indenizacao barroso

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 580.252 MATO GROSSO DO SUL VOTO-VISTA : Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS CAUSADOS AO PRESO POR SUPERLOTAÇÃO E CONDIÇÕES DEGRADANTES DE ENCARCERAMENTO. 1. Há responsabilidade civil do Estado pelos danos morais comprovadamente causados aos presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas pela superlotação prisional e pelo encarceramento em circunstâncias desumanas ou degradantes. 2. O descumprimento do dever estatal de garantir condições dignas de encarceramento encontra-se diretamente relacionado a uma deficiência crônica de políticas públicas prisionais adequadas, que atinge boa parte da população carcerária e cuja superação é complexa e custosa. 3. Não é legítima a invocação da cláusula da reserva do possível para negar a uma minoria estigmatizada o direito à indenização por lesões evidentes aos seus direitos fundamentais. O dever de reparação de danos decorre de norma constitucional de aplicabilidade direta e imediata, que independe da execução de políticas públicas ou de qualquer outra providência estatal para sua efetivação. 4. Diante do caráter estrutural e sistêmico das graves disfunções verificadas no sistema prisional brasileiro, a entrega de Em elaboração

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voto do Ministro Barroso sobre detração penal como indenização a presos.

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  • RECURSO EXTRAORDINRIO 580.252 MATO GROSSO DO SUL

    VOTO-VISTA:

    Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS CAUSADOS AO PRESO POR SUPERLOTAO E CONDIES DEGRADANTES DE ENCARCERAMENTO.1. H responsabilidade civil do Estado pelos danos morais comprovadamente causados aos presos em decorrncia de violaes sua dignidade, provocadas pela superlotao prisional e pelo encarceramento em circunstncias desumanas ou degradantes.2. O descumprimento do dever estatal de garantir condies dignas de encarceramento encontra-se diretamente relacionado a uma deficincia crnica de polticas pblicas prisionais adequadas, que atinge boa parte da populao carcerria e cuja superao complexa e custosa.3. No legtima a invocao da clusula da reserva do possvel para negar a uma minoria estigmatizada o direito indenizao por leses evidentes aos seus direitos fundamentais. O dever de reparao de danos decorre de norma constitucional de aplicabilidade direta e imediata, que independe da execuo de polticas pblicas ou de qualquer outra providncia estatal para sua efetivao.4. Diante do carter estrutural e sistmico das graves disfunes verificadas no sistema prisional brasileiro, a entrega de

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    uma indenizao em dinheiro confere uma resposta pouco efetiva aos danos morais suportados pelos detentos, alm de drenar recursos escassos que poderiam ser empregados na melhoria das condies de encarceramento. 5. preciso, assim, adotar um mecanismo de reparao alternativo, que confira primazia ao ressarcimento in natura ou na forma especfica dos danos, por meio da remio de parte do tempo de execuo da pena, em analogia ao art. 126 da Lei de Execuo Penal. A indenizao em pecnia deve ostentar carter subsidirio, sendo cabvel apenas nas hipteses em que o preso j tenha cumprido integralmente a pena ou no seja possvel aplicar-lhe a remio. 6. Provimento do recurso extraordinrio para reconhecer o direito do recorrente a ser indenizado pelos danos morais sofridos, mediante remio de parte do tempo de execuo da pena. 7. Afirmao, em repercusso geral, da seguinte tese: O Estado civilmente responsvel pelos danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos presos em decorrncia de violaes sua dignidade, provocadas pela superlotao prisional e pelo encarceramento em condies desumanas ou degradantes. Em razo da natureza estrutural e sistmica das disfunes verificadas no sistema prisional, a reparao dos danos morais deve ser efetivada preferencialmente por meio no

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    I. INTRODUO

    I.1. CASOS PERANTE O STF REFERENTES S CONDIES DO SISTEMA PENITENCIRIO

    1. Discute-se no presente processo o direito de presos submetidos a condies desumanas ou degradantes de encarceramento obteno de indenizao do Poder Pblico a ttulo de danos morais. Existem outras aes em tramitao nesta Corte cujo tema central o sistema penitencirio brasileiro, suas deficincias e disfunes. Entre elas, possvel destacar trs:

    (i) o RE n 641.320, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes e com repercusso geral reconhecida, que discute a possibilidade de autorizao do cumprimento de pena em regime carcerrio menos gravoso, diante da impossibilidade de o Estado fornecer vagas para o cumprimento no regime estabelecido na condenao penal;

    (ii) o RE n 592.581, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski e com repercusso geral reconhecida, que discute se o Poder Judicirio pode determinar aos governos estaduais que ampliem ou construam novos presdios, de modo a garantir a observncia dos direitos fundamentais dos detentos; e

    (iii) a ADI n 5.170, de relatoria da Ministra Rosa Weber, que, semelhana do presente recurso extraordinrio, discute a

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    responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados aos detentos.

    2. O presente voto cuida, essencialmente, do problema da reparao de danos. Porm, por inevitvel, os argumentos aqui expostos procuram lidar com o sistema carcerrio como um todo, tangenciando as situaes versadas nos outros processos referidos.

    I.2. A NECESSRIA TOMADA DE CONSCINCIA POR PARTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA ACERCA DA QUESTO PENITENCIRIA

    3. A sociedade brasileira tem vivido, ao longo dos ltimos anos, a aflio do aumento progressivo da criminalidade, associada a uma sensao difusa de impunidade. Nada obstante, o pas apresenta uma das maiores populaes carcerrias do mundo, em curva ascendente. As ms condies da maior parte dos presdios do pas trazem consequncias que saltam aos olhos, dentre as quais possvel destacar (i) a realimentao da criminalidade e da violncia, por serem as prises escolas do crime; e (ii) as estatsticas impressionantes da reincidncia, pela incapacidade de o sistema promover a ressocializao dos presos.

    4. Inevitavelmente, uma maior seriedade na aplicao do direito penal e no necessariamente o seu endurecimento exige o aporte de mais recursos para o sistema. preciso deixar isso claro para que a sociedade participe do debate pblico sobre o tema e faa escolhas esclarecidas. Tomem-se dois exemplos. O primeiro: o senso comum considera leniente o sistema em que o preso, como regra, progride de regime aps cumprir 1/6 (um sexto) da pena. Porm, mesmo nesse modelo, que realiza uma espcie de rodzio na permanncia no crcere, existe uma carncia de mais de 200 mil vagas no sistema. Segundo exemplo: a falta de estabelecimentos para o cumprimento da pena nos regimes semiaberto e aberto leva, em muitos Estados, priso domiciliar.

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    Tal modalidade de priso, sem o monitoramento adequado, produz frustrante sensao de impunidade. Para soluo de ambos os problemas, so necessrios investimentos na construo de presdios e abertura de novas vagas.

    5. O presente voto pretende, com dados sobre o sistema penitencirio brasileiro, com o breve relato de experincias estrangeiras e com a apresentao de algumas ideias, trazer o tema para a reflexo coletiva deste tribunal, da sociedade brasileira e de seus representantes no Congresso Nacional.

    II. UM BREVE RESUMO DO CASO

    II.1. A HIPTESE

    6. O presente recurso extraordinrio discute a existncia de responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados aos presos em decorrncia da superlotao e do encarceramento em condies desumanas e degradantes. Em 17.02.2011, esta Corte reconheceu a repercusso geral da questo constitucional suscitada, nos seguintes termos: [p]ossui repercusso geral a questo constitucional atinente contraposio entre a chamada clusula da reserva financeira do possvel e a pretenso de obter indenizao por dano moral decorrente da excessiva populao carcerria.

    7. O caso concreto subjacente envolve ao ordinria de reparao de danos morais ajuizada pela Defensoria Pblica de Mato Grosso do Sul, em favor do recorrente, que, condenado a 20 anos de recluso, cumpria pena no estabelecimento penal de Corumb (MS). A Defensoria alegou, em sntese, que o preso teria direito a indenizao, por estar submetido a tratamento degradante, decorrente da excessiva populao carcerria e de problemas estruturais do presdio, como condies precrias de habitabilidade, insalubridade e ausncia de espao

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    fsico mnimo nas celas. Com base nisso, pleiteou a condenao do Estado de Mato Grosso do Sul ao pagamento de um salrio mnimo mensal ao recorrente, enquanto perdurasse o tratamento degradante e a superlotao.

    8. A deciso recorrida, proferida em sede de embargos infringentes, reformou o acrdo da apelao para julgar o pedido improcedente. Na apelao, o Tribunal de Justia local, por maioria, havia condenado o Estado a pagar ao recorrente a quantia de R$ 2 mil a ttulo de indenizao por danos morais. A deciso dos embargos infringentes afastou, porm, o dever de reparao. Embora tenha reconhecido a superlotao carcerria e as precrias condies a que so submetidos os reclusos, o Tribunal concluiu pela aplicao da reserva do possvel, sob o argumento de que para cessar o dano causado e repar-lo, necessrio (...) realizar a implementao de polticas pblicas, o que exigiria disposio de verba oramentria.

    9. Esse acrdo foi objeto do presente recurso extraordinrio, no qual a Defensoria Pblica alega violao aos arts. 5, incisos III, X e XLIX, e 37, 6, da Constituio Federal. De forma mais especfica, a Defensoria sustenta que (i) h responsabilidade objetiva do Estado pela submisso do recorrente a tratamento desumano e degradante, e (ii) no h que se falar na aplicao da clusula da reserva do possvel, por ser obrigao do Estado a garantia de condies de dignidade aos internos.

    II.2. O VOTO DO MINISTRO RELATOR

    10. Iniciado o julgamento, o Ministro Teori Zavascki, relator do caso, proferiu voto no sentido do provimento do recurso extraordinrio, de modo a restabelecer o juzo condenatrio firmado no julgamento da apelao, nos seus exatos termos e limites. Como resultado, determinou que o Estado de Mato Grosso do Sul indenizasse o preso em R$ 2 mil.

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    11. O Ministro relator considerou, de incio, que os fatos da causa e a configurao do dano moral so incontroversos. Entendeu, assim, que a discusso travada no recurso cinge-se existncia ou no da obrigao do Estado de ressarcir os danos morais verificados em tais circunstncias. Quanto a essa questo, concluiu que no se pode afastar a responsabilidade estatal na hiptese, por trs fundamentos principais:

    (i) A responsabilidade civil do Estado pela ausncia de condies mnimas de cumprimento da pena tem natureza objetiva e decorre do art. 37, 6, da Constituio, dispositivo autoaplicvel, bastando que tenha ocorrido o dano e seja demonstrado o nexo causal com a atuao da administrao pblica ou de seus agentes para que se configure o dever de indenizar;

    (ii) O princpio da reserva possvel no pode ser considerado no mbito da responsabilidade civil do Estado, mas apenas em situaes em que a concretizao de certos direitos constitucionais fundamentais a prestaes, nomeadamente os de natureza social, dependem da adoo e da execuo de polticas pblicas; e

    (iii) As violaes a direitos dos presos no podem ser mantidas impunes, ao argumento de que a indenizao no seria capaz de eliminar o grave problema prisional, pois esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuao da desumana situao que se constata em presdios como o de que trata a presente demanda.

    12. A partir desses fundamentos, o Ministro Teori Zavascki fixou a seguinte tese de repercusso geral: considerando que dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presdios os padres mnimos de humanidade previstos no ordenamento jurdico, de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, 6 da Constituio, a obrigao de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrncia da falta ou insuficincia das condies legais de encarceramento.

    13. Aps o voto do relator, pedi vista dos autos para uma

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    anlise mais detida da questo.

    II.3. EM BUSCA DE UM CAMINHO ALTERNATIVO

    14. Devo dizer, desde j, que adoto integralmente as premissas fixadas no voto do Ministro relator. O Estado tem o dever de indenizar os danos morais causados pelo encarceramento em condies atentatrias aos mnimos padres de dignidade. No se pode invocar a teoria da reserva do possvel ou outros subterfgios tericos para afastar a responsabilidade civil do Estado na hiptese. Isso implicaria negar a uma minoria estigmatizada a titularidade de seus direitos mais elementares integridade fsica e moral, no submisso a tratamento desumano ou degradante e a penas cruis, em frontal violao Constituio. Seria, portanto, legitimar uma concepo desigualitria a respeito da dignidade humana, que nega aos presos o seu valor intrnseco, como se no se tratasse de seres humanos. Essa compreenso deve ser amplamente rejeitada por este Supremo Tribunal Federal.

    15. No entanto, considero que a tese fixada na repercusso geral no confere a devida importncia a um fator subjacente responsabilizao civil no caso: a natureza estrutural e sistmica das graves disfunes verificadas no sistema prisional brasileiro. O descumprimento do dever estatal de garantir condies dignas de encarceramento encontra-se diretamente relacionado a uma deficincia crnica de polticas pblicas prisionais adequadas, que atinge boa parte da populao carcerria e cuja superao complexa e custosa.

    16. Nesse contexto, me parece que a entrega de uma indenizao pecuniria confere uma resposta pouco efetiva aos danos morais suportados pelos presos. Afinal, o detento que postular a indenizao continuar submetido s mesmas condies desumanas e degradantes aps a condenao do Estado. O dinheiro que lhe ser entregue ter pouca serventia para minorar as leses existenciais sofridas.

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    Ao lado disso, a reparao monetria muito provavelmente acarretar a multiplicao de demandas idnticas e de condenaes dos Estados. Assim, esta soluo, alm de no eliminar ou minorar as violaes dignidade humana dos presos, tende a agrav-las e perpetu-las, j que recursos estatais escassos, que poderiam ser utilizados na melhoria do sistema, estariam sendo drenados para as indenizaes individuais.

    17. Esse risco ainda mais evidente no caso, porque em nenhum momento nos autos houve discusso a respeito dos critrios utilizados para a quantificao da indenizao. Na apelao, definiu-se que o recorrente, que permaneceu por cerca de 5 anos em presdio superlotado com condies degradantes, fazia jus mdica quantia de R$ 2 mil. Todavia, no h uma linha sequer sobre os parmetros utilizados para a fixao do montante, tais como o tempo de encarceramento e a gravidade das violaes suportadas. Como resultado, provvel e mesmo natural que os Estados sofram condenaes mais vultosas, aumentando o impacto financeiro da deciso.

    18. H, assim, uma real perspectiva de proliferao das demandas de detentos por danos morais, com inevitvel repercusso oramentria. Considerando-se que nossas prises acomodam atualmente cerca de 560 mil presos, indenizar cada um deles, ainda que no reduzido valor de R$ 2 mil, produziria um gasto de mais de R$ 1 bilho. E o dispndio de recursos no se limitaria a esse montante, na medida em que cada novo preso seria potencialmente merecedor da indenizao, uma vez que no h no horizonte perspectiva de conteno da crise prisional.

    19. certo que preocupaes com a sade financeira dos Estados no podem ser utilizadas para simplesmente negar aos presos a compensao pelos danos morais. Afinal, como justificar o deferimento de indenizaes por danos morais em situaes de menor afronta dignidade, como o cancelamento injustificado de voos e a devoluo

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    indevida de cheques, e neg-las a detentos que sofrem gravssimas violaes aos seus direitos nas prises? Ademais, tal deciso no conferiria aos internos qualquer garantia de que os recursos economizados seriam efetivamente aplicados na melhoria das condies carcerrias. Pelo contrrio, a excluso da responsabilidade civil no caso agiria como mais um estmulo para que tudo continue como est, j que as violaes aos direitos dos presos permaneceriam impunes.

    20. Entretanto, entendo que os efeitos financeiros da medida podem ser levados em considerao na definio da melhor forma de reparao dos danos sofridos. que uma boa soluo para o caso deve encontrar uma rota alternativa e mais eficaz que o dinheiro. De um lado, preciso reconhecer que o Estado responsvel pelas violaes dignidade dos presos que causar. Deciso diversa representaria a atribuio aos detentos do status de seres humanos de segunda categoria. De outro lado, deve-se ir alm da resposta pecuniria, a fim de garantir que os direitos dos presos sejam efetivamente levados a srio. Nesse caminho, no se pode tratar com indiferena as preocupaes com o errio, principalmente porque, em ltima instncia, a disponibilidade de recursos essencial para que os Estados sejam capazes de implementar uma soluo sistmica para remediar a atual crise prisional.

    21. Antes, porm, de enunciar a soluo proposta, necessrio analisar mais detidamente a natureza e a gravidade da situao carcerria no Brasil e apresentar alguns caminhos que podem ser trilhados pelo Estado brasileiro no sentido de garantir aos presos condies adequadas de encarceramento.

    III. A NATUREZA SISTMICA DO PROBLEMA PRISIONAL

    III.1 UM PROBLEMA ESTRUTURAL BRASILEIRO

    22. Tragicamente, o encarceramento em celas superlotadas e

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    em condies degradantes e desumanas no situao excepcional e isolada que afete apenas o recorrente. Pelo contrrio, a superpopulao e a precariedade das condies dos presdios correspondem a problemas estruturais e sistmicos, de grande complexidade e magnitude, que resultam de deficincias crnicas do sistema prisional brasileiro. Tais problemas afetam um contingente significativo de presos no pas.

    23. Diversos dados estatsticos e documentos oficiais comprovam a natureza estrutural da questo carcerria. O Novo Diagnstico de Pessoas Presas, divulgado em junho de 2014 pelo Conselho Nacional de Justia (CNJ), aponta que existem 563.526 presos, em prises que s possuem capacidade para 357.219. O dficit de vagas chega, portanto, a 206.307. O nmero se torna ainda mais impressionante se complementado com dois outros dados: (i) h 147.937 pessoas em priso domiciliar, na maioria dos casos, por falta de vagas nos regimes aberto e semiaberto; e (ii) h 373.991 mandados de priso aguardando cumprimento. Mesmo com todas essas pessoas fora do sistema, o Brasil tem a quarta maior populao carcerria do mundo, atrs apenas dos Estados Unidos, da China e da Rssia. Ainda, se computarmos os presos domiciliares, passamos a ocupar a terceira posio nesse ranking.

    24. O relatrio final da CPI do Sistema Carcerrio, produzido pela Cmara dos Deputados em 2009, e os diversos relatrios de mutires carcerrios, promovidos pelo CNJ em todos os Estados desde 20081, apenas confirmam essas estatsticas. De acordo com tais documentos, nenhuma unidade da federao escapa do problema do dficit de vagas. Em grande parte dos presdios, h celas superlotadas, com pessoas amontoadas, dormindo em esquema de revezamento, em cima do vaso sanitrio, no cho ou em redes afixadas nas paredes. E quando as celas no oferecem espao suficiente, presos so alojados nos corredores, ptios e at mesmo em contineres de ao, semelhantes a jaulas de animais.

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    25. Os mesmos relatrios evidenciam que a dura realidade do sistema prisional vai muito alm da superlotao. Ela envolve, em primeiro lugar, a precariedade das estruturas e instalaes prisionais, que contam frequentemente com celas em pssimo estado de conservao, insalubres, ftidas, sem ventilao e iluminao adequadas e sem sistema de esgoto.

    26. Alm disso, h graves deficincias na prestao das assistncias previstas na Lei de Execuo Penal (LEP). A assistncia material absolutamente precria. Os presos muitas vezes no recebem uniformes, de modo que ficam seminus ou usam roupas levadas por parentes ou doadas por entidades de caridade. Em vrias unidades, praticamente no h fornecimento de material de higiene bsica, como escova de dente, sabonete, toalha e papel higinico. Diversas mulheres sequer recebem absorventes ntimos, de modo que so foradas a utilizar miolos de po para conter o fluxo menstrual. A alimentao nos presdios insuficiente e de pssima qualidade e o fornecimento de gua muito limitado. Vrios internos comem com as prprias mos ou tm suas refeies servidas em sacos plsticos. H constantes denncias de que a comida servida est estragada ou contm cabelos, baratas ou objetos misturados. Por falta de gua, presos s vezes passam dias sem tomar banho. Cobertores chegam a ser usados para conter as fezes nos vasos sanitrios localizados nas celas, j que, em muitos locais, a gua para descarga liberada uma nica vez ao dia, independentemente de quantas vezes e quantas pessoas os utilizaram.

    27. Na assistncia sade, faltam profissionais, atendimento mdico e medicamentos. Os presos so obrigados a conviver com dores, doenas e feridas, muitas vezes sem qualquer tratamento. Alm da falta de profissionais de sade, os presdios praticamente no possuem medicamentos em estoque. As assistncias educacional e laboral tambm so falhas, sobretudo, pela falta de oportunidades. De acordo com o Departamento Penitencirio Nacional (Depen), apenas cerca de 10% dos

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    presos estudam e pouco mais de 20% esto envolvidos em atividade laboral2. Os presos so, assim, condenados ao cio, sendo esse um fator decisivo para os conflitos e revoltas nos presdios.

    28. A situao da populao prisional ainda mais dramtica. Em razo da m gesto dos presdios e do deficiente controle do Estado dentro das unidades, registram-se rotineiramente casos de violncia fsica e sexual, homicdios, maus tratos, tortura e corrupo, praticados tanto pelos detentos, quanto pelos prprios agentes estatais. A inoperncia do Estado tambm abre caminho para o crescimento do poder das faces criminosas, que passam a dominar os crceres, a arregimentar novos integrantes e a comandar, do interior dos presdios, a prtica de diversos crimes, contribuindo para o agravamento da violncia urbana e da insegurana social.

    29. Outro componente do caos carcerrio a desestruturao do sistema de justia, com a falta de pessoal, graves deficincias de funcionamento nas varas de execuo penal e carncias no acesso assistncia jurdica pelos presos. Esses problemas dificultam o monitoramento do tempo para a obteno de benefcios e favorecem a lentido na tramitao de processos, promovendo atrasos significativos na concesso de benefcios penais, como a progresso de regime. Com isso, presos so muitas vezes mantidos nas cadeias alm do prazo legal. o que revela a ao dos Mutires Carcerrios, do CNJ. Desde o incio do projeto, em 2008, at o final de 2013, os mutires concederam mais de 78 mil benefcios e colocaram em liberdade pelo menos 41 mil detentos que j tinham cumprido integralmente a sua pena, mas permaneciam nos crceres3.

    2 Depen. Formulrio Categorias e Indicadores Preenchidos. Referncia: 06/2013.

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    30. Ainda no mbito do sistema de justia, um dos principais fatores responsveis pela superlotao em nossas cadeias o uso excessivo e desproporcional da priso provisria. De acordo com o diagnstico do CNJ, os presos provisrios correspondem a 41% da populao carcerria. So mais de 230 mil presos que se encontram encarcerados sem condenao definitiva. Muitas dessas prises so, porm, indevidas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) revelou que 37,2% dos rus que cumprem priso provisria no so condenados pena privativa de liberdade ao final do processo, mas absolvidos ou condenados a penas e medidas alternativas. Isso significa que o sistema prisional est sendo sobrecarregado com rus que simplesmente no deveriam estar presos.

    31. Esse quadro constitui grave afronta Constituio Federal, envolvendo a violao a diversos direitos fundamentais dos presos, como a dignidade da pessoa humana (art. 1, III), a integridade fsica e moral (art. 5, XLIX), a vedao tortura e ao tratamento desumano ou degradante (art. 5, III), a proibio de sanes cruis (art. 5, XLVII, e), a intimidade e a honra (art. 5, X) e os direitos sociais educao, sade, alimentao, trabalho e moradia (art. 6). Tal estado de coisas vulnera, ainda, a Lei de Execuo Penal e diversos tratados internacionais sobre direitos humanos adotados pelo pas, tais como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, o Pacto de So Jos da Costa Rica e a Conveno contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes.

    32. Diante dessa situao calamitosa, evidente que, na esmagadora maioria dos casos, mandar uma pessoa para o sistema prisional submet-la a uma pena mais grave do que a que lhe foi efetivamente aplicada. Mais do que a privao de liberdade, impe-se ao preso a perda da sua integridade, de aspectos essenciais de sua dignidade, assim como das perspectivas de reinsero na sociedade.

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    33. A degradao a que os presos so submetidos e a ausncia de separao dos internos de acordo com a sua periculosidade transformam os presdios em verdadeiras escolas do crime. De l, presos de menor potencial ofensivo saem criminosos perigosos, integrando faces e cheios de novas conexes. O elevado ndice de reincidncia criminal no pas apenas corrobora essa afirmao. Segundo estimativas do CNJ, 70% dos presos voltam a cometer delitos aps sarem das prises4. , assim, fora de dvida que o sistema punitivo no Brasil no realiza adequadamente qualquer das funes prprias da pena criminal: alm de no prever retribuio na medida certa, no previne, nem ressocializa.

    34. Nesse contexto, parece evidente que o fenmeno do encarceramento em massa, com a submisso dos presos a condies degradantes de deteno, no atende aos objetivos das polticas de segurana pblica ou aos interesses da sociedade na reduo da criminalidade. Ainda assim, a populao e as autoridades pblicas continuam a apostar no endurecimento das penas e no aprisionamento como nicas formas de combater a delinquncia. Conforme destacou Daniel Sarmento, o xito desse discurso de lei e ordem resulta em um perverso crculo vicioso, no qual a demanda por maior encarceramento alimenta a superlotao prisional, que, por sua vez, produz o agravamento da criminalidade, em prejuzo da prpria segurana pblica5.

    35. H um evidente paradoxo nesse cenrio. A populao tem uma sensao difusa de impunidade e de insegurana. Ainda assim, o pas pune muito, com ndices de encarceramento crescentes. Para que se tenha uma ideia, dentre os 50 pases com maior populao carcerria no mundo, o Brasil o que apresentou o segundo maior aumento da taxa de pessoas presas entre 1995 e 2010, na ordem de 136%. O pas, na verdade,

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    prende muito, mas prende mal. Atualmente, a maior parte da populao carcerria formada por condenados por crimes contra o patrimnio cometidos sem violncia ou grave ameaa, como furto e receptao (cerca de 18% dos presos6), e por trfico de entorpecentes (cerca de 26% da populao total e mais de 60% das mulheres presas7). Por outro lado, o percentual de pessoas presas por homicdio baixssimo, de menos de 12%, sendo que o ndice de elucidao desse crime ainda menor, de 5% a 8% dos casos8.

    36. As deficincias apontadas acima fazem com que o sistema penal brasileiro seja extremamente seletivo em relao sua clientela preferencial. por essa razo que, como j afirmei9, no Brasil de hoje, mais fcil prender um jovem de 18 anos que porta 100 gramas de maconha do que um agente poltico ou empresrio que comete uma fraude milionria. As estatsticas comprovam que tais afirmaes so algo mais do que uma simples pr-compreenso. Segundo o Depen10, quase 60% dos presos so negros ou pardos e o nvel de escolaridade de aproximadamente 70% dos detentos no passa do ensino fundamental. Apenas 0,4% dos presos completou o ensino superior.

    37. No bastasse, a poltica de encarceramento em massa extremamente onerosa aos cofres pblicos. De acordo com informaes do Depen11, mesmo nas condies precrias atuais, os Estados gastam, em

    6 Trata-se da soma da quantidade de presos por furto, apropriao indbita,

    estelionato e receptao. Disponvel em: .

    7 Ibid.

    8 Disponvel em:

    9 V. STF, HC 123.108, Rel. Min. Lus Roberto Barroso, j. em 10.12.2014.

    10 Disponvel em:

    11 Dados cedidos pelo Depen.

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    mdia, cerca de R$ 2 mil por ms para a manuteno de cada detento12. J o custo mdio de construo de cada nova vaga de R$ 43.835,20, no regime fechado, e R$ 24.165,19, no semiaberto. Dessa forma, para zerar o atual dficit de vagas, seria necessrio investir mais de R$ 10 bilhes somente na construo de presdios.

    38. E o quadro tende a piorar. Se o pas mantiver o atual ritmo de crescimento da populao prisional, de cerca de 7% ao ano, ser preciso construir mais 340 mil vagas at 2020, com um investimento adicional de R$ 12 bilhes13. Nessas condies, o Estado ter que destinar nos prximos anos cerca de R$ 22 bilhes somente para fazer face superlotao. Isso sem contar os mais de R$ 680 milhes mensais que devero ser gastos para a manuteno dos novos presos no sistema.

    39. Todos esses dados revelam a profundidade do problema prisional, nitidamente insustentvel do ponto de vista humanitrio, social e financeiro. preciso urgentemente repensar a atual poltica de encarceramento e reestruturar inteiramente o sistema de justia criminal. Caso contrrio, alm de perpetuar a inconstitucional e inaceitvel violao dignidade dos presos, corremos o srio risco de um colapso do sistema penitencirio, com graves repercusses financeiras e de segurana pblica para os Estados.

    III.2 UM PROBLEMA NO ISOLADO NO CONTEXTO MUNDIAL

    40. A situao dos presdios brasileiros no um fenmeno isolado e sem precedentes no cenrio mundial. Diversos pases enfrentam problemas de superlotao e graves deficincias em seus sistemas carcerrios. Em Congresso da ONU sobre Preveno do Crime e Justia

    12 possvel, porm, pensar em modelos menos custosos para o poder pblico. A ttulo

    de exemplo, as Associaes de Proteo e Assistncia aos Condenados (APACs) aplicam

    mtodo alternativo, no qual a manuteno de cada preso custa, em mdia, um salrio

    mnimo, i.e., cerca de um tero do valor da vaga de uma penitenciria comum.

    13 Dados cedidos pelo Depen.

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    Criminal, realizado em Doha em abril deste ano, declarou-se que a superpopulao de presdios alcanou propores epidmicas. Apenas no ano passado, dos 193 pases-membros da ONU, 77 registraram nmero de presos superior a 120% da capacidade dos estabelecimentos penais. Para citar apenas alguns exemplos, o caso dos Estados Unidos, da Itlia, da Rssia, da Colmbia e da frica do Sul.

    41. O carter global da crise do sistema carcerrio no deve, porm, servir de consolo ou desculpa para a manuteno da alarmante estrutura prisional brasileira. Pelo contrrio, as experincias de alguns desses pases no enfrentamento do problema nos fornecem exemplos de medidas e reformas capazes de produzir resultados efetivos na melhoria das condies carcerrias, alm de trazer novas perspectivas sobre os papeis que a jurisdio constitucional pode desempenhar no processo.

    42. Uma das experincias mais interessantes nesta seara, e que se aproxima da questo discutida no presente recuso extraordinrio, a da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Nos ltimos anos, a Corte recebeu milhares de reclamaes de presos de vrios pases europeus que pleitearam indenizaes por danos morais sofridos, em razo de estarem submetidos a tratamento desumano e degradante, causado, sobretudo pela superlotao, em violao ao art. 3 da Conveno Europeia de Direitos Humanos14.

    43. A jurisprudncia da Corte Europeia se firmou no sentido da possibilidade de condenao dos Estados a repararem os danos morais causados aos presos nesses casos. A CEDH entendeu, porm, que o tratamento degradante deve atingir um nvel mnimo de gravidade para dar causa indenizao. A avaliao desse mnimo de gravidade relativa. Depende da anlise de todas as circunstncias do caso concreto, incluindo a durao do encarceramento, seus efeitos fsicos e mentais e as

    14 Referido artigo da Conveno Europeia de Direitos Humanos consagra que

    Ningum pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou

    degradantes.

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    condies efetivas da deteno, como o espao fsico individual na cela, a privacidade no uso dos lavatrios, a ventilao e a iluminao das celas e a higiene. Para a Corte, porm, quando a superlotao atinge um nvel excessivo, a falta de espao individual na cela pode ser utilizada como o elemento central para a condenao. Em diversos julgados, a CEDH decidiu que a atribuio ao preso de espao fsico inferior a 3m cria uma forte presuno de tratamento degradante, justificando a condenao dos Estados a pagarem indenizaes aos detentos.

    44. Em alguns desses casos, a Corte foi alm da deciso dos pedidos de reparao formulados pelos requerentes. Isso ocorreu precisamente quando a CEDH observou que a superlotao nas prises revelava a existncia de um problema estrutural e sistmico do Estado, que consistia em uma prtica incompatvel com a Conveno Europeia. Em hipteses como essa, a Corte Europeia entendeu que precisava conferir uma resposta mais eficaz s repetitivas reclamaes recebidas e passou a adotar um procedimento especial, criado pela via de sua jurisprudncia15. Nesse procedimento, denominado julgamento piloto, a CEDH identifica as causas do problema estrutural e determina ao Estado-ru a adoo de medidas para por fim s violaes constatadas e para minorar, tanto quanto possvel, suas consequncias, sob a superviso do Comit de Ministros do Conselho da Europa.

    45. O julgamento piloto vem sendo adotado pela Corte Europeia em diversos casos que envolvem condies do sistema prisional. No caso Ananyev et al. v. Rssia16, a Corte analisou pedidos de indenizao por danos morais formulados por dois presos provisrios russos. Ambos haviam sido mantidos em celas superlotadas, com superfcie individual inferior a 3m2, enquanto aguardavam seus julgamentos. Ao analisar as reclamaes, a CEDH entendeu que o sistema prisional da Rssia padecia de um problema estrutural consistente na

    15 Em 2010, o procedimento passou a ter previso no art. 614 do Regulamento da

    CEDH.

    16 CEDH, Caso Ananyev e outros v. Rssia, j. em 10.01.2012.

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    existncia de condies inadequadas de deteno, como a flagrante falta de espao nas celas, a escassez de lugares para dormir, o acesso limitado iluminao e ar fresco e a falta de privacidade no uso dos sanitrios.

    46. Diante desse cenrio, a Corte, em primeiro lugar, condenou o governo russo a reparar pecuniariamente os danos morais sofridos pelos requerentes. Na sequncia, a CEDH adotou o procedimento do julgamento piloto, no mbito do qual (i) produziu um diagnstico sobre as causas da superlotao dos presdios russos e da violao aos direitos dos presos provisrios no pas e (ii) determinou que a Rssia estabelecesse, no prazo de 6 meses, um calendrio vinculante para a adoo de determinadas medidas preventivas, de modo a erradicar as causas da superlotao, e compensatrias, de modo a prover aos presos alguma forma de reparao pelos danos j sofridos.

    47. Tambm merece destaque o emprego do julgamento piloto em relao ao sistema carcerrio da Itlia. No caso Torreggiani et al. v. Itlia17, diversos detentos que cumpriam pena em celas superlotadas ingressaram com requerimentos de condenao do Estado ao pagamento de indenizaes. Tal como no julgado anterior, a Corte Europeia, alm de determinar a reparao dos danos morais causados aos requerentes, aplicou o procedimento do julgamento piloto, por ter identificado que a superpopulao carcerria na Itlia possua carter estrutural. Como consequncia, determinou que o governo italiano adotasse, no prazo de 1 ano, um conjunto de medidas aptas a reduzir a superlotao, que compreendesse remdios tanto preventivos, quanto compensatrios.

    48. O mais interessante desse caso foi a sua repercusso positiva sobre as condies de encarceramento no pas. Atendendo deciso da CEDH, a Itlia apresentou Corte um plano de ao e adotou diversas medidas de reforma de seu sistema prisional. A ttulo exemplificativo, estimulou a adoo de medidas alternativas priso,

    17 CEDH, Caso Torreggiani et. al v. Itlia, j. em 08.01.2013.

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    ampliou as hipteses de cabimento da priso domiciliar, sobretudo para crimes de menor potencial ofensivo, previu a expanso do uso da monitorao eletrnica, criou uma ouvidoria nacional das pessoas presas, reduziu as penas de crimes relacionados a drogas leves e ampliou as oportunidades de trabalho para os detentos18. No que se refere especificamente aos remdios compensatrios, o governo italiano estabeleceu um mecanismo de reparao in natura dos danos morais causados aos presos, consistente na remio de 1 dia de pena para cada 10 dias de deteno em condies degradantes ou desumanas19. Apenas os detentos que no estiverem mais sob custdia do Estado, ou cuja pena a cumprir no permita a deduo da totalidade da remio concedida, podem pleitear uma indenizao pecuniria, pr-fixada no montante de 8 (oito) euros por dia de deteno.

    49. Diante do sucesso das medidas adotadas pela Itlia, menos de dois anos aps a adoo do julgamento piloto, a Corte Europeia declarou inadmissveis duas novas demandas de indenizaes por danos morais formuladas por presos italianos, nos casos Stella et al. v. Italie e Rexhepi et al. v. Italie20. Segundo a CEDH, havia evidncias suficientes de que as medidas adotadas pelo governo italiano foram eficazes para atacar o problema da superlotao e para garantir os direitos dos presos, inclusive reparao dos danos causados. De acordo com informaes prestadas pela Itlia, naquele momento, no havia mais nenhum detento que cumprisse pena em cela com espao individual inferior a 3 m2.

    50. A exemplo da Unio Europeia, os Estados Unidos tambm possuem uma frtil experincia no campo das reformas do sistema carcerrio a partir de intervenes judiciais21. Entre 1965 e 1990, juzes

    18 A respeito, confiram-se o Decreto-Lei n 78/2013, convertido na Lei n 94/2013, o

    Decreto-Lei n 146/2013, convertido na Lei n 10/2014, a Lei n 67/2014 e a Lei n 79/2014.

    19 Cf. Decreto-Lei n 92/2014, convertido na Lei n 117/2014.

    20 CEDH, Stella et al. v. Italie e Rexhepi et al. v. Italie, j. em 16.09.2014.

    21 Sobre o tema, cf: Malcolm Feeley; Edward Rubin, Judicial Policy Making and the

    Modern State. How the Courts Reformed America's Prisons. Cambridge: Cambridge Univ.

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    federais concederam amplas ordens de reforma prisional em quase todos os estados norte-americanos22, por entenderem que determinadas prises e, em alguns casos, todo o sistema prisional de um Estado impunham punio cruel aos presos, em violao Oitava Emenda23. As decises judiciais nesses casos, os chamados prison reform cases, tiveram em comum a interveno em um amplo espectro de condies dos presdios, a formulao de ordens detalhadas para a reestruturao do sistema carcerrio e o monitoramento das aes determinadas. So, assim, um dos maiores exemplos de formulao de polticas pblicas pelo Poder Judicirio.

    51. O caso mais emblemtico dessa interveno o Holt v. Sarver, relativo ao sistema prisional do Arkansas24. Trata-se do primeiro caso em que o Judicirio norte-americano declarou a inconstitucionalidade de todo o sistema prisional de um Estado, por infligir cruel punio aos presos, em afronta aos seus direitos constitucionais. No caso, os presos do Arkansas alegaram falta de assistncia mdica, uma poltica cruel e irrazovel de confinamento dos detentos na solitria e a incapacidade do Estado em proteger os presos de ataques de outros internos. Ao julg-lo, o juiz J. Smith Henley entendeu que as condies de deteno no Arkansas eram inconstitucionais, mas no imps imediatamente as solues que considerava adequadas. Ao invs disso, estabeleceu diretrizes para a humanizao das prises e ofereceu administrao prisional a oportunidade de estabelecer um plano para sanar as violaes constatadas, que ficaria sob a superviso da Corte.

    Press, 1998.

    22 A ttulo exemplificativo, tais ordens foram concedidas no Alabama (Pugh v. Locke),

    Mississipi (Gales v. Collier), Carolina do Sul (Plyler v. Evatt), Carolina do Norte (Small v.

    Martin), Florida (Costello v Wainwright), Georgia (Guthrie v. Evans) e Texas (Ruiz v. Estelle).

    23 A Oitava Emenda Constituio dos EUA dispe que: No se poder exigir fiana

    excessiva, nem impor multas excessivas, nem infligir penas cruis e no usuais.

    24 Corte Distrital do Arkansas, Caso Holt v. Sarver, 309 F (1970).

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    52. Na sequncia, realizaram-se diversas audincias para acompanhar os progressos obtidos e verificaram-se melhorias efetivas nas prises estaduais, de modo que a Corte entendeu que a sua superviso j no era necessria. Quando as condies prisionais tornaram a se agravar, a Corte interveio novamente, dessa vez, com ordens ainda mais detalhadas ao departamento penitencirio estadual, tais como a limitao do nmero de presos que poderiam ser confinados em uma cela e a definio de um perodo mximo de isolamento de 30 dias. Esta ltima determinao e outras foram questionadas perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, que as validou, por entender que eram necessrias para corrigir as violaes constitucionais identificadas25.

    53. Mais recentemente, em 2011, o famoso caso Brown v. Plata, relativo ao sistema carcerrio da Califrnia tambm foi decidido pela Suprema Corte norte-americana26. No caso, a Suprema Corte declarou constitucional a ordem emitida por Corte distrital colegiada da Califrnia (Three-judge Court) no sentido de que o Estado limitasse a populao prisional a at 137,5% da capacidade dos presdios, o que representaria a soltura de 46 mil detentos, por entender que a medida foi necessria para remediar as graves violaes constitucionais constatadas.

    54. A deciso da Three-judge Court havia sido proferida nas causas correlatas Coleman v. Brown e Plata v. Brown, relativas ausncia de tratamento adequado para presos com deficincias mentais e falta de assistncia mdica aos presos, respectivamente. Nessa ocasio, tal Corte constatou que as graves condies sanitrias e a carncia de assistncia mdica nas prises estaduais possuam como causa principal a superlotao e intimou a Califrnia a apresentar, em 45 dias, um plano de reduo da populao carcerria no prazo de 2 anos, cuja execuo seria monitorada pela prpria Corte. De acordo com a deciso, o Estado estaria livre para escolher as medidas para alcanar a meta, desde que no se tratasse de medidas meramente provisrias ou que repercutissem

    25 Suprema Corte dos EUA, Caso Hutto v. Finney, 437 U.S. 678 (1978).

    26 Suprema Corte dos EUA, Caso Brown et al. v . Plata et al., 131 S. Ct. 1910, 1923 (2011).

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    negativamente sobre as condies de vida dos presos. At hoje, porm, a Califrnia no atingiu o limite fixado. Recentemente, o prazo para o cumprimento da meta foi prorrogado at fevereiro de 2016. A despeito disso, a deciso permitiu considervel reduo da populao prisional do Estado e criou incentivos para a melhoria das condies de vida nos presdios locais.

    55. Na mesma linha das experincias da Corte Europeia de Direitos Humanos e do Judicirio norte-americano, a Corte Constitucional da Colmbia produziu um mecanismo de interveno jurisdicional para lidar com falhas estruturais de polticas pblicas que impliquem violaes massivas e contnuas de direitos e que decorram de omisses prolongadas das autoridades estatais. Trata-se da categoria do estado de coisas inconstitucional. Quando a Corte colombiana reconhece e declara a existncia de um estado de coisas contrrio Constituio, ela passa a atuar diretamente na formulao de polticas pblicas, definindo metas e linhas de ao a serem implementadas por diferentes instncias de poder. Nesses casos, em geral, a Corte designa uma autoridade para fiscalizar a execuo da deciso, de modo que a atuao judicial no se encerra com a prolao da deciso, mas se protrai at que as diversas autoridades levem a cabo as determinaes da Corte.

    56. Na Sentena T-153, de 1998, uma das suas mais importantes decises, a Corte Constitucional da Colmbia declarou que o sistema prisional colombiano constitua um estado de coisas inconstitucional27. O caso teve origem em demandas individuais relativas a duas penitencirias especficas. No entanto, a Corte constatou que a superlotao e as condies desumanas de deteno eram problemas generalizados, configurando a violao massiva dos direitos fundamentais da populao carcerria do pas. Como resultado, a Corte colombiana determinou a diversos rgos do Poder Pblico a adoo de uma srie de medidas para a superao desse estado de coisas. Dentre

    27 Corte Constitucional da Repblica da Colmbia, Sentena T-153/98, j. em 28.04.1998.

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    tais medidas, destacam-se (i) a elaborao, no prazo de 3 meses, de um plano para a construo e renovao de presdios que deveria ser executado no perodo de 4 anos, sob a superviso de determinados rgos estatais, (ii) a disponibilizao de recursos oramentrios, pelo governo federal, para a execuo do plano, e (iii) a separao dos presos provisrios daqueles j condenados.

    57. Ainda que com atrasos, tal plano foi efetivamente executado, com a criao de mais de 20 mil vagas. Decorridos mais de 15 anos da deciso, avalia-se, porm, que o reconhecimento do sistema prisional colombiano como um estado de coisas inconstitucional produziu resultados dbeis em matria de proteo dos direitos das pessoas encarceradas. que o principal remdio determinado na sentena foi a construo de novas prises, medida que logo se provou insuficiente para fazer face ao crescimento da populao prisional e para garantir a melhoria das condies de vida nos presdios. Ainda assim, a Sentena teve o mrito de colocar a crise prisional em pauta no pas e oferecer uma nova perspectiva a respeito do papel dos tribunais no enfrentamento da questo.

    58. As experincias da Unio Europeia, dos Estados Unidos e da Colmbia, apresentadas brevemente acima, no evidenciam apenas que a crise prisional um fenmeno global e generalizado. Mais do que isso. Elas demonstram, em primeiro lugar, que se trata de um problema complexo, cujo enfrentamento demanda uma atuao conjunta e coordenada de diversos poderes e rgos estatais. Em segundo lugar, evidenciam a necessidade de se conferir primazia a solues que atuem verdadeiramente sobre as causas das situaes que deram origem s demandas. Por fim, apontam os papeis que a jurisdio constitucional tem a desempenhar no processo, seja para impor diretamente o respeito aos direitos mais bsicos da populao carcerria, seja para provocar os demais Poderes a adotarem medidas concretas para erradicar as violaes constatadas.

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    III.3 UM PROBLEMA QUE DEMANDA UMA ATUAO COORDENADA

    59. Como se viu, a perversa realidade prisional brasileira um problema generalizado, complexo e estrutural, fruto de aes e omisses dos Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio que se estenderam durante vrias dcadas. Tal como se demonstrou nas experincias de direito comparado relatadas acima, no h solues fceis ou unilaterais para enfrentar essa obscura realidade. Para que sejam eficazes, preciso implementar um conjunto complexo e planejado de medidas, articulado por todos os rgos relativos ao sistema carcerrio e esferas de poder. necessrio, ainda, que se confira prioridade a solues que atuem diretamente sobre as causas do problema prisional.

    60. Do retrato da situao carcerria, revelado no item III.1, acima, despontam nitidamente trs principais causas da crise do sistema carcerrio nacional, que esto de certo modo interligadas: (i) a superlotao, (ii) a lgica do hiperencarceramento, e (iii) as deficincias na estruturao e funcionamento dos presdios.

    61. De incio, o problema mais imediato a ser enfrentado a superlotao, no apenas em razo das violaes de direitos humanos dos presos que enseja, mas tambm pelas dificuldades que impe gesto dos estabelecimentos prisionais. Como afirmou a CPI da Cmara dos Deputados, ela a me de todos os demais problemas do sistema carcerrio. A ocupao dos presdios em nmero muito superior sua capacidade prejudica severamente a manuteno de condies mnimas de higiene, privacidade e habitabilidade. Prejudica, igualmente, a prestao das diversas assistncias previstas na LEP e a garantia da ordem e segurana internas, com efeito direto sobre as condies de vida dos presos e sobre a segurana pblica.

    62. Entendo que h diversas medidas capazes de diminuir o

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    dficit de vagas nos presdios, tais como: (i) a construo de presdios, com preferncia para o regime

    semiaberto, de modo a viabilizar o sistema progressivo de cumprimento da pena e por fim inaceitvel situao de presos que tm direito subjetivo a regime menos gravoso, mas so mantidos no regime fechado por falta de vagas;

    (ii) enquanto no forem construdas novas vagas, a oferta de vagas aos presos que tenham direito subjetivo progresso de regime ou que tenham sido condenados inicialmente ao regime semiaberto, dever se dar por meio da organizao de uma fila de sada. Tal fila dever obedecer a critrios objetivos, que permitam a concesso de priso domiciliar ou de antecipao do regime aberto a outro preso que j esteja cumprindo a pena no regime semiaberto e j tenha alcanado ou esteja mais prximo de alcanar o requisito objetivo para progredir para o regime aberto28;

    (iii) o fim do uso excessivo e desproporcional da priso provisria, a partir: a) da imposio aos juzes de um nus argumentativo mais severo para justificar tanto o decreto de priso, quanto a no aplicao de medidas cautelares diversas da priso, exigindo-se a especificao de fatos concretos que fundamentem a presena dos requisitos legais justificadores da priso e que comprovem a insuficincia de cada uma das medidas cautelares no privativas de liberdade, ainda que aplicadas cumulativamente29; b) da ampliao, para todas as unidades da federao, da exigncia de realizao de audincias de

    28 A ideia foi exposta em audincia pblica realizada pelo Ministro Gilmar Mendes no

    mbito do RE n 641320, pela Sra. Maria Tereza Uille, poca Secretria de Estado, da

    Justia, Cidadania e Direitos Humanos do Estado do Paran.

    29 Esta proposta consta de importante projeto de alterao do Cdigo de Processo

    Penal apresentado ao Ministro da Justia pelo Ministro Ricardo Lewandowski. verdade

    que a jurisprudncia desta Corte j exige a explicitao de elementos concretos justificadores

    da constrio da liberdade, tendo em vista a natureza excepcional da priso antes do trnsito

    em julgado da condenao (v., entre outros, HC 119.095/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes). No

    entanto, a exigncia correntemente descumprida pelas instncias inferiores.

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    custdia, conforme projeto piloto do CNJ30; e c) da criao de poltica de incentivo utilizao do monitorao eletrnica como alternativa priso provisria, por meio da locao de equipamentos, da instalao ou do fortalecimento de centrais de monitorao eletrnica e de outros mecanismos que garantam a fiscalizao do cumprimento da pena31 32 ;

    (iv) o estmulo aplicao mais ampla de penas alternativas priso, por meio: a) da imposio aos juzes de um nus argumentativo mais severo para justificar a no aplicao das penas alternativas na sentena condenatria; e b) do investimento no fortalecimento das centrais de acompanhamento de penas e medidas alternativas e na criao de outros mecanismos que permitam aumentar o controle e a fiscalizao do seu cumprimento33;

    (v) o aumento da celeridade e da eficincia da Justia criminal, pela adoo de providncias como: a) a ampliao do nmero de Varas de Execuo Penal, b) a reestruturao das VEPs j existentes, com o reforo do quadro de pessoal, o estmulo adoo das boas prticas de gesto cartorria institudas pelo CNJ e o fornecimento de treinamento a

    30 V. os Termos de Cooperao Tcnica celebrados (i) em 09.04.2015 entre o CNJ, o

    Ministrio da Justia MJ e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD, visando

    efetiva implantao do Projeto Audincia de Custdia, de modo a fomentar a viabilizar a

    operacionalizao da apresentao pessoal de autuados presos em flagrante delito

    autoridade judiciaria, no prazo mximo de 24 horas aps sua priso, e (ii) em 27.04.2015

    entre o CNJ e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, visando, entre outros,

    difuso e fomento das Audincias de Custdia.

    31 V. Termo de Cooperao Tcnica celebrado em 09.04.2015 entre o CNJ, o MJ e o

    IDDD, para a implementao da poltica de monitorao eletrnica de pessoas.

    32 A moderao no uso da priso provisria dever vir acompanhada de mecanismos

    de acelerao do processo penal e da reviso de precedentes que precisam ser superados,

    como o termo inicial da prescrio da pretenso executria (Cdigo Penal, art. 112, I) e a

    possibilidade de execuo provisria da deciso, na pendncia de recurso especial ou

    extraordinrio. Ningum deseja um processo penal que transforme os advogados, por dever

    de ofcio, em agentes da procrastinao.

    33 V. Termo de Cooperao Tcnica celebrado em 09.04.2015 entre o CNJ, o MJ e o

    IDDD, com o propsito de ampliar a aplicao de alternativas penais com enfoque

    restaurativo.

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    magistrados e servidores de apoio direto, c) a implantao de um sistema eficaz de monitoramento do tempo de obteno dos benefcios da execuo penal, e d) o efetivo impulsionamento de ofcio dos processos de execuo penal, sem necessidade de aguardar a manifestao da parte interessada, nos termos da LEP e da Resoluo CNJ n 113/2010; e

    (vi) a melhoria do acesso Justia pelos presos, por meio: a) do fortalecimento e da garantia da autonomia financeira s Defensorias Pblicas; e b) da ampliao do nmero de defensores pblicos com atuao na esfera criminal, com prioridade para a lotao de defensores nos prprios presdios.

    63. Em segundo lugar, preciso romper com a lgica do hiperencarceramento que est por trs dos ndices de crescimento exponencial da populao prisional brasileira. O imaginrio coletivo permeado pela ideia de que colocar pessoas atrs das grades a nica resposta legtima para lidar com a criminalidade, independentemente do tipo e da gravidade do crime praticado. Porm, como demonstram os dados, trata-se de uma lgica falha. O encarceramento em massa no tem contribudo para os objetivos das polticas de segurana pblica e para a preveno do crime ao contrrio, tem favorecido o aumento da prtica delitiva. Ele tampouco tem permitido a ressocializao dos presos, possuindo, em verdade, um efeito estigmatizante e degenerativo sobre a populao carcerria. Apesar disso, a poltica tem gerado altos custos para os cofres pblicos e para a sociedade.

    64. No ignoro que toda sociedade democrtica precisa de uma dose inevitvel e proporcional de represso penal e punio, como pressuposto da vida civilizada e da proteo dos direitos humanos de todos. A despeito disso, imperativo encontrar um ponto de equilbrio. O direito penal deve ser moderado e srio: sem excesso de tipificaes, que geralmente importam em criminalizao da pobreza, e sem exacerbao de penas, que apenas superlotam presdios degradados. Como exige a Constituio, a privao de liberdade deve ser medida de ultima ratio,

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    aplicada apenas quando a gravidade da ofensa e a importncia do bem jurdico tutelado tornarem todas as demais medidas nitidamente inadequadas.

    65. Para combater a lgica do hiperencarceramento e reforar o carter subsidirio da priso, penso que o Direito pode oferecer algumas respostas, alm daquelas j enunciadas acima. possvel, por exemplo:

    (i) ampliar as espcies de penas alternativas priso e as hipteses de cabimento de priso domiciliar monitorada;

    (ii) revisar a poltica de encarceramento em crimes sem violncia ou ameaa contra a pessoa, como o furto, primando por medidas de indenizao da vtima e de servios comunidade;

    (iii) revisar a poltica de drogas, por meio a) da criao de critrios legais objetivos para diferenciar usurio e pequeno e grande traficante no mbito da Lei no 11.343/06; e b) de um processo de debate pblico e reflexo sobre a descriminalizao do consumo e do comrcio de drogas, em especial daquelas consideradas leves, com forte regulao e controle da produo;

    (iv) exigir a elaborao de estudo de impacto poltico-criminal34 pelo Poder Legislativo previamente aprovao de qualquer reforma na seara criminal, de modo que as alteraes da legislao penal no sejam aprovadas no escuro, mas a partir da considerao de seus efeitos empricos e impactos financeiros;

    (v) incentivar polticas de preveno do crime, por meio das atividades de inteligncia policial e prisional; e

    (vi) realizar campanhas institucionais de conscientizao da populao a respeito das condies dos presdios brasileiros e de seu impacto negativo sobre o aumento da violncia e a segurana pblica.

    66. Por fim, preciso suprir as graves deficincias na estruturao e funcionamento dos presdios. Se as medidas apresentadas

    34 Salo Carvalho, Em defesa da Lei de Responsabilidade Poltico Criminal, In Revista da

    EMERJ, v. 15, 2012.

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    nos itens anteriores podem oferecer uma boa resposta aos nveis crescentes de encarceramento, tais aes no atuam direta e imediatamente sobre as condies de vida dos detentos. Por isso, qualquer projeto de reforma prisional deve envolver tambm respostas diretas e efetivas s condies desumanas e degradantes de deteno, dentre as quais destaco as que se seguem:

    (i) melhoria da estrutura fsica dos estabelecimentos penais, a partir da promoo de reformas estruturais nos presdios existentes, com vistas a garantir colches para todos os detentos, iluminao e ventilao adequadas das celas, tratamento de esgoto e melhorar as condies das instalaes em geral;

    (ii) aperfeioamento da estrutura de funcionamento dos presdios, por meio: a) da classificao e da separao dos presos, no mnimo, entre primrios e reincidentes e entre provisrios e condenados, de modo a evitar a arregimentao de presos primrios por faces e evitar conflitos nos presdios; b) da contratao de novos agentes penitencirios, mediante concurso pblico; e c) da capacitao profissional e valorizao da carreira, com aumento da remunerao e a criao ou fortalecimento de planos de carreira, de modo a evitar a corrupo, maus tratos e a contratao de filiados a faces para trabalharem nas cadeias;

    (iii) melhoria das assistncias a) material, mediante o fornecimento de alimentao e gua potvel em quantidade e qualidade adequadas, vesturio e material de higiene pessoal, b) laboral, com a ampliao da oferta de postos de trabalho internos e externos, c) educacional, mediante a criao de programas de valorizao da educao no sistema prisional e a instalao de bibliotecas em todos os presdios, d) sade, com garantia de atendimento e tratamento adequado dos presos, e) ao egresso, com programas de ressocializao para evitar a reincidncia, e f) mulher, de modo a atender s suas necessidades especficas no crcere e reduzir o impacto familiar e social de sua segregao; e

    (iv) melhoria do monitoramento e da gesto dos presdios, por

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    meio: a) da capacitao de gestores com formao especfica; b) da realizao de inspees e mutires com maior frequncia, c) da implantao de um sistema informatizado unificado, que permita o registro, o acompanhamento e o controle da execuo penal dos detentos de todo o pas; d) da criao de uma ouvidoria ou outro mecanismo eficaz para que detentos possam reclamar das condies de deteno, prevenindo os maus tratos, a violncia e a tortura; e e) do fim das revistas vexatrias de familiares e outros visitantes, que devem ser substitudas por meios mais eficazes e menos invasivos, como aparelhos de scanner corporal e a inspeo do preso imediatamente aps a visitao (quando vivel), de modo a proteger a dignidade e a intimidade dessas pessoas, sem descurar da segurana nos presdios.

    67. No se ignora que muitas das propostas relacionadas acima so custosas. Desse modo, para que sejam factveis, preciso assegurar que os Estados destinem recursos suficientes para a garantia de condies mnimas de dignidade nas prises. H que se considerar, porm, que o sistema penitencirio conta com um fundo especfico para financiar medidas de aprimoramento e modernizao. Trata-se do Fundo Penitencirio Nacional - FUNPEN, institudo pela Lei Complementar n 79/1994.

    68. De acordo com informaes do Depen, atualmente, o Fundo possui saldo contbil de aproximadamente R$ 2,2 bilhes35. Desde a sua criao em 1994 at 2014, o fundo arrecadou mais de R$ 4,4 bilhes (em valores no atualizados). No entanto, apenas parcela desse valor, de cerca de R$ 3,4 bilhes, foi disponibilizada aos Estados36. Isso se deve a dois motivos principais. Primeiro ao contingenciamento de parte do oramento do Funpen pelo governo federal para obteno do supervit primrio, que vem ocorrendo desde a criao do fundo37. Segundo porque uma parcela significativa dos valores disponveis no utilizada

    35 Dados cedidos pelo Depen.

    36 Dados cedidos pelo Depen.

    37 Ministrio da Justia, FUNPEN em nmeros, 6a ed., 2012, p. 138.

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    pelos Estados, seja porque no conseguem cumprir as exigncias formuladas pelo governo federal para o repasse dos fundos, seja porque tm dificuldades para executar os valores repassados.

    69. A esse propsito, matria publicada no Jornal O Globo, de 27.04.2015, revelou que o Plano Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lanado em 2011, destinado a reduzir a superlotao dos presdios, no avanou. Segundo se apurou, dos 99 convnios fechados com estados para criao de 45.934 vagas ao custo de R$ 1,2 bilho, nada foi concludo, segundo dados do prprio Ministrio da Justia. O texto informa, ainda, que h 46 obras que ainda nem comearam e, das 53 que j tiveram incio, 33 esto paralisadas.

    70. Dessa forma, alm de todas as medidas acima, preciso garantir que a totalidade dos recursos com destinao especfica para a questo carcerria seja efetivamente empregada na melhoria do sistema. Para isso, preciso a) determinar o imediato descontingenciamento do Funpen, e b) promover estudo sobre as atuais exigncias para que Estados sejam contemplados com transferncias do fundo, de modo a excluir ou flexibilizar eventuais requisitos que se mostrem excessivamente onerosos, sem sacrificar o controle da efetiva destinao dos recursos.

    71. Considero que esse conjunto de medidas deve compor a agenda mnima de discusso em torno de uma nova poltica prisional. A quase totalidade das medidas enunciadas acima no original. Muitas delas fazem parte de um consenso entre os rgos especializados e entidades da sociedade civil, nacionais e internacionais, dedicados ao tema. Algumas correspondem a projetos relevantes e de conhecimento pblico, j iniciados ou que ainda necessitam sair do papel. E outras tantas no representam nada mais do que o efetivo cumprimento da lei. O elenco no corresponde, porm, a uma proposta de reforma. Constitui antes um convite a que as instncias envolvidas reflitam sobre os possveis caminhos a serem trilhados, de modo a cumprir os

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    mandamentos constitucionais que impem a garantia dignidade humana dos presos.

    72. Independentemente das medidas a serem adotadas, para que uma ampla reforma seja possvel, preciso, primeiro, que cada um dos poderes e instituies envolvidos reconhea a gravidade da situao e suas responsabilidades em seu enfrentamento, abandonando a inrcia que caracterizou a poltica penitenciria por tantas dcadas. fundamental, ainda, que as instituies relacionadas ao sistema prisional assumam, cada uma, a sua parcela de culpa e empreendam um esforo conjunto e cooperativo no sentido de garantir aos presos os direitos mais bsicos que lhes so assegurados pela Constituio.

    73. Nesse processo, entendo que a jurisdio constitucional no pode desempenhar o papel de mero expectador. Ao contrrio, o quadro crnico de omisso e descaso com a populao carcerria exige que este Supremo Tribunal Federal assuma uma postura ativa na construo de solues para a crise prisional, impulsionando o processo de superao do atual estado de inconstitucionalidade que envolve a poltica prisional no pas. Sua interveno estaria plenamente justificada na hiptese, porque se daria para proteger e promover os direitos fundamentais de uma minoria que, alm de impopular e estigmatizada, no tem voto. Faltam, assim, incentivos para que as instncias representativas promovam a melhoria das condies carcerrias.

    74. luz dessas consideraes, passo a analisar o recurso extraordinrio.

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    IV. A SOLUO DO CASO CONCRETO

    IV.1 H RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR CONDIES DESUMANAS DE ENCARCERAMENTO

    75. Como referido inicialmente, o presente recurso extraordinrio discute duas questes fundamentais: (i) a existncia de responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados aos presos em decorrncia da superlotao e do encarceramento em condies desumanas ou degradantes, e (ii) a possibilidade de invocao da clusula da reserva do possvel para afastar a obrigao do Estado de indenizar os danos produzidos nessas circunstncias.

    76. O sistema de responsabilidade civil tem sua fonte primria na Constituio Federal. Em linha com a centralidade da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional, a Carta de 88 assegura a ampla indenizao pelos danos materiais ou morais decorrentes de violaes a uma ampla gama de interesses existenciais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5, V e X, CF). Como observou Maria Celina Bodin de Moraes, a dignidade humana e os danos morais correspondem a duas faces de uma moeda38. A causa do dano moral nada mais do que a leso dignidade, de modo que quando a dignidade ofendida, h que se reparar o dano injusto sofrido39.

    77. No caso em exame, a violao dignidade humana e os danos morais suportados pelo recorrente so incontroversos. Nos autos, h relatrio da Vigilncia Sanitria do Municpio (fls. 50/52), documento do Departamento Penitencirio Nacional (fls. 247/248) e Decreto editado pelo Governador do Estado de Mato Grosso do Sul (fls. 442/443) que comprovam a situao alarmante a que so submetidos o recorrente e outros detentos que cumprem pena no presdio de Corumb, causada

    38 Maria Celina Bodin de Moraes, Danos Pessoa Humana: uma leitura civil-

    constitucional dos danos morais, 2007.

    39 Ibid, p. 326.

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    pela superlotao e por problemas estruturais, como a ausncia de condies mnimas de higiene e habitabilidade e de espao nas celas. A violao a direitos fundamentais do recorrente igualmente reconhecida em todas as decises proferidas no processo, mesmo naquelas que afastaram o dever estatal de indenizar. Nesse sentido, o acrdo recorrido reconhece expressamente que [n]o h dvidas quanto superpopulao carcerria e as precrias condies a que so submetidos os reclusos (fls. 405).

    78. Diante do retrato do sistema carcerrio brasileiro, revelado acima, parece tambm incontroverso que a situao de parcela considervel dos presos no pas, mantidos em celas superlotadas, insalubres e em condies degradantes, atinge radicalmente a sua dignidade. , assim, causadora de um dano moral. No entanto, como a tese aqui firmada ser dotada de repercusso geral, julgo importante registrar que os danos morais devem ser efetivamente comprovados para que sejam indenizveis. Para esse fim, no bastam afirmaes genricas a respeito da crise do sistema prisional no pas.

    79. O dano moral deve ser demonstrado a partir de elementos concretos da realidade do detento, tais como o espao fsico individual disponvel na cela, a salubridade do ambiente, as condies estruturais do presdio e as deficincias na prestao das assistncias material, de sade, laboral e educacional40. At mesmo porque, embora constituam minoria,

    40 No Brasil, a LEP prev que o condenado ser alojado em cela individual que conter

    dormitrio, aparelho sanitrio e lavatrio e que deve ter a) ambiente salubre pela

    concorrncia dos fatores de aerao, insolao e condicionamento trmico adequado

    existncia humana; e b) rea mnima de 6,00m2. No entanto, ainda no foram identificados

    critrios objetivos para que se possa avaliar quando a pena passa a ser ilegtima luz da

    dignidade humana. diferena da jurisprudncia da Corte Europeia, no h definio a

    respeito do espao individual mnimo na cela ou das condies de salubridade e higiene que

    constituem condies indignas. A falta de parmetros no contexto nacional pode ser suprida,

    ainda que parcialmente, pela adoo dos critrios de insalubridade previstos na legislao

    trabalhista e pelas normativas do CNPCP sobre arquitetura prisional. A ttulo de exemplo, a

    Norma Regulamentadora 15, do Ministrio do Trabalho e Emprego, traz definio sobre o

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    h vrios estabelecimentos no pas que apresentam condies dignas de encarceramento. De acordo com a CPI do Sistema Carcerrio, esse o caso, por exemplo, das APACs de Minas Gerais, do presdio feminino Ana Maria do Couto May, em Mato Grosso, e do presdio da Papuda, em Braslia, consideradas as melhores unidades prisionais do pas. Tambm o caso dos presdios federais, que recebem os lderes de organizaes criminosas e outros presos de alta periculosidade. Da exigir-se a efetiva prova do dano, sem a qual sequer h o que indenizar.

    80. Fixada a premissa de que o encarceramento em condies degradantes causa um dano moral ao preso, passo a enfrentar as duas questes suscitadas no processo.

    i) H responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados aos presos em decorrncia de condies degradantes e superlotao?

    81. A primeira questo formulada diz respeito existncia de responsabilidade do Estado pela reparao dos danos morais causados em decorrncia da superlotao e de condies de encarceramento incompatveis com o respeito dignidade humana.

    82. Tradicionalmente, o sistema de responsabilidade civil funda-se em trs pressupostos: o dano, a culpa e o nexo causal. Amparada pela teoria do risco administrativo, a Constituio de 1988, em seu art. 37, 6, afastou o elemento da culpa para a configurao do dever ressarcitrio do Estado por danos que seus agentes causarem a terceiros. Nessa hiptese, basta a comprovao do dano e do nexo de causalidade com a conduta estatal para que seja deflagrada a responsabilizao do ente pblico.

    83. No caso em exame, as respostas fornecidas pelas partes so

    que se considera atividade insalubre em seus graus mnimo, mdio e mximo. De forma

    semelhante, a Resoluo CNPCP n 9/2011 define as dimenses mnimas para celas coletivas

    para projetos de arquitetura penal.

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    diametralmente opostas quanto a essa primeira questo, porque concebem de maneira diversa a responsabilidade civil no caso de omisso estatal. O recorrente sustenta que o art. 37, 6, da Constituio abrange tanto condutas comissivas quanto omissivas do Estado, de modo que a responsabilidade estatal no caso seria objetiva, prescindindo da demonstrao da culpa para que se configure o dever de indenizar. J o recorrido argumenta que a responsabilidade que lhe imputada tem natureza subjetiva, porque referido dispositivo constitucional somente abarcaria atos comissivos. Assim, como as violaes aos direitos dos presos decorreriam de omisses, seria preciso comprovar a negligncia do poder pblico, o que, segundo afirma, no teria sido demonstrado no processo.

    84. Diferentemente do que alegam as partes, entendo que, na hiptese em exame, a responsabilidade civil do poder pblico por ao, e no por omisso. Afinal, o Estado, ciente das pssimas condies de deteno, envia pessoas a crceres superlotados e insalubres. Ainda que assim no fosse, a definio da natureza da responsabilidade civil no caso deve considerar a particularidade de que os presos encontram-se sob a custdia do Estado. Nessa situao, esto inseridos em uma instituio total, na qual se submetem inteiramente ao controle do poder pblico e dependem de agentes estatais para quase todos os aspectos de sua vida, inclusive para o atendimento de suas necessidades mais bsicas e para sua autoproteo. Como contrapartida, o Estado assume uma posio especial de garante em relao aos presos, circunstncia que lhe confere deveres especficos de vigilncia e de proteo de todos os direitos dos internos que no foram afetados pela privao de liberdade, em especial sua integridade fsica e psquica, sua sade e sua vida41.

    85. Em razo desta posio de garante, o Estado sujeita-se a uma responsabilidade diferenciada, de carter eminentemente objetivo, que decorre da existncia de um dever individualizado de velar pela

    41 V. Comisin Interamericana de Derechos Humanos, Informe sobre los Derechos

    Humanos de las Personas Privadas de Libertad en las Amricas, 2011, OEA.

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    integridade dos presos (art. 5, V e X, CF). Nessa hiptese, ainda que o dano moral causado decorra de uma omisso estatal, tratando-se do descumprimento do dever constitucional de guarda, o poder pblico obrigado a repar-lo.

    86. Trata-se de entendimento que possui amplo respaldo na jurisprudncia deste Supremo Tribunal Federal. Sensvel particular vulnerabilidade e sujeio daqueles que esto sob custdia estatal, esta Corte tem afirmado que o Estado tem o dever de indenizar os danos causados integridade fsica e psquica dessas pessoas, ainda quando demonstrada a ausncia de culpa dos agentes pblicos. A ttulo exemplificativo, a responsabilidade objetiva do Estado foi reconhecida nos casos de dano causado a aluno por outro aluno em escola da rede pblica (RE 109.615), de morte de detento por colegas de carceragem (RE 272.839), de leses corporais sofridas por menores internados em centro socioeducativo em decorrncia de incndio (ARE 669001) e de suicdio de detento (ARE 700.927).

    87. Por esses motivos, considero que o Estado objetivamente responsvel pela reparao dos danos morais causados ao recorrente em decorrncia do encarceramento em condies de indignidade. Portanto, comprovado o dano moral e estabelecido o nexo de causalidade entre a insuficincia das polticas pblicas prisionais adotadas e a violao dignidade do recorrente, surge o dever de indenizar.

    ii) possvel afastar a responsabilidade civil do Estado pela aplicao da teoria da reserva do possvel?

    88. preciso, ainda, enfrentar uma segunda questo concernente possibilidade de se invocar a clusula da reserva do possvel para afastar a obrigao do poder pblico de indenizar os danos causados ao recorrente.

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    89. O Estado de Mato Grosso do Sul alega que a pretenso do recorrente de obter reparao do poder pblico pelas condies adversas de encarceramento encontraria bice na teoria da reserva do possvel. Segundo ele, as atuais condies carcerrias e a superlotao seriam o reflexo da incapacidade material do Estado de destinar mais recursos para a melhoria das condies do sistema penitencirio. Nesse sentido, conclui que no pode ser responsabilizado diante de uma opo poltica legtima levada a cabo pelos representantes eleitos na elaborao da lei oramentria, no sentido de priorizar a destinao de recursos para outras demandas sociais.

    90. No caso em questo, j seria suficiente para afastar a incidncia da clusula da reserva do possvel o fato de que o Estado no se desincumbiu do nus da prova da insuficincia de recursos para custear a indenizao assegurada ao preso. Na verdade, o recorrido limitou-se a argumentar, de forma genrica, que no h disponibilidade oramentria para garantir melhor tratamento aos presos. O Estado no trouxe nenhum elemento capaz de demonstrar que no teria capacidade financeira para o pagamento da indenizao pecuniria ao recorrente, fixada no valor de R$ 2 mil, ou para conceder o mesmo direito aos presos que se encontrem na mesma situao. No se pode, porm, admitir a invocao da clusula da reserva do possvel como argumento meramente retrico, de modo a permitir que o poder pblico se exima de seus deveres legais, inclusive de reparao dos danos por ele causados.

    91. H outras trs razes que revelam a improcedncia do argumento de aplicao desta teoria no caso. A primeira se relaciona ao fato de a responsabilidade civil submeter-se a uma lgica particular, que se afasta da lgica tradicional de aplicao da reserva do possvel. A clusula comumente invocada como limite efetivao de direitos sociais de carter prestacional. Isso se deve ao fato de que a concretizao desses direitos se d por meio de um processo gradual que envolve gastos pblicos considerveis, de modo que, em um contexto de escassez

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    de recursos, o Estado deve adotar polticas pblicas e eleger critrios para a alocao desses recursos. Deve realizar escolhas trgicas: investir em um determinado setor sempre implica deixar de investir em outros. Trata-se, portanto, de uma lgica de justia distributiva. Por sua vez, no campo da responsabilidade civil impera um racional diverso, fundado na realizao da justia comutativa ou corretiva. O que se busca com a reparao civil no a distribuio de bens sociais, mas o restabelecimento de um estado ou equilbrio anterior rompido pela conduta danosa. Exige-se, assim, uma relao de equivalncia entre o dano sofrido e a reparao atribuda.

    92. No se ignora que todos os direitos, inclusive os individuais, tm custos42. No entanto, ainda que as limitaes financeiras no sejam de todo estranhas responsabilizao civil, no faz sentido impor consideraes estritamente distributivas nesse campo, afastando a lgica comutativa que lhe inerente. Isso, por bvio, equivaleria a desvirtuar o instituto e criar um regime de irresponsabilidade civil, em que a todo tempo o Estado alegaria a escassez de recursos para se isentar do dever de reparar os danos causados populao. E mais, o mesmo raciocnio legitimaria a invocao da reserva do possvel em casos como o de repetio de indbito tributrio ou de desapropriao de terras, do que evidentemente no se cogita.

    93. O dever de indenizar os danos causados , porm, norma constitucional de aplicabilidade direta e imediata, que independe da execuo de polticas pblicas ou de qualquer outra providncia estatal para sua efetivao. por isso que a teoria da reserva do possvel deve ter uma aplicao restrita no mbito da responsabilidade civil do Estado. Em regra, o reconhecimento da escassez de recursos no deve conduzir improcedncia do pedido, mas deve atuar como vetor interpretativo, a aconselhar aos juzes a devida parcimnia na fixao do montante indenizatrio a ser suportado pelo ente pblico. Apenas em situaes muito excepcionais, em que a prestao exigida for irrazovel e o ente

    42 Stephen Holmes; Cass Sunstein, The Cost of Rights, 1999.

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    pblico comprovadamente no tenha meios para custe-la, poder servir para afastar o direito indenizao. No se tratando dessas situaes, o Estado deve prover os recursos financeiros para a satisfao da indenizao por meio da expedio de precatrios (art. 100, CF) ou das requisies de pequeno valor, conforme o caso.

    94. A segunda razo, por sua vez, est relacionada impossibilidade de emprego da teoria da reserva do possvel nos casos em que isso serve como meio de anular direitos fundamentais conferidos pela Constituio, tal como ocorre em relao aos presos. Conforme j foi reconhecido por este STF, em deciso monocrtica proferida pelo Ministro Celso de Mello na ADPF n 45, referida clusula no pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigaes constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificao ou, at mesmo, aniquilao de direitos constitucionais impregnados de um sentido essencial de fundamentalidade. A recusa dos tribunais em reconhecer aos presos o direito indenizao dos danos morais sofridos esbarra justamente nesse limite. A excluso da responsabilidade do Estado implica negar a uma minoria estigmatizada a prpria titularidade de direitos, em afronta ao princpio da dignidade da pessoa humana.

    95. Nesse sentido, sintomtico que o Judicirio brasileiro conceda amplamente indenizaes em situaes de menor afronta dignidade, como o cancelamento injustificado de voos, a devoluo indevida de cheque e a inscrio indevida em cadastro de inadimplentes, mas as negue a detentos muitas vezes tratados como lixo humano nas prises43. Como sugere Ana Paula de Barcellos, a explicao para esta situao est no fato de a sociedade brasileira no ter incorporado a noo de dignidade como um atributo inerente ao ser humano, mas como um atributo que pode ou no lhe ser reconhecido, dependendo do que o indivduo faz ou deixa

    43 STJ, REsp 740968, Smula 388 e REsp 1105974, respectivamente. Valores previstos

    em tabela divulgada no site do STJ. Disponvel em: .

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    de fazer44. No entanto, tal concepo desigualitria no encontra lugar na atual ordem constitucional brasileira. Como j afirmei, a dignidade humana possui em seu ncleo essencial o valor intrnseco de cada pessoa, valor esse que independe de qualquer evento ou experincia e, portanto, no pode ser perdido mesmo diante do comportamento mais reprovvel45.

    96. A terceira e ltima razo para afastar a aplicao da reserva do possvel se liga justamente ao valor intrnseco dos seres humanos. Dele decorre um postulado antiutilitarista, que se manifesta no imperativo categrico kantiano do homem como um fim em si mesmo, e no como meio para a realizao de metas coletivas ou projetos pessoais de outros. Esse postulado impede que preocupaes com a sade financeira dos Estados possam ser utilizadas para negar aos presos a compensao pelos danos morais, ao argumento de que os recursos deveriam ser destinados reforma do sistema prisional.

    97. A soluo de determinar aos presos que suportem, sem qualquer indenizao, os danos causados pelo Estado, enquanto este supostamente adota providncias para a soluo do problema, equivale adoo de uma concepo utilitarista, permitindo a instrumentalizao do preso para a execuo de polticas pblicas, o que incompatvel com a dignidade humana. Mais do que isso, no conceder a reparao por danos morais aos presos no confere nenhuma garantia de que os recursos economizados sero empregados na melhoria das condies carcerrias. Pelo contrrio, a excluso da responsabilidade civil no caso agiria como mais um estmulo para que tudo continue como est, j que as violaes aos direitos dos presos permaneceriam impunes.

    98. Por fim, devo dizer que no ignoro a situao ultrajante

    44 Ana Paula de Barcellos, Violncia urbana, condies das prises e dignidade

    humana, In Revista de Direito Administrativo, n. 254, pp. 39-65.

    45 V. Lus Roberto Barroso, Aqui, l e em todo lugar: A dignidade humana no direito

    contemporneo e no discurso transnacional. In Revista dos Tribunais, Ano 100, v.. 919, 2012.

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  • RE 580252 / MS

    das vtimas de crimes e de seus herdeiros, que muitas vezes tm sua vida e sua famlia destrudas e raramente so indenizadas pelos danos materiais e morais que suportaram. O sofrimento dessas pessoas uma situao da maior gravidade, que deve ser levado em considerao pelo Direito. No entanto, os crimes cometidos pelos presos no conferem ao Estado a prerrogativa de trat-los como menos que gente. A pena admitida pela lei e pela Constituio a de privao da liberdade, e no a de perda da dignidade.

    99. Por tudo o que foi exposto, concluo que o Estado responsvel por indenizar os danos morais causados ao recorrente, sendo indevida a aplicao da clusula da reserva do poss