imigração e violação dos direitos humanos na mídia

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 10 a 17 de setembro de 2014 | Reportagem | 13 12 | Reportagem | 10 a 17 de setembro de 2014 | www.arquidiocesedesaopaulo.org.br “Minha vida não foi a mesma desde 2001. Antes disso, era normal, filhos, trabalho e casa, amigos”, contou Angelica Lozano, 39, natural de Cartagena, na Colômbia, que mora no Brasil desde fevereiro de 2011. Antes de chegar ao País, mais especificamente a Ma- naus, capital da Amazônia, ela passou por muitas cidades da Colômbia, perseguida pe- los paramilitares. Um relatório da Anistia Internacional, publicado em 2012, afirmou que “apesar de sua suposta desmobilizaão, os grupos pa- ramilitares, rotulados pelo governo como “bandos criminosos” foram responsveis por graves violaes dos direitos humanos, como homicídios, desaparecimentos forados e operaes de ‘limpeza social’ em reas urbanas carentes. Algumas dessas violaes foram co- metidas com a conivncia ou com o consen- timento das foras de segurana. Suas vítimas eram principalmente sindicalistas, defensores dos direitos humanos e líderes comunitrios, assim como representantes de grupos indígenas ou comunidades afrodescendentes e camponesas”. Desplazada dentro do próprio País, ou seja, tirada à fora de l, Angelica comeou a tra- ar o caminho percorrido por muitos colom- bianos, bolivianos, peruanos, paraguaios, mas também por africanos, sírios, haitianos: a es- trada promissora e difícil da migraão. “Desde 2011, minha vida mudou, primeiro porque me Imigração e violação dos direitos humanos: um capítulo que não merece reprise A versão final do Anteprojeto de Lei de Mi- graes foi entregue no Ministério da Justia (MJ) na sexta-feira, 29 de agosto. O documento foi elaborado por uma comissão de especialis- tas do MJ e apresentado, depois de vrias dis- cusses e audincias públicas, numa coletiva de imprensa no dia 26 de agosto no auditório da Missão Paz, no Glicério. A instituião mantém a Casa do Migrante que hospeda imigrantes de diferentes lugares do mundo. Desatualizado, o chamado “Estatuto do Es- trangeiro” é um dos dificultadores para que o País estabelea políticas públicas para acolhida e enca- minhamento dos imigrantes no Brasil. O Estatuto, de 1980, foi escrito antes da Constituião de 1988 e não prev, por exemplo, que imigrantes votem no país onde residem. Leonir Chiarello, diretor executivo da Rede In- ternacional de Migraão Scalabrini, afirmou que “o tema principal a ser discutivo é a governana das migraes que envolvem violncia e proteão. Ainda que o desemprego não esteja resolvido no País tem-se oferecido oportunidades de trabalho para países com situaes ainda piores. O Brasil é visto como um destino de possibilidades. É impor- tante que as instâncias de governo possam dialogar com a sociedade civil para pensar essas políticas”. Jorge Peraza, da Organizaão Internacional para as Migraes (OIM) também enfatizou que o propósito é refletir sobre o potencial papel da sociedade civil para contribuir com o desenvol- vimento da renda em sentido regional, nacional e global. “Destacar os aspectos positivos dos pro- cessos migratórios e contribuir para as pessoas que vivem esses processos. É necessria a articu- laão da sociedade civil para que haja aes mais efetivas. direitos humanos e livre mobilidade”, disse. “Os imigrantes não existem: se voc não vota, voc não importa, então, voc não conta, sua opi- nião não tem valor, o demais é só papo”, expres- sou Angelica, que quando chegou ao Brasil, não recebeu nenhum tipo de auxílio do governo. Na fronteira, ela foi encaminhada pela Critas e pelo Alto Comissrio das Naes Unidas para Refugia- dos (Acnur). “Fui para um albergue. Meus filhos estavam muito nervosos e a filha mais velha não queria fi- car. Tinha pessoas de todos os estados sociais, sa- ídas da cadeia, doentes, moradores de rua, entre outros. Todos dormiam em dois quartos enormes, com muitos beliches. Minha filha chorou por ho- ras e depois se acalmou, graas à ajuda da assis- tente social do albergue. Foi muito traumtico e triste no comeo, depois as pessoas viraram nossos amigos e sempre estavam se preocupando com a gente”, lembrou, emocionada. Ela recebeu auxílio de uma congregaão das ir- mãs scalabrinianas quando procurou ajuda deses- perada na Igreja dos Remédios, local de referncia para os imigrantes em Manaus. Depois, com insis- tncia, Angelica conseguiu uma vaga de estagiria na Critas e hoje é membro da coordenaão do SPM na capital amazonense. “Meu maior sonho é ter minha própria casa para mim e meus filhos, poder ficar num só lugar que seja meu, em que eu me sinta em casa.” A deficiência das leis e das políticas públicas “Vieram para tirar nosso trabalho”, “Temos que ajud-los, coitados” ou expresses seme- lhantes são utilizadas em Curitiba (PR) para as pessoas que chegam à cidade e procuram traba- lho ou algum tipo de auxílio. J no Vale do Je- quitinhonha, região nordeste de Minas Gerais, os trabalhadores migrantes são conhecidos, por exemplo, por cortadores de cana, ‘boia-fria’, e as mulheres de migrantes como ‘viúvas de maridos vivos’. Os relatos são de Elizeste Santana e Cleia de Ftima Silva, ambas do Servio Pastoral dos Migrantes (SPM) Nacional. Os termos para designar as situaes de migraão interna, imigraão, refúgio, asilo ou aptrida são muitas vezes confusos e causam desconforto e problemas de discriminaão e ex- clusão. Grupos que trabalham com migrantes em todo o Brasil, em entrevista à reportagem, constataram que os enfoques dados, tanto pelas grandes redes de comunicaão quanto as locais, são superficiais e, em alguns casos, expe vises restritas e estereotipadas. Maria das Graas Ferreira, professora e membro do SPM no Piauí, explicou que a mí- dia local ocasionalmente fala do migrante. “Po- rém, quando é provocada a falar, nem sempre d nfase ao grande problema da migraão for- ada que permeia todo o Estado do Piauí.” No Amazonas, Valdecir Mayer, missionrio scala- brianiano disse que a imprensa assume papéis diferentes, “ora apoia e conscientiza a populaão para ser solidria, ora fala como se os migrantes fossem trazer problemas de desemprego, saúde e violncia”. Para Mario Geremia, também missionrio scalabriniano no Rio de Janeiro, “a grande mí- dia utiliza a mesma linguagem em todos os lu- gares porque tem sua própria ideologia xenófo- ba e sensacionalista. Ao mesmo tempo em que apoia e fala bem da migraão seletiva de mais ou menos 70 mil novos imigrantes que são in- corporados ao mercado de trabalho qualificado, ela anuncia e divulga como invasão, os pequenos grupos de haitianos, bengaleses, africanos que estão fugindo da fome e da guerra para buscar vida digna aqui no Brasil”. Mrio afirmou que existe um discurso xe- nófobo que faz relaão com a eugenia racial e o medo de contaminaão. “Com a imigraão espontânea e forada por causas econômicas, naturais, políticas e sociais, a mídia é dura, xenó- foba, sensacionalista e atrasada, pois não percebe a riqueza do diferente e muito menos o aporte que os imigrantes sempre deram e estão dando ao Brasil em todas as dimenses.” A reportagem ouviu também agentes do SPM de Goías, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo. Todos foram unânimes em afirmar que o migrante em geral é retratado como um número e, na maioria das vezes não h informaes mais aprofundadas que superem os estereótipos. Denise Cogo, Maria Badet e um grupo de mais 18 pesquisadores elaboraram o “Guia das Migraes Transnacionais e Diversidade Cultu- ral para Comunicadores – Migrantes no Brasil”, publicado em 2013 pela Universitat Autonoma de Barcelona e pelo Instituto Humanitas Unisi- nos. O Guia orienta os comunicadores e oferece ferramentas de pesquisa. Sobre a situaão dos haitianos, por exemplo, ele recomenda “explicar o contexto em que ocorre o aumento dos fluxos migratórios. Informar que os haitianos não estão no Brasil na condião de refugiados, mas que re- ceberam vistos humanitrios, e produzir repor- tagens que ajudem os brasileiros a conhecer mais a sociedade e a cultura haitiana”. Angelica contou que, muitas vezes, j se sentiu discriminada assistindo algum noticirio na tele- visão brasileira sobre migraão. “Essa sensaão est em toda parte, nos avisos, nas propagandas: “só para brasileiros”, por exemplo. Como refugia- dos, temos os mesmos direitos, mas parece que sempre seremos estrangeiros e nunca imigran- tes. Eu j passei por coisas parecidas, só que eu simplesmente ignorava. Vrios colegas de traba- lho me subestimaram quando eu cheguei, era a ‘coitada’ para eles. E não me contratavam porque diziam que tinham muitos brasileiros precisando de trabalho e que eu, por ser imigrante, não tinha direito. Mas, depois de um tempo, voc só vive ig- nora comentrios e faz valer a pena morar em ou- tro lugar. Fui também agredida psicologicamente com o idioma. Todo mundo ri às suas costas por- que voc não pronuncia as palavras certas, mas eu não me importo, eu consigo rir também.” O que se fala dos migrantes por aí? ZOOM SOBRE A MÍDIA, QUE, A SERVIÇO DO MEDO, PODE REFORÇAR ESTEREÓTIPOS E INCENTIVAR A XENOFOBIA NAYÁ FERNANDES [email protected] casei; segundo, comecei a trabalhar como ad- ministradora dos negócios do meu esposo e foi ali que aconteceram vrios incidentes na Co- lômbia. Os paramilitares achavam que tínha- mos muito dinheiro e que devíamos ajud-los. Como eu me neguei, comearam a chantagear e ameaar a minha família”, explicou a colom- biana que, após mudar vrias vezes dentro do próprio País, atravessou a fronteira nacional. Como acontece em alguns bairros das peri- ferias brasileiras, também na Colômbia existe um servio de proteão paralelo, l, chamado de vacina. “Os comerciantes que moram em estados onde os paramilitares tm suas foras ilegais, recebem proteão em troca de dinhei- ro. Essa segurana é para os comerciantes não serem assaltados ou, se acontecer, por grupos diferentes, eles mesmos solucionam a situaão.” O relatório do escritório do Alto Comissaria- do das Naes Unidas para os Direitos Huma- nos (ACNUDH) sobre a Colômbia, publicado em janeiro de 2012, reconheceu que “impor- tantes iniciativas legislativas e de políticas públicas foram empreendidas e violaes dos direitos humanos foram condenadas pelas au- toridades públicas”. Porém, o relatório reconhe- ceu também que “tais esforos ainda terão de alcanar os objetivos esperados em nível local”. O mesmo relatório notou ainda que “um número significativo de violaes dos direitos humanos e do direito internacional humanitrio continua sendo cometido, sobretudo por gru- pos armados ilegais, mas também, supostamen- te, por agentes do Estado” e que essa situaão estava provocando “sérias consequncias humanitrias para os civis”. Angélica, porém, decidiu denunciar e viveu o quase sequestro de uma das filhas. “Come- cei a fazer parte da comunidade de desplaza- dos pela violncia. Foi quando decidi sair da Colômbia.” Ela enfrentou vrios maltratos psicológicos por causa das ameaas dos para- militares que tentavam levar seus filhos ou até mesmo mat-los. “Passei um tempo na fronteira do Amazonas e decidi vir ao Brasil.” Assim, com os trs filhos, Jaime, 7, Maria, 13, e Dina, 17, Angelica viajou quatro dias de barco. “Eles nunca haviam viajado em navio. Foi muito confuso, entre tristezas e ale- grias, desesperanas e novas iluses”, desabafou. Entender os fluxos migratórios no Brasil é uma tarefa que exige tempo e uma escuta atenta. Tarefa essa que a mídia brasileira nem sempre tem colaborado a executar. A chega- da de um grande número de haitianos em São Paulo, por exemplo, vindos do estado do Acre, foi noticiada por alguns meios como “invasão” e, se por um lado, mobilizou a populaão para doaes, por outro, causou na populaão uma situaão de desconforto e medo. Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

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O que a mídia brasileira fala sobre os imigrantes e, como colaboram ou não para a integração entre culturas e modos de ser diferentes. Angélica, colombiana que mora em Manaus, contou sua história e como, muitas vezes, passou por situações de discriminação e descaso.

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Page 1: Imigração e violação dos direitos humanos na mídia

www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 10 a 17 de setembro de 2014 | Reportagem | 1312 | Reportagem | 10 a 17 de setembro de 2014 | www.arquidiocesedesaopaulo.org.br

“Minha vida não foi a mesma desde 2001. Antes disso, era normal, filhos, trabalho e casa, amigos”, contou Angelica Lozano, 39, natural de Cartagena, na Colômbia, que mora no Brasil desde fevereiro de 2011. Antes de chegar ao País, mais especificamente a Ma-naus, capital da Amazônia, ela passou por muitas cidades da Colômbia, perseguida pe-los paramilitares.

Um relatório da Anistia Internacional, publicado em 2012, afirmou que “apesar de sua suposta desmobilizacão, os grupos pa-ramilitares, rotulados pelo governo como “bandos criminosos” foram responsaveis por graves violacoes dos direitos humanos, como homicídios, desaparecimentos forcados e operacoes de ‘limpeza social’ em areas urbanas carentes. Algumas dessas violacoes foram co-metidas com a conivencia ou com o consen-timento das forcas de seguranca. Suas vítimas eram principalmente sindicalistas, defensores dos direitos humanos e líderes comunitarios, assim como representantes de grupos indígenas ou comunidades afrodescendentes e camponesas”.

Desplazada dentro do próprio País, ou seja, tirada à forca de la, Angelica comecou a tra-car o caminho percorrido por muitos colom-bianos, bolivianos, peruanos, paraguaios, mas também por africanos, sírios, haitianos: a es-trada promissora e difícil da migracão. “Desde 2011, minha vida mudou, primeiro porque me

Imigração e violação dos direitos humanos: um capítulo que não merece reprise

A versão final do Anteprojeto de Lei de Mi-gracoes foi entregue no Ministério da Justica (MJ) na sexta-feira, 29 de agosto. O documento foi elaborado por uma comissão de especialis-tas do MJ e apresentado, depois de varias dis-cussoes e audiencias públicas, numa coletiva de imprensa no dia 26 de agosto no auditório da Missão Paz, no Glicério. A instituicão mantém a Casa do Migrante que hospeda imigrantes de diferentes lugares do mundo.

Desatualizado, o chamado “Estatuto do Es-trangeiro” é um dos dificultadores para que o País estabeleca políticas públicas para acolhida e enca-minhamento dos imigrantes no Brasil. O Estatuto, de 1980, foi escrito antes da Constituicão de 1988 e não preve, por exemplo, que imigrantes votem no país onde residem.

Leonir Chiarello, diretor executivo da Rede In-ternacional de Migracão Scalabrini, afirmou que “o tema principal a ser discutivo é a governanca das migracoes que envolvem violencia e protecão. Ainda que o desemprego não esteja resolvido no País tem-se oferecido oportunidades de trabalho para países com situacoes ainda piores. O Brasil é visto como um destino de possibilidades. É impor-tante que as instâncias de governo possam dialogar com a sociedade civil para pensar essas políticas”.

Jorge Peraza, da Organizacão Internacional para as Migracoes (OIM) também enfatizou que o propósito é refletir sobre o potencial papel da sociedade civil para contribuir com o desenvol-vimento da renda em sentido regional, nacional e global. “Destacar os aspectos positivos dos pro-cessos migratórios e contribuir para as pessoas que vivem esses processos. É necessaria a articu-lacão da sociedade civil para que haja acoes mais efetivas. direitos humanos e livre mobilidade”, disse.

“Os imigrantes não existem: se voce não vota, voce não importa, então, voce não conta, sua opi-nião não tem valor, o demais é só papo”, expres-sou Angelica, que quando chegou ao Brasil, não recebeu nenhum tipo de auxílio do governo. Na fronteira, ela foi encaminhada pela Caritas e pelo Alto Comissario das Nacoes Unidas para Refugia-dos (Acnur).

“Fui para um albergue. Meus filhos estavam muito nervosos e a filha mais velha não queria fi-car. Tinha pessoas de todos os estados sociais, sa-ídas da cadeia, doentes, moradores de rua, entre outros. Todos dormiam em dois quartos enormes, com muitos beliches. Minha filha chorou por ho-ras e depois se acalmou, gracas à ajuda da assis-tente social do albergue. Foi muito traumatico e triste no comeco, depois as pessoas viraram nossos amigos e sempre estavam se preocupando com a gente”, lembrou, emocionada.

Ela recebeu auxílio de uma congregacão das ir-mãs scalabrinianas quando procurou ajuda deses-perada na Igreja dos Remédios, local de referencia para os imigrantes em Manaus. Depois, com insis-tencia, Angelica conseguiu uma vaga de estagiaria na Caritas e hoje é membro da coordenacão do SPM na capital amazonense. “Meu maior sonho é ter minha própria casa para mim e meus filhos, poder ficar num só lugar que seja meu, em que eu me sinta em casa.”

A deficiência das leis e das políticas públicas

“Vieram para tirar nosso trabalho”, “Temos que ajuda-los, coitados” ou expressoes seme-lhantes são utilizadas em Curitiba (PR) para as pessoas que chegam à cidade e procuram traba-lho ou algum tipo de auxílio. Ja no Vale do Je-quitinhonha, região nordeste de Minas Gerais, os trabalhadores migrantes são conhecidos, por exemplo, por cortadores de cana, ‘boia-fria’, e as mulheres de migrantes como ‘viúvas de maridos vivos’. Os relatos são de Elizeste Santana e Cleia de Fatima Silva, ambas do Servico Pastoral dos Migrantes (SPM) Nacional.

Os termos para designar as situacoes de migracão interna, imigracão, refúgio, asilo ou apatrida são muitas vezes confusos e causam desconforto e problemas de discriminacão e ex-

clusão. Grupos que trabalham com migrantes em todo o Brasil, em entrevista à reportagem, constataram que os enfoques dados, tanto pelas grandes redes de comunicacão quanto as locais, são superficiais e, em alguns casos, expoe visoes restritas e estereotipadas.

Maria das Gracas Ferreira, professora e membro do SPM no Piauí, explicou que a mí-dia local ocasionalmente fala do migrante. “Po-rém, quando é provocada a falar, nem sempre da enfase ao grande problema da migracão for-cada que permeia todo o Estado do Piauí.” No Amazonas, Valdecir Mayer, missionario scala-brianiano disse que a imprensa assume papéis diferentes, “ora apoia e conscientiza a populacão para ser solidaria, ora fala como se os migrantes

fossem trazer problemas de desemprego, saúde e violencia”.

Para Mario Geremia, também missionario scalabriniano no Rio de Janeiro, “a grande mí-dia utiliza a mesma linguagem em todos os lu-gares porque tem sua própria ideologia xenófo-ba e sensacionalista. Ao mesmo tempo em que apoia e fala bem da migracão seletiva de mais ou menos 70 mil novos imigrantes que são in-corporados ao mercado de trabalho qualificado, ela anuncia e divulga como invasão, os pequenos grupos de haitianos, bengaleses, africanos que estão fugindo da fome e da guerra para buscar vida digna aqui no Brasil”.

Mario afirmou que existe um discurso xe-nófobo que faz relacão com a eugenia racial e

o medo de contaminacão. “Com a imigracão espontânea e forcada por causas econômicas, naturais, políticas e sociais, a mídia é dura, xenó-foba, sensacionalista e atrasada, pois não percebe a riqueza do diferente e muito menos o aporte que os imigrantes sempre deram e estão dando ao Brasil em todas as dimensoes.”

A reportagem ouviu também agentes do SPM de Goías, Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo. Todos foram unânimes em afirmar que o migrante em geral é retratado como um número e, na maioria das vezes não ha informacoes mais aprofundadas que superem os estereótipos.

Denise Cogo, Maria Badet e um grupo de mais 18 pesquisadores elaboraram o “Guia das

Migracoes Transnacionais e Diversidade Cultu-ral para Comunicadores – Migrantes no Brasil”, publicado em 2013 pela Universitat Autonoma de Barcelona e pelo Instituto Humanitas Unisi-nos. O Guia orienta os comunicadores e oferece ferramentas de pesquisa. Sobre a situacão dos haitianos, por exemplo, ele recomenda “explicar o contexto em que ocorre o aumento dos fluxos migratórios. Informar que os haitianos não estão no Brasil na condicão de refugiados, mas que re-ceberam vistos humanitarios, e produzir repor-tagens que ajudem os brasileiros a conhecer mais a sociedade e a cultura haitiana”.

Angelica contou que, muitas vezes, ja se sentiu discriminada assistindo algum noticiario na tele-visão brasileira sobre migracão. “Essa sensacão

esta em toda parte, nos avisos, nas propagandas: “só para brasileiros”, por exemplo. Como refugia-dos, temos os mesmos direitos, mas parece que sempre seremos estrangeiros e nunca imigran-tes. Eu ja passei por coisas parecidas, só que eu simplesmente ignorava. Varios colegas de traba-lho me subestimaram quando eu cheguei, era a ‘coitada’ para eles. E não me contratavam porque diziam que tinham muitos brasileiros precisando de trabalho e que eu, por ser imigrante, não tinha direito. Mas, depois de um tempo, voce só vive ig-nora comentarios e faz valer a pena morar em ou-tro lugar. Fui também agredida psicologicamente com o idioma. Todo mundo ri às suas costas por-que voce não pronuncia as palavras certas, mas eu não me importo, eu consigo rir também.”

O que se fala dos migrantes por aí?

Zoom sobre a mídia, que, a serviço do medo, pode reforçar estereótipos e incentivar a xenofobia

Nayá [email protected]

casei; segundo, comecei a trabalhar como ad-ministradora dos negócios do meu esposo e foi ali que aconteceram varios incidentes na Co-lômbia. Os paramilitares achavam que tínha-mos muito dinheiro e que devíamos ajuda-los. Como eu me neguei, comecaram a chantagear e ameacar a minha família”, explicou a colom-biana que, após mudar varias vezes dentro do próprio País, atravessou a fronteira nacional.

Como acontece em alguns bairros das peri-ferias brasileiras, também na Colômbia existe um servico de protecão paralelo, la, chamado

de vacina. “Os comerciantes que moram em estados onde os paramilitares tem suas forcas ilegais, recebem protecão em troca de dinhei-ro. Essa seguranca é para os comerciantes não serem assaltados ou, se acontecer, por grupos diferentes, eles mesmos solucionam a situacão.”

O relatório do escritório do Alto Comissaria-do das Nacoes Unidas para os Direitos Huma-nos (ACNUDH) sobre a Colômbia, publicado em janeiro de 2012, reconheceu que “impor-tantes iniciativas legislativas e de políticas públicas foram empreendidas e violacoes dos

direitos humanos foram condenadas pelas au-toridades públicas”. Porém, o relatório reconhe-ceu também que “tais esforcos ainda terão de alcancar os objetivos esperados em nível local”.

O mesmo relatório notou ainda que “um número significativo de violacoes dos direitos humanos e do direito internacional humanitario continua sendo cometido, sobretudo por gru-pos armados ilegais, mas também, supostamen-te, por agentes do Estado” e que essa situacão estava provocando “sérias consequencias humanitarias para os civis”.

Angélica, porém, decidiu denunciar e viveu o quase sequestro de uma das filhas. “Come-cei a fazer parte da comunidade de desplaza-dos pela violencia. Foi quando decidi sair da Colômbia.” Ela enfrentou varios maltratos psicológicos por causa das ameacas dos para-militares que tentavam levar seus filhos ou até mesmo mata-los.

“Passei um tempo na fronteira do Amazonas e decidi vir ao Brasil.” Assim, com os tres filhos, Jaime, 7, Maria, 13, e Dina, 17, Angelica viajou quatro dias de barco. “Eles nunca haviam viajado

em navio. Foi muito confuso, entre tristezas e ale-grias, desesperancas e novas ilusoes”, desabafou.

Entender os fluxos migratórios no Brasil é uma tarefa que exige tempo e uma escuta atenta. Tarefa essa que a mídia brasileira nem sempre tem colaborado a executar. A chega-da de um grande número de haitianos em São Paulo, por exemplo, vindos do estado do Acre, foi noticiada por alguns meios como “invasão” e, se por um lado, mobilizou a populacão para doacoes, por outro, causou na populacão uma situacão de desconforto e medo.

fotos: Luciney martins/O SÃO PAULO