hegemonia e contra-hegemonia na globalização do direito: a “advocacia de interesse público”...

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Texto de Fábio de Sá e Silva Análise da advocacia popular na América Latina e nos EUA.

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    Texto para publicao como captulo do livro Poder o Direito ser Emancipatrio? Revisitado (Santos 2013). No citar ou transcrever sem a autorizao expressa do autor

    Hegemonia e contra-hegemonia na globalizao do direito: a advocacia de

    interesse pblico nos Estados Unidos e na Amrica Latina*

    Fabio de S e Silva**

    1. Introduo

    Em tempos como o que vivemos, quando, mais uma vez, tudo o que slido parece se desmanchar no ar (Marx 1998; Berman 1982), a estatura de um autor e de sua obra se deve medir tambm e, sobretudo, por sua capacidade de propor abordagens que ajudem a comunidade cientfica e a sociedade como um todo a se posicionar melhor diante daquilo que, sob inmeras perspectivas, emerge como novo. O artigo intitulado Poder o direito ser emancipatrio?, publicado por Santos h cerca de 10 anos (Santos 2002b e 2003), seguramente uma dessas contribuies prprias de e para momentos de transio.

    Em trabalhos anteriores, Santos j havia oferecido enorme contribuio para qualificar o debate sobre o direito. Preocupado menos em definir o que direito e mais em compreender como ele funciona, Santos decomps esse elemento social em seus mais elementares aspectos operacionais e o definiu: (a) como um mosaico de retrica, violncia e burocracia, em que a prevalncia de um ou de outro elemento varia conforme a vocao democrtica da sociedade em que opera (Santos 1995 e 2004c) e (b) como o corpo de procedimentos regularizados e padres normativos, considerados justificveis num dado grupo social, que contribui para a criao e preveno de litgios, e para a sua resoluo atravs de um discurso argumentativo, articulado com a ameaa de fora (Santos 2001). * Este artigo est baseado na tese de doutorado (PhD) em Direito, Poltica e Sociedade defendida perante a

    Nortehastern University (2012), de ttulo Lawyers and governance in a globalizing world: narratives of public interest law across the Americas. O autor agradece sua banca, formada por Thomas Koenig (orientador), Martha Davis, Susan Silbey, Robert Granfield, e Steve Boutcher pelas crticas, permanecendo o nico responsvel, no entanto, pelas falhas existentes no trabalho. Agradece ainda ao financiamento da Northastern University (Law, Policy, and Society Research Grant) e do Instituto Internacional de Sociologia Jurdica de Oati (Juan Celaya Grant for Studies on Globalization and the Law), sem os quais a pesquisa de fundo da tese e do artigo no teria sido vivel. **

    Graduado e Mestre em Direito (Universidade de So Paulo 02 e Universidade de Braslia 07, respectivamente); PhD em Direito, Poltica e Sociedade (Northeastern University 12). Email: [email protected]

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    Essa decomposio permitiu perceber que existe uma infinidade de formas pelas quais o

    direito pode se manifestar; tudo a depender da situao em que isso ocorre. A reduo que as mais variadas escolas de direito (do positivismo ao realismo) fizeram para torn-lo equivalente a leis e Tribunais est, pois, muito aqum do que o direito significa sociolgica e politicamente. Assim, o direito pode envolver grau maior ou menor de retrica, violncia, e burocracia, em um infinito de possibilidades de articulao qualitativa e quantitativa, dentre as quais ele distingue a covariao, a combinao geopoltica e a interpenetrao estrutural (cf. especialmente Santos 2004c)1.

    Alm de retomar e aprofundar algumas dessas teses, Poder o direito ser emancipatrio?, resituou a problemtica que lhes de fundo a partir de novos desafios tanto no plano terico como no plano poltico , e inaugurou uma agenda de investigao

    complexa e ambiciosa que, por isso mesmo, talvez ainda no tenha sido absorvida e processada em sua plenitude pela academia e por outras comunidades interessadas no tema que, desta vez, o autor elegeu como central: a relao entre o direito e a possibilidade de construo de uma sociedade melhor. Revisitar esse escrito, portanto, implica no apenas retomar-lhe os principais fundamentos e proposies, mas tambm verificar em que medida eles continuam teis para iluminar esforos atuais e, eventualmente, para orientar esforos

    futuros de pesquisa e reflexo.

    Buscando equilibrar-se entre tais objetivos, este texto est dividido em quatro sees, alm desta introduo. A primeira visa a examinar os aspectos mais gerais do pensamento de Santos, sem os quais a reflexo por ele lanada em Poder o direito ser emancipatrio? dificilmente poder ser bem compreendida. A segunda sintetiza os argumentos e problemas desenvolvidos com maior detalhamento naquele artigo, com especial destaque para a maneira pela qual ele articula a relao entre hegemonia e contra-hegemonia na construo social de prticas jurdicas cosmopolitas ou subalternas. A terceira examina de maneira mais concreta os termos desta relao, tendo como fio 1 verdade que o grande trabalho de Santos sobre o direito ainda est por vir, com o prometido segundo

    volume da srie Para um novo senso comum: a Cincia, o Direito e a Poltica na transio paradigmtica, cujo nome anunciado, alis, o sugestivo O Direito na Rua. Mas tambm bastante provvel que ela dever consistir num desenvolvimento dessas ideias que marcam a sua trajetria e que guardam uma grande coerncia entre si.

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    condutor uma anlise comparativa do direito de interesse pblico (DIP) nos Estados Unidos e na Amrica Latina. A quarta sintetiza os argumentos mais centrais deste texto e sugere desafios para a pesquisa scio-jurdica interessada em seguir enfrentando a questo que deu ttulo ao seminal artigo de Santos.

    2. A questo em seu contexto 2: Poder o direito ser emancipatrio? no conjunto da obra de Santos O argumento central da obra de Santos, a esta altura j bem conhecido pelo pblico

    que o acompanha, de que vivemos num momento em que a modernidade revela o seu colapso e, por isso, suscita a transio para outro paradigma de organizao da vida social que, falta de melhor alternativa, ele tem designado de ps-moderno.

    Para muitos, a ideia de crise da modernidade pode soar exagerada porque, primeira vista, os esquemas sociais, polticos e cognitivos modernos esto funcionando a pleno vapor. Todavia, Santos no fala em crise no sentido que correntes sociolgicas

    funcionalistas podem querer emprestar palavra. Ao contrrio, para o autor, a crise reside na dificuldade de se compatibilizar a plena (s vezes at excessiva) realizao de algumas promessas modernas, com a insuficiente (s vezes at insignificante) realizao de outras. Trata-se, portanto, de uma crise da possibilidade de gesto reconstrutiva dos excessos e dficits da modernidade (2001: 51).

    Na base dessa concluso est um entendimento muito prprio acerca da modernidade, assim como de seu desdobramento histrico. Santos compreende a modernidade como um vasto, ambicioso, e complexo projeto sociocultural, voltado ao desenvolvimento harmonioso e recproco do pilar da regulao e do pilar da emancipao mediante a racionalizao da vida coletiva e individual (Santos 2001). Cada pilar opera em nvel epistemolgico e societal a partir de dispositivos e instituies como o direito, a cincia e a poltica. Ao mesmo tempo, Santos ressalta que a trajetria histrica da modernidade e, em especial, a sua confluncia com o capitalismo, que, a partir dos anos 2 Os argumentos desta seo esto baseados em S e Silva (2007), a despeito de algumas atualizaes. A

    expresso entre aspas busca expressar intertextualidade com o artigo de Santos aqui especificamente revisitado, cuja primeira seo tem por ttulo, exatamente, a questo no seu contexto.

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    1980, entra em uma fase desregulada deu ensejo a um desequilbrio irreversvel entre aqueles dois pilares: enquanto no plano sociopoltico o princpio do mercado sobreps-se aos princpios do Estado e da comunidade; no plano epistemolgico a racionalidade

    cognitivo-instrumental das cincias e da tecnologia agora transformadas em fatores de produo sobreps-se racionalidade esttico-espressiva das artes e moral-prtica do direito. Hipercientificizada e hipermercadorizada, a modernidade tardia passa a apresentar limites estruturais considerveis para realizar, ou mesmo para seguir enunciando suas promessas fundantes de liberdade, igualdade e fraternidade. Tanto assim que, de par com o aumento exponencial das desigualdades sociais entre pases ricos e pases pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo pas3 (Santos 2003a:13), cresce tambm a sensao de que no h alternativas factveis para a organizao da sociedade fora dos cnones cada vez

    mais estreitos do capitalismo e das democracias liberais. A reverso dessa trajetria, segundo Santos, no poder ser alcanada no interior da cultura, do conhecimento e das

    instituies modernas. nesse ponto que aparece a ideia-chave de transio paradigmtica.

    No plano epistemolgico, o olhar de Santos sobre essa transio foi consolidado no artigo Para uma sociologia das ausncias e uma sociologia das emergncias (Santos 2004a). Nesse escrito, partindo da constatao dos limites da forma do modo dominante de conhecer na modernidade4, Santos advoga em favor de uma racionalidade cosmopolita, a

    3 Essa prevalncia estrutural de processos de excluso sobre processos de incluso subsidia, alis, um dos

    conceitos mais fortes do pensamento scio-poltico de Santos: o fascismo societal. O fascismo societal, diz o socilogo portugus, um conjunto de processos sociais atravs dos quais amplos setores de populaes so mantidos, de maneira irreversvel, no exterior de qualquer tipo de contrato social. Eles so rejeitados, excludos e lanados numa espcie de estado de natureza, seja porque nunca foram parte de qualquer contrato social e provavelmente nunca o sero (refiro-me s classes pr-contratuais que se encontram por todo o mundo); ou porque foram excludos ou expulsos de qualquer contrato social de que tenham sido parte (refiro-me s subclasses ps-contratuais, aos milhes de trabalhadores do ps-fordismo, aos camponeses depois do colapso dos projetos de reforma agrria ou de outros projetos de desenvolvimento, aos povos indgenas, etc.). Diferente do fascismo poltico, diga-se mais, o fascismo societal pluralista, coexiste facilmente com o Estado democrtico, e existe tanto ao nvel nacional, como ao nvel local e global (Santos 2004b). 4 Apoiando-se em expresses literrias, Santos qualifica o intelecto da modernidade tardia como

    metonmico (por tomar a parte da cultura cientfica e filosfica ocidental pelo todo, concebendo-as como formas ltimas da organizao dos saberes); e prolptico, por pretender deter o conhecimento do futuro no presente, anunciando-o como de progresso sem limites. Porque pressupe destino melhor e inexorvel humanidade, fundado no progresso infinito proporcionado pelo conhecimento cientfico; e porque no abre possibilidade para o advento de formas diferentes de ser e de saber, contraindo o presente e

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    ser alcanada por trs expedientes. O primeiro, ao qual denomina de sociologia das ausncias, voltado a identificar as (muitas) experincias cognitivas e organizativas da sociedade desperdiadas na modernidade, bem como a discutir as condies nas quais elas

    podem se constituir como alternativa aos modelos atualmente hegemnicos, dando ensejo a uma expanso do presente. O segundo, ao qual Santos denomina de sociologia das emergncias, voltado a investigar em que medida tais alternativas podem ser inseridas em um horizonte concreto e contemporneo de possibilidades, operando, assim, uma contrao do futuro.

    Acompanhando a multiplicao de experincias disponveis e possveis propiciada por essas duas formas de sociologia insere-se o trabalho de traduo um procedimento voltado no tanto a identificar novas totalidades, ou de adotar outros sentidos para a transformao social, como a propor novas formas de pensar essas totalidades e de conceber esses sentidos (Santos 2004a: 806). O trabalho de traduo, assim, assegura Santos,

    Visa esclarecer o que une e o que separar os diferentes movimentos e as diferentes prticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulao ou agregao entre eles. Dado que no h uma prtica social ou um sujeito coletivo privilegiado em abstrato para conferir sentido e direo histria, o trabalho de traduo decisivo para definir, em concreto, em cada momento e contexto histrico, quais as constelaes de prticas com maior potencial contra-hegemnico (Santos 2004a: 806).

    Em suma, a epistemologia proposta aposta em nossa capacidade de transformar a realidade a partir do resgate de experincias marginalizadas e da interao dialgica entre estas e nosso modo de ser ou entre estas e cada uma delas , com vistas a identificar alternativas plurais e solidrias para o futuro nos mais variados espaos sociais5. uma utopia intelectual que torna possvel uma utopia poltica (2001:167).

    expandindo o futuro, a razo moderna no capaz de suportar o desafio de pensar alternativas ideologia de que a histria teria chegado ao seu fim (Santos 2004a). 5 Parece bem evidente que, nessa formulao, Santos atribui ao protagonismo dos mais variados oprimidos a

    produo de alternativas credveis de um mundo diferente. Por isso, no inusitado o prestgio que ele tem tido na Amrica Latina, cuja tradio filosfica e poltica tem na idia de libertao um ponto fundamental.

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    No plano sociopoltico, as anlises de Santos esto marcadas pela globalizao e

    pela srie de transformaes a que ela tem dado ensejo, em nvel mundial, no tocante aos contextos, objetivos, meios e subjetividades das lutas sociais e polticas. A globalizao o ponto alto do regime de acumulao do capital inaugurado com o advento do capitalismo desregulado e da consequente sobreposio estrutural de processos de excluso a processos de excluso que marca a crise do paradigma moderno. Mas embora esta forma de globalizao venha sendo hegemnica, anota Santos, ela no a nica e, de fato, tem sido crescentemente confrontada por outra:

    Uma globalizao alternativa, contra-hegemnica, constituda pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizaes que, por intermdio de vnculos, redes e alianas globais/locais, lutam contra a globalizao neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais justo e pacfico que julgam possvel e a que sentem ter direito (Santos 2002a:72 e 2003a:13-4).

    A ideia, afinal, de que justamente a partir dessa globalizao alternativa e de seu embate com a globalizao neoliberal que est a emergir um importante campo terico e prtico para a experimentao social, do qual podem ser auferidos novos sentidos e mtodos para a organizao da vida em sociedade.

    Na medida, porm, em que esta narrativa avana, razovel que se possa indagar: o que ela tem a ver com o direito? Felizmente possvel falar deste assunto sem fazer ilaes, eis que, para Santos, o desenvolvimento e a crise do paradigma da modernidade tm no

    jurdico um dado fundamental. As formas pelas quais o direito participa do desenvolvimento e da crise do

    paradigma moderno no escapam aos termos do diagnstico geral de Santos para esse processo. De um lado, est a reduo do direito a um direito estatal cientfico6. Concebida como um sistema de normas fundadas em uma autoridade poltica objetivamente

    6 nesse sentido que se pode encontrar em Santos uma crtica ideia de que o Direito uma cincia, ao

    menos de acordo com o conceito moderno de cincia. A transformao do Direito num Direito cientfico aconteceu para maximizar o seu potencial regulatrio e foi paralela sua reduo a um Direito estatal. Por isso, no resta dvida de que ela empobreceu o conhecimento do Direito e no o tornou mais rigoroso. Ao contrrio, como disse Lyra Filho, at alimentou impulsos no-cientficos (jusnaturalistas) por parte dos juristas, sempre que precisavam explicar algum problema jurdico (e social) que escapava ao seu limitado cnone disciplinar, que Santos alis classifica como ideolgico (uma ideologia disciplinar, cf. Santos 2001).

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    considerada (Kelsen 1998), a teoria moderna do direito tornou-se uma teoria moderna do Estado e, assim, foi mobilizada para apaziguar as tenses sociais e perfazer objetivos regulatrios. Nesse sentido, pode-se dizer, com Santos, que:

    O Estado mnimo do constitucionalismo liberal no s contm, em si, as sementes do Estado-Providncia benevolente do capitalismo civilizado, mas tambm as do Estado fascista e do Estado estalinista. Nenhuma dessas formas de Estado pde desprezar a positividade do direito como instrumento potencialmente inesgotvel de dominao, por mais subvertida e caricaturada que fosse essa positividade nas duas ltimas formas de Estado. Em suma, o cientificismo e o estatismo moldaram o direito de forma a convert-lo numa utopia automtica de regulao social, uma utopia isomrfica da utopia automtica da tecnologia que a cincia moderna criara (2001:143).

    De outro lado, est, mais uma vez, a confluncia entre modernidade e capitalismo. Tendo sido convertido em instrumento cientfico da regulao estatal, o direito entra em crise justamente quando o fordismo e o Estado-Providncia os referenciais sociais, econmicos, polticos e institucionais que, at os anos 1980-1990, buscaram promover uma associao virtuosa entre capitalismo e democracia nos pases centrais so confrontados globalmente por tendncias liberalizantes. Pois:

    um fato que o padro dominante da proteo social uma organizao burocratizada, baseada numa crescente dependncia e clientelizao dos cidados beneficirios, e orientada para a monetarizao das relaes sociais e para prticas consumistas fruto de uma constelao institucional em que o sistema jurdico teve um papel nuclear. Mas tambm verdade que, nas condies do Estado capitalista moderno, mesmo que se tivesse adotado um padro diferente participativo, valorizador da autoconfiana, solidrio e orientado para a produo mutualista e socialmente til de bens e servios, o sistema jurdico teria desempenhado um papel igualmente decisivo, por mais diferentes que tivessem sido as formas jurdicas de organizao e funcionamento utilizadas. A pergunta que se impe , obviamente, sobre a viabilidade poltica e econmica desse padro de proteo social no sistema capitalista. Se numa ousadssima hiptese a resposta fosse afirmativa, o direito estatal moderno revelaria toda a sua plasticidade regulatria (que o reverso da sua falta de autonomia relativamente ao Estado) e adaptar-se-ia ao projeto alternativo de Vergesellschaftung (societalizao) (2001:163).

    Com isso, possvel uma reconsiderao da crise do direito moderno como a crise de uma utopia de engenharia social pelo direito nos estados capitalistas (2001:150). Por isso que Santos est correto quando sugere que sair desta crise a obra mais progressista do nosso tempo, demandando um repensar to radical da realidade que pode ser designado at mesmo como um des-pensar: trata-se, efetivamente, de encontrar os fundamentos

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    (econmicos, polticos, culturais e por que no dizer? jurdicos) de uma sociedade ps-capitalista.

    aqui que se encontram as suas elaboraes mais diretas sobre direito e sociedade. Se o direito tem que ser des-pensado para alm do Estado e do capitalismo, portanto numa articulao com formas alternativas de sociabilidade poltica e econmica, preciso entend-lo a partir de um mapa de estrutura-ao das sociedades mais amplo que, certa vez, ele assim construiu (Quadro 1):

    DIMENSES/ ESPAOS ESTRUTURAIS

    UNIDADE DE PRTICA SOCIAL

    INSTITUIES DINMICA DE DESENVOLVIMENTO

    FORMA DE PODER

    FORMA DE DIREITO

    FORMA EPISTEMOLGICA

    ESPAO DOMSTICO

    Diferena sexual e geracional

    Casamento, famlia e parentesco

    Maximizao da afetividade

    Patriarcado Direito domstico

    Familismo, cultura familiar

    ESPAO DA PRODUO

    Classe e natureza enquanto natureza capitalista

    Fbrica e empresa

    Maximizao do lucro e maximizao da degradao da natureza

    Explorao e natureza capitalista

    Direito da produo

    Produtivismo, tecnologismo, formao profissional e cultura empresarial

    ESPAO DE MERCADO

    Cliente-consumidor

    Mercado Maximizao da utilidade e maximizao da mercadorizao das necessidades

    Fetichismo das mercadorias

    Direito da troca

    Consumismo e cultura de massas

    ESPAO DA COMUNIDADE

    Etnicidade, raa, nao, povo e religio

    Comunidade, vizinhana, regio, organizaes populares de base, Igrejas

    Maximizao de identidade

    Diferenciao desigual

    Direito da comunidade

    Conhecimento local, cultura da comunidade e tradio

    ESPAO DA CIDADANIA

    Cidadania Estado Maximizao da lealdade Dominao Direito territorial (estatal)

    Nacionalismo

    ESPAO MUNDIAL

    Estado-Nao

    Sistema interestatal, organismos e associaes internacionais, tratados internacionais

    Maximizao da eficcia Troca desigual

    Direito sistmico

    Cincia, progresso universalstico, cultura global

    Quadro 1 Mapa estrutura-ao das sociedades capitalistas (Santos, 2001:273)

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    Mais que discutir os detalhes desse mapa importante registrar, para os fins deste

    artigo, como ela ilustra uma pluralidade de espaos e tempos relevantes para a produo de juridicidades7. A juridicidade do espao da cidadania tem sido privilegiada na modernidade e tendencialmente menos desptica, mas no a nica e opera sempre de maneira articulada com as demais, em forma de constelaes jurdicas8.

    Mas admitir que h uma pluralidade no apenas de ordens jurdicas, mas tambm de espaos estruturais em que essas ordens acontecem apenas um primeiro passo. Em outros textos, Santos vai alm e complementa o mapa com uma anlise das lutas que se desenvolvem em vrios daqueles espaos e tempos e para alm deles , na perspectiva de

    restabelecer a tenso entre regulao e emancipao ou, como ele tambm o define em outro lugar (Santos 2001), entre relaes marcadas pela distribuio desigual de poder e relaes marcadas pelo exerccio de autoridade partilhada. No contexto do embate entre globalizaes, essa proposta leva a horizontes que so to amplos quanto instigantes: trata-se de mergulhar nas disputas locais e/ou globais por formas de sociabilidade (e, por isso mesmo, pela ampliao das oportunidades para se realizarem projetos de vida [Sousa Junior 2011]), reconhecendo as categorias, os sujeitos e as estratgias jurdicas que a cada uma delas esto associadas9.

    7 Dois estudos aplicados para dimensionar a ocorrncia material dessa pluralidade foram realizados por Santos

    e esto relatados em pelo menos quatro trabalhos (Santos 1980; 1988; 1995 e 2004c), cuja consulta vale a pena ao leitor. 8 Apenas para exemplificar como isso se d, vejam-se as observaes de Santos sobre o crime: As

    constelaes jurdicas volta do crime variam imenso. Na medida em que as formas de direito casmicas forem mais despticas do que o direito territorial do Estado, os seus limiares de deteco e de regulao so mais elevados do que os do direito estatal, podendo assim considerar legal e at obrigatria uma determinada linha de ao que o direito estatal considere criminosa. Por exemplo, os maus tratos infligidos mulher e o abuso de menores so freqentemente considerados legais pelo direito domstico, apesar de serem considerados crime pelo direito criminal do Estado (2001: 302). 9 Como exemplos esto os estudos de Santos e sua equipe sobre questes como: corporaes e direito do

    trabalho na experincia dos movimentos anti-sweatshop (o caso Nike); a juridicidade construda com as lutas do MST pela reforma agrria no Brasil; a luta dos Uwa (povo indgena colombiano) contra os projetos de desenvolvimento impostos sobre a regio; a propriedade intelectual em face da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais na ndia (o caso Monsanto) ou das lutas pela sade (a quebra de patentes dos medicamentos anti-HIV); a dignidade dos imigrantes nos pases centrais (EUA e Europa); um novo direito administrativo e financeiro com o oramento participativo de Porto Alegre; etc. (cf. Santos e Rodriguez-Garavito, 2006a; Santos, 1998 e 2003b).

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    Em suma, o quadro analtico que resulta do trabalho de Santos traz trs premissas

    para se analisar a relao entre direito e emancipao social. Primeiro, ade que o direito um elemento social plural no apenas porque se verifica em vrios domnios da vida

    social, mas tambm porque se exprime (ou se pode exprimir) de variadas maneiras, conforme se articulem os seus elementos sociologicamente constitutivos de retrica, violncia e burocracia. Depois, a de que, no tempo em que vivemos, aquela pluralidade se (des)organiza segundo um intrincado cenrio de lutas por diferentes projetos de vida ao longo de mltiplas escalas, entre o local e o global. Por fim, a de que, no contexto de crise e transio do paradigma moderno, essa (des)organizao global de (i)legalidades oferece uma incomparvel oportunidade para o aprendizado acerca da capacidade do direito para produzir emancipao.

    3. Conceituando e avaliando a legalidade cosmopolita ou subalterna: argumentos e problemas centrais em Poder o direito ser emancipatrio?

    Em poder o direito ser emancipatrio?, Santos mobiliza o quadro de referncias examinado na seo anterior para uma finalidade bastante especfica, porm nem por isso

    menos desafiadora: discutir os contornos, bem como as condies de possibilidade para a emergncia e afirmao de uma legalidade cosmopolita ou subalterna quer dizer, da legalidade que se articula aos aludidos projetos mais inclusivos, formulados pelos grupos excludos nas disputas locais e globais em torno de novas formas de sociabilidade. Nesse propsito, Santos elabora seus argumentos por meio de oito teses, as quais podem ser resumidas em trs pontos10: um apresenta carter assertivo, enquanto os outros dois aparecem mais como notas de cuidado ou caveats.

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    So elas: (i) Uma coisa utilizar um instrumento hegemnico num dado combate poltico. Outra coisa utiliz-lo de uma maneira hegemnica; (ii) Um uso no-hegemnico de ferramentas jurdicas hegemnicas parte da possibilidade de as integrar em mobilizaes polticas mais amplas, que podem incluir aes tanto legais como ilegais; (iii) As formas no-hegemnicas de direito no favorecem nem promovem necessariamente o cosmopolitismo subalterno; (iv) A legalidade cosmopolita voraz relativamente s escalas de legalidade; (v) A legalidade cosmopolita uma legalidade subalterna apontada sociedade civil incivil e sociedade civil estranha; (vi) Enquanto forma subalterna de legalidade, o cosmopolitismo submete os trs princpios modernos da regulacao a uma hermenutica de suspeio; (vii) O fosso entre o excesso de sentido e o dfice de desempenho inerente a uma poltica da legalidade. A legalidade cosmopolita vive perseguida por este fosso; e (viii) No obstante as diferenas profundas entre a legalidade demoliberal e a legalidade cosmopolita, as relaes entre ambas so dinmicas e complexas (Santos 2003b).

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    De maneira geral, Santos associa a legalidade cosmopolita ou subalterna

    negao de alguns pressupostos caros legalidade das democracias liberais, em especial a autonomia do direito e a sua disposio para a conservao das relaes sociais. Por autonomia do direito, Santos refere-se crena de que o direito e os direitos so autnomos porque a sua validade no depende das contradies da respectiva eficcia social. So autnomos tambm porque operam atravs de conjuntos especficos de instituies estatais criadas para esse efeito tribunais, legislaturas, etc. Alm disso, acha-se que o direito e os direitos esvaziam, partida, o uso de qualquer outra ferramenta social (2003b: 36). A negao da autonomia, por sua vez, empreendida por uma veemente politizao do direito vale dizer, a integrao do direito e dos direitos em mobilizaes polticas de mbito mais vasto, que permitam que as lutas sejam politizadas antes de serem legalizadas. Havendo recurso ao direito e aos direitos, h tambm que intensificar a mobilizao poltica, por forma de impedir a despolitizao da luta despolitizao que o

    direito e os direitos, se abandonados a si prprios, sero propensos a causar (2003b: 37).

    Por disposio para a conservao das relaes sociais, Santos refere-se expectativa essencialmente restitutiva que as sociedades ocidentais depositam sobre o direito, ou seja, expectativa de que, uma vez legalizado um conflito, a ordem jurdica e seus operadores devam atuar no sentido de restabelecer o status quo ante (no direito civil) ou de fixar uma compensao equivalente, geralmente em termos de perda de liberdade (no direito criminal). Com a negao dessa caracterstica da legalidade das democracias liberais, diz Santos:

    A legalidade cosmopolita procura atacar os danos de incidncia sistemtica e no s a relao vtima/ agressor [...] Isto explica porque que a mobilizao poltica e os momentos de confrontao e rebelio no so complementos, mas antes componentes intrnsecas da legalidade cosmopolita. Responder ao dano sistemtico implica reivindicar um contrato social novo e radicalmente mais inclusivo. Impe-se, por isso, substituir a justia restauradora que a concepo de justia demoliberal por excelncia por uma justia transformadora, quer dizer, por um projeto de justia social que v alm do capitalismo global (2003b:40).

    Entretanto, ao mesmo tempo em que reivindica essas rupturas, Santos tece duas advertncias aos leitores. Em primeiro lugar, diz ele, nem toda prtica jurdica que fuja aos cnones da legalidade demoliberal ter automaticamente um potencial emancipatrio. Neste

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    ponto, Santos exibe mais uma vez uma concepo no-romntica do pluralismo jurdico: admite-o como realidade sociolgica e como elemento multiplicador das possibilidades de organizao das relaes sociais, mas sugere que as articulaes de direitos e prticas

    jurdicas s quais ele d ensejo devam ser submetidas sempre: A uma espcie de teste de Litmus, para ver quais as formas de pluralismo jurdico que conduzem legalidade cosmopolita e quais as que no o permitem. O teste consiste em avaliar se o pluralismo jurdico contribui para a reduo da desigualdade nas relaes de poder, assim reduzindo a excluso social ou elevando a qualidade da incluso, ou se, pelo contrrio, torna ainda mais rgidas as trocas desiguais e reproduz a excluso. A verificar-se a primeira hiptese estaremos perante a pluralidade jurdica cosmopolita (2003b:39)

    Em segundo lugar, a relao entre formas cosmopolitas e demoliberais de legalidade complexa e dinmica. Se nem toda forma de legalidade concorrente com a das

    democracias liberais tem natureza mais inclusiva portanto, cosmopolita , tambm no ser incomum que a construo de formas cosmopolitas de legalidade se beneficie de componentes tpicos da legalidade demoliberal que, dentro de certos limites e desde que se encontrem disponveis, podem bem permitir a busca de objetivos das lutas cosmopolitas. At porque:

    Os conceitos de emancipao social so sempre contextuais e incrustados [...] A mera sobrevivncia fsica e proteo contra a violncia arbitrria podem bem ser o nico e ao mesmo tempo o mais desejado objetivo emancipatrio a alcanar [...] luz dessa distino pode afirmar-se que existe uma probabilidade maior de as estratgias jurdicas cosmopolitas e demoliberais virem a aliar-se sempre que as concepes de emancipao social finas tenderem a dominar os projetos emancipatrios dos grupos e das lutas cosmopolitas [...] Caso, por exemplo, dos grupos cosmopolitas que se batem por direitos polticos e civis bsicos (2003b: 42).

    Assim sendo, Poder o direito ser emancipatrio? parece deixar dois desafios para a pesquisa sociojurdica. Um deles que talvez aparea como mais intuitivo , est voltado identificao de prticas e estratgias jurdicas que se articulam a projetos de transformao estrutural da sociedade, ou seja, a projetos que visem sobrepor processos de incluso a processos de excluso e, por isso mesmo, reconstituir a tenso entre regulao e

    emancipao. O outro, por sua vez, est voltado ao mapeamento das interfaces (complexas e dinmicas) que se estabelecem entre essas prticas e estratgias jurdicas e a matriz demoliberal de legalidade, a fim de que seja possvel descortinar a um s tempo os limites

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    e as potencialidades das mais variadas constelaes de juridicidade para o enfrentamento dos processos de excluso e o consequente estiolamento da emancipao social.

    As prximas sees buscaro explorar esses desafios, analisando o que desponta como um objeto emprico privilegiado para entender a relao intrincada entre hegemonia e contra-hegemonia na construo social de prticas jurdicas: a emergncia do DIP uma instituio de origem norte-americana como prtica jurdica e tcnica de governana democrtica de alcance cada vez mais pretensamente global11.

    4. Hegemonia e contra-hegemonia na construo social de prticas jurdicas: o direito de interesse pblico nos EUA e na AL

    A noo de que possvel (ou necessrio) haver um segmento da advocacia atuando sistematicamente em favor do interesse pblico tem origem nos EUA especialmente a

    partir da revoluo dos direitos dos anos 1960 , apresentando como centro de gravidade uma preocupao da profisso com situaes de desigualdade.

    Uma reviso da literatura acerca das prticas de DIP constitudas a partir de ento permite distinguir entre duas dimenses desta desigualdade12. A primeira a desigualdade perante o mercado, em que indivduos, embora experimentando leso de bens jurdicos, 11

    A expresso governana no imune a controvrsias nas cincias sociais. Santos & Rodriguez-Garavito (2006) acham muito coincidente que o termo tenha se popularizado internacionalmente, na academia e nos programas de desenvolvimento, junto com a emergncia de regimes neoliberais e enxergam no carter relativamente neutro do termo uma tentativa de subtrair a capacidade intelectual de criticar a ordem neoliberal. Outros autores como Dezalay & Garth, no entanto, sublinham que o sucesso do termo deriva precisamente de seu carter aberto, o que permite a todos os potenciais interessados contriburem para o debate [e] pode incluir tanto procedimentos e regras formais como espaos mais informais, tipicamente estudados por antroplogos (2002a:311). O uso da expresso ao longo deste texto deriva, exatamente, do reconhecimento dessas virtudes sugeridas por Dezalay & Garth. 12

    A literatura que descreve as caractersticas e a histria do DIP aps sua institucionalizao nos EUA vasta e detalhada e, exatamente por isso, difcil de ser resumida: o terreno do DIP amplo e diferenciado e as questes que mobilizam os autores so, de alguma maneira, contingentes s mudanas histricas no sistema jurdico, na profisso jurdica, e na atmosfera poltica dos EUA. Tentativas de definir o DIP so poucas e no tm conseguido despertar a mesma euforia acadmica que termos como cause lawyering (Sarat & Scheingold 1998; 2001, 2004; 2005; 2006 e 2008). Este artigo se vale do esforo recentemente empreendido por Cummings, Sa e Silva & L. Trubek (2011), na tentativa de lanar as bases para uma pesquisa comparada e internacional sobre a relao entre o DIP e a advocacia comercial. Como referncias principais sobre o DIP, todavia, podem ser mencionados: The new public interest lawyers; Berlin; Roisman, & Kessler (1970); Halpern, & Cunningham (1971); Harrison, & Jaffe (1973); Rabin (1975-76); Sanford (1976); Council for Public Interest Law (1976); Weisbrod, Handler & Komesar (1978); Aron (1989); Cole (1994); Cummings & Eagly (2005); Nielsen & Albiston (2006); Rhode (2008); Saute (2008); Graham (2000)

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    esto impedidos de reclamar proteo do direito porque so muito pobres para pagar um

    advogado (e no h sistemas de nus de sucumbncia ou de honorrios de sucumbncia disponveis). O DIP responde a esse tipo de desigualdade provendo servios sem custo ou de baixo custo para expandir a entrada dos pobres no sistema jurdico, em bases individuais, caso a caso. A isto, autores denominam a dimenso do acesso (access dimension) do DIP (Cummings, Sa e Silva & L. Trubek 2011:10). A segunda dimenso a de grupos ou sujeitos na sociedade que se veem afetados em sua capacidade de defender seus interesses coletivos por meio dos canais polticos. Este tipo de desigualdade tem modalidades variadas e conhecidas na literatura, tais como a pobreza, o pertencimento a minorias, a discriminao e impedimentos ao coletiva. Nos EUA, o DIP tem sido utilizado historicamente por membros desses grupos desfavorecidos para ampliar

    conquistas polticas por meios jurdicos especialmente o litgio perante tribunais que no seriam alcanadas de maneira efetiva pela poltica majoritria. A isto, autores denominam a dimenso poltica (policy dimension) do DIP (Cummings, Sa e Silva & L. Trubek, 2011:10).

    Mais recentemente, referncias ao DIP ou a uma advocacia de interesse pblico (AIP) tm aparecido repetidamente em muitos outros cantos do mundo13. A Amrica Latina viu nascer uma rede de clnicas de interesse pblico, com a misso de fortalecer programas de direito de interesse pblico que se instalaram na regio nos anos 1990 e encontraram nas Escolas de Direito o nicho mais favorvel sua reproduo14. Na medida em que frica, sia e Leste Europeu se afirmam como novas fronteiras do desenvolvimento, essas regies comeam a atrair investimentos de organizaes como o Open Society Institute (OSI) e a Fundao Ford (FF), dos quais parcela substancial est sendo canalizada para apoiar a implementao de centros de direito de interesse

    pblico15.

    13

    Para referncias na literatura, ver Abel (2008); Alviar (2008); Atuguba (2008); Cummings & L. Trubek (2008); Liu (2008); Mbazira (2009); McClymont & Golub (2000); Patel (2009); Mohapatra (2003); Razzaque (2004); Rekosh (2008); Rekosh (2005); Cummings (2008); Vieira (2008); Yap & Lau (2011). 14

    Sobre esta rede, ver http://www.clinicasjuridicas.org/ 15

    Um dos melhores exemplos de investimento para a institucionalizao do PIL na frica, sia e Leste Europeu o trabalho que vem sendo pela Rede de Direito de Interesse Pblico (PILNET, anteriormente

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    O fenmeno, porm, vai muito alm dos chamados pases em desenvolvimento. Na

    Irlanda, estabeleceu-se uma Aliana de Direito de Interesse Pblico (PILA), construda em em funo do interesse e do clima favorvel para esta rea do direito e da clara

    necessidade de um centro de referncia para o trabalho em direito de interesse pblico, observados aps uma conferncia de direito de interesse pblico ocorrida em Dublin, em outubro de 200516. O mesmo se passou na Oceania: desde os anos 1990, a Austrlia tem visto a multiplicao de clearing houses de direito de interesse pblico, modeladas em organizaes similares nos EUA, em particular em Nova Iorque17.

    A mera popularizao do rtulo PIL para dar nome a prticas jurdicas seja como uma categoria nativa de advogados, seja como um conceito elaborado na academia , parece indicar que um amplo processo de propagao institucional est em curso.

    Comunidades epistmicas e profissionais de DIP nesses pases poderiam perfeitamente dar denominao distinta s suas prticas. Deve haver uma razo, racional ou no, pela qual esto a utilizar uma denominao de matriz norte-americana.

    A literatura especializada procura associar esse processo reemergncia e

    reorientao dos programas de direito e desenvolvimento (law and development), inicialmente em torno do objetivo da abertura de mercados e, mais recentemente, abraando o estado de direito (rule of law) e a promessa de casar mercados livres com o respeito por direitos humanos (Cummings & L. Trubek, 2008:19). Nesse contexto, dizem os autores,

    denominada Instituto de Direito de Interesse Pblico ou PILI). Originalmente uma iniciativa da Escola de Direito da Universidade de Columbia, nos EUA, a PILNET se tornou uma organizao independente que, com base em doaes da FF e do OSI oferece treinamento e outros recursos para indivduos e organizaes que atuam em DIP em pases em desenvolvimento, com uma nfase especial, agora, em frica, sia e Leste Europeu. Assim, a PILNET tem sido facilitadora da criao de uma comunidade epistmica e encorajadora do trabalho de ONGs de DIP fora dos EUA. Para maiores informaes sobre a PILNET e suas linhas de trabalho, ver http://www.pilnet.org 16

    Para informaes sobre a Aliana de Direito de Interesse Pblico (PILA) na Irlanda, ver http://www.pila.ie. A PILA no a nica fonte de DIP no cenrio atual da Irlanda. Outra iniciativa de DIP naquele pas o projeto de Apoio ao Litgio de Interesse Pblico (PILS). De acordo com a pgina deste projeto, ele foi criado em 2009, depois que pesquisa levada a efeito pela Deloitte em 2005 encontrou evidncia sobre a necessidade de um projeto dedicado ao litgio na Irlanda do Norte. Com base nisso o Comit de Administrao da Justia (CAJ) submeteu uma proposta de pedido de financiamento para a Atlantic Philantropies e, em 2007, recebeu doao para um projeto piloto de 5 anos. Sobre o PILS, ver http://www.pilsni.org 17

    Sobre uma dessas vrias unidades, ver http://www.pilch.org.au/

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    doadores do Norte se voltaram ao direito de interesse pblico como uma ferramenta para

    limitar o poder dos governos e ampliar o acesso justia, e os advogados do Sul foram estimulados a investir na construo e no monitoramento de instituies estatais desde

    dentro, ao invs de contest-las desde fora, [em um modelo de mobilizao] mais compatvel com o direito de interesse pblico, voltado para a efetivao de sistemas jurdicos domsticos, que com o modelo de direitos humanos, baseado no constrangimento e nas denncias em foros internacionais (Cummings & L. Trubek, 2008:19). Vista desta maneira, a progressiva emergncia da AIP como uma instituio global (Cummings & L. Trubek, 2008) deve ser considerada como a manifestao de uma nova ortodoxia de governana (Dezalay & Garth, 2002a)18, a qual tem na ordem jurdica (demoliberal) o seu componente (e limitador) fundamental19.

    No entanto, uma anlise de experincias de institucionalizao do DIP a partir das sugestes epistemolgicas de Santos pode descortinar outras possibilidades de leitura, no apenas em relao natureza e s caractersticas deste fenmeno, mas tambm em relao s suas valncias (e, portanto, em relao s valncias do prprio direito) para as lutas por emancipao social. A prxima seo busca exercitar essas possibilidades explorando trs temas que emergem de uma anlise comparativa das experincias de AIP nos Estados Unidos e na Amrica Latina20: (i) a clientela, os mtodos e o significado sociopoltico das prticas de DIP; (ii) as formas de participao de AIPs em processos e estruturas de 18

    Embora Cummings & L Trubek (2008) adotem uma viso moderada de convergncia, essa tendncia prevista por autores como Meyer (2010); Meyer et al (2007) e Boyle & Meyer (2002). Ver, no entanto, Halliday (2009); Halliday & Caruthers (2007), Halliday & Osinsky (2006), Dezalay & Garth (2002), Inda & Rosaldo (2008) e Santos & Rodriguez-Garavito (2006) para entendimentos diferentes. 19

    Advogados de interesse pblico [seriam] provocadores e catalisadores de uma ampla realocao de recursos jurdicos, o que [iria] estimular a expresso de importantes valores e interesses em nossa sociedade e aprofundar a igualdade poltica, econmica e social The new public interest lawyers. In: Yale L J, vol. 79 1970:1071 20

    Essa anlise est baseada em pesquisa emprica que serviu de base para tese de doutorado (Sa e Silva 2012). A pesquisa utilizou mtodos mltiplos para coleta de dados sobre as prticas de DIP nos EUA e em vrios pases da AL, tais como questionrios eletrnicos, entrevistas em profundidade e anlises de documentos. Alm disso, utilizou uma perspectiva analtica interpretativa, interessando-se, em grande medida, pelo sentido que os atores atribuem ao que fazem e vivem. Assim, os instrumentos de pesquisa buscavam captar: o que AIPs nos EUA e na AL fazem, de que modo fazem, e como entendem o que fazem sob este rtulo. No total, o processo de coleta de dados envolveu respostas a questionrios eletrnicos de ao menos 221 advogados dos EUA e 87 da AL, alm de 40 entrevistas em profundidade, alm de observao participante em Conferncia Pro Bono em Santiago, no Chile.

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    governana; e (iii) a relao entre prticas de DIP e a legalidade demoliberal em cada um daqueles contextos.

    a. Clientelas, mtodos e significado sociopoltico de prticas jurdicas: diferenas de escopo na AIP nos EUA e na AL.

    Uma anlise comparada do DIP nos EUA e na AL indica que, embora

    desenvolvidas sob o mesmo rtulo, retrica, ou mesmo aspirao normativa, as prticas de DIP que vem sendo institucionalizadas no mundo registram diferenas marcantes. Trs

    dessas diferenas aparecem como merecedoras de especial considerao neste artigo. A primeira diz respeito clientela: enquanto nos EUA os advogados de interesse pblico (AIPs) atendem tambm, e cada vez mais, a indivduos, na AL a clientela deste segmento socioprofissional constituda predominantemente por comunidades, grupos e movimentos sociais.

    Narrativas dos prprios AIPs deixam essas diferenas bem claras. Quando falava sobre suas perspectivas de carreira como AIP, Alexander Jackson, um jovem advogado que atua com direito do trabalho na Filadlfia disse que, assim que entrou em seu emprego atual, ele pensava em trabalhar l por uns cinco anos, perodo no qual iria ganhar experincia com outros colegas que representam indivduos, ter uma boa ideia de quais so as grandes questes e migrar para uma organizao voltada mais incidncia em polticas pblicas, aonde ento pretendia trabalhar com problemas que envolvem os mais altos nveis de governo, escrevendo relatrios, falando imprensa, levando frente uma ao judicial de grande impacto 21. No entanto, prosseguiu Alexander, ele no acredita mais nisso, pois:

    Adora trabalhar com casos individuais, que [lhe] oferecem, a cada dia, a possibilidade de poder ganhar um caso para algum, para um indivduo que depois aparece em [seu] escritrio para receber um cheque e para o qual [ele] pode dizer: fizemos isso juntos,

    21

    Todos os nomes utilizados neste artigo e na tese de doutorado so fictcios, conforme acordo com os participantes e com o comit de tica. Os nomes foram produzidos utilizando combinao aleatria dos nomes e sobrenomes mais populares nos EUA e na AL, conforme constava de pginas especializadas. Depois que uma primeira lista foi gerada, houve uma reviso para verificar se ainda havia alguma similaridade com os nomes reais dos participantes. Algumas pequenas adaptaes tiveram de ser feitas para assegurar plenamente o desejado anonimato.

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    ganhamos esse caso para voc, voc agora tem dinheiro e pode dizer que teve um caso para si na justia e que recebeu o que lhe era devido.

    Um quadro bem diferente aparece quando se cruza a fronteira do Mxico em direo ao sul. No apenas os AIPs latino-americanos adotam uma clientela de maior escala (grupos, comunidades e movimentos sociais), mas a vasta maioria deles considera que trabalhos para indivduos no so tpicos do DIP. Questionado sobre o que distingue um AIP de um no-AIP, Fortunato Magallon, um advogado Mexicano que trabalha em uma

    ONG com direitos humanos (DH), direito criminal, direitos das mulheres e direitos dos povos indgenas argumentou que AIPs trabalham com casos que impactam um grande

    nmero de pessoas, enquanto advogados tradicionais esto focados na realizao dos direitos de seu cliente. Da mesma forma, quando explicava os procedimentos que adota para a seleo de casos, Valentina Martinez, uma advogada que trabalha com direitos das pessoas com deficincia em uma clnica jurdica de interesse pblico na Colmbia disse que, ao contrrio de outros, ela busca casos que de alguma maneira vo impactar um

    grande nmero de pessoas.

    Ocasionalmente, AIPs latino-americanos concordam em atuar em favor de clientes individualizados, mas apenas na medida em que enxergam que este trabalho beneficiar diretamente um grupo mais vasto de indivduos. Questionada sobre como se d sua relao com seus clientes, Celina Turner, uma advogada equatoriana de 36 anos que trabalham em uma ONG com DH e temas de imigrao, deu um exemplo instrutivo disso: Se a

    organizao entende que violncia de gnero est afetando bastante uma populao de refugiados, pode decidir por mobilizar litgio estratgico nesta rea: pode aceitar

    representar individualmente uma refugiada que sofreu violncia sexual no Equador e se envolver com esse caso criminal. Frente mesma questo, Angel Delafuente, um

    advogado peruano de 46 anos contou a histria de um cliente que se tornou deficiente no Exrcito e foi prejudicado ainda mais com a maneira pela qual os militares classificaram sua deficincia. Atuando nesse caso, Angel e seus colegas identificaram estratgias processuais que poderiam beneficiar seu cliente como um indivduo ou outros na mesma situao. Depois de negociao com o cliente, disse Angel, no sem exibir um ar de

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    satisfao, ele escolheu adotar o itinerrio que beneficiaria os outros tambm. O processo

    est em curso, mas [sua clnica] segue aconselhando o cliente, sugerindo que ele dissemine sua histria pela mdia e adote aes em conjunto com outras pessoas que o apoiam.

    Disjuno semelhante pode ser encontrada nos mtodos e estratgias mobilizados por AIPs nos contextos dos EUA e da AL. AIPs norte-americanos tendem a considerar servios diretos perante Tribunais e agncias administrativas como um componente legtimo e de alguma maneira natural da AIP, ao lado, claro, de estratgias de maior impacto, como o litgio e vrias formas de lobby. Muitos entrevistados dos EUA tambm

    reportam o uso de estratgias no-legais, como educao e organizao das comunidades e campanhas de mdia.

    Narrativas sobre o cotidiano dos AIPs norte-americanos revelam como essa variedade de mtodos, estratgias e nveis de atuao constitutiva do DIP nesse contexto. Quando Olivia Jones, jovem advogada que atua com direito previdencirio na Pensilvnia foi perguntada sobre se h algo que ela gostaria de fazer diferente em seu trabalho, ela disse

    que no, pois entende que seu cotidiano atual lhe oferece um horizonte de possibilidades mais do que satisfatrio para atuao em favor do interesse pblico. Afinal:

    Em uma mesma semana, na segunda estou fazendo triagem de casos, me reunindo com clientes que aparecem com problemas e tentando resolver os problemas deles. Na tera estou em outra parte, treinando outros advogados que trabalham na mesma rea que eu, porque me especializei em algumas questes que podem ajud-los a fazer diferena na vida de outros. O poder do treinamento, de treinar os treinadores, como eles dizem, fabuloso. Na quarta posso estar em Washington, D.C., me encontrando com a autoridade da assistncia social e contando-lhe sobre melhorias que ele tem promovido nos programas que executa. Na quinta posso ir gravar um vdeo, que ser enviado para cada Senador e ajudar a fazer alguma diferena na votao de leis ou do oramento. Por fim, na sexta, posso estar em uma reunio com advogados-referncia em temas de direito sade, para discutir como implementar a legislao de sade recentemente editada por Obama

    Os AIPs da Amrica Latina, ao contrrio, empregam um conjunto bem mais restrito, porm bem mais agressivo de mtodos e estratgias: eles sempre reportam o uso de estratgias de alto impacto e sempre reportam faz-lo em conexo estreita com estratgias

    no-legais, como forma de ampliar ainda mais o impacto de seu trabalho.

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    O litgio de impacto, tanto na arena domstica como na arena internacional, tido

    como o principal mtodo utilizado por AIPs da AL, que o consideram um meio para: (i) gerar precedentes legais transformadores; (ii) criar argumentos modelares, que outros AIPs podem utilizar; ou (iii) abrir uma janela para aes polticas e jurdicas em temas em relao aos quais o sistema de justia tem estado alheio.

    A proeminncia do litgio de impacto na AL chega a afetar at mesmo o rtulo que d a designao ao DIP na regio. Com muita frequncia, organizaes de DIP so denominadas como de litgio de IP, litgio estratgico de IP, ou litgio estratgico em DH. Assim que, quando Juan Torres, um advogado de DH no Mxico descrevia sua

    clientela, ele explicou que sua ONG se especializou prestar servios de litgio para outras ONGs, pois muitas delas trabalham mais com casos individuais e buscam resolver

    problemas de indivduos que enfrentam problemas em algum ponto de suas vidas. Desta forma, dizia Torres, essas organizaes oferecem um primeiro auxlio [... Elas tomam] um caso concreto, o que no ruim, esse tipo de trabalho j importante, [mas] o que [sua organizao faz de diferente] em relao a essas outras adicionar o conceito de litgio estratgico em DH; [ou seja, dar] o giro de interesse pblico em busca de resultados coletivos.

    Alm do litgio de impacto, AIPs da AL tambm se apoiam intensamente em estratgias de comunicao e educao. Com isso, buscam assegurar que suas aes e seus resultados eventualmente positivos se tornaro amplamente conhecidos em suas comunidades, pases e at mesmo no exterior. Essa combinao facilmente percebida nas palavras j citada advogada colombiana Valentina Martinez. Quando explicava os procedimentos para a seleo de casos na clnica jurdica em que atua, ela disse que um dos critrios:

    de que o caso ajude a criar conscincia massiva sobre um determinado problema. Ningum se importa, quer dizer, nenhum veculo de mdia vai dar cobertura para um caso em que um cidado queira mudar de nome [...] mas houve ampla cobertura dos jornais quando processamos o prefeito por no atender normas de acessibilidade no metr. Havia litgio neste caso, mas nem todos os nossos casos envolvem litgio. O que importa que tenhamos algum meio para disseminar as histrias.

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    Da mesma forma, enquanto falava sobre o que gosta mais em seu trabalho como

    AIP, Javiera Garcia, advogada que atua em uma ONG no interior da Argentina, disse que, ao contrrio de advogados privados, que aceitam casos apenas se estes soam

    economicamente lucrativos ou que transformam casos em casos de interesse privado, de modo que possam cobrar indenizaes, sua organizao recebe casos com os quais se busca resolver um problema ou ao menos produzir um paliativo, assim contribuindo para a mudana social:

    A litigncia privada pode dar a satisfao de ganhar um caso ou de ajudar um indivduo que realmente precisava de ajuda, mas acaba a. O DIP tem a ver com afetar a sociedade. Embora muitas vezes ns no ganhamos os casos, o fato de que colocamos um tema na agenda, de que fomos capazes de sujeit-lo a um debate ampliado na mdia, de que algum para alm do grupo que est sendo diretamente afetado pode interferir nessa discusso, isso o mais gratificante [da sua prtica]. Se ganhamos o caso, tanto melhor, mas bom saber que, de alguma maneira, podemos contribuir para a mudana social.

    A literatura nativa sobre o DIP na AL corrobora essas distines. Analisando as caractersticas do chamado litgio estratgico, Correa Montoya (2008:250) o define como um processo de identificao, discusso, socializao e definio de problemas sociais, seguindo pela busca de casos concretos que podem ajudar a obter solues amplas [...] e promover mudana social substantiva. Tal mudana social substantiva, diz o autor, tem lugar por meio de vrias arenas institucionais mobilizadas simultaneamente: a arena do judicirio, pois requer que os juzes decidam de uma determinada maneira; a arena administrativa, pois requer o desenvolvimento de planos, projetos e polticas pblicas para resolver um problema; a arena legislativa, de modo que mudanas legais de verdade

    possam ser obtidas; e a sociedade civil, que precisa ser educada e empoderada para se tornar um ator social com altas capacidades, nos termos de Sen. Dessa forma, o litgio

    acaba por envolver:

    Um componente jurdico [...] que envolve um tipo diferente de prtica jurdica [...] que faz uso estratgico de meios judiciais e administrativos para alcanar os objetivos desejados; um componente poltico, pois [...] o litgio de impacto no pode se reduzir ao seu componente jurdico e [...] deve haver interveno direta ou indireta [dos demandantes] na discusso, assim como no processo de tomada de deciso e implementao [de tal maneira que] os ganhos derivados da litigncia so duplos: mudana social [...] e mais forte conexo entre os grupos mobilizados; e um componente de comunicao, que consiste em informar e intervir na opinio pblica de modo a disseminar detalhes sobre a ao judicial [...] e apoiar

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    as atividades e a busca por solues amplas [no se tratando] apenas de dar publicidade a outras atividades [...] mas de um componente que se justifica como tal (Correa Montoya, 2008:253-8, sem destaques no original).

    Essas diferenas estruturais nas prticas de DIP nos EUA e na AL tambm repercutem na forma pela qual os AIPs em cada um desses contextos definem a

    significncia socio-poltica de seu trabalho. Na AL, os AIPs entendem seu trabalho como um meio para: (i) dar visibilidade a (ii) problemas estruturais no funcionamento do governo e da sociedade e, em especial, (iii) dar ensejo a mudanas em polticas pblicas ou, de maneira mais geral, nas estruturas de governana. Assim que, questionado sobre seus mtodos de seleo da clientela, Cristobal Alvarez, um advogado que atua na Argentina

    com diversos temas de IP respondeu que:

    H duas variveis que consideramos interessantes. De um lado, a pessoa precisa pertencer a um segmento vulnervel, de modo que advogados privados no se sintam incentivados a tomar o caso. Esse primeiro filtro de admisso no necessariamente leva a casos de interesse pblico, mas um que usamos. De outro lado, a ideia de interesse pblico em si, como um filtro adicional, tem a ver com a capacidade de o caso ajudar a produzir uma crtica contra falhas sistemticas em uma poltica pblica ou de ativar mecanismos ou ferramentas que levem a mudanas em uma situao estrutural, na qual haja violao de direitos.

    Embora compartilhem o entendimento de que o DIP meio para melhorar o funcionamento do governo e da sociedade, os AIPs norte-americanos enxergam esse processo como muito mais iterativo. Como Linda Ferguson, uma advogada de 35 anos atuando com proteo ambiental em Maryland define com preciso:

    Voc tenta ganhar um caso de cada vez e construir em cima disso. Qualquer que seja o resultado, voc tenta trazer uma voz para o Tribunal, ou um ponto de vista que, de outro modo ningum traria, e que precisa ser ouvido pelo Tribunal para que este componha uma imagem completa do problema ambiental. Voc tenta construir nos sucessos do passado e criar um arcabouo legal mais forte que o dinheiro e a influncia das corporaes.

    Deste modo, atos de resistncia individual podem ser to significativos como atos de impacto mais amplo, seja porque empoderam indivduos lutando contra injustias sistmicas ou porque, cedo ou tarde, ajudam a reduzir essas injustias. Questionada sobre o que [ela] mais gosta em sua vida de AIP?, Chloe Garcia, advogada que atua no Texas

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    com temas de direito do trabalho e imigrao ofereceu um interessante exemplo a esse

    respeito. Ela disse acreditar que sua prtica:

    Envia uma mensagem forte de que Ei, no importa quem voc seja, no correto pegar essas pessoas e faz-las trabalhar para voc de graa e assust-las e oprimi-las. E se voc tentar fazer isso pode ir parar no Tribunal, perante um juiz. E aqui est a lei, vou lhe mostrar a lei que diz que voc responsvel. E isso foi muito empoderador, porque muitos de nossos clientes ouviam no boca-a-boca, de seus amigos, Ei, ligue para estes advogados, eles conseguiram obter para mim uma indenizao, talvez possam fazer algo por voc. E muitas vezes eles sequer sabiam, eles pensavam Uau, pensei que no tinha nenhum direito neste pas! srio que advogados fizeram isso por voc? Advogados americanos? Isso era algo muito ntido.

    Dada essa abordagem iterativa com a qual os AIPs dos EUA articulam a relao entre direito e mudana social, mesmo quando utilizam litgio de impacto eles atribuem a isso um papel diferente dos seus colegas da AL: processos que levam a acordos ou que beneficiam clientes individualmente tambm so vistos como favorecedores do interesse pblico, por desencorajarem a conduta dos violadores de direitos no mdio ou longo prazo. Por exemplo, quando Mia Taylor, advogada em temas de moradia no Colorado foi solicitada a contar uma histria de sucesso em sua experincia de AIP, comentou sobre:

    Um indivduo que estava prestes a perder sua casa para um banco por no conseguir pagar as prestaes. O caso tomou muito tempo nosso e pelo que eu lembro fomos bem sucedidos em mant-lo na casa. No lembro se fechamos um acordo ou se fomos at o fim no processo judicial. Em casos como esse, eu fico com uma sensao muito forte de que fundamental que a maior parte das pessoas conte com representao jurdica adequada, porque assim os sub-representados tm menor chance de serem maltratados. Este era um indivduo, em meio a muitos que tinham contrado esse tipo de emprstimo. Mas se apenas alguns deles forem capazes de obter amparo na justia, ento o banco provavelmente ir, em primeiro lugar, parar de vender esse tipo de emprstimo [risadas]. Mas, em segundo lugar, o banco vai ser mais inclinado a negociar ou a fazer algo pra ajudar os demais muturios a fim de que eles tambm no o processem. Ento como se houvesse um efeito em cascata: representar clientes individualmente ajuda a todas as demais pessoas que no podem pagar um advogado, ou seja, a maior parte das pessoas [risadas].

    Da mesma forma, quando falava sobre o que entende desafiador em seu trabalho, Jacob Anderson, um jovem advogado em temas ligados ao desenvolvimento econmico de comunidades pobres em Nova Iorque, deu o seguinte exemplo:

    Eu fao muitas defesas em casos de execuo de hipotecas imobilirias. Muturios acionados tm pouqussimo poder em relao s instituies financeiras, que so companhias enormes com lucros astronmicos. H duas semanas entramos com uma ao

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    contra [bancos], em nome de trs muturios. Isso parte de uma estratgia para forar um acordo, porque apenas por meio de conversas com os bancos ns no fomos capazes de chegar a uma proposta adequada, ento ir ao Tribunal e litigar um passo na estratgia para conseguir resolver o problema. Mas acho que isso satisfatrio porque, em ltima anlise, o que impede o sistema de ser justo o fato de que o [banco], se quiser, pode gastar uma poro de dinheiro com advogados, enquanto pessoas comuns nunca tero chance de fazer isso. Ento muitas vezes a gente se v brigando contra pessoas ou corporaes que tm muitos recursos, mas isso bom, tem alguma efetividade.

    Em suma, uma anlise comparativa do DIP nas Amricas revela diferenas bastante considerveis no tocante ao escopo da atuao dos AIPs em cada contexto. A clientela

    servida por AIPs na AL constituda predominantemente de comunidades, grupos e movimentos sociais; enquanto a clientela servida por AIPs nos EUA tambm inclui

    indivduos. Os mtodos empregados por AIPs na AL so sempre de alto impacto, com bastante nfase no litgio; enquanto os mtodos empregados por AIPs nos EUA so mais diversificados, incluindo servios diretos perante Tribunais e agncias administrativas. Na AL, o DIP tido como um veculo para mudanas estruturais, enquanto nos EUA tido como um veculo para mudanas mais iterativas.

    b. Advogados e governana: direito e poder na AIP nos EUA e na AL

    Desde que Tocqueville escreveu seu clssico livro sobre a Democracia na Amrica

    (2000), o entendimento de que o direito e os advogados podem ocupar posies variadas em relao a estruturas de governana em comunidades e sistemas polticos tornou-se lugar

    comum na sociologia poltica. A anlise comparativa dos AIPs nos EUA e na AL tambm revela diferenas nesse tipo de insero, as quais repercutem no debate sobre as condies nas quais a institucionalizao de prticas de DIP pode (ou no) ser emancipatria.

    A sociedade norte-americana baseada na utopia de que o direito, e no os homens, quem deve governar. Assim, advogados norte-americanos se constituem como membros de uma coletividade que de alguma maneira foi concebida como partcipe dos

    assuntos de governo e do controle do poder esteja o poder nas mos de agentes pblicos ou privados.

    As narrativas dos AIPs norte-americanos sempre refletem essa posio privilegiada de que eles desfrutam em seu pas. Quando falava sobre as razes pelas quais decidiu

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    ingressar na Faculdade de Direito, Nathan Kemp, um advogado de 44 anos que trabalha em

    uma ONG com temas de direito de famlia e da infncia contou que cresceu pobre, mas com boas notas, no Norte do Estado de Nova Iorque e na Flrida Central; tinha ideia de

    cursar direito desde muito jovem, mas quando passou a atuar como um voluntrio em um centro de defesa de direitos do consumidor e em uma casa de longa permanncia de idosos ficou convencido de que precisava do prefixo Dr. em frente ao seu nome e no timbre de seu papel, para de fato ser capaz de produzir justia para a maior parte dos indivduos.

    A relevncia dos advogados no contexto norte-americano reaparece e qualificada quando os entrevistados falam sobre o sentido de seu envolvimento em conflitos.

    Perguntado sobre que diferena acredita poder fazer como um AIP, Michael Thomas, um advogado que trabalha em Nova Iorque com temas de direito sade deu o que acredita

    ser um exemplo clssico:

    Pense em uma criana que tem asma e o mdico de alguma forma consegue perceber que a asma est relacionada a infiltraes no apartamento. O mdico pode falar com o locador e o locador provavelmente no far nada. O assistente social pode falar com o locador e o locador no faz nada. A um advogado entra em cena e ento Meu Deus!, o locador comea a agir, conserta o imvel, a asma vai embora e ento a criana pode seguir sua vida e seus estudos.

    Igualmente importante a maneira especfica pela qual os advogados participam em estruturas de governana, dentro do raio de ao de que dispem em seus contextos sociais.

    Em consagrado estudo sobre conscincia jurdica popular, Ewick e Silbey (1998) elaboraram trs narrativas esquemticas sobre como a legalidade construda na sociedade norte-americana. A essas narrativas, as autoras denominam: diante do direito (before the law), com o direito (with the law), e contra o direito (against the law).

    A narrativa denominada com o direito (with the law) descreve a legalidade como uma arena que as pessoas podem utilizar para perseguir seus interesses e administrar seus problemas cotidianos. No entanto, como as autoras destacam, ver a legalidade como uma arena de disputa, potencialmente disponvel para si e para os outros, no significa dizer que os usos da arena so infinitos. As pessoas reconhecem os constrangimentos que operam

    sobre o direito (Ewick & Silbey, 1998:131). Entre esses constrangimentos esto, por

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    exemplo, as regras que impem limites ao que o direito pode fazer, os custos associados

    com o uso do direito ou com o seu uso de uma determinada maneira e, o mais importante para esta seo, os diferentes nveis de habilidade e experincia dos jogadores (Ewick & Silbey, 1998:131-2). Nesse sentido, Ewick & Silbey afirmam terem encontrado uma virtual concordncia entre os participantes de sua pesquisa sobre a importncia de se contar com um advogado quando, por escolha ou pelo destino, algum se v jogando o jogo por meio do qual a legalidade (tambm) construda.

    Com base nessas mais diversas fontes de informao, pode-se dizer que os advogados norte-americanos dominam um conjunto bastante especfico de procedimentos e habilidades que no esto amplamente disponveis na sociedade e sua legitimidade sociopoltica se torna bastante incrementada por esse domnio, em uma sociedade que tende

    a atribuir ao esquema da arena de disputa um papel central em sua estrutura de governana. De maneira consistente com essas proposies, a expertise talvez o principal

    recurso no qual os AIPs atuando nesse pas se apoiam.

    Embora muitos dos AIPs norte-americanos soem quase que inconscientes quando

    falam a esse respeito, outros demonstram ter bastante clareza de que a capacidade de navegar em teias burocrticas ou de desenvolver estratgias criativas utilizando um

    conjunto nico de saberes um elemento constitutivo de suas identidades profissionais e de seu status na sociedade. Por exemplo, quando descrevia sua rea e modo de atuao, a j citada Olivia Jones disse que:

    A administrao da seguridade social desvairada. Eles tm um milho de obstculos pelos quais voc tem que passar para provar que elegvel para os programas de benefcio, mesmo se voc for uma pessoa com deficincia. Voc tem que provar que pobre e por pobre eu digo muito, muito pobre. Voc tem que provar que tem renda muito limitada ou no tem renda nenhuma. Voc tem que provar que no tem nenhum tipo de recurso. Voc tem que provar que um cidado americano, que teve a doena logo em seus primeiros anos de vida. Voc tem que provar que vive sob determinadas condies, que no recebe nada de familiares. inacreditvel a quantidade de coisas que voc tem que provar. As pessoas ficam presas nesses obstculos. Ou eles preenchem o formulrio errado, ou suas respostas so consideradas no-verdadeiras, ou a administrao simplesmente faz besteira ao analisar o pedido. E deve haver mais ou menos um milho de pginas com regras ou orientaes durssimas s quais essa agncia deve obedecer. O que eu fao ser criativa e tentar obter benefcios para as pessoas quando elas batem de frente com essas palavras idiotas.

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    Mais adiante na conversa, quando questionada sobre de que modo ela acredita que

    seu trabalho ajuda a perseguir o IP, Olivia disse que essa uma questo estpida. Afinal, so pessoas que no tm voz, que no tem os meios ou a habilidade ou as redes ou o

    tempo necessrios para navegar, isso mesmo, navegar as complicadas teias burocrticas da seguridade social. Dessa perspectiva, o que ela e seus colegas fazem aprender os detalhes dessas teias e servir como advogados para as pessoas que so jogadas nelas para que se virem, pois notvel como esses programas so elaborados de modo que voc precisa, efetivamente, ter um advogado.

    Se os advogados ocupam uma posio privilegiada na sociedade americana por

    dominarem as regras, procedimentos e princpios que constituem a faceta do jogo do direito, a legitimidade do DIP deriva precisamente do fato de que ele serve como uma ponte

    entre a arena desse jogo e os interesses que nela podem estar sub-representados. Essa, alis, uma caracterstica j antecipada por alguns dos primeiros trabalhos sobre o DIP nos EUA:

    As definies de direito de interesse pblico compartilham uma caracterstica em comum: todas repousam sobre um ideal pluralista e colocam nfase nos procedimentos utilizados para garantir a representao de todos os interesses. Tradicionalmente, para o advogado, isso significa que o interesse pblico est sempre representado em uma disputa jurdica [...] Muitos advogados que tm discutido o interesse pblico e o direito de interesse pblico no tm problema com essa viso, o problema, como eles entendem, que ou muitos interesses no esto representados no processo e no contraditrio, ou esto inadequadamente representados. Advogados que praticam o direito de interesse pblico, assim, tomam como um dado que o interesse pblico , de fato, o resultado do processo legal, e que suas atividades vo contribuir para a representao dos subrepresentados (Weisbrod & Benjamin, 1978:28. No mesmo sentido ver Marks, Leswing & Fortinsky, 1972:14 e Marshall, 1976: 7-8).

    Trs dcadas depois que textos como esses foram produzidos, entrevistas com os AIPs norte-americanos corroboram a ideologia da igualdade de representao como fundamento do DIP. Por exemplo, questionado sobre o que ele mais gosta em ser um AIP, William Harris, advogado que trabalha com temas previdencirios na Flrida disse que: Na Faculdade de Direito aprendi que ser um advogado significa ajudar os outros. Alguns escolhem ajudar corporaes e coisas do gnero, quando h, provavelmente, uma demanda maior entre as pessoas que no tm os meios e os recursos para contratar advogados e ter acesso a um sistema de justia realmente justo. Mas:

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    Se h de haver justia, ambas as partes em uma controvrsia devem receber assistncia jurdica. Por isso que eu fico satisfeito sabendo que estou ajudando as pessoas, como que nivelando a arena do jogo, se voc quiser, ao representar pessoas que de outro modo no seriam representadas em suas demandas jurdicas.

    Um quadro bem diferente emerge, mais uma vez, quando se cruza a fronteira do Mxico em direo ao sul. No contexto da AL, o direito no tem se constitudo como uma ferramenta hegemnica de governana. Argumentos jurdicos no necessariamente do a base para se confrontar o poder; e a expertise estritamente jurdica tem um peso muito moderado em assuntos de governo. Ao contrrio, AIPs lutam exatamente para estabelecer uma posio mais central para o direito e para eles prprios em esquemas de governana. O

    estado de direito (rule of law) em si mesmo se torna uma causa, que com frequncia se sobrepe s outras pelas quais esses advogados atuam22.

    Assim que, por exemplo, perguntado sobre o que mais gosta em seu trabalho, Felipe Acosta, um advogado argentino que trabalha com direitos civis disse que ele e seus

    colegas esto convencidos de que podem produzir mudana no sistema jurdico, nas instituies e na condio das pessoas. Descrevendo sua equipe como um pouco maluca,

    um pouco romntica, por que a verdade que [eles] perdem a maioria dos casos, de fato perdem muito mais que ganham, Acosta ressalvou, entretanto, que:

    H [entre eles] uma convico de que a justia pode trabalhar de um modo diferente, de que os advogados podem se comportar de maneira diferente, de que o direito pode ser usado de uma maneira diferente e de que os juzes podem trabalhar de uma maneira diferente. H satisfao em trabalhar com essa convico e utilizar os Tribunais para algo distinto de pedir indenizaes, como a prtica da maior parte dos advogados.

    Esta relao entre prticas jurdicas e desenvolvimento institucional, que uma pedra angular do DIP na AL, encontra formulaes bastante elegantes nas narrativas dos AIPs desta regio. Quando falava sobre o significado sociopoltico de seu trabalho, Matias Lopez, um dos fundadores do DIP na Argentina disse que:

    Talvez eu esteja exagerando, mas depois da transio democrtica na Argentina, pela primeira vez em muitos anos estamos comeando a levar os direitos e a Constituio a srio. Porque antes disso, a ideia de que a Constituio impe limites poltica no era algo

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    Sobre a possibilidade de que o estado de direito em si mesmo venha a ser uma causa pela qual advogados atuam, ver Hilbnik (2004).

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    que os polticos aceitavam e sobre o que pensvamos; ns espervamos que tudo viesse da poltica, que o direito ao trabalho, moradia, a boas condies de trabalho viriam da poltica, como com Pern. Mas se a poltica te d tudo isso, nada disso um direito que voc tem e que pode reivindicar, menos ainda por meio dos Tribunais, eles no est l para isso. Ento quando, por muitas razes, a democracia restaurada, a linguagem passa a ser de que temos direitos e temos como efetiv-los por meio dos Tribunais. Isso, eu acredito, o que h de mais revolucionrio na nossa transio democrtica [...] Agora temos uma janela, agora h outro modo de fazer poltica no qual uma ONG pode trazer justia um caso que impactar uma poltica pblica.

    A literatura latino-americana sobre o DIP corrobora novamente essa interpretao. Por exemplo, no prefcio de um livro sobre Direitos Humanos e Interesse Pblico, que parte de uma srie na qual muito da memria do DIP na AL est registrada, Gonzalez afirma que:

    Historicamente, a noo de interesse pblico era invocada como um argumento para que o estado restringisse direitos. Dizia-se que um direito estava limitado por razes de interesse pblico. Esse uso da expresso interesse pblico estava associado com o interesse do Estado. Havia at mesmo algumas agncias estatais que eram estabelecidas com o objetivo de proteger o interesse pblico. Mais recentemente, porm, o conceito de interesse pblico adquiriu uma conotao diferente, a qual est conectada com uma noo ampliada do pblico e inclui interesses tanto estatais como no-estatais, ou seja, que permevel s manifestaes da sociedade civil e participao dos cidados. Isso ocorre em paralelo com a mudana da relao entre o interesse pblico e o exerccio dos direitos, de modo que o primeiro no limita o segundo, ao contrrio, tornou-se associado proteo dos direitos (2001:07).

    No entanto, precisamente porque o contexto da AL de transio, estratgias jurdicas no so suficientes para confrontar o poder. Assim que, ao contrrio do que se passa nos EUA, o DIP na AL exibe uma dimenso marcadamente poltica23. Perguntado

    23

    De fato, em um livro intitulado A luta pelo direito: litgio estratgico e direitos humanos, o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), uma das principais organizaes de DIP da Argentina, afirma que: os casos apresentados neste livro tambm so uma parte importante da histria recente do ativismo em DH. A relevncia desse ativismo, cujos principais protagonistas so os advogados e os Tribunais, est em que a seleo de causas fruto de trabalho conjunto com vrios e diferentes coletividades e grupos sociais que reclamam por direitos. Assim, se historicamente o ativismo do CELS se relaciona a demandas por verdade e justia no contexto de crimes da ditadura militar, ao longo dos ltimos anos outros temas tm emergido na agenda democrtica: violncia policial, condies das prises e acesso justia; discriminao e temas relativos a populaes de imigrantes, povos indgenas e minorias, restries ilegtimas contra a liberdade de expresso e o acesso informao, entre outros. A seleo dos casos est sempre ligada possibilidade de que o litgio seja tambm abraado por grupos necessitados, porque nessa mobilizao que depositamos expectativas de expandir direitos e lhes dar efetividade na agenda poltica democrtica. Sem isso, os casos contariam apenas como pequenas batalhas, ganhas em meio a um restrito crculo de acadmicos (Centro de Estudios Legales y Sociales, CELS [2008]).

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    sobre que tipo de impacto busca produzir na sociedade, Celestino Ruiz, um advogado de 28

    anos que trabalha com DH e direitos civis na Argentina disse, por exemplo, que: no curto prazo, o principal impacto colocar os temas que estamos enfrentando na mdia e na opinio pblica, a fim de atrair a solidariedade de outros movimentos sociais e gerar um clima poltico favorvel. No longo prazo, esperamos contribuir para a construo de uma sociedade mais justa.

    Falando sobre a maneira pela qual seleciona os casos em sua clnica, Juan Torres, o j mencionado advogado mexicano ofereceu outro interessante depoimento sobre a ntima conexo entre o jurdico e o poltico nas prticas de DIP da AL:

    Quando analisamos casos potenciais, tambm fazemos reunies com duas ou trs pessoas de fora, especialistas em vrias reas ou temas, para ver se h no apenas provas suficientes para submisso do caso ao judicirio, mas tambm se h viabilidade jurdica, ou seja, se um juiz aceitar o caso e conseguiremos produzir o impacto que esperamos. Alm disso, no buscamos aferir apenas viabilidade jurdica, mas tambm viabilidade poltica, ou seja, saber se o tema est na agenda ou se possvel coloc-lo na agenda. Por exemplo, o tema da migrao tem hoje muito apelo no Mxico, est todo dia na mdia, est na agenda. Ento estamos sempre pensando sobre como colocar os casos na agenda pblica, ou melhor, poltica. Chamamos os melhores casos de casos nobres, casos que vo nos abrir uma porta, digamos, colocar um assunto na agenda para que possamos ter mais espao para discuti-lo.

    Isso ajuda a explicar porque, na AL, o DIP quase sempre envolve estratgias polticas e de mdia, assim como a colaborao com lderes comunitrios e ONGs. Os AIPs na AL tm que se apoiar nessas outras fontes de capital e expertise, tais como a pesquisa

    social e a comunicao: o direito um componente em um amlgama de interesses que se conectam por meio de uma estratgia transformadora. E a relao entre os advogados e esses demais atores pode ser bastante horizontal. Por exemplo, questionado sobre situaes concretas em sua prtica que ilustram o tipo de impacto que busca produzir na sociedade, Angelo Duque, um advogado de 47 anos de El Salvador que trabalha com DH e direitos dos presos mencionou o caso de uma comunidade rural que havia sido afetada por lixo txico, depois que foi expedida uma ordem judicial em um processo por contaminao ambiental movido contra um empresrio. Angelo explicou que, como o processo estava

    parado no Tribunal porque o empresrio havia entrado com um recurso, [ele e as lideranas comunitrias] resolveram pressionar o Ministro do Meio Ambiente, dadas as implicaes

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    do lixo sobre o direito sade dos moradores daquela comunidade. Depois que, juntos, advogados e membros da comunidade fizeram presso e organizaram peties pblicas, o Ministrio interferiu e o lixo foi, enfim, removido.

    Assim, o DIP na AL pode ser compreendido como um experimento institucional vivo e rico, tpico de contextos de transio, nos quais estruturas de governana esto instveis e o estado de direito (rule of law) aparece gradualmente como uma avenida pela qual as pessoas podem transitar. Enquanto os AIPs norte-americanos buscam conectar o povo ao direito, os AIPs latino-americanos buscam conectar o direito ao povo24. O paradoxo, no entanto, que ao procurar que o direito se sobreponha poltica em estruturas

    e processos de governana, os AIPs latino-americanos reforam as ntimas conexes entre o direito e a poltica.

    c. DIP e legalidade demoliberal

    Como se destacou no incio desta seo, a narrativa dominante sobre a propagao

    do DIP entende-a como parte de um processo de convergncia em torno de princpios e mtodos de prtica jurdica. Num contexto de intensa circulao de pessoas, recursos e ideias e da consolidao, em nvel internacional, de uma nova ortodoxia para a governana (Dezalay & Garth 2002a), o prottipo norte-americano do DIP teria se expandido para se tornar cada vez mais uma instituio global (Cummings & L. Trubek 2008).

    24

    Veja, por exemplo, o relatrio intitulado A Corte e os Direitos (La Corte y los Derechos), produzido pela Associao pelos Direitos Civis (ADC), outra das principais organizaes de DIP na Argentina. No prefcio deste relatrio, os lderes da associao dizem que: em 2005... publicamos pela primeira fez este relatrio, analisando as principais decises da Suprema Corte no perodo de 2003-2004. Na ocasio, demonstramos nossa preocupao com a falta de interessa da imprensa e dos cidados em relao s decises da Suprema Corte Argentina. As principais razes para isso, como vimos, eram duas. Primeiro, faltava conscincia crtica sobre a importncia da Corte no cotidiano dos cidados. Segundo, a Corte padecia de falta de legitimidade nos anos 1990, a qual foi aprofundada no final de 2001... Depois, consideraram que: continua a ser de absoluta necessidade que os cidados saibam e controlem as decises da Suprema Corte com respeito a direitos e instituies constituc