2012-2

GRADUAÇÃO 2012.2

INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

AUTOR: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA

Page 2: Introducao Ao Direito Civil 2012-2

SumárioIntrodução ao Direito Civil

ROTEIRO DAS AULAS: ........................................................................................................................................... 3

PARTE I: INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL .................................................................................................................. 3Aula 1 — Apresentação da disciplina — introdução ao Direito Civil ............................................. 3Aula 2 — o papel da pessoa humana no direito civil moderno ....................................................... 6

PARTE II: DIREITO DAS PESSOAS ........................................................................................................................... 11Aula 3 — Conceitos Estruturais — A Pessoa Física ...................................................................... 11Aula 4 — Conceitos Estruturais — Direitos da Personalidade ..................................................... 26Aula 5 — Direitos da Personalidade — Direito à Integridade Física ............................................ 39Aula 6 — Direitos da Personalidade — Direito ao nome e à honra .............................................. 49Aula 7 — Direitos da Personalidade — Direito à Privacidade ...................................................... 58Aula 8 — Direitos da Personalidade — Direito à Privacidade e Tecnologia .................................. 66Aula 9 — Direitos da Personalidade — Direito à Imagem ........................................................... 78Aula 10 — Direito à Imagem e privacidade —

análise de casos .............................................................................................................. 106Aula 11 — Conceitos Estruturais — Pessoas jurídicas ............................................................... 121Aula 12 — Pessoas jurídicas — sociedade, associações e fundações ............................................ 133

PARTE III: DIREITO DOS BENS ............................................................................................................................. 139Aula 13 — Conceitos Estruturais — Bens ................................................................................. 139Aula 14 — Benfeitorias — Bem de Família ............................................................................... 148

PARTE IV: NEGÓCIOS JURÍDICOS ......................................................................................................................... 168Aula 15: — Conceitos Estruturais — Negócio Jurídico ............................................................. 168Aula 16 — Invalidade do Negócio Jurídico ................................................................................ 179Aula 17 — Interpretação dos Negócios Jurídicos ....................................................................... 183Aula 18 — Defeitos do Negócio Jurídico: Erro e Dolo .............................................................. 188Aula 19 — Defeitos do Negócio Jurídico: Coação, Simulação e Fraude contra Credores ........... 197Aula 20 — Lesão e Estado de Perigo .......................................................................................... 206Aula 21 — Condição, Termo e Encargo .................................................................................... 212

PARTE V: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA .................................................................................................................. 221Aula 22 — Fundamentos para Aplicação da Prescrição e da Decadência .................................... 221Aula 23 — Suspensão, Impedimento e Interrupção dos Prazos Prescricionais ............................ 240

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ROTEIRO DAS AULAS:

PARTE I: INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

AULA 1 — APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA — INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

EMENTÁRIO DE TEMAS

Direito Privado — Direito Civil — Direito Civil Constitucional — Apresen-tação do Código Civil de 2002

LEITURA OBRIGATÓRIA

TEPEDINO, Gustavo. “Premissas Metodológicas para a Constitucionaliza-ção do Direito Civil”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 7/22.

LEITURAS COMPLEMENTARES

GIORGIANNI, Michele. “O Direito Privado e suas Atuais Fronteiras”, in Revista dos Tribunais nº 747; e PEREIRA, Caio Mário da Silva. Institui-ções de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 5/27.

1. ROTEIRO DE AULA

Estudar o Direito Civil hoje signifi ca estudar um campo do Direito que atravessa uma de suas maiores transformações. Por um lado, diversas teorias tem sido erigidas sobre a chamada publicização, ou constitucionalização do Direito Civil, por outro, e mais particularmente no Brasil, a recente publi-cação de um novo Código ainda acarreta, e acarretará por um longo tempo, todo um trabalho de adequação e interpretação do novo texto.

A análise dos dispositivos do Código Civil à luz da Constituição Federal marca os estudos não apenas do Direito Civil, mas de todo o Direito Privado, nos últimos trinta anos. Uma das premissas desse Direito Civil Constitu-cional é justamente a aplicação dos princípios constitucionais nas relações travadas entre particulares.

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1 O papel centralizador do Código Civil

pode ser notado na seguinte passagem

de José de Alencar, escrita pelo roman-

cista (e jurista) sobre a oportunidade

de criação de um Código Civil para o

Brasil: “Outorga-se aos povos ou eles

conquistam no dia de sua liberdade

uma Constituição, escrita ao estrepito

da batalha ou às aclamações da praça

publica, mas um Código Civil procede

uma longa gestação das idéias; ele é o

marco de um largo período no progres-

so da jurisprudência, e o depositário

da experiência e estudo não só de um

povo, mas da humanidade culta.” (in

Esboços Jurídicos. Rio:Garnier, 1883;

p. 132).

2 Pietro Perlingieri. Perfi s do Direito Civil.

Rio: Renovar, 1998; p. 6.

Tomando por base o rompimento da summa divisio entre Direito Pú-blico e Direito Privado, e a afi rmação do texto constitucional como vértice axiológico e normativo do ordenamento jurídico, essa perspectiva de análise permite compreender como esses princípios infl uenciam as atividades dos particulares e podem ser exigidos na prática.

O Direito Civil Constitucional, ao aplicar os dispositivos constitucionais nas relações privadas, evidencia o fenômeno da perda do papel centralizador no ordenamento jurídico desempenhado pelo Código Civil na teoria jurídica do século XIX.1

Com a intensa produção legislativa que caracterizou o século XX, progres-sivamente o Código Civil foi cedendo espaço para leis esparsas que inicial-mente eram editadas de forma extraordinária, sendo sucessivamente substitu-ído o caráter de excepcionalidade pela prática reiterada de elaboração de leis especiais, editadas em separado do Código Civil e constituindo verdadeiros micro-sistemas.

A fragmentação extrema do Direito Civil somente pôde ser evitada com a compreensão de que todo o ordenamento jurídico está sujeito aos preceitos constitucionais. A Constituição Federal, com o estabelecimento de princí-pios que norteiam todo o ordenamento jurídico, reunifi ca o ordenamento, submetendo todas as relações jurídicas ao seu poder normativo.

Nesse sentido, explicita Pietro Perlingieri que “o código civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unifi cador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevân-cia publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional.”2

O reconhecimento, à luz da moderna doutrina constitucional, da nor-matividade dos princípios, confere à Constituição potencial transformador jamais possuído. Sua infl uência se espraia por todo o ordenamento jurídico, propondo uma releitura dos institutos e consolidando a própria aplicabilida-de da Constituição nas situações cotidianas.

Mas a discussão está longe de ser encerrada. A edição de um novo Código Civil pode fazer você se perguntar sobre a necessidade de se utilizar a Consti-tuição nos estudos de Direito Civil. O recurso à Constituição parecia se fazer necessário quando o Código Civil em vigor no país era o mesmo desde 1916. Com a edição do novo Código, em 2002, pergunta-se: precisamos ainda da Constituição? Os diversos assuntos que serão estudados durante essa discipli-na fornecerão a resposta para essa pergunta.

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Como primeira aula da disciplina, deve o professor buscar familiari-zar o aluno com o estudo do Direito Civil através de uma curta expla-nação sobre a transição do papel desempenhado pelo Código Civil no século XIX, para o atual papel do Código.

A necessidade de se estudar o Direito Civil com base nos precei-tos fundamentais é a tônica dominante no texto de leitura obrigatória. Como os alunos já cursaram Direito Constitucional I, e já tomaram contato com conceitos como supremacia da Constituição, princípios constitucionais, ponderação de interesses e etc, eles não deverão ter difi culdades para compreender a dinâmica do Direito Civil Constitu-cional.

É importante que o professor dê um panorama amplo dos estudos em Direito Civil no país, e, ao fi nal da aula, faça uma apresentação do Código Civil, explicando resumidamente as matérias que serão aborda-das no decorrer do curso.

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3 Nesse sentido, afi rma Gustavo Tepedi-

no que: “com a evolução cada vez mais

dinâmica dos fatos sociais, torna-se

assaz difícil estabelecer disciplina legis-

lativa para todas as possíveis situações

jurídicas de que seja a pessoa humana

titular.” (in Temas, cit.; p. 36.)

4 Pietro Perlingieri. Perfi s do Direito Civil.

Rio, Renovar, 1997; p. 155.

AULA 2 — O PAPEL DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CIVIL MODERNO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Dignidade da Pessoa Humana — Autonomia Privada

CASO GERADOR

“Lançamento de anão” e Peep-Show

LEITURA OBRIGATÓRIA

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; pp. 81/117.

LEITURAS COMPLEMENTARES

AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 03/24.

1. ROTEIRO DE AULA

A proteção da pessoa humana hoje ocupa um papel central nos estudos jurídicos. Conforme leciona Pietro Perlingieri, a personalidade humana deve ser tutelada nas múltiplas situações enfrentadas pela pessoa, resultando que o modelo de direito subjetivo tipifi cado se mostrará sempre insufi ciente.3

Conforme expõe o autor italiano, “[a] esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica. Onde o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação.”4

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5 Maria Celina Bodin de Moraes, “A Ca-

minho de um Direito Civil Constitucio-

nal”, in Revista de Direito Civil nº 65, p.

28. Vide, ainda, Gustavo Tepedino. “Có-

digo Civil, os chamados micro-sistemas

e a Constituição: premissas para uma

reforma legislativa”, in Gustavo Tepe-

dino (coord). Problemas de Direito Civil-

Constitucional. Rio, Renovar, 2000; p.

12; Luiz Edson Fachin. Teoria Crítica, cit.;

p. 33; e Tereza Negreiros. “Dicotomia

Público-Privado frente ao Problema da

Colisão de Princípios”, in Ricardo Lobo

Torres (org) Teoria dos Direitos Funda-

mentais. Rio, Renovar, 1999; p. 363.

A tutela que demanda a personalidade encontra-se além da summa divisio entre Direito Privado e Direito Público (direitos fundamentais e direitos da personalidade, respectivamente), e da discussão sobre a tipicidade ou atipici-dade dos direitos da personalidade. Importa ao Direito que a pessoa humana seja protegida de forma integral.

Assim, perde relevância a discussão sobre o enunciado de um único direito subjetivo ou a classifi cação em inúmeros direitos da personalidade, que será trabalhada mais à frente. Deve-se, isso sim, salvaguardar a pessoa em qual-quer momento da atividade social.

As diretrizes elencadas nos artigos 1º, I e III da Constituição Federal, ele-gendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República, somadas à adoção do princípio da igualdade substancial (art.3º, III), e da isonomia formal do art. 5º, acrescido da garantia residual constante do artigo 5º, § 2º condicionam todo o ordenamento jurídico. Tais diretrizes alcançam tanto a relação do indivíduo frente ao poder público como as rela-ções tipicamente privadas. Na mesma direção está o entendimento de Maria Celina Bodin de Moraes:

“A rigor, portanto, o esforço hermenêutico do jurista moderno volta-se para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na re-lação Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado.”5

Dessa forma, a tutela da pessoa humana não pode ser restringida por con-cepções estanques de relações jurídicas públicas, de um lado, e relações jurídi-cas privadas, de outro. A pessoa humana requer proteção integral, atendendo à cláusula geral fi xada no texto constitucional para a proteção e promoção de sua dignidade.

Contudo, se é certa a necessidade de proteção integral da pessoa humana, resta ainda defi nir o que vem a ser a chamada “dignidade da pessoa humana”. Para trabalhar com esse conceito, leia o caso gerador abaixo.

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2. CASO GERADOR

Leia a notícia abaixo:

Lançamento de AnãoCorreio Brasiliense, 14 de março de 2002

A polícia invadiu um concurso de arremesso de anões promovido no bar Odissey, em Long Island, no Estado de Nova Iorque (EUA). Os clientes haviam pago US$ 10 para participar da bizarra competição, que funcionava como uma prova de arremesso de peso. Um agente da State Liquor Authority, entidade que fi scaliza os bares, informou que havia uma área de arremesso em que foram colocados dois colchões de ar e que os anões usavam capacete para se proteger. As 200 pessoas que haviam no local, inclusive os anões, foram liberados sem qualquer punição, mas o dono do bar, Tony Alfanom, foi multado em US$ 600. O arremesso de anões, legalizado em alguns estados norte-americanos, é proibido em Nova York.

A notícia acima reporta a proibição, nos Estados Unidos, da prática conhecida por lançamento de anão (“dwarf tossing”). A sua proibição em território francês gerou, nos anos 90, um dos mais conhecidos acórdãos do Conselho de Estado da-quele país, o chamado caso “Morsang-sur-Orge”.

A Prefeitura de Morsang-sur-Orse decidiu acabar com os espetáculos de lança-mento de anão naquela cidade. Para tanto, foi movimentada uma força policial para averiguar se nos bares e boates da região a prática estava sendo desenvolvida.

A Prefeitura, como Administração Pública, tem a faculdade de intervir nas relações privadas com o chamado “poder de polícia”. Especialmente no direito francês, existe uma legislação especial para a utilização do poder de polícia em eventos públicos, visando a garantir a segurança dos espectadores e prevenir even-tuais tumultos.

Todavia, o fundamento utilizado pela Prefeitura para comandar as incursões nos bares e boates foi distinto. Alegou-se, à época, que a proibição da atividade estava sendo feita em homenagem ao princípio da indisponibilidade da dignida-de da pessoa humana.

Um dos anões que foi proibido de ser lançado em boates locais ingressou então com uma ação contra a Prefeitura. Alegava o anão que a proibição baixada era ilegal pois violava a sua liberdade de iniciativa. Por conta de sua baixa estatura, argumentou o anão, estava difícil conseguir um emprego na cidade. Dessa forma, ser lançado de um lado para outra na boate era o único emprego que ele havia obtido. E agora o Estado estava lhe retirando o seu próprio sustento.

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Na decisão de 27.10.1995, o Conselho de Estado francês pela primeira vez reconheceu a dignidade da pessoa humana como elemento integrante da “ordem pública” e, conseqüentemente, declarou ser a prática do lançamento de anão uma atividade que atenta contra a dignidade da pessoa, não podendo, mesmo volun-tariamente, ser exercida pela mesma.

Se você fosse o juiz de um caso idêntico àquele decidido pelo Conselho de Esta-do francês, qual seria a sua decisão?

CASO 2:

Na Alemanha discutia-se a possibilidade de se conceder uma licença de funcio-namento para um estabelecimento onde se praticava o chamado “peep-show”, no qual uma mulher dança sensualmente (e geralmente sem roupas) em uma cabine fechada, mediante remuneração, para um espectador individual.

A licença de funcionamento não fora concedida administrativamente sob o argumento de que aquela atividade seria degradante para mulher e, portanto, violava a dignidade da pessoa humana. Em razão disso, os interessados ingressa-ram com ação judicial questionando o ato administrativo. Eles argumentavam que a mulher estaria realizando aquele trabalho por livre e espontânea vontade e por isso não havia que se falar em violação à dignidade da pessoa humana. Sustentaram ainda que várias boates onde se praticava o strip-tease obtiveram a devida licença de funcionamento, razão pela qual o “peep-show” também deveria ser permitido.

O caso chegou até a Corte Constitucional alemã (TCF), que deveria decidir se merecia prevalecer a autonomia da vontade da mulher, que estava ali volunta-riamente, por escolha própria, ou a dignidade da pessoa humana, já que aquela atividade colocava a dançarina na condição de mero objeto de prazer sexual.

A decisão foi no sentido de que o “peep-show” violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Na argumentação, o TCF decidiu que “a simples exibição do corpo feminino não viola a dignidade humana; assim, pelo menos em relação à dignidade da pessoa humana, não existe qualquer ob-jeção contra as performances de strip-tease de um modo geral”. Já os Peep-shows — argumentaram os julgadores — “são bastante diferentes das performances de strip-tease. No strip-tease, existe uma performance artística. Já em um peep-show a mulher é colocada em uma posição degradante. Ela é tratada como um objeto para estímulo do interesse sexual dos expectadores”.

Explicou ainda o TCF que a violação da dignidade não seria afastada ou jus-tifi cada pelo fato de a mulher que atua em um “peep-show” estar ali voluntaria-mente. Afi nal, “a dignidade da pessoa humana é um objetivo e valor inalienável, cujo respeito não pode fi car ao arbítrio do indivíduo”

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Você concorda com a decisão acima? Como a autonomia privada e o princípio da dignidade da pessoa humana podem ser enquadrados nesse caso?

(As citações foram extraídas de ADLER, Libby. Dignity and Degration: transnacional lessons from constitucional protection of sex. Disponível On-line: http://papers.ssrn.com/. O texto acima é uma adaptação do tex-to de George Mamelstein constante do site: http://direitosfundamentais.net/2007/08/14/jurisprudenciando-casos-curiosos-julgamentos-pitorescos/)

3. QUESTÕES DE CONCURSO

UnB/CESPE — OAB37º Exame de Ordem 2008.3QUESTÃO 20Assinale a opção correta no que se refere à aplicação do princípio da dig-

nidade da pessoa humana.A. O uso de algemas não requer prévio juízo de ponderação da neces-

sidade, como em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, pois, como a fuga é ato extremamente provável no momento da prisão, as algemas podem ser utilizadas como regra.

B. A referência, na CF, à dignidade da pessoa humana, aos direitos da pessoa humana, ao livre exercício dos direitos individuais e aosdi-reitos e garantias individuais está relacionada aos direitos e garantias do indivíduo dotado de personalidade jurídica ou não. Desse modo, a aplicação do princípio da dignidade humana exige a proteção dos embriões humanos obtidos por fertilização in vitro e congelados, devendo-se evitar sua utilização em pesquisas científi cas e terapias.

C. A aplicação do princípio da insignifi cância, embora seja consequ-ência do princípio da dignidade da pessoa humana, nãoé aplicável aos crimes militares, haja vista a dignidade do bem jurídico prote-gido pelos tipos penais que têm por objeto de proteção os interesses da administração militar.

D. A ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados de crimes societários, além de implicar a inobservância aos princí-pios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, fere o princípio da dignidade da pessoa humana.

Resposta: D

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PARTE II: DIREITO DAS PESSOAS

AULA 3 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — A PESSOA FÍSICA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Pessoa física — Início e fi m da personalidade — Incapacidade — Identifi ca-ção e Registro

LEITURA OBRIGATÓRIA

RODRIGUES, Rafael Garcia. “A Pessoa e o Ser Humano no novo Código Civil”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 1/34

LEITURAS COMPLEMENTARES

NONATO, Orozimbo. “Personalidade”, verb. in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. 37; e EBERLE, Simone. “Mais capacidade, menos autonomia: o estatuto da menoridade no novo Código Civil”, in Revis-tra Trimestral de Direito Civil nª 17 (2004), pp. 181-191.

1. ROTEIRO DA AULA

Antes de ingressar no estudo da personalidade, é importante remeter aos conceitos de relação jurídica e de direito subjetivo. A relação jurídica, na con-ceituação de Pontes de Miranda, nada mais é do que “a relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica”. Assim, além da incidência da norma, que torna determinada relação relevante ao direito, te-mos que, necessariamente, a relação jurídica se desenvolve entre entes capazes de ter direitos e deveres.

Outra consideração a que devemos nos remeter são os conceitos de direito subjetivo e direito objetivo. O direito objetivo, norma agendi, é o direito posto, ou seja, a norma jurídica que vigora em determinado Estado. Já o direito sub-jetivo, de forma sucinta, é a prerrogativa titularizada por um indivíduo decor-rente da regular observância de norma de direito objetivo. É a facultas agendi.

A conexidade desses conceitos com o de personalidade deriva justa-mente do fato que, em regra, aos entes dotados de personalidade é dado

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integrar algum dos pólos da relação de direito material, seja o pólo ativo ou o pólo passivo.

Na tentativa de dirimir o caráter abstrato da matéria, pode-se socorrer com exemplos derivados do Direito das Obrigações. Assim, num contrato de compra e venda fi guram, concomitantemente, o vendedor e o comprador. O primeiro, sendo titular de um direito de crédito, é o sujeito ativo da relação; o segundo, comprador do bem, é o sujeito passivo, é aquele em virtude do qual pode ser exigida uma ação condizente na entrega do bem. O vendedor é o devedor da relação.

Contudo, a dinâmica da relação obrigacional suscitada não é tão simples. A relação contratual citada, seguindo a lógica das obrigações, possui um ca-ráter sinalagmático, ou seja, há correspondência na exigência de condutas recíprocas para ambas as partes.

Dessa forma, ao vendedor corresponde o direito subjetivo de receber a importância acordada, ao mesmo tempo em que compete ao comprador o dever-jurídico de pagar-lhe o preço. Analisando sob outra perspectiva, tem-se que, de forma concomitante, o comprador é titular do direito subjetivo de receber a mercadoria, ao passo que o vendedor está adstrito ao dever jurídico de entregá-la nas condições estabelecidas — dia, hora, quantidade, qualida-de, etc.

Nos direitos reais, por outro lado, a defi nição do sujeito passivo não é tão clara como no exemplo acima apresentado: contra quem se pode exigir uma prestação quando o direito titularizado é o direito, p.ex, de propriedade sobre um bem? No direito de propriedade, enquanto o sujeito ativo é o titular do domínio, são sujeitos passivos da relação jurídica todas os demais terceiros, exceto o titular do direito real.

Personalidade e pessoa natural

O Código Civil regula a personalidade nos artigos 1º a 12. A personali-dade, conforme exposto pela doutrina tradicional, se traduz na capacidade genérica para ser titular de direitos e deveres, sendo adquirida, a partir do que se depreende do artigo 2º do Código Civil, do nascimento com vida. Para uma crítica desse conceito de personalidade, remete-se a leitura à aula seguinte, sobre os chamados direitos da personalidade.

De forma clara, na confi guração da personalidade do indivíduo não há que tecer considerações acerca de elementos próprios de sua capacidade psí-quica, tais como o tirocínio, a maturidade, a livre e consciente capacidade de manifestar sua vontade e de comportar-se de forma condizente com essa manifestação. A personalidade, de forma peremptória, pressupõe apenas o nascimento com vida.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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6 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições

de Direito Civil, v. I. Rio: Forense, 2005,

p. 142.

7 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições

de Direito Civil, v. I. Rio: Forense, 2005;

p. 146.

Como destaca Caio Mário, a personalidade não depende de consciência ou vontade do indivíduo, pois “a criança, mesmo recém-nascida, o louco, o portador de enfermidade que desliga o indivíduo do ambiente físico ou moral, não obstante a ausência de conhecimento da realidade, ou a falta de reação psíquica, é uma pessoa, e por isso mesmo dotado de personalidade, atributo inseparável do homem dentro da ordem jurídica, qualidade que não decorre do preenchimento de qualquer requisito psíquico e também dele inseparável.”6

A personalidade, de acordo com a redação do artigo primeiro do CC2002, se inicia com a vida. Esse é o único pré-requisito, pois o direito brasileiro não considera, conforme a legislação estrangeira prevê em alguns casos, elemen-tos como a viabilidade da vida ou mesmo, a “aparência humana”.

Contudo, o feto, enquanto integrante do corpo da mãe, não é uma massa amorfa desconsiderada em sua importância pelo direito. O próprio dispositi-vo aqui referido, art. 2º, determina que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Nascituro, é segundo a defi nição clássica, o ser já concebido e que se encontra no útero materno durante o período gestacional. Não é dotado ainda de perso-nalidade, a qual somente surgirá no momento de seu nascimento com vida.

Não obstante essa falta de personalidade, o direito civil pátrio protege esse ente ainda em formação. Isso decorre da tradição romanística de nosso direi-to, segundo a qual o feto, antes do nascimento, não é ainda uma pessoa, mas se vem à luz como um ser dotado de direitos, a sua existência, no tocante aos seus interesses, retroage ao momento de sua concepção. Os direitos reconheci-dos ao nascituro permanecem então em estado de potencialidade até o advento do nascimento, quando só então efetivamente se aperfeiçoam.

A lógica dessa é muito clara: se o feto não nasce, ou se não nasce vivo, a relação de direito não chega a se formar. Nesse caso, nenhum direito será transmitido à mãe por intermédio do natimorto. É como se nunca houvesse ocorrido a concepção.

Surge logicamente a necessidade de precisar o momento no qual se reputa, para fi ns jurídicos, a regular constituição da vida. Quando temos efetivamen-te esse nascimento com vida tão aludido pelo direito? Segundo a lição de Caio Mário, “[a] vida do novo ser confi gura-se no momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica no meio ambiente. Viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, ainda que pereça em seguida. Desde que tenha respi-rado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota a vida, mesmo que não tenha sido cortado o cordão umbilical, e a sua prova far-se-á por todos os meios, como sejam o choro, os movimentos, e essencialmente os processos técnicos de que se utiliza a medicina legal para a verifi cação do ar nos pulmões”.7

Não há que se falar em pré-condicionamentos de natureza temporal para o regular aperfeiçoamento da personalidade. Tendo nascido vivo, anda que

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 14

8 Patrimônio na acepção jurídica deve

ser concebido como o conjunto de

relações jurídicas de que o indivíduo

é titular. Dessa forma, transcende à

simples ótica dos bens materialmente

tangíveis.

9 Art. 15 C.F “É vedada a cassação de

direitos políticos, cuja perda ou suspen-

são só se dará nos casos de: I- cancela-

mento da naturalização por sentença

transitada em julgado; II – incapacida-

de civil absoluta; III – condenação cri-

minal transitada em julgado, enquanto

durarem seus efeitos; IV – recusa de

cumprir obrigação a todos imposta ou

prestação alternativa, nos termos do

art. 5º, VIII.”

10 A necessidade de prova pode ser

exemplifi cada pelo art. 88 da Lei de

Registros Públicos: “Poderão os Juízes

togados admitir justifi cação para o

assento de óbito de pessoas desa-

parecidas em naufrágio, inundação,

incêndio, terremoto ou qualquer outra

catástrofe, quando estiver provada a

sua presença no local do desastre e não

for possível encontrar-se o cadáver para

exame. Parágrafo único. Será também

admitida a justifi cação no caso de desa-

parecimento em campanha, provados a

impossibilidade de ter sido feito o re-

gistro nos termos do artigo 85 e os fatos

que convençam da ocorrência do óbito.”

depois pereça, constituiu-se enquanto ser e, portanto, os direitos que se en-contravam em estado potencial se aperfeiçoaram concomitantemente.

Conforme já abordado, todo ser humano é titular em caráter genérico de direitos, bastando para isso o seu nascimento com vida. Não obstante, não é somente ao homem que se confere personalidade, mas o direito igualmente a confere a outras entidades. É o caso de agrupamentos de indivíduos que se associam para a consecução de uma atividade econômica ou social (socieda-des e associações), ou que se forma com vistas à destinação de um patrimônio para um fi m determinado (fundações). Qualquer que seja a fi gura de que se trate, o mais importante é constatar que tais entes são dotados de autonomia e independência em relação àqueles que lhe compõem.

Essa personalidade, que é conferida ao homem e aos entes por ele criados, não se estende a outros seres vivos. Hipóteses há em que a lei trata com espe-cial consideração animais ou mesmo determinados objetos, contudo, apenas o faz em atenção ao homem que delas se serve. A vedação à caça ou aos maus tratos, por exemplo, não é refl exo de uma eventual personalidade dos animais ou mesmo de direitos que estes eventualmente titularizem. Corporifi ca tão somente a idéia de que, em determinadas situações, o sofrimento e pereci-mento destes é atentatório ao direito do próprio homem.

Fim da personalidade civil

Essa mesma personalidade que é adquirida com o nascimento com vida, termina com o advento da morte (CC, art. 6º). Estende-se, então, durante todo o período de vida do indivíduo. Somente com a morte, a aptidão para adquirir direitos que se iniciou com o nascimento irá se expirar, transferindo-se seu patrimônio8 aos herdeiros.

O direito atual não prevê hipótese alguma de perda da personalidade em vida, não constituindo exceção a previsão constitucional de cassação de direi-tos políticos.9 Também não há que se caracterizar como morte a presunção inserida no regramento da ausência, na medida em que esta se opera somente no que toca aos efeitos patrimoniais.

De ordinário, prova-se a morte pela certidão extraída do assento de óbito. Pode, contudo, ser provada por uma sentença declaratória do falecimento, e nesse caso, o ônus da prova caberá àquele que possui interesse em provar que a pessoa esteja morta. 10

Comoriência

Reputam-se comorientes aquelas pessoas que falecem na mesma ocasião, de maneira a impossibilitar-se decifrar qual delas pré-morreu à outra. É o que

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pode ser facilmente visualizado, a título de exemplo, em hipóteses de incên-dio, naufrágio ou queda de uma aeronave. Logicamente, existe a necessidade de valer-se de todos os recursos periciais possíveis no intento de descobrir o momento das mortes, e nesse particular, o jurista recorre muitas vezes a seara da medicina legal.

É nessa hipótese de falha na apuração da precedência dos óbitos que se adotou como regra a simultaneidade das mortes. Segundo determina o art. 8º do CC2002:

Art. 8o Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultanea-mente mortos.

Os efeitos dessa presunção se processam de forma que, entre os como-rientes, não há transferência de direitos, ou seja, há uma impossibilidade de que um suceda ao outro. Não obstante, os outros herdeiros de cada um dos comorientes devem ser chamados à sucessão.

A questão é relevante, pois dependendo da situação, pode implicar em uma série de efeitos do ponto de vista sucessório. O exemplo clássico remon-ta à situação em que pai e fi lho são vitimados pelo mesmo acidente. A solu-ção jurídica comportará enunciados inteiramente diferentes dependendo da apuração da ordem das pré-mortes. Na impossibilidade dessa aferição, vale-se da comoriência.

Registro Civil das Pessoas Naturais

O registro civil de pessoas naturais possui suas origens na prática adotada pela Igreja Católica na Idade Média segundo a qual os padres registravam o batismo, casamento e óbito dos fi éis. Justamente por esse motivo, o registro foi deixado a cargo da Igreja por um longo tempo.

Atualmente, os fatos atinentes ao estado das pessoas são averbados no registro civil. O Registro Civil de Pessoas Naturais congrega duas funções essenciais: (i) por um lado, documenta informações de relevante interesse; e (ii) por outro, confere publicidade a essas informações.

A par das fi nalidades já destacadas, existem ainda dois princípios que de-vem pautar a atividade dos registros públicos: o da fé pública e da continui-dade. A fé pública constitui-se de uma presunção de veracidade das informa-ções constantes dos atos registrais. O princípio da continuidade, por sua vez, pressupõe que todas as informações atinentes ao indivíduo devem constar no registro para que se forme um histórico das situações jurídicas relevantes, sendo facultada a consulta por eventuais interessados.

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11 Elucidativa também é a nomenclatu-

ra oriunda da tradição francesa, onde a

capacidade de direito corresponde à ca-

pacidade de gozo e a capacidade de fato

pressupõe a capacidade de exercício.

Capacidade

A capacidade, em sentido lato, congrega também a idéia de executorie-dade de direitos da pessoa, correspondendo assim, não só à possibilidade do indivíduo adquiri-los, mas também de os exercer de per se ou mediante a assistência de outrem. Embora sejam conceitos distintos, existe uma comple-mentaridade entre personalidade e capacidade.

A capacidade se subdivide em dois tipos distintos: a capacidade de direito, oriunda da personalidade e a capacidade de fato, que é a aptidão para utilizar e exercer direitos por si mesmo. A primeira remete à idéia de capacidade de aquisição, ao passo que a segunda implica numa capacidade de exercício.11

A capacidade de direito surge concomitantemente com a personalidade, isto é, tão logo ocorre o nascimento com vida. A vinculação entre capacidade de direito e personalidade é bem enunciada pela doutrina clássica. Do expos-to, pode-se depreender uma conclusão: apenas da capacidade de fato decorre o pleno exercício de direitos.

No estudo sobre a personalidade jurídica, devemos ter em mente que ca-pacidade é a regra e a incapacidade a exceção. Ou seja, toda pessoa tem a ca-pacidade de direito ou de aquisição, sendo presumida a capacidade de fato (ou de exercício). Somente através de exceções de natureza legal o indivíduo pode ser privado da capacidade de fato. Assim, não constitui uma faculdade do indivíduo abdicar ou dispor de sua capacidade.

A incapacidade não denota forma alguma de restrição à personalidade ou a capacidade de direito. Os indivíduos por ela atingidos são afetados no exer-cício pessoal e direto dos direitos, e, portanto, a sua natureza nada mais é do que uma limitação à autonomia de agir no mundo jurídico. Importante ter em mente que essa limitação deve ser sempre interpretada de forma restrita (stricti iuris) e em consonância com a idéia já aqui exposta de que capacidade é a regra e incapacidade é a exceção.

Qualquer restrição ao exercício de direitos que resulte de ato jurídico, seja ele inter vivos ou causa mortis, não implica em incapacidade.

Outro preceito de grande importância que deve ser destacado na teoria acerca da incapacidade é o de que esta deriva exclusivamente da lei. É o le-gislador que determina as hipóteses em que o indivíduo será privado de sua capacidade e cabe ao intérprete visualizar essas restrições de taxativamente. Esses dispositivos têm caráter de ordem pública.

Igualmente importante é evitar confundir incapacidade com a vedação que a lei impõe a algumas pessoas de pactuarem certos negócios jurídicos. É o caso, por exemplo, das hipóteses em que a lei taxa como defesa a possibilida-de do tutor adquirir bens do pupilo ou ainda, dos ascendentes alienarem bens a alguns descendentes sem o expresso consentimento dos demais. A lógica

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FGV DIREITO RIO 17

dessas vedações é a preservação da moralidade e elas somente visam restringir, limitadamente, os atos por ela previstos.

A lógica que orienta a incapacidade é a proteção daqueles cujo discerni-mento é falho. Somente aqueles eivados de defi ciências juridicamente rele-vantes devem ser alvo do instituto. Os incapazes são submetidos a um regime legal privilegiado cujo principal escopo é a preservação de seus interesses.

Atentando à extensão das defi ciências, o direito gradua o nível de incapa-cidade. Dessa forma, em sendo o défi cit psíquico menos ou mais severo, te-mos a possibilidade de que aquele por ele atingido seja determinado absoluta ou relativamente incapaz.

Distinção que também deve ser destacada é aquela relativa à graduação da forma de proteção, no sentido de que aos relativamente incapazes assume o aspecto da assistência, e em relação aos absolutamente incapazes assume o aspecto da representação.

Distinção entre incapacidade relativa e absoluta

O elenco dos absolutamente incapazes está previsto no artigo 3º do CC2002, ao passo que os relativamente incapazes se encontram no artigo 4º do mesmo diploma. Grosso modo, pode-se dizer que a distinção entre incapacidade absoluta e relativa é de grau apenas. As incapacidades decorrem ou da idade imatura ou de uma defi ciência física e mental determinada. O citado artigo 3º assim dispõe sobre a matéria:

Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:I — os menores de dezesseis anos;II — os que, por enfermidade ou defi ciência mental, não tiverem o necessário

discernimento para a prática desses atos;III — os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

O artigo 4º do CC2002, por sua vez, considera relativamente incapazes aqueles que:

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:I — os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;II — os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por defi ciência mental,

tenham o discernimento reduzido;III — os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;IV — os pródigos.Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

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12 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. I. Rio: Forense,

2005; p. 169.

Atentando-se à redação da lei, pode-se observar que aos absolutamente incapazes é defeso a prática, de forma autônoma, de quaisquer atos jurídicos. A norma desconsidera a sua vontade, não sendo a mesma qualifi cada como elemento válido para o aperfeiçoamento de relações jurídicas.

Se ao arrepio da lei, o absolutamente incapaz pratica um ato jurídico, através de sua própria manifestação de vontade, isto é, não se valendo aqui de representante legalmente constituído, este ato deve ser reputado nulo. É o defi nido pelo art. 166, I, do CC2002, que prescreve ser nulo o negócio jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz.

Situação distinta é a da capacidade relativa, pois nela a inaptidão físico-psíquica dos benefi ciários é menos pronunciada. O julgamento da realidade nessas pessoas não se opera com perfeição, mas também não deve ser de todo desprezado. A liberdade para agir no mundo jurídico é restringida, mas não de todo anulada, sendo ainda condicionada, para sua regular validade, a intermediação de um assistente. Esse assistente, pessoa plenamente capaz, é quem aconselhará o relativamente incapaz.

Os atos praticados por relativamente incapaz são passíveis de anulação. Contudo, uma vez submetido tal ato à anuência do assistente, ele será con-validado e terá força cogente equivalente aos atos que desde o seu início per-feitamente se constituem.

Incapacidade absoluta

Absolutamente incapazes, como visto, são aqueles que detêm direitos, podem adquiri-los, mas são desabilitados a exercê-los. Sendo apartados de atividades ci-vis, não participam direta e pessoalmente de qualquer negócio jurídico.12 Con-trariando-se essa vedação que a lei os imprime, o ato será nulo de pleno direito.

Os indivíduos que se encontram nessa situação se valem de representantes que os substituem por completo na prática de todos os atos atinentes a vida civil. A representação pode se dar de duas formas: automaticamente, ou por nomeação ou designação de autoridade judiciária.

A representação se processa de forma automática quando em virtude de relações de parentesco ocorrem as hipóteses legais já determinadas. No caso de nomeação, o representante adquire esse status em virtude de ato judicial.

A incapacidade absoluta ou está relacionada à idade ou à enfermidade men-tal. Os preceitos legais versam exclusivamente sobre essas duas causas.

Incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos — A lei parte do pressu-posto de que indivíduos de pouca idade são naturalmente inaptos ao exercí-cio de atos da vida civil. Essa incapacidade é decorrente da falta de discerni-mento e maturidade que o legislador crê que somente o transcurso dos anos é capaz de dotar o indivíduo.

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Nesse particular, chama maior atenção que a fi xação da idade de 16 anos para o fi m da incapacidade absoluta é inovação do CC2002. No direito an-terior, esse estado se alongava até os 18 anos.

Os que, por enfermidade ou defi ciência mental não tiverem o necessário dis-cernimento para a prática desses atos — O inciso II do art. 3º se refere àqueles nos quais, ao se constatar problemas psíquicos, fi cam impossibilitados de se autogovernar. No entanto, a decretação da incapacidade depende de um pro-cesso de interdição, o qual é disciplinado pelos artigos 1.177 e seguintes do CPC, processo esse em que o interditando se valerá dos meios legais para im-pedir tal provimento jurisdicional. No processo de interdição, o juiz se valerá dos meios de prova, em particular de laudo pericial médico. A participação do Ministério Público também é necessária.

Também é relevante a questão de saber se são válidos os atos praticados pelo amental anteriormente à sentença que declare a sua interdição. A pro-blemática aqui enunciada remete a dois interesses confl itantes: por um lado, encontra-se o amental, que tendo seu discernimento maculado, pratica atos que lhe são desfavoráveis e é por conta disso, alvo de uma especial conside-ração por parte da lei; por outro lado, encontra-se o interesse do terceiro de boa-fé que com ele contrata. A possibilidade de anulação do ato jurídico poderá causar o inconveniente da falta de segurança jurídica.

A questão é controvertida tanto em campo doutrinário como jurispruden-cial. Autores e juízes demonstram inclinações diversas e a somente a análise da situação casuística representa o fator determinante para a invalidação ou não de atos praticados pelos amentais antes de sua interdição.

A boa-fé do contratante que negocia com o amental se consubstancia numa série de condutas que devem ser necessariamente observadas. Assim, p.ex., se o contratante tinha conhecimento do estado de afetação intelectiva da outra parte, se a alienação era evidente, se a apuração da condição de inca-pacidade podia ter sido feita, ou ainda, se as próprias condições do negócio já induziam que o contratante não estaria procedendo de forma coerente, não há que se falar em boa-fé.

Má-fé e boa-fé, valendo-nos aqui de uma alegoria muito utilizada, não são campos limítrofes, separados por uma tênue fronteira. Não existe uma deli-mitação precisa. Existe, em verdade, uma grande “região cinzenta” que separa a boa-fé da má-fé. Por conseguinte, o fato de um contratante não agir delibe-radamente de ma-fé não implica na necessária retidão de conduta do mesmo.

A boa-fé perpassa a idéia de não agir em desfavor da parte contrária com o intuído de angariar vantagem, consubstanciando-se muitas vezes num atuar positivo, diligente e que congrega elementos de ordem moral. Não obstante, como se observa, o entendimento no sentido de tornar nulo o ato executado por incapaz já foi diversas vezes afi rmado nos tribunais:

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13 STJ, Resp nº 296895/PR, Min. Carlos

Alberto Direito; j. em 29.06.2004.

Nulidade de ato jurídico praticado por incapaz antes da sentença de interdição. Reconhecimento da incapacidade e da ausência de notoriedade. Proteção do adqui-rente de boa-fé. Precedentes da Corte.

1. A decretação da nulidade do ato jurídico praticado pelo incapaz não depende da sentença de interdição. Reconhecida pelas instâncias ordinárias a existência da incapacidade, impõe-se a decretação da nulidade, protegendo-se o adquirente de boa-fé com a retenção do imóvel até a devolução do preço pago, devidamente corrigido, e a indenização das benfeitorias, na forma de precedente da Corte.

2. Recurso especial conhecido e provido13

Essa posição fi ca mais defensável quando se verifi ca que na legislação pro-cessualista brasileira a sentença proferida no processo de interdição tem efeito declaratório. Não se trata de provimento constitutivo, não é o decreto de interdição, que cria a incapacidade, mas sim o pré-constituído estado de alie-nação mental.

O desfazimento do negócio, quando determinado, não pode implicar em prejuízo ainda maior para aquele que acreditava dele extrair todos os efeitos esperados. No caso apresentado, apesar do desfazimento do ato de caráter negocial, os valores empregados na conservação e aprimoramento do imóvel alienado pelo incapaz devem ser ressarcidos.

Contudo, a invalidação dos atos não é questão absolutamente pacífi ca. Julgados há que, dispondo em sentido oposto, prescrevem que em home-nagem ao contratante de boa-fé, é imperioso não desfazer o ato jurídico ce-lebrado antes da sentença que decrete a incapacidade absoluta. Os autores que defendem a continuidade do negócio, postulando a primazia da boa-fé, asseveram que essa deve restar clara, facilmente perceptível.

Os que, mesmo por motivo transitório, não puderem exprimir a sua vontade — Não só a vontade deve ser livre em sua construção, fruto da perfeita ela-boração intelectiva do agente. Ela deve se pronunciar igualmente sob forma desembaraçada, deve ser livre em sua exteriorização. Se essa segunda conside-ração é ausente na manifestação de vontade o ato simplesmente carecerá de seu elemento gerador.

Incapacidade relativa

Os relativamente incapazes não são de todo privados da capacidade de fato. O diferencial aqui não é a incapacidade de se autodeterminar, pois os relativamente incapazes possuem discernimento que não pode ser desconsi-derado pelo direito. É por conta dessa constatação que eles se encontram a meio caminho entre a incapacidade plena e o livre exercício de prerrogativas jurídicas.

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Nos atos da vida civil, exige a lei que sejam eles assistidos por quem o di-reito positivo encarrega desse ofício — em razão do laço de parentesco ou em virtude de relação de ordem civil, ou ainda por designação judicial.

Como já ressaltado nas considerações gerais que versam sobre a capaci-dade, os atos praticados por relativamente incapaz não são nulos de pleno direito, mas apenas anuláveis. Uma vez ratifi cados pelo assistente do inca-paz, nenhum outro vício poderá ser argüido contra eles. São entendimen-tos que também se encontram expressos na lei, nos artigos 171 e 172 do Código Civil:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I — por incapacidade relativa do agente;II — por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude

contra credores. (grifo nosso);Art. 172. O negócio anulável pode ser confi rmado pelas partes, salvo direito de

terceiro.

O CC2002 considera como relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Aqui se admite que o indivíduo já tenha alcançado determinado desenvolvimento intelectual, e que, portanto, não há que se desprezar a sua vontade. Seguindo a lógica da incapacidade relativa, para que seus atos sejam reputados válidos, a lei prevê a anuência de seu pai ou tutor. Contudo, quem atua no negócio jurídico é o próprio menor, sendo a sua vontade a real a mola propulsora do negócio a ser celebrado.

Ao defi nir a incapacidade relativa entre dezesseis e dezoito anos, o CC2002 se harmonizou com as regras eleitorais e com a maioridade penal. Se o me-nor púbere realiza ato jurídico sem a assistência de seu representante esse ato será passível de anulação, tanto pelo menor como por seu assistente legal. Contudo, o direito se pauta também pela regra de que a ninguém é dado se benefi ciar de sua própria torpeza, e dessa forma, aquele que dolosamente age, enganando o outro contratante, não pode encontrar acolhida no direito. É o que dispõe o art. 180:

Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.

Além aqueles de idade superior a dezesseis e inferior a 18, o código aloca entre os relativamente incapazes outras fi guras. É o caso dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e daqueles eivados de defi ciência mental — defi ciência essa que ao contrário da enunciada no art. 3º não obsta a prática de atos civis.

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A norma se volta à idéia de que os indivíduos eivados desses impedimen-tos são alcançados por uma redução do seu discernimento. Contudo, é in-cumbência da jurisprudência nacional estabelecer o que será, exatamente, este discernimento reduzido de que trata a norma.

Pródigo é aquele que, desordenadamente, gasta e destrói o seu patrimônio. A proteção se inspira no relevante interesse social de proteção de sua família e da própria integridade patrimonial do titular, sendo a incapacidade decretada judicialmente por requisição do cônjuge ou de outro familiar.

A sua interdição e a conseqüente necessidade de assistência não se ope-ram em relação à prática de todos os atos. Concernem apenas àqueles que possam implicar em redução de seu patrimônio, e ao interesse de sua fa-mília representado no mesmo. Os demais atos da vida civil poderão ser livremente praticados.

A capacidade dos indígenas, por sua vez, é regulada em legislação especial, qual seja, o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/73), o qual erige normas que atentam à especial condição das comunidades indígenas aos costumes que lhes são próprias.

Antecipação de Maioridade

A antecipação de maioridade é tão-somente a aquisição da capacidade civil antes da idade de 18 anos, legalmente instituída. Em regra, a capacidade de fato só é conferida ao indivíduo a partir do momento em que este adquire 18 anos, contudo o art. 5º prevê determinadas situações onde há inconve-niência de obstar a prática pelos menores de 18 anos de determinadas ações.

Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fi ca ha-bilitada à prática de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:I — pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instru-

mento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;

II — pelo casamento;III — pelo exercício de emprego público efetivo;IV — pela colação de grau em curso de ensino superior;V — pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de

emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

A hipótese do inciso I é a possibilidade de antecipação voluntária de maio-ridade, que deve contar ou com a anuência das fi guras paterna e materna, ou

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com sentença judicial. Vale destacar que a exigência da participação de ambos os progenitores nesse ato é obrigatória e decorrente da dicção constitucional que prevê igualdade plena de direitos entre homem e mulher.

Os demais casos de antecipação, inseridos nos incisos II a V, são situações expressamente consideradas por preceito legal, onde o legislador reputa como inconveniente que ao menor seja vetada a capacidade de fato. Em qualquer dos casos previstos nesse artigo, a revogação da capacidade de fato antecipada é impossível.

Questões de concurso:

XXXVI Concurso para o Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro.

Prova Preliminar — Direito Civil

1. Agente incapaz demanda, devidamente representado, a anulação de con-trato, alegando que, quando de sua celebração, não estava apto a entendê-lo e querê-lo. A contraparte comprova que o ato não causou prejuízo ao incapaz. Procede o pedido de anulação?

Concurso para ingresso no cargo de Advogado de Empresa — BNDES (2002)

6. Se o menor tiver idade superior a dezoito anos, os pais podem conce-der-lhe a emancipação, dada por escritura pública ou particular, cessam a incapacidade,

(a) pela declaração de ausência dos pais.(b) pela habilitação para dirigir veículos automotores.(c) pela habilitação e conhecimento da língua portuguesa.(d) pelo estabelecimento, com recursos próprios, de sociedade civil ou co-

mercial.(e) pelo ingresso em curso superior, através de concurso vestibular.

Exame da Ordem — OAB/SP (concurso nº 126)

29. Compete aos pais, quanto à pessoa dos fi lhos menores:

(a) representá-los, até os 18 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento.

(b) conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casar, sendo impossível o suprimento judicial nesse caso.

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(c) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha, fazendo uso da própria for-ça, independente de autorização do poder judiciário.

(d) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, sem prejuízo de sua formação.

Ordem dos Advogados do Brasil42º Exame de Ordem Unifi cado — 2010.239. Com relação ao procedimento da curatela dos interditos, é correto

afirmar que:

A. Na ausência dos pais, do tutor e do cônjuge, um parente próximo pode requerer a interdição.

B. A sentença proferida pelo juiz faz coisa julgada material.C. A realização de prova pericial, consistente no exame do interditan-

do, é facultativa, podendo o juiz dispensá-la.D. O Ministério Público não tem legii midade para requerer a interdição.

Resposta: A

Ordem dos Advogados do BrasilVI EXAME DE ORDEM UNIFICADO

41. A Lei Civil afi rma que, a despeito de a personalidade civil da pessoa começar com o nascimento com vida, ao nascituro serão assegurados os seus direitos desde a concepção. Para tanto, é correto afi rmar que, na ação de pos-se em nome de nascituro,

A. a nomeação de médico pelo juiz para que emita laudo que compro-ve o estado de gravidez da requerente, assim previsto na lei proces-sual civil, não poderá ser dispensado em qualquer hipótese.

B. por se tratar de mera expectativa de nascimento com vida, por-tanto, não tendo o nascituro personalidade civil, fi ca dispensada a intervenção do Ministério Público na causa.

C. reconhecida a gravidez, a sentença declarará que seja a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro; não ca-bendo àquela o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador.

D. são documentos indispensáveis à ação o laudo comprobatório do estado gestacional emitido pelo médico nomeado pelo juiz e a cer-tidão de óbito da pessoa de quem o nascituro é sucesso.

Resposta: C

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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UnB/CESPE — OAB39º Exame de Ordem 2009.2

QUESTÃO 33Assinale a opção correta acerca das pessoas naturais e jurídicas.

A. Na sistemática do Código Civil, não se admite a declaração judicial de morte presumida sem decretação de ausência.

B. A existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com o início de suas atividades jurídicas.

C. A personalidade civil da pessoa natural tem início a partir donas-cimento com vida, independentemente do preenchimentode qual-quer requisito psíquico.

D. O indivíduo de 16 anos de idade, ao contrair casamento,adquire a plena capacidade civil por meio da emancipação,voltando à condi-ção de incapaz se, um ano após o casamento, sobrevier a separação judicial.

Resposta: C

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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AULA 4 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — DIREITOS DA PERSONA-LIDADE

EMENTÁRIO DE TEMAS

Direitos da Personalidade — Teorias negativistas do século XIX — Afi rmação no século XX — Características dos direitos da personalidade — Classifi cação — O problema da fonte dos direitos da personalidade — Teoria Monista e Pluralista —(atividade em sala)

ATIVIDADE EM SALA:

Análise do Capítulo de direitos da personalidade do Código Civil (arts. 12/21)

LEITURA OBRIGATÓRIA

DONEDA, Danilo. “Os Direitos da Personalidade no novo Código Civil”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Ja-neiro: Renovar, 2004; pp. 35/58.

LEITURAS COMPLEMENTARES

CAMPOS, Diogo Leite de. “Lições de Direitos da Personalidade”, In Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991; pp. 129/223; PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Pri-vado, tomo VII. Campinas: Booksellers, 2000; pp. 29/40; TEPEDINO, Gustavo. “A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitu-cional Brasileiro”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 23/54; e ASCENSÃO, José de Oliveira. “Pessoa, direitos fun-damentais e direitos da personalidade”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 26 (2006), pp. 43-66.

1. ROTEIRO DE AULA

Os estudos jurídicos sobre a personalidade e a conseqüente elaboração de uma teoria dos direitos da personalidade remontam ao fi nal do século XIX. Os primeiros tratadistas a se debruçar sobre o tema, todavia, assim o fi zeram

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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14 Apud. Gustavo Tepedino. Temas de

Direito Civil. Rio, Renovar, 2001; p. 25.

para refutar a possibilidade de construção de uma teoria jurídica legítima sobre um objeto tão abstrato.

Esse panorama foi gradualmente sendo alterado pela necessidade, cada vez mais evidente — sobretudo na primeira metade do século XX — de dotar o Direito de mecanismos efi cientes para tutelar a dignidade da pessoa humana.

Visando a atingir esse objetivo, percebeu-se que seriam inefi cazes apenas medidas de natureza política, econômica ou social. A coerção do ordenamen-to jurídico precisava ser utilizada para que a pessoa humana fosse protegida contra violações à sua dignidade. Sendo assim, os juristas se dedicaram ao tema, elaborando-se uma teoria jurídica sobre a personalidade, que evoluiu do inicial repúdio à noção de que a personalidade poderia ser objeto de direi-to, até a sua mais ampla proteção.

O Direito Civil, em especial, recepcionou a matéria em estudo na “parte geral” dos Códigos, tratados e manuais. Buscando suprir a mencionada de-manda por uma tutela da pessoa pelo Direito, os civilistas reuniram-se em torno de uma teoria geral dos chamados “direitos da personalidade”, hoje largamente sistematizada.

Todavia, cumpre se explicar — ainda que detidamente — a evolução do pensamento jurídico sobre a tutela da personalidade, iniciando-se pelas teo-rias que negavam a possibilidade de um estudo jurídico sobre o tema.

Teorias negativistas dos direitos da personalidade

Apesar da consagração dos direitos humanos nas Cartas de Direitos do século XIX, a dogmática do Direito Civil encontrou difi culdades em reco-nhecer a existência de direitos atinentes à personalidade humana. Surgiram, assim, questionamentos sobre a natureza e a amplitude desses direitos.

Grande parte das teorias negativistas dos direitos da personalidade sus-tentava que a personalidade, entendida como a titularidade de direitos, não poderia atuar em uma relação jurídica como sujeito e objeto desses direitos concomitantemente. Tratar-se-ia de uma confusão de papéis inadmissível para a teoria civilística.

Conforme entendimento defendido por Jellinek, a vida e a honra de um indivíduo, por exemplo, não pertenceriam à categoria do ter, mas sim à ca-tegoria do ser. Dessa forma, não poderiam ser compatibilizadas com a noção de direitos subjetivos, os quais teriam aplicação restrita à seara das relações jurídicas de cunho patrimonial.14

O cerne da discussão sobre a existência dos direitos da personalidade re-monta à concepção de alguns autores de que esse instituto, se adotado, termi-naria por conferir ao um indivíduo absoluto sobre a sua própria pessoa. Em última, instância, estar-se-ia legitimando o suicídio.

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15 Andreas Von Thur. Derecho Civil, vol.

12. Madrid: Marcial Pons, 1999; p. 371.

16 F. Pontes de Miranda. Tratado de Di-

reito Privado, tomo I. Rio, Borsoi, 1952;

p. 153.

17 Idem. Ibidem; p. 153.

Não sendo possível, portanto, conceder aos direitos da personalidade o ca-ráter de direitos subjetivos, pois se estaria conferindo à vontade individual a faculdade de dispor sobre características fundamentais do ser humano (como a vida), restava apenas a proteção do ordenamento jurídico contra lesões atra-vés do manejo da responsabilidade civil.

A presença preponderante da vontade individual na confi guração dos di-reitos subjetivos pode ser notada na seguinte afi rmação de Andreas Von Th ur:

“El concepto de derecho subjetivo, tal como lo desarrollamos em el §1, no es más que una abstracción de los derechos que tienen por sujeto al ser humano; el señorío de la voluntad, en que esencialmente consiste, es un carácter exclusivo del hombre — si se prescinde de los entes creados por el orden jurídico —, así como constituyen fi nes esencialmente individuales los intereses a cuyo servicio el señorío de la voluntad se destina, esto es, la conservación de la existencia y el logro de los propósitos que el individuo elige libremente.”15

Não tardou para que as teorias negativistas começassem a ser contestadas, reconhecendo-se a relevância do estudo da personalidade para o Direito. A partir desse momento, é importante notar as obras doutrinárias que aborda-ram o tema analisaram a personalidade através de um prisma essencialmente estrutural, isto é, buscando inserir a personalidade ora na fi gura do sujeito das relações jurídicas, ora na posição de objeto a ser tutelado.

Segundo o ponto de vista estrutural, a pessoa representa nas relações ju-rídicas subjetivas o sujeito de tais situações. Identifi cando-se a pessoa com a fi gura do sujeito de direito — o titular das relações jurídicas — a personali-dade terminaria por se confundir com a própria capacidade jurídica.

Essa concepção de pessoa pode ser percebida em diversos tratados e manu-ais de Direito Civil do século XIX e, ainda, em obras clássicas do século XX. Nessa direção, manifesta-se Pontes de Miranda:

“Rigorosamente, só se devia tratar das pessoas, depois de se tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. (...) Se alguém não está em relação de direito não é sujeito de direito: é pessoa; isto é, pode ser sujeito de direito, além daqueles direitos que o ser pessoa produz.”16

A partir do enunciado acima, conclui o tratadista que:

“A personalidade é a possibilidade de se encaixar em suportes fáticos, que, pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto, a possibilidade de ser sujeito de direito.”17

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18 San Tiago Dantas. Programa de Direito

Civil, v. I. Rio, Ed. Rio; p. 192.

19 Segundo Luiz Edson Fachin: “O que a

capacidade faz, na verdade, é informar

a medida da personalbidade e o grau

da sanção que se volta contra o não

atendimento a esse requisito.” (in Teo-

ria Crítica do Direito Civil. Rio, Renovar,

2000; p. 32). Acrescenta, ainda, o refe-

rido autor que “a capacidade é só uma

medida da personalidade” (in Teoria

Crítica, cit.; p. 36).

20 Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. Rio,

Freitas Bastos, 1989, p.205.

21 Orlando Gomes. Introdução ao Direito

Civil. Rio, Forense. Rio, Forense, 1997;

p.131.

Adotando conceituação diversa, é possível ainda observar a personalidade como o conjunto de atributos da pessoa humana, sendo assim, objeto de tutela pelo ordenamento jurídico. Tomando-se a personalidade como va-lor, deve-se levar em conta a plêiade de características indispensáveis ao ser humano que emanam da personalidade e demandam, portanto, a devida proteção jurídica.

Nesse sentido, cumpre transcrever a célebre lição de San Tiago Dantas sobre a distinção entre personalidade e capacidade jurídica:

“A palavra personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando falamos em direitos da personalidade não estamos identifi cando aí a personalidade como a capacidade de ter direitos e obrigações; estamos então considerando a perso-nalidade como um fato natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num homem vivo que é a capacidade jurídica em outras ocasiões identifi cadas com a personalidade.”18

A capacidade jurídica, entendida como a legitimidade para o exercício de direitos, encontra-se disciplinada no Código Civil (artigo 1o), e não se con-funde com a personalidade19, cujo início se dá com o nascimento com vida. Sua duração coincide com a da vida humana, extingüindo-se com a morte, natural ou presumida (i.e., a ausência).

Pode-se reconhecer, portanto, duas correntes: (i) aquela que identifi ca a personalidade com o sujeito de direitos e obrigações, compreendendo ser impossível o reconhecimento de direitos da personalidade pela concomitân-cia nas posições de sujeito e objeto das relações jurídicas; e (ii) aquela que, buscando legitimar a existência dos direitos da personalidade, considera que o objeto das relações jurídicas seriam seus atributos essenciais.

O reconhecimento da personalidade como objeto de direito

Há, como visto, quem defi na os direitos da personalidade como aqueles atinentes à utilização e disponibilidade de certos atributos inatos ao indiví-duo, como projeções biopsíquicas da pessoa humana, constituindo, assim, bens jurídicos assegurados e disciplinados pelo ordenamento.20

A doutrina, ao admitir a personalidade como objeto de direito, buscou superar o dogma da impossibilidade de serem coincidentes a pessoa e o ob-jeto de uma relação jurídica. Os direitos da personalidade seriam, portanto, direitos cujo objeto são bens jurídicos que se convertem em projeções físicas ou psíquicas da pessoa humana, por determinação legal, que os individualiza para lhes dispensar proteção.21 Dessa forma, não se há de confundir o objeto — as projeções que merecem tutela jurídica — com a personalidade.

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22 Alexandre Ferreira Assumpção Alves.

A Pessoa Jurídica e os Direitos da Perso-

nalidade. Rio, Renovar, 1998; pp. 58/59.

23 Danilo Doneda. “Os direitos da per-

sonalidade no novo Código Civil”, in

Gustavo Tepedino. A Parte Geral do Novo

Código Civil. Rio, Renovar, 2003; p. 45.

24 Conforme enunciado por Gustavo

Tepedino, no Temas, cit.; p. 24.

O reconhecimento das projeções da personalidade como objeto das situa-ções jurídicas se mostrou, como se verá mais à frente, uma importante tenta-tiva de afi rmação dos direitos da personalidade. Todavia, a busca doutrinária por um objeto externo à pessoa para garantir a legitimidade da categoria dos direitos da personalidade denota ainda um apego à forma de confi guração dos direitos subjetivos patrimoniais.

Inserida em um substrato que privilegia a concepção de direito subjetivo como um direito essencialmente patrimonial, a teoria dos direitos da perso-nalidade sempre se padeceu da necessidade de se buscar um objeto externo ao sujeito. Essa ótica remonta à estrutura dogmática dos direitos patrimoniais, conforme explicita Alexandre Ferreira de Assumpção Alves:

“Os bens externos dão origem a vários direitos de ordem patrimonial, sobre os quais o homem exerce suas faculdades de apropriação, de domínio. Quanto aos in-ternos, estes compõe uma categoria própria de direitos, que são os direitos da persona-lidade, cujas características específi cas os distinguem dos demais.”22

As teorias criadas sob o manto do reconhecimento dos atributos, caracte-rísticas, ou radiações da personalidade como objeto da relação jurídica sub-jetiva, podem ser identifi cadas pela prática comum de se buscar um bem jurídico que não se identifi casse com a pessoa, uma vez que as utilidades sobre as quais recaem os interesses patrimoniais do indivíduo lhe são sempre exteriores.

Todavia, essa estrutura não se enquadra no que tange às relações jurídi-cas não-patrimoniais. Não cabe ao civilista do século XXI utilizar estruturas pertencentes a construções doutrinárias pretéritas se as mesmas, além de não se adaptarem com perfeição à situação que se busca tutelar, ainda conferem apenas uma proteção inefi ciente.

Ao se buscar um objeto externo ao sujeito para validar a fórmula dos direi-tos da personalidade, a doutrina terminou por não vislumbrar toda a poten-cialidade dessa categoria, persistindo em um modelo que apenas contribuiu para operar como fator de limitação de sua efetiva atuação.23

A partir do preceito constitucional que elege a dignidade da pessoa huma-na como fundamento da República brasileira (art. 1º, III da CFRB), cabe ao civilista optar por uma nova dogmática dos chamados direitos da personali-dade, defi nindo a sua situação jurídica de forma consoante com a complexi-dade da realidade social.

Cumpre, portanto, que se reconheça os direitos da personalidade como aqueles direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.24

Afi rmada essa trajetória teórica de afi rmação dos direitos da personalida-de, em seguida serão abordados alguns pontos de relevo na dogmática dos

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25 Santos Cifuentes se utiliza da ex-

pressão “direitos inatos”, mas adverte

que o sentido em que a emprega parte

de uma “depuração prévia de idéias

advindas das ressonâncias históricas

que a palavra produz”. Assim, quando

o autor se refere a “direitos inatos”, ele

está a se referir a direitos que nascem

com o próprio sujeito, a partir do iní-

cio de sua respiração vital, “estando

indefectivelmente unidos ao homem

enquanto subiectum iuris” (in Derechos

Personalísimos. Buenos Aires, Astrea, 2ª

ed., 1995; pp. 175/176).

26 Santos Cifuentes. Derechos Personalí-

simos, cit.; pp. 183/184.

27 Conforme dicção de Alexandre Fer-

reira de Assumpção Alves. A Pessoa

Jurídica, cit.; p. 66.

mencionados direitos, com destaque para as suas características e classifi ca-ções, ambas delineadas pela doutrina, bem como o problema da fonte dos direitos da personalidade e o embate entre as teorias monistas e pluralistas.

Características dos direitos da personalidade

Os direitos da personalidade possuem algumas características que lhes são conferidas por grande parte dos estudos doutrinários. Embora exista alguma discussão sobre a sua correta enumeração, pode-se reduzir as características dos direitos da personalidade a seis, quais sejam: (i) a generalidade; (ii) a extra-patrimonialidade; (iii) a indisponibilidade; (iv) o caráter absoluto; (v) a imprescitibilidade; e (vi) a intransmissibilidade.

Por generalidade se entende que os direitos da personalidade são natural-mente concedidos a todos pelo simples fato de se estar vivo. Essa relação entre a carcaterísitca da generalidade e a simples existência da pessoa, faz com que alguns autores utilizem a expressão “direitos inatos”. Todavia, a terminologia deve ser evitada, uma vez que ela estabelece uma conotação jusnaturalista para o estudo da tutela da pessoa humana, o que implica em uma tomada de posição quanto à fonte dos direitos da personalidade.25 Segundo o entendi-mento jusnaturalista, os mencionados direitos seriam pré-existentes à ordem jurídica, independendo de qualquer conformação legislativa.

Adicionalmente, deve-se esclarecer que, dentre o rol de direitos da perso-nalidade em espécie, usualmente estabelecido pela doutrina, alguns direitos não adquiridos pelo simples fato da pessoa existir. Nesse particular, o direito moral do autor, reconhecidamente um direito da personalidade, requer que uma obra do espírito seja efetivamente realizada para que sobre o autor recaia a proteção do direito.

A extra-patrimonialidade dos direitos da personalidade impõe que se faça uma observação preliminar, segundo advertência de Santos Cifuentes: a re-ferida característica signifi ca apenas que os direitos da personalidade não po-derão ser objeto de apreciação pecuniária, mas essa circunstância não implica que os mesmos sejam incapazes de produzir efeitos econômicos.26 Trata-se de duas situações distintas.

Vale destacar que essa característica não impede que a lesão a direito da personalidade resulte em indenização pecuniária, pois a mesma se insere no campo da responsabilidade civil, buscando apenas garantir o equiva-lente daqueles bens personalíssimos que constituem o objeto dos direitos da personalidade.27

Assim, mesmo não sendo possível apreciar o valor pecuniário de um di-reito da personalidade, a pessoa poderá se valer de sua utilização para obter um retorno de ordem econômica. Já conectando essa discussão com o pro-

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28 Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de

Pensamento e Direito à Vida Privada.

São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000;

pp. 48/49.

29 Vide, p.ex, Francesco Galgano. Diritto

Civile e Commerciale, vol.I. Padova, CE-

DAM, 1990; p. 151.

30 Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de

Pensamento, cit.; p. 55.

31 Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de

Pensamento, cit.; p. 74.

blema da indisponibilidade, complementa Gilberto Haddad Jabur que os direitos da personalidade:

“[P]or dizerem mais ao conteúdo físico, moral ou espiritual do homem, do que ao seu acervo material, não se imiscuem com o patrimônio, na acepção coloquial de-ferida ao termo, mas sobre ele exercem infl uência, porquanto podem, pela limitação de seu exercício (ou limitação parcial e voluntária de vontade), emprestar utilidade econômica. É o caso da permissão de uso ou venda da imagem e da divulgação de dados íntimos, através ou não de contraprestação pecuniária. Não se trata de con-sagrar a disposição desses bens, posto intransmissíveis e por isso indisponíveis, mas de temporária autorização, o que amiúde ocorre para a sua utilização e exploração econômica.”28

A indisponibilidade trata da impossibilidade do titular dos direitos da per-sonalidade para dispor desses direitos conforme o seu livre alvitre, tornando-os igualmente irrenunciáveis e impenhoráveis. Dessa forma, existe uma re-lação de complementaridade entre a extra-patrimonialidade — que, como visto, permite que a pessoa autorize a utilização de direito da personalidade em troca de compensação fi nanceira — e a indisponibilidade desses direitos.

De fato, a indisponibilidade de que trata a doutrina deve ser relativiza-da, na medida em que algumas faculdades emanadas dos direitos da per-sonalidade permitem a contraprestação pecuniária. O direito à imagem é o exemplo sempre mencionado nesse sentido.29 Nessas circunstâncias, o direito permanece intacto, apenas sendo cedidas temporariamente algumas de suas potencialidades.30

Seguindo-se a enumeração de suas características, os direitos da persona-lidade são absolutos na medida em que os mesmos são oponíveis erga-omnes, impondo-se a todos os terceiros o dever de respeitá-los. Essa característica pode ser então enunciada como verdadeira decorrência da obrigação geral de abstenção inscrita no princípio neminen laedere.

A utilização do termo “absolutos”, todavia, parece imprecisa na medida em que não se procura defender, com essa característica, o entendimento de que os direitos da personalidade sempre prevalecerão e serão aplicados, mesmo quando em confl ito com direitos de outra natureza.31 Como se sabe, diversas são as hipóteses de colisão entre os direitos da personalidade, demandando-se uma análise no caso concreto com o escopo de se averiguar qual direito prevalecerá e qual terá o seu campo de atuação reduzido nessa específi ca situ-ação. Por isso, deve-se evitar a utilização do termo “absolutos”, renomeando-se essa característica para uma expressão centrada apenas na possibilidade de oponibilidade dos direitos da personalidade de modo erga omnes.

A imprescritibilidade faz perdurar no decurso do tempo a pretensão re-lativa à reparação de dano causado a direito da personalidade e a intrans-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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32 Limonge França. Manual de Direito

Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais,

1972; p. 411.

missibilidade, por sua vez, impede que os direitos da personalidade venham a ser transferidos com a morte de seu titular. Há de se observar, inclusive, que alguns direitos da personalidade, mais notadamente o direito à imagem, permanecem tutelados mesmo após a morte de seu titular, discutindo a dou-trina se essa proteção deriva de um direito próprio das pessoas que defendem a imagem do de cujus, ou de um prolongamento dos efeitos do direito da pessoa falecida.

Classifi cação dos direitos da personalidade

À parte das características apontadas dos direitos da personalidade, a dou-trina usualmente os classifi ca para fi ns didáticos, ainda que essas classifi cações não encontrem uma utilidade prática mais evidente do que propiciar a orga-nização temática dos referidos direitos.

Assim, as classifi cações geralmente expõem a existência de dois grupos dis-tintos de direitos da personalidade: (i) os direitos à integridade física; e (ii) os direitos à integridade moral. Dentre os direitos à integridade física se encon-trariam o direito à vida, ao corpo, às partes separadas do corpo, e ao cadáver. Na classifi cação dos direitos à integridade moral estariam subsumidos os di-reitos à honra, à imagem, à privacidade, ao nome e o direito moral do autor.

Limonge França, por seu turno, critica essa classifi cação, propondo que se opera a divisão dos direitos da personalidade de acordo com aspectos es-pecífi cos da personalidade, que, em seu entender seriam o aspecto físico, o intelectual, e o moral. Dessa forma, a classifi cação dos direitos à integridade física incluiria o direito sobre o corpo (vivo ou morto, próprio ou alheio), e sobre as partes separadas do corpo (vivo ou morto); os direitos à integridade intelectual abrangeriam o direito à liberdade de pensamento, o direito pes-soal do autor artístico e científi co, bem como o direito do inventor; por fi m, os direitos à integridade moral seriam o direito à liberdade política, civil e religiosa, o direito à honra, ao recato, ao segredo, à imagem e à identidade.32

Como pode-se perceber, a questão da classifi cação dependerá das escolhas de cada autor sobre os critérios para efetuar a classifi cação, bem como sobre os direitos da personalidade em espécie que constaram como seus elementos.

A controvérsia sobre a fonte dos direitos da personalidade

O conceito jurídico de pessoa e os direitos que lhe são atinentes corres-pondem a tema largamente explorado pela fi losofi a do Direito. Para que se compreenda corretamente a controvérsia sobre a fonte dos direitos da perso-nalidade, cumprirá tecer breves comentários sobre a localização da questão

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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33 Contrário a tal entendimento afi rma

Kelsen que: “a pessoa física (natural)

como sujeito de deveres e direitos não

é o ser humano cuja conduta é o conte-

údo desses deveres ou desses direitos,

mas que a pessoa física (natural) é

apenas a personifi cação desses deveres

e direitos. (...) a pessoa física é a perso-

nifi cação de um conjunto de normas

jurídicas que, por constituir deveres

e direitos contendo a conduta de um

mesmo ser humano, regula a conduta

deste ser” (in Teoria Geral do Direito e

do Estado. São Paulo, Martins Fontes,

1995; p. 98).

34 Afi rma Caio Mário: “O princípio cons-

titucional da igualdade perante a lei é a

defi nição do conceito geral da persona-

lidade como atributo natural da pessoa

humana (...)” (in Instituições de Direito

Civil, vol.1. Rio de Janeiro, Forense,

1997; p. 153).

35 Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da

Personalidade. Rio, Forense, 2000; p.09.

No mesmo sentido, vide Fábio Maria

de Mattia. “Direitos da Personalidade:

aspectos gerais”, in Revista Forense nº

262 (abr-jun/1978); p. 83.

36 Pietro Perlingieri. La personalità uma-

na nell´ordinamento giuridico. Nápoles,

Jovene, 1972; p. 131.

37 Gustavo Tepedino. Temas, cit.; p. 40.

da tutela da pessoa frente à discussão jusfi losófi ca que contrapõe o direito natural ao direito positivo.

A partir dessas considerações será possível perceber as virtudes e as vicissi-tudes das teorias que procuram determinar a origem dos direitos da persona-lidade, seja na natureza humana, seja na instituição da ordem jurídica.

A grande maioria dos autores brasileiros ao abordar a questão da fonte dos direitos da personalidade compartilham da tese de que tais direitos são pré-existentes ao ordenamento jurídico, podendo a sua fonte primeira ser encontrada na própria condição humana do indivíduo.

Os direitos da personalidade, assim, deveriam ser protegidos independen-temente de qualquer positivação normativa. A tutela da pessoa prescindiria e antecederia a atividade legislativa.33 Afi rma neste ponto a visão jusnatura-lista que os referidos direitos seriam atinentes à própria natureza humana, ocupando posição supra-estatal,34 sendo que a positivação viria apenas para garanti-los, dotando-os de coercitividade.35

Todavia, as teorias jusnaturalistas não se justifi cam mais na atualidade, frente à larga positivação dos direitos da personalidade ocorrida a partir do século XIX e da constatação de que o conceito de natureza humana e direi-tos inerentes à pessoa variam de acordo com aspectos de natureza histórica e étnica.

A concepção dos direitos da personalidade como inatos tem a sua for-mação derivada da necessidade de se proteger o cidadão contra os ar-bítrios do poder público, sendo, nesse ponto, de grande relevância as teorias jusnaturalistas.

Assim, conforme sustenta De Cupis, a suscetibilidade de ser titular de direitos da personalidade não pode estar menos vinculada ao ordenamento jurídico do que estão os demais direitos e obrigações. Em adição, Pietro Per-lingieri afi rma que o direito natural (o que deve ser) é sempre condicionado pela experiência do direito positivo (o que é).36

Compreende-se, assim, que o direito positivo é o único fundamento juri-dicamente legítimo dos chamados direitos da personalidade, sendo a própria norma uma variável histórica. Segundo Gustavo Tepedino:

“A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto históri-co, não existe possibilidade de se estabelecer um bem jurídico superior, já que a sua própria concepção depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes aos valores sociais historicamente consagrados.”37

As Constituições de grande parte dos países que hoje compreendem a urgência de se proteger a pessoa tutelam os direitos da pessoa humana e criam mecanismos para que os mesmos sejam observados. No Estado de Direito, as aspirações jusnaturalistas são inscritas nas Constituições

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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38 Assim como na questão do objeto

dos direitos da personalidade, ambas

as correntes demonstram ainda estar

muito vinculadas à estrutura dos direi-

tos subjetivos de caráter patrimonial.

39 Elimar Szaniawski. Direitos da Perso-

nalidade, cit.; p. 57.

justamente para evitar abusos por quem possa a violar as garantias es-tabelecidas.

Além do argumento contrário à tese jusnaturalista presente no simples fato de que a positivação dos direitos da personalidade atua de forma a as-segurar a sua real efi cácia, operando, no Estado de Direito, como a maior garantia que um indivíduo pode encontrar de que a sua personalidade não será violada sem a devida reação jurídica, cumpre acrescentar a difi culdade em se defi nir o que seja a natureza humana, ou os direitos inatos do homem.

Assim, não parece prudente que se tome qualquer posição sobre os direi-tos inerentes à pessoa sem que se analisem as condições históricas, étnicas e culturais nas quais se insere o estudioso do Direito.

Teorias monista e pluralista dos direitos da personalidade

Ainda no século XIX, quando eram dados os primeiros passos no estudo dos direitos da personalidade, surgiu a controvérsia acerca de como defi nir esses direitos. Formaram-se então duas correntes antagônicas, cujo debate ainda hoje possui refl exos nas obras sobre o tema: de um lado os que acredi-tam tratar-se a personalidade de um todo indivisível e que, portanto, defen-dem a existência de um único direito geral da personalidade (teoria monista), enquanto de outro, posicionam-se aqueles que acreditam ter a personalidade humana variadas projeções, e que é preciso proteger cada uma delas separa-damente (teoria atomista ou pluralista).38

A teoria pluralista defende que diversos são os direitos da personalidade, cuja proteção requer uma diversidade de situações juridicamente relevantes. Dá-se, assim, a individuação dos bens de acordo com a individuação das necessidades.

A teoria monista considera a pessoa humana como um valor unitário, sendo que seus interesses de caráter existencial encontram-se intimamente relacionados. Não existiriam, assim, direitos da personalidade, mas apenas um direito geral da personalidade, o qual não se identifi ca com a soma de suas expressões individuais.

Defendendo a teoria monista, Elimar Szaniawski argumenta que a pessoa humana é una, apesar de inexistente no direito brasileiro uma cláusula ge-ral, no seu entendimento, que propicie a tutela desse direito subjetivo não-patrimonial único.39

A tese pluralista, contudo, pareceu congregar um maior número de adep-tos, principalmente porque permite uma tutela concreta desses direitos, aos enunciá-los separadamente. Assim é que aos poucos foram surgindo artigos nos códigos pertinentes em diversos países, fazendo-se referência expressa aos direitos da personalidade em espécie, bem como diversas legislações esparsas

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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40 Pietro Perlingieri. Perfi s do Direito

Civil, cit.; pp. 155/156.

visando a suprimir a lacuna daqueles códigos, que não contemplavam qual-quer tratamento aos direitos da personalidade.

É crescente a importância dada à necessidade de se tutelar o maior nú-mero de projeções da pessoa humana, em seus aspectos físicos, psíquicos e intelectuais. Entretanto, tais projeções não devem ser vistas como taxativas; ao contrário, é imprescindível que o direito proteja também os direitos da personalidade não especifi camente positivados, em atenção ao §2º, do art. 5º, da Constituição Federal.

A personalidade, conforme expõe Pietro Perlingieri, deve ser entendida como um valor que está na “base de uma série aberta de situações existen-ciais”, ou seja “não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutela-do é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados em seu interesse e naqueles de outras pessoas.”40

Essa questão ganhou relevo com a entrada em vigor do novo Código Ci-vil, que dedica capítulo específi co para os direitos da personalidade. Em que pese a positivação por vezes equivocada desses direitos, deve-se ter em mente que o rol de direitos constantes do Código Civil não deverá ser interpretado como sendo um catálogo hermético de possibilidades de proteção da perso-nalidade humana no direito brasileiro.

Direitos da personalidade e direitos fundamentais

A tutela dos direitos do homem, surgida nas declarações de direitos da Idade Moderna, refl etiu uma tendência protetiva do cidadão frente ao Es-tado, através da outorga de direitos individuais. Tratava-se de uma tutela de caráter nitidamente público, restando às relações privadas as disposições do ordenamento jurídico de caráter meramente repressivo.

Característica inconteste do liberalismo capitalista, as relações jurídicas privadas sempre estiveram adstritas ao trânsito jurídico de bens e capital, devendo o Direito Privado apenas tutelar as relações de cunho patrimonial através da disciplina das obrigações e contratos, além do instituto da proprie-dade. Assim, a lesão à integridade das pessoas seria matéria concernente ao Direito Público, que tutelaria tais situações através do Direito Penal.

A partir do momento em que se reconhece a existência de direitos subje-tivos da personalidade, a dogmática civilística busca apoio nos direitos sub-jetivos patrimoniais, estrutura modelar dos direitos subjetivos, para defi nir os contornos e a aplicação da tutela da pessoa humana nas relações travadas entre particulares.

Considera-se, portanto, que para reger as relações entre particulares, os di-reitos da personalidade operariam de forma a garantir a tutela dos caracteres essenciais da pessoa humana, enquanto, por seu turno, os direitos civis, ou seja,

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 37

41 José de Oliveira Ascensão. “Os Direi-

tos da Personalidade no Código Civil

Brasileiro”, in Revista Forense, vol. 342;

p. 125.

42 Orlando Gomes. “Direitos da Persona-

lidade”, in Revista Forense nº 216 (out-

dez/1966); p. 06.

43 Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de

Pensamento, cit.; p. 80.

44 Rabindranath Capelo de Souza. O

Direito Geral de Personalidade. Coimbra,

Coimbra Editora, 1995; p. 584.

aqueles prescritos nas declarações de direito, e pertencentes ao Direito Público, operariam de forma a tutelar a pessoa frente aos desmandos do Estado.41

Em artigo sobre os direitos da personalidade, Orlando Gomes explicita a diferença existente entre esses e os direitos “do homem e do cidadão”, da seguinte forma:

“Não há confundi-los [os direitos da personalidade] com os direitos do homem e do cidadão, que são realmente direitos subjetivos públicos, cuja proteção se organiza constitucionalmente para preservar o indivíduo do arbítrio do Estado. Os direitos de personalidade se reconhecem e se protegem para resguardá-lo de atentados por parte de outros indivíduos, como salientam os Mazeaud e também, para impedir que os auto-sacrifi quem.”42

A distinção entre direitos fundamentais previstos na Constituição, e os direitos da personalidade, adstritos à esfera privada é também referida por Gilberto Haddad Jabur, ao mencionar que:

“[O]s bens personalíssimos neles [direitos fundamentais] são encontrados, mas não são os únicos que estão ali compreendidos. Muitos são fundamentais frente ao Es-tado, por conveniência política ou legislativa. Mas nem todos os direitos individuais ou fundamentais são, pelas mesmas razões, da personalidade. Porque se é o sujeito, e não o conteúdo ou substância que são similares, a pedra de toque da distinção, compreensível é que algumas prerrogativas asseguradas como fundamentais (frente ao Estado) não careçam de igual tutela diante do particular. A irredutibilidade dos salários, por exemplo, é direito fundamental, mas não personalíssimo.”43

Dessa forma, poderá haver, até mesmo, concomitância no conteúdo dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, sendo variável apenas a perspectiva de quem analisa determinada relação, se pelo viés do Direito Público, ou do Direito Privado. Capelo de Souza, nesse particular, ressalta que os direitos fundamentais possuem sempre um viés mais juspublicístico, enfocando relações de poder que são oponíveis ao Estado.44

Por fi m, essa distinção entre direitos fundamentais e direitos da persona-lidade esvai-se, restando apenas como fi gura metodológica quando se depara com a diluição das fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado, e o estudo da proteção unifi cada da pessoa humana.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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2. ATIVIDADE EM SALA:

Análise do Capítulo de direitos da personalidade do Código Civil (arts. 12/21)Com base nas características doas direitos da personalidade, leia o capítulo

dedicado aos mesmos no CC2002. No seu entendimento, os direitos ali positi-vados correspondem à totalidade dos direitos da personalidade? Caso contrário, qual direito da personalidade você inseriria nesse capítulo? Qual é a sua opinião sobre a redação desses artigos? Existe algum artigo que lhe chame a atenção em especial? Por que?

O objetivo mais evidente dessa dinâmica é desenvolver o raciocínio crítico do aluno com relação aos direitos da personalidade e sua positi-vação no Código Civil.

Adicionalmente, através da leitura e do debate em sala sobre os pontos que serão destacados pelos próprios alunos, deverá o professor mencionar que o segundo objetivo dessa atividade é fazer com que os alunos percebam como esses artigos dizem respeito à vida de cada um presente na sala de aula. É importante demonstrar ao aluno que vida, corpo, imagem, privacidade, honra e outros direitos são comuns a todos e, por isso mesmo, os assuntos que serão discutidos nas aulas seguintes importam a todos.

É interessante mencionar que, nas aulas seguintes, os alunos estuda-rão questões que estão muito próximas do seu dia-a-dia, desde a liber-dade de escolher submeter-se a um exame médico até a coleta de seus dados pessoais durante a navegação na Internet.

3. QUESTÕES DE CONCURSO:

32º Exame de Ordem — 1ª fase — 200717. Os direitos da personalidade são

A. disponíveis e prescritíveis.B. disponíveis e transmissíveis por morte de seu titular.C. prescritíveis, mas transmissíveis por ato inter vivos.D. intransmissíveis e irrenunciáveis

Resposta: D

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AULA 5 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À INTEGRI-DADE FÍSICA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Integridade física — Recusa ao tratamento — Recusa à perícia médica — Disposição de partes do corpo.

CASOS GERADORES

Caso “GoldenPalace.com” e “Transfusão de sangue para testemunha de Jeová”

LEITURA OBRIGATÓRIA

RODOTÀ, Stefano. “Transformações do Corpo”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 19 (2004), pp. 91-107.

LEITURAS COMPLEMENTARES

MORAES, Maria Celina Bodin de. “Recusa à realização do exame de DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade”, in Revista Forense, nº 343, pp. 157/168; CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986; pp. 170/212; e FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima e TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. “Responsabilidade médi-ca e objeção de consciência religiosa”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 21 (2005), pp. 121-139.

1. ROTEIRO DE AULA

O viés mais comum de abordagem do direito à integridade física é sem dúvida alguma próprio dos ramos do direito penal e constitucional. No en-tanto, é com o CC2002 que temas ligados à bioética e à integridade corporal da pessoa ganham nova projeção, constatando-se isso, entre outros exemplos, pela proteção conferida ao nascituro (art. 2º CC) e pelo regramento da pos-sibilidade de disposição do próprio corpo (art. 13 CC).

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45 Correlatos a esse podem ser igual-

mente citados, ainda dentro do rol de

direitos do art. 5º da CF, os incisos XX-

XIX, LIV, LII e LVII.

46 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2005; p. 251.

Outro exemplo desse especial interesse de resguardar a integridade dos indivíduos, o qual se espraia por todo o ordenamento, é o caso do art. 5º III, que protege o indivíduo contra toda forma de tortura.45

O conceito de proteção à integridade física engloba não só o direito de ga-rantir a idoneidade e imaculabilidade corporal, mas também a possibilidade do indivíduo dispor de partes de seu próprio corpo, o que pode se dar tanto em vida como post mortem. Contudo, como se depreende da redação do art. 13 do CC, essa possibilidade de disposição está sujeita a certos condicionamentos:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo Único. O ato previsto neste artigo será admitido para fi ns de transplan-te, na forma estabelecida em lei especial.

No contexto do direito ao corpo, surgem várias problematizacões sobre as quais o direito vem se debruçando. Uma delas é a doação de sangue. Pre-liminarmente, é importante frisar que os regramentos aos quais essa matéria encontra-se sujeita pressupõem certas valorações de ordem moral. Isso é veri-fi cável, p.ex, na impossibilidade de cessão onerosa de sangue (bem como de seus subprodutos) e das demais partes do corpo. São condutas que o legis-lador taxa como moralmente reprováveis e por conta disso, determina a sua proibição.

Não só a reprovabilidade do intento de buscar remuneração com a ne-gociação de partes do corpo inspira o legislador. De grande importância é também o entendimento no sentido de que não se pode causar prejuízo ao indivíduo cedente. Conforme expõe Caio Mário: “embora este se reconsti-tua na medida das necessidades orgânicas, a transfusão está subordinada às condições do doador e de seu estado de higidez, como ainda a indagação de ordem técnico-científi cas.”46

A preocupação do ordenamento com o “comércio de sangue” se constata claramente, em sede constitucional, no art 199, IV, da Constituição Federal. É o próprio constituinte quem reputa a negociação de partes do corpo como atividade moralmente reprovável, taxando-a de conduta ilegal.

Integridade física versus Respeito a crenças religiosas

Um tema muito controvertido e que suscita interpretações das mais varia-das é a da possibilidade de recusa de um determinado indivíduo em receber sangue alheio, fato esse que pode se processar tanto por motivo de convicção fi losófi ca como religiosa.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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47 STJ, RHC nº 7785/SP, Min. Fernando

Gonçalves, j. em 30.11.1998.

48 TJRJ, Agravo de Instrumento nº

2004.002.13229, Des. Carlos Eduardo

Passos, j. em 05.10.2004.

Conforme demonstram os casos julgados sobre o assunto, compete muitas vezes ao médico manifestar seu entendimento no sentido da dispensabilidade ou não da transfusão sanguínea. No entanto, esse juízo de necessidade em relação ao tratamento deve se pautar unicamente pelos critérios atinentes à ciência médica, despindo-se o profi ssional de convicções de outra natureza. O Superior Tribunal de Justiça já julgou precedente onde se levantou essa possibilidade de confusão entre as percepções pessoais do médico e o ordiná-rio exercício de seu ofício:

“Declinam-se as razões falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal, pois o paciente, médico e seguidor da religião ‘Testemunhas de Jeová’, não foi o causa-dor da morte da vítima, eis que a transfusão de sangue não era a única meida capaz de evitá-la. A menor poderia ter sido transferida para a UTI pelos médicos respon-sáveis, realizando-se a transfusão, independente da vontade dos pais e do paciente” 47

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na ponderação entre razão de ordem religiosa e razão de saúde pública (preservação da vida), se manifestou sobre o tema por meio do seguinte acórdão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta so-bre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido.48

No caso decidido pelo TJRJ, na decisão de primeiro grau sobre a qual ele versava “deferiu-se tutela antecipada, a requerimento do Ministério Público, a fi m de que a agravante fosse submetida à transfusão de sangue, eis que cor-ria risco de vida e seus familiares recusavam tal terapia, sob o argumento de convicção religiosa e ser referido tratamento também arriscado.” No acórdão acima transcrito, objetivava-se que novas transfusões, necessárias à perpetua-ção da vida da paciente, não fossem obstadas.

Essa decisão ilustra com muita propriedade as divergências suscitadas em torno do tema em destaque. Essa divergência fi ca clara na discrepância de convicções manifestadas nos votos dos julgadores.

O relator do acórdão, em seu voto, assevera que: “Por fi m, não obstante o respeito à convicção religiosa de cada um, entre dois bens jurídicos tutelados, prevalece a vida sobre a liberdade, até porque não foi a agravante que mani-festou a recusa ao tratamento, mas seus familiares”

O voto vencido, da lavra do Des. Marco Antonio Ibrahim, ao discordar do entendimento vencedor, assim expõe a sua linha de argumentação:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 42

49 O vogal acrescenta ainda ao fi nal de

seu voto: “O Direito à vida não se re-

sume ao viver (...) O direito à vida diz

respeito ao modo de viver, à dignidade

do viver. Só mesmo a prepotência dos

médicos e a insensibilidade dos juristas

pode desprezar a vontade de um ser

humano dirigida a seu próprio corpo.”

50 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2005; p. 254.

“Constitucional. Civil. Transfusão de sangue não autorizada. Direito à priva-cidade e intimidade. Manifestação expressa de recusa à terapia transfusional. Seja, ou não, por motivo religioso a vontade do paciente deve ser respeitada porque não há confl ito real entre o direito à autodeterminação a tratamento médico e o direito à vida. Todos os especialistas brasileiros e estrangeiros concordam com a afi rmativa de que a transfusão sanguínea não é procedimento isento de risco de contaminação mortal do paciente, seja por vírus, seja por infecção bacteriana. Viola a dignidade da pessoa humana obrigar o paciente a receber transfusão sanguínea contra sua vontade, especialmente se existe tratamento alternativo e não há prova cabal de risco à vida do mesmo. Exegese do art. 15 do novo Código Civil que determina que ninguém pode ser constrangido a submeter-se com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica.” 49

As passagens acima transcritas demonstram como o tema é controvertido, demandando um estudo aprofundado para o seu enquadramento pela dou-trina e pelos julgados que posteriormente venham a enfrentá-lo.

Recusa ao tratamento médico

Seguindo a mesma lógica descrita nas hipóteses de não aceitabilidade de transfusão de sangue, o resguardo à integridade física abrange também o di-reito de recusar tratamento médico ou intervenção cirúrgica. No entanto, essa recusa não pode ser caprichosa, imotivada, mas em regra, deve assentar-se em motivo de relevância manifesta.

Para Caio Mário, a justifi cativa para intervenções sobre a integridade física de alguém “reside na existência de risco de vida. Não cabe opor-se a certa terapêutica por capricho, ou propósito de auto-extermínio, ou motivos ide-ológicos. É, contudo, muito relativo o conceito de risco de vida, o que pode levar a que se desrespeite a vontade do paciente, quando a negativa não tem base científi ca. Reversamente, ainda que o médico entenda inócuo o trata-mento, é de se acatar a recusa do paciente, fundada em razões plausíveis. No caso de não ter o doente condições de deliberar validamente, transfere-se para os seus familiares o poder de decisão”50

O CC2002 trata do assunto em seu artigo 15, ao dispor que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica.” Esse artigo, todavia, não aborda a questão da recu-sa à realização de perícia médica para fi ns de prova em juízo.

Dessa forma, por meio do art. 232 do CC, o legislador civilista se mani-festa no sentido de tornar a recusa à perícia um elemento processualmente desfavorável, pois “a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.”

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 43

51 TJRJ, Apelação Cível nº

2005.001.06797, Des. Otávio Rodri-

gues; j. em 18/05/2005. Em seu voto,

explicita ainda o relator: “No mais,

o Autor não demonstrou o alegado

dano respiratório sofrido, deixou de

comparecer à perícia médica, apesar

de intimado, como se vê de fl s. 273 e

seguintes e também desistiu expres-

samente da prova (fl s. 291/292). Com

isso, o prejuízo à saúde restou sem de-

monstração. À mingua de provas, outra

não poderia deixar de ser a decisão do

Juízo Monocrático.”

O direito à integridade física, aqui expresso na inadmissibilidade de coa-ção à perícia médica, constitui um dos aspectos dos direitos da personalidade. Essa recusa não pode signifi car, no entanto, a possibilidade de que se obstrua o andamento da justiça e, adicionalmente, pode gerar diversas situações con-fl ituosas com demais direitos da personalidade.

Em caso julgado pelo TJRJ, pode-se perceber como a recusa à perícia mé-dica traz efeitos nocivos ao recusante no curso de uma ação judicial:

Ação de procedimento comum ordinário. Pó branco da Petrobrás que atingiu localidade da Baixada. Alegação de danos à saúde. Sentença julgando improcedente o pedido. Recurso de Apelação Cível. MANUTENÇÃO, pois o Autor não demons-trou o aludido dano respiratório sofrido, não compareceu à perícia médica, desistiu expressamente da prova, restando não demonstrado, portanto, o prejuízo e o nexo de causalidade. À míngua de provas, outra não poderia deixar de ser a decisão do Juízo Monocrático. DESPROVIMENTO RECURSO.51

A doutrina afi rma que, no entanto, esse o mencionado art. 232 é de natu-reza supérfl ua na dinâmica processual. Ele confere ao julgador somente a pos-sibilidade de valer-se de um expediente de ordem fi ccional (uma presunção) de forma a não implicar prejuízo àquele interessado na realização do procedi-mento pericial. Para os que assim entendem, esse dispositivo se tornou inútil no sentido de que a legislação processualista já encampou há muito a idéia de que o juiz é livre e soberano na análise das provas produzidas, conforme inserto no art. 131 do CPC, (princípio processual do livre convencimento motivado do juiz).

O exemplo mais citado de recusa à perícia médica é a não submissão ao exame de DNA, que visa à comprovação de paternidade. Nesse sentido, a jurisprudência caminha no sentido de se tornar pacífi ca, conforme expõe o seguinte julgado do TJRJ:

”INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMEN-TOS. AGRAVO RETIDO.IMPROVIMENTO.MÉRITO. NEGATIVA DO RÉU EM SUBMETER-SE AO EXAME DE D.N.A. PRESUNÇÃO DE VERACIDA-DE DOS FATOS ALEGADOS NA EXORDIAL.PENSIONAMENTO IMPOS-TO DESDE A CITAÇÃO. 1. Quanto ao agravo retido. O juiz pode “ouvir teste-munhas, mesmo arroladas fora do prazo, quando se litigar sobre direito indisponível, como ocorre, p. ex., na investigação de paternidade” (RT 613/162). Conhecimento e improvimento. 2. Quanto ao mérito. O STJ tem se posicionado no sentido de que a parte que se recusa imotivadamente a se submeter a perícia médica, deve ter contra si o peso da presunção daquilo que o exame pericial poderia provar. No caso presente, deve ser reconhecida, ainda, a difi culdade do Autor-Apelante, em comprovar o relaciona-mento de sua genitora com o Apelado, pois se tratava de uma relação extraconjugal.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 44

52 TJRJ, Apelação Cível nº

1997.001.02081, Des. Ricardo Rodri-

guez Cardozo; j. em 14/09/2004. Vale

destacar ainda a seguinte passagem

do voto do julgador: “Este processo

tramita há uma década e, lastimavel-

mente, o apelado tudo fez para evitar o

exame de DNA, utilizando-se da Justiça

para procrastinar o feito, com falta de

seriedade e respeito. Pena que a juris-

prudência não consagre a condução

‘debaixo de vara’ para a hipótese.”

O Apelado, além de cientifi cado pessoalmente uma vez para a data do exame, foi, após a baixa dos autos, 22 vezes procurado pelos ofi ciais da justiça, não sendo encon-trado, alegando-se que se encontrava viajando, muito embora pessoas da sua esfera de conhecimento estivessem ciente. Atitudes deste tipo merecem o total repúdio do Poder Judiciário e deveriam merecer, também, dos respectivos advogados, que se calam ante as condutas impertinentes e desrespeitosas dos seus clientes, como se de nada soubessem, certamente, achando que os Juízes e Desembargadores vivem num mundo encantado, de inocência e ingenuidade e que acreditariam, piamente, na ausência de má-fé no proceder do Apelado. 3 —Reconhecida a paternidade, o dever de alimentar se impõe e desde a estabilização da relação processual, ou seja, desde a citação válida, em vir-tude da natureza declaratória do decisum que reconhece a paternidade. 4— Recurso conhecido e provido, nos termos do voto do Desembargador Relator.”52

Não objetivando gerar prejuízo à parte que carece da perícia para provar o seu direito, o legislador autoriza o julgador, na solução do litígio, a valer-se da presunção de que os fatos alegados por aquela são verdadeiros.

Disposição de partes do corpo

Com relação à disposição de partes do corpo, faz-se necessária novamente remeter a leitura ao art. 13 do CC2002 e do art. 9º da Lei nº 9.434 /97, a qual dispõe sobre a retirada de órgão e partes do corpo humano, da seguinte forma:

Art. 9o. É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de teci-dos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fi ns terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.

§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de teste-munhas, especifi camente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.

§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.

§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 45

53 Nesse sentido resta clara também a

impossibilidade de agir em desconfor-

midade com os artigos 1º, III, e 199, §

4º, da Constituição Federal.

54 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria

n° 1.707, de 18 de agosto de 2008

[Online]. Institui, no âmbito do Siste-

ma Único de Saúde (SUS), o Processo

Transexualizador, a ser implantado

nas unidades federadas, respeitadas as

competências das três esferas de ges-

tão [Acessado em 1 de agosto de 2009].

Disponível em: URL: http://bvsms.sau-

de.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/

prt1707_18_08_2008.html.

§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.

§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.

Assim sendo, uma pessoa somente pode dispor de partes do seu corpo quando tal ato não implicar em prejuízo para sua saúde. Adicionalmente, determina de plano o legislador que o transplante não pode ser objeto de negócio oneroso.

O Código Civil atual, em seu artigo 14, também inova em relação à lei pretérita, ao defi nir a possibilidade de disposição do próprio corpo. Dispo-sição essa que, quando em vida, não pode representar prejuízo à saúde do doador e quando post mortem, deve atentar à consecução de fi ns científi cos e altruísticos.53 Nesse segundo caso, a gratuidade também é elemento essencial. Essa disposição a respeito o destino do corpo ou de parte dele pode revestir a forma testamentária ou de ato entre vivos.

Transexualidade

A principal problemática hoje suscitada pela transexualidade repousa na questão da alteração do registro civil do indivíduo quanto ao seu nome e ao seu sexo. Principal porque, ainda que tenha se submetido à cirurgia de transgenitalismo, procedimento recentemente incluído no rol daqueles ofe-recidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)54, a pessoa transexual não tem assegurada a troca de seus documentos. A omissão do legislador em tratar a matéria empurra a questão para os braços do Judiciário, fazendo emergir uma situação de incerteza provocada pela reminiscência de posições ainda ape-gadas a princípios jurídicos tradicionais, tais como imutabilidade do nome, indisponibilidade do estado e segurança jurídica.

Segundo a Resolução 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina (CFM), transexual é o portador de desvio psicológico permanente de iden-tidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou ao auto-extermínio. Essa normativa assume a prevalência do sexo psíquico sobre o sexo morfológico, afi rmando o propósito terapêutico da cirurgia de rede-signação sexual. A adoção do princípio terapêutico pretende encerrar velha discussão sobre a natureza mutiladora da cirurgia, caso em que perderia seu caráter lícito para constituir crime de lesão corporal a ser imputado ao médi-co por ela responsável.

A despeito da ausência de arcabouço legal que expressamente disponha sobre a realização da intervenção cirúrgica, o seu caráter reparador e, por-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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tanto, terapêutico, assim considerado pelo órgão responsável por fi scalizar e normatizar a prática médica no país, torna a prática lícita, conforme exceção prevista no caput do artigo 13 do CC (“Salvo por exigência médica...”). Além disso, a cirurgia encontra sustentação na própria Constituição, que dispõe em seu artigo 199, §4º, sobre a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fi ns de transplante, pesquisa e tratamento.

É importante compreender que o fenômeno da transexualidade não se restringe ao desejo de realização da cirurgia de modifi cação da genitália, po-pularmente conhecida como “mudança de sexo”, havendo, inclusive, pessoas que não o manifestam ou mesmo não o têm. Na verdade, o transexual, na manifestação de sua identidade sexual, passa por uma série de modifi cações, não apenas corporais, como tratamento hormonal e intervenções cirúrgicas, mas também sociais. Nesse sentido, busca o transexual ver reconhecida a sua condição de pessoa pertencente ao gênero com o qual se identifi ca. Tal pre-tensão, apoiada em princípios constitucionais e bioéticos, apenas se efetivaria com a adequação do assento de nascimento à nova realidade dessas pessoas, o que permitiria, inclusive, a sua plena integração à sociedade.

2. CASO GERADOR

2.1. “Caso GoldenPalace.com”

Leia a notícia abaixo:01/07/2005 — 14h08Por US$ 10 mil, americana tatua na testa anúncio de cassino virtualFonte: Folha Online

Reprodução

Karolyne Smith ofereceu sua testa no site de leilões eBay.

O cassino virtual GoldenPalace.com fi cou famoso por comprar alguns itens bizarros vendidos no site de leilões eBay — uma torrada com a ima-gem da Virgem Maria (US$ 28 mil), por exemplo. Desta vez, o site “com-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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prou” a testa de uma norte-americana. Por US$ 10 mil, a internauta ta-tuou as palavras “Golden Palace.com” no inusitado espaço publicitário.

“Ganhamos o privilégio de ter um anúncio permanente tatuado nas testa de Karolyne Smith. Com isso, ela se torna a primeira mulher a ter a marca do cassino para sempre”, diz um anúncio da companhia.

Smith afi rma que adora ser o centro das atenções e não se arrepende do que fez. “Para muitos, pode parecer estúpido. Para mim, no entanto, esses US$ 10 mil representam US$ 1 milhão. Faço isso pelo meu fi lho, para poder construir um futuro melhor para ele”, disse.

Segundo a nova garota propaganda, esse dinheiro será usado para que seu fi lho possa estudar em uma escola particular.

(in http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u18624.shtml, em 01.08.2005)

No direito brasileiro, seria legítimo o ato de disposição do próprio corpo no sentido de leiloar um espaço publicitário em sua própria testa? Esse ato de dispo-sição sobre o próprio corpo está amparado pela tutela da autonomia da vontade? Justifi que.

2.2. Caso “Transfusão de sangue para testemunha de Jeová”

Após sofrer um grave acidente, Maria é levada às pressas para o setor de emergência do Hospital Souza Aguiar. Ao dar entrada no hospital, o médio plantonista de imediato diagnostica a necessidade de se realizar uma transfu-são de sangue sob pena da paciente perder a vida.

Ao dar início aos procedimentos para a transfusão, o médico é subitamen-te interrompido por um tio de Maria, que acabava de chegar no hospital. Segundo o tio, Maria é uma pessoa muito religiosa e integra o grupo de Tes-temunhas de Jeová. A transfusão de sangue, para os integrantes dessa crença, seria um ato impuro, motivo pelo qual o tio de Maria implorou ao médico para a transfusão não fosse efetuada.

Após ouvir brevemente as explicações do tio de Maria, o médico plantonis-ta resolveu realizar a transfusão de qualquer modo, uma vez que, segundo ex-pôs o mesmo, o seu ofício era salvar vidas, e não zelar pela religiosidade alheia.

Dois meses depois, e já estando em casa se recuperando do acidente, Ma-ria é instruída por seus amigos a ingressar com uma ação de danos morais contra o médico do hospital. Maria alegaria em seu pleito que a sua religiosi-dade foi afrontada pelo ato do médico e que esse ato violou a sua autonomia privada, sendo lícito a pessoa recusar-se a se submeter a procedimento médi-co, salvo em caso de ordem pública. Como no caso em tela apenas a vida de

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 48

Maria estava em jogo, ela poderia muito bem ter optado por manter os seus preceitos religiosos até o fi m.

Se você fosse o juiz da ação por danos morais ingressada por Maria, você julga-ria procedente o seu pleito? E se o médico optasse por atender aos clamores do tio e Maria viesse a falecer. Você julgaria procedente uma eventual ação indenizatória contra o médico ou o hospital movida pela mãe de Maria?

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 49

55 Francisco Amaral. Direito Civil – Intro-

dução. Rio de Janeiro: Renovar, 2004;

p. 270.

AULA 6 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO AO NOME E À HONRA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Natureza e elementos que compõem o nome — Registro e alteração do nome — Conceito de honra — Honra subjetiva e honra objetiva — Crimes contra a honra e responsabilidade civil — Honra da Pessoa Jurídica — Aná-lise das decisões do STJ.

CASO GERADOR

Honra subjetiva e objetiva — Limites da honra da pessoa jurídica

LEITURA OBRIGATÓRIA

MORAES, Maria Celina Bodin. “Sobre o nome da pessoa humana”, in Re-vista da EMERJ nº 12; pp. 48/74.

LEITURAS COMPLEMENTARES

DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Campinas: Romana, 2004; pp. 121/139; PEREIRA DE SOUZA, Carlos Aff onso e SAM-PAIO, Patrícia Regina Pinheiro. “Atualidades sobre Dano Moral da Pes-soa Jurídica”, in Doutrina ADCOAS nº 06 (jul/2000); pp. 42/49.

1. ROTEIRO DE AULA

Nome civil

O nome civil é o principal elemento que designa um indivíduo e o parti-culariza nas relações sociais, individualizando a pessoa e indicando, de certa forma, a sua procedência familiar. A relevância do nome reside no fato de que as relações jurídicas se estabelecem entre pessoas, naturais e jurídicas, cujo exercício dos respectivos direitos exige o conhecimento prévio dos respectivos titulares.55

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No direito romano, a disciplina do nome civil se justifi cava por se tratar de sinal diferenciador entre os indivíduos e subgrupos sociais por eles integra-dos. Havia o prenomen, que designava a pessoa; o nomen, indicativo da gens; o cognomen que apontava a família e; o agnomen, decorrente de um aconteci-mento pertinente e qualifi cativo do indivíduo.

Modernamente adotamos o nome composto, onde se destaca o prenome como designação do indivíduo, e o sobrenome, ou nome patronímico, carac-terístico de sua família.

No Código Civil, o tratamento da matéria se dá através do reconhecimen-to de um direito da personalidade voltado para a proteção do nome. Confor-me expõe o art. 16: “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.”

Natureza jurídica do nome

No estudo da natureza jurídica do nome, corrente que merece destaque é a da concepção dominial. De tradição francesa, ela postula que o nome nada mais é do que um direito de propriedade. O titular do nome é quem o detém de forma absoluta.

A principal crítica que pode ensejar decorre da observação que de que a propriedade, ao contrário do nome, é em regra alienável, prescritível, pos-sui conteúdo econômico e exclusividade. O nome, a contrario sensu, abarca características completamente díspares. Não é alienável, é imprescritível, é usado por pessoas diferentes, não tendo conteúdo econômico.

Enfocando a crítica acima descrita, surge a corrente que nega esse caráter patrimonial do nome. Seus defensores, dentre os quais se destaca Clóvis Bevilá-qua, afi rmam que não se pode alegar a natureza de bem jurídico para o nome.

A tradição civilista pátria tradicionalmente confere ao nome a natureza de direito, sendo o mesmo designativo do indivíduo e fator de identifi cação. Não se consolidou no direito brasileiro a idéia de patrimonialidade do nome.

O estudo do nome civil possui uma abordagem dúplice: uma dedicada ao viés público e outra ao viés privado. A partir deles, se observa que o nome en-volve, concomitantemente, um direito subjetivo e um interesse de relevante valor social.

O interesse público se revela, sobretudo, na necessidade de registro e na imutabilidade do nome. O direito subjetivo liga-se, por sua vez, a necessidade de que cada indivíduo seja designado por seu próprio nome. Transcende-se ao interesse público de individualização de cada pessoa e enfoca-se a idéia de que o nome representa o traço distintivo na sociedade. Isso ocorre apesar de não dotado de conteúdo econômico direto.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 51

56 TJRJ, Apelação Cível nº

2004.001.31672, rel. Dês. Marco Antô-

nio Ibrahim; j. em 05.04.2005.

57 STJ, REsp nº 555483/SP, Min. Antonio

de Pádua Ribeiro; j. em 14/10/2003.

O interesse social aqui expresso implica necessariamente na confi guração de que as normas que tratam do nome revestem-se de natureza de ordem pú-blica. Não pode o titular do nome, pelo seu livre arbítrio, contra elas atentar. A autonomia de sua vontade não prevalece para esses fi ns.

O art. 17 do CC2002 prevê formas de repressão à divulgação do nome de pessoa que a exponha ao desprezo público. O art. 18, por seu turno, procla-ma o princípio da necessidade de autorização para a utilização do nome em propaganda comercial. Assenta-se na mesma idéia de proteger o indivíduo contra o uso irregular do seu nome.

Esse é o entendimento que prosperou na decisão abaixo do TJRJ:

FUNDAÇÃO EDUCACIONAL. USO NÃO AUTORIZADO DE NOME. INTERNET. DANO MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. SENTENÇA CONFIRMADA

Constitucional. Civil. Dano moral. Uso indevido de nome de profi ssional ligado à área odontológica. O nome integra um dos direitos da personalidade e sua utiliza-ção indevida, para fi ns comerciais, causa dano moral que se comprova in re ipsa. A instituição de ensino não podia, sem autorização do autor, divulgar seu nome como um dos professores da Faculdade de Odontologia, quando o autor jamais teve qual-quer vínculo com referida instituição. Recurso desprovido.56

Destaque-se ainda que a interpretação do referido diploma não pode ser estrita, limitando-se à publicidade comercial, mas também deve abarcar a de natureza industrial, artística, eleitoral, entre outras.

A tutela do direito ao nome não engloba só aquele registrado, ou seja, o nome do indivíduo, ela abrange também o pseudônimo, muito comum no meio artístico, conforme prescreve o artigo 19 do CC2002. Nessa direção, vide o seguinte acórdão do STJ:

Direito civil. Uso de pseudônimo. “Tiririca”. Exclusividade. Inadmissibilidade.

I. — O pseudônimo goza da proteção dispensada ao nome, mas, por não estar confi gurado como obra, inexistem direitos materiais e morais sobre ele.

II. — O uso contínuo de um nome não dá ao portador o direito ao seu uso exclusivo. Incabível a pretensão do autor de impedir que o réu use o pseudônimo “Tiririca”, até porque já registrado, em seu nome, no INPI.

IV. — Recurso especial não conhecido.57

No âmbito do direito de família se destacam ainda os artigos 1565 e 1578, que tratam respectivamente do nome no tocante ao casamento e dissolução da sociedade conjugal.

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58 Nesse sentido também os art. 226

§5º da C.F e 21 e 47 §5º do ECA.

Escolha e alteração do prenome

A escolha do prenome compete aos pais. O art. 52 da Lei de Registros Públicos não se coaduna com o determinado pelo novo Código Civil e pela Constituição Federal, qual seja, a equiparação entre homem e mulher na direção da sociedade conjugal. O referido art. 52 determina que somente no caso de impossibilidade do registro ser procedido pelo pai, tomará parte a mãe. O CC2002, no entanto, em seu art. 1630 e ss., atribui a ambos os pais a autoridade parental.58

A lei brasileira veda a possibilidade de atribuição de prenomes que possam vir a expor seus portadores ao ridículo. Possibilita ainda que, na ocorrência de constrangimento, eles sejam alterados. Nesse sentido, manifesta-se o legis-lador por meio do art. 55 e 56 da Lei de Registros Públicos.

Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o ofi cial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conheci-dos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato.

Parágrafo único. Os ofi ciais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do ofi cial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.

Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.

Observe-se que quando levado esse pleito ao Poder Judiciário, deverá o julgador realizar um exercício ponderativo, pois apesar de num dos lados encontrar-se junto ao requerente uma grande gama de valores referentes à tutela da sua dignidade, de outro reside o interesse social na preservação do prenome, que como vimos, distingue um indivíduo perante os demais.

Direito à Honra

A Constituição Federal prevê em seu artigo 5º, inciso X, a inviolabilidade da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem das pessoas, sendo garantido a reparação por qualquer dano, seja ele moral ou material.

Ao dissertar sobre a vinculação do direito à honra com a dignidade da pessoa humana, Pontes de Miranda afi rma a sua inserção no rol dos direitos da personalidade, conforme a defi nição acima destacada. Segundo o mencio-nado autor:

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59 Pontes de Miranda. Tratado de Direito

Privado, vol. VII. Rio: Borsoi, 1955; p.44.

60 Mônica Neves Aguiar da Silva Castro.

Honra, Imagem, Vida Privada e Intimi-

dade em Colisão com outros Direitos.

Rio: Renovar, 2002; p.6.

61 No crime de calúnia é permitido, ex-

cetuados os casos do §3 do artigo 138.

No crime de difamação não é aceito, ex-

ceto para os casos em que o ofendido é

funcionário público e a ofensa é relativa

ao exercício de suas funções. No crime

de injúria a exceção da verdade não é

permitida.

”A dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima e consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra. Há direito de personalidade à honra, o que faz as lesões à honra serem atos ilícitos absolutos. O direito à honra é direito absoluto, público, subjetivo.”59

Com a sua constitucionalização, a honra, assim como os outros bens pro-tegidos pelos direitos da personalidade, expande a sua força normativa, asse-gurando maior proteção infraconstitucional. Todavia, no que tange especi-fi camente ao direito à honra, o ordenamento brasileiro já o protegia muito antes da promulgação da Constituição de 1988.

O direito à honra já possuía ampla proteção no direito infraconstitucio-nal, tanto no Código Penal (arts. 138 a 145), através dos crimes de injúria, difamação e calúnia, quanto em outros diplomas como o Código Eleitoral (arts. 324 a 326) e a própria Lei de Imprensa.

Pode-se ainda destacar a proteção internacional que se concede ao direito à honra, segundo o regramento dos seguintes dispositivos: Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 12); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Po-líticos (art.17); e Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (art. 11).

Usualmente o direito à honra é divido em duas espécies: honra subjetiva e honra objetiva. Essa classifi cação doutrinária decorre do aspecto duplo do direito à honra, ou seja, o aspecto subjetivo, que se apresenta na consideração íntima da pessoa e o aspecto objetivo, que se apresenta perante a sociedade.

Mônica Neves Aguiar da Silva Castro estabelece essa diferenciação, se re-ferindo primeiro à honra subjetiva, depois à honra objetiva:

”Do ponto de vista subjetivo, é a estima que toda pessoa possui de suas qualidades e atributos, que se refl etem na consciência do indivíduo e na certeza em seu próprio prestígio.

No aspecto objetivo, a honra é a soma daquelas qualidades que os terceiros atri-buem a uma pessoa e que são necessárias ao cumprimento dos papéis específi cos que ela exerce na sociedade.”60

Dessa forma, o direito à honra engloba não só o sentimento pessoal de auto-estima (honra subjetiva) como também o de reputação, isto é, o concei-to que a pessoa goza perante a sociedade (honra objetiva).

Importante destacar que o direito à honra é intransmissível, incomuni-cável e extrapatrimonial, uma vez que trata da defesa da própria integridade da pessoa. Entretanto, não é possível afi rmar que esse direito é ilimitado. A legislação prevê limites à honra, como a chamada exceptio veritatis, ou seja, a exceção da verdade, segundo a qual o agente pode provar a veracidade do fato que imputou, em certas hipóteses de crimes contra a honra.61

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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62 Pontes de Miranda. Tratado, cit.; p.45.

63 Vide, nesse sentido, Gustavo Tepedi-

no. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:

Renovar, 2001; p. 499.

Muito se discute sobre a questão das pessoas jurídicas possuírem ou não direito à honra legitimando-as, assim, a ingressarem com ações indenizatórias para buscar reparação pelo prejuízo causado.

A honra subjetiva é um direito específi co de cada pessoa física e, portan-to, não deve ser estendido às pessoas jurídicas, pois está relacionada com o sentimento de auto-estima individual. Como a possibilidade de expressar sentimentos (dor, vergonha e angústia) inexiste nas pessoas jurídicas, não há o que se falar em honra subjetiva nesse caso.

Já o direito à honra objetiva, na medida em que espelha o conceito detido pela pessoa na sociedade, pode ser mais facilmente incorporado ao patrimô-nio das pessoas jurídicas. Nesse sentido, afi rma Ponte de Miranda:

”As pessoas jurídicas também podem ser ofendidas em sua honra, porque é co-mum às pessoas físicas e às jurídicas o bem da reputação, da boa fama. Ao adquirir personalidade, o ser não físico adquire tal direito, que não depende de substrato pessoal físico.”62

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre o assunto, terminando por editar a súmula nº 227, que consolida o entendi-mento favoravelmente ao dano moral da pessoa jurídica. Conforme expressa a referida súmula: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”

Todavia, é importante destacar que a questão está longe de ser assentada na doutrina, uma vez que diversos autores contestam a série de decisões do STJ, sob o fundamento de que todo e qualquer dano sofrido pela pessoa ju-rídica será de natureza exclusivamente material.63

2. CASO GERADOR

A sociedade Refrescos Cariocas Distribuidora Ltda. atua há mais de vinte anos no ramo de distribuição de refrigerantes no Estado do Rio de Ja-neiro. Há dez anos, a referida sociedade celebrou um contrato de distribuição exclusiva para os produtos da marca de refrigerantes Milenium, produzidos pela Milenium Alimentos e Bebidas do Brasil Ltda.

Passados os dez anos, e sendo o contrato por prazo indeterminado, a Mi-lenium envia para a Refrescos Cariocas uma notifi cação, informando que, no prazo de dois meses a contar da data constante da notifi cação, a relação contratual entre as empresas seria dada por encerrada. Essa decisão, embo-ra prejudicial economicamente à distribuidora, encontra-se em consonância com a dinâmica dos contratos por prazo indeterminado.

A decisão de encerrar o contrato nasceu da apresentação de um relatório realizado pela auditoria da Milenium, onde constava a Refrescos Cariocas

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como sendo a pior distribuidora da rede de refrigerantes Milenium. Segundo apontava o relatório, os armazéns da empresa estavam em péssimas condi-ções, os refrigerantes eram estocados de forma rudimentar e havia nas insta-lações sérios problemas de higiene.

Ao tomar conhecimento desse fato, o Sr. Klaus Smith, um dos diretores da Milenium, em entrevista concedida ao repórter Juca Gonçalves, da revista “Liderança”, voltada para diretores e gerentes de empresas, assim se pronun-ciou:

“Essa questão da gestão de competências é um assunto complicado. Veja o meu caso: tendo que coordenar distribuidores em todo o Brasil, preciso me valer de mecanismos que agreguem valor tanto aos meus clientes como aos membros integrantes da minha rede. Recentemente, em auditoria realizada pelos meus profi ssionais, descobrimos, por exemplo, que uma de nossas distribuidoras, a Refrescos Cariocas, mantinha os nossos produtos em instalações imundas. Isso é coisa própria de empresa que não sabe trabalhar, de quem é incompetente para sobreviver na selva do mercado. Imediatamente mandei cancelar o contra-to. É assim que tem que ser! Li sobre isso na ‘Arte da Guerra’.”

Na semana seguinte à publicação da entrevista, a Refrescos Cariocas ingressou com ação de indenização por danos morais contra o diretor da Milenium. Em sua petição inicial, alegava o advogado que a honra de sua cliente havia sido abalada pelo pronunciamento desdenhoso do diretor.

Em uma outra ação judicial, proposta contra o diretor da Milenium no mesmo dia, Antônio Carioca, diretor da Refrescos Cariocas, argumentou que, por conta das declarações, ele, pessoa física, teve a sua honra abalada, pois há mais de dez anos ele trabalha para a Milenium e jamais poderia es-perar de seu parceiro comercial de longa data uma postura como essa. Na pe-tição inicial, Antônio juntou aos autos o recibo dos medicamentos que teve que comprar por orientação médica, uma vez que entrou em crise nervosa ao ler a referida entrevista.

Com base no caso acima, responda:

(1) Na ação de danos morais proposta pela REFRESCOS CARIOCAS, a contesta-ção apresentada pela MILENIUM defende a tese de que a ação deveria ser julgada extinta pois pessoas jurídicas não poderiam ser vítimas de lesões à personalidade. Argumenta a empresa ré que pessoas jurídicas teriam apenas capacidade, mas não personalidade jurídica, o que as impediria de ser partes legítimas no pólo ativo de ações indenizatórias por dano moral. Você concorda com esse argumento? Desenvolva a sua resposta de modo a fundamentar o entendimento acima ou a rebatê-lo. Utilize jurisprudência em reforço à linha de argumentação desenvolvida.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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(2) A ação de danos morais proposta por Antônio Carioca deve ser julgada procedente? Justifi que com argumentos jurídicos.

(3) Suponha agora que, ao invés de uma entrevista com o diretor da MILENIUM, a revista “Liderança” tivesse divulgado um ranking das piores distribuidoras de alimentos e bebidas no Estado do Rio de Janeiro. No gráfi co que ilustra a reportagem, a REFRESCOS CARIOCAS fi gura dentre as últimas colocadas. Já no texto da mesma reportagem, o repórter Juca Gonçalves afi rma “(...) dentre as últimas colocadas se destaca a empresa Refrescos Cariocas. Por sinal, não sabemos como essas empresas ainda conseguem clientes.”

Ao tomar conhecimento da reportagem, a REFRESCOS CARIOCAS in-daga a você, na qualidade de advogado especialista em contencioso cível, o que poderia ser feito para buscar indenização pelo prejuízo sofrido: ingres-sar com uma ação indenizatória contra o jornalista Juca Gonçalves, con-tra a Editora Letra Morta, empresa responsável pela publicação da revista “Liderança”, ou contra Alfredo Dourado, diretor-presidente da Editora Letra Morta? Responda com base na legislação aplicável e mencione o en-tendimento atual do STJ sobre a questão jurídica envolvida na consulta.

3. QUESTÕES DE CONCURSO

OAB — 41º Exame de Ordem 2010.135. Considere que o fi lho de Mário Lins de Souza e de Luna Ferreira de

Melo tenha sido registrado com o nome de Paulo de Souza. Nessa situação hipotética,

A. é obrigatória, em razão da abolição do traço patriarcal da legislação civil brasileira, a adoção do sobrenome materno, de modo que o registro de nascimento de Paulo poderá ser alterado a qualquer mo-mento e, até mesmo, de ofício.

B. apenas por meio do casamento será possível a Paulo alterar seu nome, o que será feito com a inclusão de sobrenome da esposa.

C. Paulo poderá, se assim o desejar, incluir em seu nome apelido que seja notório, o que deverá ocorrer por meio de pedido devidamente instruído e dirigido ao ofi cial do cartório de registro civil.

D. Paulo, se assim o desejar, poderá, no prazo de até um ano após atingir a maioridade, introduzir em seu nome um patronímico ma-terno, sem que precise justifi car sua vontade

Resposta: D

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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UnB/CESPE — OAB36º Exame de Ordem 2008.2

QUESTÃO 95Acerca dos crimes contra a honra, assinale a opção correta.

A. O agente que preconceituosamente se refere a alguém como velho surdo, ciente da idade e defi ciência da pessoa, comete uma das mo-dalidades do crime de racismo.

B. O agente que atribui a alguém a autoria de um estupro, ciente da falsidade da imputação, comete o crime de calúnia.

C. O agente que imputa a alguém a conduta de mulherengo, no in-tuito de ofender sua reputação, comete o crime de injúria.

D. O agente que designa alguém como ladrão, no intuito de ofender sua dignidade, comete o crime de difamação.

Resposta: B

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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64 Stefano Rodotà. “Privacy: valore e di-

ritto”, palestra proferida no Liceo Isacco

Newton, em 6 de outubro de 1998. Dis-

ponível no site http://www.emsf.rai.it,

acessado em 30.08.2003.

AULA 7 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À PRIVA-CIDADE

EMENTÁRIO DE TEMAS

Conceito de Privacidade — Privacidade na Constituição Federal e leis ordinárias — Alcance do art. 21 do Código Civil — Questões controvertidas

CASO GERADOR

“O desespero do cartola”

LEITURA OBRIGATÓRIA

RODOTÁ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância. Rio de Janeiro: Re-novar, pp. 23-41.

LEITURAS COMPLEMENTARES

DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção dos Dados Pessoais. Rio de Ja-neiro: Renovar, pp. 7-31; e SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à In-timidade e à Vida Privada. Belo Horizonte, Del Rey, 1998; pp. 209/225.

1. ROTEIRO DE AULA

A privacidade é uma construção cultural moderna.64 Ainda que se possa identifi car no decorrer da história um desejo inato e perene do ser humano por um eventual isolamento, a primeira concepção de privacidade, atrelada ao “direito de estar só”, de afastar o conhecimento público dos assuntos pri-vados, apenas surgiu com as revoluções burguesas e a afi rmação do estilo de vida oitocentista.

Adicionalmente, a privacidade apenas se fez reconhecer como um direito a ser tutelado a partir de estudo doutrinário que remonta a 1890, tendo sido acolhida por parte da jurisprudência apenas nos idos do século XX.

A distinção entre vida privada e vida pública possui um sentido de equi-líbrio e complementaridade, exercendo grande infl uência na história da vida do homem. Essa distinção, todavia, deve ser tomada como um elemento his-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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65 Nelson Saldanha. O Jardim e a Praça.

Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1986, p. 26.

66 Willian Prosser. “Privacy”, in California

Law Review no. 48 (1960); p. 383-423.

tórico, herdeira dos momentos mais representativos da história do homem, desde a sua concepção rudimentar na Antiguidade Clássica até o seu necessá-rio reconhecimento em meio ao ritmo acelerado dos últimos séculos.65

O desenvolvimento da privacidade esteve sempre, durante o século XIX, atrelado a uma crescente valorização da fi gura do indivíduo perante a vida pública e ao Estado. Será justamente o individualismo, detectado como uma das matizes mais fortes na sociedade norte-americana por Tocqueville, que propiciará a criação de uma tutela jurídica para a privacidade naquele país ao fi nal do século. Trata-se do “direito a estar só” (right to let alone).

A defesa do “direito a estar só” nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, a discussão em torno do direito à privacidade tem origem na publicação em 1890 do artigo da autoria de Samuel Warren e Louis D. Brandeis, intitulado “Th e Right to Privacy”, o qual buscou alcançar a conceituação de um direito geral de privacidade, sob o ponto de vista do direito a estar só.

Embora o artigo de Brandeis e Warren tenha recebido ampla aprovação pela comunidade acadêmica, em um primeiro momento os tribunais norte-americanos não reconheceram o direito à privacidade como possível de ser protegido por si só. Nesse sentido, a Corte de Apelação de Nova Iorque de-cidiu, em 1902, no caso Roberson vs. Rochester Folding Box Company que o direito à privacidade não possuía proteção no sistema de Common Law. Entendeu a referida Corte que a teoria era por demais ampla para permitir qualquer aplicação prática, sugerindo que leis fossem editadas com o objetivo de delimitar o conteúdo desse novo direito individual.

Já em 1905, todavia, a Corte de Apelações da Georgia reconheceu pela primeira vez a existência do direito à privacidade independentemente de se ter expedido uma lei que o contemplasse expressamente. Esse fato ocorreu na decisão do caso Pavesich vs. New England Life Insurance Co., seguindo-se, então, diversas decisões judiciais que terminaram por tutelar o direito do indivíduo a estar só, de ter deixada a sua vida íntima em sossego e à parte de suas atividades públicas.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, por sua vez, já teve oportunidade de decidir vários casos de forma a preservar o direito a estar só.

Em 1960, William L. Prosser, em consonância com a teoria traçada no ar-tigo de Brandeis e Warren relativamente à tutela do direito individual de estar só, publicou um artigo no qual elencou diversos casos nos quais o direito à privacidade já havia sido reconhecido judicialmente.66

Deve-se destacar que a proteção inicialmente conferida pelos Estados Uni-dos à privacidade estava, por força da ideologia vigente à época, excessiva-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 60

67 Alexis de Tocqueville. Democarcy

in America. Nova Iorque, Max Lerner,

1966, v.2; p. 477.

68 Peter Gay. O Século de Schnitzler. São

Paulo: Companhia das Letras, 2002; p.

291.

mente atrelada aos preceitos de um individualismo que procurava opor o particular às invasões descabidas por parte do Poder Público.

Nessa direção, em A Democracia na América, obra que retrata de forma lapidar o espírito de um povo, e de uma determinada época, Aléxis de To-cqueville descreveu o individualismo que lhe pareceu presente na sociedade norte-americana como “um sentimento tranqüilo e meditado que torna cada cidadão disposto a isolar-se da massa de seus iguais e retira-se para o círculo da família ou dos amigos; havendo formado essa pequena sociedade a seu gosto, deixa que a sociedade mais ampla cuide de si própria.”67

Essa concepção de vida encontra-se em sintonia com a primeira confi gu-ração do direito à privacidade: o direito de estar só, longe da vigilância e da intromissão públicas. Assim desejava o burguês do século XIX, e que encon-trou solo fértil para a transformação de um anseio em instituto jurídico na sociedade norte-americana.

Ao menos em teoria, privacidade e individualismo compuseram uma re-ceita que possibilitou ao homem apurar o seu ideal de liberdade, pois “o es-paço privado signifi cava espaço para escolhas genuínas, o que é outra maneira de dizer liberdade.”68

A discussão em torno do direito à privacidade terminou por proporcionar a elaboração de diversas leis nos Estados Unidos, podendo-se citar, por exem-plo, o Privacy Protection Act, de 1980, o Electronic Communications Privacy Act, de 1986, o Telephone Consumer Privacy Act, de 1991 e o Children’s Online Privacy Protection Act, de 1998.

Ao mesmo tempo, diversas organizações foram criadas com o intuito pre-cípuo de zelar pela privacidade, sobretudo considerando-se o crescimento na utilização dos meios informáticos de tratamento da informação na In-ternet, podendo-se destacar a Online Privace Alliance, a Electronic Privacy Information Center e outras bastante atuantes no setor de defesa dos direitos individuais como a Electronic Frontier Foundation e o Center for Democracy and Technology.

A privacidade entre o individual e o coletivo

O dinamismo e a facilidade com que atualmente podem ser angariadas informações de caráter pessoal suscitam diversas questões envolvendo a prote-ção jurídica da privacidade. Todavia, frente aos novos desafi os impostos pelos meios de comunicação digitais, sobretudo pela Internet, nota-se que o sentido da proteção ao direito da privacidade não pode mais estar adstrito ao simples resguardo do isolamento. A doutrina defendida, com pionerismo, por Bran-deis e Warren no sistema da Common Law necessita ser revisitada para que a privacidade seja tutelada da forma devida na Sociedade da Informação.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 61

69 José Oliveira Ascensão. Teoria Geral do

Direito Civil. Lisboa, Faculdade de Direi-

to, 1996, p. 121.

70 Stefano Rodotà. Tecnologie e Diritti.

Milão, Il Mulino, 1995; p. 119.

Nesse sentido, o enquadramento da privacidade como direito da persona-lidade ganha destaque. O direito à privacidade, se apresentado como prote-ção ao isolamento, pode ser concebido como o mais individualista dos direi-tos da personalidade, pois justamente tutelaria a alienação de um indivíduo perante a sociedade.

Adicionalmente, deve-se aqui compreender os direitos da personalidade não apenas como instrumentos de poder individual. Essa concepção, não alcança o caráter ético dos direitos da personalidade, pois os considera como os alicerces da primazia do indivíduo sobre uma sociedade opressora com-posta por terceiros que potencialmente poderão invadir a sua esfera privada, apropriar-se do seu nome, lesionar sua honra, seu corpo, etc.

Muito ao reverso, essa ótica dos direitos da personalidade de cunho es-tritamente individualista encontra hoje forte repúdio pela melhor doutrina nacional e estrangeira, a qual busca aclimatar a defesa da personalidade como forma de proteção de interesses partilhados por todas as pessoas, visualizando o homem em sociedade e protegendo minorias. Assim se pronuncia sobre o tema José Oliveira Ascensão:

“A entender assim, o direito da personalidade transforma-se no direito dos ego-ísmos privados. Contradiz o que deveria ser a sua base fundamental, que é a con-sideração da pessoa. A pessoa é convivência e sociedade. Nenhuma consideração de intimidade pode ser mais forte que esse traço essencial da personalidade.”69

Partindo-se dessa nova feição dos direitos da personalidade, e conseqüen-temente do direito à privacidade, percebe-se como o mesmo deixa de re-presentar a salvaguarda do isolamento individual para tornar-se instrumento de combate contra políticas de discriminação religiosa, política ou sexual, conferindo à pessoa o controle sobre as suas informações de caráter privado.

Identifi cando a defesa do direito à privacidade com o reconhecimento de verdadeiros sujeitos coletivos, manifesta-se Stefano Rodotà:

“Tende-se a mudar o sujeito do qual emana a demanda da defesa da privacidade e muda mesmo a qualidade desta demanda: vindo em primeiro plano a modalidade do exercício de poder da parte dos detentores públicos e privados das informações, a evolução do direito à privacidade supera o tradicional quadro individualista e dilata-se em um dimensão coletiva, no momento em que se considera não o interesse do indivíduo como tal, mas como integrante de determinado grupo social.”70

Pode-se asseverar que a lógica de defesa da privacidade migra, portanto, da esfera do isolamento individual para abranger uma concepção mais ampla do controle da circulação de informações pessoais. Supera-se a defi nição do direito à privacidade como o direito a estar só em prol de uma concepção do mesmo como o direito de controlar a utilização das informações pessoais.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 62

71 Sobre o tema a tutela da liberdade

informática no Brasil e no direito com-

parado, veja-se o artigo de Renato de

Castro Moreira, “O Direito à Liberdade

Informática”, in Revista dos Tribunais n°

778, agosto/2000.

72 José Adércio Leite Sampaio. Direito à

Intimidade e à Vida Privada. Belo Hori-

zonte, Del Rey, 1998; p. 497.

73 Cf. J.J. Gomes Canotilho. Direito

Constitucional e Teoria da Constituição.

Coimbra, Almedina, 1999; p. 480/481.

Trata-se, como lembra José Adércio Leite Sampaio, de um incremento na tutela tradicional do direito à privacidade, essencialmente arraigada ao viés negativo, ou seja, de proibição de condutas que atentem contra o “direito de estar só”, para que seja acrescentada uma proteção positiva, consubstanciada no direito de controle das informações pessoais. Uma vez posta tal confi gu-ração do direito de privacidade pode-se abrir espaço para o reconhecimento da chamada “liberdade informática”71, ou, em sentido mais abrangente, a autodeterminação informativa.72

O direito geral à autodeterminação informativa tem por postulado a facul-dade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pesso-ais73, sendo o mesmo concretizado, por exemplo, através de medidas judiciais como o habeas data, previsto constitucionalmente no Direito brasileiro.

Ao se entrever essa função do direito à privacidade, pode-se perceber como a proteção dos dados pessoais opera de forma a impedir que a sua apropriação venha a se dar para fi ns discriminatórios. Ao se controlar a coleta, o armaze-namento e a utilização de dados não se busca apenas resguardar o indivíduo cujos dados estão relacionados, mas também o grupo social no qual o mesmo está inserido, notoriamente caso tais dados demonstrem aspectos sensíveis de sua personalidade.

A constitucionalização da privacidade dos dados pessoais

Frente ao célere processo do desenvolvimento das técnicas informáticas de tratamento de dados, a partir dos anos setenta, do século passado, é possível delinear-se uma preocupação por parte de diversos países no sentido de atu-alizar o texto de suas Constituições de forma a prever, genérica, ou especifi -camente, a tutela da privacidade relativamente aos dados de caráter pessoal.

Neste sentido, a Constituição portuguesa de 1976 prevê em seu artigo 26 o reconhecimento de todos ao direito à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade e da vida privada e familiar.

O artigo 35, por seu turno, regulamentou a utilização da informática, contendo dispositivos bastante específi cos como o direito de se conhecer toda a informação pessoal constante de registros mecanográfi cos, sendo reconhe-cido o direito de tê-los retifi cados; a proibição do manejo de meios informá-ticos para que se efetue o tratamento de dados concernentes a convicções fi -losófi cas ou políticas, com a exceção do processamento de dados pelo Estado de forma não identifi cáveis individualmente; além da proibição de se atribuir um número de identifi cação único aos cidadãos.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 63

74 José Adércio Leite Sampaio. Direito à

Intimidade, cit.;p. 480.

Em 1978, a Espanha igualmente tutelou a proteção da privacidade, dis-pondo a Constituição, em seu artigo 105.b, que o acesso dos cidadãos aos arquivos administrativos deveria ser regulamentado por lei.

Segundo reporta José Adércio Leite Sampaio74, diversas Constituições de países europeus seguiram pelo mesmo caminho, podendo-se mencionar a Constituição dos Países Baixos, de 1983, em seu art. 10; a Constituição da Hungria, de 1989, em seu art. 59.1; e a Constituição da Suécia, de 1990, em seu artigo 3º.

O Brasil, por sua vez, possui no texto constitucional não apenas a prote-ção da privacidade através de enunciados genéricos de atribuição de direitos, como também a previsão de sua concretização através de ação própria (o ha-beas data). Assim, cumpre analisar-se mais detidamente a confi guração do di-reito à privacidade na Constituição Federal e demais diplomas legais pátrios.

A tutela do direito à privacidade no Brasil

O direito à privacidade é garantido constitucionalmente no Brasil. A Constituição Federal brasileira contempla não apenas o direito à privacidade com respeito à preservação da vida privada e da intimidade da pessoa, como também garante a inviolabilidade da correspondência, do domicílio e das comunicações, em consonância com o previsto no artigo 5º, X e XII:

Artigo 5º, X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decor-rente de sua violação.”

Artigo 5º, XII: “ É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráfi cas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fi ns de inves-tigação criminal ou instrução processual penal.”

A Constituição brasileira não esgota na declaração de direitos dos incisos X e XII a proteção concedida ao direito à privacidade, municiando ainda o indivíduo, através seu artigo 5º, LXXII, com a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para que lhe seja garantido o acesso aos seus dados pessoais armazenados por entidades públicas.

À luz dos dispositivos constitucionais acima referidos, cumpre destacar o entendimento de Tercio Sampaio Ferraz Junior, segundo o qual o sistema instituído pela Constituição para a proteção da privacidade de dados pessoais não visa proteger exatamente um direito de propriedade de certo indivíduo sobre as suas informações, tal qual um direito de propriedade clássico. O viés da tutela constitucional encontrar-se-ia, portanto, no processo de co-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 64

75 Tercio Sampaio Ferraz Junior. “A Li-

berdade como Autonomia Recíproca no

Acesso à Informação” In, Marco Aurélio

Greco e Ives Gandra de Silva Martins,

Direito e Internet. São Paulo, Revista dos

Tribunais, 2001, p. 247.

76 Danilo Doneda. “Os direitos da per-

sonalidade no novo Código Civil”, in

Gustavo Tepedino (coord). A Parte Geral

do Código Civil. Rio, Renovar, 2003; pp.

52/53.

municação de tais dados, fornecendo aos interessados meios de impedir a manipulação estratégica de dados (grampeamento e violação de circuitos in-formáticos), a divulgação de informação inexatas (tutela do direto à imagem) ou ainda que fi ram a privacidade pessoal (coleta e armazenamento de dados pessoais em bancos de dados).75

Existem ainda outras leis que regulamentam a privacidade em áreas espe-cífi cas, como, por exemplo, a Lei nº 5.250/67, a chamada Lei de Imprensa, que estabelece penalidades para pessoas que, no exercício da atividade jorna-lística, revelarem fatos que violem a privacidade e a intimidade alheias; e a Lei nº 9296/96, que estabelece as condições necessárias para a interceptação telefônica.

O Código Civil, por seu turno, contempla o direito à privacidade no art. 21, da seguinte forma:

“Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”

Pela leitura da redação do art. 21, percebe-se de imediato que o legislador optou por restringir a titularidade do direito à privacidade no Brasil apenas para as pessoas físicas, estando implicitamente excluída a possibilidade de se tutelar a privacidade de pessoas jurídicas.

Adicionalmente, o art. 21 refere-se ao fato de que, em atendimento à solici-tação da parte prejudicada, caberá ao Poder Judiciário adotar “as providências necessárias” para garantir a tutela da privacidade. A redação abrangente do dispositivo, que não se limita apenas à hipóteses de responsabilização civil pelo dano causado, poderá gerar efeitos salutares para o desenvolvimento da prote-ção à privacidade. Conforme expõe Danilo Doneda, em comentário ao artigo:

“Ao clamar pela criatividade do magistrado para que tome as providências ade-quadas, o Código Civil dá mostras da necessidade de um atuação específi ca de todo o ordenamento na proteção da privacidade da pessoa humana, que seja uma resposta efi caz aos riscos que hoje corre.”76

Deve-se lembrar, ainda, da pouco mencionada Lei nº 9454, de 07.04.1997, que institui o número único de Registro de Identidade Civil pelo qual cada cidadão brasileiro, nato ou naturalizado, será identifi cado em todas as suas relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados. Tal lei, ainda não regulamentada, poderá acarretar sérios entraves para a defesa da privacidade, uma vez que o estabelecimento de um cadastro único facilita o controle social e, unifi cando as informações de diversos bancos de dados en-tão dispersos, poderá simplifi car a construção indevida de perfi s individuais.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 65

O direito à privacidade entra em colisão constante com o exercício da liberdade de manifestação do pensamento e da informação, principalmente no que se refere às publicações que visam à exploração da vida particular de pessoas notórias. Esse tema será abordado em outra aula.

Por ora, tente visualizar quais outros direitos podem entrar em confl ito com a proteção da privacidade. Como você resolveria esses confl itos?

Caso gerador:

“O desespero do cartola”Recém-chegado de uma conturbada reunião com o atual Ministro dos Es-

portes, um famoso cartola de um clube de futebol do Estado do Rio de Janeiro o procurou em seu escritório para formular a seguinte consulta:

O artigo 18 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003, estabelece que “[o]s está-dios com capacidade superior a vinte mil pessoas deverão manter central técnica de informações, com infra-estrutura sufi ciente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente”.

Alega o cartola que a segurança dos seus torcedores está em primeiro lugar em suas prioridades, mas que o mesmo estava receoso de instalar o referido sistema de monitoramento, pois algum torcedor (adversário) poderia ingressar com medida judicial contra o clube sob o fundamento de que a sua privacidade havia sido invadida.

Ponderando o relevo da segurança coletiva nos estádios de futebol e o direito à privacidade do torcedor, elabore resposta à consulta formulada pelo seu cliente.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 66

AULA 8 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À PRIVACI-DADE E TECNOLOGIA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Privacidade na Internet — Coleta de dados pessoais e bancos de dados infor-matizados — Cookies — Envio de mensagens eletrônicas não solicitadas (spam) — Correio eletrônico e ambiente de trabalho

CASOS GERADORES

Casos “Analisando o e-mail” e “Spyware e Privacidade”

LEITURA OBRIGATÓRIA

DONEDA, Danilo. “O Direito à Privacidade nos Bancos de Dados In-formatizados” In Gustavo Tepedino (org). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio, Renovar, 2000; pp 111/136.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral na Internet. São Paulo, Método, 2001; pp. 184/236; e DRUMMOND, Victor. Internet, Privacidade e Dados Pessoais. Rio, Lumen Juris, 2003; pp. 96/129.

1. ROTEIRO DE AULA

As ameaças ao direito à privacidade foram severamente incrementadas na medida em que o progresso tecnológico permitiu que novas formas de violação à privacidade alheia fossem desenvolvidas. A rede mundial de com-putadores, por sua vez, constitui um ambiente favorável para incursões em afronta à privacidade, pois parcela signifi cativa de seus usuários desconhece os meios pelos quais informações pessoais são coletadas através do hábito de navegação por páginas eletrônicas.

Nesse sentido, é importante notar que o tratamento da informação por computadores permite não apenas seu célere processamento para fi ns idô-neos, mas também para o cruzamento indevido de dados pessoais e a inter-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 67

77 Para maiores explicações sobre o

funcionamento dos cookies, vide as se-

guintes páginas eletrônicas: dicas sobre

informática, disponíveis no site da Uni-

camp, in http://www.dicas-l.unicamp.

br/dicas-l/19970711.shtml (acessada

em 30.07.2005); e http://www.geo-

cities.com/CollegePark/9145/cookies.

html (acessado em 30.07.2005).

78 Antonio Jeová Santos. Dano Moral

na Internet. São Paulo, Método, 2001;

p. 196.

79 Sonia Aguiar do Amaral Vieira.

Inviolabilidade da Vida Privada e da

Intimidade pelos Meios Eletrônicos. São

Paulo, Juarez de Oliveria, 2002; p. 95;

e Antonio Jeová Santos. Dano Moral na

Internet, cit.; pp. 196/197.

80 Conforme tese exposta por Lawrence

Lessig, em seu parecer apresentado

no processo judicial movido por A&M

Records Inc. contra Napster Inc., por

conta de infração a direitos autorais

decorrentes da utilização do programa

de computador de troca de arquivos

na Internet, desenvolvido pela Ré (in

http://www.lessig.org/content/testi-

mony/nap/napd3.doc.html - acessada

em 30.07.2005).

ceptação de comunicações. Diversas são as formas de invasão à privacidade atualmente discutidas, podendo-se destacar algumas considerações sobre: (i) a utilização de cookies para o monitoramento e personalização da navegação; (ii) o envio reiterado de mensagens eletrônicas não solicitadas (spams); e (iii) a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho.

Os cookies e os bancos de dados informatizados

O debate sobre a legalidade da coleta de informações pessoais pelos cookies tem-se mostrado como uma das questões mais controvertidas no que tange à tutela dos direitos da personalidade na Sociedade da Informação. Para que se compreenda corretamente a ameaça representada pela sua utilização in-discriminada na rede mundial de computadores, faz-se necessário conjugar conhecimentos tecnológicos e jurídicos. A análise da questão exclusivamente através de um desses aspectos conduzirá a um entendimento equivocado, não raramente radical, que falha em perceber a complexidade do debate.

Os cookies são pequenos arquivos de texto, que são enviados pelo servidor de um site acessado na Internet diretamente para o disco rígido do compu-tador do usuário. O arquivo, uma vez inserido no computador, servirá então como repositório de informações que dizem respeito à pessoa do usuário, bem como aos seus hábitos de navegação na Internet (quais páginas foram visitadas e com que freqüência; quais compras foram efetuadas; anúncios visualizados, etc).77

Segundo defi nição de Antonio Jeová Santos, os cookies “[s]ão arquivos de dados gerados toda vez que a empresa que cuida da manipulação de dados, recebe instruções que os servidores web enviam aos programas navegadores e que são guardadas em diretório específi co do computador do usuário.”78

A tecnologia dos cookies desempenhou uma função de grande relevo para o sucesso da Internet, na medida em que é o cookie que permite ao usuário obter uma navegação mais personalizada pelas páginas eletrônicas da rede. O desenvolvimento dessa tecnologia foi impulsionado pelo desejo de tornar mais agradável, e prática, a utilização da Internet.

Dessa forma, não necessariamente o cookie representa uma tecnologia pro-jetada com fi ns exclusivos de invadir ilicitamente a privacidade dos usuários da rede mundial de computadores, como mencionam, equivocadamente, al-guns autores.79 O que deverá ser observado é como essa tecnologia será utiliza-da, não se condenando previamente um programa de computador, em si, por permitir que o seu uso seja realizado de forma a violar direitos de terceiros.80

Diversas práticas ilícitas, que representam séria ameaça à privacidade, têm sido praticadas na Internet por intermédio da utilização dos cookies, mas é preciso analisar sempre o interesse por trás da manipulação da tecnologia.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 68

81 Reporta Christiano German uma di-

fi culdade encontrada pelo usuário da

rede mundial de computadores quando

confi gura o seu browser para que não

seja permitida a colocação de cookies

em seu disco rígido: “O provedor de

acesso brasileiro UOL (www.uol.com.

br) reage com insistência especial-

mente desagradável se o usuário não

aceita nenhum dos seus cookies em

seu computador. Nesse tocante, ele

praticamente não se distingue dos seus

pendants nos Estados Unidos e na Euro-

pa. Inicialmente, o acesso a homepage

sofre um retardamento. Depois disso,

o usuário precisa rejeitar 14 (quator-

ze) tentativas de se colocar um cookie.

Se ele quiser em seguida chamar uma

das janelas na oferta do UOL, o proce-

dimento inicia uma vez mais da estaca

zero.” (in O Caminho do Brasil rumo à Era

da Informação. São Paulo, Fundação

Konrad Adenauer, 2000, p. 87).

Assim será possível perceber se o programa de computador é capaz de pro-mover algum bem-estar de forma lícita, ou se apenas foi desenvolvido para a realização de condutas ilegais.

Uma vez inserido no disco rígido do usuário, o cookie permite que, em retornando a uma página previamente visitada, o usuário possa ter acesso a informações que são do seu interesse, uma vez que o arquivo pode armazenar as preferências de navegação da pessoa, defi nindo um perfi l que será utilizado pela empresa que explora o site, tanto para direcionar notícias que possam ser do seu interesse, como para oferecer produtos que se enquadram no seu per-fi l de consumo. A questão é: como essa empresa teve acesso às informações pessoais do usuário?

O cookie pode coletar tanto as informações que a pessoa voluntariamente fornece quando preenche um cadastro, por exemplo, como organizar um perfi l do usuário com base no tipo de páginas eletrônicas visitadas.

Pode o usuário optar por não fornecer os seus dados, ou mesmo impedir que cookies sejam instalados em seu computador, através de medidas técni-cas usualmente simples, pois basta confi gurar o seu programa de navegação (browser) para que o recebimento de cookies seja proibido. Todavia, essas pro-vidências geralmente resultam em problemas para se acessar as páginas eletrô-nicas na rede mundial de computadores.81

O debate sobre a violação da privacidade do usuário deve então ser anali-sado em três momentos distintos da utilização dos cookies: (i) a coleta; (ii) o armazenamento; e (iii) a utilização dos dados pessoais.

Com relação à coleta dos dados, é importante notar que deve o usuário da Internet estar ciente de que algumas informações pessoais podem ser co-letadas quando do acesso a um site na rede mundial de computadores. No Direito brasileiro, a questão está regulada, no âmbito das relações de consu-mo. Dentre outras medidas protetoras, o Código de Defesa do Consumidor contempla, em seu capítulo V, seção VI, uma regulamentação especial em relação aos bancos de dados e cadastros formados a partir de informações dos consumidores. Como previsto no artigo 43, muitas obrigações são impostas aos administradores dos bancos de dados, como, por exemplo, revelar a cada consumidor a informação coletada a seu respeito É a redação do artigo 43, do CDC:

Art. 43. “O consumidor, sem prejuízo de disposto no art. 86, terá acesso às infor-mações existentes em cadastros, fi chas, registros e dados pessoais e de consumo arqui-vados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§1.º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

Page 69: Introducao Ao Direito Civil 2012-2

INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 69

82 Victor Drummond. Internet, Privaci-

dade e Dados Pessoais. Rio, Lumen Juris,

2003; p. 103.

§2.º A abertura de cadastro, fi cha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§3.º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.”

Dessa forma, não é possível, no Direito brasileiro, que informações pesso-ais sejam coletadas sem o consentimento do consumidor. Todavia, essa práti-ca tem sido descumprida reiteradamente, em ostensiva violação ao comando do CDC.

Victor Drummond, por seu turno, entende que não haveria qualquer in-fração à privacidade na simples coleta de dados dos usuários pelos cookies. Esse entendimento se baseia na hipótese de que a lesão à privacidade decorre apenas da utilização indevida das informações coletadas:

“Reputamos como correta a interpretação de que o grande problema dos cookies decorre das utilizações que se faz após a coleta dos dados, sendo que, em geral, a coleta em si, acaba por não representar violação de privacidade.”82

A legislação consumerista apresenta algumas ponderações a essa linha de argumentação, pois demanda que a pessoa cujos dados são ingressados em banco de dados seja cientifi cada não apenas do fato, mas também de quais informações foram objeto dessa conduta. Assim, caso a cientifi cação tenha sido realizada de forma clara, a coleta de dados pessoais torna-se legítima.

Com relação ao armazenamento, é importante notar que o consumidor, por força do art. 43 do CDC, deverá ter acesso aos seus dados constantes do banco de dados da empresa que explora o site, sendo-lhe ainda permitido exigir a sua correção, caso encontre alguma inexatidão. O não cumprimento da requisição encaminhada pelo usuário submete o infrator às disposições do art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, podendo o mesmo ser conde-nado a cumprir a sua obrigação de fazer sob pena de multa, ou mesmo pagar indenização por perdas e danos causados.

Finalmente a utilização das informações armazenadas tem por escopo pro-teger a pessoa cujas informações foram coletadas contra o manuseio indevido de seus dados pessoais. É especialmente relevante nesse contexto a prática disseminada na Internet de venda de cadastros, sem que seja feita qualquer notifi cação do fato ao usuário que forneceu os dados.

Embora os tribunais venham aplicando largamente o CDC no que se refere a diversos assuntos, as exigências específi cas do art. 43 não têm sido, ainda, totalmente observadas, especialmente no que diz respeito à revelação ao consumidor dos dados coletados sobre ele.

Page 70: Introducao Ao Direito Civil 2012-2

INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 70

83 O termo spam foi originalmente

cunhado pelo grupo cômico inglês

Monthy Phyton, que o utilizava em

quadro humorístico no qual para todos

os pratos servidos em um restaurante,

o garçom mencionava que o prato

viria acompanhado com spam. Embo-

ra nunca se tenha esclarecido o que

exatamente seria spam, ele era sem-

pre mencionado em todo e qualquer

pedido feito pelos clientes. Vide http://

www.pythonline.com/ (acessado em

30.08.2003).

84 Nessa direção, vide Sonia Aguiar do

Amaral Vieira. Inviolabilidade, cit.; p.

121; e Amaro Moraes e Silva Neto. E-

mails Indesejados à luz do Direito. São

Paulo, Quartier Latin, 2002; p. 156.

85 Amaro Moraes e Silva Neto. Privacida-

de na Internet, cit.; p. 97. Neste sentido,

vale ressaltar, com base nas informa-

ções de Robert B. Gelman e Stanton

McCandlish, que o grande fl uxo de

mensagens não solicitadas não está, de

forma alguma, congestionando o tráfe-

go de informações na Internet, uma vez

que a maior parte de tais mensagens

são apenas arquivos de texto. Todavia,

lembram os referidos autores, os spams

podem congestionar o servidor de e-

mails de uma pessoa, ou mesmo fazer

com que o espaço máximo reservado

para suas mensagens seja ultrapassado

(In Protecting Yourself Online, cit.; p.

123/125).

Novas formas de marketing — o spam

Através das informações colhidas de diversas formas, seja através de cookies, conforme visto acima, ou mediante a compra de listas contendo até mesmo milhares de endereços de correios eletrônicos, desenvolveu-se uma forma de marketing direto bastante efi caz para o fornecedor de produtos e serviços, no que tange ao alcance de sua divulgação. Trata-se dos chamados spams, termo que designa o envio de mensagens eletrônicas não solicitadas.83

Facilitado pelo dinamismo das comunicações realizadas através da Inter-net, o fl uxo de tais mensagens aumenta constantemente em todo o mundo, tornando-se um verdadeiro transtorno para os usuários da Internet. Os spams podem versar sobre qualquer assunto, ainda que mais usualmente essa prática seja utilizada para fi ns comerciais.

Na ausência de uma legislação específi ca que coíba a prática de envio reite-rado de mensagens não solicitadas, busca a doutrina nacional responsabilizar o spammer, civil e criminalmente, pela sua atitude. Assim, os mais diversos dispositivos legais são invocados, sem que se alcance um entendimento coe-rente sobre o assunto.

Um dos dispositivos mais referidos pela doutrina para buscar-se enquadrar a prática de spam é o artigo 39, III, do CDC, que assim está redigido:

“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

(...) III — enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço.”84

Vale destacar que o art. 84, do CDC, que prevê a possibilidade de se obter em juízo uma ordem que obrigue a parte contrária à observância de uma obrigação de fazer ou não fazer, também poderá ser acionado para que se impeça o spammer de prosseguir com o envio de mensagens não solicitadas.

No aspecto penal, Amaro Moraes e Silva Neto chega a propor que, em sendo a Internet um serviço de utilidade pública, a prática do envio de spam poderia ser enquadrada no artigo 265 do Código Penal, segundo o qual será aplicada pena de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, além de multa, a quem atentar contra o funcionamento e segurança de serviços de utilidade pública.85

De toda sorte, para que se logre êxito em responsabilizar o envio reitera-do de mensagens eletrônicas, deverá ser comprovado dano causado. Nesse ponto, interessa pouco o debate travado na doutrina sobre o melhor artigo de lei a ser utilizado para a condenação do spammer. O próprio artigo 186, do Código Civil, ofereceria base para que se buscasse indenização contra o remetente das mensagens, ao dispor que:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 71

86 Trecho da sentença da juíza Rosân-

gela Leiko Kato, da 6.ª Vara do Juizado

Especial Cível de Micro Empresas, de

Campo Grande, Mato Grosso do Sul

(processo nº 2001.166.0812-9). Segun-

do informa Victor Drummond, a decisão

foi confi rmada em segunda instância

(in Internet, Privacidade e Dados Pesso-

ais, cit.; p. 115).

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou impru-dência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Em se entendendo que o envio de spam representa violação à privacidade, poder-se-ia, inclusive, acionar o dispositivo do art. 12, do Código Civil, que, de forma genérica, garante a tutela dos direitos da personalidade.

Todavia, no que concerne à prova do dano, é importante notar que a sua apresentação poderá ser difi cultada pelas circunstâncias do encaminhamento de spam. É comum, nesse sentido, alegar-se que o dano causado pelo spam adiviria da perda de tempo resultante da constante exigência de se apagar mensagens não solicitadas da caixa postal eletrônica.

No Brasil, a primeira decisão proferida sobre a matéria esposou o entendi-mento de que com relação ao envio de propaganda não solicitada na Internet “não há o que se falar em violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de alguém ou prejuízos de ordem material.”86

Sendo assim, é preciso que se dedique maior atenção sobre a questão da prova do prejuízo causado pelo spam, prática reprovável que se instituciona-lizou na Internet, e que demanda a reação do ordenamento jurídico para que essa conduta seja coibida.

A privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho

Uma terceira situação que demanda a tutela da privacidade em decorrên-cia dos avanços da Sociedade da Informação é a possibilidade de monitora-mento da correspondência eletrônica do empregado, pelo empregador, no ambiente de trabalho.

A questão já foi enfrentada em algumas decisões dos tribunais brasileiros, mas ainda não se logrou obter um consenso sobre os limites que separaram a privacidade do empregado e o poder de direção do empregador.

Sendo assim, pode-se notar que a questão apresenta duas perspectivas de análise, diametralmente opostas: (i) uma delas defende a possibilidade de se realizar o monitoramento do correio eletrônico dos empregados, baseando-se para tanto no direito de propriedade do empregador sobre a infra-estrutura utilizada pelo empregado, na possibilidade de responsabilização do emprega-dor por atos de seus prepostos, bem como no poder de direção, previsto no art. 2º da CLT; e, de outro lado, (ii) uma segunda perspectiva sobre a matéria apoia-se no direito à privacidade do trabalhador para obstar toda e qualquer ingerência do empregador sobre a correspondência eletrônica do empregado.

Cabe de início colocar-se uma ressalva: a maioria dos questionamentos sur-gidos nesse debate estão relacionados com a utilização do endereço de correio eletrônico que é fornecido pelo empregador ao empregado quando de sua con-

Page 72: Introducao Ao Direito Civil 2012-2

INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 72

87 Victor Drummond. Internet, Privaci-

dade e Dados Pessoais, cit.; pp. 85/86.

tratação (algo como [email protected]). A utilização do endereço de correio eletrônico particular no ambiente de trabalho, usualmente através de webmail, é questão menos controvertida, levando-se sempre em conta que essa utilização não pode prejudicar o rendimento do empregado em seu ofício, nem comprometer a segurança do sistema de informática do empregador.

A maior celeuma reside justamente no caso do endereço de correio ele-trônico fornecido pelo empregador justamente porque qualquer mensagem enviada através desse endereço leva consigo o nome da empresa que o contra-tou, além de apenas poder ser utilizado pelo mesmo enquanto contratado for.

Essas circunstâncias levam à refl exão sobre o direito de propriedade da infra-estrutura colocada à disposição do empregado. Nesse sentido, questio-na-se Victor Drummond sobre a propriedade não apenas dos computadores, mas também dos correios eletrônicos disponibilizados aos funcionários:

“[P]ergunta-se: o que pressupõe o envio de mensagens via correio eletrônico? E afi rmamos: pressupõe a utilização de um computador, um contrato de acesso a rede de computadores Internet através de um provedor de acesso e todo o aparato técnico, ainda que atualmente de razoável simplicidade, necessário para o funcionamento do sistema de recepção e envio de mensagens. Claro que tudo isso tem um custo para manter-se. E todo esse aparato tem um proprietário. No caso das empresas, fazem parte do seu patrimônio ativo e são colocados à disposição dos funcionários. E também aqui se insere o endereço de correio eletrônico. O endereço de correio eletrônico é, por-tanto, bem intangível. No presente caso, bem intangível de propriedade da empresa.”87

Sendo assim, pela ótica do direito de propriedade, não haveria como se defender a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho, uma vez que o próprio correio eletrônico não pertenceria ao empregado.

Adicionalmente, essa perspectiva vale-se ainda do argumento de que o empregador estaria legitimado a monitorar o conteúdo das mensagens ele-trônicas de seus funcionários por força da responsabilidade civil que sobre o mesmo recai em decorrência de atos de seus funcionários (art. 932, III, do Código Civil). Dessa forma, o empregador não apenas poderia, como até mesmo deveria monitorar o correio eletrônico de seus empregados, como uma medida de prevenção de danos.

Por fi m, o empregador também poderia se valer do seu poder de direção, previsto no art. 2º da CLT, para justifi car a intervenção sobre a correspon-dência eletrônica enviada por seus empregados, uma vez que cabe ao mesmo dirigir o negócio, sendo-lhe, por isso, concedida superioridade hierárquica sobre os empregados.

O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho já foi reconhecido pela jurisprudência dos tribunais nacionais, ressaltando-se os ar-gumentos supramencionados para se legitimar o controle sobre as mensagens

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 73

88 Recurso Ordinário nº 054/2002-

08-06, rel. Márcia Cúrcio, publ. em

19.07.2002.

89 Extraído do voto do revisor Douglas

Alencar Rodrigues, in Recurso Ordinário

nº 054/2002-08-06, rel. Márcia Cúrcio,

publ. em 19.07.2002.

dos empregados. Nessa direção, assim decidiu o Tribunal Regional do Traba-lho da 10ª Região:

“Quando o empregado comete um ato de improbidade ou mesmo um delito utilizando-se do e-mail da empresa, esta em regra, responde solidariamente pelo ato praticado por aquele. Sob esse prisma, podemos então constatar o quão grave e deli-cada é esta questão, que demanda a apreciação jurídica dos profi ssionais do Direito. Enquadrando tal situação à Consolidação das Leis do Trabalho, verifi ca-se que tal conduta é absolutamente imprópria, podendo confi gurar justa causa para a rescisão contratual, dependendo do caso e da gravidade do ato praticado. Considerando que os equipamentos de informática são disponibilizados pela empresas aos seus funcio-nários com a fi nalidade única de atender às suas atividades laborativas, o controle do e-mail, apresenta-se como a forma mais efi caz, não somente de proteção ao sigilo profi ssional, como de evitar o mau uso do sistema internet que atenta contra a moral e os bons costumes, podendo causar à empresa prejuízos de larga monta.”88

Os argumentos levantados em prol do empregador foram explorados de forma sintética pelo voto do revisor do presente acórdão, do qual se extrai a seguinte passagem:

“Se o e-mail é concedido pelo empregador para o exercício das atividades laborais, não há como equipará-lo às correspondências postais e telefônicas, objetos da tutela constitucional inscrita no art. 5º, inciso XII, da CF. Tratando-se de ferramenta de trabalho, e não de benefício contratual indireto, o acesso ao correio eletrônico não se qualifi ca como espaço eminentemente privado, insuscetível de controle por parte do empregador, titular do poder diretivo e proprietário dos equipamentos e sistemas operados. Por isso, o rastreamento do sistema de provisão de acesso à Internet, como forma de identifi car o responsável pelo envio de fotos pornográfi cas a partir dos equi-pamentos da empresa, não denota quebra de sigilo de correspondência (art. 5º, inciso XII, da CF), igualmente não desqualifi cando a prova assim obtida (art. 5º, inciso LVI, da CF), nulifi cando a justa causa aplicada (CLT, art. 482).89

O direito à privacidade, por seu turno, fi gura como fundamento das deci-sões que se pronunciam favoravelmente ao empregado, protegendo a inviola-bilidade de sua correspondência eletrônica em detrimento da discricionarie-dade absoluta do empregador no monitoramento das mensagens enviadas a partir do correio eletrônico da empresa.

Em decisão bastante controvertida, o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região decidiu que a despedida por justa causa de empregado que enviou mensagens de teor pornográfi co não poderia prosperar, uma vez que não estaria confi gurada a alegada quebra de fi dúcia no relacionamento laboral. É importante notar que a referida decisão ainda se manifesta no sentido de que

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 74

90 Tribunal Regional do Trabalho da 9ª

Região, Recurso Ordinário nº 05568-

2002.

91 Processo n° 2000034734-0, rel. Fer-

nando Antônio Sampaio da Silva, j. em

03.08.2000.

a realização de auditagem na estação de trabalho do empregado violaria di-reitos da personalidade. A ementa da decisão está redigida da seguinte forma:

“CORREIO ELETRÔNICO — JUSTA CAUSA. É comum as empresas dis-ponibilizarem internet-correio eletrônico aos empregados, que os usam também com fi ns particulares. Releva aferir se tal uso (não importa o conteúdo) atrapalha o ren-dimento profi ssional do empregado ou constrange outras pessoas. O empregador deve propiciar ao trabalhador corrigir seu comportamento, aplicando advertências e, no caso de reincidência, suspensão e, fi nalmente, dispensa por justa causa, de forma gradual. A realização de auditagem na estação de trabalho do autor fere o direito ao sigilo de comunicação (CF-88, art. 5º, XII). O parágrafo único do art. 1º da Lei 9.296-96 equipara as comunicações em sistema de informática e telemática, via e-mail, às comunicações telefônicas, em relação às quais cabe a quebra do sigilo somente por determinação judicial. Ilegal, pois, a imposição de cláusula autoriza-dora de realização de auditagem nas estações de trabalho dos usuários. Ainda, se o autor não era o único empregado a enviar e-mails particulares, todavia, os demais não sofrem qualquer penalidade, há nítido ato discriminatório. A inobservação da norma empresarial não caracterizou dano ao empregador, pois não comprovado efe-tivo prejuízo à ré ou constrangimento a terceiros. O uso, pelo autor, do computador da empresa, para envio de mensagens particulares, mesmo que pornográfi cas e sem permissão, não é sufi ciente a demonstrar ausência de boa-fé na execução do contrato e acarretar quebra de fi dúcia.” 90

O Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região também teve oportunida-de de se manifestar sobre o assunto, decidindo favoravelmente ao emprega-do, também com apoio no direito à privacidade. Todavia, deve-se destacar que, no caso concreto, a demissão do empregado por justa causa foi motivada pelo envio de uma mensagem apenas, e cuja remessa se deu na hora do café, o que torna a caracterização da abusividade da demissão por justa causa mais evidente e difi culta a formação de um precedente judicial abrangente sobre o assunto. É a decisão:

“Justa Causa. “E-mail” caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fi scalização dos serviços, o poder diretivo cede ao direito do obreiro à intimidade (CF, art. 5°, inciso VIII). Um único “e-mail”, enviado para fi ns particulares, em horário de café, não tipifi ca justa causa. Recurso provido.91

Cumpre destacar um trecho do voto do relator do acórdão, no qual se rebate, expressamente, o argumento baseado na supremacia do direito de propriedade do empregador sobre o correio eletrônico disponibilizado ao empregado:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 75

92 Idem. Ibidem.

“De outra parte entendo que houve violação ao direito à intimidade do obreiro. Com efeito, “e-mail” nada mais é que correio eletrônico. Ou seja, correspondência enviada pelo computador. Ainda que se utilize o computador da empresa, o endereço (eletrônico) pertence ao reclamante. Manifesta a violação de correspondência, ainda que eletrônica, fere a garantia à intimidade (Constituição Federal, art. 5°, inc.VIII). Por analogia, o caso equivale à escuta de conversa telefônica, conduta essa que é sabidamente reprimida pela jurisprudência.”92

O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, também já se manifestou sobre a possibilidade de monitoramento do e-mail do empregado pelo em-pregador, confi rmando a decisão anteriormente proferida pelo TRT da 10ª Região, citada acima. A ementa do acórdão está assim redigida:

“PROVA ILÍCITA. “E-MAIL” CORPORATIVO. JUSTA CAUSA. DI-VULGAÇÃO DE MATERIALPORNOGRÁFICO.

1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de corres-pondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estri-tamente pessoal, ainda que virtual (“e-mail” particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfru-ta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade.

2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado “e-mail”corporativo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio en-dereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profi ssional. Em princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcio-nada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço.

3. A estreita e cada vez mais intensa vinculação que passou a existir, de uns tempos a esta parte, entre Internet e/ou correspondência eletrônica e justa causa e/ou crime exige muita parcimônia dos órgãos jurisdicionais na qualifi cação da ilicitude da prova referente ao desvio de fi nalidade na utilização dessa tecnologia, tomando-se em conta, inclusive, o princípio da proporcionalidade e, pois, os di-versos valores jurídicos tutelados pela lei e pela Constituição Federal. A experiên-cia subministrada ao magistrado pela observação do que ordinariamente acon-tece revela que, notadamente o “e-mail” corporativo, não raro sofre acentuado desvio de fi nalidade, mediante a utilização abusiva ou ilegal, de que é exemplo o envio de fotos pornográfi cas. Constitui, assim, em última análise, expediente pelo qual o empregado pode provocar expressivo prejuízo ao empregador.

4. Se se cuida de “e-mail” corporativo, declaradamente destinado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está em jogo, antes de tudo, é o

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 76

93 TST, RR - 613/2000-013-10-00,

rel. Min. João Oreste Dalazen, j. em

18.05.2005.

exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de acessar à INTERNET e sobre o próprio provedor. Insta ter presente também a responsabilidade do empregador, perante terceiros, pelos atos de seus emprega-dos em serviço (Código Civil, art. 932, inc.III), bem como que está em xeque o direito à imagem do empregador,igualmente merecedor de tutela constitucional. Sobretudo, imperativo considerar que o empregado, ao receber uma caixa de “e-mail” de seu empregador para uso corporativo, mediante ciência prévia de que nele somente podem transitar mensagens profi ssionais, não tem razoável expectativa de privacidade quanto a esta, como se vem entendendo no Direito Comparado (EUA e Reino Unido).

5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no am-biente de trabalho, em “e-mail” corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfi co a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal.

6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento.”93

Como visto, o TST levou em consideração a maior parte dos argumentos desenvolvidos em prol do controle do e-mail do empregado pelo emprega-dor, com destaque para a possibilidade de responsabilização do mesmo com base no art. 932, III, do Código Civil.

2. CASOS GERADORES:

2.1. “Analisando o e-mail”

----— Original Message —---— From: Consult&Consult Consul-toria e Treinamento To: você@seuprovedor.com.br Sent: Saturday, September 20, 2003 7:45 AM

Prezado Cliente,

Sentimos um enorme prazer em informar que recentemente seu e-mail passou a fazer parte do nosso banco de dados.

Pensando sempre na melhoria da sua empresa e no seu desenvol-vimento pessoal, a Consult&Consult oferece os melhores progra-mas de aperfeiçoamento profi ssional do mercado, elaborados a partir de vasta experiência no ramo de consultoria.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 77

(OBS.: Seu e-mail foi retirado de sua Própria Home Page, já constava em nosso banco de dados ou foi digitado aleatoriamente, isto é um e-mail normal como tantos outros que você recebe, não estamos invadindo sua privacidade e enviar um e-mail não é crime, desde que não afete a caixa do usuário, caso não tenha mais inte-resse em receber nossas mensagens, envie um email para [email protected] com o assunto “ REMOVER“).

Atenciosamente,

Fulano de TalAnalista de Relacionamento

Considerando que a mensagem acima foi recebida em seu e-mail sem solicita-ção prévia, após ler o seu conteúdo, indique as eventuais irregularidades do refe-rido e-mail. Ele pode ser considerado como spam? Em caso afi rmativo, é possível responsabilizar a empresa que enviou a mensagem. Qual seria o fundamento da pretensa responsabilização?

2.2. “Spywares e Privacidade”

A MK Informática Ltda. desenvolveu um software, denominado Spy Music BR, para o compartilhamento e troca de arquivos MP3 na Internet. Além de operar as funções tradicionais de um software de compartilhamento de arquivos, o programa possui uma função oculta (spyware), através da qual todos os dados envolvendo as músicas que cada usuário baixar são enviados para os servidores da MK. A empresa, de posse desses dados, está montando um grande banco de dados com o gosto musical de seus usuários e já iniciou negociação com uma grande empresa de publicidade na Internet para a venda de seus cadastros.

Ao saber que diversos softwares de limpeza de spywares, que podem ser adqui-ridos gratuitamente na Internet, têm operado de forma a remover a função oculta do seu software, a MK — como de praxe — formulou consulta ao seu escritório questionando a legalidade desses softwares que desabilitam uma função de pro-grama de sua titularidade.

Mais especifi camente, a empresa lhe consulta sobre a conveniência de ingressar com ação judicial contra os fabricantes desses softwares que limpam spywares sob o argumento de que os mesmos estariam violando o seu direito autoral sobre o sof-tware Spy Music BR, alterando-lhe as funções originais sem prévio consentimento.

Como você elaboraria a resposta a ser encaminhada ao seu cliente?

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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AULA 9 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À IMAGEM

EMENTÁRIO DE TEMAS

Conceito e abrangência do direito à imagem — Imagem-Retrato e Ima-gem-Atributo — Responsabilidade Civil por dano à imagem — Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o dano à imagem.

CASO GERADOR

Caso Sylmara Rocha — Liberdade de Imprensa e Direito à Imagem

LEITURA OBRIGATÓRIA

SOUZA, Carlos Aff onso Pereira de. “Contornos Atuais do Direito à Ima-gem”, in Revista Forense nº 367; pp. 45/68 (uma versão reduzida do artigo encontra-se abaixo, no “roteiro de aula”)

LEITURAS COMPLEMENTARES

SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Pau-lo, Atlas, 2002; pp. 157/194; e MORAES, Walter. “Direito à Própria Imagem”. In Revista dos Tribunais nº 443 (set/1972); pp. 64/81 e nº 434 (out/1972); pp. 11/28.

1. ROTEIRO DE AULA

Um dos aspectos mais intrigantes do progresso tecnológico, sobretudo no que tange ao desenvolvimento dos modernos meios de comunicação, é a predominância da visão em face dos demais sentidos do homem. A imagem — seja através de um quadro em exposição, de um retrato no jornal, ou de uma foto para publicidade — nunca esteve em tão incontrolável evidência e banalização.

O poder instantâneo de comunicação da imagem caracteriza de forma irrepreensível esse instante na história da civilização, em que o tempo avan-ça sobre as distâncias espaciais, suprimindo-as em compasso acelerado. Se o passado não pode mais ser alterado, pois se solidifi cou em história, o presente

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 79

94 In A Modernidade Líquida. Rio, Jorge

Zahar, 2001; p. 09.

95 Para uma crítica dos vícios que a lin-

guagem produzida pela Internet impri-

me aos hábitos de escrita e leitura, vide

entrevista concedida por Harold Bloom

à Revista Veja, publicada na edição de

31 de janeiro de 2001; p. 14.

96 Cf. Luiz Alberto David Araújo. A Pro-

teção Constitucional da Própria Imagem.

Belo Horizonte: Del Rey, 1996; p. 52.

deve sempre ser sempre “leve”, “fl uido”, para que o homem, em estado de constante pressa, possa organizar a sua agenda de atrasos em uma moderni-dade “líquida”, conforme alcunhada por Zygmunt Bauman.94

A imagem, portanto, cumpre a sua função nesse cenário. Com efeito, a partir do desenvolvimento de novos veículos de comunicação, como a te-levisão, grande parte das informações que chegam aos indivíduos está con-substanciada em imagens. A própria Internet, ao fl exibilizar as formas de expressão lingüística, criando abreviações para conversação em tempo real e símbolos para a representação de sentimentos do interlocutor, por exemplo, também constitui uma mídia que lança mão do poder de transmissão ime-diata de conteúdo proporcionado pela utilização da imagem.95

Há, portanto, uma relação intrínseca entre o progresso tecnológico e a crescente veiculação de imagens nos meios de comunicação que permitem tal recurso, podendo-se localizar no âmago dessa simbiose entre tecnologia e imagem a necessidade de proteção da imagem pessoal.

A fi sionomia da pessoa, compreendida como sua identidade física, é fre-qüentemente explorada por meio do referido fenômeno de massifi cação da imagem. Nesse sentido, um semblante notório, ou determinadas qualidades físicas, são difundidas à exaustão pela mídia em uma amplitude e velocida-de inéditas. Cumpre lembrar que se as novas tecnologias digitais facilitam a captação da imagem, da mesma forma a sua divulgação é mais facilmente implementada.96 Tenha-se em mente, por exemplo, o alcance transnacional da Internet, seja através da difusão de imagens em páginas eletrônicas, seja através do envio de e-mails.

Contudo, deve-se atentar para o fato de que a exposição potencializada da imagem não abrange apenas o aspecto fi sionômico e sua correspondente re-produção, expandindo-se o conceito de imagem no sentido de atingir ainda a referência a determinados atributos de uma pessoa em suas relações sociais.

De fato, paralelamente à ostensiva exploração da fi sionomia, surge no sen-so comum a signifi cação de imagem como atributo peculiar de uma pessoa. Assim, através do comportamento reiterado do indivíduo em suas relações, adere ao mesmo um amálgama de características que vêm a compor a exterio-rização de sua personalidade no âmbito social. Convencionou-se denominar “imagem” tais atributos da pessoa percebidos em sua conduta particular ou em sua atividade profi ssional.

Dessa forma, pode-se asseverar que, em meio à sociedade edipiana dos excessos visuais, cumpre ao Direito tutelar a exposição da imagem, coibindo os seus abusos. Todavia, para que se atinja uma proteção efi caz, deve-se anali-sar a imagem como manifestação da personalidade humana, traçando-se um conceito jurídico que contemple as suas diversas espécies de manifestação em face dos atuais meios de transmissão de dados.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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97 Antonio Chaves. Tratado de Direito Ci-

vil, t. I. São Paulo, Revista dos Tribunais,

1982; p. 536.

98 Antonio Jeová Santos. Dano Moral

Indenizável. São Paulo, Lejus, 1999, 2ª

ed.; p. 382.

99 Antonio Chaves. Tratado de Direito

Civil, t. I., cit.; p. 538.

100 Walter Moraes. Verbete “Direito à

própria imagem”, in Enciclopédia Sarai-

va de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977;

p. 340.

A imagem como exteriorização da personalidade

Como visto acima, a proteção acentuada do direito à imagem constitui demanda proveniente do desenvolvimento tecnológico. Desde a elaboração de retratos através da pintura até a utilização desmesurada de personalidades notórias em comerciais de televisão e a divulgação de fotos pela rede mundial de computadores, cumpre ao Direito proteger o aspecto existencial contido na imagem da pessoa.

A defi nição de um conceito relativo à imagem para fi ns de sua tutela ju-rídica, por seu turno, sempre motivou polêmica e discordâncias doutriná-rias. Assim, há entendimentos que se fundam no sentido vulgar do vocábulo “imagem”, outros que procuram restringir o campo de proteção da imagem à seara das reproduções gráfi cas, e ainda os que buscam ampliar o espectro conceitual da imagem, abordando-a como exteriorização da personalidade humana.

Partindo-se, portanto, do sentido vulgar da expressão, considera-se ima-gem como sendo a representação através da pintura, escultura, fotografi a, fi lme e outras formas intelectuais de um tema qualquer, inclusive, da pessoa humana.97

Nessa direção, interessaria ao Direito a imagem apenas como representa-ção gráfi ca da fi gura humana, por meio mecânico de reprodução. A imagem protegida juridicamente diria respeito àquela representação gráfi ca em que a própria pessoa se reconhece e é reconhecida por terceiros.98

Todavia, o entendimento de que a imagem tutelada pelo Direito apenas compreende a representação gráfi ca particulariza em excesso o escopo da pro-teção, deixando a descoberto uma série de hipóteses em que a imagem da pessoa é violada sem que se elabore uma reprodução gráfi ca da mesma.

Em igual sentido, conforme relata Antonio Chaves, não se pode defi nir o direito à imagem como sendo aquele direito de impedir que terceiros venham a conhecer a imagem de outrem. Argumenta o tratadista que não se pode evitar que terceiros conheçam a imagem de alguém, mas sim, e justamente nesse ponto incide a tutela jurídica, que utilizem a mesma contra a vontade do seu titular, em casos não autorizados por lei.99

Com efeito, o conceito de imagem para o Direito não pode abandonar o substrato semântico do próprio vocábulo. Assim, recorda Walter Moraes que a imagem pode ser tida como toda sorte de representações de uma pessoa.100

A imagem é, então, compreendida pelo autor como sendo toda exteriori-zação da personalidade humana. Esse entendimento contempla a vinculação necessária entre tutela conferida à imagem e a disciplina relativa aos chama-dos direitos da personalidade, dentre os quais o direito à imagem se insere. Atento a esse aspecto atinente à imagem como irradiação da pessoa humana, complementa Walter Moraes que a:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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101 Walter Moraes. “Direito à Própria

Imagem I”, in Revista dos Tribunais nº

443 (set/1972); pp. 80/81.

102 Hermano Duval. Direito à Imagem.

São Paulo, Saraiva, 1988; p. 105. À par-

te da evidente virtude da defi nição pro-

posta por Hermano Duval, consubstan-

ciada na percepção dos dois perfi s da

imagem a serem tutelados, vale reparar

que a atitude pessoal, geradora de uma

determinada “imagem” no meio social,

deve ser protegida juridicamente não

como projeção da personalidade física,

mas como real exteriorização de as-

pectos morais da pessoa, perceptíveis

através do comportamento. Trata-se

de atributos sociais, não relacionados a

características físicas, cujo surgimento

é estimulado pela conduta individual.

“[i]magem é forma da pessoa, expressão sensível da individualidade como foi dito, assentada fundamentalmente no corpo físico do homem, segue que é um bem inerente à natureza do homem, naturalmente integrante da personalidade, o que, vale dizer, é um bem essencial da personalidade. Por essencial, a imagem é obvia-mente inalienável, intransferível, inexpropriável, irrenunciável, porque tudo isso sig-nifi caria privação de um bem essencial.”101

O núcleo do conceito proposto para a imagem, portanto, reside no seu atrelamento inevitável com a personalidade, operando aquela a necessária mediação entre a pessoa e a sociedade, entre a intimidade e a exterioridade. A imagem estabelece a individuação física e moral da pessoa, sem a qual não se pode sequer considerar o estudo da personalidade.

Cumpre somente explicitar, em adição ao conceito acima proposto, que ao se considerar a imagem como exteriorização da personalidade humana, a mesma é entendida tanto em seu aspecto físico, como moral. Ainda que a imagem esteja “assentada fundamentalmente no corpo físico do homem”, ela não refl ete apenas características físicas do sujeito, abrangendo também os atributos sociais da pessoa. Em atenção a esses dois perfi s de proteção da imagem, leciona Hermano Duval que:

“Direito à imagem é a projeção da personalidade física (traços fi sionômicos, cor-po, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior.”102

Uma vez assentado o conceito de imagem na exteriorização da personalida-de, cumpre aprofundar a análise sobre as formas pelas quais referida exteriori-zação ocorre, abrangendo-se tanto a reprodução da fi sionomia e as sensações que a mesma implica em terceiros, bem como o conjunto de características comportamentais que particularizam a pessoa em suas relações sociais.

Fisionomia e atributo como perfi s da imagem

Não há como se compreender a exteriorização da personalidade consubs-tanciada na imagem sem que se faça menção aos dois perfi s através dos quais a mesma se manifesta, demandando o manejo de tutelas jurídicas específi cas.

Assim, a fi sionomia e a sua reprodução, bem como os atributos compor-tamentais da pessoa, devem ser entendidos como objeto de proteção pelo Direito. Considerando-se, portanto, que a imagem integra a personalidade humana, pode-se concluir pela sua inserção no rol dos chamados direitos da personalidade.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 82

103 Luiz Alberto David Araújo. A Proteção

Constitucional, cit.; p. 81 e ss. Vide, ain-

da, Sidney César Silva Guerra. A Liber-

dade de Imprensa e o Direito à Imagem.

Rio, Renovar, 1999; p. 63.

104 Luiz Alberto David Araújo. A Proteção

Constitucional, cit.; p. 30.

A referida análise dos dois perfi s da imagem para fi ns de sua tutela jurídica possui como fundamento o próprio texto da Constituição Federal de 1988, uma vez que o direito à imagem é contemplado de forma pródiga no capítulo relativo aos “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.

Dessa forma, tomado pela perspectiva constitucional como um direito fundamental, o direito à imagem é referido no artigo 5º da Carta Magna, mais especifi camente, nos incisos V, X e XXVIII, da seguinte forma:

“Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...) V — É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

(...) X — São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...) XXVIII — são assegurados, nos termos da lei:(a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da

imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.”

Segundo o entendimento pioneiro de Luiz Alberto David Araújo, os incisos acima citados contemplam três hipóteses distintas de tutela do direito à ima-gem. O inciso V refere-se à chamada “imagem-atributo”, o inciso X à “ima-gem-retrato”, e o inciso XXVIII à proteção da imagem como direito autoral.103

A denominada imagem-retrato refere-se à proteção jurídica dispensada à fi sionomia da pessoa, bem como à sua reprodução. Trata-se, portanto, da vertente original do direito à imagem, a qual objetiva promover o resguardo da identidade física da pessoa e suas características, sendo também tutelada a correta captação e veiculação da fi sionomia.

Segundo Luiz Alberto David Araújo, convencionou-se denominar a fi siono-mia da pessoa como “imagem estática” e a sua reprodução como “imagem di-nâmica”. Ambas cuidam tão somente de dois momentos distintos da proteção jurídica manejada à imagem-retrato, enfocando-se ora o fato da pessoa possuir determinada fi sionomia, ora a divulgação correta de seus aspectos fi sionômicos.104

Cabe ressaltar, ainda, que mesmo certas partes do corpo de uma pessoa podem ser objeto de proteção do direito à imagem, na medida em que as mesmas possam gerar o imediato reconhecimento do indivíduo. Em tais ca-sos, os quais envolvem pessoas que alcançaram notoriedade pela exposição de partes específi cas de seus corpos, deve-se atentar para o fato de que apenas será possível invocar-se a defesa do direito à imagem quando a identifi cação pessoal se fi zer exclusivamente pela análise da parte do corpo em destaque.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 83

105 Conforme reporta Stephen R. Bar-

nett, já se decidiu nos Estados Unidos

que a simples menção à fi sionomia

alheia, quando não autorizada, pode

gerar o dever de indenização. Assim

pronunciou-se a Corte Federal de Ape-

lações do Nono Circuito no polêmico

caso Vanna White vs. Samsung Eletro-

nics America, Inc. A autora da ação,

modelo que obteve notoriedade como

assistente em um programa de televi-

são denominado “Wheel of Fortune”,

processou a empresa de equipamentos

eletrônicos por fazer referência à sua

imagem em um comercial de vídeo-

cassete. O referido comercial apresen-

tava uma previsão de como seria o

vídeo-cassete no futuro, através de um

programa em formato similar àquele

em que a autora atuava, valendo-se

para tanto de um robô caracterizado

como a modelo (“The Right of One’s

Own Image: Publicity and Privacy Ri-

ghts in the United States and Spain”,

in The American Journal of Comparative

Law, vol. 47, 1999; p. 562).

106 Embargos Infringentes nº 136/91,

rel. Des. Elmo Arueira, julgado em

18.12.91 e publicado no DJ/RJ de

22.10.92; p. 180.

107 Por direito de arena entende-se o

direito de autorizar, ou proibir, a fi xa-

ção, transmissão ou retransmissão de

imagem de espetáculo desportivo, por

qualquer meio ou processo. Sobre o

tema, vide as relevantes considerações

de José de Oliveira Ascensão, ainda que

sob a égide a antiga Lei de Direito Au-

torais (Lei nº 5988/73), no seu Direito

Autoral. Rio, Renovar, 1997; pp. 502 e

ss. Recomenda-se, ainda, a leitura dos

comentários de Álvaro Melo Filho ao

artigo 42 da Lei nº 9615/98 (“Lei Pelé”),

que dispõe sobre a matéria (in Lei Pelé –

Comentários à Lei nº 9615/98, Brasília,

Brasília Jurídica, 1998; pp. 128 e ss).

Relacionada com a proteção da imagem-retrato, note-se que não se res-guarda apenas a fi sionomia da própria pessoa, mas também a forma de sua utilização por terceiros. Mesmo quando autorizada a veiculação da imagem-retrato, deve-se cuidar para que a mesma não seja inserida em circunstâncias diversas daquelas previamente avençadas.

Adicionalmente, no que tange à reprodução da fi sionomia, cumpre lem-brar que mesmo a utilização de referências à imagem-retrato de terceiros deve ser analisada com cautela, principalmente quando se lança mão de sósias, ou fi guras assemelhadas105, para parodiar, ou simplesmente se valer para fi ns lucrativos de aspectos físicos alheios.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janei-ro que a exploração não autorizada de referências à fi sionomia de terceiros, mediante a utilização de sósias, é passível de indenização, conforme a ementa assim transcrita:

Responsabilidade Civil — Direitos de Personalidade — Violação — Danos Mo-ral e Patrimonial.

Responsabilidade Civil. Violação de direitos da personalidade. Exploração do nome e por via refl exa, da imagem, de modelo fotográfi co renomado, com uso de sósia em revista com fi ns lucrativos. Artifícios de imitação para tirar proveito do poder atrativo da própria imagem de modelo de fama. Ausência de autorização e da devida remuneração. Quando a violação de direitos de personalidade deixar também conseqüências econômicas é devido o ressarcimento de ordem patrimonial cumulativo com a reparação do dano moral.”106

A proteção da imagem como direito autoral, por seu turno, conforme prevista no artigo 5º, XXVIII, (a), da Constituição Federal, visa à tutela da pessoa enquanto criadora de uma determinada obra intelectual, especialmen-te no que tange à sua participação em obras coletivas, englobando, portanto, o chamado “direito de arena”107 nas atividades desportivas.

Já o segundo perfi l do direito à imagem não se atém às características fí-sicas da pessoa, mas sim aos seus atributos identifi cáveis através das relações sociais. A denominada imagem-atributo possui por objeto o conjunto de par-ticularidades comportamentais que distinguem uma pessoa perante terceiros. Tais particularidades podem tanto abonar como desprestigiar a pessoa em referência, não possuindo, assim, qualquer identidade com a honra objetiva do sujeito.

É importante notar que a imagem-atributo nasce do próprio uso vulgar do termo “imagem”, o qual passa a signifi car não apenas a fi sionomia e a sua reprodução, mas também o conjunto de características comportamentais que identifi cam o sujeito. Nesse sentido, uma pessoa pode ser diligente ou preguiçosa, obediente ou indulgente, altruísta ou egoísta, progressista ou re-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 84

108 Apelação Cível nº 3819/91, rel.

Des. Thiago Ribas Filho, julgada em

27.02.92; fl s. 802.

109 Apelação Cível n.º 596100586,

rel. Des. Araken de Assis, julgada em

14.11.1996.

acionária: todas essas características aderem à pessoa tal qual um signo que a particulariza no trato com outrem e no desenvolvimento de suas atividades particulares ou profi ssionais.

Assim, cumpre ressaltar que as particularidades que compõem a imagem-atributo de uma pessoa serão colhidas através da reiterada observação de seu comportamento nas relações sociais. Faz-se necessário, portanto, um mínimo conhecimento da conduta de uma pessoa frente a determinadas situações para que se possa estabelecer particularidades que venham a integrar a sua imagem-atributo.

A jurisprudência já tem se utilizado desse conceito, ainda que sem se va-ler reiteradamente do termo “imagem-atributo”. Tome-se, por exemplo, o afamado caso em que a apresentadora de programas infantis Xuxa ingressou com medida cautelar intentando a proibição da comercialização de fi tas de vídeo do fi lme “Amor, Estranho Amor”, no qual a mesma protagoniza cenas de caráter erótico. À parte das considerações relativas ao direito autoral, em que discutiu se a autorização para a veiculação da obra no cinema também abrangeria a sua utilização em vídeo-cassete, pretendia a autora fazer cessar a comercialização das referidas fi tas porque as cenas do fi lme atentavam contra a imagem social construída posteriormente pela apresentadora como “rainha dos baixinhos”.

Tratando nitidamente de uma hipótese de lesão à imagem-atributo, assim descreve a situação dos autos o Desembargador Th iago Ribas Filho em seu voto:

“Após o lançamento da fi ta [no cinema], ocorrido em 1982, a 2ª Autora [Xuxa] se projetou, nacional e internacionalmente, com programas infantis na televisão, criando uma imagem que muito justamente não quer ver atingida, cuja vulgariza-ção atingiria não só ela própria como a das crianças que são o seu público, ao qual se apresenta como símbolo da liberdade infantil, de bons hábitos e costumes, e da responsabilidade das pessoas.”108

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se manifestou favoravelmente à tutela da imagem-atributo quando do julgamento de ação indenizatória movida por empregado que, ao ser despedido, foi objeto de aviso público expedido pelo ex-empregador. Assim está redigida a ementa:

“Civil. Responsabilidade civil. Despedida de relações públicas. Comunicação à praça. Ato sem motivo plausível e lesivo à imagem. Fixação do dano moral.

(...) 2. O comunicado à praça de que certo empregado foi demitido e que a em-presa não se responsabiliza por seus atos, quando a despedida foi ato rotineiro e sem motivo extraordinário ou especial constitui ato ilícito porque causa dano à imagem profi ssional da relações públicas. O dano moral deve ser fi xado considerando a neces-sidade de punir o ofensor e evitar que repita o seu comportamento.”109

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 85

110 Conforme ressaltam Oduvaldo Don-

nini e Rogério Ferraz Donnini. Imprensa

Livre, Dano Moral, Dano à Imagem, e sua

Quantifi cação à Luz do Novo Código Civil.

São Paulo, Método, 2002; p. 71.

111 Carlos Alberto Bittar. Direito de Autor

na Obra Publicitária. São Paulo, Revista

dos Tribunais, 1981; pp. 72 e ss.

112 Segundo lição de Luis Gustavo Gran-

dinetti de Carvalho, há que se distinguir

o vocábulo “publicidade” de “propagan-

da”. Assevera o referido autor que o

fenômeno da publicidade tem por fi m

o negócio, a compra e venda de produto

ou serviço, enquanto a propaganda é a

simples divulgação de idéias políticas,

religiosas, fi losófi cas, ou seja, sem ca-

ráter comercial. A diferença, portanto,

residiria no intuito de lucro presente

na obra publicitária e ausente na pro-

paganda. (in Direito de Informação e

Liberdade de Expressão. Rio, Renovar,

1999; p. 66/67).

Com efeito, a positivação da imagem-atributo no texto constitucional aponta para a sua intrínseca relação com o direito de resposta.110 Pode-se concluir, portanto que o campo principal de aplicação da tutela relativa à imagem-atributo reside na veiculação de informações pelos meios de comu-nicação, sendo assegurado quando de sua violação o respectivo direito de resposta da pessoa ofendida.

Cumpre destacar, ainda, que o reconhecimento da imagem-atributo en-contra-se em sintonia com a ampliação das hipóteses de proteção à pessoa no Direito Civil, fenômeno representativo de uma mudança do paradigma patri-monialista, predominante no Código Civil 1916, para a adoção de uma dog-mática civilista que prioriza o aspecto existencial da pessoa humana. O estudo dos direitos da personalidade ilustra como nenhuma outra seara do Direito Civil essa alteração na perspectiva do referido ramo jurídico, podendo-se elen-car a defesa da imagem-atributo como um dos vetores dessa personalização.

A utilização da imagem na obra publicitária

Para que se ilustre uma hipótese de aplicação prática da teoria relativa ao direito à imagem e seus dois perfi s, acima desenvolvida, deve ser feita uma breve análise sobre a utilização da imagem nas obras publicitárias, uma vez que essas obras lançam mão constantemente da fi sionomia de pessoas notó-rias, ou mesmo de atributos de pessoas em particular que facilitam a identifi -cação do consumidor com o produto ou serviço objeto da publicidade.

O termo “publicidade” encontra na literatura especializada as mais di-versas defi nições, dado que a mesma pode ser analisada através de aspectos artísticos, científi cos, ou, ainda, como meio de comunicação.111 Para os fi ns do presente estudo, cumpre considerar a elucidativa prescrição da Diretiva nº 84/450, do Conselho da Comunidade Econômica Européia, a qual defi ne publicidade como sendo:

“(...) toda forma de comunicação realizada no sentido de uma atividade comer-cial, industrial, artesanal ou liberal com o fi m de promover o fornecimento de bens e a prestação de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações.”

Nesse sentido, deve-se perceber que a publicidade insere-se, necessaria-mente, na atividade empresarial, atuando como forma de promoção de um produto ou serviço.112 Em um cenário de economia globalizada, então, faz-se natural a tendência à formação de grandes multinacionais voltadas à ex-ploração de publicidade. As campanhas publicitárias desenvolvidas por essas companhias muitas vezes se expandem por diversos países, mais notadamente quando tanto a empresa anunciante, que demanda a criação de uma deter-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 86

113 Como reporta Etienne Barral, jorna-

lista do semanário japonês Aera: “O alto

nível de competição entre as empresas

concorrentes nivelou, em um primeiro

momento o grau de qualidade e perfei-

ção dos produtos japoneses. Incapazes

de investir a longo prazo nas caracte-

rísticas ‘revolucionárias’ de seu último

modelo, pois logo eram alcançadas

pelas concorrentes, as empresas japo-

nesas baseiam-se, cada vez mais, na

imagem artifi cial da publicidade como

argumento de venda. Utilizar um ídolo

é, muitas vezes, a única característica

particular de um produto.” (in Otaku –

Os fi lhos do virtual. São Paulo, Senac,

2000; pp. 89/90).

114 Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto

Bittar Filho. Tutela dos Direitos da Per-

sonalidade e dos Direitos Autorais nas

Atividades Empresariais. São Paulo, Re-

vista dos Tribunais, 2ª ed., 2002; p. 58.

minada publicidade, como aquela que a desenvolverá (a agência), constituem grupos multinacionais.

Assim, diversas práticas têm sido desenvolvidas, objetivando sempre a am-pliação do alcance promocional do objeto publicitário, de forma a atingir um público cada vez mais infl uenciável e suscetível ao aperfeiçoamento contínuo de técnicas de convencimento e persuasão.

Tome-se como exemplo a reiterada prática de associar as qualidades de um determinado produto ou serviço à imagem-retrato ou à imagem-atributo de artistas ou demais pessoas de renome em campanhas publicitárias. Esse fenô-meno faz-se sentir não apenas nos países ocidentais, sendo costume também na sociedade japonesa, fortemente infl uenciada pelo culto aos ídolos tele-visivos, divulgar-se um produto com a constante ligação à imagem de uma celebridade reconhecida pelo público em geral.113

O mesmo fenômeno também pode ser notado na publicidade que explora a imagem de pessoas notórias no Brasil. Segundo constatação de Carlos Al-berto Bittar Filho:

“O fenômeno ganha vulto em nossos tempos, em que a vinculação publicitária de pessoas bem-sucedidas em suas atividades representa estímulo ao consumo mediante a atração que exercem junto ao público; assim acontece com grandes estadistas, polí-ticos, artistas, escritores, esportistas. Explora-se, nesse passo, a ânsia do espectador de se identifi car com os seus ídolos, com os seus hábitos, os seus gostos, as suas preferên-cias, levando-o, pois, ao consumo do produto anunciado, direta ou indiretamente, conforme o caso.”114

Note-se que ambos os perfi s do direito à imagem podem ser envolvidos em uma campanha publicitária, uma vez que se poderá explorar: (i) a fi siono-mia de determinada pessoa, com acento em particularidades físicas especiais que atraiam a atenção do consumidor; e/ou (ii) atributos de uma pessoa no-tória que estejam em consonância com as características do produto ou com o público-alvo da publicidade.

A exemplifi cação do uso da imagem-retrato no âmbito da publicidade não apresenta maiores difi culdades, uma vez que basta apontar as obras publicitá-rias que exploram, como visto acima, celebridades para a divulgação de produ-tos pelo simples fato de as mesmas gozarem de notoriedade. Outras hipóteses poderiam ser indicadas, como a extensiva utilização de mulheres esculturais (ou, mais notadamente, de partes específi cas de seus corpos) para a promoção de produtos cujo público-consumidor seja majoritariamente masculino.

A imagem-atributo, por sua vez, encontra grande utilidade na produção de obras publicitárias, dado que a publicidade visa a persuasão do consumi-dor através de uma operação de reconhecimento, gerando, por fi m, a necessi-dade de consumo. Com efeito, a publicidade busca proporcionar esse resulta-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 87

115 Antonio Chaves. “Responsabilidade

Civil em Matéria de Fotografi as”, in

Revista de Direito Mercantil nº 75 (jul-

set/1989); pp. 17/18.

do através da identifi cação do consumidor com determinadas qualidades do produto ou atributos da pessoa utilizada na obra publicitária.

Assim, introduzir em um comercial de curso de línguas estrangeiras para jovens, um ator que possua expressividade junto ao público juvenil cumpre a função de identifi cação do consumidor com o produto. Da mesma forma, a utilização de um jogador de futebol conhecido pelo seu temperamento explosivo, e por vezes agressivo, em um anúncio de inseticida, ressalta a sua ação efi caz e mortífera no combate aos insetos. Trata-se de uma exploração de características da pessoa, não necessariamente físicas, que podem ser notadas através de seu comportamento nas relações sociais.

A conseqüência imediata dessa utilização da imagem de uma pessoa para a promoção de um produto repousa na consideração de que a imagem pode ser utilizada com fi ns econômicos, produzindo um valor pecuniariamente apre-ciável. Sendo assim, à parte de todas as considerações sobre a sua proteção como direito da personalidade, há que se analisar os interesses patrimoniais envolvidos em questionamentos relacionados com o direito à imagem.

A utilização da imagem de terceiro para o desenvolvimento de uma obra publicitária, sem a correspondente autorização de seu titular, pode acarretar prejuízos de natureza patrimonial, devendo a pessoa ser indenizada não ape-nas pelos danos emergentes, como também pelos lucros cessantes, conforme as particularidades da situação.

Veja-se, por exemplo, o caso amplamente narrado por Antonio Chaves,115 em que uma modelo contratou com determinada empresa a divulgação de sua imagem em um anúncio a ser publicado em certa revista especifi cada no contrato. Ao perceber que as fotos produzidas para o referido anúncio passaram a ilustrar toda sorte de obras publicitárias da empresa, incluindo cartazes, posters, luminárias, etc, reconheceu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a modelo deveria ser indenizada pela utilização indevida da sua imagem.

A confi guração do prejuízo efetivo na hipótese acima abrange considera-ções sobre as conseqüências econômicas da violação à imagem, dado que a ampla divulgação das fotos contratadas gerou um vínculo no imaginário dos consumidores entre a imagem da modelo e o produto anunciado. Nessa dire-ção, cumpre notar que outras propostas para a realização de obras publicitárias poderiam ter sido obstadas pelo natural inconveniente de se utilizar a mesma modelo para a promoção concomitante de dois produtos de empresas distintas.

Todavia, as conseqüências derivadas da violação do direito à imagem não se esgotam na perspectiva patrimonial, devendo-se ressaltar a lesão de nature-za moral decorrente da simples utilização não consentida do referido bem da personalidade, conforme se analisará no item 4.2. Conforme entendimento predominante no Superior Tribunal de Justiça, para a confi guração do ato ilícito não se demanda a averiguação das conseqüências derivadas do mesmo

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 88

116 Adriano de Cupis. Os Direitos da

Personalidade. Lisboa, Livraria Morais

Editora, 1961; p. 111.

(danum in re ipsa), mas vale destacar que tal diligência será imprescindível para o estabelecimento da quantifi cação do dano a ser indenizado.

A publicidade, dessa forma, constitui campo profícuo para o estudo não apenas dos dois perfi s do direito à imagem (retrato e atributo), como também das duas formas de reparação cabíveis (patrimonial e moral).

Relações do direito à imagem com direitos da personalidade correlatos

Superada a questão relativa à conceituação da imagem e seus dois perfi s, cumpre tecer algumas considerações sobre as relações existentes entre o di-reito à imagem e demais direitos da personalidade correlatos, como a honra e a privacidade.

Se a querela em torno da autonomia do direito à imagem ocupou grande parte dos debates que se travaram na doutrina nacional e estrangeira, atual-mente entende-se como prevalecente a tese que propugna a autonomia desse direito da personalidade. No Brasil, com a promulgação da Constituição Fe-deral de 1988, fez-se constar no ordenamento jurídico positivo entendimen-to que há muito já se fazia presente na doutrina e na jurisprudência pátria pela autonomia do direito à imagem. Todavia, existem pontos de contato relevantes com outros direitos da personalidade que podem ser destacados como forma de elucidar as fronteiras do direito à imagem, defi nindo-se, as-sim, de forma nítida o seu campo de aplicação.

Adicionalmente, deve-se notar que, ao se introduzir o conceito de ima-gem-atributo, ao lado da tradicional defi nição de direito à imagem como resguardo da fi sionomia e de sua reprodução gráfi ca, a afi rmação da auto-nomia desse direito bipartido em dois perfi s torna-se oportuna para que se diferencie a imagem-atributo da chamada honra objetiva.

Direito à imagem e honra objetiva

Primeiramente, deve-se analisar as relações existentes entre o direito à ima-gem e o direito à honra, considerando-se esse último sob os prismas subjetivo e objetivo, conforme lição clássica de Adriano de Cupis, assim redigida:

“A honra signifi ca tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos ou-tros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfi m, o sentimento ou a consciência da própria dignidade pessoal.”116

Há, portanto, dois prismas para a análise do direito à honra: (i) o subjeti-vo, que enfoca o conceito que a pessoa constrói sobre si própria, ou seja, a sua auto-estima; e (ii) o objetivo, relacionado com a consideração que terceiros

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 89

117 Para alguns autores, como Edílson

Pereira de Farias, a defesa do direito à

honra foi o berço do direito à imagem,

que posteriormente ganhou autonomia

por suas particularidades (in Colisão de

Direitos. A honra, a intimidade, a vida

privada e a imagem versus a liberdade

de expressão e informação. Porto Ale-

gre: Sérgio Fabris, 2ª ed., 2000; p. 121).

118 Orlando Gomes, Código Civil – Proje-

to Orlando Gomes. Rio: Forense, 1985;

p. 21. Note-se que o autor reviu o seu

posicionamento no que tange à neces-

sidade de autorização para a divulga-

ção de imagem, uma vez que, em breve

comentário sobre o tema, constante de

edições posteriores do seu Introdução

ao Direito Civil, o mesmo já preconizava

que a imagem de uma pessoa não pode

ser exposta ou reproduzida sem o seu

consentimento, salvo nos casos excep-

cionais, como notoriedade, interesse ou

evento público. Entretanto, com relação

à possibilidade de indenização pela re-

produção indevida da imagem somen-

te quando decorrer dano à honra da

pessoa, o entendimento constante de

seu Projeto permanece reproduzido (in

Introdução ao Direito Civil. Rio, Forense,

1996, 12ª ed.; p. 156).

possuem para com determinada pessoa, resultando, assim, no que se conven-cionou denominar “bom nome”, ou “boa fama”.

Muitos foram os autores pontifi caram, como Ennecerus, na Alemanha, e Coviello, na Itália, o entendimento de que o direito à imagem estaria sub-sumido no espectro do direito à honra. Essa tese logrou congregar inúmeras adesões, uma vez que a honra constitui um aspecto moral freqüentemente ofendido quando da violação do direito à imagem.117

O mesmo entendimento é partilhado, no Brasil, por Orlando Gomes. O autor, quando da elaboração de seu projeto de Código Civil (Projeto nº 3771/66), fez inserir, no capítulo dedicado aos direitos da personalidade, mais especifi camente no artigo 36, §1º, a vinculação entre a reparação por dano à imagem e a ocorrência de lesão à honra da vítima. Assim está redigido o dispositivo em questão:

“Art. 36. Reprodução da imagem — A publicação, exposição ou utilização não autorizada da imagem de uma pessoa podem ser proibidas a seu requerimento, sem prejuízo da indenização a que fi zer jus pelos danos sofridos.

§1º A proibição só se justifi ca se da reprodução resultar atentado à honra, à boa-fama ou à respeitabilidade da pessoa.”

Comentando o citado dispositivo em estudo sobre o Projeto de sua auto-ria, Orlando Gomes defende a tese de que, a princípio, não seria necessária autorização para a divulgação de imagem alheia, sendo a mesma apenas pro-tegida em seu momento patológico, e tão somente quando da lesão à imagem derivar ofensa à honra da vítima, por exemplo. Conforme expõe o autor:

“Todo homem tem direito à própria imagem. Mas seria impraticável exigir a sua autorização prévia para a publicação. Além de constituir um estorvo, nenhum ca-bimento teria a exigência, uma vez que, a mais das vezes a reprodução é inofensiva. Inconveniente, portanto, estatuir que a publicação de sua imagem dependeria de sue consentimento. A tutela desse direito há de orientar-se no sentido de reprimir o abuso no seu exercício, permitindo-lhe que impeça a publicação, mas tão somente se, da reprodução, resultar atentado à sua honra, boa fama e respeitabilidade.”118

Deve-se atentar para o fato de que podem ocorrer situações em que a imagem da pessoa é violada, seja a imagem-retrato, ou a própria imagem-atributo, sem que se produza qualquer lesão à honra ou reputação gozada pelo indivíduo. Honra e imagem são bens jurídicos correlatos, dado que se referem ao aspecto moral da pessoa, contudo, os dois não se confundem.

Com relação à imagem-retrato, imagine-se que um determinado mode-lo fotográfi co conceda autorização para que fotos suas sejam publicadas em determinada revista. Ao se deparar com a publicação das mesmas em outro

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 90

119 No mesmo sentido, vide Cláudio

Luiz Bueno de Godoy. A Liberdade de

Imprensa e os Direitos da Personalidade.

São Paulo, Atlas, 2001; p. 45.

120 Apelação nº 97-1132, julgada em

02.02.1998 (inteiro teor disponível no

site www.tobacco.org/Documents/

documents.html, consultado em

03.05.2002).

veículo de comunicação, distinto daquele com o qual se avençou a divul-gação das fotos, está caracterizada à violação do direito à imagem. Note-se que a utilização das fotografi as para fi ns distintos daqueles contratados pode, inclusive abonar a honra do sujeito lesado em seu direito à imagem. Para que isso ocorra basta apenas que, na utilização não consentida das fotos, seja ressaltada a reputação ilibada daquela pessoa.119

Assim, pode ocorrer violação da imagem pessoal sem que a honra sofra qualquer prejuízo, gozando ainda o sujeito, muito pelo contrário, até mesmo de lisonjeiros elogios por parte do terceiro que lhe lesiona o direito da perso-nalidade em comento.

Relativamente à imagem-atributo, tome-se o exemplo de uma pessoa que adota ostensivamente uma conduta contrária ao tabagismo, trabalhando, in-clusive, em programas de conscientização sobre os males causados pelo fumo. Caso a mesma seja surpreendida com a publicação de matéria jornalística que a retrate, equivocadamente, como um fumante compulsivo, está caracteriza-da a lesão à imagem-atributo.

Nessa hipótese não há, novamente, qualquer ofensa à honra objetiva da pessoa, pois o ato de fumar, ainda que cresça atualmente a divulgação de suas conseqüências perniciosas, não implica em desonra para a pessoa. Todavia, há no caso em tela uma ofensa à imagem-atributo, pois a matéria jornalística contraria a conduta adotada pelo sujeito, retratando-o de forma ofensiva ao seu comportamento.

Ainda que não analisada sobre esse prisma conceitual quando do seu efe-tivo julgamento pela Corte de Apelações do Primeiro Circuito norte-ameri-cana, o caso George Noonan e Marie Noonan vs. Th e Winston Company e outros constitui um exemplo bastante semelhante à hipótese acima aventada, envolvendo, ainda, a violação da imagem-retrato conjuntamente com a lesão à imagem-atributo.

No caso em tela, George Noonan, um policial da cidade de Boston, que há anos dedicava a sua vida à divulgação dos males causados pelo fumo, teve a sua imagem captada, de forma não autorizada, por um determinado fotógrafo que, posteriormente, cedeu a fotografi a para uma agência de publicidade fran-cesa. Essa agência utilizou a fotografi a, que retrata o policial montado a cavalo, em um comercial de cigarros que foi divulgado em diversas revistas francesas. Ao tomar ciência do ocorrido, o policial moveu uma ação de indenização em face da empresa para a qual trabalhava o fotógrafo à época, da agência publici-tária francesa, e da empresa cujo cigarro foi objeto da publicidade.120

Têm-se, na hipótese acima, tanto a violação da imagem-retrato pela utili-zação não consentida de fotografi a que retrata pessoa captada de forma igual-mente desautorizada, como a lesão à imagem-atributo pela associação que de imediato se operou entre a postura do policial, que sempre se posicionou contra o tabagismo, e a marca de cigarros anunciada.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 91

121 Criticando a redação do mencio-

nado art. 20, por não contemplar a

autonomia do direito à imagem, vide

Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de

Pensamento, cit.; pp. 126/127; Regina

Sahm. Direito à Imagem no Direito Civil

Contemporâneo. São Paulo, Atlas, 2002;

p. 236; e Zulmar Antonio Fachin. A Pro-

teção Jurídica da Imagem. São Paulo,

Celso Bastos, 1999; p. 127.

Em síntese, percebe-se que tanto a imagem-retrato como a imagem-atri-buto se distanciam do conceito de honra, constituindo o dano à imagem uma violação a um bem da personalidade autônomo. Não há, portanto, que se atrelar necessariamente a responsabilização por dano à imagem com a ofen-sa à honra. A simples violação da imagem já impõe a devida indenização, sendo a lesão concomitante à honra apenas mais um fator a ser levado em consideração para a análise da extensão e gravidade do dano, bem como para quantifi cação da indenização cabível.

Infelizmente, o novo Código Civil brasileiro, ao se apoiar no Projeto de Orlando Gomes, produziu um retrocesso na disciplina do direito à imagem, uma vez que, segundo consta da redação do artigo 20:

“Salvo se autorizadas ou necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publica-ção, a exposição, ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber se lhe atingirem a honra, a boa-fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fi ns comerciais.”

O artigo acima reproduzido vincula a tutela do direito à imagem à neces-sidade de lesão à honra ou à utilização comercial da imagem obtida de forma desautorizada. Nesse particular, a doutrina já se manifestou pela total incon-veniência da redação do art. 20 do Código Civil, que não contempla todo o trabalho doutrinário e jurisprudencial desenvolvido por décadas, no País, em prol da afi rmação — hoje reconhecida de forma unânime — do direito à imagem.121

Adicionalmente, a redação do artigo parece conferir maior importância para as situações excepcionais em que a imagem poderá ser utilizada por terceiros (autorização, administração da justiça e ordem pública), do que afi r-mar uma tutela positiva do direito à imagem.

A desventura do artigo em que se cuida do direito à imagem no novo Có-digo Civil não obsta, todavia, o entendimento pela autonomia do direito à imagem e a sua reparação sem que seja necessária a violação de outro direito da personalidade.

Dessa forma, outra não pode ser a conclusão do intérprete senão a de que o dispositivo supracitado não possui força para restringir a ampla proteção constitucionalmente consagrada. Ainda que ausente a ofensa à honra, perma-nece o direito de exigir a indenização devida pelo dano oriundo da utilização não autorizada da imagem. Caso contrário, estar-se-ia sepultando a autono-mia desse direito da personalidade, o que, certamente, não foi o desiderato do legislador quando cuidou de inserir no texto do novo Código Civil um capítulo inteiro dedicado aos direitos da personalidade, e dedicar um de seus artigos ao tratamento do direito à imagem.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 92

122 A tradução portuguesa da obra de

De Cupis optou por traduzir o original,

em italiano, “riservatezza” por “resguar-

do”, pelo que a Seção II do livro citado

denomina-se “Direito ao Resguardo”.

123 Adriano de Cupis. Os Direitos da Per-

sonalidade, cit.; pp. 129/130.

124 Luiz Alberto David Araújo. A Proteção

Constitucional, cit.; p. 39.

Não obstante, urge que se afi rme a prevalência do tratamento concedido ao direito à imagem pelo texto constitucional — que o positivou a sua au-tonomia — frente à redação equívoca do art. 20 do Código Civil, para que se evite que um retrocesso de pelo menos trinta anos no desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do assunto no País.

Direito à privacidade

O direito à privacidade também possui relações estreitas com o direito à imagem, pois ambos partem do pressuposto de que um bem da personali-dade individual deve ser resguardado com relação à intromissão de terceiros, contudo, também nesse caso, os objetos de proteção são distintos.

Ao tratar do direito à privacidade, denominado em sua obra de “direito ao resguardo”122, Adriano de Cupis defi ne “resguardo” como o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a ela somente. Dessa forma, o direito à imagem fi guraria como manifestação do direito ao resguardo, pois a utilização indevida da imagem de outrem seria uma invasão na perspectiva da discrição pessoal.123

Existe, efetivamente um ponto de contato entre os dois direitos, princi-palmente no que tange à proteção do direito à imagem nos Estados Unidos, dado que a apropriação de imagem alheia (appropriation) encontra-se, no en-tendimento da doutrina norte-americana, incluída como forma de violação do chamado “right to privacy” ou “right to be let alone”.

Todavia, a proteção conferida à imagem se afasta da atinente à privacida-de, pois o direito à imagem possui por escopo preservar especifi camente a fi sionomia da pessoa e a sua reprodução, bem como os atributos que a carac-terizam no trato social. Quando se autoriza a divulgação da imagem pessoal para uma fi nalidade e a mesma é utilizada para fi m diverso não há lesão à privacidade, pois a divulgação do espectro pessoal já havia sido consentida. Em tais hipóteses o bem da personalidade lesionado é a imagem da pessoa.

A usurpação da imagem também representaria, por sua vez, uma forma de violar a imagem alheia sem lhe ferir a privacidade, pois ao se valer da imagem de terceiro como sendo sua, o bem jurídico atacado pelo usurpador é apenas a imagem.124

Aspectos da responsabilidade civil por dano à imagem

Superadas as questões de cunho conceitual atinentes ao direito à imagem, e afi rmada a sua plena autonomia frente aos demais direitos da personalida-de, cumpre analisar alguns aspectos controvertidos sobre a responsabilidade civil decorrente de dano à imagem.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 93

125 Antonio Jeová Santos, Dano Moral

Indenizável, cit.; p. 388.

Ressalta Antonio Jeová Santos que o direito à imagem possui um duplo aspecto, podendo ser enfocado em sua natureza positiva ou negativa. O as-pecto positivo está consubstanciado na faculdade do indivíduo reproduzir ou autorizar a reprodução de sua própria imagem. O aspecto negativo, por sua vez, corporifi ca a possibilidade de o indivíduo obstar a reprodução indevida de sua imagem.125

Entretanto, é válido lembrar que nem sempre será possível à pessoa cuja imagem é captada ou divulgada impedir a realização de tais atividades. O aspecto negativo do direito à imagem deve ser analisado à luz de determi-nadas circunstâncias que retiram o caráter de ilicitude do ato de captação e divulgação da imagem alheia, sendo vedado ao titular do direito à imagem impedir a sua projeção.

Outrossim, salvo nas hipóteses em que são permitidas a captação e a divul-gação da imagem sem o prévio consentimento de seu titular, haverá ofensa ao direito da personalidade em tela, sendo devida a reparação por danos morais e patrimoniais, conforme o caso.

Da violação do direito à imagem podem surgir danos materiais e morais

A violação do direito à imagem ocorre quando os aspectos fi sionômicos ou os atributos sociais de uma pessoa são utilizados por terceiros sem que seja concedida a devida autorização. Em tais hipóteses, caso não estejam presen-tes as causas excludentes da ilicitude da utilização inconsentida da imagem, confi gura-se de plano a lesão a um direito da personalidade, gerando, assim, a responsabilidade civil por dano moral do agente, podendo ainda advir prejuí-zos de natureza patrimonial para a vítima, o que demandará, adicionalmente, a indenização por danos materiais.

É importante frisar que da mesma lesão pode advir o dever de reparação pelas duas categorias de dano, sendo ambas autônomas e consideradas de modo separado para fi ns de quantifi cação do prejuízo a ser indenizado.

Quando uma pessoa contrata com terceiros a utilização de sua imagem, ela está dispondo de um direito da personalidade, fazendo valer a peculiari-dade do direito à imagem consistente na faculdade de se permitir a sua expo-sição, mediante remuneração. Assim, o direito à imagem, diferentemente da maior parte dos direitos da personalidade, pode ser manejado pelo seu titular como forma de auferir vantagens patrimoniais.

Dada a sua singularidade, não é permitido que a imagem de terceiro seja explorada sem o respectivo consentimento do mesmo por dois motivos: (i) porque a imagem é um bem integrante da personalidade, possuindo assim um caráter existencial, ao operar a projeção da fi sionomia e dos atributos compor-tamentais da pessoa no meio social; e (ii) porque, ao lado seu caráter extrapa-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 94

trimonial, a pessoa pode dispor de sua imagem, autorizando a sua exposição em casos particulares, recebendo, em contrapartida, a devida remuneração.

A partir dos dois motivos acima elencados para a vedação da projeção desautorizada da imagem, percebe-se a sua correlação imediata com as duas modalidades de responsabilidade civil. Dessa forma, deve o titular da ima-gem indevidamente captada ou veiculada ser indenizado por danos morais, uma vez que a imagem é um bem da personalidade, podendo ainda a sua lesão implicar em ofensa a outros direitos da personalidade, como a honra e a privacidade; e por danos patrimoniais, quando a violação proporcionar prejuízos de ordem pecuniária.

O dano moral por ofensa ao direito à imagem (danun in re ipsa)

A confi guração do dano patrimonial originado de lesão do direito à ima-gem não comporta maiores perplexidades de natureza teórica, uma vez que se compreende que a veiculação desautorizada da imagem pessoal pode ge-rar prejuízos de ordem pecuniária, cabendo a indenização tanto pelos danos emergentes como pelos lucros cessantes.

Sendo o direito à imagem um direito da personalidade peculiar, por per-mitir ao seu titular dispor, em certa medida, do mesmo, pode-se facilmente entrever que quando se capta ou se projeta a imagem pessoal sem que se pro-ceda à requerida autorização, a pessoa, em regra, sofre uma perda de natureza patrimonial, pois está deixando de auferir os ganhos pecuniários que a expo-sição de sua imagem lhe renderiam, caso a sua autorização fosse solicitada.

Outros danos de natureza patrimonial podem surgir da utilização desau-torizada da imagem, como a exposição da imagem pessoal que venha a obstar futuras autorizações para a projeção da fi sionomia ou a utilização comercial de determinados atributos da pessoa. Trata-se da hipótese, já mencionada, em que a fi sionomia de uma modelo resta vinculada ao produto anunciado, sem que se busque o seu consentimento quanto à divulgação em tais circunstâncias.

Já o dano moral decorrente de violação do direito à imagem tem motivado reiteradas discussões em sede doutrinária e jurisprudencial. A principal con-trovérsia diz respeito ao entendimento de que o dano moral decorreria dire-tamente da lesão ao direito à imagem, gerando o dever de indenizar apenas pela utilização desautorizada da imagem de terceiro.

O entendimento de que o dano moral emergente da infração ao direito à imagem resulta da própria captação ou divulgação não consentida da ima-gem está lastreado na compreensão de que o direito à imagem é um direito da personalidade autônomo, independendo para a sua violação que seja igual-mente perpetrada ofensa a qualquer outro direito da personalidade.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 95

126 Ricardo Luiz Lorenzetti, Fundamen-

tos do Direito Privado, cit.; p. 486.

127 Apelação Cível nº 91.030.4/2,

rel. Des. Testa Marchi, julgado em

11.05.2000; in RT nº 782 (dez/2000);

pp. 236/238. O mesmo Tribunal já

adotou entendimento diametralmente

contrário, decidindo que a divulgação

desautorizada de imagem, que não

cause humilhação ou exponha a pessoa

de modo ridículo ou ofensivo, não gera

o dever de indenizar por danos morais.

Da prática pura e simples de ato ilícito

não poderia ser presumida a existência

de dano moral. (in Apelação Cível nº

244316-1/6-00, rel. Des. Aldo Maga-

lhães, julgado em 01.04.1996; in RT

730 (ago/96); pp. 220/221).

128 Antonio Jeová Santos, Dano Moral

Indenizável, cit.; pp. 387/388.

129 Nesse sentido, vide Carlos Alberto

Bittar. Reparação Civil por Danos Morais.

São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994,

2ª ed.; pp. 202/205

Com efeito, o reconhecimento de que a simples utilização desautorizada da imagem gera o dever de indenizar ratifi ca o entendimento de que o direito à imagem constitui um direito da personalidade autônomo, não se fazendo necessário a análise sobre a possível lesão a outros direitos da personalidade, como a honra ou a privacidade. Conforme assevera Ricardo Luiz Lorenzetti, a divulgação de imagem não consentida:

“(...) pode confi gurar-se um fato antijurídico, ainda que não exista atentado à honra, ou à identidade dinâmica, ou à privacidade, mas em forma autônoma pela utilização não autorizada da imagem.”126

Dessa forma, a mera utilização inconsentida da imagem gera o dever de indenizar por danos morais, pouco importando que a projeção da imagem tenha se dado de forma não injuriosa, não atentatória à reputação da pessoa. Conforme ressaltado anteriormente, o próprio ato ilícito pode até mesmo abonar a conduta do titular da imagem utilizada, tecendo elogios e louvando o seu bom caráter. Nada disso afasta o dever de indenizar.

Nessa direção já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Direito à imagem — Indenização — Ato ilícito — Publicação não autorizada de fotos de renomado ator de televisão em catálogo promocional de empresa de ves-tuário — Reparação devida, mormente se houve a intenção de explorar e usufruir vantagem — Irrelevância de que tal divulgação não tenha sido desprestigiosa.”127

Uma vez caracterizado o dano moral pela utilização indevida da imagem, a ofensa aos demais direitos da personalidade apenas infl ui na quantifi cação do dano a ser indenizado. A averiguação da ofensa à honra, por exemplo, quando da violação do direito à imagem, cumpre o papel de infl uir em prol da vítima na quantifi cação da indenização de natureza moral que lhe será devida, onerando a carga indenizatória que recai sobre o agente do evento ilícito previamente confi gurado.

Sobre a inclusão da ofensa a outros direitos da personalidade na quantifi -cação do dano moral por utilização desautorizada da imagem alheia, assevera Antonio Jeová Santos que: “[s]e, de par à violação do direito à imagem, auto-nomamente considerado, advier lesão à intimidade, à honra ou à identidade pessoal, todas essas circunstâncias deverão ser sopesadas pelo juiz no momento de estimar o quantum indenizatório, devendo aumentá-lo, porque outros bens personalíssimos foram atingidos, além da indevida captação da imagem.”128

Têm-se assim que o dano causado à imagem constitui uma hipótese de dano in re ipsa, ou seja, o dano moral ocorre sem que se faça necessária uma incursão pelos prejuízos efetivamente causados pela atividade lesiva.129 A ave-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 96

130 Sergio Cavalieri Filho. Programa de

Responsabilidade Civil, cit.; p. 80.

131 Recurso Especial nº 138.883/PE, rel.

Min. Carlos Alberto Menezes Direito,

julgado em 04.08.1998, in Revista

do Superior Tribunal de Justiça nº 116

(abr/99); pp. 215/220.

riguação relativa ao resultado da violação do direito à imagem apenas será necessária para a quantifi cação da verba indenizatória.

Ao comentar a teoria do dano moral in re ipsa, vale transcrever o entendi-mento de Sergio Cavalieri Filho, segundo o qual:

“Nesse ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. (...) Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofen-sivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum; provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou a sua imagem vilipendiada, nada mais ser-lhe-á exigido provar, por isso que o dano moral está in re ipsa; decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano moral.”130

A jurisprudência pátria vem, paulatinamente, adotando esse entendimen-to, ainda que de forma não uniforme. Isto se dá na medida em que diversas decisões tem sido proferidas no sentido de que o dano, na hipótese de lesão à imagem, surge com a sua simples utilização desautorizada. Todavia, nem sempre se explicita a que título será realizada a indenização: se por danos materiais, ou morais.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 138.883/PE, esposou a tese do dano in re ipsa para indenização de violações à imagem. Segundo consta da redação do acórdão:

“Cuidando-se de direito à imagem, o ressarcimento se impõe pela só constatação de ter havido a utilização sem a devida autorização. O dano está na utilização indevida para fi ns lucrativos, não cabendo a demonstração do prejuízo material ou moral. O dano, neste caso, é a própria utilização para que a parte aufi ra lucro com a imagem não autorizada de outra pessoa. Já o colendo Supremo Tribunal Federal indicou que a ‘divulgação da imagem da pessoa, sem o seu consentimento, para fi ns de publicidade comercial, implica em locupletamento ilícito à custa de outrem, que impõe a reparação do dano.’”131

No julgamento do Recurso Especial nº 23.575/DF, no qual se pleiteava danos materiais e morais em decorrência de acidente de trânsito, o entendi-mento de que o dano moral se origina da própria lesão terminou por preva-lecer, conforme consta do voto do relator:

“A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação (danum in re ipsa). Verifi cado o evento danoso, surge a necessidade da reparação, não

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 97

132 Recurso Especial nº 23.575/DF, rel.

Min. César Asfor Rocha, julgado em

09.06.1997; in RSTJ nº 98 (out/97); pp.

270/276.

133 Agravo Regimental no Agravo nº

162.918/DF, rel. Ministro Barros Mon-

teiro, julgado em 06.06.2000; in Revista

de Direito Privado nº 06 (abr-jun/2001);

pp. 257/258.

134 Recurso Especial nº 46420-0/SP, rel.

Ministro Ruy Rosado Aguiar, julgado

em 12.09.1994; in RSTJ nº 68 (abr/95);

pp. 358/366.

135 Maria Celina Bodin de Moraes, Danos

à Pessoa Humana, cit.; p. 161.

havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa).”132

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se pela ocorrência de dano moral a ser indenizado pelo simples ato de utilização in-consentida da imagem. Do julgamento proferido pela Quarta Turma, colhe-se a seguinte ementa:

“Direito à imagem — Violação — Ação de reparação de danos morais.“Evidenciada a violação do direito à imagem, resulta daí o dever de indenizar os

danos morais sofridos, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo.“A pretensão de exame de cláusula contratual e de aspectos fáticos-probatórios é

inviável em sede de recurso especial (súmulas 05 e 07 do STJ)”133

Expressando de forma contundente esse entendimento, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em voto proferido no Recurso Especial nº 46.420-0/SP, explicita que naqueles autos:

“[a]legou-se a inexistência de prejuízo, indispensável para o reconhecimento da responsabilidade civil das demandadas. Ocorre que o prejuízo está na própria violação, na utilização do bem que integra o patrimônio jurídico personalíssimo do titular. Só aí já está o dano moral. Além disso, também poderia ocorrer o dano patrimonial, pela perda dos lucros que tal utilização poderia acarretar, seja pela utilização feita pelas demandadas, seja por inviabilizar ou difi cultar a parti-cipação em outras atividades do gênero.”134

Dessa forma, o dever de indenizar por danos morais surge com a simples utilização desautorizada da imagem alheia. Os danos patrimoniais decorren-tes serão analisados em um segundo momento, sendo a ofensa a demais di-reitos da personalidade igualmente perquirida para que se determine o valor a ser indenizado, também a título de danos morais.

Oportunamente, cumpre destacar que, segundo aponta Maria Celina Bodin de Moraes, a teoria do dano moral in re ipsa, apesar de sua ex-pressiva adoção no Superior Tribunal de Justiça, deve ser aplicada com a cautela. Isso porque a sua adoção irrestrita pode incentivar a propagação de um entendimento subjacente “de que o dano moral sofrido pela vítima seria idêntico a qualquer evento danoso semelhante sofrido por qualquer vítima.”135

Sendo assim, a teoria do dano in re ipsa pode gerar repercussões prejudi-ciais para a tutela integral da pessoa humana, e particularmente para o direito à imagem, caso se entenda que, se o dano moral deriva da lesão a direito da personalidade, toda lesão semelhante poderá ser reparada de acordo com a

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 98

136 Recurso Especial nº 100.764/RJ, rel.

Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em

24.11.1997, in RT nº 752 (jul/98); pp.

192/196.

137 Apelação Cível nº 91.688-1, rel. Des.

Jorge Tannus, julgada em 18.02.88; in

RT 629 (mar/88); pp. 106/107.

mesma quantifi cação, perdendo-se o lastro com as circunstâncias dos casos concretos e com a individualidade de cada vítima.

A responsabilidade independe do resultado fi nanceiro decorrente da violação

O resultado fi nanceiro obtido pelo agente causador da lesão ao direito à imagem não é relevante para determinar a procedência ou a improcedência da respectiva indenização. Auferindo um lucro retumbante, ou amargando um prejuízo lastimável, caberá ao titular da imagem indevidamente utilizada pleitear a indenização pelos danos sofridos.

Não se requer, assim, que o ofendido demonstre que o agente lucrou efe-tivamente com a divulgação não consentida da sua imagem, podendo o mes-mo sofrer até mesmo prejuízo quando da exploração almejada.

Explicita o Ministro Rui Rosado de Aguiar que não se pode confundir o dano experimentado pelo indivíduo lesado com o resultado da lesão em termos econômicos para o infrator. Em julgamento de caso envolvendo a pu-blicação da imagem de jogadores de futebol em álbum de fi gurinhas sem os respectivos consentimentos, cuja relatoria coube ao referido Ministro, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

“Direito à Imagem — Ação indenizatória — Imagem indevidamente incluída em publicação — Limitação do valor do dano sofrido pelo titular do direito ao lucro que uma das infratoras possa ter sofrido — Inadmissibilidade.”

“O valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevidamente incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratoras possa ter auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do infrator, que inclusive pode ter sofrido prejuízo com o negócio.”136

Adicionalmente, cumpre lembrar que, se o resultado econômico da proje-ção desautorizada da imagem não determina o dever de indenizar, em nada altera a conformação da responsabilidade civil o fato de não possuir a divul-gação intuito de lucro. Nesse sentido, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Direito de Personalidade — Direito à própria imagem — Violação — Utili-zação de fotografi a em editorial de revista dirigido a determinada classe de consumi-dores sem autorização do fotografado — Inadmissibilidade — Irrelevância de não haver lucro direto nessa divulgação — Indenização devida — Verba a ser arbitrada por perito ligado ao ramo publicitário”137

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 99

138 Embargos Infringentes nº 177/95,

rel. Des. Wilson Marques, julgado em

28.02.1996, in RT nº 732 (out/96); pp.

361/364.

Da mesma forma, pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em processo no qual a defesa apresentada pela ré, acusada de divul-gar foto da autora sem o seu consentimento, postulava que a revista em que se deu o ato ilícito não possuía fi nalidade lucrativa:

“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Reprodução desauto-rizada de fotografi a em revista — Indenização devida.”

“A pessoa fotografada tem direito autônomo à indenização, pelo uso inconsentido da sua imagem, ainda quando a publicação da fotografi a tenha sido feita sem fi na-lidade lucrativa.”138

Conclui-se, portanto, que o resultado econômico obtido pelo agente do ato ilícito não determina o dever de indenizar o titular a imagem utilizada de forma inconsentida, podendo até mesmo o infrator não visar a obtenção de lucro com a violação do direito da personalidade em tela.

Autorização para a veiculação da imagem

A veiculação da imagem pode ser autorizada pelo seu titular de forma expressa ou tácita. Em ambas as hipóteses, o consentimento relativo à dispo-sição do direito da personalidade deve restar extreme de dúvidas quanto a sua existência, validade e amplitude.

A oportunidade em que o consentimento poderá ser proferido tanto pode ocorrer previamente como posteriormente à utilização da imagem em si. Apesar de ser mais usual a obtenção da autorização anteriormente à efetiva captação/divulgação da imagem — o que é recomendável, por um dever de cautela, já que se está dispondo de um direito da personalidade — a ratifi -cação do ato por parte do titular da imagem é possível, se as circunstâncias assim o permitirem.

O consentimento presumido é, sem dúvida, a questão mais controvertida no que tange à autorização para a utilização da imagem por terceiro. Essa forma de consentimento poderá ser obtida através do silêncio do titular do direito à imagem quando lhe for apresentada a oportunidade para manifestar a sua discordância. A análise das circunstâncias pertinentes à hipótese sempre se fará necessária para que se possa evitar que atos ilícitos sejam chancelados pelo Di-reito, admitindo-se a existência de uma autorização que, na verdade, inexistiu.

Nesse particular, bem decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no seguinte julgado:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 100

139 Tribunal de Justiça de Minas Gerais,

3ª Câmara Cível, rel. Des. Tenisson Fer-

nandes, j. em 04.05.94. Vide Revista

dos Tribunais nº 715 (mai/1995); pp.

248/253.

140 Antonio Chaves, Tratado de Direito

Civil, t.I, cit.; p. 541.

141 Vide, dentre outros: Caio Mário da

Silva Pereira, Direito Civil – Alguns As-

pectos da sua Evolução. Rio, Forense,

2001; p. 30 e Antonio Chaves, Tratado

de Direito Civil, t.I, cit.; p. 542.

142 Recurso Extraordinário nº 115.838/

SP; rel. Min. Carlos Madeira, j. em

10.95.1988. Vide Revista Trimestral de

Jurisprudência nº 125; pp. 1338/1343.

143 In JTJ-Lex nº 147/120.

“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Violação”“Não constitui ofensa ao direito à própria imagem a reprodução de fotografi a,

para fi ns publicitários, havida com o consentimento do interessado, ainda que tácito, podendo ser assim considerado ante o silêncio deste, corroborado por indícios e cir-cunstâncias que autorizem presumir a sua aquiescência.”139

Da mesma forma, a pessoa que aparece em público acompanhada de um indivíduo de notoriedade no meio social concede autorização tácita no que concerne à exposição de sua imagem. Conforme ressaltado por Antonio Cha-ves, a notoriedade do acompanhante resulta de imediato na aquiescência das conseqüências que advêm de seu amplo reconhecimento popular, tais como a exceção relativa à utilização de sua imagem com fi nalidade informativa.140

No que concerne à interpretação do consentimento, cumpre destacar que a doutrina e a jurisprudência, em uníssono, proclamam que o consentimento para veiculação da imagem deve sempre ser interpretado de forma restriti-va, sendo vedado ampliar o escopo da disposição de um bem pertencente à esfera da personalidade. Conseqüentemente, o consentimento dado para a veiculação da imagem no cinema não pode ser estendido para a sua utilização através de outros meios, como a televisão, por exemplo.141

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a questão, em caso no qual uma modelo posou para a elaboração de peças publicitárias de uma empresa de tecidos, tendo sido as fotos utilizadas, anos depois, em revista especializada em tricot.142

Deve-se atentar ainda para as hipóteses de disposição gratuita do direito à imagem. Nesses casos a jurisprudência deve apreciar as autorizações com rigor para impedir que o produto do trabalho consentido sem repercussão fi nanceira não fi que para todo o sempre disponível ao uso de terceiros, po-dendo o titular da imagem retroceder em sua concessão.

Enfrentando um caso símile à hipótese acima, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que:

“O direito à imagem é um direito personalíssimo, que permite utilização pa-trimonial pelo próprio titular ou por terceiro, mediante cessão gratuita ou onerosa do direito à utilização (não do próprio direito à imagem). Mas a cessão gratuita fi ca sempre sob suspeita, pois, como se sabe, o Direito tem cautela especial em regrar os atos de liberalidade, como se vê, por exemplo, das hipóteses que toleram o arre-pendimento; que proíbem os contratos preliminares; que admitem a revogação; que impõem a interpretação restritiva, etc. E tal cautela mais se justifi ca quando está em jogo um direito personalíssimo.”143

Afora a hipótese de autorização para a divulgação da imagem, existem casos em que a utilização da imagem da pessoa por terceiros será permitida,

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 101

144 Sobre a celeuma instaurada no veló-

rio do pintor Di Cavalcanti pelo cineasta

Glauber Rocha, que pretendia fi lmar

a cerimônia para a inclusão em docu-

mentário que produzia à época sobre a

vida do pintor, vide o relato de Antonio

Chaves (in Tratado de Direito Civil, t.I.,

cit.; p. 550/552).

mesmo sem o seu consentimento. Em tais circunstâncias, a própria conduta prévia do indivíduo cria uma exceção à ilicitude do ato de captação/utilização da imagem. Trata-se dos casos de pessoas que, por ocuparem cargos públi-cos, possuem a sua esfera de proteção do direito à imagem reduzida, quando atrelada a fi nalidades informativas, ocorrendo o mesmo com pessoas notórias de toda a sorte. A decisão sobre a ocorrência ou não de violação de imagem nesses casos dependerá de uma análise mais cuidadosa sobre a colisão entre os direitos de imagem e liberdade de expressão, tratada no capítulo seguinte.

O direito à imagem do de cujus

A legislação brasileira, assim como a internacional, dispõe sobre a legitimi-dade de parentes e cônjuges para reclamar indenização por ofensa à imagem de pessoa falecida. No centro dessa questão encontra-se a problemática de se reconhecer a possibilidade de extensão dos efeitos dos direitos da personali-dade para além da própria existência de seu titular.

O debate ganha relevância quando contextualizado em situações nas quais a imagem de pessoa falecida é explorada, por vezes, com abuso ou exagero. Diversos são os casos em que tais desmedidas chegam a ocorrer no próprio velório, como se passou nas cerimônias fúnebres do general alemão Bismarck e do pintor brasileiro Di Cavalcanti.144

O Código Civil trata dessa legitimação em dois momentos distintos: (i) a primeira vez no parágrafo único do art. 12, cujo caput dispõe sobre a tutela dos direitos da personalidade; e (ii) a segunda no parágrafo único do art. 20, que trata do direito à imagem, conforme já comentado.

O parágrafo único do art. 12 apresenta enunciado mais abrangente, não apenas por dispor sobre a legitimidade para reclamar por lesões aos direitos da personalidade de modo geral (e não apenas ao direito à imagem), mas também por constar do rol de legitimados qualquer parente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau. Assim está redigido o mencionado dispositivo legal:

“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a me-dida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.”

Já o parágrafo único do art. 20 está exclusivamente relacionado com a tu-tela do direito à imagem, sendo apenas legitimados o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 102

145 In Ricardo Fiúza (coord). Novo Código

Civil Comentado. São Paulo, Saraiva,

2003; p. 33.

146 In “Direito à Própria Imagem - II”,

Revista dos Tribunais nº 444 (out/72);

pp. 26/27. No mesmo sentido, e já

analisando a questão à luz do texto do

novo Código Civil, vide os comentários

de Maria Helena Diniz, in Ricardo Fiúza

(coord.) Novo Código Civil Comentado,

cit.; p. 25; e Renan Lotufo, Código Civil

Comentado, vol. I, cit.; p. 81.

147 In A Proteção Constitucional, cit.; pp.

87/88.

148 In O Direito à Imagem, cit.; p. 122.

149 In “Lições de Direitos da Personali-

dade”, Boletim da Faculdade de Direito,

Coimbra: Universidade de Coimbra,

1991; p. 191.

“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proi-bidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fi ns comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”

Em decorrência dessa duplicidade, quase total, entre os dois parágrafos, Maria Helena Diniz propôs, em seus comentários ao texto do Código Civil, que o parágrafo único do art. 20 fosse retirado.145 Todavia, enquanto nenhu-ma alteração legislativa for efetuada, vigoram no País dois regimes distintos no que concerne à legitimação para defesa de direitos da personalidade do de cujus, sendo o rol mais restrito com relação ao direito à imagem.

No campo teórico, diverge a doutrina sobre a natureza do direito pleitea-do pelos herdeiros do falecido. Sustenta Walter Moraes que o direito à ima-gem, enquanto direito da personalidade, extingue-se com a morte da pessoa. Aos herdeiros caberia um direito sobre as reproduções, de natureza imaterial. Assim, os parentes e demais pessoas designadas defenderiam não um direito cuja titularidade pertencesse ao de cujus, mas sim um direito próprio.146

Entendimento semelhante é partilhado por Luiz Alberto David Araújo, segundo o qual o direito à imagem surge com o nascimento da pessoa e se extingue com o seu falecimento. Os herdeiros do de cujus apenas se valeriam da imagem da pessoa falecida como suporte para o pleito indenizatório de-corrente de lesão a seus próprios direitos da personalidade.147

Para outra parcela da doutrina, seria possível aos herdeiros gozar de legi-timidade para preservar a imagem do de cujus, defendendo não um direito próprio, mas sim o próprio direito da pessoa falecida. Há, para esses autores, uma exceção ao princípio mors omnia solvit, estendendo a efetividade do di-reito à imagem para além do término da vida de seu titular.

Dessa forma, ressalta Jacqueline Sarmento Dias que existe a possibilidade de transmissão aos herdeiros do direito à imagem da pessoa falecida.148 Diogo Leite de Campos, por seu turno, defende a hipótese de transmissão do direito à imagem aos herdeiros, não atuando os mesmos em interesse próprio, mas sim em nome da pessoa falecida. A aquisição do direito post-mortem seria ca-racterizada, portanto, como uma manifestação da personalidade jurídica do de cujus e dos interesses que lhe estão subjacentes.149

Ao largo dessa discussão teórica, é importante notar que na positivação da legitimidade dos herdeiros para a defesa da imagem de pessoa falecida, ambos os parágrafos referidos não mencionam a inserção do companheiro, ou companheira, do de cujus no rol dos legitimados para esse fi m. A omissão legislativa, nesse particular, deverá ser suprida pela interpretação favorável à

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 103

150 Vide Silvio de Salvo Venosa. Direito

Civil, vol. I. São Paulo, Atlas, 3ª ed.,

2003; p. 154.

151 Vejam-se alguns exemplos de notí-

cias publicadas em jornais ou revistas

nos últimos anos: “Foto de jovem em

busca de namorado vira anúncio por-

nô na Web” (Folha de São Paulo - in

http://www1.folha.uol.com.br/folha/

informatica/ult124u11571.shtml -

acessada em 30.07.2005); “Pesadelo

na Internet: Jovem posa nua para na-

morado e vê sua imagem ser explorada

pela mídia mundial” (Revista Isto É - in

http://www.zaz.com.br/istoe/com-

port/1999/12/16/009.htm - acessada

em 30.07.2005); “Big Brother baixa na

festa da FGV: fotos de casais em cenas

de namoro e sexo são divulgadas pela

Internet� (Jornal Último Segundo,

veiculado pelo provedor IG - in http://

ultimosegundo.ig.com.br/useg/brasil/

artigo/0,,920373,00.html - acessada

em 30.07.2005); “Ex-ministra da eco-

nomia aparece num site à procura de

um companheiro, nega ter sido ela,

mas não retira o anúncio da Internet”

(Revista Isto É Gente - in http://www.

terra.com.br/istoegente/93/reporta-

gem/zelia_cardoso.htm - acessada em

30.07.2005); e “Modelos brasileiras

são vítimas de sites de garotas de pro-

grama” (Folha de São Paulo - in http://

www1.folha.uol.com.br/folha/infor-

matica/ult124u11779.shtml - acessada

em 30.07.2005).

inclusão dessas fi guras como pessoas legitimadas para requerer a tutela do direito à imagem do companheiro, ou companheira, já falecido.150

A violação da imagem na Internet

Uma última consideração deve ser feita sobre a tutela do direito à ima-gem na Sociedade da Informação, mais especifi camente na rede mundial de computadores. A Internet possibilita uma ampliação inédita no alcance da comunicação entre pessoas, acelerando o tempo de resposta a mensagens e propiciando que a informação constante de uma página eletrônica seja aces-sada por pessoas em qualquer lugar do mundo.

Essa peculiaridade da dinâmica de comunicação entre pessoas na Socieda-de da Informação apresenta um impasse relevante — e ainda por solucionar — no que toca à proteção da imagem: a insufi ciência de meios técnicos para obstar a propagação do dano e prover a vítima com a reparação integral da violação sofrida em seu direito da personalidade.

Cumpre então explicitar em que consiste o impasse acima referido. A me-lhor forma de se compreender o tema parece ser através da análise de alguns casos concretos que chegaram à imprensa envolvendo a utilização não con-sentida da imagem alheia na rede mundial de computadores.151

Nessas situações, uma ou mais fotos de uma pessoa foram divulgadas na Internet sem o seu consentimento, estando geralmente associadas a sites de conteúdo adulto.

Abstraindo-se as particularidades de cada caso, é importante que se inda-gue qual a solução é disponibilizada pelo Direito para que o dano à imagem, se existente em tais circunstâncias, seja reparado.

O manejo da responsabilidade civil no caso em tela não atende ao prin-cípio da ampla reparação da vítima, pois apenas lhes proporcionaria uma indenização pecuniária em face de quem efetivamente divulgou as fotos na rede mundial de computadores. E ainda que a decisão judicial que condene os eventuais responsáveis pelo dano os obrigue a cessar a prática lesiva, seja com a interrupção do envio de mensagens eletrônicas, ou com a retirada do ar dos sites que divulgam as fotos, o dano à imagem persiste.

Note-se que uma vez enviado uma mensagem eletrônica, o remetente não possui meios de impedir o seu encaminhamento posterior por parte do desti-natário inicial para novos destinatários. Assim, o impasse mencionado ante-riormente mostra-se evidente quando, ainda que a vítima obtenha reparação em face do responsável original pela divulgação do material ilícito, o dano à sua imagem continua a ser agravado em cada encaminhamento da mensagem eletrônica lesiva.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Acrescente-se que, em se tratando da rede mundial de computadores, o material ilícito pode transitar em questão de segundos por diversos países, alcançando o dano proporções cujo tratamento ainda carece de maior discus-são de natureza jurídica.

Com essa breve refl exão encerra-se o capítulo sobre a tutela de direito à imagem na Sociedade da Informação, expondo-se como a mudança nas práticas de comunicação entre pessoas e na transmissão de dados demandam uma revisão em conceitos já consolidados para a mais ampla proteção da imagem, em ambos os perfi s previamente trabalhados.

2. CASO GERADOR

Sylmara Rocha é a nova namoradinha do Brasil. Em apenas dois anos ela largou a vida de modelo-manequim e tornou-se uma das maiores estrelas da televisão brasileira. Novelas, mini-séries, entrevistas em talk-shows, propaganda de cremes hidratantes: ela está em todas. Para coroar o seu apogeu no fi rmamento estrelado da mídia brasileira, Sylmara resolveu, fi nalmente, aceitar o convite da-quela famosa revista masculina para realizar um ensaio de nu artístico.

O Brasil parou no dia em que as revistas que traziam o ensaio de Sylmara chegaram às bancas. O afl uxo de pessoas às bancas de jornal foi estarrecedor. Es-pecialmente se levarmos em conta que a edição da revista tinha até pôster duplo encartado e custava vinte e cinco reais, ou seja, um preço bastante salgado para boa parte da multidão interessada.

No dia seguinte à publicação da revista masculina, qual não foi a surpresa de Sylmara ao saber — para a felicidade de muitos — que o jornal “Vingador Po-pular”, conhecido por sua ampla cobertura de crimes atrozes e fofocas envolvendo celebridades, havia publicado uma das fotos constantes do ensaio fotográfi co vei-culado pela revista masculina. E lá estava ela, vestindo apenas uma gargantilha de cristais multicoloridos, tendo ao fundo o cenário paradisíaco de uma praia particular em Pernambuco. Não havia sequer uma menção sobre o motivo da fotografi a constar naquele tão ilustre periódico popular. Ao lado da foto, a notícia de um crime bárbaro. Logo abaixo, a programação de fi lmes para o dia na tele-visão aberta.

Durante a semana não se falou de outra coisa. O apresentador de um progra-ma vespertino dedicado às senhoras donas de casa chegou até mesmo a comentar que não haveria problema algum com a publicação das fotos de Sylmara no “Vingador Popular”. Segundo o apresentador, Sylmara é uma atriz, e, conseqüen-temente, fi gura pública.

Com base no caso acima, e após ter lido as reportagens e os dispositivos legais indicados, dê a sua opinião sobre as seguintes questões:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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1) Poderia o jornal “Vingador Popular” publicar a foto da atriz em suas páginas? Em caso afi rmativo, qual seria o fundamento que legitima essa publicação? Em caso negativo, qual seria o direito da atriz que estaria sendo violado nesse caso?

2) Imagine agora que a foto do ensaio fotográfi co de Sylmara tenha sido publicada não no “Vingador Popular”, mas sim no famoso jornal fran-cês “Le Monde Diplomatique”. Essa circunstância altera a resposta que você deu na pergunta acima?

3) E se a fotografi a de Sylmara fosse usada por uma empresa que elabora calendários para ilustrar as folhinhas do ano de 2006 que serão distri-buídas gratuitamente para borracharias espalhadas por todo o Brasil?

4) E se Tonico, estudante do terceiro ano do ensino médio de um renomado colégio da Zona Sul carioca, digitalizar as fotos que compõem o ensaio de Sylmara e colocá-las em seu website na Internet? Ele poderia fazer isso? Em caso contrário, quem seria responsabilizado pela conduta do menor?

5) Imagine, agora, que Sylmara é uma das principais ativistas do movi-mento internacional “Salvem as baleias!”. No Brasil, a atriz é a garota-propaganda da campanha, tendo a sua imagem vinculada ao esforço de ecologistas do mundo inteiro em proteger essa espécie animal.

Todavia, uma empresa que industrializa óleo de baleia veio a utilizar uma foto antiga de Sylmara para anunciar os seus produtos. A foto foi licenciada para a empresa pela agência de modelos que lan-çou Sylmara no mercado há anos atrás. Na fotografi a, a atriz está em roupas de banho e contempla, da ponta de um pier, a imensidão do mar. Acrescentou-se à foto os dizeres: “Óleo de Baleia Shammu: apro-veite o melhor do terror dos mares!”

E agora? Considerando que a agência de modelos efetivamente detinha os direitos de exploração da fotografi a, o que pode fazer Syl-mara para evitar que prejuízos lhe sejam causados pela veiculação da referida propaganda?

3. QUESTÃO DE CONCURSO:

X Concurso para Juiz Federal Substituto do TRF 2ª Região (2005)49. De acordo com o Código Civil, é admissível a tutela inibitória contra

ameaça de lesão a direito da personalidade por divulgação de relato inverídico relacionado à biografi a de pessoa já falecida? Em caso positivo, quem tem legitimação para postular a medida? Em caso negativo, comente a omissão legislativa.

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AULA 10 — DIREITO À IMAGEM E PRIVACIDADE — ANÁLISE DE CASOS

EMENTÁRIO DE TEMAS

Colisão entre privacidade, imagem e liberdade de expressão — Privaci-dade de pessoas notórias — Interesse público sobre fatos criminosos e seus autores — Imagem do retratado em locais públicos — Sátiras e caricaturas

LEITURA OBRIGATÓRIA

LEWICKI, Bruno. “Realidade refl etida: privacidade e imagem na sociedade vigiada”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 27 (2006), pp. 211-219.

LEITURAS COMPLEMENTARES

SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Paulo, Atlas, 2002; pp. 157/194 e MORAES, Walter. “Direito à Própria Imagem”. In Revista dos Tribunais nº 443 (set/1972); pp. 64/81 e nº 434 (out/1972); pp. 11/28.

1. ROTEIRO DE AULA

Tendo passado em revista as características gerais dos direitos à privacida-de e à imagem, além do impacto trazido pelo desenvolvimento tecnológico, essa aula visa a discutir diversos casos em que os dois direitos acima referidos entram em rota de colisão com demais direitos, mais especifi camente com a liberdade de expressão.

A positivação constitucional do direito à privacidade e à imagem no art. 5º, X, em termos peremptórios, poderia gerar o entendimento de que a sua tutela seria absoluta. Todavia, tanto a privacidade como a imagem não são direitos absolutos, podendo ceder no caso concreto frente a outros princípios constitucionais que se provem de maior relevo. A liberdade de expressão e de informação, derivadas da liberdade de pensamento, são os direitos que mais freqüentemente entram em confl ito com a privacidade e a imagem indivi-duais, motivo pelo qual o estudo desse confl ito específi co faz-se pertinente.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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152 Antonio Jeová Santos. Dano Moral

Indenizável; p. 393.

153 Observa-se como, novamente, o

Superior Tribunal de Justiça adota o en-

tendimento de que o direito à imagem

é violado com a simples utilização de-

sautorizada desse bem da personalida-

de, conforme explorado no Capítulo 4.

154 Recurso Especial n° 58101/SP,

rel. César Asfor Rocha, julgado em

16.09.1997; in Revista do Superior Tri-

bunal de Justiça n° 104 (abr/98); pp.

326/332.

A privacidade e a imagem de pessoas notórias

Uma das principais áreas de confl ito existente entre a liberdade de expres-são/informação e os direitos à imagem e à privacidade reside na publicação de escritos, produção de fi lmes ou divulgação de fotografi as envolvendo pessoas notórias, sobre as quais exista um interesse público, ou sobre aquelas que ocupam determinados cargos públicos.

A restrição à imagem, e/ou à privacidade, fundamenta-se aqui na análise da conduta pretérita da pessoa enfocada, na medida em que a mesma veio a ocupar uma posição no meio social em que notícias e informações sobre ela passam a constituir matéria de relevo para a comunidade.

Sobre a possibilidade de se retratar uma pessoa notória sem que seja neces-sária a obtenção de seu consentimento, explicita Antonio Jeová Santos que:

“Isso não signifi ca que a pessoa notória não deva ter a sua imagem preservada. Apenas existe uma diminuição em seu direito de tutelar a imagem, dada a notorie-dade. Desde que o notável esteja em ambiente onde desenvolve sua atividade e sem nenhum resquício de constrangimento, já que está retratando a pessoa como ela é e na forma como desenvolve sua normal atividade, não há nem necessidade de colher-se autorização, muito menos possibilidade de indenização.”152

Todavia, o limite entre a expressão jornalística apoiada no interesse públi-co e a violação do direito à privacidade e imagem é bastante tênue, conforme retrata o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

“Civil. Direito de imagem. Reprodução indevida. Lei n° 5.988/73 (art. 49, I, f ). Dever de indenizar. Código Civil (art. 159).

A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade hu-mana, é a emanação da própria pessoa, é o efl úvio dos caracteres físicos que a indi-vidualizam.

A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida.153

É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome de direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem; todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse jornalístico que, por sua vez, tem como referencial o interesse público, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente.”154

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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155 Apelação Cível n° 2270/01, rel. Gus-

tavo Adolpho Kuhl Leite, julgado em

17.07.2001.

Um caso que ganhou considerável repercussão na mídia foi a ação judicial movida pelas fi lhas do falecido jogador de futebol Garrincha, por conta do lançamento do livro “Estrela Solitária — um brasileiro chamado Garrincha”, de autoria do escritor Rui Castro.

A colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem fi caram bem descritas nos debates travados nos autos, em que se discutiu até que ponto a biografi a, ao retratar com riqueza detalhes o alcoolismo, as desavenças e a vida sexual do jogador, indiscutivelmente uma fi gura notória, teria violado a sua privacidade e lesionado a sua imagem.

O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, ao decidir o caso em grau de recurso, apenas reconheceu o dano patrimonial causado às autoras, pela pu-blicação não consentida do livro, mas negou a existência de dano moral. Nas palavras do relator:

“Quanto ao mérito, da leitura do livro não surge nenhuma ofensa à honra ou à imagem de Garrincha. O que ali se descreve é do conhecimento público. Garrincha era doente, sofrendo de alcoolismo, e a sua luta contra a enfermidade é narrada em detalhes, não só por meio da pesquisa que o autor despendeu, como, ainda, através de testemunhos.

(...) Os fatos são públicos e notórios e estão estampados no tempo em todos os jornais e revistas de então.

Há um ou outro ponto mais picante sobre a vida sexual do biografado, mas nada que conduza a uma ofensa à sua dignidade ou honra.

E por isso mesmo não há que se falar em dano moral.”155

O que se deve ter em mente é que, se é certo que as pessoas públicas pos-suem uma esfera de proteção à privacidade e à imagem reduzida por conta do interesse geral sobre a sua vida, essa diminuição não implica em aniquilamen-to da esfera privada. Existem acontecimentos e detalhes sobre a vida de uma pessoa pública que permanecem resguardados pelo direito à privacidade, as-sim como a sua imagem permanece tutelada contra captações e utilizações ilícitas.

O debate sobre os limites da liberdade de expressão e informação quando se trata de analisar a vida privada de pessoas notórias também encontra gran-de repercussão no direito comparado, podendo-se apontar, por exemplo, o sempre referido caso Mephisto, decidido pela Corte Constitucional Alemã.

No mencionado caso, o fi lho adotivo do diretor de teatro Gustav Grun-der, na época já falecido, buscava obstar a publicação do livro Mephisto, de Klaus Mann, sob a alegação de que o seu pai, representado no romance pelo personagem Hendrik Hofgen, teria sido retratado de forma depreciativa à sua imagem.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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156 Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos

Fundamentais, cit.; p. 88.

157 Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos

Fundamentais, cit.; p. 89.

Inicialmente, o Tribunal estadual de Hamburgo considerou improcedente a ação, tendo sido o romance publicado em 1965 com a seguinte advertência aos leitores: “Todas as pessoas deste livro são tipos, não retratos de perso-nalidade”. Posteriormente, por ordem do Tribunal Superior de Hamburgo, acrescentou-se a advertência no sentido de que, embora constassem do livro referências a pessoas, os personagens que as representavam haviam sido trans-formados por conta da “fantasia poética do autor”.156

O mesmo Tribunal reformou depois o seu entendimento, concedendo o pedido do autor da ação no sentido de se obstar a publicação do roman-ce. Declarando ser evidente a associação entre o personagem degradado e o falecido diretor teatral, afi rmou o Tribunal que o direito de liberdade de expressão artística não goza de prevalência sobre os demais direitos, cabendo ao juiz no caso concreto ponderar entre a liberdade artística e os direitos fun-damentais pretensamente violados.

A Corte Constitucional, por fi m, quando lhe foi dado julgar o caso, de-cidiu pela manutenção da proibição sobre o romance, apoiando-se a decisão na dignidade da pessoa humana, que deveria prevalecer frente à liberdade de expressão artística.

O direito de liberdade de expressão artística não é — conforme decisão da Corte Constitucional — um direito absoluto, estando o mesmo condiciona-do à observância da tutela da pessoa humana que balizou a elaboração da Lei Fundamental. Conforme consta da redação do acórdão:

“5. Um confl ito entre a liberdade artística e o âmbito do direito da personalida-de garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, há de ser considerada, particular-mente, a garantia da inviolabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana consagrada no art. 1, I”157

Traçadas as linhas gerais do tema, cumpre abordar ainda um tópico que vem ganhando relevo na discussão sobre a colisão entre liberdade de impren-sa, privacidade e imagem de pessoas notórias. Trata-se da divulgação de maté-rias jornalísticas que violam a privacidade ou a imagem de pessoas envolvidas com a prática de atos criminosos.

O interesse público sobre fatos criminosos e seus autores

O crime é uma questão de interesse público. Ao violar a norma penal, o criminoso também rompe com as regras de convivência na sociedade, fazen-do incidir sobre a sua conduta a sanção estatal.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 110

158 René Ariel Dotti. Proteção da Vida

Privada e Liberdade de Informação.

São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980;

p. 213.

159 O emblemático caso da Escola Base,

no qual os diretores de uma escola em

São Paulo foram acusados de abusar

sexualmente de seus alunos, sofrendo

um verdadeiro “linchamento” na im-

prensa, apurando-se posteriormente

serem as denúncias inverídicas, consti-

tui o melhor exemplo para um estudo

da ética jornalística no Brasil recente.

Sobre o caso, vide Estela Cristina Bon-

jardim. O Acusado, sua Imagem e a

Mídia. São Paulo, Max Limonad, 2002;

pp. 103/110.

160 Apelação Cível n° 25960/01, rel. Bi-

nato de Castro, julgado em 18.12.2001.

Em decorrência desse interesse público na persecução e punição do crimi-noso, especializou-se na imprensa o ramo da crônica policial, onde se busca acompanhar a dinâmica entre a prática do ato criminoso, sua investigação e sancionamento da conduta transgressora da norma penal.

Conforme aponta René Ariel Dotti, a crônica policial, divulgada através de jornais, rádio e televisão, principalmente, colhe o seu fundamento no di-reito geral à informação, mantendo estreita relação com o caráter publicista do processo penal.158

Todavia, o interesse público quanto ao conhecimento dos crimes não isen-ta a crônica policial de colisões com demais direitos fundamentais. No que tange aos direitos à privacidade e à imagem, a crônica policial apresenta, caso desenvolvida em inobservância aos parâmetros da ética jornalística, diversas possibilidades de confl itos, ocasionados pela eventual deturpação dos fatos, condenando-se o investigado através da imprensa antes mesmo do julgamen-to, pelo sensacionalismo, que explora comercialmente os detalhes sórdidos dos crimes e transforma tragédia em espetáculo.

As matérias que ilustram as crônicas policiais devem sempre atender aos imperativos constitucionais referentes à tutela da pessoa humana, sendo con-trário ao Direito — além de imoral — divulgar fatos que imputem a uma pessoa determinada conduta criminosa sem o cuidado de se apurar a veraci-dade do que se diz159, ou aproveitar o evento criminoso para explorar a pessoa humana como simples instrumento para obter — às custas da sordidez de muitos — uma maior vendagem do jornal, ou audiência para os programas de rádio e televisivos.

Diversos são os julgados que ilustram a colisão entre liberdade de expres-são, privacidade e imagem na crônica policial. A deturpação dos fatos, im-putando à pessoa conduta criminosa sem proceder ao devido exame da ve-racidade do que se publica, geralmente decide a contenda favoravelmente ao indivíduo lesionado em sua privacidade ou imagem. Nesse sentido, veja-se a decisão do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro:

“Responsabilidade Civil. Dano Moral. Reportagens jornalísticas que imputam ao autor a acusação de ‘mutreteiro’ e ‘cabeça’ de fraude em concurso público, que derivaria do investigado pelo Ministério Público e por CPI da Câmara Municipal. Acusação não corroborada pelos documentos dos autos, que apenas retratam ser a ví-tima um dos benefi ciários de adulteração de notas no concurso, sem, porém imputar-lhe a condição de responsável pela fraude e muito menos ‘cabeça’ dela.

Abuso do direito de informar e deturpação da notícia que ensejam a reparação, com base nos art. 5º, X da CF, por ofenderem a honra e dignidade do demandante.”160

Adicionalmente, a liberdade de informação manifestada pelo jornalista que trabalha na cobertura dos eventos criminosos deve ainda atender ao cha-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 111

161 Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fun-

damentais, cit.; p. 90.

162 Daniel Sarmento. A Ponderação, cit.,

p. 167.

mado “direito ao esquecimento” que favorece o condenado, visando a sua melhor ressocialização depois de cumprida a pena que lhe foi imposta. A própria Lei de Imprensa veda, segundo dispõe seu artigo 21, §2º, a divulga-ção ou transmissão de fato delituoso cujo autor já tenha sido condenado e cumprido a respectiva pena, salvo por motivo de interesse público.

Talvez o caso mais estudado sobre a colisão entre a liberdade de informa-ção e o direito à privacidade e à imagem seja o caso Lebach, decidido pela Corte Constitucional Alemã, no qual foi discutido o direito de uma emissora de televisão de exibir um documentário que retratava o assassinato dos solda-dos de Lebach, em circunstâncias que haviam chocado todo o país.

Em circunstâncias normais, não haveria questionamento à liberdade de expressão jornalística da emissora de televisão, tendo em vista que o assassi-nato dos soldados havia sido amplamente coberto pela imprensa, acompa-nhando o público alemão com interesse o julgamento dos criminosos. Sendo assim, os fatos a serem narrados no documentário eram públicos.

Todavia, um dos condenados pelo crime, que estava cumprindo o fi nal de sua pena, ingressou com uma medida liminar buscando suspender a veicu-lação do documentário, no qual ele era nominalmente citado, alegando que o mesmo lesionava não apenas a sua privacidade e imagem, como também difi cultaria a sua ressocialização.

O Tribunal estadual de Mainz e, em seguida, o Tribunal Superior de Ko-blenz não acolheram o pedido do autor sob o fundamento de que o mesmo, ao se envolver no crime, havia se tornado um personagem da história recente, e que o documentário havia reproduzido com fi delidade os fatos que vieram à tona no decorrer do processo, sem relevantes alterações.161

Sendo assim, o entendimento até então prevalecente indicava que, no confl ito entre a liberdade de imprensa (art. 5, I, da Lei Fundamental alemã) e os direitos fundamentais do criminoso, deveria o primeiro prosperar em nome do interesse público sobre as circunstâncias históricas do crime.

O recurso à Corte Constitucional foi interposto sob o fundamento de ofensa à proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, dando iní-cio a intenso trabalho da Corte que, para decidir o caso, promoveu consultas a diversas instituições e a profi ssionais especializados em psicologia social, comunicação e execução penal.162

Por fi m, ao decidir o caso favoravelmente ao autor, a Corte Constitucional considerou que a divulgação do documentário no caso concreto violava direi-tos legítimos do preso. A redação do acórdão é bastante elucidativa:

“Para a atual divulgação de notícias sobre crimes graves tem o interesse de infor-mação da opinião pública, em geral, precedência sobre a proteção da personalidade do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera íntima, tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionalidade. Por isso, nem

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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163 Apud. Gilmar Ferreira Mendes, Direi-

tos Fundamentais; pp. 91/92.

sempre se afi gura legítima a designação do autor do crime ou a divulgação de fotos ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identifi cação.

A proteção da personalidade não autoriza que a Televisão se ocupe, fora do âm-bito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera íntima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentário.

A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se difi cul-tar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identi-fi cas o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de sue livramento condicional ou mesmo após a soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social.”163

Note-se que o caso Lebach é um exemplo contundente da necessidade de se promover a ponderação entre liberdade de informação, privacidade e imagem, pois, em regra, a veiculação do documentário sobre o assassinato seria uma legítima manifestação do direito de liberdade de imprensa. Contudo, tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, sobretudo o fato de que o preso estava no fi nal do cumprimento de sua pena, o documentário — que repro-duzia o crime de forma fi el e sem alterações que por si só lesionasse a imagem dos condenados — teve a sua divulgação proibida por ordem judicial.

Em síntese, pode-se afi rmar que a operação desenvolvida pela Corte alemã para solucionar o caso Lebach representa com clareza indiscutível os efeitos da técnica da ponderação, pois a liberdade de imprensa foi apenas afastada no caso concreto, para que o direito à privacidade e imagem do preso fosse preservada.

A imagem do retratado em eventos públicos

A colisão entre liberdade de expressão/informação e os direitos à privaci-dade e imagem também pode ser observada na captação e utilização de ima-gem de pessoas em eventos de natureza pública. Em tais hipóteses, entende-se que os direitos à privacidade e imagem cedem espaço para a liberdade do fotógrafo ou cinegrafi sta, liberando-o do ônus de requerer autorização para a utilização da imagem de cada pessoa captada por sua lente em locais ou eventos públicos, cumprindo-se certos requisitos, mais notadamente quando da realização de eventos que congregam um número elevado de pessoas.

Indubitavelmente, a liberdade de expressão artística seria sensivelmente cerceada se em tais circunstâncias o fotógrafo ou cinegrafi sta tivesse que obter o consentimento na divulgação da foto ou fi lmagem de cada pessoa captada pela objetiva da máquina fotográfi ca ou pela lente da câmera.

Para que não se confi gure lesão à privacidade e/ou imagem da pessoa, o propósito da retratação em eventos públicos deve sempre demonstrar que a intenção da captação daquela imagem remonta ao evento e não a qualquer

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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164 Nesse sentido, dentre outros, vide

Carlos Alberto Bittar, Os Direitos da

Personalidade. Rio: Forense, 2000, 4ª

ed.; p. 95.

165 Apelação Cível n° 776/86, rel. Des.

Alberto Garcia, julgada em 15.09.87; in

Revista dos Tribunais nº 637 (nov/88);

pp. 158/ 161.

166 Apelação Cível nº 26.108; rel.

Des. Rui Domingues, julgada em

27.06.1974; in Revista Forense nº 250

(abr-jun/75); pp. 269/273. À parte de

toda a brilhante fundamentação jurídi-

ca do acórdão, cumpre trazer à colação

passagem do voto do relator que, em

tons líricos, narra, da seguinte forma,

o papel desempenhado pelo futebol

na sociedade brasileira: “A escola de

futebol criada pelo Brasil tem raízes

humildes, vem do povo humilde, assim

como a coreografi a e cânticos carna-

velescos, modelos de organização,

de disciplina, de espírito de equipe.

Os heróis do futebol são admirados e

contemplados pelas massas e pelos

seus representantes, inclusive pelas

mais altas autoridades federais. Não há

assunto mais sério no Brasil”. Por fi m,

em uma espiral de grandiloqüência, ar-

remata o desembargador: “Um grande

jogador de futebol como Jairzinho é tão

importante para o povo brasileiro como

Kant ou Heidegger para um estudante

de fi losofi a na Alemanha. Tais nomes,

tais imagens, não podem ser tomadas

em vão, nem a troco de nada.”

pessoa em particular.164 O interesse do autor da obra que se vale da imagem alheia deve ser caracterizar o evento público e não quaisquer atributos das pessoas retratadas.

O caso mais comum refere-se a fotos tiradas em grandes manifestações populares, nas quais possa se distinguir as feições das pessoas que delas par-ticipam. Nesses casos, não caberá indenização por dano à imagem ou alega-ções de invasão de privacidade (baseada no direito ao anonimato), restando caracterizado que a fi nalidade da foto não era retratar aquelas pessoas em particular. Deve-se averiguar sempre se as pessoas retratadas são elementos acessórios da fotografi a.

Em acórdão que versa sobre caso semelhante, pronunciou-se o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro no seguinte sentido:

“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Violação — Des-caracterização — Reprodução desautorizada de fotografi a para fi ns publicitários — Hipótese em que a imagem não concorre direta e claramente para o êxito da propaganda na qual utilizada por identifi cável a pessoa do retratado, desconhecida, ademais, no meio publicitário — Conjunto fotográfi co em que sobressai outro ele-mento — Indenização não devida.”165

A mesma lógica aplica-se às fotografi as que são tiradas de jogadores de futebol no momento em que os marcam um gol ou protagonizam episódios singulares no decorrer de suas exibições públicas. Abstraindo-se as conside-rações em torno do direito de arena, por estarem participando de um evento público, assistido por diversas pessoas, seja in loco ou através da transmissão das imagens da partida, não cabe ao jogador reclamar indenização pelo uso inconsentido de sua imagem. O que se busca retratar no caso é o gol, por exemplo, e não o jogador.

Hipótese distinta ocorre quando a retratação lícita de pessoa em evento público é utilizada para fi nalidades comerciais, e não meramente informati-vas. Assim, a mesma foto que ilustra um gol pode ser incluída em jornal es-portivo, porém jamais utilizada por uma empresa para fi ns publicitários, sem que seja requerida a autorização da pessoa retratada. Nessas circunstâncias, a liberdade de expressão deverá ceder em favor do direito à imagem da pessoa retratada.

Em decisão paradigmática, o antigo Tribunal de Alçada do Estado da Guanabara reconheceu o direito à indenização por dano à imagem devido ao jogador Jairzinho, uma vez que a empresa Siemens do Brasil S.A. utilizou, em publicidade de serviços de iluminação, fotografi a do jogador ao marcar um gol no estádio do Maracanã, com os seguintes dizeres: “Siemens iluminou o gol da vitória”.166

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167 Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Liber-

dade de Imprensa, cit.; p. 102.

168 Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Liber-

dade de Imprensa, cit.; p. 103.

O problema das sátiras e caricaturas

O humor certamente não fi gura como um tema corriqueiro em obras jurídicas. Todavia, para que se analise a questão da colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem, uma breve incursão sobre a problemática das sátiras e caricaturas se faz necessária, pois, buscando gerar o riso, ou por vezes a refl exão, essas formas de expressão artística, podem violar direitos legítimos de terceiros.

O espírito que impulsiona a criação artística é um dos atributos mais fas-cinantes do homem, mas nem por isso é ilimitada a sua manifestação. Ainda que o fi m último da produção seja criar uma situação divertida, gerar na pessoa uma sensação de bom-humor, existem restrições de natureza moral e jurídica às sátiras e caricaturas.

Apesar de semelhantes no que tange à fi nalidade humorística, a sátira e a caricatura são expressões artísticas distintas. A caricatura é o desenho que, pelo traçado diferenciado, acentua ou revela, de forma geralmente exagerada, certos aspectos típicos da pessoa ou do fato retratado, ao passo que a sátira é a obra artística que visa a ridicularizar outra obra, pessoa ou fato.

O animus jocandi, em sua expressão mais pura, sempre foi reconhecido como causa de exclusão da responsabilidade derivada de lesões a direitos da personalidade, em consonância com o brocardo si quis per jocum percutiat, injuriarum non tenetur.167 Todavia, essa regra deve sempre ser excepcionada quando da lesão a direitos da personalidade.

Para se aferir quando a caricatura e a sátira são ilícitas, deve-se procurar entrever o intuito do artista na criação da obra. Para tanto, é imperioso que se distinga o simples gracejo, o animus jocandi, da ironia injuriosa, que de má-fé denigre a imagem alheia ou invade de forma ilícita a privacidade do ofendido.

Cumpre observar que o exagero é um elemento ínsito a esse tipo de ma-nifestação artística, que integra a essência mesma da obra, pois muitas das vezes é a retratação exagerada de um atributo que constitui confere o atributo humorístico à obra. O exagero na retratação apenas será indenizável quan-do exceder o limite do razoável, quando a piada for de extremo mau gosto, causando mais constrangimento e revolta do que risadas. O que não se pode admitir é que o humor venha a servir de máscara ou álibi para condutas que sejam deliberadamente ofensivas a outrem.168

Nesse particular, o Projeto de Lei de Imprensa (PL nº 3232/92) trata da matéria de forma pertinente, em seu art. 10, §3º, o qual assim dispõe:

“não será considerada ofensiva à imagem das pessoas sua reprodução gráfi ca, par-cial ou de corpo inteiro, em desenho convencional, artístico ou caricatural, desde que não expresse nem sugira condição ou situação que caracterize calúnia, difamação ou injúria, nos termos do art. 5º.”

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Denota-se, portanto, que a resolução de um confl ito entre a liberdade de expressão artística e a privacidade ou imagem de uma pessoa retratada, direta ou indiretamente, pela sátira ou caricatura, será resolvido através da pondera-ção no caso concreto, analisando-se a motivação que ilustra a obra artística.

Ou seja, se a motivação da obra é meramente humorística, mesmo que contenha certos exageros naturais dessa forma de expressão, não há que se falar em dano à privacidade ou imagem. O que não pode passar in albis para o Direito é a caricatura ou charge ofensiva, que, para além do humor, ofende o retratado.

Por oportuno, vale destacar que o senso de indignação, de revolta perante uma ofensa, que transforma a sátira ou caricatura em objeto de afronta à privacidade e imagem alheia não deve estar suscetível às variações emocionais de cada um, mas sim sujeito ao crivo da razoabilidade média. Com efeito, se existe alguém que poderá confundir humor com zombaria infamante, além do artista, é o próprio retratado.

Logo, para se imputar como ofensiva determinada expressão artística, deve o intérprete recorrer ao senso crítico geral, não aderindo a partidarismos, ou adotando tendências que não espelham o geralmente aceito na sociedade.

2. CASOS GERADORES:

Leia as reportagens abaixo:

“IMPRENSA ACUADA”

Dobra número de processos contra imprensa e jornalistaspor Laura Diniz e Márcio Chaer

Ou a imprensa brasileira piorou brutalmente nos últimos anos, ou então virou a chamada bola da vez. O fato é que já há mais processos contra os grandes grupos jornalísticos do que jornalistas nas redações. Ou seja: para uma amostragem de 2.783 jornalistas há 3.342 ações judiciais, segundo apu-rou a revista Consultor Jurídico.

A maior parcela dos processos é ajuizada por juízes, promotores, advo-gados e políticos. Juízes e advogados são também os profi ssionais que mais ações vencem contra jornais e jornalistas. Os veículos pesquisados são o gru-po Globo (emissoras, jornais e revistas), editoras Abril e Três e os jornais Fo-lha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.

As empresas jornalísticas são mais acionadas que os seus profi ssionais. O levantamento, feito pela revista mostra que há predominância absoluta de ações cíveis de natureza indenizatória —— uma mudança radical em relação

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ao período anterior à Constituição de 1988. Apenas 150 ações (4%) são de cunho criminal.

Caso a imprensa fosse condenada em todas as 3.192 ações indenizatórias as empresas e jornalistas teriam que arcar com um prejuízo da ordem de qua-se R$ 65 milhões, considerado o valor médio de R$ 20 mil por indenização arbitrado pelo Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, embora os jor-nalistas e as empresas sejam condenados em apenas 20% dos casos, a Justiça já chegou a arbitrar indenizações superiores a R$ 1 milhão em processos em que não cabem mais recursos.

Pelo levantamento anterior, feito pouco mais de dois anos atrás, o volume de processos contra empresas jornalísticas e profi ssionais mais que dobrou. Cresceu também o percentual de condenações. E ganha terreno no meio forense a tese de que é cabível impedir a publicação de notícias, em contraste com o que diz a Constituição —— que veda a censura prévia.

Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, o qua-dro é preocupante e caracteriza uma “verdadeira loteria esportiva”. De acordo com ele, sem a imprensa livre não se pode cogitar a palavra democracia. Mar-co Aurélio disse que o Superior Tribunal de Justiça tem usado o “bom senso” e fi xado valores de cerca de R$ 20 mil.

Marco Aurélio disse ainda, no Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas, promovido pela Associação Brasileira de Jor-nalismo Investigativo (Abraji), que “seria interessante se nós discutíssemos para o País uma nova Lei de Imprensa”. A lei que vigora até hoje foi criada em 1969, durante o regime militar.

A ministra Ellen Gracie, do STF, afi rmou que o Judiciário não restringe o livre exercício do bom jornalismo. “Apenas manifestações dolosamente aber-rantes do dever de bem informar tem merecido o repúdio dos tribunais”, disse.

Para o ministro da Justiça, Márcio Th omaz Bastos, os números não re-fl etem uma tentativa de intimidação da imprensa. “Exatamente porque se estabeleceu um controle de responsabilidade a posteriori, as pessoas têm di-reito de ir ao Judiciário. E as ações do Poder Judiciário não são uma ameaça. Procurar a Justiça é o exercício de um direito de cidadania, um direito cons-titucional. O que não pode haver é censura prévia.”

De acordo com o criminalista Luis Guilherme Vieira, a explicação para o predomínio de ações por dano moral em relação às penais é “matemática”: processos por crime de imprensa prescrevem em dois anos; ações por dano moral tem um prazo de prescrição bem maior.

Segundo o advogado, “hoje não tem mais efeito constrangedor processar um jornalista na via criminal. Difi cilmente um processo, por mais singelo que seja, conseguirá chegar ao fi nal — com sentença transitada em julgado — antes de dois anos.”

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Vieira disse que os reparos por dano moral e material foram banalizados. “Todo mundo tem o direito de se achar ofendido e ir à Justiça. Mas a Justiça não tem o direito de fi car reconhecendo bagatelas de pequena importância”, declarou.

Segundo ele, um levantamento mais detalhado provavelmente mostraria que os autores da maioria das ações são os mesmos, ou fazem parte dos mes-mos grupos políticos.

Para o advogado, a imprensa tem extrapolado os limites éticos, mas sua atuação deve ser controlada por órgãos de classe e não por leis ou pela Justiça. “O Judiciário só deve ser procurado em casos excepcionais”, concluiu.

(Reportagem veiculada no website Consultor Jurídico, em 30.09.2003)

* * * *

“STJ definirá se Maitê Proença será indenizada por danos morais”

Está empatado o julgamento na Terceira Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que defi nirá se a atriz Maitê Proença terá direito a receber de um jornal carioca indenização por dano moral, em razão de o periódico ter publi-cado uma foto sua, extraída de ensaio fotográfi co feito para a revista Playboy.

Maitê Proença fez o ensaio fotográfi co para a revista em 1996, estipulando em contrato escrito, as condições em que se daria a cessão de sua imagem, fi xando, não só a remuneração, como o tipo de fotos que seriam produzidas, preocupada com a sua imagem e a qualidade do trabalho.

As fotos foram tiradas em julho daquele ano no sul da Itália e publicadas na edição comemorativa do 21º aniversário da revista, em agosto. Apesar das precauções da atriz para restringir e controlar a forma de divulgação de sua imagem, o jornal estampou uma das fotos, extraída do ensaio para a Playboy, em página inteira, sem qualquer autorização.

A atriz considerou que o fato “feriu, de forma odiosa, a sua imagem”, tan-to patrimonial quanto moralmente.

A Justiça carioca condenou a empresa jornalística a indenizar a atriz por danos materiais, mas não por danos morais. O desembargador que relatou o caso no Tribunal de Justiça disse, em seu voto, que apenas as mulheres feias teriam porque reclamar de se ver em todas as bancas, mas não a mulher bo-nita.

No STJ, o relator, ministro Carlos Alberto Menezes Direito, entendeu que não cabe ao caso a indenização por dano moral, pois a publicação vio-lenta o direito à imagem, mas não à imagem que possa advir do ato em si (a imagem futura). Para ele, por mais infelizes que tenham sido os termos usados durante o julgamento no tribunal de origem, a questão não se põe no campo da estética, esse aspecto não está em discussão.

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A ministra Nancy Andrighi, no entanto, concluiu que cabe indenização por dano moral nesse caso e lamentou que, às vésperas de um novo milênio, as mulheres tenham de se deparar com argumentos do tipo usado pelo desem-bargador. Para ela, a atriz foi violentada em seu crédito como pessoa, pois deu o seu direito de imagem a um determinado nível de publicação e poderia que-rer que apenas determinado grupo da população tivesse acesso a essa imagem.

O entendimento do relator foi acompanhado pelo ministro Pádua Ribei-ro, para quem a publicação não atingiu a artista em sua vida privada. O mi-nistro Waldemar Zveiter, por sua vez, votou com a ministra Nancy Andrighi, demonstrando preocupação que o Estado pretenda tutelar o que pode ser aceitável ou não pelo indivíduo em relação à sua imagem.

Diante do empate, o presidente da Turma, ministro Ari Pargendler, últi-mo a votar, pediu vista do processo para melhor examinar a questão e, assim, concluir o julgamento.

(Notícia publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 11.12.2000)

* * * * *

“SBT RECORRE DE CONDENAÇÃO POR PEGADINHA NO PROGRAMA DO GUGU”

O SBT foi condenado, por sentença de primeiro grau, a pagar indenização por danos morais a Abrão Couri e Silvia Cristina Parisi Couri, por expor os dois a situação “vexatória e humilhante”, numa pegadinha levada ao ar duran-te 30 segundos no programa Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato em 16 de novembro de 1997.

(...) O valor da indenização — segundo disposição da sentença — será o equivalente ao preço de um minuto de veiculação publicitária, em rede na-cional, no programa na época da exibição, com juros e correção. A emissora deverá pagar ainda as custas do processo e os honorários do advogado dos dois, fi xado em 20% do valor da condenação.

A pegadinha envolvia um teste visando a demonstrar a honestidade dos pobres em contraposição da desonestidade dos ricos. Uma carteira foi deixada na rua com dinheiro e um papel com o nome, endereço e telefone do suposto proprietário.

Abrão e Silva apanharam a carteira e ligaram de um telefone público, ten-tando contato com o suposto dono. Eles foram abordados por membros da produção e entregaram a carteira a eles, explicaram a situação e autorizaram o uso das imagens. Entretanto, nas imagens exibidas o casal apenas aparece guardando a carteira, dando ao ato a aparência de desonestidade.

O juiz da 31ª Vara Cível Luiz Fernando Cirillo, prolator da sentença, afi rmou que o SBT “promoveu um julgamento dos autores  e pronunciou um veredicto de desonestidade, transmitido em rede nacional “.

(Notícia veiculada no website Espaço Vital, em 21.06.2004)

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* * * * *

“Publicar foto de mulher anônima em topless voluntário não obriga jornal a indenizar”

Não cabe indenização por danos morais para mulher anônima e que pra-tica topless (sem a parte de cima do biquini) voluntariamente em praia pú-blica, num dia feriado e tem a foto, publicada em jornal. A conclusão é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou provimento ao recurso de M.A.A.P., de Santa Catarina, contra a Zero Hora Editora Jor-nalística S/A.

M.A.A.P. entrou na Justiça após a publicação da foto pelo jornal da Edi-tora, alegando que houve danos morais em virtude da publicação em jornal de circulação estadual de sua foto em topless, em momento de lazer, na Praia Mole. Segundo o jornal, o fotógrafo usou do direito de liberdade de imprensa para fazer seu trabalho e registrou a cena publicada, sem fazer chamada sen-sacionalista, nem fazer uso irregular da foto. “Não houve nenhum destaque e o nome da autora sequer foi referido na reportagem que a fotografi a ilustra”, argumentou.

A ação contra a Zero Hora foi julgada improcedente em primeira instân-cia. “A ré exerceu sua liberdade de imprensa que tem amparo constitucional, sem ferir as garantias da autora, que, por sua vez, exerceu sua liberdade pes-soal, consciente ou inconscientemente, produzindo notícia, pela prática de topless, em público”, afi rmou o juiz.

A apelação, no entanto, foi provida, por maioria, pelo Tribunal de Justiça estadual. “A publicação de imagem de alguém fotografado imprescinde, sem-pre, de autorização do fotografado. Inexistente essa autorização, a veiculação da imagem materializa violação ao direito do respectivo titular, ainda que inexistente qualquer ultraje à moral e aos bons costumes”, afi rmou o acórdão. “A ocorrência do dano, em tal hipótese, é presumida, resultando tão somente da vulneração do direito à imagem”, acrescentou o tribunal, ao determinar indenização de 100 salários mínimos para a autora da ação.

A empresa protestou com embargos infringentes para o próprio TJ/SC. Foram acolhidos. “Se a embargada resolveu mostrar sua intimidade às pes-soas deve ter maturidade sufi ciente para suportar as conseqüências de seus atos e não atribuir à imprensa a responsabilidade pelo ocorrido”, observou o desembargador.

Segundo ele, seria diferente, por exemplo, se uma moça fosse fotografada com a peça superior da roupa de banho fora do lugar, após recuperar-se de uma onda. “Nesse caso, sim, absolutamente inidônea e oportunista a atitude do jornal”, ressaltou. “Mas, a partir do momento em que a embargada não

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teve objeção alguma de que pessoas pudessem observar sua intimidade, não pode ela vir à Justiça alegar que sua honra foi violada pelo fato de o Diário Catarinense ter publicado uma foto obtida naquele momento numa praia lotada e em pleno feriado”, asseverou.

O recurso para o STJ não foi conhecido, mantendo-se a decisão do TJ/SC. “A própria recorrente optou por revelar sua intimidade, ao expor o pei-to desnudo em local público de grande movimento, inexistindo qualquer conteúdo pernicioso na veiculação, que se limitou a registrar sobriamente o evento sem sequer citar o nome da autora”, afi rmou o ministro Cesar Asfor Rocha, relator do recurso. “Assim, se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução sem conteúdo sen-sacionalista pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada”, ressaltou. “Portanto, in casu, não há qualquer ofensa moral”, concluiu Cesar Rocha.

(Notícia veiculada no website do Superior Tribunal de Justiça, em 23.03.2004).

Com base na tutela da imagem e da privacidade, e os critérios para solução de confl ito entre esses direitos e a liberdade de expressão, analise cada uma das reportagens acima e prepare-se para responder sobre os casos por elas enfocados em sala de aula.

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AULA 11 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — PESSOAS JURÍDICAS

EMENTÁRIO DE TEMAS

Conceito de pessoa jurídica — Capacidade e Representação — Autonomia patrimonial — Domicílio — Responsabilidade Civil das pessoas jurídicas — Desconsideração da personalidade jurídica

CASO GERADOR

“Desconsideração da Personalidade Jurídica”

LEITURA OBRIGATÓRIA

TEPEDINO, Gustavo. “Notas sobre a desconsideração da personalidade ju-rídica”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 30 (2007), pp. 53-77.

LEITURAS COMPLEMENTARES

PANTOJA, Teresa Cristina. “Anotações sobre Pessoas Jurídicas”, in TEPE-DINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Re-novar, 2004; pp. 83/122; REQUIÃO, Rubens. “Abuso de direito e frau-de através da personalidade jurídica — Disregard Doctrine”, in Aspectos Modernos de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1988; pp. 67/85. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 03/31.

1. ROTEIRO DE AULA

As relações jurídicas não se processam exclusivamente entre indivíduos, ou seja, entre pessoas físicas. Pelo contrário, temos que grande parte das relações jurídicas que vivenciamos cotidianamente têm no pólo oposto uma determi-na pessoa jurídica. Reconhecendo a sua importância, o direito cria todo um instrumental que habilita essa entidade a praticar atos jurídicos.

Assim, a disciplina das pessoas Jurídicas regula, no âmbito do direito privado, as sociedades, as associações, as fundações, os partidos políticos e as organizações religiosas. Destaque-se que esses dois últimos elementos

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169 Silvio Rodrigues. Direito Civil, v.I. São

Paulo: Saraiva, 2004; p. 86.

representam inovação proporcionada pela publicação da Lei nº 10.825, de 22.12.2003.

A doutrina geralmente divide as pessoas jurídicas em dois grupos: (i) de um lado, têm-se aquelas que representam a conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de objetivos comuns. Trata-se de uma comu-nhão de vontades de várias pessoas, que buscando transcender as impossibi-lidades que a mera individualidade lhes implica, reúnem-se e formam um ente que lhes é maior, superior em força e portanto, mais apto a atingir os objetivos intentados; (ii) de outro lado, têm-se a destinação de determinado patrimônio com vistas à consecução de um fi m de relevante interesse social. O elemento nuclear aqui não reside mais numa reunião de vontades, mas sim na destinação de um determinado acervo de bens a um certo propósito.

Pessoa jurídica pode ser conceituada como a reunião de pessoas com o escopo de alcançar um objetivo comum e reconhecido pelo ordenamento jurídico como sujeito de direito. Essas entidades, qualquer que seja a forma que adotem, desde que observadas as prescrições legais, são para certos efeitos civis equiparadas à própria pessoa humana, sendo também dotadas de perso-nalidade, capacidade processual e responsabilidade.

É importante notar que mesmo quando a pessoa jurídica é formada pela comunhão de vontades de alguns indivíduos, a personalidade do ente e a de seus integrantes não pode ser confundida. A personalidade da pessoa jurídica transcende a daqueles que lhe formam e, salvo em hipóteses restritas — li-gadas à prática de alguma abusividade —, não pode ser desconsiderada de forma a atingir pessoalmente algum dos integrantes.

Nas palavras de Silvio Rodrigues, as “pessoas jurídicas são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”169 Uma vez personifi cado esse ente, sua vontade será dispare da manifestação volitiva de cada um dos membros que o integram. É o que pressupõe o brocardo latino societas distat a singulis.

Como já afi rmado, atente-se também que é justamente por resguardar os interesses humanos que a lei confere personalidade a essas reuniões de indi-víduos. Esse vínculo associativo representa a certeza dos indivíduos perpassa-rem suas limitações através da criação de uma instituição que com eles não se confunde, mas da qual são partícipes.

Refl exos na dinâmica macro-econômica também não podem deixar de ser percebidos. Hoje, a potência econômica de determinada nação é intimamen-te conexa com a expressão das pessoas jurídicas que nela atuam. As pessoas jurídicas, e nesse particular as sociedades transnacionais — como o próprio nome sugere — transcendem o próprio Estado e têm por objeto social uma infi nidade de atividades.

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170 Gustavo Tepedino, Heloisa Helena

Barboza e Maria Celina Bodin de Mo-

raes (org). Código Civil Interpretado

conforme a Constituição da República.

Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 106.

De acordo com a disposição legal, para regularmente constituir uma pes-soa jurídica é preciso a conjunção simultânea de três elementos: a vontade criadora; a regular observância das condições legais; a liceidade de propósitos do ente que se intenta formar.

Não basta a simples reunião de indivíduos para a formação da personali-dade jurídica. Além da intenção associativa, é preciso que se estabeleça uma vinculação jurídica específi ca e em consonância com os ditames legais. É justamente ela que possibilita que esse conglomerado de indivíduos adquira organicidade.

Natureza jurídica

Várias são as teorias jurídicas que visam a delinear a natureza das pesso-as jurídicas. Dentre essas, as que merecem maior destaque são: i) as teorias negativistas; ii) a teoria da fi cção legal; iii) a teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva; iv) a teoria da pessoa jurídica como realidade técnica; e v) a teoria institucionalista de Hauriou.

i) Teorias Negativistas — Nesse grupo estão incluídas as teorias que “[d]esacreditam a existência real da pessoa jurídica, dentre as quais as mais im-portantes e difundidas foram as lições de Brinz, Von Ihering e Hans Kelsen, para quem o que havia eram apenas centros de competência contidas nas normas.”170

ii) Teoria da fi cção legal — O principal expoente dessa corrente foi Savig-ny, tendo encontrado grande respaldo no séc. XIX. A personalidade jurídica decorreria de uma fi cção da lei, contrapondo-se a personalidade natural, uma vez que essa é uma criação da natureza. A existência de pessoa jurídica não seria real, mas tão somente uma construção intelectual.

Deve-se ter em mente que na verdade não existe uma única teoria da fi cção, mas sim uma pluralidade de construções que convergem no mesmo sentido. Pode-se criticar essas teorias na medida em que, ao afi rmar que so-mente o homem é sujeito de direito, elas resultam na própria inexistência da pessoa jurídica, e, por conseguinte, dos direitos e deveres que ela em tese titularizaria. O raciocínio se torna ainda mais perigoso quando se concebe o Estado como pessoa jurídica. A partir dessa concepção fi ccional da pessoa jurídica, os atos estatais também seriam frutos de uma mera fi cção jurídica.

iii) Teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva — Essa teoria tem origem na Alemanha, podendo destacar-se como elaboradores Gierke e Zi-telmann. Ao contrário da teoria antecedente, afi rma que a vontade que enseja a constituição do ente caracteriza-o como sujeito de direito real e verdadeiro. Dessa forma, as pessoas jurídicas são uma realidade sociológica, como seres vivos, que surgem por imposição de fatores sociais.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 124

iv) Teoria da pessoa jurídica como realidade técnica — Segundo expõe essa teoria, não se pode afastar a idéia de que as pessoas jurídicas são instituições que de fato existem e que sendo titulares de direitos e obrigações, integram relações transitando como verdadeiros atores jurídicos. Não se pode, portan-to, conceber sua existência como fi ctícia, mas sim como um expediente que embora real, resulta de elucubração da técnica jurídica.

v) Teoria institucionalista de Hauriou — A pessoa jurídica seria uma estru-tura orgânica. Quando a instituição alcança certo grau de concentração e de organização torna-se automaticamente pessoa jurídica.

No direito brasileiro as pessoas jurídicas têm realidade objetiva, pois assim é determinado pelo artigo 45 do CC2002:

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publi-cação de sua inscrição no registro.

Pessoas Jurídicas de Direito Privado

O Art. 44 do CC2002 elenca as pessoas jurídicas de direito privado. São elas: (i) as associações; (ii) as sociedades; (iii) as fundações; (iv) as organiza-ções religiosas; e (v) os partidos políticos.

Essa foi matéria sofreu grande reformulação com a edição do novo Código Civil. A parte geral desse diploma só trata das associações e fundações, reser-vando a disciplina das sociedades à parte especial.

As sociedades, como se observará na disciplina do direito empresarial, podem ser simples ou empresárias. A sua distinção pode ser depreendida no art. 966:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profi ssionalmente atividade eco-nômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profi ssão intelectual, de natureza científi ca, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profi ssão constituir elemento de empresa.

Por fi m, evitando enveredar por minúcias, o art. 982 do CC2002 alude às sociedades empresárias como aquelas que, salvo exceções expressas, têm por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro.

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171 Sergio Campinho. O Direito da Em-

presa à luz do novo Código Civil. Rio de

Janeiro: Renovar, 2002; p. 32.

Considera o Código Civil todas as demais, incluindo as cooperativas, como sendo sociedades simples.

Sobre a distinção entre sociedades e associações, explana Sérgio Campi-nho que “[d]istinguem as sociedades das associações, a fi nalidade econômica que inspira essa comunhão de esforços pessoais que mantém seus integrantes associados. Nas associações os integrantes não visam à partilha de lucro (...). Nas sociedades, o ponto central da união de seus integrantes é a exploração de atividade com fi nalidade econômica, buscando a obtenção e divisão dos ganhos havidos nessa exploração”171

As fundações, por sua vez, caracterizam-se mediante a afetação de patri-mônio para determinado fi m pré-estabelecido por um instituidor. Não há uma conjugação de esforços que represente animus associativo e lhes é defeso qualquer outro objeto que não seja a persecução de fi ns religiosos, morais, culturais ou de assistência (art. 62 CC2002).

A Lei nº 10.825/2003 acrescentou os incisos IV e V ao rol de pessoas jurí-dicas de direito privado. O primeiro refl exo da alteração é que as igrejas dei-xaram de fi gurar como entidades de classe para se tornarem pessoas jurídicas de direito privado. A teleologia dessa alteração foi a proteção a autonomia das organizações religiosas. Garante-se a liberdade de criação, organização, estru-turação interna e funcionamento, vedando-se a ingerência do poder público.

A outra alteração foi relativa aos partidos políticos, que embora já consi-derados como pessoas jurídicas de direito privado por conta da edição da lei nº 9.096/95, e pela disposição constitucional constante no §2º do art. 17 da CF, não havia sido encampada pela redação original do CC2002. Com a edi-ção da lei nº 10.825, supre-se essa omissão legislativa. O seu funcionamento, contudo, reger-se-á por lei específi ca.

Requisitos para constituição da pessoa jurídica

Para a Constituição de uma pessoa jurídica exigem-se três requisitos bá-sicos:

(i) Vontade humana criadora;(ii) Observância das condições legais para sua formação;(iii) Liceidade de sua fi nalidade.A pessoa jurídica é criada por uma pluralidade inicial de membros que

se transformam, mediante assentimento de todos, numa unidade autônoma. Esse vínculo de unidade é elemento que caracteriza precisamente o momento de constituição da pessoa jurídica. Após esse período inicial de manifestação de vontade, a pessoa jurídica passa a existir, mas ainda num estado de latência.

Todavia, não só do agrupamento de indivíduos pode defl uir a formação de uma pessoa jurídica. A vontade, sempre a mola-mestra formadora, se apresen-

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ta em certas ocasiões como a destinação de bens de uma pessoa como vistas à consecução de um a determinada fi nalidade. Esse é o caso das fundações.

A observância das determinações legais é outro dos requisitos. Somente com o regular adimplemento dos requisitos estipulados por lei pode a pessoa jurídica operar os efeitos pretendidos. Em certos casos, inclusive, a constitui-ção de algumas pessoas jurídicas só pode se processar com autorização estatal. É a lei que regulamenta a inscrição no Registro Público como condição de existência legal da pessoa jurídica.

O fi m intentado pelo ente que se quer formar deve ser obrigatoriamente lícito. Não se pode conferir capacidade a instituição cujo fi m atente contra a ordem jurídica.

Nacionalidade das pessoas jurídicas

A nacionalidade interessa sobretudo ao regime das pessoas jurídicas de direito privado, sobretudo por conta da grande dinâmica das relações em-presariais e da distribuição espacial das atividades produtivas desempenhadas pelas empresas.

Para os que adotam a teoria da fi cção, a pessoa jurídica não tem nacionali-dade. Sendo mera fi cção, ela não é nem nacional nem estrangeira. Contudo, para os autores que de fato admitem a sua existência, como aqueles que ado-tam a teoria da realidade técnica, faz-se necessário analisar a nacionalidade da pessoa jurídica, e nesse contexto, o eixo de análise está focado no local de constituição da pessoa.

O critério correntemente adotado é o do local da constituição, não se atentando, como prescrevem alguns autores, para a nacionalidade dos mem-bros ou para o lugar central da sede de negócios da pessoa. Esse inclusive é o entendimento expressamente manifesto no art. 11 da Lei de Introdução ao Código Civil:

Art. 11° — As organizações destinadas a fi ns de interesse coletivo, como as socie-dades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.

Capacidade e representação da pessoa jurídica

A personalidade das pessoas jurídicas é adquirida no momento em que é feito o registro de seu ato constitutivo. Logicamente, essa titularidade só abarca aqueles direitos compatíveis com a condição de ente fi ctício, ou seja, os patrimoniais. Tradicionalmente concebia-se que às pessoas jurídicas, em regra, não seria dado conferir direitos personalíssimos, mas o art. 52 do CC2002 traz um entendimento distinto. Segundo o referido artigo:

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Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

No exercício desses direitos a pessoa jurídica recorre a pessoas físicas que a representam. Esse entendimento, que era manifesto no artigo 17 do código de 1916, não foi expressamente repetido pelo CC2002. Limita-se o Código, contudo, a aludir em seu art. 46, III, que cuida dos requisitos para o registro das pessoas jurídicas, que o mesmo declare o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente.

As pessoas jurídicas, em especial no âmbito do direito societário, possuem uma ampla gama de regras pautando a responsabilidade dos seus adminis-tradores. De forma sucinta pode-se afi rmar que tendo a pessoa jurídica exis-tência distinta daquela relativa aos membros que a integram, o ato exarado por seu representante a vincula, bastando somente que ele atue dentro dos poderes que o ato constitutivo da sociedade lhe confi ra.

Pessoas jurídicas de direito público

As pessoas de direito público são aquelas especifi cadas pelo art. 41 do CC2002. O seu estudo será melhor detalhado na disciplina do direito admi-nistrativo. As entidades citadas nesse artigo são tanto as que compõem a ad-ministração direta (União, Estados e Municípios) como algumas das que inte-gram a administração indireta (autarquias, fundações públicas, entre outras):

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:I — a União;II — os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;III — os Municípios; (...)IV — as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº

11.107, de 2005)V — as demais entidades de caráter público criadas por lei.Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito

público, a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código.

A principal distinção existente, pelo menos no âmbito do direito civil, remete à responsabilidade dessas entidades. A disciplina jurídica, como será estudado mais à frente, volta-se no sentido de resguardar a pretensão indeni-zatória do indivíduo lesado por atos dessas pessoas jurídicas por intermédio da doutrina da responsabilidade objetiva.

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172 Sílvio Rodrigues. Direito Civil, v. I. São

Paulo: Saraiva, 2004; p. 95.

Responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado

Da mesma forma que as pessoas físicas, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas deve ser concebida nos planos contratual e extracontratual. Se a pes-soa jurídica age de forma a causar prejuízo, sendo esse resultante de infração a um determinado contrato pactuado, estar-se-á diante da responsabilidade contratual. Por outro lado, se não há vínculo contratual entre o causador do dano e o prejudicado, a responsabilidade é extracontratual.

Os elementos clássicos da responsabilidade civil são a conduta culposa do agente, o dano e o nexo de causalidade ligando o dano à prática daquela con-duta. Na responsabilidade subjetiva, só haverá reparação provando-se a culpa do agente. É a tese encampada no CC2002 no art. 186.

A responsabilidade objetiva, por sua vez, independe da culpa. Seus ele-mentos confi guradores são o dano e o nexo causal. É uma concepção mais so-fi sticada e que reside paralelamente à teoria da responsabilidade subjetiva. O legislador defi ne as hipóteses de cabimento de responsabilidade, aplicando-se ora a teoria subjetiva, ora a objetiva. A lei brasileira, sobretudo no que toca ao Código de Defesa do Consumidor já havia perfi lhado uma concepção ob-jetiva da culpa, e agora, ela encontra respaldo também no Código Civil que a prevê nos arts. 927 e 931, dentre outros.

Quanto à responsabilidade contratual, na hipótese de inadimplemento, dispõe o artigo 389 que:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices ofi ciais regularmente estabeleci-dos, e honorários de advogado.

Já com relação à responsabilidade extra-contratual, Silvio Rodrigues pro-clama que “até a vigência do Código de 2002, quando pessoa jurídica de fi na-lidade lucrativa causasse dano a outrem por ato de seu representante, surgia uma presunção juris tantum de culpa in eligendo e in vigilando, que precisava ser destruída pela própria pessoa jurídica, sob pena de ser condenada solida-riamente à reparação do prejuízo”172 O código de 2002 não repete essa regra, a qual era inscrita no art. 1522 do diploma anterior, de maneira que essa presunção de culpa tornou-se expediente obsoleto.

Para o tratamento da responsabilidade das pessoas jurídicas, faz-se neces-sário consultar os artigos 927 (responsabilidade objetiva por risco) e 932, III, (responsabilidade do empregador pelos atos do empregado):

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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173 Sérgio Cavalieri Filho, no seu Progra-

ma de Responsabilidade Civil, explicita

no tocante à responsabilidade nas rela-

ções de consumo que: “Veremos que a

responsabilidade estabelecida no Códi-

go de Defesa do Consumidor é objetiva,

fundada no dever e segurança do forne-

cedor em relação aos produtos e servi-

ços lançados no mercado de consumo,

razão pela qual não seria também

demasiado afi rmar que, a partir dele,a

responsabilidade objetiva, que era ex-

ceção em nosso direito, passou a ter um

campo de incidência mais vasto do que

a própria responsabilidade subjetiva”

(São Paulo: Malheiros, 2004; p. 40).

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especifi cados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvol-vida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:(...) III — o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos,

no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda

que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

No campo das relações de consumo, a lei nº 8078/90 (Código de Defesa do Consumir), atentando para a desproporção de forças que se opera nessa seara, já previa uma forma de responsabilização por parte dos fornecedores, fundada na teoria da responsabilidade objetiva, isto é, que independe da pro-va de culpa a ser realizada pelo consumidor lesado.173

Desconsideração da personalidade jurídica

A pessoa jurídica surge com o principal escopo de fazer com que o homem tenha o instrumental necessário a superação de suas limitações, sobretudo as de natureza física. Contudo, vezes há em que os indivíduos se valem desses entes cuja personalidade não se confunde com a das pessoas que lhe admi-nistram, para praticar ilegalidades. Em muitos casos, o tamanho da estrutura montada para o desenvolvimento das atividades da pessoa jurídica oculta com facilidade o verdadeiro proprietário dos bens. É justamente essa idéia que vem a inspirar a idéia de desconsideração da personalidade jurídica.

Não se pode consentir que se recorra à personalidade da pessoa jurídi-ca para encobrir a prática de ilícitos. Dessa forma, deve o julgador abstrair a idéia de personalidade jurídica para considerar os seus integrantes como pessoas físicas, responsabilizando-as diretamente, com os seus patrimônios, pelos prejuízos causados.

A desconsideração da personalidade jurídica está prevista no CC2002 em seu art. 50, da seguinte forma:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

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O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, já mencionava a possibilidade de desconsideração. Ressalte-se que a técnica legislativa nele empregada é distinta daquela presente no CC2002, ao dispor no seguinte sentido:

Art. 28 CDC. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A des-consideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Resta claro que o aplicador do direito, no uso desses dispositivos, deve ser parcimonioso, afi nal, o princípio que orienta a teoria da personalidade jurídica é justamente a distinção entre a pessoa da sociedade, associação ou fundação daqueles que a gerem ou a compõem. Ou seja, considerarem-se distintos os patrimônios das pessoas jurídicas e os de cada um dos sócios que a compõem, não respondendo pelas obrigações da sociedade o patrimônio do sócio, senão em caráter excepcional. Na lógica da desconsideração, deve-se atentar que a fi nalidade buscada pela lei é justamente a salvaguarda do credo-res lesados, e não o benefício da própria pessoa jurídica.

Extinção da pessoa jurídica

O artigo 21 do CC1916 mencionava as hipóteses de extinção das pessoas jurídicas:

“Art. 21. Termina a existência da pessoa judicial:I — pela sua dissolução, deliberada entre os seus membros, salvo o direito da

minoria e de terceiros;II — pela sua dissolução, quando a lei determine;III — pela sua dissolução em virtude de ato do Governo, que lhe casse a autori-

zação para funcionar, quando a pessoa jurídica incorra em atos opostos aos seus fi ns ou nocivos ao bem público”

De acordo com a ordem dos incisos, têm-se respectivamente as hipóteses de dissolução: autêntica, quando decorrente de expressa manifestação dos membros; legal, quando a lei assim determina; e administrativa, quando o fi m da personalidade deriva de ato administrativo.

Sendo pessoa jurídica com fi ns lucrativos, no caso de dissolução, o seu pa-trimônio é distribuído entre os seus integrantes. Por outro lado, tratando-se

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de uma associação, que visa à fi ns pios, religiosos ou culturais, a questão da distribuição do capital remanescente engloba alguns outros fatores.

Primeiramente, deve-se buscar auxílio no que dispõem os estatutos. Caso esses sejam silentes, deve-se inquirir se os sócios realizaram alguma delibe-ração discutindo a destinação do capital. Se ainda assim não se apresentar solução, deve-se recorrer ao art. 61 do Código Civil, que afi rma a necessidade de devolver o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fi ns semelhantes. Inexistindo instituições com esse caráter, deve o patrimônio ser revertido à fazenda pública.

2. CASO GERADOR

No dia 11 de junho de 1996 houve uma explosão no Osasco Plaza Sho-pping, centro comercial localizado na cidade de mesmo nome, no Estado de São Paulo. O movimento de consumidores no shopping no momento da explosão era intenso, uma vez que se tratava da véspera do dia dos namora-dos. A explosão ocorreu no horário de almoço, nas proximidades da praça de alimentação. Segundo laudo técnico, a explosão ocorreu em decorrência de acúmulo de gás em espaço livre entre o piso e o solo. Como conseqüência do acidente, 40 pessoas foram mortas e mais de 300 fi caram feridas.

Foram propostas diversas ações indenizatórias contra a empresa que admi-nistra o shopping. Ao ser constatado que a mesma não mais possuía capital para ressarcir as vítimas do acidente, questionou-se a possibilidade de ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo diretamente o patrimônio dos sócios da referida sociedade.

É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da em-presa que explora a administração do shopping center em ações indenizató-rias propostas por pessoas que sofreram danos por conta do acidente narrado? Justifi que com base na legislação.

3. QUESTÃO DE CONCURSO:

Prova para ingresso no cargo de Procurador do Estado do Rio de Janeiro (13º concurso)

1ª Questão: (25 pontos)Compare a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica no

Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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UnB/CESPE — OAB39º Exame de Ordem 2009.2

QUESTÃO 23

Os sócios da Frente e Verso Tecidos Ltda. Praticaram atos desvirtuados da função da pessoa jurídica, constatando-sefraude relativa à sua autonomia pa-trimonial. Os credores propuseram a ação judicial competente e o juízo a quo decretoua desconsideração da personalidade jurídica da referida sociedade. Considerando a situação hipotética apresentada e a disciplina normativa da desconsideração da personalidade jurídica, assinale a opção correta.

A. O juízo a quo não tem competência para decretar a desconsidera-ção da personalidade jurídica da Frente e Verso Tecidos Ltda., mas apenas para decidir por sua dissolução, total ou parcial, nos casos de fraude relativa à autonomia patrimonial.

B. A decretação da desconsideração da personalidade jurídica da Fren-te e Verso Tecidos Ltda. acarreta sua liquidação.

C. A decisão judicial importará na extinção da Frente e Verso Tecidos Ltda., com a posterior liquidação de seus bens materiais e imate-riais.

D. A desconsideração da personalidade jurídica importará na retirada momentânea da autonomia patrimonial da Frente e Verso Tecidos Ltda., para estender os efeitos de suas obrigações aos bens particu-lares de seus sócios.

Resposta: D

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AULA 12 — PESSOAS JURÍDICAS — SOCIEDADE, ASSOCIAÇÕES E FUNDAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS

Sociedades — Associações — Fundações

LEITURA OBRIGATÓRIA

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 343/365.

LEITURAS COMPLEMENTARES

CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à Luz do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; pp. 33/58.

1. ROTEIRO DE AULA

O artigo 53 do código civil afi rma que associações são entidades criadas vi-sando à consecução de fi ns não lucrativos. As sociedades, por sua vez, diferem-se das associações na medida em que objetivam o lucro.

Um aspecto inicial de que não se pode abstrair é a idéia de que as associa-ções e as sociedades civis possuem seu campo de ação limitado exclusivamen-te à órbita civil, distinguindo-se assim das modalidades delineadas pelo direi-to empresarial (cuja previsão encontra-se a partir do art. 966 do CC2002).

Destaque-se que o parágrafo único do art. 53 corrobora a idéia de que a pessoa jurídica difere, em sua personalidade, da de seus componentes, pois expressa que entre eles não defl uem obrigações.

Sob a égide do CC1916, havia dúvida acerca do que caracterizaria o termo “associação sem fi ns econômicos”. Dessa forma, é necessário destacar que a não existência de fi ns econômicos refere-se a não persecução de lucro. Lucro esse que sendo auferido pelo exercício do objeto social é revertido em prol daqueles que a compõem.

Todavia, nem sempre o fato da associação lidar ordinariamente com va-lores pecuniários implica na idéia de que ela visa a obter lucro. Esse é o caso por exemplo de um clube recreativo que cobra uma mensalidade de seus membros. Os valores visam somente à conservação e ao aumento de capital

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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174 Silvio Venosa. Direito Civil, v. I. São

Paulo: Atlas, 2004; p. 292.

da própria entidade. Aqueles que a integram, benefi ciar-se-ão apenas de for-ma indireta, como na fruição de melhores dependências, mas não há que se falar quantias que lhes sejam devidas.

Preenchidos certos requisitos, as pessoas jurídicas de direito privado po-dem ser declaradas de utilidade pública. Essa declaração deverá ocorrer por decreto do Poder Executivo, quando o seu escopo se prestar à perpetuação de bens públicos para a coletividade e não sendo remunerados os cargos de di-retoria. Em que pese a maior proteção do Estado, essas entidades continuam sendo pessoas jurídicas de direito privado.

Associações

O CC2002 regula as associações nos artigos 53 a 61. O tratamento das associações passa ainda pelo preceito constitucional relativo à liberdade de associação, constante do art. 5º, XVII.

Todas as atividades lícitas podem ser buscadas pelas associações, como as pias, religiosas, esportivas, literárias. Verifi ca-se assim que desempenham re-levante papel social. Constitui portanto ilicitude quando a entidade se forma sob a modalidade de associação e opera com desvio de fi nalidade em suas ações.

O art. 54 do CC2002 trata dos requisitos obrigatórios para a regular cons-tituição de uma associação. São requisitos mínimos que devem constar no estatuto da associação: (i) a denominação, os fi ns e a sede da associação; (ii) os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; (iii) os direi-tos e deveres dos associados; (iv) as fontes de recursos para sua manutenção; (v) o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (vi) as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e (vii) a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.

Nesse particular, explicita Venosa que “[é] importante que o estatuto esta-beleça a proveniência dos fundos, que podem derivar de contribuições iniciais e periódicas dos próprios associados ou de doações de terceiros. Nada impede que a associação exerça alguma atividade que lhe forneça meios fi nanceiros, sem que com isso se descaracterizem suas fi nalidades. O exame será muito mais do caso concreto. Assim, por exemplo, uma agremiação esportiva ou social pode cobrar por serviços de locação de suas dependências para eventos; pode vender lembranças e uniformes; pode cobrar pelos serviços de fi sioterapia; exames mé-dicos, etc. O que importa verifi car é se não existe desvio de fi nalidade.”174

Os estatutos constituem a lei orgânica das associações, contendo normas de caráter cogente para os seus fundadores e todos aqueles que futuramente decidam participar dela. Justamente, a aff ectio societatis se manifesta pela ade-são à associação e aos regulamentos que a compõem.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 135

175 Art. 55. Os associados devem ter

iguais direitos, mas o estatuto poderá

instituir categorias com vantagens

especiais.

176 Silvio Rodrigues. Direito Civil, v. I. São

Paulo: Saraiva, 2004; p. 99.

O Art. 55 do CC2002 estipula que não há necessidade de tratamento igual a todos os associados. Existe assim a possibilidade de instituir categorias com vantagens especiais.175 Ainda sobre distinção entre associados, o art. 56 alude a duas categorias distintas de associados: os com ou sem participação em quota ou fração ideal do patrimônio da entidade (sócios patrimoniais e sócios meramente contributivos).

Mesmo na primeira hipótese de vínculo associativo, a transferência a ou-trem dessa parcela patrimonial, por negócio inter vivos ou mortis causa, não tem de per si o poder de converter o sucessor em sócio. Deverão ser observa-das as disposições estatutárias da associação, não lhe sendo vetado obstar que esse terceiro estranho ao corpo social passe a integrá-lo. A idéia fundamental é que a sociedade faça um juízo de oportunidade e conveniência quanto à admissão de novos sócios. Isso se corrobora com a idéia de que em regra a condição de sócio é intransmissível, salvo permissão do estatuto (art. 56).

No caso de dissolução da associação, o restante do patrimônio líquido, depois de deduzidas as quotas dos associados será, na forma do art. 61, des-tinada a entidades de fi ns não econômicos. Elas podem ser tanto designadas no estatuto, ou no caso de omissão deste, por deliberação dos associados. Em qualquer caso, o destinatário será instituição municipal, estadual ou federal cujos fi ns são semelhantes.

Fundações

A fundação é uma universalidade de bens — universitas bonorum — a que a lei atribui personalidade jurídica. Segundo expõe Silvio Rodrigues: “se o direito tem por escopo proteger os interesses humanos, é de certo modo ilógico imaginar a atribuição de personalidade a um acervo de bens. Todavia, a objeção pode ser contornada se considerarmos que, embora a fundação consista num patrimônio, a sua instituição almeja atingir a satisfação de algum interesse humano.”176

Diferentemente das sociedades e associações que se assentam na idéia de uma coletividade de pessoas unidas por um fi m comum, o núcleo das funda-ções resta num determinado acervo de bens. O ponto nuclear, portanto, não é mais aff ectio societatis de alguns indivíduos, mas a reserva de determinado patrimônio para o atingimento de determinados objetivos. O artigo 62 inau-gura o capítulo próprio das fundações:

Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especifi cando o fi m a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.

Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fi ns religiosos, morais, culturais ou de assistência.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 136

No iter constitutivo de uma fundação, é preciso destacar dois momentos distintos: por um lado, existe um ato de fundação propriamente dito, que deriva da emanação de vontade, e por outro, o ato de dotação de um patri-mônio que lhe dará vida.

Como dita o art. 62, o ato de dotação compreende a reserva de bens livres, a indicação dos fi ns e a maneira pela qual o acervo será administrado, poden-do ser feito tanto por escritura pública como por testamento.

Os bens indicados nessa dotação devem estar livres e desembaraçados, pois qualquer ônus que recaia sobre eles poderia obstar a formação da enti-dade, atentando, concomitantemente, contra o relevante interesse social que ela visa a alcançar.

A doutrina distingue duas modalidades de instituição: a direta e a fi duciá-ria. De acordo com a primeira, o instituidor delineia, através da manifestação de sua vontade, um número maior de contornos que a fundação deve abarcar. Nela, é o próprio instituidor que projeta e regulamenta a fundação. No caso da formação fi duciária, a responsabilidade pela organização da fundação é delegada a outrem. O instituidor tão somente afeta os bens àquele objetivo, mas não interfere diretamente na sua concretização.

A lei confere ainda especial proteção aos bens dotados que não formam montante sufi ciente para a constituição da fundação. Sob essa constatação existiria perspectiva quase certa de se frustrar o intento do instituidor. Sobre o tema, prescreve o art. 63 do CC2002 que nessas circunstâncias, os bens destinados à fundação serão, se de outro modo não dispuser o instituidor, incorporados em outra fundação que se proponha a fi m igual ou semelhante.

Dispositivo que não encontra paralelo no CC1916 é o art. 64. Ele confere nova dimensão ao princípio da irrevogabilidade de declaração de vontade do instituidor, na medida em que nem mesmo aquele que realiza a dotação tem a faculdade de revogá-la. O intento do legislador é coibir que a constituição de uma fundação se torne subterfúgio para o aperfeiçoamento de um fi m jurídico ou moralmente escuso.

Dado o relevante fi m social em jogo, os artigos 65 e 66 do CC2002 men-cionam algumas atribuições conferidas ao Ministério Público com respeito às fundações. Os arts. 1199 e seguintes do CPC tratam também da fi scalização e organização das fundações, especifi cando algumas funções reservadas ao Ministério Público.

O art. 69 do CC2002, por fi m, prevê os casos em que se deve processar a dissolução das fundações. A extinção pode ser requerida por qualquer inte-ressado ou pelo Ministério Público, sendo a mesma decretada por sentença. O patrimônio deverá ser incorporado em outra fundação de fi ns semelhantes determinada no estatuto ou ato constitutivo. Na omissão destes, o patrimô-nio será destinado à outra fundação designada pelo juiz.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Sociedades

O traço distintivo da sociedade perante as associações é a busca do lucro no desenvolvimento de suas atividades. Em função do seu objeto ou da for-ma societária adotada, as sociedades podem ser ou empresárias ou simples.

Nas sociedades empresárias, o elemento essencial para a sua caracterização é o caráter profi ssional de sua gerência, que se expressa no exercício de modo habitual da atividade econômica e no intento de obter lucratividade.

Recorrendo a elementos constantes da redação do art. 966, a sociedade empresária é aquela que explora habitualmente atividade econômica orga-nizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. A busca pelo lucro e a idéia de profi ssionalismo são, como visto, traços caracterizadores fundamentais.

As sociedades simples, por sua vez, não são aquelas destituídas do escopo de angariar lucro, uma vez que essa é característica própria de todas as socie-dades. A sociedade simples, portanto, também executa atividade econômica e seus integrantes partilham os resultados auferidos.

Essa sociedade tem as suas atividades econômicas especifi cadas na legis-lação. É o ordenamento jurídico positivo quem lhe reserva o objeto social e confere a qualifi cação como sociedade simples. Trata-se, portanto, de uma opção legislativa.

Sendo assim, serão sociedades simples todas aquelas que adotarem: (i) forma de cooperativa; (ii) exercerem objeto atinente à atividade própria de empresário rural; ou ainda (iii) executarem atividades defi nidas por lei como não empresariais, como as localizadas no parágrafo único do art. 966 do CC2002.

QUESTÕES DE CONCURSO:

Exame da Ordem — OAB/SP nº 12621. Relativamente às associações civis é INCORRETO afi rmar:

(A) As associações civis constituem um conjunto de pessoas que coli-mam fi ns ou interesses não econômicos, que podem ser alterados, pois seus membros deliberam livremente, já que seus órgãos são dirigentes.

(B) O ato constitutivo da associação consiste num conjunto de cláusu-las contratuais vinculantes, que unem seus fundadores e os novos associados que, quando nela ingressarem, deverão submeter-se aos seus comandos.

(C) A associação deverá ser constituída, por escrito, mediante redação de um estatuto, lançado no registro competente, contendo decla-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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ração unânime da vontade dos associados de se congregarem para formar uma coletividade, não podendo adotar

(D) qualquer das formas empresárias, visto que lhe falta o intuito espe-culativo.

(E) A associação é um contrato pelo qual um certo número de pessoas, ao se congregar, coloca em comum serviços, atividades, conheci-mentos, em prol de um mesmo ideal, objetivando um fi m não eco-nômico ou econômico, com ou sem capital, com

(F) ou sem intuitos lucrativos.Exame da Ordem — OAB/SP nº 125

23. No que diz respeito às pessoas jurídicas, é INCORRETO afi rmar:(A) As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis

pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a ter-ceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

(B) Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito público com a inscrição do ato constitutivo no registro pertinente, decaindo em cinco anos o direito do particular interessado pleitear a anulação de seus atos constitutivos.

(C) São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estran-geiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacio-nal público.

(D) Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes defi nidos no ato constitutivo.

Exame da Ordem — OAB/SP nº 123

21. Alberto instituiu uma fundação por escritura particular, com fi nalida-de educacional, e com dotação de bens livres, tendo registrado o instrumento no Cartório de Títulos e Documentos, deixando de mencionar a maneira de administrá-la.

(A) A fundação não está corretamente instituída; todavia, o registro su-pre a irregularidade, uma vez que a fi nalidade é válida, sendo possí-vel estipular, a posteriori, o modo de administrá-la.

(B) A fundação está corretamente instituída, com registro e fi nalidade perfeitos, podendo estabelecer-se, a posteriori, o modo de adminis-trá-la.

(C) A fundação está corretamente instituída, porque, nela, o essencial é a fi nalidade e a dotação de bens livres.

(D) A instituição fundacional é nula, integralmente, como nulo é o seu registro.

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PARTE III: DIREITO DOS BENS

AULA 13 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — BENS

EMENTA

Conceito de Bens — Classifi cação dos Bens — Bens Corpóreos e Incorpóreos — Bens Móveis e Imóveis — Bens fungíveis e infungíveis — Bens consumíveis e não-consumíveis — Bens divisíveis e indivisíveis — Bens disponíveis e indispo-níveis — Bens públicos e particulares — Bens de produção

CASOS GERADORES

“Roubo de Terras” e “Apreensão de Caça-Níqueis”

LEITURA OBRIGATÓRIA

CALIXTO, Marcelo Junqueira. “Dos Bens”, in TEPEDINO, Gustavo (org). Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 149/176.

LEITURAS COMPLEMENTARES

EBERLE, Simone. “Novos bens para novos tempos: por uma teoria coeren-te e unifi cada dos bens”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 23 (2005), pp. 105-118; e AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdu-ção. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 297/327.

1. ROTEIRO DE AULA

A presente aula visa a estabelecer um dos conceitos-chave do direito civil: o estudo dos bens. A disciplina relativa aos bens se confunde com uma sé-rie de classifi cações, dando a impressão de que conhecer a matéria signifi ca apenas decorar todas as classifi cações apresentadas pelos livros. Como você verá, aprender a classifi car os bens é um exercício de primeira importância no direito civil moderno, pois é justamente a classifi cação que determinará, em

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177 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, vol 1. Rio de Janei-

ro: Forense, 2004; p. 400.

178 Código Civil Português, art. 202.

179 Código Civil Brasileiro (1916), art.

54: “As coisas simples ou compostas,

materiais ou imateriais, são singulares

e coletivas (...)”.

180 José Cretella Júnior. Curso de Direito

Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1995;

p. 110.

diversas hipóteses, a natureza de um contrato ou a possibilidade de um bem ser objeto de penhora.

Mas o que é um “bem”? Para Caio Mário, bem é tudo aquilo que agrada ao homem, podendo ser inseridos nessa categoria os seguintes elementos: a alegria de viver o espetáculo do pôr-do-sol177, o dinheiro, a herança de um parente, entre outros. Mas não será que existe uma diferença entre aplaudir o pôr-do-sol e receber uma herança? A primeira distinção que pode se fazer é com base no critério da patrimonialidade. Todavia, é im-portante lembrar que a patrimonialidade não é requisito necessário para a caracterização de um bem jurídico, pois o direito também reconhece bens que não podem ser apreciados economicamente, como o direito ao nome e o estado de fi liação.

Segundo expõe Caio Mário, “[o]s bens, especialmente considerados, distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são materiais ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome de bens, em sentido estrito.” Nesse sentido, entende o autor que a diferenciação entre bem e coisa se refere à materialidade do objeto de análise.

Os entendimentos sobre o tema variam inclusive na legislação estrangeira. O Código Civil português determina que “coisa” tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas178. Os italianos, por sua vez, também consideram “coisa” um termo mais amplo do que “bem”.

O Código Civil de 1916 não adotou nenhum desses entendimentos, usando os termos “bem” e “coisa” indistintamente179. Essa imprecisão termi-nológica foi encerrada no Código Civil de 2002, unifi cando a linguagem. O Código refere-se apenas a “bens”, englobando tanto os bens materiais como os imateriais, não sendo necessário fazer-se a distinção entre “bem” e “coisa”.

Bens Corpóreos e Incorpóreos

Divisão vinda do direito romano, as “coisas corpóreas” (“res corporales”) são os bens materiais, tangíveis, “que podem ser tocados” (“quae tangi pos-sunt”). Bens incorpóreas são os chamados bens imateriais, ou seja, que não podem ser tocados.180

Todavia, deve-se ressaltar que o critério de diferenciação não pode ser em si a tangibilidade, uma vez que a corporalidade (meio físico) por vezes só pode ser estabelecida por via indireta. O interesse prático dessa distinção re-side no fato de que os bens corpóreos podem ser objeto de compra e venda, enquanto os incorpóreos só podem ser objeto de cessão lato sensu, como os direitos autorais sobre obra artística.

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181 Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol. I.

São Paulo: Saraiva, 2003; p. 124.

182 Marcelo Calixto. “Dos Bens”, in Gusta-

vo Tepedino (org.) Parte Geral do Novo

Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,

2002; p. 158.

Bens Imóveis

Para o direito civil clássico, a principal classifi cação de bens é aquela que os divide em bens móveis e imóveis. Diversas são as conseqüências dessa classifi cação, pois o tratamento concedido a um bem, dependo se for móvel ou imóvel, varia desde o seu registro, além de alcançar a transmissão da pro-priedade, a disciplina das garantias reais, etc.

A importância concedida ao bem imóvel, em especial, deriva de sua tradi-ção em ser associado à riqueza. O direito romano já fazia essa distinção para privilegiar os bens imóveis, ou seja, a terra, e os instrumentos diretamente necessários para sua exploração como escravos e animais (res mancipi).

A trajetória brasileira também seguiu (e ainda segue) a prevalência dos bens imóveis como sinônimo de riqueza. Esse contexto apenas recentemen-te começou a ser modifi cado, principalmente com a crescente importância atualmente dedicada ao regime da propriedade intelectual (direitos autorais, marcas e patentes).

Entretanto, a tradição agrária não foi eliminada no direito brasileiro, fa-zendo-se presente no tratamento concedido aos bens imóveis. Essa constata-ção passa pela formalidade para a transmissão da propriedade imobiliária e se torna mais evidente na necessidade apresentada pelo mercado de fi adores possuírem bens imóveis.

Os bens imóveis são divididos em quatro categorias:(i) por natureza: trata-se do solo e tudo o que lhe é aderente sem a inter-

venção humana. Dessa forma, árvores, arbustos e plantas são imóveis por estarem presas ao solo pela raiz, mesmo se tiverem sido plantadas;

(ii) por acessão física: tudo o que o homem incorpora permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e as construções que não podem ser retiradas sem sua destruição, modifi cação, fratura ou dano. Os pavilhões para exposição que são posteriormente destruídos são imóveis por acessão. São excluídas desse regime as construções como barracas de feiras, tendas de circo e parques de diversão itinerantes.

(iii) por acessão intelectual: são bens móveis que se tornam imobilizados pela vontade humana, como “máquinas instaladas numa indústria, um qua-dro pendurado na parede de uma residência, um trampolim beirando uma piscina”.181 Trata-se de uma fi cção legal, que permite ao proprietário em vir-tude do destino que ele atribua ao objeto, a mudança de sua natureza. O Código Civil de 2002 alterou este instituto, hoje regulado pelos princípios relativos às pertenças, e em regra não seguem o destino do bem a que se acham vinculados (art. 94 do Código de 2002).182

(iv) por determinação legal: são os bens que a lei trata como imóveis, como direitos reais sobre imóveis, o direito à sucessão aberta, entre outros. Casa de madeiras que podem ser transportadas de um lugar a outro sem serem destru-

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ídas não perdem a classifi cação de imóveis, nem materiais que são separados de um imóvel para depois serem reempregados.

Bens Móveis

São bens móveis aqueles suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou de sua destinação econômi-co-social, ou aqueles que a lei confi ra expressamente esse regime de aplicação. Dessa forma, pode-se falar em duas categorias de bens móveis:

(i) por natureza: todas os bens suscetíveis de deslocamento sem alteração de substância ou de destinação econômico-social. Aqui temos as exceções dos bens imóveis por acessão; e

(ii) por determinação legal: são bens com o gás, a energia elétrica e outras formas de energia, os direitos reais sobre móveis, os direitos pessoais de cará-ter patrimonial e suas respectivas ações. Todos eles tornam-se móveis porque assim dispôs o legislador. Navios e aeronaves, embora sobre eles recaia a hipo-teca, são bens móveis. Além destes, os direitos autorais também são reputados bens móveis.

Bens fungíveis e infungíveis

Bens fungíveis são os que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Os bens infungíveis, por seu turno, são os que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Os bens fungíveis atendem ao princípio de que o gênero nunca perece (genera nunquam pereunt). O dinheiro é o exemplo sempre citado. Uma dí-vida contraída por conta de um empréstimo de R$ 10 (dez) reais não obriga o devedor a devolver a mesma nota de R$ (dez) reais que foi utilizada para a realização do empréstimo, mas qualquer outra nota de R$ 10 (dez) reais, ou duas notas de R$ 5 (cinco) reais, ou dez notas de R$ 1 (hum) real e assim por diante.

A fungibilidade é própria dos bens móveis, pois os imóveis são únicos e por esse motivo infungíveis. Só pode haver um bem imóvel em um dado endereço. Já os bens móveis não sofrem da mesma restrição.

A vontade das partes pode transformar um bem fungível em infungí-vel. Por exemplo, um livro, após ser autografado por seu autor, passa a ser único.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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183 Orlando Gomes. Introdução ao Direi-

to Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999;

p. 225.

Bens consumíveis e não-consumíveis

Caso fosse adotado um rigor científi co extremo, nenhum bem seria em si consumível, pois segundo as leis da natureza, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Entretanto, ao direito interessa a escala humana, e um bem é consumível se o seu uso implica na destruição imediata de sua própria substância (consu-mibilidade natural), ou se o mesmo é destinado à alienação (consumibilidade jurídica).

É acertada a decisão do legislador de separar o conceito de fungibilidade do de consumibilidade. Não existe correlação absoluta entre as duas idéias. Um livreiro pode oferecer manuscritos de um autor à venda, e esses são con-sumíveis, embora infungíveis.

Bens divisíveis e indivisíveis

A divisibilidade é própria do bem. Diz-se divisível o bem que “sem mo-difi cação da substância ou considerável desvalorização, pode dividir-se em partes homogêneas e distintas.”183 Já os bens indivisíveis são aqueles que não podem ser partidos sem alteração de sua substância ou sacrifício do seu valor. Trata-se de um critério com bases utilitaristas, voltado para a manutenção do valor econômico do bem.

A indivisibilidade pode ser criada pela vontade humana, como, por exem-plo, uma dívida que só pode ser paga integralmente.

Bens singulares e coletivos

O novo Código Civil mantém essa distinção, embora só conceitue os bens singulares (art. 89), que reunidos, são considerados de per si, independente dos demais.

Os bens coletivos, ou universais, são tratados como agregados em um todo. Na universalidade de fato há uma pluralidade de bens autônomos a que se dá uma destinação unitária, como no caso de uma biblioteca. Na uni-versalidade de direito há o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico, como no patrimônio e na herança.

Essa classifi cação será de grande importância para o estudo de temas li-gados à prática contratual e ao Direito Empresarial, como o estabelecimento empresarial (fundo comercial) e a concorrência desleal.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Bens disponíveis e indisponíveis

Bens disponíveis são aqueles que podem ser objeto de negócios jurídicos. Para os romanos esses eram os res in commercium, em contraposição aos res extra commercium.

Os bens indisponíveis podem ser divididos em 3 categorias: os natural-mente indisponíveis, como o ar atmosférico, o mar, que não podem ser su-bordinados à dominação humana; bens legalmente indisponíveis, como bens públicos de uso comum, a honra, a vida; e os bens inalienáveis pela vontade humana, submetidos a uma cláusula de inalienabilidade.

Bens públicos e particulares

Considerando os bens em relação ao seu titular, podem os mesmos ser de natureza pública ou privada. Esta distinção encontra embasamento no tex-to constitucional, defi nindo o art. 20 da Constituição Federal os chamados “bens da União”.

Os bens públicos são divididos em: bens de uso comum, como ruas, estra-das e praças; bens de uso especial, destinados ao serviço ou ao estabelecimento de algum dos entes da Administração Pública, como edifícios de repartições públicas; e bens dominicais, que integram o patrimônio de pessoas jurídicas de direito público como objeto de direito pessoal e real dessas entidades.

É vedada a alienação de bens de uso comum e de uso especial. Somente os bens dominicais podem ser objeto de negócios jurídicos, ainda assim sendo necessária a respectiva autorização legislativa.

O professor poderá trabalhar com os alunos, durante a aula, algu-mas perguntas que enfatizam aspectos práticos de todas as classifi cações estudadas. São sugeridas as seguintes questões:

(i) O sistema de classifi cação dos bens poderia ser diferente? Este sistema refl ete o sistema econômico atual?

(ii) Um livro está em uma estante de uma livraria. Qual é sua clas-sifi cação? Depois é comprado por um aluno de uma Faculdade de Di-reito. Este mesmo aluno leva o livro para uma palestra de seu famoso autor onde este livro é autografado. Houve mudança na classifi cação? Este mesmo aluno se forma e, com os anos, torna-se um importante ju-rista, passando o livro a integrar sua biblioteca. Houve nova alteração?

(iii) A proibição de alienação de bens públicos de uso especial é jus-tifi cável em todos os casos?

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2. CASOS GERADORES

2.1. “Roubo de Terras”:

Muito se fala na imprensa sobre “roubo de terras”:

“De tais conversas extraem-se provas cabais de que o empresário está envolvidocom o roubo de terras públicas do DF.”(in www2.correioweb.com.br/cw/ EDICAO_20021012/col_cor_121002.htm)“Os fatos são: A matéria que [a revista] publicou sobre o maior roubo de terras

públicas da Amazônia tinha 4 páginas.”(in www.carosamigos.terra.com.br/novas_corpo_ci.asp?not=602)“Não ao roubo de terras”. “Os manifestantes carregavam cartazes com osdizeres: “Coexistência sem muros”, “Paz, liberdade e segurança para os dois povos”.”(in www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/ story/2003/07/030716_guilacb.shtml)

Mas será correta essa designação? O caso abaixo explora os efeitos práticos de se aplicar a correta classifi cação dos bens.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recebeu da Delegacia de Polícia de Petrópolis inquérito policial que indicava fortes indícios de roubo de terras por um grupo armado. O grupo invadiu o terreno de uma fazenda produ-tora de hortaliças e afugentou os trabalhadores mediante uso de machados e facas. Os ladrões se recusam a sair do terreno, alegando que este agora lhes pertence. Os empregados da fazenda não conseguem voltar ao trabalho.

O Promotor de Justiça da Comarca de Petrópolis, ao receber o inquérito, ime-diatamente ofereceu denúncia contra todos os integrantes da quadrilha por roubo, art. 157 do Código Penal, o qual está assim redigido:

Roubo

Art. 157 — Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena — reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

A classifi cação dos bens foi corretamente empregada no caso concreto? A sua aplicação no caso poderia conduzir a um resultado distinto?

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A resposta à pergunta é bastante simples, uma vez que o promotor usou erroneamente o tipo penal, mas o exemplo ajudará os alunos a perceber a importância de se classifi car corretamente os bens.

Como alternativas ao crime de roubo, pode-se trabalhar com os alu-nos as hipóteses de aplicação dos crimes de esbulho possessório (art. 161, II CP) ou Extorsão (art. 158), apenas para que eles tenham idéia das diferenças práticas que ocorreriam se outro tipo penal fosse utiliza-do (principalmente na pena a qual o infrator poderia ser condenado).

2.2. “Apreensão de Caça-Níqueis”:

A empresa FunTime Jogos e Diversões Eletrônicas Ltda. importa máquinas caça-níqueis da Bolívia e contrata a sua disponibilização em bares e boates na cidade do Rio de Janeiro. Depois de dez anos no mercado, ela começa a sofrer prejuízos com constantes ações da polícia, geralmente culminando na apreensão de suas máquinas. Cada máquina que é apreendida pela polícia representa um signifi cativo prejuízo para a empresa, uma vez que o estabelecimento objeto da operação policial geralmente decide romper o contrato com a FunTime para evi-tar maiores transtornos com as autoridades policiais.

Preocupados com essa situação, os advogados da FunTime resolvem ingressar em juízo com uma medida ousada: impetrar mandado de segurança em face do Exmo. Sr. Secretário de Estado e de Segurança Pública do Estado do Rio de Ja-neiro para buscar decisão que impeça a policia de apreender as suas máquinas. Liminarmente, os advogados pediriam a suspensão de toda e qualquer ação da polícia no sentido de apreender as referidas máquinas.

Como principal argumento, alegam os advogados que as máquinas caça-ní-queis são “bens de produção” e, portanto, não poderiam ser apreendidas deli-beradamente pelas autoridades policiais, pois elas incorporam o acervo de bens indispensáveis para o funcionamento da empresa.

No seu entendimento, a liminar requerida pela FunTime deverá ser concedi-da? Justifi que.

O objetivo da questão é debater com os alunos o conceito de bem de produção. Após os debates, é aconselhável exibir na apresentação que for elaborada para essa aula a seguinte noticia veiculada pela imprensa:

CASSINO GUANABARASurgiu um entrave legal no combate às máquinas de caça-níqueis

que se espalham pela cidade. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justi-ça concedeu liminar à Sajal Locação de Máquinas de Diversões Ltda.

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determinando a devolução de todas as que foram apreendidas até hoje. Os advogados da empresa alegaram que os caça-níqueis são “bens de produção”. (Coluna Gente Boa — O Globo — 25.07.2005)

O número do processo é 2005.004.0967, j. em 19/07/2005, rel: Des. Sidney Hartung.

3. QUESTÕES DE CONCURSO

Concurso para ingresso na carreira de Advogado Geral da União (1998):51. Os frutos armazenados em depósito para expedição ou vendas são os:

(a) percipiendos(b) estantes(c) consumidos(d) percebidos(e) pendentes

Concurso para o cargo de Advogado Júnior — BR Distribuidora (maio/2004):

37. O Direito Civil não conhece a categoria de imóvel por:(a) natureza(b) fungibilidade(c) determinação legal(d) acessão física(e) acessão intelectual

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AULA 14 — BENFEITORIAS — BEM DE FAMÍLIA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Bens principais e acessórios — Benfeitorias necessárias — Benfeitorias úteis — Benfeitorias voluptuárias — Paradigma da Essencialidade — Bem de família — Requisitos — Inalienabilidade e Impenhorabilidade — Análise da Lei nº 8009 — Análise de jurisprudência

CASO GERADOR

Benfeitorias: Indenização e Retenção — “Home Th eater é bem de famí-lia?” — “Devedor solteiro, solitário e fi ador”

LEITURA OBRIGATÓRIA

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; pp. 385/392 e 413/428.

LEITURAS COMPLEMENTARES

AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Bens Acessórios”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 80/92. RIZZARDO, Ar-naldo. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002; pp. 296/306.

1. ROTEIRO DE AULA

A presente aula continua o estudo dos bens, analisando agora os bens re-ciprocamente considerados, com especial atenção para as chamadas benfeito-rias e sua correspondente classifi cação. Os bens reciprocamente considerados são tradicionalmente divididos em principais e acessórios. A benfeitoria, por sua vez é um bem acessório.

Muito se discute sobre a natureza de uma benfeitoria, se ela é necessária, útil ou voluptuária. Essa defi nição terá repercussões práticas importantes na relação contratual, sobretudo em contratos de locação de imóveis.

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A principal contribuição que o regime das benfeitorias concedeu ao estudo do direito civil moderno é, sem dúvida, a abertura de um campo fértil para a análise das relações jurídicas com base na utilidade dos bens para as pessoas. Com base em ampla jurisprudência, hoje é buscada a construção de uma te-oria sobre a aplicação do regime de classifi cação das benfeitorias (necessárias, úteis e voluptuárias) não apenas para os bens, para todo e qualquer contrato.

Esse é o chamado paradigma da essencialidade, que busca aplicar essa clas-sifi cação na interpretação e aplicação de cláusulas contratuais, privilegian-do disposições que asseguram condições necessárias para a vida do homem. Quando se fala que uma benfeitoria é necessária, estar-se querendo dizer que ela é necessária à conservação do bem principal, como um imóvel, por exem-plo. Ao classifi car um certo contrato como necessário, estar-se a exigir o seu cumprimento de forma prioritária, pois assim demanda uma pessoa humana.

O objetivo didático dessa aula é aprofundar o estudo das classifi ca-ções dos bens, introduzindo o aluno no estudo da jurisprudência, além de motivá-lo a pensar criticamente a classifi cação dos bens acessórios.

Em um primeiro momento, convém expor a posição da doutrina so-bre os bens acessórios e as pertenças, para depois exemplifi car o estudo com acórdãos.

Em um segundo momento, sugere-se que o professor faça com a turma uma análise sobre a classifi cação das benfeitorias, sempre à luz da jurisprudência. Ao término, convém expor aos alunos sobre as trans-formações que hoje atravessam as relações jurídicas, sobretudo com respeito à aplicação do chamado “paradigma da essencialidade”. Essa linha de raciocínio será posteriormente desenvolvida na aula sobre bem de família.

Bens Principais e Acessórios

Em um mundo complexo, as relações não podem ser analisadas indivi-dualmente. Há mesmo quem diga que, especifi camente na seara contratual, vivemos um momento de hipercomplexidade. No caso dos bens, podemos encontrar a mesma situação, particularmente no que concerne à relação entre bens principais e acessórios.

O Código Civil aborda o estudo dos bens reciprocamente considerados em capítulo próprio, do art. 92 ao art. 97. O bem principal, na dicção do art. 92, é aquele que “existe sobre si, abstrata ou concretamente”. Adverte San Tiago Dantas que o verbo existir da defi nição deveria ser melhor explicado. No seu exemplo, a existência de uma roda de um carro é independente, ela

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184 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, vol I. Rio de Janeiro:

Forense, 2004; p. 435.

ocupa espaço no mundo físico e é identifi cada como uma roda, entretanto ela só cumpre sua função econômica se estiver inserida dentro de um carro.

Já o bem acessório, segundo Caio Mário, “pela sua própria existência su-bordinada, não tem, nesta qualidade, uma valoração autônoma, mas liga-se-lhe o objetivo de complementar, como subsidiário, a fi nalidade econômica da coisa principal.”184

No tratamento dos bens reciprocamente considerados, duas são as regras principais: (i) o bem acessório segue o destino do bem principal (“accessorium sequitur principale”); e (ii) o bem acessório, formando um todo com o bem principal, integra o direito que sobre o mesmo exerce o titular.

Dá-se à primeira regra o nome de princípio da gravitação jurídica. O Có-digo Civil atual retirou esse princípio de seu texto uma vez que a lei permite que as partes convencionem de modo contrário, desvinculando o destino do bem acessório daquele reservado ao bem princiapal.

Todavia, o próprio Código Civil dispõe em diversos momento no sentido de vincular o acessório ao principal: (i) a posse do imóvel presume a dos mó-veis que nele estiverem (art. 1209); (ii) a obrigação de dar coisa certa abrange seus acessórios, ainda que não mencionados, exceto se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso (art. 233); (iii) a nulidade da obrigação principal importa a da cláusula penal (art. 922); e (iv) na disposição de um crédito são abrangidos todos os seus acessórios (art. 287).

Bens acessórios podem ser:Naturais — quando aderem espontaneamente ao principal sem a inter-

venção humana, como nos frutos das árvores, as crias de animais (não inse-minados através de ação humana); ou

Industriais — quando surgem do esforço humano, como as casas em rela-ção ao terreno onde se encontram; e

Civis — quando resultam de uma relação abstrata de direito, não de uma vinculação material como nos demais bens acessórios. É o caso dos juros em relação ao principal, os ônus reais em relação à coisa gravada, ou seja, direitos relacionados a relações jurídicas principais.

Além dessa classifi cação em bens acessórios naturais, industriais e civis, os bens acessórios podem ainda ser classifi cados em frutos, produtos e benfei-torias. Existe ainda a categoria das chamadas pertenças, inovação do Código Civil de 2002.

Frutos

Os frutos são as utilidades que a coisa periodicamente produz, sem des-falques da sua substância. A palavra “periodicamente” é de grande relevância, pois pela periodicidade é que os frutos podem ser diferenciados dos produtos.

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Os produtos, ao serem retirados, fazem a coisa perder substância. Por exem-plo, a retirada de carvão de uma mina é a retirada de um produto. A mina perde substância e em algum momento fi cará sem carvão, uma vez que o mesmo não se renova. Com a retirada de frutos, contudo, o bem não perde substância, possibilitando a sua retirada periodicamente.

Os frutos são classifi cados quanto a seu estado. Os frutos são pendentes, enquanto unidos à coisa que os produziu; percebidos ou colhidos, uma vez que são separados do bem principal; estantes, se depois de separados permane-cem armazenados ou acondicionados para posterior alienação; percipiendos, os que deviam ser, mas não foram percebidos; e, por fi m, consumidos, aqueles que não existem mais por terem sido utilizados.

Para que se tenha uma idéia da importância da classifi cação dos bens aces-sórios e, mais especifi camente dos frutos, veja a decisão abaixo:

CIVIL E CONSUMIDOR. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE UNIDADE AUTÔNOMA. DESCUMPRIMEN-TO DO PRAZO DE ENTREGA. RESCISÃO DO CONTRATO COM PERDAS E DANOS. Ação de rescisão de promessa de compra-e-venda de unidade autônoma c/c perdas e danos, fundada no descumprimento de cláusula do pacto que fi xa prazo para entrega da coisa pelo incorporador. Alegação de força maior consubstanciada na demora da obtenção de fi nanciamento junto ao agente fi nanceiro inimputável aos autores, já que se insere no risco do empreendimento e não pode ser considerado fato imprevisível. Devolução integral do desembolso. Tese incabível de pré-fi xação das per-das para a hipótese de inadimplemento, com cláusula penal meramente moratória. Renúncia clausular imposta ao consumidor à disputa de outras verbas que se afi gura abusiva, já que o coloca em desvantagem frente ao fornecedor do produto. Exegese do art. 51, IV, da Lei 8.078/90. Perdas in re ipsa, consubstanciadas nos frutos civis que retiraria da coisa, no valor de um aluguel mensal, quantum a ser encontrado em liquidação por arbitramento. Incidência correta de juros legais de 6% (seis por cento) ao ano até a entrada em vigor do novo Código Civil, e de 1% (um por cento) ao mês a partir daí, por força do art. 406 c/c § 1º, do art. 161, do CTN. Senten-ça que caminhou nessas direções, incensurável, improvimento recurso que pretendia revertê-la. Unânime.

(TJRJ — Apelação Cível nº 2005.001.00313, Des. Murilo Andrade de Carva-lho; j. em 26/04/2005)

A distinção feita entre os diversos tipos de frutos não é meramente teórica, uma vez que o possuidor de boa fé, por exemplo, faz jus aos frutos percebi-dos, mas não aos pendentes, nem aos colhidos antes do prazo. O possuidor de má-fé, por sua vez, não tem direito aos frutos, devendo restituir aqueles já percebidos.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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185 Marcelo Calixto, “Dos Bens”, in Gusta-

vo Tepedino (org.) Parte Geral do Novo

Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,

2002; p. 173.

Os frutos, como vemos sendo comercializados na Bolsa de Mercadorias e Futuros, podem até mesmo não existir fi sicamente. Isso não impede que transações sejam feitas com base neles, conforme expõe o acórdão abaixo:

Venda de safra futura. Bens móveis por antecipação. A venda de frutos, de molde a manifestar o intuito de separação do objeto da venda em relação ao solo a que adere, impõe a consideração de que tais coisas tenham sido, pela manifestação de vontade das partes contratantes, antecipadamente mobilizadas. Se, no momento do ajuizamento do feito, já havia sido realizada a colheita, tem-se como acertada a de-cisão que nega aos frutos a natureza de pendentes. Agravo a que se nega provimento.

(STJ, AgRg no Ag 174406 / SP, Min. Eduardo Ribeiro, j. em 25/08/1998)

Vale lembrar que, assim como os bens acessórios genericamente falando, também os frutos podem ser naturais, industriais e civis.

Produtos

Em oposição à defi nição encontrada para os frutos, os produtos são as utilidades retiradas de um bem que importam em redução de sua substância. Os produtos não são renováveis, pois a sua extração leva inexoravelmente ao esgotamento do bem de onde ele se deriva. O principal exemplo de produto é o mineral que se extrai de uma mina.

Pode-se dizer que os produtos são retirados periodicamente, mas esta pe-riodicidade é passageira. Os frutos podem ser retirados, a princípio, infi nita-mente, os produtos não.

Pertenças

O novo Código Civil dispôs no art. 93 sobre as pertenças. Diferentemente dos bens acessórios lato sensu, as pertenças são partes constitutivas da própria coisa e estão em conexão íntima com ela, mas podem ser separadas sem ter seu valor econômico destruído. As pertenças podem estar ligadas à utilização do bem para destinação de forma duradoura ao serviço, uso ou aformosea-mento do bem principal.

Diferente dos bens acessórios, as pertenças não seguem, em via de regra, o destino do bem principal, mas podem seguir por interesse das partes e por determinação legal, ou ainda por força das circunstâncias do caso. Sendo as-sim, a elas não se aplica o princípio da gravitação jurídica.185

Segundo Silvio Venosa, as pertenças tem como características: i) um vín-culo intencional, material ou ideal, estabelecido por quem faz uso da coi-sa, colocado a serviço da utilidade do principal; ii) um destino duradouro

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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186 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil,

vol I. São Paulo: Atlas, 2002; p. 311.

187 Arnoldo Wald. Curso de Direito Civil

Brasileiro, vol. I. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1992; p. 178.

e permanentemente ligado à coisa principal e não apenas transitório; e iii) uma destinação concreta, de modo que a coisa fi que efetivamente a serviço da outra. Sendo assim, a pertença forma, juntamente com a coisa, unidade econômico-social.186

Mesmo antes da entrada em vigor do novo Código Civil, a doutrina já reconhecia a existência das pertenças. O novo Código apenas inovou em conferir ao instituto um tratamento expresso em seu texto.

Benfeitorias

Benfeitorias são o resultado de despesas e obras com a conservação, melho-ramento ou aformoseamento de um bem principal. A sua classifi cação segue portanto o intuito de sua realização: para conservar, acrescer uma utilidade ou para simplesmente tornar mais confortável ou luxuoso o bem principal.

Na prática, é sempre preciso perguntar: em que consiste a conservação de um bem imóvel? Deve-se pensar que conservar um bem é mantê-lo exata-mente da mesma forma em que ele foi entregue ou seria apenas impedir a sua ruína? Essa é apenas uma das diversas questões que movimentam os tribunais na questão das benfeitorias. A necessidade acaba sendo apreciada casuistica-mente pelo juiz, com base nos fatos narrados e nas circunstãncias das pessoas e bens envolvidos na ação. Os juízes deverão também observar os usos e costumes do local. Em um país de dimensões continentais como o Brasil o conceito de benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias pode variar.

Além do espaço, o tempo também interfere no conceito de benfeitoria. Conforme explicita Arnoldo Wald, “uma garagem, que era considerada ben-feitoria voluptuária há quarenta anos atrás pode, hoje, ser classifi cada como benfeitoria útil.”187

As benfeitorias podem ser:Necessárias, quando têm por fi m conservar a coisa ou evitar que se dete-

riore. Estas devem ser indenizadas pelo proprietário independentemente da boa ou má-fé do possuidor que as realize. Entretanto o direito de retenção só assiste ao possuidor de boa-fé (art. 1220 do CC).

A conservação do bem e a necessidade de se realizar uma benfeitoria foi determinante para a decisão do acórdão cuja ementa abaixo se transcreve:

Reintegração de posse. Comodato. Sentença de procedência. Pretenção de posse ad usucapionem, comprometida pela condição de locatários com que acenaram os réus, jamais demonstrada, todavia, como lhes cumpria fazer. O comodatário que, notifi -cado, não demite de sai posse do bem, comete esbulho. Benfeitorias. O comodatário só tem direito à indenização pelas benfeitorias extraordinárias e urgentes que se viu obrigado a fazer, no intuito de conservação do bem emprestado, não assim por outras,

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úteis ou necessárias que sejam, como se recolhe do artigo 1.254, do Código Civil de 1.916 (584, do atual), sobremodo porque tem ciência de que as erige em prédio alheio. Prova pericial desnecessária. Apelação não provida.

(TJRJ, Apelação Cível 2005.001.09845, Des. Mauricio Caldas Lopes, j. em 17/05/2005)

Úteis, quando aumentam e facilitam o uso da coisa. As benfeitorias úteis apenas melhoram a qualidade e a capacidade de utilização dos bens. Devem ser indenizadas ao possuidor de boa-fé, ao qual também assiste o direito de eventual retenção.

Voluptuárias, quando as benfeitorias são de mero deleite ou recreio, não aumentando o uso habitual da coisa, ainda que a tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. Pode haver indenização destas benfeitorias se for im-possível seu levantamento sem prejuízo ao imóvel.

POSSE DE BOA FÉ. BENFEITORIA NECESSÁRIA. DIREITO DE RE-TENÇÃO. INDENIZACAO POR BENFEITORIAS. O possuidor de boa fé tem o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis, com o respectivo poder de retenção, e o de ressarcimento das voluptuárias, se não puder levantá-las sem de-trimento do imóvel.

(TJRJ, Apelação Cível nº 2003.001.07773, Des. Milton Fernandes; j. em 06/05/2003)

O contrato de locação de imóvel urbano apresenta algumas especifi cida-des. Nele pode ser inserida cláusula expressa de isenção de indenização de benfeitorias úteis e necessárias que o locador tiver realizado com autorização do proprietário (arts. 35 e 36 da lei 8245/91). A Lei de Locação de Imóveis Urbanos é especial em relação ao Código Civil e ao Código do Consumidor, logo esta derrogaria a aplicação destes dois textos normativos.

Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme se nota no acór-dão abaixo:

LOCAÇÃO — RETENÇÃO POR BENFEITORIAS — CODIGO DO CONSUMIDOR — LEI 8.070/90 — INAPLICABILIDADE.

1. NÃO É NULA CLAUSULA CONTRATUAL DE RENÚNCIA AO DI-REITO DE RETENÇÃO OU INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS.

2. NÃO SE APLICA ÀS LOCAÇÕES PREDIAIS URBANAS REGULADAS PELA LEI 8.245/91, O CÓDIGO DO CONSUMIDOR.

3. RECURSO NÃO CONHECIDO.(STJ, REsp 38274/SP; Min. Edson Vidigal; j. em 09/11/1994)

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Contudo, o STJ posteriormente reviu o seu posicionamento, em diversas outras decisões (vide, nesse sentido, Resp nº 90366/MG, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. em 11/06/1996).

Paradigma da Essencialidade

A distinção entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias é feita com base na sua relação com o bem principal. A necessidade, utilidade e mero aformoseamento em questão são pautados por critérios de natureza patrimo-nial.

Alguns autores tem buscado ampliar o regime concedido às benfeitorias para conceber a relação de necessidade que possa vir a existir entre a pessoa humana e um bem ou prestação jurídica.

A releitura das categorias visa torná-las mais aptas a concretizar os valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o respeito à terceira idade e etc. Atualmente as benfeitorias são conceituadas com base na utilidade que é proporcionada a um outro bem.

Essa apropriação da classifi cação das benfeitorias para as demais relações jurídicas, buscando trazer as necessidades da pessoa para o debate, denomina-se paradigma da essencialidade. A partir de sua concepção, pode-se dividir não apenas os bens, mas também as prestações relativas a um contrato, em: existencialmente essenciais, úteis e supérfl uas.

Desta forma, os pincéis de um pintor são bens existencialmente essenciais, da mesma forma que seria um piano para um pianista. São bens necessários para o sustento de seus proprietários, imprescindíveis para sua vida digna. Essa constatação acarretaria a sua impenhorabilidade.

No próprio Código de Processo Civil pode-se encontrar um delineamento da matéria, cuja aplicação é objeto de diversas decisões judiciais, nos arts. 648 e 649, que assim dispõem:

CPC, art. 648: “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impe-nhoráveis ou inalienáveis.”

CPC, art. 649: “São absolutamente impenhoráveis:I — os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;II — as provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção do

devedor e de sua família durante 1 (um) mês;III — o anel nupcial e os retratos de família;IV — os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos,

o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia;V — os equipamentos dos militares;

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188 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil,

vol I. São Paulo: Atlas, 2002; p. 355.

Vl — os livros, as máquinas, os utensílios e os instrumentos, necessários ou úteis ao exercício de qualquer profi ssão;

Vll — as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos, ou de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro, quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família;

Vlll — os materiais necessários para obras em andamento, salvo se estas forem penhoradas;

IX — o seguro de vida;X — o imóvel rural, até um modulo, desde que este seja o único de que disponha

o devedor, ressalvada a hipoteca para fi ns de fi nanciamento agropecuário.”

O regime adotado por esse novo paradigma encontra atualmente maio-res desafi os nas discussões sobre o bem de família. Mas o debate não deve fi car restrito ao bem de família, pois a concepção acima referida afeta toda e qualquer relação que envolva bens jurídicos, demandando do intérprete uma renovada ordenação de valores e instrumentos para a prática do Direito. O bem de família é caracterizado em função da sua destinação propriamente existencial, a necessidade humana de moradia justifi ca a imposição de um regime jurídico específi co para tal espécie de bem.

Bem de Família

O bem de família constitui uma exceção ao princípio de que o patrimô-nio do devedor responde por suas dívidas. O referido instituto foi criado em atenção à família e aos relevantes valores sociais que a circunscrevem. Trata-se de uma porção de bens que a lei resguarda com as características de impenhorabilidade (e eventualmente de inalienabilidade) em benefício da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar.188 No código civil, a disciplina do bem de família encontra-se no livro dedicado ao direito de família.

As origens do instituto remontam ao Homestead Act do direito americano, cujo objetivo era a fi xação de famílias em terras desabitadas. No direito bra-sileiro, o bem de família ainda atende a uma necessidade semelhante àquela do instituto norte-americano, ou seja, a proteção da moradia para a entidade familiar, todavia diversas peculiaridades podem ser apontadas no direito bra-sileiro que particularizam o seu tratamento na legislação nacional.

Bem de família voluntário e legal

No direito anterior, não só o Código Civil disciplinava o Bem de Família, mas também a legislação processual e demais leis materiais. A previsão legal

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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189 Art. 1.712. O bem de família consis-

tirá em prédio residencial urbano ou

rural, com suas pertenças e acessórios,

destinando-se em ambos os casos a

domicílio familiar, e poderá abranger

valores mobiliários, cuja renda será

aplicada na conservação do imóvel e no

sustento da família.

basilar se encontrava nos arts. 70 a 73 do revogado Código Civil de 1916. Assim estava redigido o antigo art. 70 do CC1916:

Art. 70. É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de fi car isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio.

Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os cônjuges e até que os fi lhos completem sua maioridade.

Ainda de acordo com o art. 233 do antigo Código Civil, o chefe de família era o marido, entendimento esse que é hoje incompatível com a disciplina constitucional. Na falta daquele, o entendimento era no sentido de que essa prerrogativa competiria à mulher. O CC2002, estando em consonância com a Constituição, prevê que a legitimidade para instituir o bem competirá a ambos os cônjuges.

Dessa forma, rompendo com o tratamento concedido ao instituo no CC1916, assim dispõe o atual Código Civil sobre a matéria:

Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pú-blica ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial esta-belecida em lei especial. (grifado)

Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por tes-tamento ou doação, dependendo a efi cácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges benefi ciados ou da entidade familiar benefi ciada.

O bem de família tem por objeto um imóvel no qual a família fi xa sua residência e que fi cará a salvo de eventuais credores. O Código Civil, como forma de conferir a mais ampla proteção aos valores relacionados à matéria, estende a tutela do bem de família às pertenças e acessórios que guarnecem o imóvel.189

Importante no estudo do referido tema é a Lei nº 8.009/90, uma vez que se pode mesmo afi rmar que, no Brasil, existem duas disciplinas do bem de família: a do Código Civil (segunda a qual deve o proprietário requerer a sua instituição) e a da Lei n 8.009 (que se processa pela simples previsão legal).

O artigo 1º da Lei nº 8.009/90 tem a seguinte redação:

Artigo 1º — O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fi scal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou fi lhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei. (grifado)

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Parágrafo único — A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profi ssional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

A previsão do artigo 1º precisa ainda ser conjugada com o disposto no art. 5º da mesma Lei, segundo o qual:

Artigo 5º — Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, conside-ra-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. (grifado)

Parágrafo único — Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fi m, no Registro de Imóveis e na forma do artigo 70 do Código Civil.

Detalhe que merece menção é o de que segundo a Constituição de 1988, não há que proceder com distinções entre a família legítima e a ilegítima para a confi guração do instituto. A lei fala tão somente em “entidade familiar”.

Por conta da Lei nº 8.009/90, o bem de família conforme disposto no Código Civil deixou de ter maior utilidade prática (trata-se do chamado bem de família voluntário). No regime do Código Civil, o interessado se vale de ato jurídico solene e registra o imóvel como bem de família, ensejando assim a característica de impenhorável.

De acordo com a Lei nº 8.009/90, o tratamento do bem de família é bas-tante distinto: o imóvel residencial, desde que servindo de moradia à família, já se encontra abarcado por essa proteção, não sendo mais necessário que se recorra ao oneroso registro para produzir efeitos legais. Adicionalmente, a Lei nº 8.009/90 amplia o alcance da impenhorabilidade desses imóveis, não impondo as restrições do antigo art. 70 do CC1916.

É importante apenas não confundir os conceitos de impenhorabilidade com o de inalienabilidade, uma vez que esse último remete à impossibilidade por parte do proprietário de alienar o imóvel caracterizado como bem de família.

Fraude contra credores

Uma das maiores preocupações que cerca o instituto do bem de família é o eventual estímulo à prática de fraude contra credores, na medida em que o bem de família se encontra a salvo da persecução destes.

Se por um lado é certo que a lei não compactua com procedimentos de natureza manifestadamente ilícita, a elucubração jurídica daqueles que ob-jetivam se valer de meios fraudulentos pode se revestir dos mais variados

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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190 Lei nº 8.009/90, art 2º. Excluem-se

da impenhorabilidade os veículos de

transporte, obras de arte e adornos

suntuosos. Parágrafo único - No caso

de imóvel locado, a impenhorabilidade

aplica-se aos bens móveis quitados que

guarneçam a residência e que sejam de

propriedade do locatário, observado o

disposto neste artigo.

meandros que o formalismo jurídico possibilita. Ainda que com relação à forma, certos atos jurídicos sejam válidos e perfeitamente exeqüíveis, deve-se perquirir se o escopo que os motiva não é o de implicar prejuízo a outrem.

A possibilidade de converter um imóvel em bem de família está condi-cionada à não perpetuação de prejuízo a credores existentes à época do ato. Nessa lógica, só pode o bem de família ser criado quando seu proprietário se encontre em estado de solvência. Uma vez estabelecido como tal, não respon-de o bem afetado por dívidas posteriores.

Essa especial preocupação do legislador de evitar a fraude contra credores pode ser notada, por exemplo, no art. 4º da Lei nº 8.009/90:

Artigo 4º — Não se benefi ciará do disposto nesta Lei aquele que, sabendo-se in-solvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.

§ 1º — Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impe-nhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.

Ainda, ao assim proceder, o agente de má-fé poderá ter outros intentos frustrados, pois em geral, não possuindo nada além daquele imóvel qualifi -cado como bem de família, as difi culdades para a obtenção de crédito serão certas, prejudicando assim outras relações negociais.

Impenhorabilidade e inalienabilidade

Impenhorabilidade e inalienabilidade são características expressas na lei. A inalienabilidade, entretanto, não é peremptória, podendo ser afastada desde que anuam os interessados.

Já a impenhorabilidade, isto é, a não executoriedade por dívidas, constitui o próprio núcleo do instituto do bem de família, embora existam certas exce-ções de ordem legal, como a existência de débitos de natureza tributária rela-tivos ao imóvel. Outra exceção é a constatação de fraude contra credores que visa a obstar a satisfação de crédito anterior à instituição do bem de família.

O artigo 2º da Lei nº 8.009/90 estipula certos elementos que fi cam de fora da proteção auferida pelo bem de família. É o caso dos veículos de trans-porte, das obras de arte e dos adornos suntuosos.190

As exceções ao bem de família legal vêm tratadas pelo art. 3º da referida lei, o qual trata das exceções à impenhorabilidade. Elas são as seguintes:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Artigo 3º — A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fi scal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I — em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;

II — pelo titular do crédito decorrente do fi nanciamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III — pelo credor de pensão alimentícia;IV — para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições

devidas em função do imóvel familiar;V — para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo

casal ou pela entidade familiar;VI — por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença

penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.VII — por obrigação decorrente de fi ança concedida em contrato de locação.

A última dessas hipóteses supra se liga à idéia de que a impenhorabilidade implicaria em difi culdades a obtenção de fi adores na locação. Essa conside-ração, no entanto, merece uma análise mais apurada, na medida em que a jurisprudência recentemente conferiu nova orientação a essa norma.

Bem de família e contrato de fi ança

O Supremo Tribunal Federal recentemente proferiu uma decisão bastante controvertida sobre a hipótese de proteção de um bem pelo regime do bem de família, estando o mesmo vinculado a um contrato de fi ança. Trata-se do Recurso Extraordinário 352.940-4/SP.

Algumas considerações são pertinentes para compreender a alteração dessa linha jurisprudencial. Inicialmente devemos atentar aos dispositivos legais que abordam a questão.

(i) A Lei 8009/90, em seu art. 3º, VII, conforme acrescentado pela Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações), assim dispõe:

Artigo 3º — A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fi scal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

VII — por obrigação decorrente de fi ança concedida em contrato de locação.

(ii) A Constituição Federal, em seu art. 6º, com redação dada pela Emen-da Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, determina que o direito a moradia é um dos direitos sociais garantidos pelo texto constitucional:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 161

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A Constituição Federal é dotada de primazia axiológica em relação à le-gislação ordinária. Em outras palavras, na Constituição estão insertos valores que devem guiar a interpretação e aplicação de todas as demais normas infra-constitucionais. É justamente essa a perspectiva que fundamenta a decisão proferida pelo Ministro Carlos Velloso na decisão do citado Recurso Extra-ordinário, onde o artigo da Lei nº 8009/90 foi reconhecido como sendo incompatível com a nova redação do art. 6º da Constituição Federal.

Assim está redigida a ementa do julgado:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RE-SIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABI-LIDADE.

Lei n. 8.009/90, artigos 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fi ança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido.

Em sua decisão, o relator explicitou as bases constitucionais para defender a não aplicação do disposto expressamente na Lei nº 8.009/90, afi rmando que “tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo — inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000.” Ainda segundo o relator: “[e]ssa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família — Lei 8.009/90, art. 1º — encontra justifi cativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição.”

Duração e dissolução

Questão que merece realce é a da duração do bem de família. O antigo Código Civil determinava que duraria a proteção enquanto fossem vivos os cônjuges e até que os fi lhos completassem a sua maioridade.

De acordo com o Código Civil de 2002, existe a possibilidade de descons-tituição voluntária do bem de família. Deixando de ser domicílio da família, qualquer interessado poderá requerer a extinção do benefício. Ainda, em seu

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 162

191 Lei nº 8.009/90, art. 4º, § 4º - Quan-

do a residência familiar constituir-se

em imóvel rural, a impenhorabilidade

restringir-se-á à sede de moradia, com

os respectivos bens móveis, e, nos casos

do artigo 5º, inciso XXVI, da Constitui-

ção, à área limitada como pequena

propriedade rural.

192 Em sentido contrário, o Decreto-

Lei nº 3.200/41, com a redação da lei

5.653/71, estipulava valor de até 500

vezes o maior salário mínimo vigente.

A Lei nº 6742/79, por sua vez, eliminou

qualquer limite de valor aos bens de

família.

art. 1721, dispõe o CC2002 que a dissolução da sociedade conjugal não ex-tingue o bem de família.

Objeto do bem de família

As menções ao objeto do bem de família que vêm sendo feitas na legisla-ção pátria não são plenamente coincidentes. No art. 70 do CC1916, falava-se em “prédio destinado ao domicílio da família”; o art. 1º da Lei nº 8.009/90, por sua vez, fala em “imóvel residencial”; o CC2002 fala em imóvel urbano ou rural em seu art. 1712, sendo esse inegavelmente de maior abrangência.

(i) Na Lei nº 8.009/90, a confi guração do objeto passa pelas seguintes constatações:

O art. 4º, §4º, no tocante aos imóveis rurais191, restringe a impenhora-bilidade à sede de moradia, com os bens móveis inseridos nela. Destaque-se a possibilidade da pequena propriedade rural também fi car abrangida pela proteção em tela (art. 5º, XXVI, da CF).

O art. 1º da Lei também afi rma que são excluídos de penhorabilidade as plantações, benfeitorias e equipamentos de uso profi ssional e móveis, desde que quitados. O art. 2º enumera elementos que estão excluídos dessa proteção.

(ii) No Código Civil, a confi guração do objeto passa pelas seguintes considerações:

Distintamente do que ocorre com a Lei nº 8009/90, o regime do CC2002 demanda que o interessado proceda à instituição voluntária do imóvel como sendo bem de família.

Coexistem no CC2002 o art. 1712, que determina que o bem de família será prédio residencial urbano ou rural, abrangendo-se suas pertenças e aces-sórios, e o art. 1711, que limita o valor da instituição a um terço do patrimô-nio líquido à época da instituição.

A abrangência que pode ser observada no art. 1712 vem dirimir certos questionamentos doutrinários. Sua razão de ser é a idéia de que nada vale o resguardo ao direito à moradia sem que concomitantemente haja previsão de uma forma de se garantir a conservação da mesma.

O objeto do bem de família não possui hoje limite máximo a partir do qual não haveria proteção.192 O art. 1711, por sua vez, não convenciona limi-te fi xo, mas apenas pré-fi xa em um terço o limite do patrimônio líquido que poderá ser alvo dessa afetação.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 163

193 Art. 264. Se for apresentada recla-

mação, dela fornecerá o ofi cial, ao ins-

tituidor, cópia autêntica e lhe restituirá

a escritura, com a declaração de haver

sido suspenso o registro, cancelando a

prenotação.

§ 1° O instituidor poderá requerer ao

Juiz que ordene o registro, sem embar-

go da reclamação.

§ 2º Se o Juiz determinar que proce-

da ao registro, ressalvará ao reclamante

o direito de recorrer à ação competente

para anular a instituição ou de fazer

execução sobre o prédio instituído, na

hipótese de tratar-se de dívida anterior

e cuja solução se tornou inexeqüível em

virtude do ato da instituição.

§ 3° O despacho do Juiz será irrecorrí-

vel e, se deferir o pedido será transcrito

integralmente, juntamente com o ins-

trumento.

Art. 265. Quando o bem de família

for instituído juntamente com a trans-

missão da propriedade (Decreto-Lei n.

3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8°, §

5º), a inscrição far-se-á imediatamente

após o registro da transmissão ou, se for

o caso, com a matrícula.

Processo de constituição

Para constituir um bem de família, no regime do CC2002, devem ser observadas as prescrições dos artigos 260 a 265 da Lei nº 6.015 / 73 (Lei dos Registros Públicos).

Art. 260. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, decla-rando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e fi cará isento de execução por dívida.

O art. 260 afi rma a necessidade de se valer de escritura pública. Os arts. 261 e 262 ainda instituem a necessidade de se valer de publicações, objeti-vando essa publicidade dar conhecimento a credores que possam vir a serem prejudicados.

Art. 261. Para a inscrição do bem de família, o instituidor apresentará ao ofi cial do registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na impren-sa local e, à falta, na da Capital do Estado ou do Território.

Art. 262. Se não ocorrer razão para dúvida, o ofi cial fará a publicação, em forma de edital, do qual constará:

I — o resumo da escritura, nome, naturalidade e profi ssão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio;

II — o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o ofi cial.

Art. 263. Findo o prazo do nº II do artigo anterior, sem que tenha havido re-clamação, o ofi cial transcreverá a escritura, integralmente, no livro nº 3 e fará a inscrição na competente matrícula, arquivando um exemplar do jornal em que a publicação houver sido feita e restituindo o instrumento ao apresentante, com a nota da inscrição.

A constituição de bem de família, segundo expresso pelas disposições do RGI, são em verdade atos próprios da Administração. Apesar de ser levado ao Judiciário, como facilmente se observa, não existe um litígio, mas sim, uma jurisdição voluntária, onde para que determinado ato seja regularmente va-lidado, há necessidade de ingerência do Poder Judiciário. A decisão judicial, aqui, não operará efeito substitutivo de vontade das partes, tal qual ocorre na composição de litígios.

Por fi m, destaque-se que as demais normas procedimentais de constitui-ção do bem de família encontram-se nos artigos 264 e 265 da Lei de Regis-tros Públicos.193

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 164

Bem imóvel do devedor solteiro e solitário

Por fi m, ponto que merece destaque, em especial devido também à recente jurisprudência, é a possibilidade do bem de família servir para a garantia do imóvel do devedor solteiro e solitário.

O bem de família, segundo a letra da lei, é voltado para a proteção da família. Essa conclusão é derivada da redação expressa do art. 1º da Lei nº 8.009/90. Contudo, nos últimos anos vem aparecendo na jurisprudência, com certa notoriedade, a tese de que a interpretação teleológica do art. 1º, ou seja, a interpretação que busca o real fi m que a lei objetiva, não se limita ao resguardo da família.

Esse foi o entendimento constante de recente decisão do STJ, no ERESP nº 182223/SP. Em sua decisão, o relator afi rma que, em relação ao bem de família, “seu escopo defi nitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido prote-ger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor ce-libatário.”

O bem de família, instituto de natureza garantista, deve ser compreendido como forma de assegurar a todos os indivíduos o direito à moradia. Embora sua orientação inicial versasse genuinamente sobre a família, o âmbito de sua proteção vem sendo expandido em algumas decisões. O argumento, assim, é o de que a mens legis é a de não privar o devedor, e não só a sua família, de um local para morar.

Esse entendimento, no entanto, não é pacífi co, existindo diversos julgados que se manifestam pela proteção exclusiva da família como sendo o objetivo da Lei nº 8.009/90. Nesse sentido, já se pronunciou o TJRJ:

EMBARGOS DO DEVEDOR. BEM DE FAMÍLIA. MULHER SEPARADA JUDICIALMENTE. LEI Nº 8009, DE 1990. INAPLICABILIDADE.

Execução. Embargos do Devedor. Alegação de impenhorabilidade de bem imovel residencial, com fulcro na Lei 8009/90. A lei referida destina-se a proteger não o devedor, mas a sua família. Assim a impenhorabilidade nela prevista, abrange o imóvel residencial que sirva ao casal ou entidade familiar não alcançando devedores solitários, tais como solteiros, separados ou divorciados. No caso, a devedora-apelante é separada, não comprovando que resida com membros da família. Sentença manti-da. Recurso improvido.

(Apelação Cível n° 2002.001.16619)

Todavia, o mesmo Tribunal já teve oportunidade de se manifestar favo-ravelmente à proteção do imóvel do devedor solteiro em outros julgados.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 165

Em decisão recente, o Des. Celso Lins e Silva asseverou que “a intenção do legislador é clara em proteger não apenas a família, mas também o direito à moradia. Interpretar de forma diversa, isto é, no sentido de que a prote-ção se limita aos casados, conviventes ou companheiros, é discriminar aquele que optou por viver sozinho ou que ate então não encontrou a pessoa ideal. Inegavelmente, estar-se-ia violando o texto constitucional, por tratar desi-gualmente o solteiro, o celibatário.”Como observado, as opiniões ainda são divergentes sobre o tema, embora possa ser vislumbrada uma crescente re-cepção ao alargamento da proteção do bem de família ao imóvel do devedor solteiro e solitário.

2. CASO GERADOR

2.1. Benfeitorias — Indenização e Retenção

John Smith é um importante executivo de uma empresa petrolífera que está prestes a abrir uma fi lial no Rio de Janeiro. Para auxiliar na abertura de seu escritório carioca, a empresa mandou John para o Brasil com a missão de fi car na cidade por pelo menos três anos. A própria empresa tratou de alugar para John uma bela casa no Itanhangá.

Todavia, a estada de John na cidade não começou bem. Logo na primeira semana, ao retornar de Macaé, o helicóptero de John sofreu um acidente grave. O executivo teve sorte de escapar com vida, mas sofreu sérias lesões em ambas as pernas, o que demandaria, pelo menos, uma semana que internação e mais dois anos de exercícios especiais e fi sioterapia.

Após a semana no hospital, alguns assuntos começaram a preocupar John, so-bretudo a disposição da casa que foi alugada. Como John não gostaria de sair da casa, já que havia se ligado emocionalmente à mesma, ele solicitou ao seu estagi-ário que fi zesse o orçamento com várias empresas de construção para a elaboração de duas obras na casa: (i) a remoção da escada da frente, que leva ao portão principal da casa, por um mini-elevador; e (ii) a construção de uma piscina para que John possa fazer os seus exercícios de recuperação.

Depois de pesquisar os orçamentos, John optou por fazer a obra da escada com a empresa que lhe ofereceu o menor preço. Já no caso da piscina, o orçamento esco-lhido por John foi o segundo mais caro. O motivo para escolher esse orçamento foi a qualidade reconhecida da empresa na construção de piscinas para residências.

Precisa John pedir indenização ao seu locador para a realização das obras? Ao término do contrato de locação, será John indenizado pelas obras realizadas? Caso o locador não concorde em indenizar John, poderá ele exercer direito de retenção? O fato de John ter sofrido um acidente muda em qualquer aspecto as respostas que você daria para as questões acima?

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 166

2.2. “Home Theater é bem de família?”

A Família Borgia, passando por difi culdades fi nanceiras, vê-se frente ao inten-to de um de seus credores de penhorar seus bens. Na ação ajuizada, além do imó-vel onde residia o casal Borgia e seus dois fi lhos, postulava-se concomitantemente a penhora dos bens móveis constantes na referida residência. A fundamentação residia na suntuosidade manifestadamente expressa no art. 1º da Lei 8009/90.

Na contestação apresentada pelo advogado dos Borgia, foi alegado, com base no mesmo art. 1º, que o intento do legislador era resguardar não só a habitação, mas também os elementos que a guarnecessem, desde que essenciais. Alegou por fi m, que além da residência, todos os bens lá constantes eram indispensáveis, excluindo-se assim de forma determinante a possibilidade de penhorá-los.

Observando que o litígio só poderia ser resolvido através da análise casuística dos bens, o juiz, na audiência de instrução e julgamento, requereu do autor da ação a relação dos bens e o respectivo valor a eles imputado.

Na produção de provas, o credor apresentou a relação demandada pelo magis-trado. Nela se destacava a existência de um televisor importado, digital, tela de plasma, acrescido de um Home Th eater. Valor: R$ 12.000 (doze mil) reais. Era o único televisor da família.

No julgamento do Resp. nº 50.313-2/SP, o relator afi rmou que: “O certo é que reiterados julgados da Corte, inclusive da Terceira Turma, assentaram que os equipamentos e bens móveis que guarnecem a casa não respondem por dívidas de qualquer natureza,e, salvo exceções, não poderão eles ser objeto de expropriação judicial. Dentre eles encontram-se, o fogão, geladeira, cama do casal e televisão a cores, tal como no caso versante, que não se tem como adorno suntuoso, indispen-sáveis à utilidade familiar.”

Na qualidade de julgador do caso da família Borgia, você acolheria ou não a alegação de penhorabilidade do autor?

2.3. “Devedor solteiro, solitário e fi ador”

João quase não tem tempo de se dedicar à família. Desde que foi promovido no emprego, João só fala com a mãe nos fi nais de semana, quando passa na casa de Dona Nair para buscar umas camisas passadas.

Com o dinheiro economizado nos últimos três anos de escritório, João con-seguiu comprar um apartamento em um bairro de classe média de sua cidade. Ele mora sozinho, já que quase não possui vida social. João é, portanto, solteiro e solitário.

Para completar o seu infortúnio, João concordou com ser fi ador no contrato de locação de Mathias, seu amigo de faculdade. Qual não foi a surpresa de João quando recebeu em casa uma notifi cação extra-judicial de Alberto, credor de Ma-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 167

thias, alegando que o seu amigo estava inadimplente há cinco meses e que, para quitar as dívidas, Alberto solicitava providências da parte de João.

Como argumento de defesa em eventual ação judicial movida por Alberto, João está considerando a hipótese de protestar pela proteção do bem de família para o seu imóvel. Ao conversar com colegas do escritório, João recebeu as seguintes informações:

(i) Clarissa não acha uma boa idéia João tentar proteger o seu imóvel pelo instituto do bem de família uma vez que ele não é casado ou vive em união estável com ninguém. Segundo Clarissa, para se constituir uma família no direito brasileiro são necessárias pelo menos duas pessoas. Sendo assim, quem não é casado ou não vive em regime de união estável não pode ser considerado como família, o que impossibilitaria a prote-ção com base no mencionado instituto;

(ii) Cléber também não concorda com o argumento de João. Segundo o amigo, imóveis dados como fi ança em contratos de locação não tem direito a invocar a proteção do bem de família. Trata-se de disposição expressa da Lei nº 8.009/90. Dessa forma, pleitear algo que a lei diz justamente o contrário seria perda de tempo;

(iii) Caio, por sua vez, também não concorda com o argumento de João. Segundo o mesmo, como João mora sozinho, ele não poderá invocar a proteção do bem de família. O amigo até sugeriu que João, para ter sucesso em sua argumentação, convide o irmão Alfredo, que acaba de chegar do interior de Minas, para morar no seu apartamento. Segundo Caio, quando a lei fala em proteção da família, ela não menciona pro-teção de “casais”, pelo que dois irmãos morando sob o mesmo teto seria considerado como uma “família” para os fi ns da lei.

Você concorda com as opiniões recebidas por João? Se você fosse consultado por João, qual seria a sua resposta? Justifi que.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 168

PARTE IV: NEGÓCIOS JURÍDICOS

AULA 15: — CONCEITOS ESTRUTURAIS — NEGÓCIO JURÍDICO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Ato e Negócio Jurídico — Fato Jurídico — Negócio jurídico — Classifi cação dos Negócios Jurídicos — Existência do Negócio Jurídico — Existência, Validade e Efi cácia do negócio jurídico — Considerações acerca dos requisitos de validade do art. 104

LEITURA OBRIGATÓRIA

Venceslau, Rose Melo. “O negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gus-tavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/192.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 207/220.Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 475/495.

1. ROTEIRO DE AULA

Ato e Negócio Jurídico

No Código Civil de 1916, ato jurídico era considerado como todo ato voluntário, revestido das condições determinadas pela lei e que produzisse re-gularmente efeitos jurídicos. Fatores como a vontade humana careciam ainda de maiores estudos sobre a sua participação para a formação de um conceito, e ao contrário do que se observa atualmente, a diferenciação entre ato jurídi-co e negócio jurídico ainda não restava bem delineada.

A noção de negócio jurídico provém de trabalhos doutrinários alemães que passaram a considerar a importância das manifestações de vontade na produção de efeitos jurídicos. Dessa forma, a doutrina gradativamente se aproximou de um conceito contemporâneo de ato jurídico, o qual, mais mo-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 169

dernamente, é compreendido em um sentido amplo, passando a se desdobrar em dois outros signifi cados: (i) o ato jurídico em sentido estrito; e (ii) o ne-gócio jurídico.

Antes de estudar os atos jurídicos em sentido amplo, algumas considera-ções acerca da categoria mais ampla de fatos jurídicos se fazem necessárias.

Fato Jurídico

Fato jurídico é um acontecimento, quer seja humano, quer seja natural, apto a produzir efeitos jurídicos, provocando o nascimento, a continuação, a modifi cação ou a extinção de relações jurídicas e dos direitos que a ela se referem.

Os fatos jurídicos podem ser subdivididos em espécies. Eles se bipartem tendo como critério a sua natureza, podendo ser denominados fatos humanos voluntários ou eventos naturais.

Os fatos jurídicos naturais (que decorrem de eventos naturais) são inde-pendentes da vontade do homem. Não se deve afi rmar que os mesmos são completamente estranhos ao homem, visto que fulminam as relações jurídi-cas — que por sua vez são titularizadas por pessoas físicas ou jurídicas (con-junção de vontades humanas para o atingimento de um fi m).

Esses fatos decorrem da manifestação da natureza, podendo ser ordinários ou extraordinários. Os ordinários são aqueles cuja verifi cação é comum, tal qual o nascimento e a morte; os extraordinários, por sua vez, são dotados de maior margem de imprevisibilidade, correspondendo aos denominados caso fortuito ou força maior.

Além dos fatos jurídicos naturais, deve-se mencionar a existência de fatos humanos voluntários, que são aqueles que resultam da atuação humana, seja ela positiva ou negativa. Tais fatos infl uem nas relações jurídicas, variando em razão da tipologia do ato praticado. Dividem-se em fatos lícitos (atos jurídicos lícitos em sentido amplo) e fatos ilícitos.

Os atos jurídicos lato sensu, são aqueles caracterizados pela atuação da vontade da parte em sua constituição e na produção de seus efeitos. A mani-festação de vontade assume aqui um papel muito mais relevante do que nas tipologias examinadas acima. Os atos jurídicos em sentido amplo subdivi-dem-se em duas espécies:

(i) Ato jurídico stricto sensu — a declaração de vontade é dirigida para a produção de efeitos previamente determinados em lei, imodifi cá-veis pela ação volitiva. Não compete à parte modifi car, moldar os efeitos dessa declaração de vontade, mas apenas decidir pela produ-ção de um ato que possui os seus efeitos já previamente estipulados.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 170

194 Gustavo Tepedino, Maria Celina

Bodin de Moraes e Heloisa Helena Bar-

boza. Código Civil Interpretado conforme

a Constituição da República, v. I. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 210.

195 Frise-se que negócio jurídico é uma

espécie de ato jurídico em sentido

amplo.

A manifestação de vontade se corporifi ca pela intenção ou não de sofrer em sua esfera jurídica os efeitos já determinados pela letra da lei;

(ii) Negócio jurídico — Os efeitos que se produzem a partir dos negó-cios jurídicos são aqueles não proibidos pela lei. Não confrontando com a dicção legal, as partes possuem espaço para construir relações jurídicas de diversos moldes. O teor negocial aqui é fl agrantemente maior, implicando na composição de interesses. Os efeitos são per-mitidos pela lei e são desejados pelos agentes.

Os fatos ilícitos, por sua vez, são aqueles que se processam contrariamente à ordem jurídica, provocando o dever de reparação. Produzem efeitos diver-sos ou não pretendidos pelos agentes que lhes dão causa.

Negócio jurídico

Negócio jurídico é a declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos voluntariamente perseguidos.194 Os sujeitos de direito, mediante o exercício de sua vontade em conformidade com a lei, dão origem a relações jurídicas.

Certo é que ato e negócio jurídico são institutos onde a vontade se en-contra presente. A distinção se processa quando se atenta ao conteúdo dessas fi guras e aos efeitos que delas decorrem.

No ato jurídico em sentido estrito, o conteúdo e efeitos são previamente determinados pelo ordenamento, competindo à vontade apenas decidir pela produção ou não desses efeitos.

O negócio jurídico, por sua vez, difere desse tratamento ao possibilitar às partes modelarem esse conteúdo, e conseqüentemente, os efeitos do ato. O negócio jurídico é campo onde há liberdade de construção para as partes, liberdade essa que se manifesta no livre desembaraço da vontade negocial.

Essa vontade negocial se manifesta tendo em vista o princípio da autono-mia da vontade (autonomia privada), que como o próprio nome já diz, trata da liberdade de negociação que os agentes privados são dotados.

A própria autonomia privada, em certa análise, não deixa de ser uma per-missão legal. Ela se manifesta nas hipóteses em que a lei não pré-estabelece todo o conteúdo e efeitos que uma determinada manifestação de vontade assume. Quando há campo para a livre manifestação da autonomia privada, as partes po-dem determinar o conteúdo, forma e efeitos dos seus atos jurídicos (aqui com-preendidos em sentido amplo), atuando na criação de um negócio jurídico.195

Acerca do conceito moderno de autonomia privada, pertinente é observar que:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 171

196 Gustavo Tepedino, Maria Celina

Bodin de Moraes e Heloisa Helena Bar-

boza. Código Civil Interpretado conforme

a Constituição da República, v. I. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 211.

197 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2005; p. 496., p. 496.

“O conceito de autonomia privada vem, contudo, sendo reformulado pela dou-trina contemporânea. Hoje, não mais se deve entender que os valores constitucionais criam limites externos à autonomia privada, mas antes, informam seu núcleo funcio-nal. A autonomia privada não consiste, defi nitivamente, em um “espaço em branco” deixado à atuação da liberdade individual, mas ao contrário, apenas recebe tutela na medida em que se conforme aos valores constitucionais.” 196

A vontade dos indivíduos pode ser construída dentro desse campo da au-tonomia privada, sendo vedado que ela o extrapole, dispondo contrariamen-te ao Direito.

Os efeitos dessa vontade somente serão perceptíveis no mundo jurídico através de uma manifestação. Deve o agente explicitar essa vontade, que é o elemento interno, por intermédio de uma declaração, elemento externo, para que os efeitos desejados possam ser alcançados.

Sob pena do negócio ser reputado inválido, essa manifestação de vontade deve se operar de forma livre, desembaraçada, e em consonância com valores jurídicos com diretrizes como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana.

A declaração de vontade, instrumento de exteriorização dessa vontade, pode ser expressa ou tácita. A manifestação expressa é a utilização de meios inequívocos que demonstrem o real intento do agente. A manifestação tácita resulta de um comportamento do agente do qual pode se inferir o sentido de sua vontade.

A forma do negócio jurídico constitui-se do tecnicismo que o direito impõe à manifestação de vontade. Observa-se que o conceito de forma do negócio possui duas dimensões: (i) é a própria manifestação de vontade, isto é, a exte-riorização da vontade (considerada aqui eminentemente no plano psíquico); e (ii) é a roupagem, isto é, os requisitos que essa manifestação deve conter para que seja considerada válida pelo Direito.

Classifi cação dos negócios jurídicos

Existem diversas formas de se classifi car os negócios jurídicos e a doutrina se vale dos mais variados critérios para esse fi m. O esforço para classifi cação dos negócios surge como meio para facilitar a interpretação e a aplicação dos dispositivos que são pertinentes à matéria.

Uma primeira classifi cação dos negócios jurídicos, com já visto, os divide em negócios bilaterais e unilaterais. Como destaca Caio Mário:

“É negócio jurídico unilateral o que se perfaz com uma só declaração de vontade (testamento, codicilo), enquanto bilateral se diz aquele para cuja constituição é ne-cessária a existência de das declarações de vontade coincidentes.”197

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 172

198 Gustavo Tepedino, Maria Celina

Bodin de Moraes e Heloisa Helena Bar-

boza. Código Civil Interpretado conforme

a Constituição da República, v. I. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 213.

199 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2005; p. 497.

Negócios jurídicos unilaterais são aqueles em que uma parte, por inter-médio de uma declaração de vontade, realiza um determinado ato jurídico. Negócios Jurídicos bilaterais, por sua vez, são aqueles que implicam na exis-tência de duas declarações de vontade coincidentes sobre o objeto. Essas ma-nifestações de vontade devem coincidir, surgindo nesse momento o consenti-mento. Quando o mesmo não ocorre, ainda que haja manifestação volitiva de mais dos dois agentes, o negócio não se forma.

Sendo assim, os negócios jurídicos bilaterais se formam quando uma pes-soa emite uma manifestação de vontade em determinado sentido, e outra pessoa declara sua anuência a essa manifestação de vontade. É o consenti-mento entre esses agentes, o ajustamento entre seus desígnios, que promove o surgimento dessa modalidade de negócio jurídico.

Os negócios jurídicos podem ainda ser classifi cados em onerosos ou gra-tuitos. O que se tem em vista aqui é o efeito do negócio. O negócio oneroso é aquele que proporciona ao agente a percepção de vantagem econômica, mediante o exercício de uma prestação. A idéia presente aqui é a da corres-pectividade de prestações, isto é, da mútua transmissão de bens.198

Gratuito, ao contrário, é aquele negócio onde uma pessoa proporciona à outra determinado enriquecimento sem contraprestação por parte do bene-fi ciado. A vantagem é exclusiva para uma das partes da relação, a qual não é obrigada a prestar, sendo apenas benefi ciária direta da diminuição do patri-mônio da outra. Como destaca Caio Mário:

“O negócio a título oneroso confi gura a produção de conseqüências jurídicas con-cretizadas na criação de vantagens e encargos para ambos, como a compra e venda, em que a prestação de cada parte se contrapõe à da outra parte. O negócio jurídico a título gratuito traz benefício ou enriquecimento patrimonial para uma parte, à custa da diminuição do patrimônio da outra parte, sem que exista correspectivo dado ou prometido, como na doação pura, em que o doados transfere bens de seu patrimônio para o do donatário, que se enriquece sem se sujeitar a nenhuma prestação.” 199

Os negócios jurídicos podem também ser classifi cados como inter vivos e causa mortis. O negócio jurídico inter vivos é aquele pactuado para produzir os seus efeitos durante o período de vida das partes. Ele produz efeitos desde logo. Contudo, isso não signifi ca que o negócio jurídico inter vivos tenha a sua natureza desnaturada quando ocorre a circunstância de se estenderem os seus efeitos para depois da morte do agente. A idéia central que o classifi ca dessa forma é que as conseqüências desse ato se processam com mais inten-sidade durante a vida das partes que lhe deram causa, podendo se estender, naturalmente, para além de suas mortes.

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200 Antônio Junqueira de Azevedo. Ne-

gócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2003,

4ª ed.; p. 66.

O negócio jurídico mortis causa produz os efeitos após o advento da morte do agente. Frise-se que o ato não produz nenhum efeito até que ocorra esse evento. O exemplo clássico desse tipo de negócio jurídico é o do testamento.

Os negócios jurídicos dividem-se ainda em principais e acessórios. Prin-cipal é aquele que existe por si mesmo e independentemente de outro. Já o acessório é aquele cuja existência pressupõe a de outro que seja principal, não possuindo existência autônoma. O negócio jurídico acessório segue a sorte do principal: caso esse seja invalidado, extinto pela vontade das partes ou inquinado de algum vício que impeça a produção de seus efeitos, seguirá o negócio acessório a sua mesma sorte.

Atentando ao critério da forma, os negócios Jurídicos podem ser classifi -cados como solenes e não solenes.

Solenes (ou formais) são aqueles que se revestem de certa forma especial. Não solenes (ou consensuais) são aqueles que possuem forma livre, tendo vali-dade qualquer que seja a forma assumida pela manifestação de vontade. Nesse sentido, cumpre mencionar o disposto nos arts. 107 e 108 do Código Civil:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modifi cação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

O art 107, como visto, enuncia a regra acima exposta, ao passo que o art. 108 é um exemplo de imposição legal de forma específi ca para o negócio jurídico.

Existência, Validade e Efi cácia do negócio jurídico

Plano da Existência, plano da validade e plano da efi cácia são os três pla-nos nos quais o intérprete deve sucessivamente examinar o negócio jurídico, a fi m de verifi car se ele obtém plena realização.200

Preliminarmente, vale destacar a importância do estudo dos planos do negócio jurídico. A sua relevância passa pela necessidade de que as relações jurídicas sejam aptas à produção dos efeitos almejados, pelo livre desenvolvimento da vida negocial (circulação de riquezas), para alcançar uma idéia transposta a vários ramos do Direito. Isto é, seja no Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Processual, Direito Comercial, ou qualquer outro ramo dos estudos jurídicos, os atos serão revestidos de elementos, requisitos de validade e de fatores que condicionam sua efi cá-cia. Essa dinâmica se origina no campo civilista e é nele primeiramente

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 174

201 Note que os requisitos são apenas os

adjetivos ressaltados em itálico.

202 Por vezes essa regra é relativizada,

seja por força do julgamento dos lití-

gios no caso concreto, seja em virtude

de determinadas situações em que a lei

prevê efeitos para o ato nulo, como no

casamento putativo.

estudada, mas se espraia numa série de situações nem sempre ligadas di-retamente ao Direito Civil.

No estudo dos negócios jurídicos é necessário que estes sejam analisados sob o enfoque de três planos distintos, que são afetos à sua existência, validade e efi cácia.

No que concerne à existência, têm-se os elementos constitutivos (ou essen-ciais) do negócio jurídico; em relação à validade, têm-se os requisitos de vali-dade e por fi m, a efi cácia remete aos fatores de efi cácia de um certo negócio.

Plano da existência. Neste plano pode-se observar os elementos essenciais do negócio jurídico que são: (i) Declaração de vontade; (ii) Objeto; e (iii) For-ma. A noção de essencialidade deve-se ao fato de que caso esses elementos não se encontrem presentes, o negócio jurídico nem mesmo chegará a existir.

O plano subseqüente é o plano da validade, onde se encontram os re-quisitos de validade. São, na verdade, verdadeiros qualifi cadores, tais quais adjetivos, dos elementos acidentais acima expostos. Não são numerus clausus, estritamente delimitados, visto que a lei pode estatuir novos requisitos. São os requisitos gerais, insertos no art. 104 CC: agente capaz; objeto lícito, pos-sível e determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.201 São qualifi cadores que ultrapassam a simples existência do negócio, a qual é aferida com a simples presença dos elementos.

O negócio jurídico que padece de vícios no tocante aos seus requisitos de validade pode ser reputado como nulo ou anulável. Essa noção será por-menorizada em aulas subseqüentes, porém vale, em breve síntese, destacar que a nulidade é decorrência da violação de normas de ordem pública (in-derrogáveis), isto é, previsões decorrentes da própria lei. A anulabilidade, por sua vez, decorre da violação ao regime jurídico defi nido pelos próprios particulares (derrogáveis), e, justamente por conta disso, são vícios de im-portância mais restrita.

A nulidade pode ser alegada de ofício pelo juiz ou por qualquer pessoa. O negócio nulo é desde sua constituição inválido. A anulabilidade, por sua vez, enseja uma situação diferente, pois o negócio é válido até que a parte interes-sada pleiteie a sua anulação em virtude do vício que o inquina.

Abordar os efeitos de ambas as formas de invalidade é tarefa mais comple-xa. O negócio nulo nunca produziu efeito, visto que é plenamente inválido. Quando a nulidade é decretada, os efeitos dessa decretação se operam ex tunc, isto é, retroativamente. O que tiver, por exemplo, sido pago em virtude de uma obrigação nula, deverá ser repetido. Em regra, o ordenamento não admite que do ato nulo se produza efeitos.202

O negócio anulável produz efeitos regularmente até que seja anulado. A parte que poderia pleitear a anulação pode da mesma forma convalidar o ato, quando então se tornará perfeito. Contudo, quando anulado, os efeitos dessa invalidação se processarão ex nunc, isto é, da decretação em diante.

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Tanto os elementos como os requisitos do negócio jurídico são estabeleci-dos no art. 104 do CC, que determina:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:I — agente capaz;II — objeto lícito, possível, determinado ou determinável;III — forma prescrita ou não defesa em lei.

O caput do artigo alude apenas à validade. No entanto, quando da leitura dos incisos, são encontrados não só os requisitos, mas também a previsão dos elementos do negócio.

Para que haja negócio, ou seja, para que tão somente exista, mister se faz a previsão de agente, de objeto e de manifestação de vontade que se traduza numa certa forma. Presentes esses requisitos, é certo que o negócio existe.

Imagine agora o seguinte negócio jurídico: menor de 15 anos se obriga a prestar, periodicamente, determinada quantidade de substância entorpecente proibida por lei. O menor o faz, inclusive, por intermédio de um contrato.

Sendo o agente incapaz, é impossibilitado de transigir no mundo jurídico, mas, ao arrepio da lei, pactua com outrem. Ainda, o objeto desse negócio é fl agrantemente ilícito, na medida em que o tráfi co de substâncias entorpecen-tes proibidas por lei é repudiado pelo ordenamento. O exemplo é caricatural, mas o negócio, sob a perspectiva civilista, é existente, embora inválido. A validade, como visto, é uma consideração que ocorre em momento posterior.

A efi cácia, por sua vez, é o terceiro dos planos do negócio jurídico, sendo condicionada a fatores, que nem sempre são próprios do mundo jurídico. O negócio, agora já existente e válido, mostra-se em tese apto à produção de efeitos jurídicos. Pode ocorrer, no entanto, que esses efeitos nem sempre sejam operados, como nos seguintes exemplos:

(i) A subordinação de um pagamento à ocorrência de uma determina-da condição, como a vitória de uma equipe esportiva numa determinada competição. O negócio existe, é válido, mas sua efi cácia está condicionada à vitória de umas das equipes. Caso essa não ocorra, o negócio será permanen-temente inefi caz;

(ii) A dotação testamentária de certos bens opera a transmissão causa mortis apenas após o advento da morte do testador. A morte é uma certeza, embora indeterminada a época em que irá se processar. O negócio, apesar de existente e válido, carece do implemento desse termo para que produza efeitos.

(iii) A doação de um imóvel, negócio jurídico existente e validamente constituído, mas que não se processa em virtude de um deslizamento de terra que soterrou e destruiu o imóvel (força maior).

Por fi m, vale mais uma vez recorrer à lição de Antônio Junqueira de Aze-vedo, que destaca:

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203 Antônio Junqueira de Azevedo. Ne-

gócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2003,

4ª ed.; p. 64.

“O exame do negócio, sob o ângulo negativo, deve ser feito através do que bati-zamos com o nome de técnica de eliminação progressiva. Essa técnica consiste no se-guinte: primeiramente, há de se examinar o negócio jurídico no plano da existência, e aí, ou ele existe, ou ele não existe. Se não existe, não é negócio jurídico, é apa-rência de negócio (dito “ato inexistente”) e, então, essa aparência não passa, como negócio, para o plano seguinte, morre no plano da existência. No plano seguinte, o da validade, já não entram os negócios aparentes, mas sim somente os negócios existentes; nesse plano, os negócios existentes serão, ou válidos ou inválidos; se forem inválidos, não passam para o plano da efi cácia, fi cam no plano da validade; somente os negócios válidos continuam e entram no plano da efi cácia. Nesse último plano, por fi m, esses negócios, existentes e válidos, serão ou efi cazes ou inefi cazes (inefi cácia em senti-do restrito).” 203

Considerações acerca dos requisitos de validade do art. 104

Capacidade do Agente — Trata-se aqui de uma condição subjetiva de validade do negócio jurídico. A falta de capacidade pode gerar a nulidade do negócio jurídico quando for uma incapacidade absoluta ou a sua anulabilida-de quando se tratar de uma incapacidade relativa.

Essa capacidade deve ser aferida no momento do ato. Mesmo que após a prática do o agente se torne capaz, isso não será sufi ciente para sanar a nuli-dade, em se tratando de incapacidade absoluta. Da mesma forma, a incapa-cidade superveniente ao ato não o macula, permanecendo o ato como válido.

Destaque-se ainda que a idéia de capacidade deve ser conjugada com o sentido de legitimidade. Pode haver situações em que um indivíduo seja ple-namente capaz, e dessa forma, absolutamente apto para a prática de todos os atos da vida civil. Mas esse agente, para a prática de determinado negócio jurídico, pode não ser dotado de legitimidade.

Essa legitimidade é uma espécie de permissão para a prática de um negó-cio jurídico em especial. O exemplo mais eloqüente é a compra e venda que se opera entre ascendentes e descendentes. Quando um pai vende um imóvel ao fi lho, há a presunção de que este tentará benefi ciar o seu ascendente, oca-sionando prejuízo aos demais herdeiros. Até que sobrevenha a anuência dos demais interessados, faltará legitimidade para essa alienação.

Objeto lícito, possível, determinado ou determinável — Para que o negó-cio jurídico seja válido há necessidade de adequação a esses requisitos legais, quais sejam: a possibilidade, a liceidade e a determinabilidade. A liceidade ou licitude é a conformidade do objeto com o ordenamento jurídico, seja na esfera civil, penal, ou administrativa; a possibilidade é correlata a idéia de liceidade, pois possíveis são os objetos lícitos, não devendo-se aqui confundir com a noção de possibilidade material; a determinabilidade é a característica

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que fundamenta a necessidade do objeto ser determinado ou pelo menos, determinável, isto é, há necessidade de estabelecer com certa precisão no que corresponderá o objeto do negócio jurídico.

Forma prescrita ou não defesa em lei — aqui se encontra um requisito de natureza formal que determina como a manifestação de vontade deve ser exteriorizada. A regra geral é a da liberdade de forma, mas pode ser excepcio-nada pela necessidade de observância forma especial.

2. CASO GERADOR

A Delta Participações S.A, sociedade anônima legalmente constituída, tem por objeto a aquisição de participações acionárias em outras sociedades. A percep-ção de lucro dessa pessoa jurídica advém da especulação que promove utilizando os valores mobiliários de diversas companhias.

Ocorre que no último biênio, a Delta participações vem acumulando sucessi-vos prejuízos, fato que gerou sérios problemas em sua operação.

A Companhia não é insolvente, na medida em que o valor das dívidas acumu-ladas não excede o patrimônio da mesma. Contudo, uma situação foi observada: após diversos prejuízos sucessivos, a sociedade encontrou-se momentaneamente sem liquidez em seus recursos. Ou seja, não possuía capital em espécie (dinheiro) para o pagamento de débitos elementares, como direitos trabalhistas.

Essa situação levou os administradores a tomar uma decisão: estabeleceriam um empréstimo junto ao Banco Gama S.A no exato valor da dívida trabalhista vincenda. Em paralelo, negociariam a alienação de alguns imóveis pertencentes à Companhia para fazer caixa.

O empréstimo foi aprovado pelo conselho de administração da companhia e acordado diretamente entre o corpo diretivo da Delta Participações e a gerência do Banco Gama. Em seguida, foi remetida correspondência aos funcionários, informando-os da necessidade de se dirigirem à instituição fi nanceira para o re-cebimento de seus créditos. Frisou-se, para tranqüilidade geral, que o débito seria responsabilidade da companhia e que os funcionários não teriam nenhum outro transtorno senão o de dirigirem-se à agência bancária.

Ocorre que o Banco Gama procedeu de forma diversa do acordado com a Companhia. Estabeleceu contratos nos quais os funcionários da Delta Participa-ções fi guravam diretamente no pólo passivo da relação, ou seja, como obrigados. Seriam eles os reais devedores da dívida.

Isso foi possível porque se tratavam de funcionários humildes, de pouca expe-riência negocial, além do contrato ser demasiadamente complexo para que, em rápida leitura, pudessem os funcionários questionar todo o procedimento.

A alienação de bens da Delta fracassou e a mesma não realizou o pagamento do reputado empréstimo. Consequentemente, o banco reivindicou o adimplemen-

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to da dívida aos funcionários da companhia. Correspondências, notifi cação de cobrança, negativização do nome em instituições de proteção ao crédito foram alguns dos meios utilizados pela instituição fi nanceira para cobrar a dívida.

Com base nesta primeira aula sobre os planos do negócio jurídico, dê um pare-cer fundamentado sobre a situação acima descrita. Enfoque na exigibilidade (ou não) do negócio estabelecido entre o Banco e os Funcionários da Delta.

Linhas gerais da resposta:1. Discorrer brevemente sobre os planos e seus requisitos;2. O negócio certamente não é válido porque a manifestação de

vontade, se existente, está viciada. A questão é problematizar se real-mente existe manifestação de vontade, e nesse caso, não há nem mes-mo que se falar em existência do negócio jurídico. Essa foi a linha de decisão do relator do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a partir do qual o presente caso foi gerado, e cuja ementa segue abaixo:

Responsabilidade Civil. Os contratos de empréstimo celebrados entre as partes litigantes nem sequer adentraram o plano de existência do negócio jurídico, sendo que, ainda que assim não entendido, afi guram-se inválidos, considerando o erro substancial e escusável na manifestação da vontade dos contratantes. Indevida negativação em cadastro restritivo. Dano moral in-conteste e in re ipsa. Verba indenizatória que se mantém, diante do critério da razoabilidade e da proporcionalidade. Desprovimento do recurso.

(TJRJ, Apelação Civil 2005.001.16954, rel. Des. Odete Knaack de Souza; j. em 24.08.2005)

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AULA 16 — INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Nulidade e Anulabilidade — distinções e efeitos.

LEITURA OBRIGATÓRIA

MATTIETTO, Leonardo. “Invalidade dos atos e negócios jurídicos”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/192.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Gomes, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007; pp. 419/435. Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266.Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 306/311-315/330.

1. ROTEIRO DE AULA

Nulidade e Anulabilidade

O estudo das invalidades do negócio jurídico é um dos mais importantes na análise do Direito como um todo. O seu raciocínio ajuda a compreender e esclarecer todo o regime de nulidades não só do Direito Civil, mas, ainda, do Direito Constitucional, Direito Administrativo, Tributário etc.

Tal construção, contudo, é oriunda do direito moderno. Com efeito, as legislações ainda não têm disciplinado com a precisão necessária o tema das invalidades, o que acaba causando uma certa perplexidade aos operadores do direito.

Como vimos, o negócio jurídico pode ser existente, válido e efi caz, desde que contenha certos elementos e preencha determinadas condições. Todavia, é possível que o negócio jurídico, por ser contrário ao ordenamento jurídico, não obtenha a chancela do mesmo e, portanto, tenha algum defeito. Sem embargo, para que o negócio jurídico (e qualquer ato jurídico lícito) seja

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204 GOMES, Orlando. Introdução ao

direito civil. Rio de Janeiro: Forense,

2007, p. 422. Trataremos de inefi cácia

somente em seu sentido estrito.

205 Idem, p. 423.

válido, é preciso que a emissão de vontade esteja submetida às determinações legais.

Antes de aprofundarmos o tema, entretanto, é preciso fazer um alerta no que diz respeito à terminologia negócio inefi caz. Até o presente momento, temos tratado o negócio inefi caz como aquele que não produz efeitos, quer seja válido ou inválido. No entanto, tal acepção diz respeito à inefi cácia stricto sensu, porquanto a doutrina tradicional se refere à inefi cácia lato sensu. Nesse sentido Orlando Gomes lembra:

“Na acepção lata, a inefi cácia abrange a invalidade, porque o negócio nulo é ine-fi caz. Mas, em sentido estrito, inefi cácia opõe-se a invalidade. O negócio é inválido quando defeituoso em seus pressupostos e requisitos. Diz-se inefi caz, quando, embora válido, não produz os efeitos normais devido a obstáculo estranho aos seus elementos essenciais, como a necessidade de prática de ulteriores atos para se tornar efi caz ou implemento de condição ou advento do termo.”204

Invalidade, por outro lado, é a sanção imposta pela lei ao negócio jurídico realizado em desobediência ao ordenamento. Tal sanção, no entanto, com-porta duas espécies: nulidade e anulabilidade. A distinção reside no fato de que o ordenamento civil não atinge na mesma intensidade todas as infrações. Com algumas ela é mais severa do que para com outras. Como afi rma Orlan-do Gomes os “negócios jurídicos defeituosos são, portanto, de graus diversos”205.

Em outras palavras, os negócios podem ser nulos ou anuláveis. A diferença é encontrada no interesse envolvido no caso concreto. Quando a invalidade se fundamenta em razões de ordem pública, tratar-se-á de uma nulidade. No caso de anulabilidade a violação é a um interesse particular. Isto é, o ato é praticado em desobediência a normas que protegem especialmente certas pessoas. No caso da anulabilidade o ato não é tão grave como nos casos de nulidade, apesar de ser imperfeito.

A relevância da distinção encontra-se nos efeitos da referidas invalidades:

Nulidade Anulabilidade

Violação a ordem pública. Violação a interesse particular.

Pode ser declarado ex offi cio.Só pode ser declarado mediante requerimento dos interessados.

Não é suscetível de confi rmação Admite ratifi cação

Não convalesce pelo decurso do tempo. Prazo decadencial de 4 anos.

Não produz efeitos.Produz efeitos até a sentença

que declara a invalidade.

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206 AZEVEDO, Antonio Junqueira. Ne-

gócio jurídico: existência, validade e

efi cácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 67.

Crítica à disciplina tradicional das invalidades

Não obstante o regime das invalidades, é preciso lembrar que ele sofre uma verdadeira crítica na medida em que os efeitos colocados acima não são rígidos como queriam alguns autores. As assertivas que os atos nulos não pro-duzem quaisquer efeitos ou que a sentença que declara a anulabilidade pro-duz efeitos ex nunc, por exemplo, não resistem às análises mais profundas.

Inúmeros são os atos nulos que produzem efeitos (interrupção da pres-crição por citação nula, efeitos do casamento de boa-fé, parentesco por afi -nidade em casamento nulo etc.). Por outro lado, o ato anulável, segundo Leonardo Mattieto, produz efeitos ex tunc, porquanto a lei civil prevê que as partes devem retornar ao estado anterior.

Princípio da Conservação dos Negócio Jurídicos

Não se pode esquecer, por fi m, que apesar do ato ser nulo ou anulável, é possível a sua manutenção no ordenamento. Tal constatação tem funda-mento no princípio da conservação dos negócios jurídicos, segundo o qual o intérprete devem buscar, ao máximo possível, a manutenção do negócio realizado. Certamente o ordenamento busca apaziguar as relações sociais, e não um instrumento para fulminar todos os atos realizados. Dessa forma, ele só sanciona quando e até onde os valores ou interesses o exigem.

Instrumentos do referido princípio são a ratifi cação (art. 172), a redução (art. 184) e a conversão (art. 170). A ratifi cação consiste na confi rmação de um negócio anulável. Através da ratifi cação, as partes purgam o vício que o afeta. A redução, por sua vez, importa na manutenção de um negócio válido, retirando, porém, a sua nulidade parcial. Em outros termos, se o negócio contém uma parte inválida, o negócio não resta completamente fulminado se aquela for separável. Por último, a conversão implica na recategorização de um ato nulo. Em outras palavras, por esse instituto o ordenamento abre a possibilidade de, quando ausente um elemento natural (categorial), transfor-má-lo em outro tipo, mediante o aproveitamento dos elementos prestantes. Ele acarreta, em verdade, uma nova qualifi cação categorial206.

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UnB/CESPE — OAB35º Exame de Ordem 2008.1

QUESTÃO 34.Acerca dos fatos jurídicos, assinale a opção correta.

A. A nulidade absoluta, por ser de ordem pública, não se convalesce pelo decurso do tempo nem pode ser suprida pelo juiz, ainda que a requerimento dos interessados, sendo insuscetível de confi rmação.

B. O negócio jurídico concluído pelo representante legal em confl ito com interesses do representado é anulável, ainda que o terceiro, pessoa com a qual o representante celebra o negócio, não tenha conhecimento de tal confl ito. Se restar caracterizada a má-fé desse terceiro, o negócio jurídico é eivado de nulidade absoluta.

C. Quando a lei não exigir forma expressa, o silêncio indica consenti-mento ou anuência quanto à manifestação de vontade na interpre-tação dos negócios jurídicos.

D. Para que o dolo de terceiro acarrete anulabilidade do negócio jurí-dico, é exigido que as partes envolvidas no negócio conheçam, de antemão, a existência do dolo.

Resposta: A

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AULA 17 — INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

EMENTÁRIO DE TEMAS

Interpretação dos negócios jurídicos

LEITURA OBRIGATÓRIA

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janei-ro: Forense, 2005; pp. 495/509.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 220/230. Venceslau, Rose Melo. “O negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/200.

1. ROTEIRO DE AULA

Interpretação do negócio jurídico

Na primeira aula sobre negócio jurídico foi constatado que esse instituto tem por escopo fundamental a criação de relações jurídicas, que como tal, in-tentam a busca de efeitos de natureza não só econômica, mas também social. Por intermédio dessas relações, as partes se vinculam mediante o estabeleci-mento concomitante de direitos subjetivos e deveres jurídicos.

A existência de similitudes entre a lei e o negócio jurídico é patente. Dessa forma, não há que se desprezar a abordagem dessas características comuns (e tam-bém de suas diferenças) no estudo hermenêutico dessa espécie de ato jurídico.

A primeira das características comuns, e também a mais elementar, é a de que tanto a norma legal quanto o negócio jurídico são expressões da vontade humana, pois defi nem condutas, direitos, deveres jurídicos e toda sorte de efeitos jurídicos.

No entanto, apesar de serem expressões da vontade e prescreverem direitos e deveres, a lei e o negócio jurídico diferem quanto ao agente produtor dessas

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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normas. A lei é manifestação da vontade do Estado. A lei, em sentido formal, promana de ato do poder legislativo, que através de ritos procedimentais esta-belecidos em sede constitucional, edita leis em caráter genérico e abstrato que balizam a conduta de todos os indivíduos. Já os negócios jurídicos são cons-tituídos por intermédio da manifestação de vontade de agentes particulares, que criam normas cujo campo de incidência se restringirá aos participantes desse pacto. Somente aos contratantes serão impostas obrigações, mas é pos-sível, como se verá posteriormente, que os efeitos jurídicos do instrumento contratual alcancem a órbita jurídica de terceiros.

Sendo o negócio jurídico exteriorização da vontade humana, é certo que a sua interpretação deve cogitar não só de elementos de ordem ju-rídica, mas também de ordem psíquica. Trata-se de problemática espe-cialmente atinente à atividade interpretativa do julgador, pois é quando da instalação dos litígios, quando já se demandou a tutela do Estado, ou de uma corte arbitral, em sua solução, que o juiz ou árbitro vai inquirir sobre os desígnios que os agentes intentavam quando da construção do liame contratual.

A interpretação do negócio jurídico se coloca umbilicalmente relacionada ao conteúdo da declaração de vontade, e nesse sentido, muito mais do que atentar as regras de interpretação, os magistrados se atêm às particularidades do caso concreto.

No art. 112 do nosso código civil encontra-se um princípio interpretativo de vital importância nessa seara. Ele estabelece a necessidade de atentar mais à intenção da declaração de vontade do que ao conteúdo literal que ela assu-me. Nesse sentido:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubs-tanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Logicamente isso não signifi ca que o intérprete desse negócio deva des-prezar por completo o teor literal do mesmo. Todavia, os negócios jurídicos podem assumir grande variedade de formas e de objetos, de maneira que estabelecer um ritual interpretativo seria complexo e redundaria em impre-cisão. Dessa forma, optou-se por alargar a margem de discricionariedade do intérprete que, no caso concreto, buscará a real vontade das partes.

Essa abordagem no caso concreto é fruto da consideração de que a mani-festação de vontade, que redunda na criação do negócio jurídico, se encontra intimamente ligada a elementos econômicos e sociais, bem como outros fa-tores de ordem jurídica, como os princípios jurídicos da boa-fé e da lealdade entre as partes no contrato.

Outro ponto de destaque é o que alude à reserva mental, e nesse sentido o art. 110 do Código Civil acrescenta a previsão de tal instituto no ordenamen-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 185

207 Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso

de Direito Civil, v. I.. São Paulo: Freitas

Bastos, 1989; p. 402.

to legal brasileiro, não obstante a sua previsão nos campos jurisprudencial e doutrinário já existir de longa data.

No entendimento de Serpa Lopes, reserva mental é a manifestação de vontade dissonante de seu real conteúdo, de modo que os efeitos decorrentes do ato praticado não sejam queridos pelo declarante.207

Se a outra parte que pactua o negócio desconhecia a dissonância entre declaração e vontade, o ato deve ser conservado em prestígio à boa-fé dessa parte e à segurança das relações jurídicas. Caso contrário, se era do conheci-mento da outra parte a divergência entre vontade e declaração, a conseqüên-cia será a invalidação do negócio.

Verifi que-se que nesse campo da interpretação dos negócios jurídicos, a boa-fé objetiva assume uma posição de verdadeira proeminência, sendo um dos nortes interpretativos dos negócios jurídicos. Esse princípio se traduz na necessidade de se observar ações pautadas na ética e lealdade entre as partes, tutelando ainda a confi ança depositada na parte contrária da relação.

O art. 113 do Código, mais uma vez salienta a necessidade de interpre-tação em consonância com o princípio da boa-fé, aliando ainda o elemento costumeiro na interpretação do negócio (usos dos negócios).

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Os contratos benéfi cos, por seu turno, devem ser interpretados de forma restrita, nos limites pretendidos pelo agente. São aqueles mediante os quais se exerce alguma espécie de liberalidade, como na doação ou na renúncia. Se por acaso o doador transferiu mais bens do que realmente tinha em mente, a transmissão no que toca ao excesso deve ser invalidada. Nesses negócios, é com especial atenção que a vontade do agente instituidor deve guiar a ativi-dade do intérprete.

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)39. Assinale a única afi rmação ERRADA quanto aos negócios jurídicos.

(a) A validade da declaração de vontade dependerá sempre de forma especial.

(b) A validade do negócio jurídico requer, entre outros, objeto determi-nado ou determinável.

(c) Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

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(d) Os negócios jurídicos benéfi cos e a renúncia interpretam-se estrita-mente.

(e) Silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem e não for necessária a declaração de vontade expressa.

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) — prova azul:29. No direito pátrio, como regra geral, o negócio jurídico inspira-se pelo

princípio da forma:

(a) particular.(b) livre.(c) consensual.(d) pública.(f ) especial.

21º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase1 — No que se refere a contrato fi rmado entre duas partes é CORRETO

afi rmar:

(a) A vontade manifesta de uma das partes não subsiste se esta faz re-serva mental de não mais querer aquilo que manifestou;

(b) A reserva mental é indiferente à validade do negócio jurídico, exce-to quando o destinatário da manifestação de vontade efetuada com reserva mental tiver conhecimento da mesma;

(c) A reserva mental de uma das partes importa em erro concernente ao objeto da declaração de vontade;

(d) O negócio realizado com reserva mental de uma das partes é anulá-vel por não importar em um querer defi nitivo.

2 — Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao silêncio nos contratos:

(a) O silêncio no sentido jurídico pode ser conceituado como aquela situação quando uma pessoa não manifestou sua vontade em rela-ção a um negócio jurídico, nem por uma ação especial necessária a este efeito (vontade expressa) nem por uma ação da qual se possa deduzir sua vontade (vontade tácita);

(b) Se alguém me apresenta um contrato e manifesta que tomará meu silêncio como aquiescência, eu não me obrigo, porque ninguém tem o direito, quando eu não consinto, de forçar-me a uma contra-dição positiva;

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(c) O silêncio só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstân-cias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta à interpe-lação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer pessoa normal induziria, à crença legítima de haver o silente revela-do, desse modo, uma vontade seguramente identifi cada;

(d) O silêncio importará em anuência do contrato todas as vezes em que se estiver diante de contratos de adesão, houver prazo obri-gatório assinalado para manifestação da parte, sob pena de não o fazendo considerar a contraparte que houve aquiescência e a parte tiver tido ampla oportunidade de tome conhecimento de todos os termos e cláusulas do contrato.

Gabarito: 39 (a); 29 (b); 1(b); 2(d)

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AULA 18 — DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO: ERRO E DOLO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Manifestação de vontade defeituosa — Disciplina jurídica do erro — Erro de Fato e Erro de Direito — Disciplina jurídica do dolo — Dolo essencial e dolo acidental — Dolus Bonus e Dolus Malus — Dolo Positivo e Dolo Negativo — Dolo de Terceiro.

LEITURA OBRIGATÓRIA

Nevares, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo código civil”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 251/271.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janei-ro: Forense, 2005; pp. 513/529. Tepedino, Gustavo, Bodin de Mora-es, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 268/284.

1. ROTEIRO DE AULA

Manifestação de vontade defeituosa

O negócio jurídico, como visto, se processa mediante uma declaração de vontade condizente com a lei e que tenciona a produção de efeitos jurídicos. Deriva, assim, da emissão de vontade do agente. Essa manifestação de von-tade é um dos elementos constitutivos do negócio, sem a qual o mesmo não chega nem mesmo a transpassar o plano da existência.

No entanto, uma vez existente essa vontade, o direito se ocupa dos requisitos de validade que ela deve demonstrar para que o negócio possa validamente se aperfeiçoar. Ainda que emanada diretamente do agente, essa declaração pode não traduzir o seu íntimo querer, a sua vontade real e dessa maneira, o intérprete termina por se deparar com um negócio defeituoso. Quando a vontade manifestada não corresponder à vontade

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208 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2005; p. 514.

real, ao desejo do agente, esse negócio encontrar-se-á sujeito à nulidade ou anulabilidade.

Destaque-se que à luz das teorias encampadas pelo nosso direito civil, existe a distinção entre ausência de vontade e emissão defeituosa operando em planos diversos. Sendo a vontade elemento do negócio, e estando ela ausente, esse ato será inexistente. Por outro lado, sendo a manifestação volitiva defei-tuosa, o negócio é existente, embora inválido.

Os defeitos que podem atingir o negócio jurídico podem ser de dois tipos. Os vícios de consentimento e os vícios de vontade.

Os vícios de consentimento afetam a manifestação de vontade em si, fa-zendo com que a sua elaboração ocorra de modo errôneo. A exteriorização dessa vontade ocorre de modo distorcido e produz efeitos diversos daqueles que o agente tinha em mente. Se os fatores que macularam a vontade não existissem, o declarante ou teria agido de forma diversa ou teria se abstido de celebrar esse negócio.

Os vícios da vontade, também denominados vícios reais, são aqueles nos quais o ato se manifesta em consonância com a vontade anímica do agente, mas, no entanto, essa vontade é repudiada pelo ordenamento. Não se obser-va oposição entre a vontade íntima do agente e a vontade por ele externada, porém há dissonância entre a vontade do agente e a ordem legal208. Aqui, o real querer do agente se encontra harmonizado com a forma pela qual essa vontade se manifesta, existindo, entretanto, reprovação por parte da lei.

Disciplina jurídica do erro

A noção clássica de erro o defi ne como uma falsa representação da realida-de que infl uencia de maneira determinante a manifestação de vontade.

No erro, o agente procede contrariamente ao seu querer, pois atua ou por desconhecimento completo ou por conhecimento impreciso acerca de alguma circunstância. A idéia central desse conceito reside no fato de que o agente agiria de modo diverso ou mesmo nem praticaria o ato caso tivesse uma percepção correta da realidade.

Erro e ignorância não se confundem embora venham tratados conjunta-mente pelo Código Civil. Ignorância é o desconhecimento do agente em re-lação aos efeitos que serão produzidos a partir da sua declaração de vontade. Do ponto de vista jurídico, não há diferença.

Nesse sentido, a ignorância não pode ser observada quando o agente emi-te determinado ato de vontade tendo a noção de que os efeitos que serão perpetrados a partir dele são desconhecidos. Se o agente não tem completo conhecimento do alcance do seu ato não há mais em que se falar em vício do negócio jurídico.

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209 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil:

Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2003; p.

426.

Um dado relevante no erro é a noção de espontaneidade na manifestação da vontade. Não importa que o agente tenha querido resultado diverso, que não tivesse completa consciência dos efeitos próprios do ato que praticou. No erro, o agente pratica o ato de forma espontânea. Ninguém o coage à prática, nem o insta a praticá-lo por intermédio de artifícios escusos, ou seja, dolosos.

Os requisitos para a caracterização do erro, são, segundo Clovis Beviláqua: (i) a escusabilidade; (ii) recair sobre o objeto do ato (e não sobre suas designa-ções); (iii) referir-se aos motivos essenciais do negócio; e (iv) relevância do erro.

Escusabilidade — O erro não pode ser grosseiro, de fácil visualização por um homem de inteligência mediana (homem comum) agindo com a diligên-cia normal que o negócio requer. Se o erro assume essas características não há que se pleitear anulação do ato. É a regra do art. 138.

Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.

Essa idéia visa precipuamente a garantir a segurança jurídica. Se qualquer erro facilmente verifi cável pudesse ensejar a anulação dos negócios jurídicos, haveria grande instabilidade. Além disso, é necessário resguardar o outro con-tratante em virtude da sua boa-fé. Aferir a escusabilidade do erro é tarefa para o juiz ou árbitro no caso concreto.

Segundo afi rma Silvio Venosa, “foi correta a supressão do requisito es-cusabilidade porque, na nova lei, o negócio só será anulado se o erro for passível de reconhecimento pela outra parte. A escusabilidade, nesse caso, torna-se secundária.” E complementa o autor: “O que se levará em conta é a diligência normal da pessoa para reconhecer o erro, em face das circuns-tâncias que cercam o negócio. Sob tal prisma, há que se ver a posição de um técnico especializado e de um leigo no negócio que se trata. Avultam em importância as condições e a fi nalidade social do negócio que devem ser avaliadas pelo juiz”209

Erro Substancial ou Essencial — Para que o ato seja passível de anulação é necessário que o erro seja substancial (ou essencial). Como pode se perceber pela sua própria nomenclatura, o erro essencial tem papel de suma impor-tância na declaração de vontade realizada pelo agente. Se tivesse consciência da falsa representação da realidade ensejada pelo erro, não teria concluído o negócio. Ele incide sobre a causa do negócio ou pelo menos, sobre uma das várias causas do mesmo.

A defi nição legal sobre o que é erro substancial vem no art. 139, I. O in-ciso I do mesmo artigo fala do erro quanto à pessoa, dando-lhe tratamento ainda mais especifi cado:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Art. 139. O erro é substancial quando:I — interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a

alguma das qualidades a ele essenciais;II — concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refi ra a

declaração de vontade, desde que tenha infl uído nesta de modo relevante;III — sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo

único ou principal do negócio jurídico.

O erro acidental, contrariamente ao substancial, não é sufi ciente para anular o negócio. Ele incide sobre motivos ou qualidades não essenciais. Nesse caso, não se abre espaço para se pleitear anulação, pois o declarante re-alizaria o negócio, ainda que conhecendo do erro. Mais uma vez é o juiz, no caso concreto, que irá aferir a essencialidade ou não do erro. Não há que se pensar em critérios pré-defi nidos, visto que o erro que numa situação pode assumir a qualifi cação de secundário, pode noutro negócio revestir caráter de essencialidade.

O art. 142 trata de hipóteses onde a incidência do erro não pode ser sufi -ciente para a invalidação do ato:

Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identifi car a coisa ou pessoa cogitada.

Como já por nós examinado, a causa não foi encampada pelo nosso or-denamento como elemento do negócio jurídico. Limita-se a lei, no art. 140 do Código Civil, a enunciar que o falso motivo só enseja anulação quando expressamente enunciado como razão determinante do negócio. No mais, quando não expressos os motivos que levaram o agente a negociar, residin-do apenas no seu campo psíquico, não há que se falar em sua infl uência no mundo jurídico.

Erro de Fato e Erro de Direito

Já o erro de direito, por conta de alterações legislativas, implica em certa divergência. O erro pode não recair sobre circunstâncias de fato conforme examinado acima, mas ao contrário, estar diretamente ligado ao desconheci-mento da norma jurídica ou das conseqüências jurídicas do acordo.

Esse desconhecimento não deve ser compreendido aqui como a total ig-norância da existência. O próprio ordenamento é expresso nesse sentido, por força do art. 3º da LICC. O erro, neste caso, consiste no falso conhecimento do direito aplicável, ou da interpretação do mesmo, redundando na produ-ção de efeitos jurídicos diversos do pretendido.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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210 Clovis Bevilaqua. Teoria Geral do di-

reito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora

Rio, 1980; p. 436.

Há ainda que destacar que o erro de direito somente pode dar margem à anulação quando se mostra como motivo determinante da declaração, ou seja, o agente somente resolveu proceder com esse ato na medida em que tinha uma noção equivocada da norma jurídica.

Disciplina jurídica do dolo

Não há conceituação sobre dolo constante do Código Civil. O Código inicia o tratamento da matéria no art. 145, elencando o dolo entre as causas de anulabilidade do negócio jurídico.

O dolo é a o estratagema, o artifício utilizado no intento de viciar a von-tade daquele a quem se destina. São manobras efetuadas com o propósito de obter uma declaração de vontade que não ocorreria caso o declarante não fosse ludibriado. A defi nição de Clovis Bevilaqua se mostra bem elucidativa:

“Dolo é o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico, que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro”210

A distinção entre dolo e erro se assenta no fato de que o primeiro há uma causação intencional do vício da vontade. No dolo há provocação. O erro, como já examinado, tem origem na própria vítima, da sua íntima convicção, sendo uma falsa representação da realidade espontaneamente provocada pela mesma.

Essa distinção se mostra relevante pois, muitas vezes, é de mais fácil verifi -cação o comportamento doloso por parte de algum agente do que a prova da percepção errônea da realidade, exclusiva da vítima.

O dolo deve versar sobre elemento essencial do negócio jurídico para que possa ser ensejada a sua invalidade. O dolo que trata de elemento acidental não é sufi cientemente forte para que o negócio seja invalidado.

A idéia que circunda o dolo é o de levar uma determinada pessoa, o decla-rante da vontade, a agir de modo diverso do que pretenderia, caso não hou-vesse esse estratagema viciador da vontade. A doutrina, no entanto, diverge acerca da necessidade de haver prejuízo efetivo à parte.

Para os que entendem pela necessidade de desvantagem econômica, o ne-gócio no qual uma das partes proceda dolosamente sem, no entanto, imputar a outra prejuízo estimável em pecúnia, não poderia ser invalidado.

O dolo deve ter origem no outro contratante. No caso de ser originário de terceiro, deve ser conhecido por quem dele se benefi ciar. Essa é a disposição constante no art. 148, do Código Civil:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

Dolo essencial e dolo acidental

O dolo essencial (ou principal) é uma das causas de anulabilidade do negó-cio jurídico. O dolo acidental, justamente por incidir em elementos acessórios da declaração de vontade, não enseja a invalidade do ato, mas somente a repa-ração por perdas e danos. Ele nada mais é do que a prática de um ato ilícito.

Nesse sentido, prevê a redação dos artigos 146 e 186 do Código Civil:

Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudên-cia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Existem outras classifi cações para o estudo do dolo, como as que fazem re-ferência à dicotomia entre dolus bonus e dolus malus, ou ainda, a dolo positivo e dolo negativo, abaixo enfocadas.

Dolus Bonus e Dolus Malus

O dolus bonus é o dolo com intensidade menor e tolerado pelo ordena-mento jurídico. Um exemplo pode ser retirado do fato do comerciante que elogia demasiadamente o produto que intenta vender, minorando além da conta as imperfeições e desvantagens. A idéia que marca do dolus bonus é que ele já é esperado, é natural e normal a certos negócios. Há uma presunção de que o homem que age de forma proba e diligente, seria apto a não se envolver nessa conduta dolosa.

Dolo Positivo e Dolo Negativo

Atentando ao fato de que o dolo pode se manifestar numa conduta po-sitiva ou negativa, a doutrina apresenta essa classifi cação envolvendo o dolo positivo e o dolo negativo.

O dolo positivo ou comissivo engloba a prática de condutas, de atos que consubstanciam o intento do agente em enganar a outra parte. O declarante

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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não agiria de modo errôneo se não houvesse esse comportamento malicioso por parte do agente. O dolo negativo ou omissivo, por sua vez, é a omissão que visa a fazer com que o declarante manifeste sua vontade de forma viciada. Ocorre quando o agente falta com o seu dever de informar, dever que decorre do princípio da boa-fé objetiva.

Dolo de Terceiro

Pode ocorrer que um terceiro, mesmo a quem os efeitos do negócio não aproveitem de nenhuma forma, perpetre um comportamento doloso. Nesse sentido, o art. 148 do Código Civil destaca que:

Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

O ato é anulável se o benefi ciário tivesse conhecimento do dolo, ou ainda que estivesse obrigada a ter esse conhecimento.

O dolo de terceiro pode se apresentar em três situações: (i) dolo de terceiro contando com a cumplicidade (participação efetiva) da parte do negócio; (ii) dolo de terceiro com mero conhecimento da parte benefi ciária; e (iii) dolo exclusivo de terceiro, sem conhecimento do favorecido.

Quando o comportamento doloso se processa com alguma forma de co-nhecimento da parte que ele se aproveita (situações i e ii) têm-se a anulabili-dade do negócio. Na situação em que a parte não faz a menor idéia do com-portamento doloso do terceiro, o negócio deverá subsistir, mesmo porque, deve-se ter em vista a boa-fé da parte a quem o dolo aproveitou. Certo é que o prejudicado poderá pleitear direito a indenização por perdas e danos face ao terceiro que agiu ilicitamente.

Como se verá adiante, a coação, ao contrário do que determinava o regime do Código de 1916, assume no atual Código tratamento semelhante ao dolo no que concerne à coação de terceiro sem o conhecimento de contratante benefi ciado.

Por fi m, no dolo de ambas as partes, a lei pune ambas as condutas, evitan-do a anulação do ato. Essa é a regra do art. 150 do Código Civil. Trata-se de uma derivação da regra de que a ninguém é dado alegar a própria torpeza.

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2. CASO GERADOR

No dia 23 de abril de 2004, Bruno e Elizabeth, um casal de namorados que residia no apartamento 303, do prédio de nº 45, na Rua Manoel Gonçalves, no bairro de Laranjeiras, tiveram uma discussão acalorada. Não se sabe ao certo o motivo da discussão, mas o fato é que o casal foi encontrado morto, no dia seguin-te, pelo porteiro do prédio. O caso ainda hoje é um mistério para as autoridades policiais. Todos os jornais de circulação na cidade divulgaram por alguns dias a notícia da tragédia e as suas eventuais repercussões.

O fatídico apartamento 303 era alugado. O locador, Antônio Mathias, tomou o cuidado de reformar todo o apartamento depois da tragédia. “Foi uma medida mais espiritual do que estética” — chegou a declarar para os amigos. Depois de con-cluída a reforma, nada mais naquele apartamento lembrava a existência do casal.

Mas Antônio estava resolvido a vender o imóvel. Passado algum tempo, con-seguiu comprar uma outro imóvel e para lá se mudou, colocando o apartamento 303 para ser vendido através dos classifi cados de um grande jornal.

Dois dias depois, Francisco e Carolina, um casal de namorados, foi visitar o apartamento. Eles logo se encantaram com a vista e com as condições para a com-pra do imóvel. Depois de providenciada toda a documentação, foi devidamente lavrada a escritura de compra e venda do imóvel, que agora passava a ser de legítima propriedade de Francisco.

Numa manhã de domingo, ao retornar de uma caminhada na praia, Caro-lina encontra no elevador com uma moradora do prédio. A senhora, sem muita cerimônia, ao perceber que Carolina nada sabia sobre a tragédia do 303, trata de prontamente relatar todo o evento à nova moradora.

Atordoada com a noticia, a jovem corre para contar ao namorado sobre os eventos transcorridos em seu apartamento há menos de dois anos atrás. Francisco, indignado com a má-fé de Antônio, imediatamente contata o seu advogado. Na segunda-feira, após reunião com seu advogado, Francisco está certo de que o ne-gócio será anulado através de decisão judicial e pretende ingressar com a medida na mesma semana.

Se você fosse o juiz desse caso, como seria a sua decisão? A venda do aparta-mento 303 pode ser anulada com fundamento na tragédia ocorrida com Bruno e Elizabeth? Justifi que.

O presente caso foi baseado na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro referente à na Apelação Cível nº 6421/2004, rel. Des. Maldonado de Carvalho; j. em 31.04.2004, cuja ementa está abaixo transcrita:

Civil. Anulação de escritura de compra e venda de imóvel residencial. Vício na manifestação da vontade. Erro acidental. Validade do negócio jurídico. Não ganha qualquer ressonância jurídica a indicação sobre a

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ocorrência de vício oculto como causa direta da anulabilidade do negócio jurídico, uma vez que o imóvel adquirido, por ausência de qualquer in-dicação nesse sentido, não se mostra impróprio ao uso que se destina, ou, em razão de vício redibitório, teve prejudicado sensivelmente o seu valor. O vício redibitório, como os doutrinadores o defi nem, é o defeito oculto que torna a coisa imprópria ao uso a que se destina, ou lhe prejudica sen-sivelmente o valor. Já o erro, na linha de Carvalho de Mendonça, deve ser visto como seu fundamento, uma vez que o agente não faria o contrato caso conhecesse a verdadeira situação, impedindo, assim, que a vontade se forme em consonância com a verdadeira motivação do contratante, apenas o erro substancial infl ui sobre a validade do negócio jurídico. Exclui-se, portanto, o erro acidental que, não recaindo na essência da declaração, não provoca divergência capaz de justifi car a anulação do negócio jurídico. É necessá-rio, pois, que o erro recaia na substância do ato, no objeto principal da declaração, ou em alguma das suas qualidades substanciais. São anuláveis somente as declarações de vontade decorrentes de erro essencial, porquanto o erro acidental não recai nos motivos determinantes da vontade. Recurso improvido.”

Sendo assim, no caso concreto, o TJRJ refutou a pretensão dos au-tores afi rmando que não se tratava de erro essencial e, portanto, não cabendo anulação. Os alunos poderão fazer conjecturas acerca da exis-tência de dolo por parte do alienante, ou até onde ele faltou com o dever de lealdade contratual e boa-fé ao omitir o fato.

3. QUESTÃO DE CONCURSO:

20º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase2 — Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao dolo:

(a) O silêncio de uma das partes sobre fato relevante à consecução do negócio constitui dolo;

(b) Se ambas as partes procederem com dolo, pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização, a parte a quem o negócio rea-lizado não aproveitou;

(c) O dolo principal ou essencial torna o ato anulável. O dolo acidental só obriga à satisfação de perdas e danos;

(d) O dolo civil ao contrário do dolo do direito penal é mais genérico, deixando ao juiz a faculdade de interpretar o caso, diante das cir-cunstâncias, para dizer se houve ou não dolo para viciar a vontade.

Gabarito: 2(b)

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AULA 19 — DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO: COAÇÃO, SIMU-LAÇÃO E FRAUDE CONTRA CREDORES

EMENTÁRIO DE TEMAS

Disciplina jurídica da coação — Coação por parte de terceiros — Disciplina jurídica da simulação — Disciplina jurídica da fraude contra credores

LEITURA OBRIGATÓRIA

Neves, José Roberto de Castro. “Coação e fraude contra credores no Código Civil de 2002”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Có-digo Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 291/309.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janei-ro: Forense, 2005; pp. 530/544. Tepedino, Gustavo, Bodin de Mora-es, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 284/291; 297/306.

1. ROTEIRO DE AULA

Coação

A coação é qualquer ameaça, quer seja de natureza física, quer seja moral, mediante a qual se constrange alguém a praticar um determinado ato. A pre-visão legal se encontra no art. 151 do Código Civil, a partir do qual também se faz possível destacar os principais elementos do instituto:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua fa-mília, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

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Os elementos marcantes para que se confi gure a coação são (i) essenciali-dade da coação; (ii) intenção de coagir; (iii) real gravidade do mal causado; (iv) ilicitude da cominação; (v) dano atual e iminente; (vi) justo receio de prejuízo, igual, pelo menos, ao decorrente do dano extorquido; e (vii) ameaça que deve recair sobre pessoa ou bens do paciente, ou pessoas de sua família.

Da mesma forma que os demais vícios já estudados até aqui, coação deve ser causa determinante do negócio jurídico, ou seja, sem ela, o negócio ou não teria se realizado ou teria ocorrido de forma manifestadamente diversa.

Se ainda que presente a coação, ela não seja a causa determinante, como no caso do coagido desejar a prática do negócio de qualquer forma, não po-derá ser pleiteada a invalidade do mesmo. O querer do agente, nesse caso, permanece espontâneo.

Se incidir sobre elemento acidental do negócio (coação acidental), a realização ocorreria indistintamente, mas de forma diversa da que se processou. Surge aqui o dever de ressarcimento do prejuízo, mas não a prerrogativa de anular o ato.

O temor provocado pela coação deve ainda ser considerável (de natureza moral ou patrimonial). O temor de natureza moral é aquele que se dirige contra a vida, liberdade, honra da vítima, pessoas de seu círculo familiar ou ligadas àquela por fortes vínculos afetivos. A coação patrimonial incide sobre o patrimônio da vítima. Dessa forma, esse temor deve apresentar certa gravi-dade, pois se ele derivar das pressões a que os indivíduos são corriqueiramen-te submetidos, frustrar-se-á o intento de anula o negócio.

Adicionalmente, o perigo de dano deve ser iminente. Se a ameaça for pro-duzir efeitos em um futuro distante, não há como qualifi car a coação, mesmo porque, abrir-se-ia a possibilidade do coagido buscar a tutela do poder esta-tal, desembaraçando-se da injusta pressão.

O temor deve ser fundado, ou seja, deve ser claro em sua manifestação. Não há que se decretar invalidade se o coagido apenas supunha ser vítima de pressão de fato inexistente. Esses são as características descritas no art. 151:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua fa-mília, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

Um outro dado também importante é a ilicitude do mal com que se pro-cessa a coação. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito. Essa é a prescrição do art. 153 do Código Civil:

Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial.

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No entanto, o exercício do direito não se confunde com abuso do direito (art. 187) que seria justamente o seu desvio de fi nalidade. O exercício do di-reito se orienta especifi cadamente à consecução da vantagem a que ele alude. Não é possível que dele venha o agente se valer para atingir fi nalidade diversa daquela para a qual foi criado.

Como elencado na relação de requisitos para a confi guração da coação, essa conduta deve provocar na vítima receio de dano ao menos igual ao que seria provocado pelo o ato sobre o qual a coação versa. Deve-se verifi car sem-pre a real dimensão dos danos. De um lado, deve-se averiguar os danos pro-vocados caso o coagido aja de acordo com os desígnios do coator; de outro, deve-se também ter em mente as conseqüências que serão visualizadas na hipótese de se resistir à coação.

Esse procedimento, entanto, sofre hoje certas objeções em virtude da pos-sibilidade de ocorrerem danos de natureza diversa, tais como os danos mate-riais e morais.

Alguns autores entendem ainda ser possibilidade de coação quando a ameaça se dirige ao próprio coator. É o exemplo do fi lho, que para obter vantagem do pai, ameaça se matar.

Ainda, a doutrina diferencia coação moral de coação física. A primeira vi-cia o consentimento, ao passo que a última liquida totalmente a possibilidade de escolha. Não há que se falar, nessa situação em declaração de vontade.

A coação física (igualmente tratada por vis absoluta) é um constrangimen-to de natureza corporal que retira toda a capacidade do querer. Não há ma-nifestação de vontade, ou seja, há ausência total de consentimento com o ato praticado. Não havendo consentimento, carece o negócio jurídico de um de seus elementos essenciais, quer seja, a declaração de vontade, e portanto, deve ser tido como inexistente. A coação absoluta não é vício da vontade.

A coação relativa (vis compulsiva ou coação moral) se opera de forma di-versa, sendo vício da vontade. A vítima tem maior campo para manifestar a sua vontade, podendo inclusive não ceder à coação, enfrentado o mal impos-to. Com a coação relativa, o ato se torna apenas anulável.

O temor reverencial é determinado pelo art. 153. Trata-se do receio de desgostar pessoas a quem o agente julga dever obediência e respeito, como no caso dos fi lhos em relação aos pais. Há, contudo, que se observar se esse suposto “temor” não confi gura de fato coação.

Coação por parte de terceiros

Quando do estudo sobre o dolo de terceiro, foi observado que o mesmo não macularia o ato se fosse desconhecido pela parte benefi ciada. Essa solução é manejada, dentre outros motivos, pela proteção à boa-fé do benefi ciado.

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Sob os auspícios do Código de 1916, a dinâmica da coação determinava que mesmo com o desconhecimento da parte benefi ciada pela coação, abrir-se-ia a possibilidade de anulação do ato. Essa era uma solução muito desfavo-rável, como visto, ao contratante de boa-fé.

Já o novo Código prevê solução diversa, semelhante àquela estudada em relação ao dolo. Se houver coação de terceiro e esta for desconhecida pelo contratante que dela se benefi ciar, não se abre a possibilidade de anulação. O negócio subsiste, pleiteando-se indenização do terceiro coator.

Ocorre que se o benefi ciado tiver conhecimento da coação ou dela di-retamente participar, ambos estarão solidariamente obrigados ao dever de indenizar, afora a conseqüente possibilidade de anular esse negócio (arts. 154 e 155 do Código Civil).

Disciplina jurídica da simulação

Simulação, como conceito jurídico, corresponde ao ato, ou negócio jurí-dico, que oculta a real intenção do agente. Ao contrário do que dispunha o Código Civil de 1916, a simulação agora é causa de nulidade do ato e não mais de anulabilidade. A razão dessa alteração reside no fato de que na simu-lação, não há vício da vontade. Há, sim, uma aparência de legalidade, mas o interior do ato esconde a intenção de burla à lei.

Na simulação, o negócio que se apresenta à vista de todos não é o real-mente desejado pelas partes, mas é aquele que confere aparência legal ao que a verdadeira manifestação volitiva persegue. Destaque-se ainda que essa disparidade entre o querido e o apresentado não é ocasional, mas proposital.

A característica mais relevante do negócio simulado é a divergência inten-cional entre a vontade e a declaração. Não há que se falar aqui em vício da vontade, pois essa se manifesta de forma desembaraçada. A simulação é um vício social, na medida em que as partes, agindo em conluio, criam a imagem de um negócio diferente do pretendido.

Nesse sentido, na caracterização da simulação, destaca-se a (i) intencio-nalidade na divergência entre vontade e declaração, (ii) acordo simulatório entre os que declaram vontade, (iii) o intuito de enganar terceiros.

Há intencionalidade na divergência entre vontade e declaração. O emi-tente sabe que a declaração é errada, mas ainda assim procede com essa falsa representação da realidade.

O intuito de enganar não pode ser equiparado com o de prejudicar ter-ceiros. Não há, na simulação, vinculação necessária de prejuízo a alguém. No entanto, quando essa vontade de implicar prejuízo a outrem existe, diz-se que a simulação é maliciosa. Fácil, diante do exposto, é perceber que a declaração que não visa ao mal alheio reputa-se como inocente.

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No que se refere a essa distinção entre inocente e maliciosa, erige-se uma celeuma doutrinária. No Código anterior, o art. 103 determinava que so-mente a simulação maliciosa viciava o negócio. Tal regra não foi repetida pelo atual Código, o que levou grande parte dos autores, na esteira da corrente jurisprudencial já majoritária, a acreditar que a simulação inocente ensejaria a nulidade do negócio da mesma forma que a maliciosa.

A simulação pode assumir a forma de simulação relativa e simulação abso-luta. Há simulação absoluta quando a declaração falaciosa se faz objetivando a não produção de nenhum resultado. O interesse real dos agentes é não pra-ticar ato algum. Na realidade, não há que falar em ato ou negócio encoberto, pois nenhum ato existe.

Na simulação relativa há de fato um negócio pretendido pelas partes, mas a intenção delas é que esse negócio permaneça dissimulado (daí também ser chamada dissimulação). O negócio aparente tem por escopo encobrir outro de natureza diversa.

Se esse ato não prejudicar terceiros e não atentar contra a lei, o ato que o dissimula pode ser afastado, assumindo a vontade perante todos a sua face real. Esse é o sentido da lei, manifestado pelo art. 167 do Código Civil:

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

Apesar de inválido o negócio simulado (nulo), subsistirá o dissimulado se suas forma e substância. forem válidas.

Em relação à simulação relativa, a construção doutrinária enfoca ainda 3 formas pelas quais ela pode se manifestar:

(i) Sobre a natureza do negócio — ex. simulação de doação, quando na realidade procede-se com compra e venda. O objetivo é fugir da excessiva tributação que marca a alienação de imóveis.

(ii) Sobre o conteúdo do negócio — ex. numa alienação, o valor defi nido no instrumento contratual é inferior o valor efetivo da transação;

(iii) Sobre a pessoa que participa do negócio — trata-se de uma verdadeira construção fi ccional, onde outra pessoa é envolvida na transação a fi m de mascarar o conhecimento daqueles que realmente atuam no ato. É o caso dos chamados “laranjas” ou “testas de ferro”.

O art. 168 destaca os legitimados, que podem ser quaisquer interessados, bem como o Ministério Público, nos casos em que seja chamado a intervir.

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211 Gustavo Tepedino, Maria Celina

Bodin de Moraes e Heloisa Helena Bar-

boza. Código Civil Interpretado conforme

a Constituição da República, v. I. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 297

Disciplina da fraude contra credores

Conforme será observado no segmento sobre relações obrigacionais, a garantia dos credores em relação à satisfação de seus créditos reside no pa-trimônio do devedor. Quando o devedor não paga a obrigação a que está vinculado, abre-se a prerrogativa ao credor de ingressar no Poder Judiciário, pleiteando a retirada de bens do patrimônio jurídico do devedor com vistas a saldar esse débito.

A fraude contra credores, grosso modo, corresponde a toda sorte de atos que objetivem frustrar a garantia que os credores encontram no patrimônio do devedor. Em regra, opera-se com a transferência de patrimônio.

O estado de insolvência do devedor ocorre no momento em que suas dívidas superam os seus créditos, ou melhor, quando o passivo é maior do que o ativo. Dessa forma, todos os atos que ele pratique e que importem em transferência do seu patrimônio passam a ser vistos com ressalvas, justamente porque esses bens constituem a garantia de que os credores terão os seus di-reitos satisfeitos.

Ocorre fraude contra credores “quando o devedor insolvente, ou na imi-nência de tornar-se tal, pratica maliciosamente negócios que desfalcam seu patrimônio em detrimento da garantia que este representa para os direitos creditórios alheios.”211

A fraude contra credores, grosso modo, corresponde à transferência de pa-trimônio com vistas a evitar a sua utilização no pagamento aos credores. No seu conceito pode-se observar a existência de dois elementos, um de ordem objetiva e outro de ordem subjetiva. O elemento objetivo, como já examina-do, consiste no ato prejudicial ao credor, na medida em que por intermédio dele, o devedor ou se torna insolvente ou torna mais grave a insolvência já instalada. O dado de ordem subjetiva é a intenção do devedor (muitas vezes aliado a terceiros) de prejudicar o credor.

Aos credores que possuem garantias especiais em relação ao patrimônio do devedor não é dado alegar a invalidade do ato, afora os casos em que as garantias datas se mostrem insufi cientes. Esse, por exemplo, seria o caso do credor hipotecário que observa que o valor do imóvel dado em garantia não mais garante a totalidade do seu crédito.

Por conta disso, a fraude contra credores é instituto que se presta precipu-amente à tutela dos credores quirografários, isto é, aqueles que não possuem garantias de qualquer natureza em relação ao pagamento de seus créditos. Em regra, são eles que legitimariam o interesse de ajuizar a ação pauliana, por intermédio da qual se pleiteia a anulação do negócio jurídico.

Três são os requisitos apontados pela doutrina para a caracterização da fraude contra credores: (i) anterioridade do crédito; (ii) consilium fraudis; e (iii) eventus damni.

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A anterioridade do crédito é determinada pelo art. 158, §2º. Quem con-trata com devedor já insolvente, abre mão de patrimônio que garanta o cum-primento dessa obrigação. Deve o credor, antes de pactuar, certifi car-se da solvência do devedor.

O eventus damni se liga à necessidade de se comprovar o prejuízo. Sem ele, não há interesse na propositura da ação pauliana.

O terceiro e último elemento é o consilium fraudis, dado de ordem subje-tiva. Não é necessária a intenção em prejudicar o credor, mas apenas a cons-ciência de que a prática do ato redundará no afastamento da garantia.

Um outro dado relevante é a vedação à transmissão gratuita de bens, seja a doação ou a remissão de dívidas. Nesse caso, o legislador foi claro ao con-siderar desnecessária a comprovação de fraude. Como as liberalidades, tal como a doação, são negócios celebrados a título gratuito, sem que importe em contraprestação, a lei as proíbe em resguardo ao interesse dos credores (art. 158 do Código Civil).

A ação pauliana, por sua vez, é titularizada pelo credor lesado, que a ajuíza tutelando direito seu. Objetiva a invalidação do ato jurídico que afetou a garantia que o credor encontra no patrimônio do devedor. Essa ação deve ser movida contra todos os participantes do ato fraudulento, ou seja, todos que integraram o pólo passivo da relação obrigacional. Essa regra deriva do art. 161, que na realidade assumiria redação mais apropriada aludisse à idéia de que todos os envolvidos na construção da fraude fi gurariam como réus.

Em relação aos efeitos da ação pauliana, cumpre destacar que as vantagens oriundas da anulação do ato, nos termos do art. 165, remetem ao acervo de bens sobre o qual ocorrerá o concurso de credores. A anulação benefi ciará a todos os credores, sejam quirografários ou os dotados de algum privilégio.

A fraude contra credores é apenas uma das espécies de fraude. A sofi stica-ção da mente humana é sufi cientemente capaz de criar novas situações onde o embuste se revestirá, aparentemente, dos requisitos de validade. Muitas vezes competirá ao juiz ou árbitro, no caso concreto, aferir a intenção dos agentes determinando a anulação do ato.

2. CASO GERADOR

Alfredo e Valdete são casados e dentre os bens do casal encontra-se um aparta-mento locado no bairro de Laranjeiras. Com a aposentadoria de Alfredo, o casal, nos próximos meses, fi nalmente colocará em prática o acalentado sonho de se mudarem para a cidade de Natal.

Nesse sentido, Alfredo e Valdete resolvem doar o apartamento em questão aos fi lhos do casal, Lucas e Letícia. A razão de ser dessa transferência foi o fato de os referidos fi lhos já se encontrarem formados, independentes economicamente, e,

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portanto, com condições de arcar com despesas próprias da manutenção de um imóvel.

Deve-se destacar ainda que, afora o apartamento em questão, Alfredo e Valde-te possuem outros imóveis, um residencial e ainda uma sala comercial — a qual, no entanto, encontra-se penhorada.

A penhora se deu em virtude do não adimplemento por parte do casal de um empréstimo levantado junto ao Banco Alfa S/A há alguns meses.

Confi ante de que o valor do imóvel penhorado saldaria suas dívidas, o casal resolveu dar seguimento aos seus intentos. Com o imóvel já doado, Alfredo e Val-dete planejavam a vida na nova cidade.

Ficaram surpresos, contudo, quando receberam a citação judicial informando do ajuizamento de ação pauliana visando a desconstituição da doação celebrada. O Banco Alfa afi rmou que o valor do imóvel penhorado não cobria o valor da dívida e os custos com o trâmite judicial. Destacou a instituição fi nanceira que o valor de mercado do bem sofrera um considerável decréscimo nos últimos meses e dessa forma, uma garantia suplementar seria necessária, daí a necessidade de igualmente penhorar o imóvel do casal.

Alfredo e Valdete contestam essas alegações destacando que o valor do imóvel seria sim sufi ciente para saldar o débito. Ainda que não o fosse, há a impossibi-lidade de anular o negócio, visto que a intenção dos doadores não foi a de burlar a lei.

Com base no exposto, responda:a) A ação pauliana foi ajuizada com fundamente em que instituto ju-

rídico? Enumere quais são os elementos desse instituto e quem são os integrantes do pólo passivo da relação processual.

b) As alegações do casal na contestação são procedentes? Justifi que.

Linha geral de respostaO presente caso foi baseado na Apelação Cível nº 2005.001.14678,

julgada pelo TJRJ.Na resposta do item (b), vale observar que não há consilium fraudis,

isto é, o casal não tinha noção de que o ato desfalcaria os credores. Nesse sentido, eles procedem ingenuamente. A defesa deve enveredar por essa linha. Os alunos poderão alegar vedação à transmissão de bens a título gratuito. Isso não é aplicável, visto que os devedores ainda não eram insolventes.

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3. QUESTÕES DE CONCURSO

24º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase40 — Sobre simulação no novo Código Civil, é correto afi rmar que:

(a) Não se trata de hipótese de anulação, como no Código anterior, mas sim de nulidade do negócio jurídico;

(b) Decorre da prática de atos legais, mas com a fi nalidade de preju-dicar terceiros, ou, ao menos, frustrar a aplicação de determinada regra jurídica;

(c) Foi excluída do novo Código Civil, não sendo causa de inexistên-cia, nem nulidade e, tampouco, de anulação do negócio jurídico;

(d) É o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir al-guém à prática de um ato jurídico, que o prejudica.

22º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase3 — Em relação à simulação é CORRETO afi rmar:

(a) tal como na coação, uma das partes é forçada, mediante grave ame-aça, a praticar o ato ou celebrar o negócio;

(b) na simulação relativa o negócio dissimulado não subsiste, mesmo que seja válido na substância e na forma;

(c) nunca é acordada com a outra parte ou com as pessoas a quem ela se destina;

(d) é uma declaração falsa, enganosa, da vontade, visando aparentar negócio diverso do efetivamente desejado.

20º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase3 — No que se refere à coação, assinale a alternativa INCORRETA:

(a) A coação física, violência, vis absoluta, exclui o consentimento. Não há negócio jurídico porque falta o elemento principal — a vontade do agente — que foi privado de manifestá-la, o que acarreta a ine-xistência do negócio;

(b) A coação, como vício do consentimento, se aprecia objetivamente, sem consideração à condição das partes;

(c) O caso do credor que ameaça levar o devedor a juízo, a fi m de obrigá-lo ao pagamento da dívida, não constitui coação;

(d) A ameaça de um mal remoto ou evitável não constitui coação capaz de viciar o negócio.

Gabarito: 40 (a); 3 (d); e 3 (b)

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AULA 20 — LESÃO E ESTADO DE PERIGO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Estado de perigo — Conseqüências do estado de perigo — Disciplina jurídica da lesão — Conseqüências da lesão.

LEITURA OBRIGATÓRIA

Nevares, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no novo código civil”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 271/290.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janei-ro: Forense, 2005; pp. 544/552. Tepedino, Gustavo, Bodin de Mora-es, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 291/297.

1. ROTEIRO DE AULA

Estado de Perigo

O conceito de estado de perigo pode ser encontrado no art. 156 do Códi-go Civil, ao dispor que o referido estado será confi gurado quando “alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.”

O estado de perigo é um dos defeitos do negócio jurídico, e como tal, é passível de anulação. Sua natureza é similar a dos outros vícios estudados até aqui, qual seja, a de vício do consentimento. Confi gura-se o estado de peri-go quando o agente, premido por circunstâncias de fato que exercem forte infl uência sobre a sua vontade, realiza negócio jurídico em condições desvan-tajosas, assumindo obrigação excessivamente onerosa.

O estado de perigo guarda certa similitude com a coação, uma vez que nessa modalidade de defeito do negócio jurídico, a ameaça ou violência temi-da pelo coagido provém de alguém interessado na prática do ato. No estado

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de perigo, diferentemente, também há uma ameaça, que decorre, entretanto, de uma circunstância fática.

Na confi guração do estado de perigo, confi guram-se como elementos: (i) necessidade de preservação da vida humana; (ii) dolo de aproveitamento; e (iii) assunção de obrigação excessivamente onerosa. Nesse sentido, têm-se que:

Necessidade de preservação da vida humana — Não é qualquer bem jurídico que se encontra em risco. Na confi guração do estado de perigo, o declarante manifesta sua vontade em momento específi co, um momento verdadeira-mente crítico, onde se observa a necessidade de preservação da vida humana, que pode ser do próprio emitente ou de outrem. Essa emissão dessa vontade ocorre em receio a um perigo iminente de dano.

No que concerne ao indivíduo que se encontra submetido à situação de perigo, o art. 156 estabelece como regra duas hipóteses: (i) pode o emitente agir em defesa própria, quando é quem corre perigo; (ii) pode ainda agir ten-do em vista a defesa de um familiar, quando assume a obrigação tencionando salvar do perigo um ascendente, um descendente ou o cônjuge.

Destaque-se que o estado de perigo pode ser confi gurado ainda quando a obrigação assumida não for referente à proteção própria ou de um membro da família, sendo essa a regra do art. art. 156, §. Compete ao juiz, casuistica-mente, decidir pela aplicação dessa hipótese, atentando às circunstâncias em que se formou o negócio jurídico.

Dolo de Aproveitamento — Na coação, conforme já examinado, o agente coator constrange o emitente à manifestação de vontade que lhe seja favo-rável. O perigo que afl ige ao coagido é criado por aquele se aproveita da formação do negócio. O estado de perigo, por sua vez, confi gura-se pelo surgimento espontâneo da situação de perigo.

A leitura do art. 156 permite afi rmar que, embora o benefi ciário da situa-ção periclitante não a tenha dado causa, ele certamente tinha conhecimento da necessidade de proteção à vida que a outra parte tinha, e se aproveitou desta circunstância para obter a vantagem indevida.

Assunção de Obrigação Excessivamente Onerosa — De per se, o fato do in-divíduo estar submetido a uma situação de perigo ao manifestar sua vontade não é sufi ciente para eivar de defeito o negócio jurídico. Em tese, poderia recusar-se a se submeter às condições abusivas do benefi ciário e tentar ultimar o negócio jurídico com outra pessoa. Têm-se, assim, que para se admitir o es-tado de perigo como defeito do negócio jurídico, a manifestação da vontade negocial deverá resultar na assunção de uma obrigação excessivamente onero-sa, em decorrência da urgência em se resguardar a vida humana do iminente perigo a que está sendo submetida.

Vale ressaltar que o legislador não se ocupou em delimitar o que seria uma obrigação excessivamente onerosa. O silêncio da lei é benéfi co, pois assim como uma determinada situação pode ser mais gravosa para um indivíduo

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212 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de direito civil, v. I. Rio de Janeiro:

Forense, 2002. p. 347

213 Caio Mário da Silva Pereira. Ob cit.;

p. 348.

do que para outro, o excesso da prestação também é relativo, devendo ser analisado casuisticamente.

Conseqüências do estado de perigo

Visando a igualar o estado das partes nesse tipo de situação, o Código Civil reputa como anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo (art. 171, II). A anulabilidade da relação jurídica está sujeita ao prazo deca-dencial de quatro anos (art. 178, II).

Mesmo com a determinação legal, uma parte da doutrina sustenta que a anulabilidade não seria o efeito mais adequado para os casos em que o ne-gócio jurídico for celebrado em estado de perigo. Isso porque a anulação do negócio jurídico levaria à devolução integral da quantia desembolsada pela “vítima”, porém, não se pode esquecer que, ainda que de má-fé, houve um serviço prestado pela outra parte, e que resultou em despesas.

Nesse sentido, poder-se-ia cogitar que seria mais correto utilizar-se da re-visão objetiva do preço, como acontece nos casos de lesão (art. 157 § 2º, do Código Civil), evitando assim tanto o enriquecimento sem causa do agente que recebeu a prestação do serviço, quanto o prejuízo do prestador de ser-viço, que poderia abater da restituição os gastos que teve para cumprir sua obrigação. Este é o entendimento do CJF, conforme se extrai do enunciado 148 da III Jornada de Direito Civil: “Ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”.

Disciplina jurídica da lesão

O conceito de lesão encontra-se no art. 157 do Código Civil, ao dispor que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”

Pode-se afi rmar que, de modo genérico, a lesão é “o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resultante da desproporção existente entre as prestações das duas partes”.212 Esse instituto surgiu primiti-vamente na compra e venda, evoluindo através do tempo até abranger todo tipo de convenção negocial.

Atualmente, o ordenamento jurídico nacional consagra o entendimento de que existe lesão quando o agente, instado por uma necessidade, induzido pela inexperiência ou conduzido pela leviandade, realiza um negócio jurídico que proporciona à outra parte um lucro patrimonial desarrazoado ou exorbi-tante da normalidade.213

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Em relação à sua natureza jurídica, a doutrina também apresenta contro-vérsias, sendo que a corrente majoritária entende que a lesão é defeito atípico do negócio jurídico.

Como elementos qualifi cadores da lesão, podem ser elencados os seguin-tes: (i) Desproporção evidente entre prestação e contra-prestação; (ii) Desigualda-de Originária; (iii) Nexo Causal.

Desproporção evidente entre prestação e contra-prestação — Ocorre nas si-tuações em que uma das partes angaria lucro desproporcionalmente maior do que a prestação que pagou ou prometeu pagar. Essa aferição do valor das prestações deve ocorrer ao tempo do contrato.

Desigualdade Originária — O negócio jurídico já deve nascer desequilibra-do. No momento em que se manifesta a vontade e é celebrado o negócio jurí-dico, a vontade de uma das partes já estava viciada e a desproporção entre pres-tação e contra-prestação já existia, ou seja, a lesão nasce junto com o contrato.

Esta característica permite diferenciar a lesão da fi gura da resolução contratual por onerosidade excessiva (art. 478 C.Civil), pois a onerosidade ocorre após a for-mação do negócio jurídico e nada tem a ver com vício da vontade. Deriva do ad-vento de fato imprevisível que rompe o equilíbrio existente no seio do contrato.

Nexo Causal — Para que se confi gure a lesão, é preciso estabelecer uma ligação entre a vulnerabilidade do agente lesado (dada pela necessidade ou pela inexperiência) e a desigualdade entre a prestação e a contra-prestação.

Cumpre, então, traçar alguns paralelos entre o instituto da lesão e os de-mais defeitos dos negócios jurídicos:

Lesão e Estado de Perigo: em ambos os casos há uma desproporção entre o valor cobrado e o valor justo do que foi oferecido. Entretanto, o estado de pe-rigo se caracteriza pela necessidade de preservação da vida humana, enquanto a lesão se confi gura simplesmente por necessidade premente que não envolva risco de vida ou por inexperiência de um dos contratantes.

Além disso, a leitura do art. 157 nos mostra que não é preciso que se comprove o dolo de aproveitamento para que se confi gure a lesão, pois a lei não se exige o conhecimento prévio pelo benefi ciário da necessidade ou da inexperiência do contratante lesado.

Lesão e Coação: na lesão não existe o processo de intimidação sobre o ânimo do agente para compeli-lo ao negócio jurídico, como acontece na Coação.

Conseqüências da Lesão

A exemplo do que ocorre com o Estado de Perigo, o Código Civil reputa como anulável negócio jurídico defeituoso por conta de uma lesão à vontade negocial (art. 171, II). A anulabilidade da relação jurídica também deverá observar o decadencial de quatro anos (art. 178, II).

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Conforme já salientado anteriormente, quando tratou-se das conseqüên-cias do estado de perigo para o negócio jurídico, o art. 157 § 2º do Código Civil dispõe que será mantido o negócio jurídico sempre que a parte favoreci-da concorde com a redução de seu proveito, restabelecendo o equilíbrio entre as partes que celebraram o negócio jurídico. Este entendimento foi reforçado pelo enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do CJF: “Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verifi cação da lesão deverá con-duzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado promover o incitamento dos contratan-tes a seguir as regras do art. 157, parágrafo segundo, do CC de 2002”.

2. Questões de concurso:

22º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase2 — Assinale a alternativa INCORRETA:

(a) A lesão destaca-se dos demais defeitos do negócio jurídico por acar-retar uma ruptura no equilíbrio contratual na fase de execução do negócio, posterior, portanto, à celebração do mesmo;

(b) O elemento objetivo da lesão consiste na manifesta desproporção entre as prestações recíprocas, geradoras de lucro exagerado;

(c) A lesão é modalidade de defeito do negócio jurídico caracterizado pelo vício do consentimento;

(d) O elemento subjetivo da lesão é caracterizado pela inexperiência ou premente necessidade do lesado.

21º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase3 — No que se refere ao estado de perigo, assinale a alternativa INCOR-

RETA:(a) O perigo deve ser de natureza grave. Avalia-se a gravidade do perigo

em função das circunstâncias do caso concreto e das condições físi-cas e psíquicas da vítima;

(b) O perigo pode dizer respeito tanto à vida como à saúde, integridade física ou mesmo a honra do declarante ou membro de sua família;

(c) O estado de perigo futuro também é passível de levar, desde logo, à anulação do negócio jurídico pela vítima;

(d) Obrigação excessivamente onerosa no que concerne à confi guração do estado de perigo é aquela que decorre de condições iníquas, com grande sacrifício econômico para uma das partes.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 211

4 — No que se refere à lesão é CORRETO afi rmar:(a) Lesão é a exagerada desproporção de valor entre as prestações de um

contrato bilateral, concomitante à sua formação, resultado do apro-veitamento, por parte do contratante benefi ciado, de uma situação de inferioridade em que então se encontrava o prejudicado;

(b) O negócio em que se aufere ganhos com a inexperiência ou a pre-mente necessidade de contratar da contraparte, é necessariamente um negócio válido;

(c) O momento em que a desproporção lesionária deve ser apreciada é o da extinção do contrato;

(d) A premente necessidade confi guradora da lesão tem um signifi cado psíquico, refere-se à necessidade psicológica de contratar, como na compulsão ao consumo.

128º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase21. Sob premente necessidade, Fernando adquire à vista um bem móvel

de Guilherme com preço manifestamente superior ao seu real valor de mer-cado. Nesse caso, é correto afi rmar que esse negócio:

(a) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado dolo;(b) não pode ser anulado apenas por este fato;(c) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado lesão;(d) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado erro.

Gabarito: 2 (a); 3 (c); 4 (a); 21 (c).

OAB — 41º Exame de Ordem 2010.1

36. A respeito dos defeitos dos negócios jurídicos, assinale a opção correta.A. O dolo acidental, a despeito do qual o negócio seria realizado, em-

bora por outro modo, acarreta a anulação do negócio jurídico.B. Tratando-se de negócio jurídico a título gratuito, somente se confi gura

fraude quando a insolvência do devedor seja notória ou haja motivo para ser conhecida, admitindo-se a anulação do negócio pelo credor.

C. A lesão é um defeito que surge concomitantemente à realização do negócio e enseja a sua anulabilidade. Entretanto, permite-se a revisão contratual para evitar a anulação, aproveitando-se, assim, o negócio.

D. Se, na celebração do negócio, uma das partes induzir a erro a outra, levando-a a concluir o negócio e a assumir uma obrigação despro-porcional à vantagem obtida pelo, outro, esse negócio será nulo por-que a manifestação de vontade emana de erro essencial e escusável.

Resposta: C

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 212

AULA 21 — CONDIÇÃO, TERMO E ENCARGO

EMENTÁRIO DE TEMAS

Elementos acidentais do negócio jurídico — Classifi cação das Condições — Condição Resolutiva e Condição Suspensiva — Disciplina jurídica do termo — Exigibilidade do direito sujeito a termo — Disciplina jurídica do encargo.

LEITURA OBRIGATÓRIA

CASTRO NEVES, José Roberto. Uma Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2005; pp. 113/129.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266.Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 553/583.

1. ROTEIRO DE AULA

Elementos acidentais do negócio jurídico

Conforme visto nas aulas anteriores, os negócios jurídicos são dotados de certos elementos essenciais sem os quais sua existência não é confi gurada. Esses atos são puros (ou simples), quando a declaração de vontade se formula sem a interferência (leia-se sujeição) a circunstâncias modifi cativas.

A sofi sticação da vida social, entretanto, implicou na construção de ele-mentos que ao serem fi xados junto ao negócio jurídico, implicam na modifi -cação de efeitos sobre o mesmo.

Surgem, assim, os elementos acidentais do negócio jurídico, que podem assumir a forma de condição, termo ou encargo. São elementos que podem ou não ser agregados aos negócios, mas uma vez opostos, assumem importân-cia fundamental, não podendo ser separados.

A defi nição da natureza desses elementos também encampa certas diver-gências: A maior parte da doutrina os caracteriza como elementos de caráter acessório, pois, em tese, o negócio poderia perfeitamente se realizar sem que

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fossem colocados. No entanto, há autores que entendem que os elementos acidentais não são declarações distintas, integrando o conteúdo propriamen-te dito do negócio.

Esses elementos essenciais, em regra, operam limitações impostas pelos próprios declarantes. A condição sujeita o negócio a evento futuro e incerto; o termo o faz por conta de evento igualmente futuro, porém certo de sua verifi cação. O encargo, por fi m, assume a feição de uma imposição ao titular de um direito.

Condição

A defi nição legal de condição é encontrada no art. 121 do Código Civil, ao dispor que: “Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusiva-mente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.”

Conforme pode ser observado, são elementos da condição a futuridade e a incerteza. A futuridade implica em que um fato ocorrido no passado não pode ser objeto de condição, apenas aqueles que ainda estão por ocorrer. Ainda, necessário que a condição se remeta a fato incerto, isto é, fato que pode ou não ocorrer, sendo essa mesma incerteza de ordem objetiva.

A exigibilidade do ato só se opera com o implemento da condição. Se for estipulado, como já visto, uma obrigação de pagar determinada quantia me-diante a vitória de determinada equipe esportiva, essa obrigação só será dota-da de exigibilidade após a vitória dessa mesma equipe. A obrigação, antes do advento do fato, não terá exigibilidade e, na hipótese de derrota da aludida equipe, o pacto restará sem efeito.

Deve-se mencionar ainda os chamados atos ou negócios puros, os quais não admitem a oposição de condição. São atos ligados aos direitos de família puros e direitos personalíssimos. Não, há, nesse sentido, que falar em condi-ção ao reconhecimento de um fi lho.

Classifi cação das Condições

A primeira das classifi cações das condições é aquela que as divide em líci-tas e ilícitas. O art. 122 CC traz entendimento sobre esse assunto, determi-nando que:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

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Os autores tendem a qualifi car como ilícitas as condições imorais e ilegais. As imorais são as condições que atentam contra a moral e bons costumes. As ilegais, por sua vez, vinculam obrigações proibidas por lei.

As condições perplexas (ou contraditórias) são as despidas de sentido, que deri-vam em dúvida para o intérprete. Elas apresentam contradições de tal ordem que outro fi m não pode ser dado ao negócio que não a invalidação. Nesse sentido:

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:III — as condições incompreensíveis ou contraditórias.

A condição potestativa é aquela que se liga à vontade de uma das partes do negócio, que pode determinar o seu implemento ou não. Nem todas as con-dições potestativas são ilícitas, mas certamente o são as potestativas puras que se vinculam ao arbítrio exclusivo de uma das partes. Contrapõe-se à condição causal, modalidade que não se vincula ao arbítrio de nenhuma das partes.

As condições impossíveis são aquelas que em virtude de algum fator, não são passíveis de realização. Essa impossibilidade pode ser jurídica ou material. O tratamento dessa matéria assumia contornos mais nítidos no Código Civil de 1916, no qual as condições fi sicamente impossíveis eram reputadas como não escritas, ao passo que quando era jurídica a impossibilidade, preferia-se a anulação do ato. A razão de ser dessa distinção, sustentam alguns autores, seria a impossibilidade de se transigir contrariamente à lei. Daí a maior seve-ridade com relação às condições juridicamente impossíveis.

No atual Código Civil, o tratamento da matéria se perfaz no art. 123, da seguinte forma:

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:I — as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;II — as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita;III — as condições incompreensíveis ou contraditórias.

Dotado de maior rigor técnico, a lei atual determina que as condições juridicamente impossíveis, quando suspensivas, invalidam os negócios que subordinam. Se a condição impossível for resolutiva, deverá ser considerada como não escrita, evitando tolher a efi cácia do ato.

Condição Resolutiva e Condição Suspensiva

O art. 125 traz a noção de condição suspensiva determinando que: “Su-bordinando-se a efi cácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquan-to esta se não verifi car, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.”

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Nas condições suspensivas, o nascimento do direito a que a obrigação se re-fere fi ca em suspenso até que a condição se implemente, possuindo o titular mera expectativa de direito.

As condições resolutivas, por sua vez, são aquelas nas quais a ocorrência do evento implica na cessação dos efeitos do negócio. A noção legal se remete aos artigos 127 e 128, ambos do Código Civil:

Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabe-lecido.

Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem efi cácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé.

Enquanto existir pendência da condição suspensiva, o ato permanecerá sem efi cácia. Nesse sentido, se o negócio versar sobre um direito de crédito, o mesmo será inexigível, não havendo início do prazo prescricional, e caso o devedor erroneamente realize o pagamento, o mesmo deverá ser repetido.

De toda forma, atentando a condição de expectativa de direito a lei faculta ao credor executar atos de conservação. Essa é a regra do art. 130, do Código Civil:

Art. 130. Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo.

Quando deparado com o advento da condição, dá-se o aperfeiçoamento da obrigação e o direito, de meramente eventual, passa a adquirido. A efi cácia do mesmo torna-se plena. Se por outro lado, há a frustração na implementa-ção do evento (lembre-se que ele é incerto), a obrigação não produzirá efeitos.

Esse direito sujeito a condição é plenamente passível de transmissão, seja ela inter vivos ou causa mortis, não devendo, em hipótese alguma, deixar de destacar que essa transmissão abarca o caráter de incerteza na implementa-ção do direito.

A condição resolutiva, conforme observado, possui dinâmica oposta à condição suspensiva. Nela, a aquisição do direito se dá logo na pactuação, na emissão de vontade, vindo a extinguir-se quando do implemento da con-dição resolutiva. Os direitos serão extintos quando da ocorrência da mesma.

A condição resolutiva pode se operar de forma expressa ou tacitamente, quando então carecerá de notifi cação ou interpelação (Art. 474). Referente ao implemento da condição, o art. 129 menciona que:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Art. 129. Reputa-se verifi cada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo im-plemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verifi cada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

Quem manipula o implemento de um evento de modo a favorecer-se, por óbvio, procede contrariamente ao direito. O art. 129 consubstancia a proteção da lei à parte prejudicada em virtude da má-fé de quem manipula a implementação da condição. Note-se que o dolo, isto é, a intenção deliberada de impedir ou provocar o advento da condição deve estar presente.

Retroatividade da condição

Trata-se de um assunto marcado pela controvérsia, tendo reminiscências no Direito Romano. Aqueles que defendem a retroatividade dos efeitos da condição destacam que quando ocorre o seu implemento é como se o negócio jurídico fosse puro e simples desde o seu início, desde a data da manifestação da vontade. A idéia é central reside no fato de que, fi ccionalmente, o tempo de vacância até a implementação da condição nunca teria ocorrido, sendo o negócio, desde o seu início mais remoto, além de válido, produtor de efeitos.

Não há dispositivo destacando entendimento algum sobre esse efeito no atual Código, nem na legislação extravagante. Diversos autores afi rmam que esse efeito retroativo só se verifi cará quando as partes o convencionarem, ou quando a lei expressamente o determinar. Em regra, os atos não encampam o efeito retroativo.

Disciplina jurídica do termo

No termo, encontra-se um evento que subordina a efi cácia do negócio jurídico a um evento futuro e certo. O início ou fi nal da efi cácia do ato de-penderá do implemento desse termo.

A dinâmica do instituto em muito se aproxima da referente à condição. A distinção mais notória aqui é o fato de que a subordinação se faz em relação a evento que, embora futuro, é certo.

A futuridade e a certeza são os elementos do termo, que pode assumir a designação de termo inicial e termo fi nal. O termo inicial (suspensivo, dilató-rio, ou dies a quo) é aquele a partir do qual o exercício de um direito se torna possível. Remete ao início da efi cácia do negócio.

Quando um negócio jurídico é submetido a termo inicial, desde o início se verifi ca a aquisição do direito. No entanto, a efi cácia do mesmo, isto é, a pos-sibilidade de produzir efeitos jurídicos se retarda até o advento desse termo.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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Observe que o termo difere da condição, nesse ponto, pois opera desde a pactuação a aquisição do direito. O direito já é existente, somente o seu exercício carece da observância do evento.

A condição suspensiva, diferentemente, não suspende somente o exercí-cio, mas também a própria aquisição do direito. Na condição há mera expec-tativa de direito, ao passo que no termo temos o direito propriamente dito.

O termo fi nal (resolutivo, peremptório ou dies ad quem), ao contrário, é aquele que implica na perda de efi cácia do ato. Há a cessação dos efeitos do negócio. Este surge pleno, implicando não só na existência e validade do direito, como também na plena efi cácia dele. Produz efeitos jurídicos tal qual intentado na manifestação dos declarantes.

Em relação ao momento de ocorrência, o termo pode ser certo (determi-nado) e incerto (ou indeterminado). Frise-se que a certeza aqui não versa so-bre a convicção no implemento do termo, pois como visto, essa integra o seu próprio conceito. A nomenclatura certo/incerto remete ao momento de im-plemento do evento. Dessa forma, termo certo é aquele conhecido, ao passo que termo incerto é aquele em que se ignora o momento de implementação.

O termo pode ainda ser classifi cado em convencional, quando advir por vontade das partes ou legal, quando decorre da lei. Há quem sustente ainda o termo judicial — oriunda de esfera jurisdicional.

O termo pode ainda ser expresso, quando vem delineado no conteúdo do negócio, ou tácito, quando se infere no correr da relação jurídica.

A noção de prazo não pode ser confundida com a do termo em si, pois aquele é o lapso temporal compreendido entre o momento de declaração da vontade e a data de implemento do termo. Da mesma forma que a modalidade de termo compreendido no ato, pode o prazo ser certo (quando sujeito a termo certo) ou incerto. O art. 132 alude a regra legal sobre a contagem de prazos.

Exigibilidade do direito sujeito a termo

O termo é pactuado ante a anuência dos contratantes e dessa forma, em regra, não é dado ao credor exigir o cumprimento da obrigação antes do ad-vento do termo.

O art. 133 corrobora essa idéia, destacando que:

Art. 133. Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos con-tratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes.

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214 Gustavo Tepedino, Maria Celina

Bodin de Moraes e Heloisa Helena Bar-

boza. Código Civil Interpretado conforme

a Constituição da República, v. I. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 265

Quando o prazo aproveita ao devedor, este pode cumprir a obrigação an-tes do advento do termo. Há situações, entretanto, onde o prazo aproveita ao credor, e nesse caso, o pagamento antecipado é inconveniente a ele. Imagine, nesse sentido, o credor que encomendou determinada quantidade de manti-mentos, mas que ainda não disponibiliza de local apropriado para estocá-los. O cumprimento da obrigação antes do prazo teria efeitos desastrosos.

Disciplina jurídica do encargo

O encargo tem previsão no Código Civil nos artigos 136 e 137, sendo uma restrição imposta àquele que se benefi cia de uma liberalidade. Sua natu-reza é de ônus imposto ao benefi ciário.

Trata-se de cláusula inserida em negócios jurídicos gratuitos que vincula obrigação de dar, fazer ou não fazer, mas sem que se confi gure um caráter contraprestacional. O encargo não tem o condão de impedir a aquisição ou exercício do direito objeto do negócio jurídico.

O encargo tem por escopo dar executividade a certos desígnios daquele que realiza a liberalidade. Essa cláusula vincula o benefi ciário na medida em que ele aceita a liberalidade.

Ponto que merece especial atenção é o dos efeitos decorrentes do não cumprimento do encargo. Nesse sentido:

“Observa-se que o dever jurídico criado pelo encargo gera um vínculo obriga-cional para o benefi ciário, de modo que seu descumprimento permite ao autor da liberalidade, titular do direito subjetivo correspondente, exigir o cumprimento. A legitimidade para exigir o cumprimento do encargo dependerá da identifi cação dos interessados em cada negócio específi co, pois a liberalidade pode ser instituída em favor do próprio autor, de terceiro, ou de interesse geral, em negócios inter vivos ou causa mortis”214

Quando ocorre a inexecução do encargo abre-se a perspectiva ao interessa-dos de promover a execução forçada da mesma sem implicar no perecimento do negócio. O doador e os terceiros benefi ciados (ou seus herdeiros) poderão pleitear judicialmente a execução do encargo. Se o doador já tiver falecido, poderá o Ministério Público titularizar a referida ação. Essa possibilidade encontra previsão no art. 553 do Código Civil:

Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.

Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público pode-rá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 219

Pode ainda o instituidor decidir pela resolução do negócio, sendo essa uma prerrogativa que só compete a ele. A previsão está assentada no art. 555 do Código Civil:

Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por ine-xecução do encargo.

Essas regras tratam da doação, mas há que se estender, analogicamente, suas regras a outras modalidades de negócios.

O encargo não produz refl exos nos campos da aquisição e exercício de direitos. As prerrogativas que derivam do negócio são adquiridas e podem ser exercidas independentemente de cumprido o encargo. Ele não é um ele-mento essencial ao negócio jurídico, mas uma vez que seja previsto, passa a integrar o contrato.

2. QUESTÃO DE CONCURSO:

27º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase12 — Certo comerciante se obriga a fornecer determinados materiais de

construção a um empreiteiro, quando as paredes do prédio que este edifi ca tiverem alcançado determinada altura. Denominamos esta cláusula:

(a) Condição resolutiva;(b) Termo certo;(c) Condição potestativa ilícita;(d) N.R.A.

Gabarito: 12 (d).

Ordem dos Advogados do BrasilVI EXAME DE ORDEM UNIFICADO — 2012

34. A condição, o termo e o encargo são considerados elementos aciden-tais, facultativos ou acessórios do negócio jurídico, e têm o condão de mo-difi car as consequências naturais deles esperadas. A esse respeito, é correto afi rmar que:

A. se considera condição a cláusula que, derivando da vontade das par-tes ou de terceiros, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.

B. se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, não vigo-rará o negócio jurídico, não se podendo exercer desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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C. o termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito e, salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, incluindo o dia do começo e excluindo o do vencimento.

D. se considera não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico.

Resposta: A

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 221

215 O presente roteiro de estudo é uma

versão reduzida - e substancialmente

adaptada para os fi ns desse material

didático - do trabalho realizado con-

juntamente com Tatiana Florence Ma-

galhães e constante do livro Código Civil

Interpretado conforme a Constituição da

República, vol. I, organizado por Gusta-

vo Tepedino, Maria Celina Bodin de Mo-

raes e Heloisa Helena Barboza (Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).

PARTE V: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

AULA 22 — FUNDAMENTOS PARA APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA

EMENTÁRIO DE TEMAS

Conceito de prescrição — A teoria da pretensão e o art. 189 do Código Civil — Distinção entre prescrição e decadência — Fundamento da prescrição — Re-quisitos da prescrição — A renúncia da prescrição — Alteração dos prazos pres-cricionais — Imprescritibilidade e autonomia da vontade — Quando se alega a prescrição — Reconhecimento da prescrição de ofício — Relativamente incapazes e pessoas jurídicas — Alguns aspectos peculiares da decadência — Conceito de decadência — Impedimentos, interrupções e suspensões — Renúncia à decadên-cia — Questões processuais.

LEITURA OBRIGATÓRIA

Neves, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Ci-vil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp. 417/428.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/366; e Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 677/702.

1. ROTEIRO DE AULA215

O estudo dos institutos da prescrição e da decadência evidencia a relação existente entre o decurso do tempo e a modifi cação no status das relações jurídicas.

O Código Civil de 1916 não apresentou qualquer defi nição para o insti-tuto da prescrição, iniciando já o seu capítulo respectivo com um artigo que

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 222

tratava da renúncia à prescrição (art. 161). O Código atual procurou corrigir essa imperfeição com a redação do artigo 189, o qual assim dispõe:

Art. 189 — “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extin-gue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”

Contudo, é importante destacar que mesmo o art. 189 não soluciona de todo o problema de conceituação do instituto da prescrição, uma vez que ele aponta com mais clareza os efeitos gerados pela prescrição na relação jurídica, mas também se mostra silente no que diz respeito à natureza e ao fundamento do instituto.

Pode-se afi rmar que a prescrição possui duas formas bastante distintas de atingir uma relação jurídica. A prescrição pode tanto conferir ao sujeito a possibilidade de adquirir um direito através de sua atuação prolongada por determinado período de tempo, incorporando-o ao seu patrimônio (“prescri-ção aquisitiva”), como, ao reverso, pode, após o decurso de um lapso tempo-ral, impedir que o titular de uma pretensão venha a concretizá-la, na medida em que permaneceu inerte durante o prazo que lhe foi concedido para con-cretizar o seu poder de exigir (“prescrição extintiva ou liberatória”).

A seguir será tratada apenas a prescrição de natureza extintiva, uma vez que a prescrição aquisitiva encontra previsão legislativa em outros campos do estudo do Direito Civil, com destaque para o usucapião, tratado no Código Civil nos artigos 1238 e ss.

Conceito de prescrição

A busca por uma conceituação do instituto da prescrição remonta a estu-dos antigos da doutrina nacional, embora até hoje ainda exista controvérsia a seu respeito, principalmente com relação às diferenças existentes entre os prazos prescricionais e decadenciais.

Existe concordância entre os autores sobre o fato de que a prescrição de-corre da consumação de um prazo extintivo. A partir dessa conclusão, cum-pre esclarecer qual seria o objeto da prescrição. O conceito apresentado pela doutrina sempre esteve vinculado mais a um reconhecimento dos efeitos cau-sados pelo advento do prazo prescricional do que propriamente à natureza do instituto, o que contribui para a confusão entre as teorias que buscavam afi rmar um conceito de prescrição com aquelas que delineavam as suas prin-cipais características, sobretudo em contraste com o prazo decadencial.

De todos os entendimentos partilhados pela doutrina sobre o tema, pode-se identifi car três linhas de exposição bem destacadas. Para alguns autores a prescrição seria forma de extinção do direito material. A maioria da doutri-na nacional, todavia, adotou postura favorável ao reconhecimento de que a

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 223

216 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, vol. I, Rio de Janeiro,

Forense, 1996, 18ª ed, pp. 435/436.

217 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Es-

tados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Ja-

neiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 458.

218 Gustavo Kloh Muller Neves, “Prescri-

ção e decadência no novo Código Civil”,

in Gustavo Tepedino (org.), A Parte

Geral do Código Civil, Rio de Janeiro,

Renovar, 2002, p. 421.

prescrição extinguiria a ação correspondente ao direito. Por fi m, nas últimas décadas, o entendimento de que a prescrição atingiria a pretensão encontrou substancial aceitação na doutrina e na jurisprudência.

O entendimento segundo o qual a prescrição atingiria o direito material foi defendido por Caio Mário da Silva Pereira, segundo o qual o prazo prescri-cional “conduz à perda do direito pelo seu titular negligente”. Assim, estando o direito extinto pelo decurso do lapso temporal, ao seu antigo titular apenas restaria o interesse de ver a prestação cumprida por um ato de liberalidade da parte do antigo devedor. A causa para o pagamento de dívida já prescrita — completa o autor — residiria então em dever de natureza moral.216

Todavia, obteve maior aceitação na doutrina nacional, a ponto de ser con-siderado como entendimento majoritário, o posicionamento no sentido de que a prescrição extinguiria a ação, e não o próprio direito. Nessa direção, afi rma Clovis Bevilaqua que a prescrição “é a perda da ação atribuída a um direito, de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela, durante um determinado espaço de tempo”217

Dessa forma, o transcurso do prazo prescricional não fulminaria o direito, mas apenas a ação, podendo o direito remanescente ser atendido, caso assim desejasse o titular do dever jurídico correspondente.

Por fi m, um terceiro entendimento propugnava que o objeto da ação des-truidora da prescrição seria a pretensão, restando tanto o direito de ação quan-to o direito subjetivo ilesos com relação ao transcurso do prazo prescricional. Essa teoria foi consagrada no dispositivo do art. 189 do Código em vigor.

A teoria da pretensão e o art. 189 do Código CivilO art. 189 incorpora ao direito pátrio a teoria de que a prescrição “extin-

gue” a pretensão, conforme disposto no par. 194 do BGB, preservando-se assim o direito, que poderá ser satisfeito mediante prestação espontânea pela parte benefi ciada com a prescrição.

Em que pese a inovação representada pela positivação da teoria, o regra-mento do instituto no Código Civil acompanhou a mesma orientação meto-dológica presente em grande parte dos estudos doutrinários sobre a matéria, pois se conferiu grande importância aos efeitos, mas não se evidenciou quais são os requisitos e os fundamentos da prescrição.

Nesse sentido, esclarece Gustavo Kloh que: “o texto legal fi xou os efeitos da prescrição, mas não os requisitos para a sua confi guração, quando deveria ter feito o contrário: é vital a estruturação de categoria legal prescricional, em vez de mera regulação de prazos (que devem ser aplicados sob quais circuns-tâncias?), e isto não é feito; noutro giro, o engessamento dos efeitos é nocivo, pois impede a gênese da solução adequada para cada caso.”218

De qualquer sorte, o reconhecimento de que a prescrição atua sobre a pretensão constitui um avanço sensível na positivação da matéria. Pode-se conceituar a pretensão como sendo “a posição subjetiva de poder exigir de

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FGV DIREITO RIO 224

219 F. Pontes de Miranda. Tratado de Di-

reito Privado, t. V, Rio de Janeiro, Borsoi,

1955, 2ª ed; p. 451.

220 José Carlos Barbosa Moreira, “Notas

sobre pretensão e prescrição no sistema

do novo Código Civil brasileiro”, RTDC, n.

11, 2002, pp. 71/72.

221 Agnelo Amorim Filho, “Critério

científi co para distinguir a prescrição

da decadência e para identifi car ações

imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,

n. 744, 1997, p. 728.

222 F. Pontes de Miranda. Tratado de

Direito Privado, t. VI, Rio de Janeiro,

Borsoi, 1955, 2ª ed.; pp. 104 e ss.

outrem alguma prestação positiva ou negativa”219 Em outras palavras, a pre-tensão é o poder de exigir uma prestação, um comportamento de outrem.

Sendo assim, a redação do art. 189 explicita que para a ocorrência da prescrição deverá existir um direito e que, em sendo ele violado, surgirá uma pretensão para o seu titular, a qual não sendo exercida dentro de um prazo determinado, desencadeará o fenômeno da prescrição.

Vale ressaltar o entendimento de José Carlos Barbosa Moreira, segundo o qual, existem pretensões que prescindem da violação do direito para o seu surgimento. Essa constatação se faz de forma mais evidente no campo dos di-reitos reais, pois ao proprietário é concedido o poder de exigir o respeito por parte de terceiros com relação à sua propriedade. Essa pretensão é anterior a qualquer ato lesivo, que pode mesmo nem vir a ocorrer. Segundo o autor, tanto as pretensões que prescindem da violação, como aquelas que nascem para o titular antes mesmo da violação, também estão incluídas na regra pres-cricional do art. 189.220

Partindo da classifi cação dos direitos elaborada por Chiovenda, Agnelo Amorim delimita o campo de atuação da prescrição justamente àqueles direi-tos que têm por fi nalidade um bem da vida, a ser alcançado através de uma prestação, positiva ou negativa, por parte do sujeito passivo de uma relação jurídica.221 Como regra geral, os direitos a uma prestação poderão ser viola-dos, na medida em que o sujeito passivo não cumpre a ação ou omissão que lhe era devida, surgindo, assim, nos termos do art. 189, a pretensão do titular do direito violado em face do mesmo.

Será então essa pretensão recém-surgida o objeto do prazo prescricional que se inaugura para o seu titular. Isso posto, pode-se afi rmar que, se a pres-crição tem por objeto a pretensão, os prazos prescricionais apenas poderão in-cidir sobre obrigações que contemplem uma prestação a ser realizada. Tanto é assim que os prazos constantes do art. 206 tem por objeto prestações, as quais disponibilizam ao titular do direito a possibilidade de exercer a respectiva pretensão em juízo.

No caso das pretensões derivadas da violação de um direito cujo exercício envolvia uma prestação, as mesmas serão exigidas em juízo através de ações de natureza condenatória. Isso porque a decisão judicial condenará o sujeito passivo a adimplir a prestação frustrada.

Ao ter o seu direito subjetivo violado, a pretensão contra o agente da vio-lação poderá ser exercida no prazo previsto em lei. Caso a pretensão não seja exercida, o art. 189 pontifi ca que a mesma restaria extinta.

Contudo, deve-se utilizar a palavra “extinta” com certa parcimônia. Isso porque, ao fi m e ao cabo, a prescrição não extingue a pretensão: ela apenas concede ao devedor uma defesa para obstar, caso queira, a pretensão da qual se vale o credor após superado o lapso prescricional.222

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FGV DIREITO RIO 225

223 José Carlos Barbosa Moreira, “Notas

sobre pretensão e prescrição no sistema

do novo Código Civil brasileiro”, RTDC, n.

11, 2002, pp. 104/105.

224 Orlando Gomes, Introdução ao Direito

Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1996, 12ª

ed.; p. 507.

Esse entendimento está fundado na concepção de que se a pretensão uma vez prescrita restasse extinta, não haveria como se conceber que o juiz profe-risse decisão favoravelmente ao autor que exercita pretensão já vitimada pelo prazo prescricional, não tendo o réu argüido a respectiva exceção. Não perde o autor o poder de exigir com a prescrição da pretensão. Na verdade, o que se altera com o decurso do prazo prescricional é a possibilidade do réu apre-sentar oposição à pretensão do autor, devendo o juiz, uma vez constatada a procedência da manifestação do réu, extinguir o processo.223

Distinção entre prescrição e decadência

Estabelecido o conceito de prescrição como sendo o decurso do lapso tem-poral que afeta a pretensão, cumpre mencionar as diversas teorias aventadas pela doutrina para distinguir a prescrição do instituto da decadência.

O debate sobre a distinção entre os dois institutos tomou grandes pro-porções por conta de um tratamento irregular do assunto no CC1916, que apenas mencionou o termo “prescrição” em suas normas, cabendo à doutrina e à jurisprudência distinguir dentre o regramento do Código o que seria apli-cável ao prazo prescricional e o que seria relativo à decadência.

Diversas teorias foram assim criadas para que se pudesse conferir ao CC1916 a mais ampla efi cácia, de modo a erigir uma dogmática do instituto da prescrição que disponibilizasse ao aplicador do Direito um tratamento adequado às relações jurídicas pertinentes.

Dessa forma, buscou a doutrina distinguir os dois institutos com base na origem do direito. Segundo esse entendimento, quando a ação e o direito partilham da mesma origem, trata-se de prazo decadencial, ao passo que se o direito é preexistente à ação, que somente se apresenta quando da violação do direito, trata-se de prazo prescricional.

Assim, a ação da minoria vencida para promover a impugnação de alte-rações do estatuto de uma fundação deverá ser movida dentro de um prazo de natureza decadencial pois a respectiva ação surge conjuntamente com o direito. Por outro lado, a uma ação de responsabilidade civil por inexecução contratual corresponderá um prazo prescricional, surgindo o direito de ação contra a parte que infringir dispositivo do contrato apenas do momento des-sa violação.

Essa teoria encontrou críticas no fato de não oferecer orientação científi ca para se reconhecer quando coincidem na origem o direito de ação e o direito material.224

Uma das características mais citadas para o esclarecimento da distinção entre os dois institutos é a suscetibilidade a interrupções e suspensões. O entendimento no sentido da não aplicação das regras de interrupção e sus-

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225 Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.

I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.

329.

226 Agnelo Amorim Filho, “Critério

científi co para distinguir a prescrição

da decadência e para identifi car ações

imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,

n. 744, 1997, p. 738.

pensão aos prazos decadenciais é bastante usual. Conforme ressalta Silvio Rodrigues:

“[f ]ácil estabelecer a diferença entre prescrição e decadência quanto aos efeitos, pois, enquanto a prescrição é suscetível de ser interrompida e não corre contra deter-minadas pessoas, os prazos de decadência fl uem inexoravelmente contra quem quer que seja, não se suspendendo nem admitindo interrupção”.225

Todavia, por força do art. 207, deve-se atentar para o fato de que a nova disciplina instaurada pelo CC para o instituto da decadência estabelece ex-ceções à regra, não devendo o aplicador direito mais arrolar categoricamente essa particularidade como característica distintiva entre os dois institutos.

No que tange à suscetibilidade a interrupções e suspensões, a distinção entre prescrição e decadência deve agora ser afi rmada da seguinte forma: os prazos prescricionais podem ser interrompidos ou suspensos, ao passo que, os prazos decadenciais fl uem de modo contínuo, salvo disposição legal em contrário.

Entende-se, por fi m, que a distinção entre os dois institutos se mostra mais evidente através da teoria exposta por Agnelo Amorim Filho, que busca distinguir prescrição e decadência com base no cotejo entre as ações conde-natórias e as ações constitutivas.

A prescrição, assim, diz respeito à pretensão de natureza condenatória, bem como à sua respectiva execução, que surge para o titular de um direito quan-do da sua violação (art. 189). A pretensão, surgindo da violação do direito, deverá ser exercitada em um determinado prazo, sob pena de se concretizar a sua prescrição, que poderá ser oposta pelo sujeito passivo da relação jurídica.

São assim prazos prescricionais, por exemplo, os relativos a ações conde-natórias de indenização, de perdas e danos (materiais e morais), ou ainda condenatórias de obrigação de fazer ou de não fazer.

Já a decadência refere-se a um direito potestativo, isto é, um direito cujo exercício se dá pela própria conduta de seu titular, restando ao sujeito passivo apenas sujeitar-se ao mesmo. Aos direitos potestativos correspondem ações de natureza constitutiva, que não sendo manejadas em tempo hábil, causam a extinção do próprio direito.226

Fundamento da prescriçãoAo se tomar a prescrição sob um prisma estritamente individualista, po-

der-se-ia opor algumas considerações de ordem ética para a consagração do instituto na medida em que o titular de um direito, com o esgotamento do prazo prescricional, fi cará impossibilitado de fazer valer a sua pretensão por conta de exceção apresentada pelo devedor.

Analisando-se o instituto apenas pelos olhos do credor, a prescrição é gera-dora de injustiças, pois a pretensão que ontem poderia ser exercida, hoje está sujeita a ser legalmente obstada por quem justamente provocou a sua violação.

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227 Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.

I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.

327.

228 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Es-

tados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Ja-

neiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 459.

229 San Tiago Dantas, Programa de Di-

reito Civil – Teoria Geral, Rio de Janeiro,

Forense, 2001, 3ª ed.; p. 343.

Todavia, a aceitação universal do instituto da prescrição demonstra que os seus fundamentos estão atrelados a outra perspectiva, que transcende as análises puramente individualistas, pautadas nos interesses do pólo ativo de uma relação jurídica, para encontrar justifi cação no interesse social.

A estabilidade das relações sociais e a segurança jurídica compõem portan-to o fundamento da prescrição, uma vez que o instituto visa a impedir que o exercício de uma pretensão fi que pendente de forma indefi nida. Estabelece-se um lapso temporal para que a pretensão seja exercida. Transcorrido esse prazo sem qualquer diligência por parte do seu titular, o próprio ordenamento jurí-dico que tutela a pretensão concede ao devedor a possibilidade de obstruir o seu exercício em nome da estabilidade das relações sociais.

Conforme expõe Silvio Rodrigues, o fundamento do instituto reside “no anseio da sociedade em não permitir que demandas fi quem indefi nidamente em aberto; no interesse social de estabelecer um clima de segurança e harmo-nia, pondo termo a situações litigiosas e evitando que, passados anos e anos, venham a ser propostas ações reclamando direitos cuja prova de constituição se perdeu no tempo.”227

Há também, de certa forma, uma punição ao titular de uma pretensão que se quedou inerte, não lhe dando efetividade. Assim, a prescrição é o instituto jurídico que melhor ilustra diversos brocardos que explicitam a idéia contida no princípio geral do Direito de reprovação à conduta negligente, como iura scripta vigilantibus (as leis foram escritas para os que não são negligentes) e dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre os negligentes).

Reconhecendo o confronto inevitável entre o interesse individual do titu-lar de uma pretensão em estender o lapso temporal dentro do qual a mesma possa ser exercitada para todo o sempre e o interesse social em resolver as situações confl ituosas, aponta Clovis Bevilaqua a única solução possível: “[o] interesse do titular do direito, que ele foi o primeiro a desprezar, não pode prevalecer contra o interesse mais forte da paz social.”228

Vinculando a prescrição à necessidade de segurança nas relações sociais, e apontando também para o atendimento de um imperativo de justiça, afi rma San Tiago Dantas:

“Como se passou muito tempo sem se modifi car o estado das coisas, não é justo que continuemos a expor as pessoas à insegurança que o nosso direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. Então, a prescrição vem e diz: daqui em diante o inseguro é seguro, quem podia reclamar não o pode mais. De modo que, vêem os senhores, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: distribuir a justiça — dar a cada um o que é seu — e estabelecer a segurança nas relações sociais — fazer com que o homem possa saber com o quê conta e com o quê não conta.”229 (Programa, p. 343)

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230 Antônio Luís Câmara Leal, Da Pres-

crição e da Decadência – Teoria Geral

do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense,

1959, 2ª ed.; p. 63.

Por haver um interesse público no sentido de que as relações jurídicas em que interesses são contrapostos não perdurem indefi nidamente, a regra da prescrição assume caráter de ordem pública, não podendo assim ser der-rogadas pela mera vontade das partes. Esse entendimento está plasmado em diversas normas que regulam a matéria, sendo especialmente relevante para a discussão sobre a renúncia à prescrição e a alteração dos prazos prescricionais pelos particulares.

Requisitos da prescrição

Para que exista a prescrição é necessária a reunião de três requisitos: (i) a existência de uma pretensão a ser exercida; (ii) a inércia continuada do seu titular pelo período fi xado em lei; e (iii) a ausência de causas que impeçam o transcurso do lapso temporal.

O primeiro requisito refere-se ao objeto da prescrição, ou seja, o que será afetado quando de sua concretização. O segundo requisito demanda a exis-tência de um lapso temporal para que a pretensão seja exercida e, adicional-mente, que o titular da pretensão não a exercite dentro do respectivo prazo.

Deve-se atentar ainda para que não existam determinadas circunstâncias que podem fazer com que o cômputo do lapso prescricional seja suspenso, interrompido, ou mesmo nem se inicie contra algumas pessoas por expressa previsão legal. Dessa forma, pode-se arrolar como o terceiro requisito a ine-xistência de tais circunstâncias para o estabelecimento da prescrição.

Segundo decorre das considerações expendidas no item 3 acima, a reunião dos três requisitos faz nascer a prescrição, mas não causa de imediato a extin-ção da pretensão, uma vez que essa apenas será aniquilada com a oposição da prescrição pelo devedor. Ou seja, a soma dos três requisitos apenas confere ao devedor a possibilidade de se opor à pretensão de seu credor, tendo a sua prescrição por argumento de defesa.

A renúncia da prescrição

A renúncia é um ato unilateral, que independe do consentimento de ter-ceiro, através do qual se processa a extinção de um direito pelo particular. Mais especifi camente, conforme o ensinamento de Câmara Leal, a renúncia da prescrição é a desistência expressa, ou tácita, do direito de invocá-la, feita por quem dela se benefi cia.230

A prescrição apenas estará sujeita à renúncia após a consumação do prazo para o exercício da pretensão. Por ser matéria de ordem pública, é vedado às partes estipular a sua renúncia antes mesmo do seu implemento.

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231 TRF-5ª Reg., Emb.Infr. em Ap.Cív.

250.581, julg. 24.04.92

232 Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.

I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.

334.

233 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Es-

tados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Ja-

neiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 462.

Caso assim não o fosse, o instituto da prescrição estaria gravemente com-prometido, uma vez que os credores passariam a exigir a renúncia do prazo prescricional no momento em que o devedor contraísse qualquer obrigação. A renúncia à prescrição se tornaria uma verdadeira cláusula padrão, integran-te de toda espécie de contratos.

A renúncia à prescrição já consumada se justifi ca porque os benefícios dela decorrentes já foram incorporados ao patrimônio do devedor, que agora pode dispor dessa condição. Assim, percebe-se que “para a ocorrência da renúncia exige-se que o intervalo prescricional tenha se consumado por inteiro.”231

A renúncia da prescrição encontra-se prevista no Código Civil, no art. 191, da seguinte forma:

Art. 191 — “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.”

A renúncia poderá ser realizada de forma expressa ou tácita. Não existe nenhuma forma requerida por lei para que a renúncia da prescrição seja ex-teriorizada, e sendo assim, a renúncia expressa poderá ser feita por qualquer forma admitida em Direito.

Quanto à renúncia tácita, essa poderá ser aferida a partir do comporta-mento daquele que seria pela prescrição benefi ciado, dando sinais de que, apesar de esgotado o prazo para o exercício do direito, continua vinculado à pretensão alheia. Diversos são os atos que denotam a renúncia tácita à pres-crição, como o pagamento efetuado após a sua consumação, o pedido de prorrogação de prazo e a oferta de garantia para que se efetue posteriormente o pagamento do que é devido.

Deve-se acentuar, todavia, que a renúncia tácita dependerá sempre de um comportamento ostensivo do sujeito no sentido de demonstrar, ainda que não o declare, que do benefício da prescrição o mesmo se despojou. Haven-do dúvida sobre a intenção do ato praticado, não se deve admitir a renúncia tácita por não ser ela a regra, mas a exceção.232

Cabe mencionar ainda que o legislador manteve a salvaguarda de terceiros perante os efeitos da renúncia à prescrição. Assim sendo, a renúncia feita por devedor solidário ou co-devedor de obrigação indivisível não pode ser oposta aos demais (art. 204). A prescrição, ressalta Clovis Bevilaqua, já fez romper o vínculo obrigacional, dissolvendo assim a situação de solidariedade entre os devedores ou a vinculação com a prestação relativa à coisa indivisível. Assim, não pode um devedor assumir liberalidades incidentes sobre aquilo que não lhe pertence.233

Especial atenção deve ser concedida ao caso do devedor insolvente, pois ao renunciar à prescrição que lhe favorecia, o prejuízo a terceiros será carac-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 230

234 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Es-

tados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Ja-

neiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 485.

terizado como fraude contra credores. Isso ocorre, pois uma vez consolidada a prescrição, o patrimônio do devedor obteve um acréscimo, na medida em que poderá ele opor a prescrição a qualquer reclamação feita pelo credor, restando assim exonerado dessa obrigação.

A renúncia em tais circunstâncias se mostra mais grave, na medida em que os credores do devedor insolvente têm com ela a redução da possibilidade de verem seus créditos satisfeitos. Nessa hipótese, poderão os credores promover a competente ação pauliana para anular a renúncia (art. 158 e ss.).

Cumpre destacar que, além de poderem se opor à renúncia à prescrição já efetuada pelo devedor insolvente, os seus credores poderão ainda alegar em juízo a existência de prescrição que o benefi cie (art. 193).

Alteração dos prazos prescricionaisEm sendo a prescrição um instituto que refl ete diretamente um dos mais

signifi cativos interesses da ordem pública, ou seja, o apaziguamento das re-lações sociais, o art. 192 encerra os debates doutrinários que tiveram sede durante a vigência do CC1916: não é permitido aos particulares alterarem os prazos de prescrição previstos em lei.

Quanto à possibilidade de se aumentar os prazos prescricionais sempre houve consenso na doutrina e jurisprudência no sentido de sua impossibili-dade. Contudo, no que tange à sua redução, as opiniões foram divergentes.

A favor da possibilidade de redução do prazo prescricional, argumenta Clovis Bevilaqua que o fundamento para se garantir essa alternativa às partes residiria no próprio interesse social, não ofendendo assim os imperativos de ordem pública. O Direito, dessa forma, não deseja que o prazo de prescrição se alongue de forma indefi nida, portanto, encurtar o prazo não seria uma forma de inutilizá-lo, como ocorre com a renúncia, mas sim de fortalecê-lo. Arremata então o autor do CC1916 ao afi rmar que “a lei apenas diz que a prescrição não se renuncia antes de consumada (art. 161). Não diz que os seus prazos se não encurtam.”234

O entendimento pela alternativa de redução dos prazos não prevaleceu, es-tando a celeuma doutrinária encerrada, pois estabelece o CC em vigor a im-possibilidade das partes alterarem os prazos prescricionais. Ainda que não esteja expresso no presente artigo, resta evidente que se as partes não podem alterar o prazo prescricional, ele não poderá ser nem aumentado, nem reduzido.

Imprescritibilidade e autonomia da vontade

Os imperativos da ordem pública também se fazem sentir na proibi-ção de que os particulares venham a acordar que determinada pretensão será imprescritível. Da mesma forma que a alteração para aumentar ou reduzir o prazo prescricional é vedada, a declaração de imprescritibili-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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235 Agnelo Amorim Filho, “Critério

científi co para distinguir a prescrição

da decadência e para identifi car ações

imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,

n. 744, 1997, pp. 747.

236 Gustavo Tepedino, Temas de Direito

Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, 2ª

ed; p. 34.

237 Humberto Theodoro Júnior. Comen-

tários ao Novo Código Civil, vol. III, tomo

II, Sálvio de Figueiredo Teixeira (org.),

Forense, Rio de Janeiro, 2003; p. 167.

238 RSTJ 85/85 e STJ, REsp. 14.449, DJ

12.08.1996, p. 27463.

239 STJ, REsp. 74.428, DJ 18.08.97, p.

37813.

dade também se encontra excluída da esfera de autonomia das partes contratantes.

A imprescritibilidade decorre da própria lei ou da natureza de um direito. Ao largo do tratamento concedido à prescrição e à decadência, identifi ca Agnelo Amorim a existência de ações imprescritíveis, que seriam: (i) todas as ações meramente declaratórias; e (ii) algumas ações constitutivas, as quais são excluídas do regramento da decadência por não lhes fi xar a lei qualquer prazo para o seu exercício. No que tange às ações condenatórias, relativas ao conceito de prescrição, como já visto, não existem ações imprescritíveis,235 pois quando a lei não lhes fi xar um prazo específi co, incidirá o prazo genéri-co, previsto no Código em vigor no art. 205.

Sobre a imprescritibilidade de pretensões que se relacionam com a na-tureza de determinados direitos, vale lembrar que os chamados direitos da personalidade ilustram essa hipótese, estando contemplados nos arts. 11 e ss. do CC. Considerando que o titular dos direitos da personalidade não pode dispor livremente dos mesmos, abandonando ou renunciando às pretensões que dos mesmos decorrem, é fácil perceber que tais pretensões não se en-quadram ao instituto da prescrição. Conforme ressalta Gustavo Tepedino, a imprescritibilidade dos direitos da personalidade “impede que a lesão a um direito da personalidade, com o passar do tempo, pudesse convalescer, com o perecimento da pretensão ressarcitória ou reparadora”.236

Há quem entenda, todavia, que as pretensões ressarcitórias derivadas de ofensa aos direitos da personalidade poderiam ser objeto de prescrição. Nesse sentido, ressalta Humberto Th eodoro Júnior que embora o direito à honra seja inalienável e imprescritível, a pretensão de exigir dano moral por lesão à honra está sujeita aos efeitos da prescrição.237

Quando se alega a prescrição

O artigo 193 do Código Civil afi rma que “a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”.

A prescrição pode ser alegada perante o juiz monocrático, em 1ª instância, ou posteriormente em segundo grau de jurisdição. Não ocorre a preclusão se a parte não alegar a prescrição logo na contestação, podendo fazê-lo durante todo o processo de conhecimento, inclusive nas razões fi nais, orais ou escritas.238

Na 2ª instância a parte poderá suscitar a prescrição na apelação ou nas contra-razões. Já em sede de embargos de declaração existe controvérsia, uma vez que o STJ já entendeu que somente será possível suscitar a questão se já tivesse sido ventilada anteriormente e não apreciada pela decisão embarga-da.239 Contudo, o mesmo tribunal, em acórdão mais recente, já decidiu que “[a] prescrição extintiva pode ser alegada em qualquer fase do processo, nas

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240 STJ, REsp 157840/SP, DJ 07.08.00,

p. 109.

instâncias ordinárias, mesmo que não tenha sido deduzida na fase própria de defesa ou na inicial dos embargos à execução.”240

Cumpre destacar que não se admite a alegação de prescrição, pela primeira vez, em sede de recurso especial e extraordinário, uma vez que ao STF e STJ cabem apenas reexaminar questão já decida pelos tribunais, quando violar norma constitucional e lei federal. A exigência de prequestionamento da ma-téria é óbice intransponível para o cabimento de recurso com esse objetivo. Sobre a questão, vide STF, Súmulas 282 (1963) e 356 (1963).

Reconhecimento da prescrição de ofício

Não é dado ao juiz conhecer da prescrição de ofício. A prescrição, ainda que refl ita imperativos de ordem pública, visa também ao atendimento ime-diato de um interesse do sujeito passivo da relação jurídica. Assim sendo, não é permitido ao juiz, salvo se para favorecer o absolutamente incapaz, declarar de ofício a ocorrência da prescrição. Essa é a redação do art. 194:

Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz.

Sobre o absolutamente incapaz, o presente artigo estabelece uma exceção à regra geral que veda o conhecimento ex offi cio da matéria prescricional. A exceção está fundada na premissa de que, ainda que a prescrição deva sempre ser alegada pela parte, o absolutamente incapaz não possui discernimento para os atos da vida civil, não havendo assim possibilidade do mesmo vir a cumprir a exigência da regra geral.

Adicionalmente, a proteção do absolutamente incapaz no presente artigo mostra-se em sintonia com a progressiva relevância que adquire a tutela da pessoa humana no Direito Civil, alterando-se as normas já consolidadas pela dogmática em consonância com a percepção de que a pessoa deverá sempre ser protegida da forma mais ampla nas situações apresentadas pela dinâmica das relações jurídicas.

Não há como se conceber que o absolutamente incapaz restasse incluído na norma que demanda a motivação da parte para o reconhecimento da prescrição pelo juiz. Essa conclusão apenas contribuiria para o desamparo do absolutamente incapaz, em tudo discrepante da proteção da pessoa humana concretizada pelo art. 1º, III, da CF.

Ressalte-se que a prescrição que favorece o absolutamente incapaz po-derá ser declarada de ofício pelo juiz, ou requerida pelo Ministério Pú-blico, por força do disposto no art. 127 da CF. Adicionalmente, cumpre lembrar que o prazo prescricional nem mesmo se inicia contra o incapaz

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(art. 198, I, do CC), pelo que será sempre dado ao juiz reconhecer tal situação de ofício.

Ao estabelecer de forma expressa que o absolutamente incapaz é a única exceção ao impedimento de conhecer o juiz da prescrição de ofício, encerra-se o debate sobre a possibilidade da Fazenda Pública se benefi ciar também dessa possibilidade.

O CC apenas se refere aos absolutamente incapazes e não existe motivo para equiparar a Fazenda Pública aos primeiros, seja por uma regra de bom-senso e respeito para com os profi ssionais que defendem o Poder Público, seja pela total improcedência jurídica do argumento.

Relativamente incapazes e pessoas jurídicas

Já sobre os relativamente incapazes, o Código Civil dedica proteção dife-rente daquela conferida aos absolutamente incapazes. Nesse sentido, a posi-ção adotada pelo Código é a de resguardar ao relativamente incapaz o direito de ação regressiva contra seus assistentes que derem causa à prescrição ou não a alegarem oportunamente (art. 195). O mesmo tratamento é conferido no mencionado artigo às pessoas jurídicas em eventuais ações contra os seus representantes legais por dar causa ou deixar de alegar o decurso do prazo prescricional.

É importante ressaltar que o artigo não cuida diretamente da prescrição, mas sim do direito de ação, decorrente da não alegação da prescrição por par-te de quem, ao assistir ou representar, deixa de suscitá-la, ou por dar causa à sua concretização quando desfavorável ao assistido ou representado.

O CC1916, em seu art. 164, previu a hipótese de ação regressiva con-tra os assistentes e representantes legais quando esses deixassem de alegar a prescrição. Apesar das aparentes semelhanças, o presente art. 195 apresenta distinções fundamentais, que impedem a associação direta com o dispositivo citado do código anterior.

Assim, enquanto o preceito em vigor se aplica aos relativamente incapazes, o dispositivo pretérito tratava dos absolutamente incapazes (“pessoas que a lei priva de administrar os próprios bens”). Adicionalmente, a referência à “ação regressiva” foi suprimida, evitando-se uma limitação do alcance pretendido pelo artigo.

A ação constante do art. 164 do CC1916 previa como seu fundamento a atuação dos representantes legais que “por dolo, ou negligência derem causa à prescrição”. Na redação do presente art. 195 a referência ao dolo e à negli-gência dos representantes foi retirada.

Dessa forma, poder-se-ia entender que a responsabilidade dos assistentes ou representantes é alcançada pelo disposto no art. 927, parágrafo único, o

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 234

qual estabelece a responsabilidade sem culpa para os casos expressamente previstos em lei ou quando da própria atividade desenvolvida pelo causador do dano, pode-se depreender que advém risco para os direitos de terceiros.

A aplicação do dispositivo que contempla a responsabilidade sem culpa para as fi guras do art. 195 deve levar em conta as particularidades do caso concreto, não devendo se estender de modo absoluto a responsabilidade do art. 927, parágrafo único, uma vez que, se o representante legal de pessoa jurídica, na maior parte das vezes, possui experiência na atividade que de-sempenha, podendo assim ser responsabilizado como um profi ssional que se encontra exposto aos riscos da atividade que desenvolve, o mesmo não ocorre com o assistente do relativamente incapaz.

Com efeito, o assistente do relativamente incapaz poderá, em grande parte das vezes, não possuir conhecimentos jurídicos, e nem experiência na vida prática para auxiliar na gestão de interesses de terceiros. O pai ou a mãe de um menor, relativamente incapaz, p. ex., que deixar de alegar a prescrição benéfi ca ao assistido não poderá ser submetido à responsabilidade sem culpa, tal qual o representante legal de uma pessoa jurídica, do qual normalmente se requer alguma expertise mínima para a vida negocial.

Alguns aspectos peculiares da decadência

O CC não apresenta uma conceituação do instituto da decadência, pre-vendo apenas normas gerais sobre o mesmo, como a contagem do prazo decadencial, a possibilidade de renúncia, o conhecimento ex-offi cio por parte do juiz, o momento em que pode ser alegada e etc.

A previsão de normas expressas sobre o instituto inova com relação ao re-gramento constante do CC1916, que apenas fazia referência ao termo “pres-crição”, restando à doutrina e à jurisprudência promover uma distinção entre prescrição e decadência, bem como assinalar qual a real natureza de cada prazo previsto pelo CC1916.

Os prazos decadenciais no CC em vigor, conforme já salientado, encon-tram-se espalhados pelo texto do Código, acompanhando o direito que lhe é pertinente nos Livros da Parte Geral e Especial.

Conceito de decadência

Para que se compreenda o conceito de decadência, faz-se necessário ter em mente dois outros conceitos: o de direito potestativo e o de ação constitutiva. Isso porque a defi nição do instituto da decadência está vinculada à extinção de um direito potestativo, que deveria ter sido concretizado, normalmente atra-vés de uma ação de natureza constitutiva, no decorrer de determinado prazo.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 235

241 Francisco Amaral. Direito Civil – In-

trodução, Rio de Janeiro, Renovar, 2002,

4ª ed; p. 561.

242 Agnelo Amorim Filho, “Critério

científi co para distinguir a prescrição

da decadência e para identifi car ações

imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,

n. 744, 1997, pp. 728.

243 Agnelo Amorim Filho, “Critério

científi co para distinguir a prescrição

da decadência e para identifi car ações

imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,

n. 744, 1997, pp. 733.

Primeiramente, cumpre abordar a questão do direito potestativo e escla-recer a sua relação com a decadência. A vinculação entre os dois conceitos é realizada pela doutrina ao afi rmar que a “decadência é a perda do direito potestativo pela inércia do seu titular no período determinado em lei”.241

Valendo-se da classifi cação dos direitos em “direitos a uma prestação” e “direitos potestativos”, proposta por Chiovenda, Agnelo Amorim Filho, ex-plicita que a primeira categoria de direitos, uma vez violados, dará surgimento a uma ação condenatória, cujo prazo para o seu exercício será prescricional. Já os direitos potestativos, poderão ser exercidos em juízo através de ação cons-titutiva, sendo o seu prazo de natureza decadencial.242 Cumpre destacar que o manejo de ação constitutiva não é necessária para a concretização de todo e qualquer direito potestativo, pois tais direitos podem surgir por convenção entre as partes, como ocorre, por exemplo, na avença entre particulares sobre a prorrogação de contrato mediante notifi cação prévia de uma parte a outra.

Os direitos potestativos, distintamente do que ocorre com os “direitos a uma prestação” (direitos subjetivos propriamente ditos), não dependem de uma ação ou omissão alheia, pois os mesmos conferem ao seu titular o poder de intervir na esfera jurídica de outrem, sem que os mesmos possam impor a sua vontade. Nos direitos potestativos o sujeito passivo encontra-se em situa-ção de sujeição perante o exercício do direito por parte de seu titular.

Dessa forma, compreende-se que os direitos potestativos são insuscetíveis de violação, não correspondendo aos mesmos uma prestação, o que vincula o seu exercício, quando necessário o pronunciamento judicial, às ações de natureza constitutiva, uma vez que esse tipo de ação: (i) não pressupõe a existência de violação a um direito, como ocorre com as ações de natureza condenatória, próprias da prescrição; (ii) por meio delas não se exige uma prestação do réu; e, conseqüentemente (iii) não visam à satisfação de uma pretensão na medida em que a mesma é defi nida como “o poder de exigir de outrem uma prestação”.243

Prescindindo os direitos potestativos da noção de pretensão, por não esta-rem sujeitos à prestação a ser violada pelo sujeito passivo da relação jurídica, percebe-se que os tais direitos deverão ser exercidos em juízo através de ações constitutivas, e não condenatórias.

E as ações de natureza constitutiva, por seu turno, remetem aos prazos decadenciais para o seu exercício, já que a decadência não visa atuar sobre a pretensão, mas sobre o próprio direito, que resta fulminado com o transcurso do tempo sem que se mova a competente ação constitutiva. Conclui-se assim que o objeto da decadência será o próprio direito, caso o mesmo não venha a ser exercido dentro do prazo determinado. Adicionalmente, quando o seu exercício demandar que se recorra ao Poder Judiciário, a ação correspondente será de natureza constitutiva.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 236

244 Antônio Luís Câmara Leal, Da Pres-

crição e da Decadência – Teoria Geral

do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense,

1959, 2ª ed.; p. 113.

A concepção de que a decadência atua sobre o direito não é recente, po-dendo-se encontrar na doutrina clássica de Câmara Leal o entendimento no sentido de que a decadência é “o perecimento do direito pelo decurso do prazo fi xado para o seu exercício, sem que seu titular o tivesse exercido”.244

O direito, por mandamento legal ou por acordo entre as partes contratan-tes, já aparece no universo jurídico subordinado a um lapso temporal para o seu exercício, que em não se realizando, termina por extingui-lo. Apenas são concedidas duas alternativas ao titular de um direito ao qual esteja atrelado um prazo decadencial: ou exerce o direito dentro do lapso temporal concedi-do ou o perde para todo o sempre.

Impedimentos, interrupções e suspensões

Os prazos decadenciais não estão sujeitos a impedimentos, interrupção ou suspensão. O entendimento no sentido da não aplicação das regras de impe-dimento, interrupção ou suspensão aos prazos decadenciais é bastante usual.

A característica de fl uir contra todos e de modo contínuo, sem a possibi-lidade de impedimentos, interrupções ou suspensões foi uma das principais características utilizadas pela doutrina para distinguir os prazos prescricionais dos decadenciais na vigência do CC1916.

Todavia, deve-se atentar para o fato de que a nova disciplina instaurada pelo CC para o instituto da decadência estabelece exceções à regra, não de-vendo o aplicador do direito mais arrolar essa característica de forma abso-luta como qualidade distintiva entre prescrição e decadência. Diversamente do que ocorre com a prescrição, os prazos decadenciais não estão sujeitos a impedimentos, interrupção ou suspensão, mas essa regra não é absoluta pois os prazos decadenciais poderão ser impedidos, interrompidos ou suspensos por força de disposição legal específi ca nesse sentido, como ocorre com o art. 208, que impede o cômputo do prazo decadencial contra os absoluta-mente incapazes.

Vale ainda ressaltar duas outras características própria dos prazos deca-denciais: (i) quando forem os mesmos estabelecidos por lei, não poderão as partes contratantes promover o seu aumento ou redução, pois se tanto fosse permitido, frustrados seriam os interesses de ordem pública que fundamen-tam o instituto; e (ii) aplicam-se aos mesmos o disposto nos arts. 195 e 198, I, do Código Civil, ou seja, são também aplicáveis aos prazos prescricionais as regras sobre a ação da qual dispõem os relativamente incapazes e as pessoas jurídicas contra os seus assistentes e representantes legais pela ocorrência da prescrição (art. 195), sendo ainda afi rmado que não correrá prazo decaden-cial contra os absolutamente incapazes (art. 198, I).

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 237

245 Maria Helena Diniz, Curso de Direito

Civil Brasileiro, vol. I, São Paulo, Saraiva,

2002, 18ª ed; p. 305.

Renúncia à decadência

O artigo 209 do Código Civil determina que “[é] nula a renúncia à de-cadência fi xada em lei”. Essa redação deixa claro que existem dois tipos de decadência: a prevista em lei e a convencionada pelos particulares. No que se refere à decadência legal, os imperativos da ordem pública fundamentam a regra do art. 209, impondo que os prazos legalmente previstos não sejam passíveis de renúncia pelos particulares.

A renúncia ao prazo decadencial legal será reputada ato nulo, por absoluta incompetência das partes para a prática de tal ato. Assim sendo, a renúncia ao prazo decadencial previsto em lei jamais produz qualquer efeito no mundo jurídico, independentemente da consumação ou não da decadência.

A contrario sensu, os prazos decadenciais convencionais poderão ser objeto de renúncia pelos particulares, não se cogitando, portanto, de sua nulidade pelo simples existência desse ato. Outras causas poderão levar à nulidade da renúncia ao prazo decadencial convencionado, mas não a elaboração do ato em si.

Os prazos decadenciais estabelecidos por convenção operam na seara dos direitos disponíveis, admitindo-se que, se a autonomia da vontade pôde criar determinado prazo, será igualmente possível promover a renúncia ao mesmo.

Cumpre adicionar que a renúncia à decadência convencional também deve-rá ocorrer após a sua consumação245. Essa medida busca evitar que a decadência convencional seja esvaziada a ponto de se tornar usual a imposição de cláusula renunciando aos seus efeitos já quando da estipulação do prazo decadencial.

Questões processuais

Novamente separando os efeitos da decadência legalmente prevista daque-la convencionada pelas partes, o Código Civil, no seu artigo 210, estabelece que deverá o juiz conhecer de ofício a decadência legal quando a mesma inci-dir sobre processo de sua competência. Trata-se de um dever imposto por lei, e não uma mera faculdade, que poderia ser exercida ao talante do julgador.

Todavia, não poderá a decadência ser alegada pela primeira vez em sede de recurso extraordinário e recurso especial, dado que a CF exige, por força dos arts. 102, III, e 105, III, respectivamente, que para a admissão dos dois recursos mencionados, a matéria objeto de impugnação tenha sido decidida na instância inferior.

Sobre a decadência convencional, explicita o artigo 211 que “[s]e a deca-dência for convencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação.”

Aqui, ao inverso do que ocorre com a decadência legal, o prazo decaden-cial contratualmente estipulado não será objeto de conhecimento de ofício

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 238

pelo julgador, na medida em que sobre tais prazos não incidem diretamente os imperativos de ordem pública que fundamentam os prazos legais.

A oposição da decadência contratual poderá ser realizada em qualquer grau ordinário de jurisdição, sendo válido para a mesma o entendimento exposto acima sobre a impossibilidade de sua alegação em sede de recurso extraordinário e especial.

3. QUESTÕES DE CONCURSO

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) — prova azul34. Sobre a prescrição, é correto afi rmar-se que:

(a) o juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz;

(b) aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestada-mente durante três anos, independente de título ou boa-fé, adqui-rir-lhe-á a propriedade;

(c) a interrupção da prescrição só pode ocorrer duas vezes;(d) a exceção prescreve no dobro do prazo que a pretensão;(e) a renúncia da prescrição jamais pode ser tácita.

126º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase22. São imprescritíveis as pretensões que versam sobre

(a) os bens públicos, o estado da pessoa e a cobrança de prestações ali-mentares vencidas;

(b) a ação para anular inscrição do nome empresarial feita com violação de lei ou do contrato;

(c) o estado da pessoa, os direitos da personalidade e a cobrança de prestações vencidas de rendas vitalícias;

(d) o direito a alimentos e a ação de reparação civil em razão de contra-fação.

128º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase22. Sobre a prescrição e a decadência, é INCORRETO afi rmar:

(a) quando houver prazo para o exercício de direito potestativo, o pra-zo será decadencial;

(b) quando consumada, a prescrição extingue a pretensão;(c) a pretensão nasce a partir do momento em que o direito é violado;(d) a prescrição nunca pode ser suscitada de ofício pelo juiz.

Gabarito: 34 (a); 22 (b); 22 (d).

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Ordem dos Advogados do Brasil42º Exame de Ordem Unifi cado — 2010.221. A respeito das diferenças e semelhanças entre prescrição e decadência,

no Código Civil, é correto afirmar que:A. a prescrição acarreta a extinção do direito potestativo, enquanto a

decadência gera a extinção do direito subjetivo.B. os prazos prescricionais podem ser suspensos e interrompidos, en-

quanto os prazos decadenciais legais não se suspendem ou interrom-pem, com exceção da hipótese de titular de direito absolutamente incapaz, contra o qual não corre nem prazoprescricional nem prazo decadencial.

C. não se pode renunciar à decadência legal nem à prescrição, mesmo após consumadas.

D. a prescrição é exceção que deve ser alegada pela parte a quem beneficia, enquanto a decadência pode ser declarada de ofício pelo juiz.

Resposta: B

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 240

246 O presente roteiro de estudo é uma

versão reduzida - e substancialmente

adaptada para os fi ns desse material

didático - do trabalho realizado con-

juntamente com Tatiana Florence Ma-

galhães e constante do livro Código Civil

Interpretado conforme a Constituição da

República, vol. I, organizado por Gusta-

vo Tepedino, Maria Celina Bodin de Mo-

raes e Heloisa Helena Barboza (Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).

AULA 23 — SUSPENSÃO, IMPEDIMENTO E INTERRUPÇÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS

EMENTÁRIO DE TEMAS

Impedimento e suspensão da prescrição — Interrupção da prescrição — Prazo geral de prescrição — Prazos prescricionais e prazos decadenciais

LEITURA OBRIGATÓRIA

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 367/392.

LEITURAS COMPLEMENTARES

Neves, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Ci-vil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Ja-neiro, Renovar, 2002, pp. 417/428; e Pereira, Caio Mário da Silva. Ins-tituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 677/702.

1. ROTEIRO DE AULA246

Os prazos prescricionais podem ser impedidos, suspensos ou interrom-pidos. O regramento dessas hipóteses encontra-se nos arts. 197 a 204 do Código Civil.

Impedimento e suspensão da prescrição

Usualmente, quando se menciona que os prazos prescricionais “não cor-rem” por algum motivo, está-se fazendo referência às causas de impedimento ou suspensão desses prazos. A diferença entre suspensão e impedimento resi-de no fato de que, no impedimento, a causa estabelecida em lei é pré-existen-te ao início da contagem do prazo prescricional, motivo pelo qual impede-se o próprio nascimento da prescrição.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 241

Já na suspensão, o prazo prescricional já iniciado deixa de correr em de-corrência de alguma situação, voltando a correr quando de sua superação, contando-se todo o tempo transcorrido até a sua suspensão.

O artigo 197 do Código Civil traz algumas hipóteses de impedimento e suspensão ao dispor da seguinte forma:

Art. 197. Não corre prescrição:I — entre cônjuges, na constância da sociedade conjugal;II — entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;III — entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela

ou a curatela.

As causas de suspensão ou impedimento de que tratam o artigo 197 estão baseadas em razões de ordem moral, como a confi ança ou a relação familiar existente entre os sujeitos das relações jurídicas.

Especialmente com respeito ao relacionamento dos cônjuges, previsto no artigo 197, I, na constância da sociedade conjugal, deve-se lembrar que esse tratamento também deve ser estendido à união estável, uma vez que a Cons-tituição Federal a reconhece como entidade familiar no art. 226, §3º.

Adicionalmente, prevê o art. 198 que “também não corre a prescrição”:

I — contra os incapazes de que trata o art. 3°;II — contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos

Municípios;III — contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.

Aqui, diferentemente do que ocorre no artigo 197, as causas de impedi-mento ou suspensão da prescrição não de natureza moral, mas sim por conta de uma situação que impede o sujeito da relação jurídica de agir, atuando sobre o decurso do prazo prescricional.

Como já visto, não corre prazo prescricional contra os absolutamente in-capazes. Essa regra independe de estar o absolutamente incapaz representado ou não.

Também não corre a prescrição nas situações estabelecidas no art. 199, quais sejam: (i) pendendo condição suspensiva; (ii) não estando vencido o prazo; e (iii) pendendo ação de evicção. A doutrina critica severamente a in-clusão desse artigo no Código Civil uma vez que, nessas hipóteses, não existe ainda ação para exigir o cumprimento de uma obrigação. Ou seja, ainda não há causa para a contagem do prazo prescricional.

Relacionado ao direito das obrigações, dispõe o artigo 201 sobre a suspen-são do prazo prescricional em obrigações solidárias da seguinte forma:

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 242

Art. 201. Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só

aproveitam os outros se a obrigação for indivisível.

Somente podem invocar a suspensão ou o impedimento da prescrição os sujeitos a quem o legislador se referiu nas hipóteses previstas em lei, não alcan-çando terceiros, nem mesmo os seus credores solidários. Excepciona o artigo, contudo, a hipótese da obrigação ser indivisível, pois nessas circunstâncias não há como fracionar as relações que incidem sobre o objeto da obrigação.

Interrupção da prescrição

O Código Civil arrola uma série de hipóteses nas quais o prazo prescricional será interrompido, ou seja, após superado o motivo que impediu o seu decurso, o prazo será contado novamente de forma integral. O fundamento das causas de interrupção reside no fato de que o credor não se encontrava inerte quanto ao manejo de sua pretensão e, sendo assim, essas causas passam a depender de uma manifestação da parte. Elas envolvem uma atitude deliberada do credor, que demonstra estar alerta e interessado na preservação de seu direito.

Uma das mais destacadas características da interrupção dos prazos pres-cricionais na doutrina e na jurisprudência consiste no debate sobre a sua impossibilidade de ser utilizada por mais de uma vez.

Para alguns autores, o fundamento do instituto, consistente no interesse da so-ciedade em que os direitos não permaneçam muito tempo sem exercício, seria in-compatível com a interrupção ilimitada da prescrição por parte do credor, que ao assim proceder acarretaria, em última análise, a imprescritibilidade da sua pretensão.

O legislador pareceu resolver a questão, optando por estabelecer que a interrupção da prescrição só pode se dar por uma vez, dentre as hipóteses constantes dos incisos de I a VI do artigo 202, assim redigido:

Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

I — por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o inte-ressado a promover no prazo e na forma da lei processual;

II — por protesto, nas condições do inciso antecedente;III — por protesto cambial;IV — pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em con-

curso de credores;V — por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;VI — por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reco-

nhecimento do direito pelo devedor.Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que

a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 243

247 Gustavo Tepedino, Maria Celina Bo-

din de Moraes e Heloisa Helena Barboza

(orgs.). Código Civil Interpretado confor-

me a Constituição da República. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004; p. 379.

248 J. M. de Carvalho Santos, Código

Civil Brasileiro Interpretado, vol. VI, Rio

de Janeiro, Freitas Bastos, 1950, 4ª ed;

p. 444.

Ocorre, porém, que, na prática, esse entendimento pela impossibilidade de se interromper a prescrição por mais de uma vez pode gerar situações de extrema iniqüidade. Veja-se o exemplo constante nos comentários ao Código Civil organizado por Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin e Heloisa He-lena Barboza:

“Tome-se como exemplo o credor de uma letra de câmbio vencida que procede ao protesto, interrompendo, assim, o prazo prescricional, a teor do art. 202, II. Sem sucesso, posteriormente ingressa o credor com a ação de execução do título, a qual prescreve em 3 anos (contra o aceitante), a partir do dia do vencimento (art. 70 do D. 57.663/66). Esse prazo, entretanto, interrompido pelo protesto, voltou a correr integralmente a partir de então, conforme dispõe o parágrafo único do art. 202. Aplicando-se o que estabelece a lei, ter-se-ia que admitir que o prazo em questão não poderia ser interrompido, pela segunda vez, pelo despacho que determinou a citação na ação de execução proposta pelo credor (art. 202, I).”

“Levando-se em consideração que a inércia é requisito essencial do instituto em foco, nada pode ser mais demonstrativo do interesse em receber o crédito — e, por-tando, da ausência do elemento acima referido — do que a propositura da respectiva ação judicial, na qual o titular do direito, sem ter a quem mais recorrer, se socorre do Poder Judiciário para impor ao devedor o adimplemento de sua obrigação.”247

Dessa forma, reconhecer que essa atuação do credor não poderá interrom-per a contagem do prazo prescricional geraria uma situação de grande injusti-ça. Competirá, portanto, aos magistrados, fl exibilizar a norma do artigo 202, pois, conforme ressalta J.M. Carvalho Santos, “a presunção é que a aplicação da lei não conduza ao absurdo, como é de trivial regra de hermenêutica.”248

Prazo geral de prescrição

Os prazos prescricionais sofreram sensível redução no Código Civil de 2002 em relação ao CC1916. Trata-se de medida salutar uma vez que as tecnologias modernas, empregadas nos meios de transporte e comunicação, aproximam as pessoas e facilitam o contato entre elas, não mais se justifi cando o estabele-cimento de prazos tão longos como os fi xados no Código anterior.

Tenha-se em mente que quando o CC1916 foi aprovado fazia apenas dez anos que Santos Dumont havia realizado o primeiro vôo mecânico do mun-do, com o avião 14Bis, e três que Henry Ford havia inaugurado a primeira linha de montagem de automóveis.

O artigo 205 do Código Civil dispõe que a prescrição “ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fi xado prazo menor”. Dessa forma, 10 (dez) anos é o prazo prescricional que valerá para todas as relações jurídicas, quan-

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

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249 Senado Federal. Novo Código Civil.

Impressa Nacional, Brasília, 2002, p. 40.

do a lei não dispuser de forma distinta. Como regra geral, o estabelecimento de um prazo de 10 (dez) anos parece bastante razoável, reduzindo a metade o prazo anteriormente previsto no CC1916, no seu art. 177.

Prazos prescricionais e prazos decadenciais

O Código Civil apresenta um regramento distinto daquele presente no CC1916 no que se refere aos prazos prescricionais e decadenciais. No CC1916, o art. 178 enunciava uma série de prazos, sem qualquer indicação sobre a sua natureza, cabendo ao intérprete distinguir as hipóteses de prescri-ção daquelas relativas à decadência.

Os prazos constantes do presente art. 205 e 206, por seu turno, são todos de natureza prescricional, facilitando em muito a tarefa do intérprete na aplicação das regras correspondentes à natureza desses prazos. Por outro lado, os prazos decadenciais estão previstos de forma esparsa nos livros da Parte Geral e Especial do CC, acompanhando a positivação do direito sobre o qual recai a decadência.

Nesse sentido, vale transcrever trecho da Exposição de Motivos do CC, de autoria de Miguel Reale, na qual se afi rma que:

“Para por cobro a uma situação deveras desconcertante, optou a Comissão por uma fórmula que espanca quaisquer dúvidas. Prazos de prescrição, no sistema do Projeto, passam a ser, apenas e exclusivamente, os taxativamente discriminados na Parte Geral, Título IV, Capítulo I, sendo de decadência todos os demais, estabeleci-dos, em cada caso, isto é, como complemento de cada artigo que rege a matéria, tanto na Parte geral como na Parte Especial.”249

Dessa forma, uma dos mais dramáticos e inglórios debates travados pela doutrina durante a vigência do Código anterior é encerrado com a defi nição clara de quais prazos são prescricionais e quais são de natureza decadencial no Código de 2002.

3. QUESTÕES DE CONCURSO

24º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase42 — À luz das normas legais que regem o instituto da prescrição, dispos-

tas pelo Código Civil vigente, assinale a afi rmativa correta:(a) O protesto cambial não interrompe a prescrição;(b) A prescrição consiste na extinção do direito subjetivo;(c) Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes;(d) A prescrição corre entre os cônjuges na constância da sociedade

conjugal.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 245

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)54. Prevê o artigo 189 do novo Código Civil que “violado o direito, nasce

para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. O Código prevê, de modo expresso, os prazos de prescrição, que fl uem da violação do direito, e disciplina as regras para sua suspensão e sua interrupção. A esse respeito, assinale a única afi rmação que está de acordo com o Código Civil em vigor:

(a) A prescrição só pode ser interrompida duas vezes;(b) A prescrição só pode ser interrompida por quem esteja interessado

na interrupção;(c) A interrupção produzida contra o principal devedor não prejudica

o fi ador;(d) Prescreve em 4 anos a pretensão relativa à tutela, a contar da data da

aprovação das contas;(e) Prescreve em 5 anos a pretensão de restituição de dividendos recebi-

dos de má-fé, a contar da data em que foi deliberada a distribuição.

UnB/CESPE — OAB39º Exame de Ordem 2009.2

QUESTÃO 29Assinale a opção correta respeito da prescrição e da decadência.

A. A prescrição iniciada contra o credor continua a correr contra o sucessor universal absolutamente incapaz.

B. Não corre prescrição enquanto pendente a condição suspensiva em relação ao negócio jurídico.

C. Pode haver renúncia à decadência prevista em lei por aqueleque a aproveita.

D. A pretensão condenatória não exercitada no prazo legal sujeita-se aos efeitos da decadência.

Gabarito: 42 (c); 54 (d); 29 (b)

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 246

CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZADoutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). Bacharel pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2000).Vice-coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas — RJ (Direito Rio). Pesquisador Visitante do Information Society Program, da Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Direito Rio e da PUC-Rio, lecionando matérias relacionadas ao Direito dos Contratos, Responsabilidade Civil, Propriedade Intelectual e Direito da Tecnologia da Informação. Membro da Comissão de Direi-to Autoral da OAB/RJ (desde 2007). Conselheiro eleito do GNSO/ICANN como representante dos usuários não-comerciais da Internet (2008-2009) e Membro eleito do Comitê Executivo do NCUC (non-commercial users constituency), representando os usuários da Internet da América do Sul (2009-2011). Membro eleito do Comitê Executivo da Iniciativa por Princípios e Direitos Fundamentais na Internet, criada no Fórum de Governaça da Internet (IGF) da ONU (2008-2010).

Gostaria de agradecer o trabalho de diversos pesquisadores e professo-res que, desde a primeira vez que essa matéria foi lecionada na Escola, em 2005, contribuíram para o aperfeiçoamento do material. Nesse sen-tido, fi ca aqui registrado o agradecimento cronológico ao Bruno Belsito, Pedro Mendonça Cavalcante, Ligia Fabris, Sergio Branco, Rafael Viola e Rachel Guitton Marques, além dos monitores que contribuíram com a atualização das questões de concurso e casos práticos.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL

FGV DIREITO RIO 247

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Thais Maria L. S. AzevedoCOORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA — PLACEMENT

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO