hidrogeologia termal de alfama

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1 As águas de Alfama – memórias do passado da cidade de Lisboa Alfama springs – memories from the past in Lisbon Elsa Cristina Ramalho 1 e Maria Carla Lourenço 2 Resumo Este trabalho pretende dar a conhecer ou a relembrar a existência em Lisboa de um conjunto de nascentes localizadas na zona de Alfama, cujas águas, quentes, foram no século XIX qualificadas como “águas minero-medicinais” pela então Inspecção de Águas. As águas destas nascentes, entretanto totalmente seladas e abandonadas há mais de 25 anos, chegaram a ser aproveitadas em vários “balneários públicos”, que serviram durante décadas a população da cidade de Lisboa e arredores, fundamentalmente de parcos recursos. Tendo tido uma influência significativa na vida da população de Lisboa, este trabalho aborda, de uma forma simplificada, a localização geográfica das nascentes baseada na documentação histórica, que hoje desapareceram por completo, bem como as características geológicas e hidrogeológicas da zona e o modo como estas águas foram exploradas durante vários séculos. Abstract This paper aims to bring to general knowledge the existence in Lisbon of a set of warm springs located in Alfama. The water from those springs was qualified in the XIX th century as “mineral water” by the authorities. These springs, sealed and abandoned more than 25 years ago, were used in several “public baths” that worked for decades and served Lisbon population and surroundings, mainly with low resources. These waters had a significant influence in Lisbon life. This paper intends to show, in a simplified way, the geographical spring location based on historical documents, the geological and hidrogeological characteristics of the area and the way these waters were exploited for several centuries. 1. Introdução Existem registos históricos amplamente documentados da existência de nascentes na zona de Alfama, cujo caudal generoso possibilitou uma utilização diversificada, consoante o local e o tipo de emergência. No entanto, verifica-se a confrontação constante com o desconhecimento generalizado da antiga existência de “termas” na zona de Alfama, nas chamadas Alcaçarias. O interesse sempre suscitado por este assunto constituiu o ponto de partida para a elaboração deste trabalho, que pretende englobar de uma forma simples questões de índole hidrogeológica e histórica, através da sua relação com a vivência de Alfama, das suas águas e do modo como estas foram exploradas. Os registos históricos e hidrogeológicos destas nascentes, grande parte das quais com temperatura acima de 20 o C, que tiveram condições para, no final do século XIX serem qualificadas de “águas minero-medicinais” pela então Inspecção de Águas, põem a descoberto um aspecto da vida da cidade de Lisboa, hoje praticamente desconhecido. De facto, as águas de Alfama foram muito conhecidas em Lisboa, tendo sido, inclusive, objecto de concessão de exploração, ainda no século XIX, de quatro “balneários públicos”, que operaram durante algumas décadas. Além disso, a Fonte das Ratas, uma nascente localizada no Largo das Alcaçarias, atingiu uma grande popularidade na década de 60 do século passado, apesar de nunca ter sido qualificada como “água minero-medicinal” à luz da legislação então em vigor. 1 Técnica Superior do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (INETI), Estrada da Portela, Zambujal, Alfragide, Apartado 7586, 2721-866 AMADORA; e-mail: [email protected] 2 Técnica Superior do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (INETI), Estrada da Portela, Zambujal, Alfragide, Apartado 7586, 2721-866 AMADORA; e-mail: [email protected]; membro da APRH nº 1143

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A historia das aguas termais de Alfama

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As águas de Alfama – memórias do passado da cidade de Lisboa

Alfama springs – memories from the past in Lisbon

Elsa Cristina Ramalho1 e Maria Carla Lourenço2

Resumo Este trabalho pretende dar a conhecer ou a relembrar a existência em Lisboa de um conjunto de nascentes localizadas na zona de Alfama, cujas águas, quentes, foram no século XIX qualificadas como “águas minero-medicinais” pela então Inspecção de Águas. As águas destas nascentes, entretanto totalmente seladas e abandonadas há mais de 25 anos, chegaram a ser aproveitadas em vários “balneários públicos”, que serviram durante décadas a população da cidade de Lisboa e arredores, fundamentalmente de parcos recursos. Tendo tido uma influência significativa na vida da população de Lisboa, este trabalho aborda, de uma forma simplificada, a localização geográfica das nascentes baseada na documentação histórica, que hoje desapareceram por completo, bem como as características geológicas e hidrogeológicas da zona e o modo como estas águas foram exploradas durante vários séculos. Abstract This paper aims to bring to general knowledge the existence in Lisbon of a set of warm springs located in Alfama. The water from those springs was qualified in the XIXth century as “mineral water” by the authorities. These springs, sealed and abandoned more than 25 years ago, were used in several “public baths” that worked for decades and served Lisbon population and surroundings, mainly with low resources. These waters had a significant influence in Lisbon life. This paper intends to show, in a simplified way, the geographical spring location based on historical documents, the geological and hidrogeological characteristics of the area and the way these waters were exploited for several centuries. 1. Introdução Existem registos históricos amplamente documentados da existência de nascentes na zona de Alfama, cujo caudal generoso possibilitou uma utilização diversificada, consoante o local e o tipo de emergência. No entanto, verifica-se a confrontação constante com o desconhecimento generalizado da antiga existência de “termas” na zona de Alfama, nas chamadas Alcaçarias. O interesse sempre suscitado por este assunto constituiu o ponto de partida para a elaboração deste trabalho, que pretende englobar de uma forma simples questões de índole hidrogeológica e histórica, através da sua relação com a vivência de Alfama, das suas águas e do modo como estas foram exploradas. Os registos históricos e hidrogeológicos destas nascentes, grande parte das quais com temperatura acima de 20oC, que tiveram condições para, no final do século XIX serem qualificadas de “águas minero-medicinais” pela então Inspecção de Águas, põem a descoberto um aspecto da vida da cidade de Lisboa, hoje praticamente desconhecido. De facto, as águas de Alfama foram muito conhecidas em Lisboa, tendo sido, inclusive, objecto de concessão de exploração, ainda no século XIX, de quatro “balneários públicos”, que operaram durante algumas décadas. Além disso, a Fonte das Ratas, uma nascente localizada no Largo das Alcaçarias, atingiu uma grande popularidade na década de 60 do século passado, apesar de nunca ter sido qualificada como “água minero-medicinal” à luz da legislação então em vigor.

1 Técnica Superior do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (INETI), Estrada da Portela, Zambujal, Alfragide, Apartado 7586, 2721-866 AMADORA; e-mail: [email protected] 2 Técnica Superior do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (INETI), Estrada da Portela, Zambujal, Alfragide, Apartado 7586, 2721-866 AMADORA; e-mail: [email protected]; membro da APRH nº 1143

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Apesar de praticamente desconhecidas na actualidade, a sua existência é conhecida pelo menos desde os tempos árabes, nomeadamente o período romano; não existe consenso acerca da origem e do significado da palavra Alfama (Santana e Sucena, 1994), no entanto é hoje geralmente aceite que tenha a sua origem a partir da corrupção do termo árabe Alhama, que significa fonte quente (Vieira da Silva, 1987; Santana e Sucena, 1994). O significado do termo Alcaçarias também não é unânime. De acordo com Vieira da Silva (1987a), o termo árabe Alcaçarias significa “lugar onde se curte e prepara toda a qualidade de pele e courames”. Outros autores consideram que a origem do termo não está relacionada com a existência de água, mas sim com estabelecimentos comerciais. As nascentes encontram-se situadas extramuros relativamente à “Cerca Moura” de Lisboa (Vieira da Silva, 1987), pelo que Alfama era um local que só com o desaparecimento da muralha moura anexou uma parte da cidade, até à Sé (Santana e Sucena, 1994). Os mesmos autores referem que, com a conquista de Lisboa em 1147, a evacuação dos habitantes mouros da cidade intramuros e a fixação na Mouraria e na região rústica, a norte, dos que quiseram ficar, Alfama foi povoada por cristãos, e mais tarde, no século XIV, recebeu também os judeus que habitaram a Judiaria de Alfama, a qual compreenderia a Rua da Judiaria, o Largo de S. Rafael e o Beco das Barrelas. A figura 1 mostra a localização da zona de Alfama em relação à “Cerca Moura”, em gravura do século XVI.

Fig. 1 – Localização das águas de Alfama em relação à “Cerca Moura” – extracto de vista de Lisboa de obra “Vrbium præcipuarvm mvndi theatrvm qvintvm – Avtore Georgio Braunio Agrippinate” – editada na Alemanha em 1593(?), retirada de Vieira da Silva, 1987). Compreende a “Cerca Moura” e engloba a zona de Alfama. Atente-se especialmente nos números 14 (Chafariz de El-Rei), 44 (Postigo do Chafariz de El-Rei), 78 (Postigo de Alfama) e 72 (Porta do Chafariz dos Cavalos).

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2. A água A história documentada das águas de Alfama é antiga, quer em relação à sua termalidade, quer ao aproveitamento das virtudes terapêuticas que se afirmava terem. Acciaiuoli (1944) faz referência ao capítulo XII do livro de 1610 escrito por Duarte Nunes de Leão, “Descrição do Reino de Portugal”, que dizia que as Alcaçarias “serviam às mulheres de serviço para ensaboarem a roupa, por escusarem aquentar a água, a qual se se bebesse, parecia que faria algum bom efeito.” Segundo parece, esta é a primeira referência feita quer à termalidade das águas, quer a efeitos benéficos que estas produziriam. O mesmo autor indica que Frei Cláudio da Conceição, no tomo VI do Gabinete Histórico, publicado em 1820, refere alguns factos memoráveis entre os anos de 1710 e 1717, de onde se destaca, em 17 de Junho de 1716, a abertura dos banhos chamados, até então, das Alcaçarias e de aí por diante do Duque “por ser o Duque de Cadaval senhor deles”. É também nesta publicação que se faz uma primeira referência explícita às virtudes terapêuticas da água, comparando-as com a das Caldas da Rainha e à sua exploração para balneários públicos, sob orientação de cirurgiões britânicos, que “tomaram por sua conta reduzir a forma mais cómoda o uso destes banhos, reduzindo-os a catorze, com os seus camarotes, seis para homens e oito para mulheres, todos providos de muita água e com tão boa ordem que as mulheres têm diferente entrada e se não podem encontrar com os homens.” De acordo com Acciaiuoli (1944), o primeiro estabelecimento termal que se fundou na zona de Alfama, com água das Alcaçarias, foi o do Duque do Cadaval, em 1716; em 1725, havia dois estabelecimentos, o do Duque e outro particular; em 1810, havia o do Duque, os Banhos de D. Clara e os Banhos do Doutor. É de Henriques (1726) a primeira descrição médica exaustiva das virtudes terapêuticas das águas das Alcaçarias, a que ele chamou de “Caldas de Lisboa Oriental”. No século e meio que se seguiu, outras referências a estas águas foram feitas por nomes ilustres, como Castro Sarmento em 1735, Francisco Tavares em 1810, Sousa Pinto em 1839, Veloso de Andrade em 1851 ou Rotureau em 1864, que descreve o estado de demolição das Alcaçarias do Duque, quando mediu as propriedades físicas e químicas da água (Acciaiuoli, 1944). As Alcaçarias do Duque, localizadas nos n.ºs 52 a 60 da Rua do Terreiro do Trigo, pertencentes à Casa do Cadaval, foram construídas em 1640 por um mercador veneziano no sítio da quinhentista “casa da água das muralhas” e ampliadas em 1716 através da construção de novo estabelecimento; este edifício setecentista foi substituído em 1864 e revestido na fachada, segundo Júlio Castilho, com “azulejo alegre” (Mangorrinha, 1997). Foi concedido alvará para exploração termal em 1894 a D. Maria da Piedade Caetano Alvares Pereira de Mello, senhora da Casa do Cadaval e viúva de D. Joaquim de Mello. As Alcaçarias, ou Banhos de D. Clara, como eram chamados originalmente, foram edificados em 1759 por D. Clara Xavier de Aguiar, mulher do Sargento-mor Aurélio da Silva Castilho. Eram separadas das Alcaçarias do Duque apenas pela Travessa do Terreiro do Trigo e situavam-se na Rua do Terreiro do Trigo, n.ºs 64 e 68. A concessão foi pedida em 1893 por José Pedroso Gomes da Silva. As Alcaçarias do (J. A.) Baptista situavam-se na Rua do Terreiro do Trigo, n.ºs 78 a 84, não muito longe das Alcaçarias de D. Clara, tendo o nome do seu proprietário original. Foi pedida a concessão em nome de Maria José da Conceição Baptista, em meados de 1893. Os Banhos do Doutor (Fernando) tiveram origem provável no período filipino (Almeida, 1952). Localizavam-se nas traseiras do Chafariz de Dentro, n.ºs 19-20. As estruturas de apoio aos banhos foram reformadas em 1776. O pedido de concessão foi feito em meados de 1893 por Domingos José Vieira. Para além da sua utilização mais nobre, em fins terapêuticos, até ao século XVII todas as águas desta zona eram igualmente aproveitadas para lavagem de couros e lãs, não se sabendo, no entanto, a localização exacta destes tanques de curtimento, admitindo-se por tradição que se localizavam numas casas no lado norte do Beco dos Curtumes (Vieira da Silva, 1987a).

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Fig. 2a – Chafariz de El-Rei.

Fig. 2b – Banhos do Paulino.

Fig. 2c – Alcaçarias do Duque.

Fig. 2d – Alcaçarias de D. Clara.

Fig. 2 a, b, c, d – Aspecto actual dos locais de algumas nascentes do Grupo das Alcaçarias, concessionadas ou simplesmente identificadas na literatura. Há que salientar a intensa intervenção urbanística que se verifica na zona, o que impossibilitou a recolha de alguns testemunhos fotográficos. Os registos históricos assinalam um número de Alcaçarias superior ao dos pedidos em concessão no final do século XIX. Grande parte destas Alcaçarias perdeu-se nos tempos, não existindo actualmente nos edifícios herdeiros qualquer vestígio visível da sua utilização anterior. Citam-se na bibliografia os Banhos do Mosteiro de Alcobaça, intramuros em relação à Cerca Fernandina, num edifício que simultaneamente dá para o Largo do Chafariz de Dentro e para a Rua do Terreiro do Trigo e localizados na Rua do Terreiro do Trigo, nºs 14 a 18 (Vieira da Silva, 1987a). Em 1945 ainda se aproveitava a água desta nascente, extraída com uma bomba (Vieira da Silva, 1987a). Estes Banhos foram em 1392 objecto de contenda entre o Abade de Alcobaça e a Câmara Municipal de Lisboa, pouco depois de concluídos os trabalhos de construção da cerca Fernandina, que se centrava numa parede que o primeiro mandou construir sobre o muro da cidade em direito de umas casas suas (do Mosteiro) e que são alcaçarias situadas apar (em frente) da fonte dos cavalos (...) (Vieira da Silva, 1987a). Registam-se também na literatura as Alcaçarias na Freguesia de S. Pedro, que Vieira da Silva (1987a) admite que tenham sido adaptadas a lavadouro público de roupas, com um tempo de utilização superior a três séculos. É este lavadouro, situado numa espécie de pátio, que Júlio Castilho, em Lisboa Antiga, refere como sendo obra do tempo de El-Rei D. Sebastião, e que

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descreve como um largo tanque oblongo, de “água tépida”, no qual dúzias de lavadeiras de Alfama mergulhadas até à cintura levavam o dia a bater e a cantar. Santos (1867) destaca a descrição do Sr. Joaquim Nunes de Aguiar (publicado no Diário de Lisboa, nº 228, s/ data referenciada): “...o Tanque das lavadeiras é um vasto recinto formado por casas de habitação e por um muro feito pelo lado da rua; uma fonte de quarenta anéis de água proximamente mantém a água deste tanque em 0.60m de altura; oitenta lavadeiras lavam ali metidas na água, de saias levantadas, todos os dias da semana; a água que entra no tanque tem saída defronte da entrada, e a

maior parte da água não se renova; a roupa é lavada sobre pedras, formando bancadas tortuosas; é um tristíssimo monumento de selvajaria, que deve desaparecer d’entre nós, que nos prezamos de ser um povo civilizado. É fácil substituir este tanque por alguns outros alimentados por dez anéis de água, onde as lavadeiras trabalhem decente e higienicamente, permitindo o aproveitamento da melhor água do Bairro Oriental. Esta água marca 23ºC ao hidrómetro.” Em 1868, este tanque passou para a posse da Companhia das Águas de Lisboa e foi pela mesma vedado nos seus dois extremos – o Beco das Barrelas e a Travessa do Terreiro do Trigo, tendo dado origem ao Tanque das Lavadeiras. Em 1880, a Companhia das Águas de Lisboa cobriu o tanque, fez dele depósito e aproveitou as águas (Acciaiuoli, 1944). Posteriormente ao fecho do Tanque das Lavadeiras de Alfama, a Câmara Municipal de Lisboa fez o arranjo do local (DRHG, s/ data). No entanto, a nascente que alimentou muitos anos o Tanque das Lavadeiras de Alfama foi posta a descoberto aquando da demolição de um muro ao lado do edifício onde se localizavam as Alcaçarias do Duque, no Beco dos Curtumes, à qual os populares chamaram Fonte das Ratas. Este nome insólito terá a sua origem na degradação a que o local chegou no início da década de 60 do século XX, em que recolhia inúmeros esgotos que o transformavam o local numa “verdadeira estrumeira”, antes da Câmara Municipal de Lisboa ter efectuado as tais obras de beneficiação (DRHG, s/ data). A popularidade desta nascente, que, de acordo com a crença popular “tinha múltiplas virtudes terapêuticas” e cuja reputação curativa da água se espalhou rapidamente, atingiu o auge em 1963/64, em que milhares de pessoas se acotovelavam e esperavam horas para encher os

Fig. 4 – Populares na Fonte das Ratas, no auge da sua popularidade (foto retirada do Diário Popular, de 20 de Outubro de 1963, DRHG, s/ data).

Fig. 3 – A Fonte das Ratas – recolha popular de garrafões (Garcez, 1963).

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seus garrafões de água, ao ritmo de cerca de 360 garrafões/hora, abrandando apenas entre as 3 e as 5h da manhã (ver figura 4).

De acordo com recortes de jornais da época, houve interesse na concessão por parte de empresas de engarrafamento de águas minero-medicinais; porém, o Duque do Cadaval queria que a população pobre usufruísse gratuitamente dos benefícios da água. No final de 1963, a água da Fonte das Ratas foi objecto de grande controvérsia (ver figura 5), amplamente noticiada na imprensa da época, na medida em que, à insistência por parte do organismo de tutela (a Inspecção de Águas) no seu encerramento, devido a contaminação fecal, sucediam-se os protestos de populares à autarquia publicados nos jornais da época, fomentando desta forma a continuação da procura das águas para fins curativos (DRHG, s/data). A polémica persistiu até à década de 70, onde ainda se liam nos jornais cartas de protesto enviadas por leitores, reclamando de volta a água da Fonte das Ratas. Na literatura é também feita referência às Alcaçarias das Freiras dos Santos, de situação topográfica desconhecida, mas que Vieira da Silva (1987a) admite, no entanto, ser alguma das mencionadas anteriormente. Existiram ainda as Alcaçarias do Conde de Penela, localizadas nas costas da grande muralha da “Cerca Moura” na Rua da Judiaria (Vieira da Silva, 1987a). A seguir à casa que foi os Banhos de Alcobaça, em direcção a ocidente, aparece a muralha da Cerca Fernandina ao longo do Beco dos Curtumes ou Beco das Alcaçarias (Vieira da Silva, 1987a). O traçado da Muralha Fernandina é tal, que parte destas Alcaçarias ficavam dentro de portas, podendo por isso ser utilizadas em diversas actividades. O Chafariz de El-Rei deve provavelmente o seu nome ao Rei D. Diniz, existindo registos do mesmo desde 1487 (ao fazer-se o encanamento da sua água até à muralha de embarque), apesar da majestosa fachada actual ser da época da renascença. Mercê do seu generoso caudal, tinha a função de abastecer as embarcações do comércio das Índias. Por outro lado, o Chafariz de Dentro é uma nascente muito antiga (cuja data mais remota a que se lhe encontra referência é 1285), que deve o seu nome actual (também foi denominado Fonte ou Chafariz de Alfama) ao facto se situar do lado interior da cerca Fernandina, mas em oposição ao Chafariz da Praia, construído nessa época, ou ao Chafariz dos Páos, mais antigo, que ficavam na banda de fora (Vieira da Silva, 1987a). Em 1945, Vieira da Silva refere que havia no local duas casas de água, cada uma com sua nascente; uma seria a do Chafariz de Dentro, onde ainda estaria uma arca de água, mas que não se prestava para lavadouro; a outra seria a do Tanque das Lavadeiras, mais acima, no Beco do Mexia, com a porta de entrada próxima do começo inferior do Beco (Vieira da Silva, 1987a). Aparentemente, parece ser num depósito subterrâneo arejado por uma clarabóia, no local do recinto gradeado da EPAL, a que corresponde o antigo Chafariz da Praia, que se juntam todas as águas nativas do Chafariz de Dentro, Tanque das Lavadeiras e Chafariz de El-Rei (Almeida, 1952). Paralelamente a este grupo, encontra-se o conjunto formado pelas nascentes da Bica do Jardim do Tabaco (um poço onde uma bomba de mão elevava a água para o pátio da actual Alfândega), as nascentes do Largo da Fundição e pela Bica do Sapato (localizada na esquina entre a Rua da Bica do Sapato e a Rua Diogo do Couto).

Fig. 5 – Notícia publicada no Diário Popular de 4 de Dezembro de 1963, acerca do encerramento da Fonte das Ratas (DRHG, s/ data).

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Devido à existência de todas estas emergências, a toponímia da zona tem uma grande ligação com actividades ligadas à água. Exemplos disso são o Beco dos Curtumes (ou Beco das Alcaçarias), Beco das Barrelas (ou Beco de Alfama) e o Tanque das Lavadeiras. O próprio Largo do Terreiro do Trigo denominava-se Campo da Lã, por ser o local onde esta secava após ser lavada no Beco dos Curtumes (Vieira da Silva, 1987a). As ocorrências registadas, concessionadas e as entretanto perdidas no tempo, descritas anteriormente, bem como a sua localização em relação à “Cerca Moura” e à Cerca Fernandina encontram-se na figura 6.

Fig. 6 - Ocorrências registadas, concessionadas e entretanto perdidas no tempo e a sua localização em relação à “Cerca Moura” e à Cerca Fernandina, a partir de Vieira da Silva (1987;1987a). 3. As características da água As águas termais de Lisboa, localizadas na zona de Alfama, são bastante numerosas, tendo sido estudadas detalhadamente por Choffat (1895-1897). Destas águas referenciadas na literatura, destaca-se o conjunto que foi utilizado com fins mais nobres, cujas temperaturas por vezes são superiores a 20ºC, apesar da sua temperatura de emergência exacta divergir de acordo com o autor consultado. As Alcaçarias de D. Clara (24º-28ºC), Alcaçarias do Baptista (32º a 34ºC), Banhos do Doutor (27ºC) e as Alcaçarias do Duque (30ºC a 34ºC), foram, sem dúvida, emergências de água quente, enquanto que entre as águas frias contava-se a Bica do Jardim do Tabaco, Largo da Fundição e a Bica do Sapato. Acciaiuoli (1944) classifica o caudal das Alcaçarias de “abundantíssimo”; Andrade (1935) indicou um caudal para as Alcaçarias do Duque de 6.6m3/h. As águas quentes, que constituíam o que genericamente se chamou Grupo das Alcaçarias (Choffat, 1895-1898; Andrade, 1935) e ainda o Chafariz de El-Rei, parecem estar alinhadas no contacto entre o Complexo das Areolas da Estefânia (Burdigaliano) e o Complexo do Banco Real, do Miocénico, entre duas falhas de direcção aproximada NE-SW (Moitinho de Almeida, 1972). Choffat (1895-1897) reconhece seis sub-grupos nas águas da zona de Alfama, dispostos sobre uma linha curva com convexidade virada em direcção à terra. As duas extremidades desta linha são identificadas por este autor como o Chafariz de El-Rei e a Bica do Sapato, distando entre si 1010 m, enquanto que a linha de termalidade, relativamente acentuada, do Chafariz de El-Rei ao Largo da Fundição, não tem mais que 550 m de

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comprimento. O Grupo das Alcaçarias encontra-se enquadrado estruturalmente por cinco falhas de direcção aproximada NE-SW (Moitinho de Almeida, 1972). O perfil geológico interpretativo da zona das nascentes de Alfama mostra três troços individualmente distintos, verificando-se que no central se indica o Complexo do Banco Real como aflorante e nos dois restantes já localizado a profundidades apreciáveis (Moitinho de Almeida, 1972). Baseado em Moitinho de Almeida (1986), é provável que sejam atravessados o Complexo de Entre Campos ou do Banco Real, que, como foi referido, em algumas zonas nem aflora, constituindo camadas descontínuas, com espessura que oscila entre os 0 e os 25m, e as Areolas da Estefânia, com espessura que oscila entre 50 e 60m (ver figuras 7 e 8).

Fig. 7 – Planta geológica da zona de Alfama (Moitinho de Almeida, 1972), com identificação dos pontos de água em tempos classificada de minero-medicinal ou com características físico-químicas que permitiriam considerar essa hipótese. As nascentes de água quente do Grupo das Alcaçarias encontram-se alinhadas na zona entre o Largo do Chafariz de El-Rei e o largo do Chafariz de Dentro, ao longo da Rua do Terreiro do Trigo (figura 1) e deram origem a um conjunto de ocorrências que foram exploradas como “balneários públicos” durante algumas décadas. De acordo com a literatura (Almeida, 1952; Moitinho de Almeida, 1972), as águas de Alfama podem ser genericamente caracterizadas como águas bicarbonatadas cloretadas-sódicas ou cálcicas, com resíduo seco a 180ºC de cerca de 600 mg/l. A temperatura de emergência variava entre fria (inferior a 20ºC) e cerca de 34º C. Dentro deste Grupo, as Alcaçarias do Duque foram objecto de uma concessão, que abrangia duas nascentes distintas: uma das nascentes, denominada Grande Alcalina, apresentava um caudal abundante de água bicarbonatada calco-sódica e uma temperatura de cerca de 30.8ºC, enquanto a outra, designada por Sulfúrea, era um pouco menos mineralizada que a antecedente e com temperatura mais elevada (31ºC) (Almeida, 1952). A figura 9 mostra os diagramas de Stiff e de Piper relativos à nascente Grande Alcalina da concessão Alcaçarias do Duque, a partir de uma análise química de Carvalho (1952). O reservatório desta nascente localizava-se por baixo da parede do balneário que ladeava o Beco dos Curtumes, sendo constituído por um poço em cantaria, em que o fundo assentava sobre argilas muito finas e micáceas para onde convergia a água, cuja nascente se situava para sul e leste (Andrade, 1935). O mesmo autor refere que, segundo informações verbais, a nascente Sulfúrea brotava num pequeno reservatório na Travessa do Terreiro do Trigo, junto à parede do edifício do balneário.

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Fig. 8 – Perfil geológico interpretativo da zona de Alfama (Moitinho de Almeida, 1972). A primeira análise química da água das Alcaçarias do Duque data de 1835. Os valores analíticos destas águas são escassos, e na maioria dos casos pouco ou nada fidedignos devido aos métodos analíticos então utilizados. É de Almeida (1952) a informação mais detalhada que se dispõe acerca do quimismo destas águas, com base em análises químicas antigas. Dada a ausência de análises mais recentes, aquele autor procedeu a um estudo das diversas análises químicas efectuadas desde o século passado. A análise química mais recente efectuada a estas águas consiste numa análise de 1952 (Carvalho, 1952; Acciaiuoli, 1952), efectuada à água da nascente Grande Alcalina, cujos resultados são já incorporados em Almeida (1952).

(a) (b) Fig. 9 - Diagramas de Stiff (a) e de Piper (b) relativos à nascente Grande Alcalina da concessão Alcaçarias do Duque (a partir de uma análise química de Carvalho, 1952). Esta análise já se pode considerar-se fidedigna, pois foi efectuada segundo métodos analíticos mais recentes, e já incorporava o conceito de “ião”. Apesar da grande popularidade da Fonte das Ratas, não existem nos arquivos consultados análises físico-químicas resumidas efectuadas à sua água (DRHG, s/ data). Em termos gerais, parece ser um facto que a água dos Banhos do Doutor é de todas a de mais baixa temperatura e de mais baixa mineralização. Em oposição, a água mais mineralizada aparenta ser a das Alcaçarias de D. Clara. A maior parte das águas do Grupo das Alcaçarias parece possuir mineralizações totais muito semelhantes (Almeida, 1952). A observação do

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diagrama de Schoeller da figura 10, indica um TDS estimado a partir de Almeida (1952) muito semelhante para todas as águas. Em 1970, a Empresa Teixeira Duarte procedeu à execução de sondagens junto ao Chafariz de Dentro, que tinham como objectivo o reconhecimento geológico do traçado da nova linha do metropolitano de Lisboa. Uma sondagem, designada por ML78, com apenas 25.8m de profundidade, colocou em evidência um aquífero artesiano de água termal: 25.5ºC à saída da coluna, para uma temperatura ambiente de 19ºC (ver Fig. 8). Através de um pequeno ensaio de caudal realizado registou-se, a 1m acima do terreno, um caudal de 11.3m3/h e, com um rebaixamento a 5m, registou-se um caudal de 22m3/h. As características físico-químicas da água captada na sondagem ML78 afastam-se ligeiramente das restantes (bicarbonatada cálcica), mas, de qualquer forma potenciavam a sua utilização como água mineral natural (Moitinho de Almeida, 1972). No diagrama de Schoeller da figura 10 inclui-se a análise química de água proveniente da sondagem ML78 para comparação com as águas do Grupo das Alcaçarias tradicional.

Fig. 10 – Diagrama de Schoeller para algumas águas do Grupo das Alcaçarias (Almeida, 1952) e da sondagem ML78 (Moitinho de Almeida, 1972). 4. Os “balneários públicos” – a utilização concessionada das águas de Alfama A água das nascentes de Alfama foi utilizada durante várias décadas nos “balneários públicos” concessionados. Apenas algumas nascentes de água quente foram objecto de pedido de concessão, tendo as restantes Alcaçarias entretanto caído no esquecimento. Assim, em meados do ano de 1893 foram pedidas à Repartição de Minas do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, as concessões das Alcaçarias do Duque, Alcaçarias de D. Clara, Banhos do Doutor e Alcaçarias do Baptista. Ao que tudo indica, tratou-se da legalização de estabelecimentos que já eram utilizados em circunstâncias idênticas. Todos os alvarás de concessão das nascentes de água quente do Grupo das Alcaçarias foram publicados no Diário do Governo, ainda em 1894 (figura 11).

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Os estabelecimentos termais licenciados na época eram bastante rudimentares, razão pela qual se adopta o nome de “balneário público” em detrimento de “termas”, que já pressupõe o cumprimento dos requisitos legais impostos actualmente pelos organismos de tutela, a nível de

características e controlo sanitário das instalações, tratamentos prescritos e de controlo físico-químico e bacteriológico da água. O termo “concessão” também assume aqui características particulares, pois a área que geralmente a Inspecção de Águas atribuía a uma concessão (50ha) era impossível de neste caso ser cumprida, uma vez que os diferentes edifícios dos “balneários públicos” eram praticamente vizinhos. As visitas de reconhecimento efectuadas aquando do pedido das concessões foram feitas pelo Engenheiro Albuquerque de Orey (1894), da Inspecção de Águas. No seu relatório técnico, mencionava que o estabelecimento balnear das Alcaçarias do Duque era o único que, de todas as Alcaçarias, tinha sido expressamente construído para esse fim, sendo, de todos, o que exibia melhor aparência, tanto exteriormente como no seu interior. Segundo Albuquerque de Orey (1894), “no rés-do-chão do prédio (...), estão instaladas as tinas de mármore ordinário, em quartos de diversas dimensões, dispostas em três fileiras, separadas por dois corredores. A um e outro lado do corredor principal, encontram-se oito quartos de 1ª classe, e, ao

fundo, de um lado, um quarto maior, com duas tinas, e do outro lado, um dos reservatórios; outro corredor, mais estreito, paralelo ao primeiro, dá acesso a cinco quartos mais pequenos, onde se dão os banhos de 2ª classe e os banhos dos indigentes, e a um reservatório mais ao fundo do referido corredor. Nestes dois reservatórios, que comunicam um com o outro, juntam-se as águas das nascentes (...); ao meio do corredor mais largo, é que atravessa a tubagem conduzindo, para dois dos quartos de 1ª classe, especialmente reservados para esse fim, as águas de uma nascente descoberta mais recentemente, por ocasião de se abrir a canalização no Beco de Alfama. A água escoa-se para um canal aberto por baixo do edifício, o qual vai desaguar directamente no Rio Tejo.” Em 1927, o concessionário foi autorizado pela tutela a fazer algumas modificações no balneário. No entanto, estas alterações foram severamente limitadas por estarem condicionadas ao pouco espaço existente. É de destacar igualmente a exiguidade destes “balneários públicos”, devido às restrições de espaço impostas pelo enquadramento urbanístico do bairro de Alfama. Consistiam em alguns pequenos quartos nos quais se instalavam tinas onde eram tomados os banhos de água termal. Apesar do pequeno número de quartos existente, havia “separação de sexos”, para o

Fig. 11 – Diário do Governo de 4 de Janeiro de 1895, onde se encontra emitido o alvará de concessão das Alcaçarias do Duque.

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que serviam os quartos independentes. As Alcaçarias do Duque tinham o maior número de quartos (quinze), tendo em 1926 o balneário sofrido ligeiros melhoramentos, compatíveis com a exiguidade do espaço disponível (figura 12). As Alcaçarias de D. Clara tinham nove quartos (figura 13) e as Alcaçarias do Baptista, sete quartos. As termas mais pequenas eram os Banhos do Doutor, com apenas cinco quartos (figura 14).

Fig. 12 – Planta do “balneário público” das Alcaçarias do Duque licenciado pela Inspecção de Águas no ano de 1894. Escala original 1:100 (adaptado de DRHG, s/data). De acordo com o Regulamento do Estabelecimento Hydrotherapico, no Diário do Governo publicado em 1895 para cada uma das termas com alvará emitido, o preço dos banhos variava entre 200 e 300 réis consoante a nascente que abastecesse a tina, no caso das Alcaçarias do Duque. A água termal também era vendida para fora, em barris de 25 L a 40 réis a unidade. Nas outras termas os banhos tinham, em geral, preços inferiores, como é o caso das Alcaçarias do Baptista. No caso das Alcaçarias de D. Clara, os banhos quentes poderiam chegar a 400 réis. No entanto, para montepios, associações de socorros mútuos e asilos, o preço era mais reduzido, de 100 réis por banho. O regulamento contemplava igualmente a existência de tinas de banhos gratuitos durante a semana, para indigentes com atestado de

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pobreza, passado pelo respectivo pároco e reconhecido pelo notário. Havia, além disso, em todas as termas, um quarto cuja tina se destinava a doentes portadores de doenças contagiosas.

Fig. 13 – Planta do “balneário público” das Alcaçarias de D. Clara licenciado pela Inspecção de Águas no ano de 1894, de onde ressalta a exiguidade do espaço e o carácter rudimentar das instalações balneoterápicas da época. Escala original 1:100 (adaptado de DRHG, s/data). A utilização em tempos, durante largos períodos, das águas do grupo das Alcaçarias é confirmada por Andrade (1935), que refere que um grande número de nascentes se encontra protegido ora por poços de alvenaria e cantaria, ora por outros meios, vendo-se em algumas delas canalizações a níveis inferiores às saídas de água de então. Em particular, as Alcaçarias do Duque são utilizadas desde há centenas de anos (Acciaiuoli, 1944). Os únicos registos estatísticos disponíveis (DRHG, s/ data) dizem respeito à utilização das Alcaçarias do Duque durante o período compreendido entre 1928 e 1932 (imediatamente a seguir à publicação do Decreto com força de lei nº15401, de 17 de Abril de 1928). Este período, tendo abarcado a Grande Depressão, não será porventura representativo da evolução da frequência termal nas Alcaçarias do Duque em noutras épocas financeiramente menos difíceis. A leitura do gráfico da figura 15 destaca uma quebra acentuada no número de aquistas e nos banhos que teve lugar a partir de 1929, que após este período não chegou a recuperar. Em compensação, a “água minero-medicinal” em barris de 25 L teve um grande acréscimo de vendas ao longo destes anos.

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Fig. 14 – Planta do “balneário público” dos Banhos do Doutor licenciado pela Inspecção de Águas no ano de 1894. Escala original 1:100 (adaptado de DRHG, s/data). Tal como já foi referido anteriormente, as virtudes terapêuticas das águas foram referenciadas na literatura desde muito cedo. Henriques (1726), no seu Aquilégio Medicinal, refere no capítulo que diz respeito às Caldas de Lisboa Oriental que estas águas são “… de muita utilidade em curar as intemperanças quentes das entranhas, do sangue, do útero, dos rins e das mais partes do corpo; e os estupores e parlesias espurios; a debilidade de estômago; a fraquesa e queixas das juntas que ficam das gotas artéticas, e reumatismos; as convulsões, os acidentes do útero (…), os vómitos dos hipocôndrios; as diarreias (…). Para os achaques a que chamam do fígado, são prodigiosos, porque curam as pústulas, sarnas, impingens, lepra e todos os achaques e defedações cutâneas…”. Acciaiuoli (1944a) resume as suas indicações terapêuticas referindo que “São estas águas muito frequentadas, e o seu emprego muito preconizado no tratamento das doenças de pele, nas quais dão excelentes resultados. Também têm proveitosa aplicação contra as nevralgias, paralisias e algumas doenças do útero e estômago. Internamente usam-se, ainda que raras vezes, contra as doenças catarrais das membranas mucosas dos órgãos respiratórios. As doenças da pele, constituem, porém, a especialização terapêutica destas termas.” Propriedades terapêuticas de acção intensamente sedativa (reumatismo, nevralgias, espasmofilias, excitação nervosa) são atribuídas mais à nascente Alcalina do que à nascente Sulfurosa (DRHG, s/ data). Por outro lado, grande parte dos que acorriam às nascentes de

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Alfama, procuravam melhorias para problemas de lesões cutâneas e mucósicas (eczemas, impetigos, ictiose, acne, psoríase, etc.), além de problemas gastro-intestinais (DRHG, s/ data).

5. Estado actual das nascentes e perspectivas futuras de recuperação Ao longo do último século, a zona de Alfama foi palco de sucessivas intervenções urbanísticas que visaram a melhoria das condições de vida dos seus habitantes e acessibilidades. Além disso, os próprios edifícios em que se situavam as termas foram sofrendo alterações, fundamentalmente adaptadas aos usos que se lhes foi dando. Tendo em conta a sua proximidade da alfândega, foram em grande parte utilizadas como escritórios de despachantes. A primeira concessão a ser abandonada foi a mais pequena, os Banhos do Doutor, cujos últimos registos oficiais datam de Novembro de 1894, com um parecer favorável à desistência da concessão; este alvará esteve em vigor por um escasso período de cinco meses. Entretanto, o edifício dos Banhos do Doutor já foi uma loja de bebidas (Andrade, 1935), sendo actualmente um restaurante onde ainda existe uma bica de água morna num nicho azulejado que, no entanto, já não verte água. As outras concessões resistiram durante bastante mais tempo; os alvarás das Alcaçarias de D. Clara e das Alcaçarias do Baptista estiveram em vigor durante cerca de 30 anos. A concessão das Alcaçarias do Baptista foi declarada abandonada em 1921, por perda do direito à concessão devido ao uso das instalações do estabelecimento termal para outros fins, nomeadamente escritórios. Actualmente, as instalações pertencem a um banco e encontram-se em obras de recuperação. A partir de Maio de 1923, o edifício das Alcaçarias de D. Clara passou a ser utilizado com outros fins, tendo a então Inspecção de Águas recomendado que se salvaguardasse a captação existente. Entretanto, já foi uma padaria (Andrade, 1935). Em meados do século XX ainda se ouvia o som das suas águas por baixo do pavimento (Almeida, 1952). Actualmente, também pertence a um banco. Contudo, a concessão das Alcaçarias do Duque persistiu durante mais algumas décadas, tendo sido declarada abandonada e ao mesmo tempo anulada em 1978 pelo facto de “…a água se encontrar inquinada de forma irrecuperável…”. Porém, já desde 1966 que a nascente se

Estatística de utilização da água das Alcaçarias do Duque (1928-1932)

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Fig. 15 – Estatística de utilização da água das Alcaçarias do Duque no período de tempo compreendido entre 1928 e 1932 (estatística efectuada a partir dos dados de DRHG, s/data).

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encontrava concedida em regime de não exploração. As Alcaçarias do Duque encontram-se actualmente abandonadas, tendo recentemente pertencido a um banco. Grande parte das outras nascentes mencionadas anteriormente, sem registo preciso, podem hoje considerar-se completamente perdidas sob os arruamentos e edifícios da cidade de Lisboa, nas zonas de Alfama e Xabregas. Andrade (1935) faz referência a nascentes que apareciam nos lodos junto ao mar, como é o caso das da base do cais da Companhia Nacional de Navegação, dos alicerces do Cais dos Soldados, ou de uma casa em frente à Estação de Santa Apolónia, perto do antigo Hospital da Marinha. A zona de Alfama, enquanto pólo turístico de reconhecida importância da cidade de Lisboa, possui um património histórico cuja preservação e valorização têm vindo a ser desenvolvidas. No sentido recuperar as nascentes termais de Alfama, foi assinado em 2002 um protocolo de cooperação entre a Câmara Municipal de Lisboa e o ex-Instituto Geológico e Mineiro para a elaboração de um projecto a submeter conjuntamente, que visa a recuperação das antigas nascentes da zona de Alfama numa perspectiva técnica e cientificamente apoiada que dê suporte à celebração de um contrato de exploração, ao abrigo da legislação em vigor. Este projecto, a elaborar em parceria entre ambas as entidades, tem como objectivo promover a reactivação do aproveitamento dos recursos hidrominerais/geotérmicos que ocorrem na zona de Alfama da cidade de Lisboa. A investigação centrar-se-á, fundamentalmente, na zona entre o Largo do Chafariz de El-Rei e o largo do Chafariz de Dentro. Caso sejam encontradas temperaturas da ordem das registadas há décadas, o projecto poderá ir ao encontro da actual preocupação na valorização dos recursos endógenos através da substituição de combustíveis fósseis importados, por um tipo de energia “amiga do ambiente”, como é o caso da energia geotérmica. Tendo em conta que existem nas imediações diversas infra-estruturas camarárias e/ou privadas que poderão beneficiar directamente da água enquanto recurso hidrogeológico e/ou geotérmico, pretende-se com o presente protocolo abrir caminho a uma forma diferente de preservar o património histórico de Lisboa, valorizando as potencialidades de alguns dos seu recursos geológicos que hoje já poucos sabem terem existido. Julga-se que poderá justificar-se a promoção do aproveitamento destas águas, uma vez que representariam um recurso local e uma oportunidade de desenvolvimento da actividade económica, sendo desejável que esta fosse promovida a par da intensa intervenção urbanística que se verifica actualmente na zona, no sentido de recuperar quanto possível o seu património histórico.

Agradecimentos As autoras deste trabalho desejam agradecer à Câmara Municipal de Lisboa, cuja colaboração, materializada pelo incansável empenho da Drª. Ana Martins, do Gabinete de Alfama e da Drª. Manuela Leitão, do Museu da Cidade, foi inestimável. Um agradecimento especial é devido ao Dr. José Cruz, da Direcção-Geral de Geologia e Energia, por todo o apoio sempre manifestado.

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