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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A PERCEPÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS- GUERRA FRIA (1991-2001) TRABALHO FINAL DE GRADUÇÃO Junior Ivan Bourscheid Santa Maria, RS, Brasil 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA

CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A

PERCEPÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-

GUERRA FRIA (1991-2001)

TRABALHO FINAL DE GRADUÇÃO

Junior Ivan Bourscheid

Santa Maria, RS, Brasil

2013

HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA

CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A

PERCEPÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-

GUERRA FRIA (1991-2001)

Junior Ivan Bourscheid

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações

Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como

requisito parcial para a obtenção do grau de

Bacharel em Relações Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. José Renato Ferraz da Silveira

Santa Maria, RS, Brasil

2013

Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Departamento de Ciências Econômicas

Curso de Relações Internacionais

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho Final de

Graduação

HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA

CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A PERCEPÇÃO DO

SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA (1991-2001)

elaborado por

Junior Ivan Bourscheid

como requisito parcial para obtenção do grau de

Bacharel em Relações Internacionais

COMISSÃO EXAMINADORA:

José Renato Ferraz da Silveira, Dr.

(Presidente/Orientador)

Reginaldo Teixeira Perez, Dr.

(UFSM)

Igor Castellano da Silva, Ms.

(UFRGS)

Santa Maria, 20 de dezembro de 2013.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, Maria e Arno Osvaldo, prestando um ínfimo

reconhecimento pelo esforço que empreenderam para que pudesse alcançar o presente

momento em que este trabalho é escrito. Tenham a certeza de que toda a vossa labuta foi

recebida de minha parte como a mais pura representação de vosso amor, portanto, nunca será

menosprezada ou preterida, é a razão fundamental para que cumprisse esta etapa.

Aos meus irmãos, Imelda e Jair, ao meu cunhado Ornei e aos meus sobrinhos

Fernanda e Henrique, um agradecimento especial pela contribuição inestimável que aportaram

à minha pessoa e, direta ou indiretamente, ao presente trabalho. Do mesmo modo agradeço

aos demais familiares que incentivaram e participaram ativamente de minha jornada até aqui.

Não poderia deixar de agradecer a todos os amigos e amigas, seja de Pato Bragado,

Santa Maria, do Paraguai ou Argentina, que de distintas maneiras colaboraram para que

alcançasse o cumprimento deste percurso, com a apresentação do presente estudo. Neste

sentido, agradeço especialmente aos amigos de Santa Maria e do Curso de Relações

Internacionais, Fábio, Tiago, Gustavo, Rodrigo, Vinicius, Renan, Eduardo, Pedro, Thiago,

Matheus, Sr. Mosar da Costa, entre tantos outros, que auxiliaram-me oferecendo muito mais

do que simples relacionamentos interpessoais, ofereceram amizade, carinho e afeto, de

imprescindibilidade para a vida longe da terra natal.

Agradeço ao Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa

Maria pela oportunidade da formação superior, esperando que possa retornar à sociedade todo

o empenho e estrutura fornecida por meio desta instituição. Neste âmbito, agradeço aos

professores que participaram ativamente de minha formação acadêmica neste período, bem

como aos servidores técnico-administrativos, Maria Medianeira e Rui Tiago, por sua

contribuição com minha formação acadêmica. Agradeço, igualmente, aos membros da Banca

Examinadora, por sua contribuição ao presente trabalho.

Finalmente, ao agradecer às pessoas imprescindíveis para a conclusão do curso de

graduação e do presente trabalho, não poderia deixar de agradecer ao Orientador, Professor,

Coordenador e, principalmente, amigo José Renato, uma das mais inestimáveis surpresas que

a vivência em Santa Maria poderia trazer. Vossa amizade nunca será esquecida.

Concebo esta como uma obra coletiva. Apenas expressei sentimentos, inquietações,

indagações e concepções resultantes de minha vivência com todos os supracitados.

RESUMO

Trabalho Final de Graduação

Curso de Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Maria

HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA

CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A PERCEPÇÃO DO

SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA (1991-2001)

AUTOR: JUNIOR IVAN BOURSCHEID

ORIENTADOR: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA

Data e Local da Defesa: Santa Maria, 20 de dezembro de 2013.

O presente estudo visa contribuir para a análise dos períodos de transição

das relações internacionais, enveredando num escopo que permita aportar

alternativas tanto para o esclarecimento dos principais fatores e fenômenos que

permeiam a estrutura histórica vigente, quanto para fornecer linhas de

desenvolvimento passíveis de conformarem-se sob a manutenção destas

circunstâncias. Para tanto, compreendem-se os obstáculos que apresentam-se ao

cientista social, sob o âmbito das rigidezes teórico-científicas, fomentando a

iminência da apreciação de outra atividade humana potencialmente eficaz e

reveladora das relações sociais na realidade momentânea, a produção artística. A

sensibilidade e perspicuidade inerentes aos esforços artísticos comprometidos

com o desvelamento dos relacionamentos sociais tornam-nos ferramenta

empírica imprescindível aos ímpetos teórico-científicos empenhados em

depreender os períodos de transição, essencialmente nas relações internacionais

contemporâneas. Neste afã, encontramos na produção musical de Caetano

Veloso uma contribuição potencialmente esclarecedora da ordem internacional

conformada ao final da Guerra Fria. Partindo da análise da construção identitária

nacional, Caetano empreende uma linha de desenvolvimento analítico

possibilitando perceber as relações do doméstico com o internacional,

culminando numa percepção sistêmica das relações internacionais, partindo da

compreensão dos atores fundamentais nestas, tanto estatais quanto não-estatais,

convergindo para o estabelecimento de uma abordagem alternativa aos estudos

internacionais. Tendo em vista tais perspectivas, realiza-se a aproximação da

contribuição de Caetano para a percepção do Sistema Internacional pós-Guerra

Fria com a teoria crítica coxiana, entendendo tal ordenamento internacional

como imerso nos limites da hegemonia, contrapondo-se, assim, às principais

teorias surgidas no centro hegemônico, vinculadas aos desígnios do

estabelecimento e manutenção deste projeto.

Palavras-chave: Hegemonia. Ordem Mundial. Pós-Guerra Fria. Contestação.

Caetano Veloso. Teoria Crítica.

ABSTRACT

Senior Thesis

International Relations Major

Universidade Federal de Santa Maria

HEGEMONY AND CONTESTATION: AN ANALYSIS OF THE

CAETANO VELOSO’S CONTRIBUTION TO THE PERCEPTION OF

THE POST COLD WAR INTERNATIONAL SYSTEM (1991-2001)

AUTHOR: JUNIOR IVAN BOURSCHEID

ADVISER: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA

Defense Date and Place: Santa Maria, December 20th, 2013.

This study aims to contribute to analyze the transition periods of

international relations, embarking on a scope that allows both alternatives

contribute to the clarification of the main factors and phenomena that underlie

the current historic structure, and to provide lines of development to comply

maintenance under these circumstances. To do so, understand the obstacles that

present themselves to the social scientist, in the context of theoretical and

scientific rigidities, fostering appreciation of the imminence of another

potentially effective and revealing human activity of social relations in

momentary reality, the artistic production. The inherent sensitivity and

perspicuity of the artistic endeavors committed with the unveiling of social

relationships making a indispensable empirical tool for the theoretical-scientific

impulses committed to deduce the transition periods, mainly in contemporary

international relations. In this effort, we find in the musical production of

Caetano Veloso potentially enlightening contribution of international order

formed at the end of the Cold War. Based on the analysis of national identity

construction , Caetano undertakes a range of analytical development allowing to

realize the relationships of domestic with international spaces, culminating in a

systemic perception of international relations, based on the fundamental

understanding of these actors, both State and non-state, converging to the

establishment of an alternative approach to international studies. Given these

perspectives, we make the approximation of the contribution of Caetano for

perceived post-Cold War international system with coxian critical theory,

understanding the international order such as submerged within the limits of

hegemony, opposing thus the major theories arising in the hegemonic center,

linked to the plans for the establishment and maintenance of this project.

Keywords: Hegemony. World Order. Post-Cold War. Contestation. Caetano

Veloso. Critical Theory.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................08

1 ALÉM DO OTIMISMO E DO PESSIMISMO: UMA TEORIA CRÍTICA

PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS PÓS-

GUERRA FRIA.................................................................................................26 1.1 Implicações do processo de desenvolvimento histórico às relações internacionais:

sobreposição aos mitos nas ciências sociais...........................................................................26

1.2 A lógica hegemônica das relações internacionais no pós-Guerra Fria: perspectivas e

desafios à estabilização e manutenção da ordem mundial..................................................36

2 ENTRELAÇAMENTOS DE ARTE E POLÍTICA EM CAETANO

VELOSO: CONTESTAÇÃO E CRÍTICA ÀS RIGIDEZES

ANALÍTICAS....................................................................................................48

3 HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: A APROXIMAÇÃO DE CAETANO

VELOSO À TEORIA CRÍTICA COXIANA.................................................64 3.1 Alguma coisa está fora da nova ordem mundial............................................................64

3.2 A função das mídias na difusão do projeto hegemônico................................................69

3.3 O caráter multifacetado da disseminação da democracia: perspectivas domésticas e

internacionais..........................................................................................................................74

3.4 Limitações à atuação da potência hegemônica: o sofisma entre a premissa dos

Direitos Humanos e a segurança interna..............................................................................84

CONCLUSÃO...................................................................................................92

REFERÊNCIAS................................................................................................98

ANEXOS..........................................................................................................103

INTRODUÇÃO

Os períodos de transformação marcam decisivamente as relações humanas, por não

comportarem exercícios de predição, seus efeitos não são planejáveis, determinando a

conjuntura no período seguinte, cabendo ao intelecto – conservador ou revolucionário –

decifrar a realidade presente. De acordo com Gramsci (1978, p. 162), o esforço de

previsibilidade refere-se aos eventos embebidos pela atuação prática, onde verifica-se a

aplicação do esforço voluntário de forma a contribuir “concretamente para criar o resultado

‘previsto’”, gerando uma “vontade coletiva” que permita a consecução dos trâmites que

acarretam o resultado esperado pela atuação.

Considerando-se grandes agregados humanos, como os Estados, tais preocupações são

acrescidas pelas amplas dissensões entre os diversos grupos sociais que os compõe, tendo

como único fator de certeza – por vezes momentânea – o poder superior do Estado, garantido

pelo seu monopólio do poder coercitivo.

Ao evoluir esta análise para o espaço global, os momentos de transição das relações

internacionais impulsionam sobremaneira complicações para a percepção dos movimentos

que alteram a configuração do poder mundial, por tal poder não estar concentrado em uma

única instituição política, consubstanciando-se numa organização anárquica das instituições

nacionais dentro do Sistema Internacional1.

Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloque especialmente

em determinados momentos históricos, os quais se chamam de “transição”, isto é, de

mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas

1 A acepção da ordem internacional enquanto anárquica consiste no foco da análise de Hedley Bull, buscando

diferenciar os meandros que delimitam a ordem interna da internacional. De tal modo, o autor conceitua um

Sistema Internacional (ou sistema de Estados) como o fenômeno surgido quando “dois ou mais estados têm

suficiente contato entre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam,

pelo menos até certo ponto, como partes de um todo” (BULL, 2002, p. 15). Contudo, o desenvolvimento dos

relacionamentos entre os Estados possibilita o aprofundamento dos vínculos recíprocos, consubstanciando

aproximações das sociedades internas, criando, assim, uma Sociedade Internacional. Esta é compreendida como

conformada “quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma

sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e

participam de instituições comuns” (BULL, 2002, p. 19). De ambas as concepções, depreende-se que o ator

fundamental é o Estado. Neste sentido, Hedley Bull aponta que o ordenamento internacional é

fundamentalmente anárquico, pois não existe uma instituição superior aos Estados que lhes constranjam as

ações, estando estes limitados pelos fatores estruturantes da Sociedade Internacional, bem como de seus

interesses específicos, que lhes impelem a moldarem suas políticas quando da atuação no âmbito internacional.

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desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e

expansivas, ou então se multiplicam os programas teóricos que demandam, também

eles, a sua justificação realista, o que ocorre na medida em que demonstram a sua

possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam mais

práticos e reais (GRAMSCI, 1978, p. 52).

A literatura das relações internacionais recorrentemente trata dos turning points

(pontos de virada) do Sistema Internacional e seus efeitos que implicarão no novo

ordenamento internacional. Revoluções sócio-econômicas e políticas, conflitos internacionais,

são eventos que acarretam diretamente nas ações externas dos Estados, podendo fazê-las

avançar ou retroceder nos rumos da paz ou da conflituosidade. Portanto, “a história é

liberdade enquanto é luta entre liberdade e autoridade, entre revolução e conservação, luta na

qual a liberdade e a revolução continuamente prevalecem sobre a autoridade e a conservação”

(GRAMSCI, 1978, p. 224). Esta afirmação de Gramsci sobressalta-se quando inserida no

cenário internacional, onde as fontes de autoridade e conservação não são tão perceptíveis

quanto nos cenários domésticos.

Paralelamente, os produtos artísticos possibilitam capturar os distintos modos de

percepção da realidade em seu contexto de produção, fornecendo aos atores políticos

subsídios que permitem compreender os grupos sociais e projetar suas ações políticas

estabelecendo a maximização de seus benefícios.

Nesta situação a arte aparece como forma de conhecimento e investigação,

constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a

realidade. Daí que, em certos momentos ou como parte de um projeto pessoal, a

produção artística consegue representar a condição humana, os mecanismos do

poder e da economia, ou a estrutura social na qual o artista está envolvido (CHAIA,

2007. p. 22).

Consequentemente, a arte é um instrumento para a percepção e compreensão da

conjuntura política. A sensibilidade com que o artista logra capturar e apresentar o momento

em que procede à produção possibilita aprofundar o entendimento do processo político

vigente no momento de transição. Isto é possível, na concepção gramsciana, pois na arte a

relação entre forma e conteúdo permite potencializar a utilização da arte como instrumento de

absorção da realidade.

O fato de que forma e conteúdo se identifiquem significa que, na arte, o conteúdo

não é o “assunto abstrato”, isto é, a intriga romanesca e a massa particular de

sentimentos genéricos, mas a própria arte, uma categoria filosófica, um momento

“distinto”, do espírito, etc. (GRAMSCI, 1978, p. 196-197).

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Segundo o cientista político Miguel Chaia, são inúmeras as relações entre arte e

política, encadeando instrumentos amplamente capacitados para os estudos das

transformações nas relações políticas.

As relações entre arte e política ganham diferentes matizes no transcurso histórico,

em função de inúmeros fatores como as particularidades das formações sociais, os

períodos de valorização do coletivo ou do individual, os contextos de guerras e

revoluções, a importância de ações artísticas de grupos, vanguardas ou movimentos

e os domínios de gênero, escolas ou tendências artísticas. Assim, sob diferentes

condições, o artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade,

de maneira que a obra passa a conter – de forma mais ou menos explícita – o

conjunto de fatores sociais circundantes a ela (CHAIA, 2007, p. 13).

Por ser uma ação intrinsecamente humana, a arte “é um exercício dos sentidos e um

grande indício de liberação humana” (CHAIA, 2007, p. 18). Deste modo, os mais distintos

movimentos sociais se utilizam da arte e da cultura como uma forma de difundir seus

programas de transformação da sociedade. Não obstante, por vezes a própria obra de arte é

um objeto de conscientização social e desperta os desejos revolucionários da sociedade.

Os aspectos culturais voltam-se como elementos imprescindíveis para a análise do

capitalismo contemporâneo, bem como para os projetos que visem sua reparação ou

superação. Em Gramsci já era nítida a preocupação com a consideração da esfera cultural para

a “filosofia da práxis”, readequando-a aos novos contornos que a humanidade tomava na

primeira metade do século passado.

Pode-se dizer que não só a filosofia da práxis não exclui a história ético-política,

como, ao contrário, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente

na reivindicação do momento de hegemonia como essencial à sua concepção estatal

e à “valorização” do fato cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural como

necessária, ao lado das frentes meramente econômicas e políticas (GRAMSCI, 1978,

p. 219).

Conseguintemente, considera-se a arte como ferramenta revolucionária,

potencialmente reveladora das estruturas sociais obscurecidas pelas transformações sofridas

ao longo do tempo, seguindo-se a senda de Nietzsche, é uma atividade que possibilita a (des)

construção da realidade, retirando o véu que a encobre, tornando-a surpreendentemente

límpida.

Pois agora entendemos o que significa na tragédia querer ao mesmo tempo olhar e

desejar-se para muito além do olhar: estado que, no tocante à dissonância empregada

artisticamente, precisaríamos caracterizar exatamente assim, isto é, que queremos

ouvir e desejamos ao mesmo tempo ir muito além do ouvir. Esse aspirar ao infinito,

o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade claramente percebida,

lembram que em ambos os estados nos cumpre reconhecer um fenômeno dionisíaco

que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo

11

individual como eflúvio de uma arquiprazer, de maneira parecida à comparação [...]

entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras

aqui e ali e constroi montes de areia e volta a derrubá-los (NIETZSCHE, 2001, p.

141-142).

Tais considerações voltam-se demasiado verificáveis, no último grande período de

transição das relações internacionais, a década de 1990. O fim da Guerra Fria – que ditou a

tônica da política mundial no período de 1945 a 1991 –, de maneira inesperada

(HOBSBAWM, 2005), acarretou sobejo fluxo de teorias aspirantes à compreensão do novo

momento histórico da humanidade.

No afã de apreender e analisar as Relações Internacionais após o esfacelamento das

tensões que marcaram o período da Guerra Fria encontra-se na produção artística um

elemento profundamente indutor da capacidade criativa humana, imersa nas condições de

tempo e espaço específicas do “momento unipolar” norte-americano, erigido com o colapso

da União Soviética em 1991 (KRAUTHAMMER, 1991).

O ordenamento bipolar estava arraigado nas concepções sociais da realidade

internacional de tal forma que as duas superpotências constituíam-se em atores trans-

históricos. Os analistas recorriam a modelos explicativos para as crises que afetavam as

superpotências, contudo, não as considerando como potencialmente transformadoras dessa

distribuição de poder perenal (HOBSBAWM, 2005).

Agrega-se ao fator da redistribuição do poder internacional, o colapso das ideologias

que ditaram os programas globais dos séculos XIX e XX, as crises econômicas recorrentes –

em diversos níveis e locais – que desde a década de 1970 assolavam a economia

internacional, implicado em uma absoluta desorientação e impotência para com o período que

se seguiria. “O motivo dessa impotência estava não apenas na verdadeira profundidade e

complexidade da crise mundial, mas também no aparente fracasso de todos os programas,

velhos e novos, para controlar e melhorar os problemas da raça humana” (HOBSBAWM,

2005, p. 541).

Todavia, a passagem do momento de disputa ideológica – qualificada pelos fatores

econômicos e políticos – para um novo momento, ainda difuso, não absorvido claramente

pelos intelectuais, é um evento revelador do poder interpretativo e do valor científico que a

arte toma para os estudos políticos, sobremodo quando estes apoiam-se em paixões

econômico-corporativas. Isso é observado, pois:

12

[...] enquanto a obsessão político-econômica (prática, didascálica) destroi a arte, a

moral, a filosofia [...] estas atividades também são “política”. Isto é, a paixão

econômico-política é destrutiva, quando é exterior, imposta pela força, segundo um

plano preestabelecido [...]; contudo, ela pode se tornar implícita na arte, etc., quando

o processo é normal, não violento, quando entre a estrutura e as superestruturas

existe homogeneidade e o Estado superou a sua fase econômico-corporativa

(GRAMSCI, 1978, p. 274-275).

Dos escombros da velha ordem bipolar emergiram teóricos ávidos por reavivar antigos

sistemas explicativos das interações sociais em âmbito internacional. Sua importância não

residia simplesmente no escopo científico, mas também numa ferramenta imprescindível ao

poder hegemônico a estabelecer-se, que deve compreender a realidade na qual desempenhará

tal processo, e repassar essa concepção aos demais atores.

Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, que se

verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças, que a

compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de

civilizações nacionais e continentais (GRAMSCI, 1978, p. 37).

Duas teorias destacaram-se neste contexto, suscitando extensivos debates acadêmicos

acerca das relações internacionais na década de 1990, e seus efeitos no novo milênio que se

acercava. Samuel Huntington recorreu às tensões dos fatores culturais – uma releitura dos

conflitos pré-modernos marcados pela disputa religiosa – para construir cenários prováveis

das relações internacionais no século XXI. Francis Fukuyama reavivou a clássica teoria

liberal – com suas raízes no final do século XVIII – motivado pelo colapso do socialismo

soviético, considerando-a a única plausível de desvendar e orientar as ações humanas,

especialmente na esfera global.

Ambos os modelos interpretativos apelam a sistemas clássicos, numa manobra que

desconsidera os fenômenos do período anterior, extraindo deste apenas os elementos que

legitimam suas pretensões. Cria-se uma realidade restrita aos desígnios explicativos de seu

arcabouço conceitual, seguindo-se a lógica do “bater de asas do anelo” de Nieztsche,

eliminando os resíduos que lhe emperravam seu vôo futurista. Tal artifício foi analisado por

Walter Benjamin evocando-se:

À forma de um meio de construção que, no começo, ainda é dominada pela do modo

antigo (Marx), correspondem imagens na consciência coletiva em que o novo se

interpenetra com o antigo. Essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a

coletividade procura tanto superar quanto transfigurar as carências do produto social,

bem como as deficiências da ordem social da produção. Além disso, nessas imagens

desiderativas aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado – mas isto

quer dizer: do passado recente. Tais tendências fazem retroagir até o passado remoto

a fantasia imagética impulsionada pelo novo. No sonho, em que ante os olhos de

cada época aparece em imagens aquela que a seguirá, esta última comparece

13

conjugada a elementos da proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem

classes. Depositadas no inconsciente da coletividade, tais experiências,

interpenetradas pelo novo, geram a utopia que deixa o seu rastro em mil

configurações da vida, desde construções duradouras até modas fugazes

(BENJAMIN, 1991, p. 32).

O retorno da civilização e do liberalismo como fontes de inteligibilidade do Sistema

Internacional são justificados pelo momento em que ocorre. A distribuição de poder, o

relacionamento das potências mundiais, as forças motrizes da humanidade que esclareciam as

relações internacionais do período anterior haviam sido dissipadas, entretanto, a conformação

de tais fatores na nova realidade estava obstada pela tradição modernista, enfática em

“grandes projetos coletivos” (JAMESON, 1997, p. 44), em fenômenos gerais que explicassem

a realidade e lhe permitissem depreendê-la. Qual o principal fator explicativo das relações

internacionais no novo milênio? Esta era a pergunta que os teóricos apressavam-se em

responder.

Desse modo, Roland Barthes analisou o processo de adequação da realidade aos

objetivos de um sistema explicativo como consistindo no “mito” contemporâneo. Neste

fenômeno, toda a história abarcada na criação de um determinado objeto é subtraída, e este

aparece como natural, incontestável e eterno.

Quando o mito fala sobre um objeto, despoja-o de toda a História. Nele, a história

evapora-se, transforma-se numa empregada ideal: prepara, traz, coloca; o patrão

chega e ela desaparece silenciosamente: podemos usufruir desse belo objeto sem nos

questionarmos sobre a sua origem (BARTHES, 1999, p. 171).

A eliminação dos resíduos da Guerra Fria à nova ordem servia aos interesses desses

intelectuais. Para construir um novo modelo de compreensão da realidade, era necessário

compô-la, de modo que as tensões ideológicas entre capitalismo e socialismo fossem

apaziguadas, num amplo movimento de afirmação capitalista, descaracterizando a luta de

classes, dissolvendo os conceitos de burguesia e proletariado em prol da conceituação

civilizacional ou universalista/individualista.

A deserção do nome burguês não é portanto um fenômeno ilusório, acidental,

acessório, natural ou insignificante: é a própria ideologia burguesa, o movimento

pelo qual a burguesia transforma a realidade do mundo em imagem do mundo, a

História em Natureza (BARTHES, 1999, p. 162).

Era um esforço calcado na remodelação da concepção do mundo dominante, marcada

por novas contradições, porém, estruturada de modo a ser percebida como a “mais

explicativa” da realidade. “Uma concepção do mundo não pode revelar-se como capaz de

impregnar a toda uma sociedade e de transformar-se em ‘fé’, a não ser quando demonstra ser

14

capaz de substituir as concepções e fés precedentes em todos os graus da vida estatal”

(GRAMSCI, 1978, p. 212).

É no retorno do liberalismo clássico e no fortalecimento do neoliberalismo que

sobressalta-se o elemento mitificador da ordem pós-Guerra Fria. Para compreender e justificar

a nova realidade, esses intelectuais despojam-na das contradições e tensões inerentes à sua

natureza, especialmente por estas serem as grandes impulsionadoras da estruturação do

período anterior. Esses artifícios “podem ser igualmente analisados como uma série de

tentativas de nos distrair e nos desviar dessa realidade, ou de disfarçar suas contradições e

resolvê-las na aparência de várias mistificações formais” (JAMESON, 1997, p. 95).

Executa-se uma operação de cisão no encadeamento histórico, cada momento presente

transforma-se em história, e seus precedentes são destituídos da realidade, sendo aludidos

apenas para a comprovação da realidade atual como histórica e natural. Cria-se um presente

eterno, a cada novo período da humanidade, sendo suprimido quando da ascensão de um novo

presente. “Com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência

dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não

relacionados no tempo” (JAMESON, 1997, p. 53).

A avidez com que os acadêmicos atuavam na procura dos conceitos que tornassem a

realidade menos obscura ao intelecto humano, voltava-se como a fomentadora da própria

obscuridade da realidade, por esquecerem-se do desenvolvimento histórico vivenciado pelos

conceitos que explicavam a realidade anterior, influenciadores na atual, ainda não

desvendada.

Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a

realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível –

fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser

logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade

inseparável (GRAMSCI, 1978, p. 247).

Tais indícios do novo período histórico já haviam sido observados na criação artística,

desde o alto modernismo e o pós-modernismo, com a expansão da indústria cultural. Esta

indústria passou a nortear-se pela reprodução ampliada dos produtos culturais, a fim de

atender à demanda oferecida pelo setor de entretenimento, invenção do capitalismo global de

meados do século XX. Segundo Theodor W. Adorno, este novo cenário acarretou a

disseminação da mediocridade artística, através do álibi da identidade, que padronizava o

15

estilo do entretenimento como naturalmente acessível às novas massas consumidoras de tais

produtos.

O momento pelo qual a obra de arte transcende a realidade é, com efeito, inseparável

do estilo, mas não consiste na harmonia realizada, na problemática unidade de forma

e conteúdo, interno e externo, indivíduo e sociedade, mas sim nos traços em que

aflora a discrepância na falência necessária da apaixonada tensão para com a

identidade. Em vez de se expor a essa falência, na qual o estilo da grande obra de

arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se manteve à semelhança de outras

pelo álibi da identidade. A indústria cultural finalmente absolutiza a imitação

(ADORNO, 2009, p. 13-14).

Por conseguinte, a indústria cultural tornou-se instrumento essencial para a mitificação

da realidade, com a reprodução ampliada de seus produtos, facilitada pela difusão tecnológica

dos meios de comunicação. A cultura comercializada voltou-se substancial para a ideologia

globalizante, no contexto internacional pós-1991. Não obstante:

[...] a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e

superestrutura de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados

Unidos sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de

classes, o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror (JAMESON, 1997. p.

31).

E esta nova cultura, pretensamente universal, fomentadora da paz e garantidora de

uma nova ordem mundial, tornou-se a base das relações internacionais. Todavia, além desse

fator, agregou-se outro, mais palpável, potencialmente com maior poder explicativo e a

essência dos argumentos construtores do neoliberalismo, a economia liberal.

O novo período da história, após um século violento, onde a barbárie revelou-se muito

mais frequente que em qualquer outro, pelo poder destrutivo que o ser humano evidenciou

possuir, “traduzir-se-ia no fim das guerras e revoluções sangrentas. Os homens, de acordo

quanto aos objectivos, não teriam grandes razões para lutar. A actividade económica satisfaria

as suas necessidades, pelo que já não teriam de arriscar a vida em batalhas” (FUKUYAMA,

2007, p. 300).

No entanto, a pretensa ordem pacífica fornecida pelo triunfo do capitalismo e do

liberalismo não se realizou, frustrando por conceber a economia como atividade pacificadora,

desconsiderando suas contradições inerentes. “Na economia, o elemento ‘perturbador’ é a

vontade humana, vontade coletiva, cuja atitude varia de acordo com as condições gerais nas

quais vivem os homens, isto é, ‘conspirante’ e organizada de maneiras diversas” (GRAMSCI,

1978, p. 300).

16

A vontade humana é concebida por Gramsci enquanto “vontade coletiva”,

polemizando com a análise de Fukuyama, que atribui ao caráter individual a proeminência nas

relações econômicas e políticas no novo momento histórico. Para Gramsci, isto reitera a

crítica às teorias individualistas, por estruturarem-se em bases “anti-históricas”. “O

‘individualismo’ que se tornou anti-histórico, contemporaneamente, é o que se manifesta na

apropriação individual da riqueza, ao passo que a produção da riqueza tem se socializado cada

vez mais” (GRAMSCI, 1978, p. 48).

O desenvolvimento histórico consiste em uma unidade temporal, tendo cada fase sua

devida relevância para as posteriores, não havendo espaço para “pontos de partida”

fundamentalmente inovadores, enquanto continuar sendo a humanidade a estabelecer sua

essência.

De fato, toda fase histórica deixa os seus traços nas fases posteriores; e estes traços,

em certo sentido, tornam-se o seu melhor documento. O processo de

desenvolvimento histórico é uma unidade no tempo, pela qual o presente contém

todo o passado e do passado se realiza no presente o que é “essencial”, sem resíduo

de um “incognoscível” que seria a verdadeira “essência” (GRAMSCI, 1978, p. 119).

Os traços característicos da ordem internacional anterior mantiverem-se, a

conflitualidade persistiu, motivada pela competição econômica no espaço globalizado,

multinacional, transfronteiriço, ademais da proliferação de conflitos étnicos e guerras civis,

dificultando a atuação das potências internacionais, especialmente dos Estados Unidos, pois

alguns atores possuíam estatuto internacional, não obstante, internamente perdiam

paulatinamente seu monopólio do poder coercitivo.

O colapso da União Soviética e o fim do socialismo real introduziram importantes

mudanças no equilíbrio do poder mundial, que não podem ser ignoradas ou

subestimadas. O sistema da bipolaridade, no qual o mundo tinha se acostumado,

ainda que perigosamente, a viver desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi

rompido e as expectativas da criação de uma nova ordem internacional não foram

realizadas, e dificilmente o serão em curto prazo. Esta nova ordem, desejada por

muitos e que se supunha poder ser mais homogênea e igualitária, ficou no terreno

das ilusões. O que predomina atualmente na cena internacional são aspectos

profundamente negativos e que contribuem não para uma estabilidade do sistema

mas, ao contrário, para a irrupção de uma série de focos nos quais a tensão vem se

tornando crescente, seja no plano estratégico, seja no plano econômico-financeiro

(PEIXOTO, 2002, p. 39-40).

Prosseguindo neste escopo, outra teoria célebre dos anos 1990 foi o “choque de

civilizações” de Samuel P. Huntington. Segundo o autor, as disputas no seio da economia

global estariam condicionadas por um fator civilizacional, que seria a principal fonte das

tensões no novo século. O êxito econômico elevaria a autoafirmação cultural e civilizacional

17

das nações emergentes, em contraposição ao retrocesso das potências estabelecidas, que

teriam seus valores e concepções de mundo contestadas pelas novas potências, num cenário

de crescente acirramento das contendas. Sob esta ótica:

Decréscimos de poder econômico e militar conduzem à dúvida sobre si mesmo, a

crises de identidade e a tentativas de encontrar em outras culturas as chaves para o

êxito econômico, militar e político. À medida que sociedades não-ocidentais

aumentam sua capacidade econômica, militar e política, elas cada vez mais

trombeteiam as virtudes de seus próprios valores, instituições e cultura

(HUNTINGTON, 1997, p. 111).

Incorre-se aqui na mitificação das relações internacionais, no retorno à lógica

conflituosa das civilizações, utilizando-se das demais variáveis sócio-político-econômicas

para justificar o empreendimento teórico-científico de elevar as tensões culturais da

humanidade ao patamar de novo fator fomentador de conflitos e ordenador do Sistema

Internacional pós-Guerra Fria.

Estruturam-se as premissas e suas justificativas com os métodos captados e analisados

por Barthes (1999) e Benjamin (1991). O mito do choque de civilizações é despojado de toda

historicidade. Concluído este procedimento, agregam-lhe elementos da proto-história para

justificá-lo como traço marcante da história da humanidade. Todas as demais tensões no

interior das agrupações humanas, e em seus relacionamentos, quedam-se destituídas de

história, voltando-se apenas como explicações acessórias para a inovadora organização das

relações internacionais.

Um sistema conceitual filosófico baseado em premissas civilizacionais peca, segundo

Gramsci, quando não considera que foi estabelecido por preceitos sócio-culturais das classes

dirigentes das nações hegemônicas em seu surgimento.

Isto pode ser visto mais claramente pelo fato de que estes termos se cristalizaram,

não a partir do ponto de vista de um hipotético e melancólico homem em geral, mas

do ponto de vista das classes cultas europeias, que, através de sua hegemonia

mundial, fizeram-nos aceitar por toda parte (GRAMSCI, 1978, p. 172).

Tanto Huntington (1997) quanto Fukuyama (2007), ao constatarem o encerramento da

ordem anterior, cogitam que suas tensões fundamentais foram eliminadas da realidade

juntamente com a dissolução do conflito bipolar. O primeiro reconhece a agitação inerente a

tais fenômenos, no entanto, considera que sua conflituosidade no novo contexto é

determinada por linhas civilizacionais. O segundo aprecia que com o fim da ordem anterior

não haveria uma alternativa factível às problemáticas inerentes ao capitalismo, logo, volta-se

18

inevitável a manutenção do capitalismo, em sua forma mais livre e autônoma, proporcionando

o desenvolvimento decisivo do progresso humano, em todas as regiões, como a solução

plausível no desenvolvimento humano nesta etapa. “As aparentes diferenças na situação de

cada uma delas não parecerão reflectir distinções permanentes e necessárias entre as pessoas

que as utilizam, mas apenas o produto das suas posições distintas ao longo do caminho”

(FUKUYAMA, 2007, p. 324-325).

Entrementes, erigir um sistema filosófico, político, econômico e social que explique a

interação dos atores internacionais após o esfacelamento de um ordenamento que manteve-se

por mais de quatro décadas, baseando-se na convicção de que os elementos contraditórios

estruturadores haviam sido mitigados é empresa científica arriscada. “Mas não acredito que

existam muitos a sustentar que, com a modificação de uma estrutura, todos os elementos da

superestrutura correspondente devam necessariamente cair” (GRAMSCI, 1978, p. 273).

Ambas as teorias tem sua fortaleza e sua debilidade advindas da mitificação da

realidade. Entretanto, incorrer no regresso histórico no afã de proporcionar seu progresso é

um procedimento de alto risco.

Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento

do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base,

vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da

sociedade, é a escuridão (HOBSBAWM, 2005, p. 562).

Similar indefinição quanto ao novo quadro dos relacionamentos internacionais vigente

na década de 1990 é observável na atuação das potências internacionais neste período, fator

que favorecia análises amplamente divergentes quanto ao ordenamento mundial emergente

para o novo milênio.

Os Estados Unidos, superpotência resistente ao fim da Guerra Fria, ascendiam como a

potência que disporia pacificamente a ordem internacional, controlando os focos de

conflituosidade internacional, nos moldes da teoria da estabilidade hegemônica de Charles

Kindleberger2. Fukuyama (2007) foi ferrenho defensor de tal argumentação, baseando-se nos

elementos do liberalismo republicano, intentando evidenciar que numa ordem internacional

2 Esta percebe as estruturas hegemônicas de poder, quando dominadas por um único Estado, possuindo maior

propensão a desenvolver regimes internacionais fortes, nos quais as regras são relativamente precisas e bem

obedecidas. Concebe, desse modo, a relevância que a autoridade de normas e instituições internacionais tem no

ordenamento internacional, não obstante, subestima a utilização de tais instituições para legitimar o projeto da

potência hegemônica, promovendo, por vezes, a conflituosidade em contraposição à estabilidade (COX, 1986).

19

democrático-liberal, os focos de conflito virtualmente devastadores seriam eliminados, pela

natureza dos regimes políticos, facilitadores do processo de pacificação.

Por outro lado, Huntington (1997) analisava os efeitos de uma política externa baseada

em extremos, atribuindo-lhe consequências perversas para o futuro nacional. O país deveria

atuar externamente com posições moderadas, definindo suas ações numa base civilizacional, a

fim de preservar não apenas sua colocação no Sistema Internacional, mas sua sobrevivência

na ordem civilizacional.

Nessa era [...] os Estados Unidos não podem nem dominar o mundo nem escapar

dele. Nossos interesses não serão mais bem servidos nem pelo internacionalismo

nem pelo isolacionismo, nem pelo multilateralismo nem pelo unilateralismo. O que

os servirá da melhor forma será evitar esses extremos contrapostos e, ao contrário,

adotar uma política aliancista de íntima cooperação com seus parceiros europeus a

fim de proteger e promover os interesses e valores da singular civilização de que

compartilham (HUNTINGTON, 1997, p. 397-398).

Há de se apreciar também outra análise, não tão pretensiosa quanto as duas

anteriormente referidas, que aborda a nova conjuntura internacional de modo histórico,

considerando – acertadamente como se comprova na atualidade – a década de 1990 como um

período de transição, de transformação, em que os atores internacionais não atuavam da forma

como se lhes cogitava adequada. Em relação às análises célebres desse momento, Hobsbawm

diz que:

A reação imediata dos comentaristas ocidentais ao colapso do sistema soviético foi

que ratificava o triunfo permanente do capitalismo e da democracia liberal, dois

conceitos que o menos sofisticado dos observadores americanos do mundo tendiam

a confundir. Embora o capitalismo certamente não se achasse na melhor das formas

no fim do Breve Século XX, o comunismo do tipo soviético estava

inquestionavelmente morto, e era muito improvável que revivesse. Por outro lado,

nenhum observador sério no início da década de 1990 podia ser tão confiante em

relação à democracia liberal quanto ao capitalismo. O máximo que se podia prever

com alguma confiança [...] era que praticamente todos os Estados iam continuar a

declarar sua profunda ligação com a democracia, a organizar algum tipo de eleição,

com uma certa tolerância por uma oposição às vezes conceitual, mas dando sua

própria interpretação ao significado do termo (HOBSBAWM, 2005, p. 553).

Essas indefinições decisivas à nova época são determinantemente observáveis no caso

da Europa. Com o fim da Guerra Fria, e da divisão proporcionada pela Cortina de Ferro, a

Europa enfrentou-se com a imprescindibilidade da definição de seu espaço territorial.

Segundo Huntington (1997, p. 197) a pergunta essencial neste momento era: “o que é a

Europa?” A fronteira oriental da Europa, que no período anterior estava demarcada pela

separação bipolar, agora deveria encontrar um novo fator delimitador. Tal (in) definição

determina as pretensões tanto da União Europeia, quanto da OTAN na sua nova configuração.

20

Nas teses gramscianas encontram-se apontamentos que corroboram, em partes, esse

argumento, referindo-se a necessidade que um grupo social tem de precisar sua tradição, seu

passado, para elencar a partir deste os elementos que permitam a superação das contradições

momentâneas e prosseguir seu desenvolvimento.

Todo grupo social tem uma “tradição”, um “passado”, e o considera como o único e

total passado. Aquele grupo que, compreendendo e justificando todos estes

“passados”, souber identificar a linha de desenvolvimento real – linha contraditória,

mas passível de superação na contradição – cometerá “menos erros”, identificará

mais elementos “positivos” sobre os quais apoiar-se para criar uma nova história

(GRAMSCI, 1978, p. 254).

Não obstante, enquanto Huntington constatava a indefinição identitária europeia,

Hobsbawm encontrava problemas de ordem político-econômica, empecilho fundamental para

as principais organizações do poder europeu no novo cenário.

Qual era o status político internacional da nova União Europeia, que aspirava a uma

política comum mas se mostrava espetacularmente incapaz de até mesmo fingir ter

uma, ao contrário das questões econômicas? Não estava claro nem mesmo se todos

os Estados, grandes ou pequenos, velhos ou novos – com exceção de uns poucos –,

existiriam em sua presente forma quando o século XXI atingisse o seu primeiro

quartel (HOBSBAWM, 2005, p. 538).

Enquanto a Europa estagnava em sua redefinição no quadro das relações

internacionais, outro ator substancial seguia na mesma direção, intentando reconfigurar sua

política externa em um patamar sumamente discrepante das últimas quatro décadas e meia. A

Federação Russa, maior Estado resultante da dissolução soviética e Estado-núcleo daquela

região, via-se sob pressões e contenções de todos os lados. A União Europeia e a OTAN

expandiam-se cada vez mais ao Leste; o Islã reafirmava-se e obstaculizava qualquer investida

russa na fronteira sul e sudoeste; e a China mantinha seu crescimento econômico

extraordinário, limitando as opções russas no sudeste do continente (HUNTINGTON, 1997).

Ademais da atuação japonesa, que mantinha-se como potência econômica na

economia globalizada, potências emergentes inseriam-se paulatinamente nas análises e

projeções de relações internacionais no novo milênio. Indubitavelmente, a China era o mais

evidente exemplo deste grupo de novos atores relevantes na esfera internacional. Todavia,

acrescentam-se a tal grupo a Índia, o Brasil e, em menor grau, a África do Sul e o Irã

(HUNTINGTON, 1997).

Adentrando-se nos aportes de Huntington, essas tensões no novo cenário global

estariam determinadas pelos aspectos cultural-civilizacionais. Por outro lado, Fukuyama,

21

crendo no triunfo do liberalismo, apresenta um quadro totalmente distinto que, todavia, se

verificou utópico e mitificador do período de transição. Neste escopo, acredita-se que:

O nacionalismo continua a ser mais intenso no Terceiro Mundo, na Europa do Leste

e na União Soviética, e aí subsistirá por mais tempo do que na Europa ou na

América. [...] As forças económicas encorajaram o nacionalismo ao substituírem as

classes por barreiras nacionais, criando entidades centralizadas e linguisticamente

homogéneas. Agora, com a criação de um mercado mundial único e integrado, essas

mesmas forças estão a encorajar o derrube das barreiras nacionais. O facto de a

neutralização política do nacionalismo poder não ocorrer nesta geração ou na

próxima não afecta a perspectiva de que tal acabará por acontecer (FUKUYAMA,

2007, p. 268).

Nesta pequena passagem da obra de Fukuyama, é nítida a mitificação da ordem

internacional observada naquele momento. Todas as problemáticas que implicaram no

ordenamento de 1945 a 1991 simplesmente dissolveram-se juntamente com a União

Soviética. O processo de globalização, facilitado com o desenvolvimento tecnológico, de

transportes e comunicações, conduzia-se pacífica e beneficamente em bases liberalizantes,

conduzido pela infalível “mão invisível” – verdadeiro fetiche histórico, que retornava aos

debates acadêmicos.

Quase que profeticamente – se seguirmos a seara mitificadora que embasou as

apreciações de Fukuyama – as análises de Huntington e, principalmente, Hobsbawm

contestavam o otimismo dos ensaios liberais, apresentando as indefinições da política externa

norte-americana como a promotora desta ordem globalizante, pois quando a potência mundial

voltou-se às ações unilaterais na conformação de seus objetivos para a estruturação deste

cenário, o potencial do argumento liberal esfacelou-se, e o período de transição completou-se,

com a inauguração definitiva da ordem permeada pela busca estadunidense da dominação, a

partir da Doutrina Bush.

As recentes atitudes do governo norte-americano e o surgimento da já denominada

“Doutrina Bush” – a guerra preventiva, a utilização da força, mesmo sem mandato

internacional ou com fraco apoio externo, e a manutenção a qualquer custo da

unipolaridade estratégica (leia-se superioridade militar incontestável dos Estados

Unidos) – levam-nos a adotar um critério analítico tentador, mas, talvez seja nas

atuais circunstâncias, parcial e equivocado, pois estamos, mais do que nunca, no

mais aberto e desabusado reino do interesse nacional. Nunca os diferenciais de

poder de um país perante os demais, coligados ou não, foram tão grandes

(PEIXOTO, 2002, p. 37).

Constatando-se as indefinições nas políticas das grandes potências no período de

transição que caracterizou as relações internacionais de 1991 a 2001, o presente estudo visa

estabelecer um marco teórico-conceitual que permita fornecer inteligibilidade a este período e

22

decifre as suas implicações para a estruturação do Sistema Internacional pós-Guerra Fria,

vigente na atualidade.

Para tanto, se utilizará dos entrelaçamentos de arte e política (CHAIA, 2007),

possibilitando a percepção e a captura da realidade neste momento histórico. É neste âmbito

que, no intuito de captar as colaborações brasileiras para a assimilação desse novo movimento

de ordenação do Sistema Internacional, este trabalho se propõe a analisar os procedimentos

artísticos do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso (1942- ), um dos principais

artistas brasileiros no âmbito musical nas últimas décadas, inovador no trato dos vínculos de

arte e política e ator central na produção de arte internacionalista brasileira.

Deste modo, empreende-se o estudo da contribuição de Caetano Veloso para a

transmutação da Música Popular Brasileira (MPB) e em seu avanço enquanto arte

internacionalizada, bem como sua aproximação com os aportes da teoria crítica para a

percepção das Relações Internacionais contemporâneas, possibilitando o debate de categorias

analíticas brasileiras para examinar o Sistema Internacional pós-Guerra Fria.

Partindo das tensões artísticas que resultaram no surgimento da música tropicalista,

procura-se posicionar as contribuições de Caetano Veloso para a transformação da Arte

Crítica brasileira, agregando a esta as colaborações provenientes dos avanços técnicos

internacionais, permitindo a afirmação da música popular brasileira e seu caráter original.

Para tal, envereda-se no debate que marcou o turning point cultural mundial nos anos

1960, a passagem do alto modernismo para o pós-modernismo, verificando-se a atenuação

dos “grandes projetos coletivos” em escala mundial, exacerbando seus limites, apontando para

posteriores mudanças políticas no cenário internacional e interno brasileiro, sob o marco dos

apontamentos de Jameson (1997).

O foco do trabalho estará contido na apreciação das transformações mundiais

ocorridas com o fim da Guerra Fria e na função da obra de Caetano Veloso para a percepção

brasileira deste novo cenário. Neste sentido, propõe-se a aproximação da produção musical de

Caetano Veloso nas décadas de 1990 e 2000 com os aportes da teoria crítica de Relações

Internacionais, e suas análises quanto à hegemonia no Sistema Internacional.

De tal modo, se analisarão as canções Fora da ordem (VELOSO, 1991), Santa Clara,

padroeira da televisão (VELOSO, 1991), O heroi (VELOSO, 2006), e Base de Guantánamo

(VELOSO, 2009). As temáticas concernentes à agenda das Relações Internacionais

23

contemporâneas abordadas nestas canções serão foco do estudo, tanto no modo como são

apresentadas e debatidas por Caetano Veloso nas canções, quanto em seu debate no interior da

teoria crítica de Relações Internacionais, observando os aspectos fronteiriços (CHAIA, 2007)

entre ambas as contribuições e suas inter-relações.

Conseguintemente, esta apreciação acarretará a delimitação de traços gerais do

pensamento brasileiro da política internacional, no concernente à definição do panorama

sistêmico da hegemonia estadunidense, e suas implicações para a atuação dos mais variados

atores internacionais, especialmente o Brasil.

Para realizar tais propósitos, utilizar-se-á da conceituação dos diferentes tipos de

entrelaçamento entre arte e política, efetivada por Miguel Chaia. Ademais, a consideração dos

efeitos da passagem do período modernista para o pós-modernista trará a contribuição

essencial de Fredric Jameson, analisando as implicações do esfacelamento das ideologias

coletivas fundadas no Ocidente durante o século XIX, juntamente com a nova onda de

expansão do capitalismo mundial presenciada a partir de 1970, a globalização.

Ao lançar-se mão destes dois teóricos, consequentemente se fará necessária a

apreciação dos pensadores clássicos de arte e política, como Nietzsche, Benjamin e Adorno,

principalmente os dois últimos com sua colaboração para a compreensão dos efeitos do

contexto histórico vivido na produção artística de determinado período e o modo como estes

fenômenos influenciam na percepção do artista quanto ao mundo a sua volta, de modo que a

produção artística não se torne mitificada (BARTHES, 1999).

Em busca de compreender a contribuição artística de Caetano Veloso analisa-se a obra

escrita Verdade Tropical, de autoria do próprio cantor e compositor baiano, concomitante a

outros escritos compilados nos volumes Alegria, Alegria e O Mundo não é chato, bem como

de pesquisadores que trabalham com a produção de Caetano. A partir desta análise é possível

estabelecer os parâmetros de aproximação de Caetano Veloso com a teoria crítica de Relações

Internacionais, ao se observar as preocupações do artista com o ordenamento do poder

internacional e suas implicações para o Brasil, bem como suas críticas ao pensamento

hegemônico de universalização das estruturas político-econômicas da potência hegemônica e

suas consequências para a afirmação cultural nacional.

24

Se empregará uma estruturação gramsciana para o estudo da atuação profissional e

política do artista, concebendo-as como evolução histórica tanto do artista como do ambiente

que o cerca.

Estabelecidas estas premissas, o trabalho deve seguir estas linhas: 1) a reconstrução

da biografia, não apenas no que diz respeito à atividade prática, mas principalmente

no que toca à atividade intelectual; 2) o registro de todas as obras, mesmo das menos

importantes, em ordem cronológica, estabelecido segundo motivos intrínsecos: de

formação intelectual, de maturidade, de domínio e aplicação do novo modo de

pensar e de conceber a vida e o mundo (GRAMSCI, 1978, p. 95).

Debatendo esta possibilidade, torna-se essencial a contribuição de Robert Cox para a

teoria crítica, bem como do teórico político que fora a base para construção de seu modelo de

compreensão da esfera internacional, Antonio Gramsci. A análise do novo ordenamento do

Sistema Internacional se enfocará na hegemonia estadunidense neste novo contexto, em suas

bases de manutenção e desdobramentos, fundamentalmente para o Brasil.

Ademais, visa-se analisar o debate intelectual estabelecido com o fim da Guerra Fria

acerca de qual seria o ordenamento internacional ascendido neste momento, contrapondo a

teoria crítica de Cox com as teorias de Francis Fukuyama (“o fim da história”) e de Samuel

Huntington (“o choque de civilizações”). Como estas últimas estão profundamente atreladas a

aspectos culturais das sociedades contemporâneas, permitirão uma maior aproximação do

debate com as contribuições de Caetano Veloso para a percepção de tais eventos.

Considerando que a (des) ordem que marcou – e ainda marca em certos âmbitos – o

período de transição é fruto de um processo histórico de construção da realidade momentânea,

se lançará mão da obra de Hobsbawm, O Breve Século XX, intentando tornar esta realidade

perceptível e capturável ao analista, e permitir a compreensão dos apontamentos efetuados

pelo artista, condicionado por essa realidade, todavia, evidenciando que este procedimento

não reproduz um eterno “bater de asas do anelo” de Nietzsche, e sim o entendimento da

realidade presente e a construção da futura.

O trabalho é composto por duas fontes de documentos analisados, os secundários,

contribuições de comentaristas dos fenômenos debatidos ao longo do trabalho, e os primários,

as músicas de Caetano Veloso que são foco de análise neste estudo.

Realizar-se-á a análise qualitativa, com pesquisa em referencial teórico acerca dos

temas abordados, de acordo com o elenco de teorias e conceitos anteriormente apresentados,

25

visando estabelecer um debate acadêmico-científico sobre a aproximação da obra de Caetano

Veloso nas décadas de 1990 e 2000 com a teoria crítica de Relações Internacionais.

Deste modo, intenta-se incorrer através do método crítico-analítico no debate das

implicações da produção artística de Caetano Veloso para a revolução estilística da música

popular brasileira, bem como suas contribuições para o pensamento brasileiro acerca dos

acontecimentos internacionais, especialmente após o fim da Guerra Fria.

No primeiro capítulo, será analisado de modo mais detido o período de transição das

relações internacionais no pós-Guerra Fria, de 1991 a 2001, apreciando as suas características

principais a fim de estabelecer um panorama conceitual para o ordenamento vigente à época,

recorrendo-se aos apontamentos de Robert Cox e Antonio Gramsci, para compreender a

lógica hegemônica deste período, que se explicitaria pela dissensão em relação ao período

posterior a 2001, com a atuação unilateral da superpotência sobrevivente à Guerra Fria. De tal

modo, empreender-se-á um debate acerca das teorias surgidas no centro hegemônico, e seu

ímpeto de caracterizar as inovações presentes no novo contexto internacional.

No segundo capítulo, será apresentada e debatida a biografia do artista, Caetano

Veloso, apresentando os entrelaçamentos de sua obra com as relações políticas nacionais e

internacionais, utilizando-se das situações expostas por Miguel Chaia: arte crítica; politização

da arte; estetização da política; e presença política da obra. Compõe-se assim um quadro

analítico revelador da relevância obtida pela produção artística de Caetano Veloso para a

apreciação do cenário político internacional, bem como a inserção do Brasil no mesmo.

No terceiro capítulo, empreende-se a análise interna de quatro canções, contemplando

as construções teóricas efetuadas anteriormente, visando a percepção do ordenamento

internacional pós-Guerra Fria, aproximando-as dos aportes da teoria crítica, evidenciando o

papel hegemônico desempenhado pela mesma, e seus efeitos para a década seguinte. O estudo

se deterá aos fenômenos debatidos pelo artista nas canções, apresentando seu potencial

explicativo das relações políticas na realidade contemporânea.

1 ALÉM DO OTIMISMO E DO PESSIMISMO: UMA TEORIA CRÍTICA

PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS PÓS-

GUERRA FRIA

1.1 Implicações do processo de desenvolvimento histórico às relações internacionais:

sobreposição aos mitos nas ciências sociais

Na busca de compreender as forças motrizes que permearam os relacionamentos entre

os atores internacionais no período imediatamente posterior ao final da Guerra Fria, o

presente capítulo envereda no debate de algumas das teorias surgidas neste contexto, e como

as mesmas estavam comprometidas com o projeto hegemônico emergido neste momento.

Para tanto, lançar-se-á mão dos aportes teóricos de Robert Cox, sob o âmbito da teoria crítica

internacional, a fim de compreender o processo histórico que acarretou na conformação de tal

ordenamento mundial, e suas principais características, elucidando o caráter hegemônico das

relações internacionais durante o período de 1991 a 2001.

Com a rápida erosão interna do socialismo soviético, reforçada pelos

constrangimentos externos da corrida bipolar pela supremacia, a dissolução da União

Soviética iniciada em 1991 trouxe complicações determinantes às clássicas teorias de

Relações Internacionais. Desde a década de 1980 o realismo e o liberalismo, com suas

vertentes adaptadas às transformações do Sistema Internacional vivenciadas na década

anterior – o neorrealismo e o neoliberalismo –, empenhavam-se em oferecer novas

abordagens aos problemas da realidade internacional, todavia sem considerar possíveis

alterações irreversíveis na conjuntura internacional (COX, 1986).

Ambas as teorias centravam-se na análise da ordem mundial vigente, visando

apresentar entraves e desequilíbrios no seu interior, a fim de fornecerem medidas necessárias

para sanar tais problemáticas que dificultam o desempenho do sistema. O neorrealismo

focava-se no estudo das estruturas de poder que dominavam o cenário da Guerra Fria em suas

27

etapas decisivas, em termos das capacidades relativas dos atores estatais, enquanto o

neoliberalismo lançava-se ao estudo das novas relações econômicas internacionais, com a

ampliação do livre-mercado e da globalização financeira, buscando apresentar os benefícios e

a imprescindibilidade da abertura econômica frente aos desafios que se colocavam ao

capitalismo no quartel final do século XX.

Na abordagem crítica de Robert Cox, estas são teorias de solução de problemas, que

“tomam o mundo como o encontram, com as relações sociais e de poder prevalecentes, e as

instituições nas quais elas estão organizadas, como o marco para a ação” (COX, 1986, p. 125,

tradução nossa). Deste modo, estas teorias desconsideram a possibilidade de transformação da

ordem como alternativa para solucionar os desequilíbrios estruturais do sistema. “Dado que o

esquema geral das instituições e das relações não está em questão, os problemas particulares

devem ser considerados em relação com as áreas especializadas de atividade nas quais eles se

apresentam” (COX, 1986, p. 125, tradução nossa).

A década de 1980 mostrou-se potencialmente favorável às mudanças nas Relações

Internacionais. Por um lado, (re) emergiam fenômenos como o terrorismo, nacionalismo,

autoritarismo, institucionalização internacional, regionalismo, democratização, globalização,

descolonização, entre tantos outros, que minavam a intangibilidade do Estado, até então

unidade fundamental das abordagens de Relações Internacionais (HOBSBAWM, 2007).

O problema parece estar, então, na incapacidade de pensar a política para além do

Estado, ou melhor, na insistência em pensar a política como domínio exclusivo e

excludente de uma comunidade circunscrita a um determinado espaço territorial

(MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 154).

Por outro lado, enquanto as teorias clássicas digladiavam-se pela condução dos

estudos internacionais, firmava-se uma crítica contundente aos seus métodos de análise e seus

principais preceitos filosóficos, fomentando uma ampla rediscussão acerca dessa área de

estudos e favorecendo a (re) inclusão desses fenômenos às Relações Internacionais,

ampliando sua agenda de estudos.

Aproximando-se da Escola de Frankfurt, Robert Cox critica o positivismo das teorias

de Relações Internacionais e seu esforço para formular “métodos científicos e neutros” (COX,

1986), afirmando que as teorias de ciências sociais são “para alguém e têm algum propósito.

Todas as teorias têm uma perspectiva. As perspectivas derivam de uma posição no tempo e no

espaço, especificamente tempo e espaço social e político” (COX, 1986, p. 124, tradução

nossa), negando assim a neutralidade do cientista social, por este fazer parte de seu objeto de

28

estudo. Este debate já havia sido travado no âmbito mais amplo das ciências sociais por

Adorno e Horkheimer, na década de 1930, não obstante, no campo internacional a afirmação

do realismo, e em menor escala do liberalismo, como teorias fundamentais obstaculizava tal

debate.

Adorno analisa o processo de mitificação do positivismo com o desenvolvimento da

indústria cultural, transformando-o em ideologia conservadora, utilizando-se dos artifícios

disponíveis para apresentar-se como método mais coerente para a compreensão do mundo.

A nova ideologia tem por objeto o mundo como tal. Ela usa o culto do fato,

limitando-se a suspender a má realidade, mediante a representação mais exata

possível, no reino dos fatos. Nesta transposição, a própria realidade se torna um

sucedâneo do sentido e do direito. Belo é tudo o que a câmera reproduz (ADORNO,

2009, p. 28).

A manutenção do cenário de Guerra Fria e da lógica estadocêntrica nas análises

internacionais marginalizava as demais pautas do debate, apresentando as relações de poder –

político ou econômico – como as únicas relevantes neste contexto. Cox (1986, p. 129,

tradução nossa) assinalava que “os períodos de aparente estabilidade ou firmeza nas relações

de poder favorecem o enfoque de resolução de problemas. A Guerra Fria foi um desses

períodos”.

Claramente a bipolarização do Sistema Internacional neste momento auxiliava tais

escolhas metodológicas, contudo, o problema central de tais abordagens era sua pretensão

universalista. Analisando o neorrealismo – especialmente a contribuição de Kenneth Waltz –

Cox aponta que:

O neorrealismo, tanto na forma estruturalista waltziana como na forma interativa

teórica, aparece ideologicamente como uma ciência a serviço da gestão dos grandes

poderes do sistema internacional. Há uma inequívoca qualidade panglossiana em

uma teoria publicada nos últimos anos setentas, que chega à conclusão de que um

sistema bipolar é o melhor de todos os mundos possíveis. O momento histórico

deixou sua marca indelével sobre essa ciência pretensamente universalista (COX,

1986, p. 195, tradução nossa).

Deste modo, as teorias de solução de problemas possuem sua fortaleza na

previsibilidade e reprodutibilidade irrestrita de seu modelo analítico. Todavia, esta é também

sua grande fraqueza, pelo fato da ordem social e política não ser fixa, ao menos no longo

prazo é suscetível de transformações. Consequentemente, esta classe de teorias é

fundamentalmente conservadora, pois “procura resolver os problemas que surgem em

29

diversas partes de uma integridade complexa com o propósito de suavizar o funcionamento do

conjunto” (COX, 1986, p. 127, tradução nossa).

A teoria está, neste caso, comprometida com a reprodução das formas de dominação

que possibilitam a manutenção da estrutura histórica vigente. Claro está que para isso ocorrer,

faz-se necessária a vontade da classe dirigente de transfigurar suas exigências de conservação

em regras universais, com a aquiescência dos dominados. “Pela subordinação da vida inteira

às exigências de sua conservação, a minoria que manda garante, além da própria segurança, a

permanência do todo” (ADORNO, 1996, p. 49).

Por sua parte, a teoria crítica busca compreender as estruturas fundadoras da ordem

vigente, questionando acerca do processo histórico pertinente às relações sociais e políticas

necessárias para tal ordem de fatores, não tomando-a como fato dado, mas sim construída

historicamente, é dizer, relativa a um tempo e espaço específicos. Como consequência, “a

teoria crítica permite uma opção normativa favorável a uma ordem social e política diferente

da ordem prevalecente, mas limita a margem de opções às ordens alternativas que são

transformações viáveis do mundo existente” (COX, 1986, p. 128, tradução nossa).

Por ende, favoreceram-se as perspectivas para a teoria crítica das Relações

Internacionais com a nova configuração dos assuntos internacionais.

A teoria crítica ganhou força como uma perspectiva adequada a um período de

transição para uma nova ordem mundial. Ela é, bem entendido, uma teoria

interessada na emancipação e tem um claro conteúdo normativo que a torna objeto

de constantes críticas das teorias positivistas. Ainda assim, sua análise do período de

transição é bastante aguçada e convincente porque consegue formular um modelo

que contempla uma das características mais marcantes e, ao mesmo tempo, mais

complicadas das relações internacionais de hoje: a diluição da fronteira entre os

espaços doméstico e internacional (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 147)

Observa-se, assim, que a teoria crítica é a mais apta para tratar dos períodos de

transição, justamente por buscar oferecer maior clareza sobre os mesmos, enquanto as teorias

de solução de problemas são definitivamente contestadas pela própria realidade, sendo

ineficazes na análise de uma reorientação do status quo, uma reordenação das forças sociais,

econômicas e políticas mundiais.

Com a dissipação da ordem bipolar, inevitavelmente emergiram inúmeras dúvidas

acerca da nova configuração do poder mundial. Neste cenário, a teoria neorrealista passou a

ser profundamente questionada enquanto teoria dominante no âmbito internacional, já que a

estrutura que analisava e julgava imutável derrocou juntamente com a União Soviética. Seu

30

maior equívoco refere-se à pretensão de universalidade histórica, pretender explicar os

eventos analisados sem atentar profundamente aos constrangimentos específicos da realidade

momentânea (COX, 1986). De fato, segundo Messari e Nogueira (2005), com o fim da Guerra

Fria as abordagens tradicionais das relações internacionais passaram a ser interpeladas por

abordagens alternativas, especialmente pela conformação de amplos desafios aos conceitos

centrais daquelas abordagens. Logo, segundo Fred Halliday:

O realismo convencional não pode explicar o fim do comunismo. A questão teórica

colocada pela Guerra Fria e o seu encerramento é precisamente àquela de olhar para

os mecanismos da competição internacional e para o tipo de interação que a teoria

interestatal ortodoxa esconde: isto inclui o conceito, como aqui definido, de

“sociedade internacional” (HALLIDAY, 1999, p. 110).

Por conseguinte, avançaremos o debate teórico para além do apresentado por Cox.

Tomaremos os principais debates teóricos travados na década de 1990 como base para este

estudo, utilizando-se da abordagem de Cox da teoria crítica como guia para empreendermos

tal exercício.

Lançar-se-á mão desta metodologia em conformidade com os apontamentos efetuados

por Cox quanto às características inerentes a uma teoria crítica internacional, essencialmente o

materialismo histórico e a dialética. “Ao nível da história real, a dialética é a possibilidade de

formas alternativas de desenvolvimento que surjam da confrontação de forças sociais opostas

em alguma situação histórica concreta” (COX, 1986, p. 137, tradução nossa). Quanto ao

materialismo histórico, Benjamin (1991, p. 162) o contrapõe aos métodos do historicismo,

apontando que enquanto “o historicismo pretende apresentar a imagem ‘eterna’ do passado; o

materialista histórico, uma experiência dele que se coloca como única”.

Portanto, surgem quatro pontos essenciais, nos quais a abordagem do materialismo

histórico é potencialmente mais esclarecedora em relação às teorias de solução de problemas:

1 – vê o conflito como provável causa de uma alteração estrutural, e não como consequência

de uma estrutura contínua; 2 – concebe as relações de poder na esfera internacional como

verticais, dado seu enfoque sobre o imperialismo, contrariando a dinâmica de rivalidade

horizontal marcante nas abordagens realistas; 3 – apoiando-se na concepção de Gramsci da

relação recíproca entre estrutura e superestrutura, possibilita-se a consideração do complexo

Estado/sociedade como ator participante da ordem mundial, a fim de explorar as formas

históricas particulares que este complexo toma, contrapondo-se assim à premissa realista de

separação da política doméstica da internacional; e 4 – dá enfoque aos processos de produção

como elementos fundamentais para a explicação das formas históricas particulares tomadas

31

pelos complexos Estado/sociedade, enquanto teorias de solução de problemas, fundadas sob o

realismo, os consideram elementos das políticas de poder nacionais, pautadas pelo interesse

nacional (COX, 1986, p. 138-139).

Atento e arguto leitor do pensamento de Gramsci, Cox percebe a necessidade de

debater a dicotomia universalismo-particularismo com base nos conceitos. Segundo Cox, por

serem abstrações adaptadas aos seus contextos de aplicação, os conceitos podem estar tão

abstraídos que diferentes usos de um mesmo conceito podem conter contradições ou

ambiguidades. Consequentemente, Cox apresenta a efetiva aplicabilidade dos conceitos, no

escopo da teoria crítica, em contraste com as teorias de solução de problemas.

Um conceito, no pensamento de Gramsci, é frouxo e elástico e alcança precisão

apenas quando entra em contato com uma situação particular que ajuda a explicar -

um contato que também desenvolve o significado do conceito. Esta é a força do

historicismo de Gramsci e é aí que reside o seu poder explicativo. O termo

"historicismo" é, no entanto, muitas vezes incompreendido e criticado por aqueles

que buscam uma forma mais abstrata, sistemática, universalista e não-histórica do

conhecimento (COX, 1993, p. 50, tradução nossa).

Sendo assim, a teoria crítica de Cox é o modelo metodológico mais coerente para as

proposições deste estudo, permeado pelo período de transição do pós-Guerra Fria,

configurando uma abordagem histórica das diversas forças em oposição ou aproximação, que

delinearam a ordem mundial tal qual fora conformada entre 1991 e 2001. Por conseguinte,

esta é uma forma de análise contraposta às míticas, baseadas no ahistoricismo3 e em

formulações universalistas4 (BARTHES, 1999).

Não obstante, quando do surgimento de novos elementos para a conformação de uma

ordem mundial distinta à bipolaridade, novas abordagens apareciam com formulações

universalistas para explicar o momento particular que se vivenciava. Neste âmbito, as teorias

de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) foram os principais baluartes da mitificação da

ordem pós-Guerra Fria.

3 Nesse âmbito, Barthes (1999) caracteriza os intentos de apresentar uma “história universal”, considerando

movimentos específicos relativos a um momento histórico determinado como condicionados por uma linha

histórica evolutiva geral. Sendo assim, quando ocorrem os momentos de ruptura nessa linha evolutiva, estes são

apreciados como fenômenos inovadores em relação ao período imediatamente anterior, pertencendo ao processo

geral de evolução histórica. Por conseguinte, ao considerarmos o pós-Guerra Fria, de acordo com as abordagens

mitificadoras, este seria um período histórico sumamente distinto da Guerra Fria, as problemáticas que

permearam o período anterior haviam dissipado-se ou mitigado-se pela ação do desenvolvimento histórico

universal, sendo possível o retorno de antigas forças motrizes da história. 4 Ferramenta extensamente utilizada pelas abordagens mitificadoras, a formulação universalista procura oferecer

uma resposta genérica para todos os desafios relativos a um fenômeno (BARTHES, 1999). Efetuam-se

generalizações que acomodem as linhas explicativas gerais, não obstante, estando condicionadas a tempos e

espaços específicos. Neste momento, utilizam-se do ahistoricismo concatenado com a formulação universalista,

tomando um evento específico no tempo e espaço como fator explicativo para toda a estrutura histórica.

32

Ambas as análises centravam seus esforços explicativos em duas categorias de

elementos que delineariam as possibilidades dos atores internacionais no novo período, por

um lado as oposições civilizacionais, e por outro a inevitabilidade das aproximações da

economia global livre. Assim como o neorrealismo, sua força é também sua debilidade, a

simplificação e a universalização de fenômenos particulares.

De acordo com Kissinger (1999), o universalismo pertence à tradição americana, que

prefere a construção de máximas universais em contraposição à observação dos

constrangimentos históricos.

A rejeição da história exalta a imagem do homem universal, que vive de máximas

universais, independente do passado, da geografia, ou de outras circunstâncias

imutáveis. Como a tradição americana dá ênfase a verdades universais, em vez de

destaque a características nacionais, os planejadores políticos americanos preferem,

em geral, abordagens multilaterais, não as nacionais: agendas de desarmamento,

não-proliferação e direitos humanos, em vez de assuntos essencialmente nacionais,

geopolíticos ou estratégicos. [...] A recusa americana em ater-se à história, e a

insistência na possibilidade perpétua de renovação, conferem grande dignidade,

beleza mesmo, ao modo de vida americano. O temor nacional, de que os obcecados

com história fazem profecias que se auto-realizam, é de grande sabedoria popular.

Contudo, do ditado de Santayana, de que aqueles que ignoram a história estão

condenados a repeti-la, podem-se apresentar muito mais exemplos (KISSINGER,

1999, p. 913).

Claro está que, enquanto estadunidense, Kissinger (1999) observa no ahistoricismo

uma “possibilidade perpétua de renovação”, todavia, ao analisarmos mais atentamente tal

argumento, encontramos seu elemento mitificador. Ao desconsiderar-se o processo de

desenvolvimento histórico simplesmente nega-se o passado, não há experiência histórica a ser

superada. É dizer que a cada novo momento, surge consigo um novo homem, desvinculado

dos momentos anteriores, uma completa inovação coletiva. Contudo, a passagem referida de

Kissinger (1999) demonstra-nos que as abordagens de Huntington (1997) e, especialmente, de

Fukuyama (2007) inserem-se no escopo do projeto hegemônico estadunidense de forma

decisiva, representando elementos do próprio ideário coletivo norte-americano.

Por sua parte, na abordagem coxiana de Relações Internacionais, uma teoria que visa

explicar uma estrutura histórica deve levar em conta três categorias de forças potenciais, que

interagem no interior da estrutura: capacidades materiais, ideias e instituições. “Nenhum

determinismo de um só caminho deve ser assumido entre essas três categorias; as relações

podem ser assumidas de maneira recíproca” (COX, 1986, p. 142, tradução nossa).

As capacidades materiais referem-se aos potenciais tanto produtivos quanto

destrutivos, englobando capacidades tecnológicas e de organização, capacidades acumuladas

33

como os recursos naturais que podem ser transformados com a utilização de sua tecnologia

disponível, ademais de estoques de equipamentos como as indústrias e os armamentos, e o

agregado de riquezas disponíveis (COX, 1986).

As ideias dividem-se em duas classes. A primeira consiste em pensamentos

intersubjetivos, as noções compartilhadas da natureza das relações sociais tendentes a

perpetuação de hábitos e expectativas de conduta. A segunda diz respeito às imagens coletivas

da ordem social que os diferentes grupos têm. São perspectivas diferentes, tanto da natureza e

legitimidade das relações de poder, quanto das noções de justiça e bem público, dentre outras

(COX, 1986). “A colisão de imagens coletivas rivais proporciona evidências sobre a

possibilidade de formas alternativas de desenvolvimento e sugere questões tais como a

possível base material e institucional para que emirja uma estrutura alternativa” (COX, 1986,

p. 144, tradução nossa).

E a institucionalização é vista como meio para estabilizar e perpetuar uma ordem

particular. Consequentemente, as instituições refletem as relações de poder predominantes em

seu ponto de origem e tendendo (ao menos no início) a apoiar imagens coletivas que

consistem com estas relações de poder. As instituições podem, eventualmente, assumir uma

vida própria, podem se converter em campo de tendências opostas ou então as instituições

rivais podem refletir tendências diferentes. “As instituições são amálgamas particulares de

ideias e poder material que, por sua vez, influenciam o desenvolvimento de ideias e

capacidades materiais” (COX, 1986, p. 144, tradução nossa).

Cabe, então, analisarmos como essas três categorias coxianas se apresentaram durante

o período do pós-Guerra Fria, considerando também as duas principais teorias surgidas do

principal centro de poder, apreciando assim um quadro geral das possibilidades analíticas para

a compreensão desse momento histórico.

O historiador Eric Hobsbawm aponta precisamente uma grande motivação para o

caráter de incerteza quanto ao período estudado, especificamente nos principais centros de

poder da antiga estrutura internacional, pois:

[...] pela primeira vez em dois séculos, faltava inteiramente ao mundo da década de

1990 qualquer sistema ou estrutura internacional. O fato mesmo de terem surgido,

depois de 1989, dezenas de Estados territoriais sem qualquer mecanismo

independente para determinar suas fronteiras – sem querer terceiras partes aceitas

como suficientemente imparciais para servir de mediadoras gerais – já fala por si.

Onde estava o consórcio de grandes potências que antes estabelecia, ou pelo menos

ratificava, fronteiras contestadas? [...] (HOBSBAWM, 2005, p. 537-538).

34

Para Huntington (1997), as potências estavam preocupadas em conformar ou

fortalecer alianças baseadas em fatores civilizacionais, a fim de precaverem-se de um

provável futuro conflituoso pela dominação global. Esta visão pessimista das novas relações

internacionais utilizava-se de fenômenos crescentes de violência no cenário nacional e

internacional, que já haviam sido considerados e analisados por outras fontes analíticas e que,

não obstante, permaneciam marginalizadas pelos centros de poder. Segundo tal perspectiva:

Os Estados-nações continuam sendo os principais atores no relacionamento mundial.

Seu comportamento é moldado, como no passado, pela busca de poder e riqueza,

mas é moldado também por preferências culturais, aspectos comuns e diferenças. Os

agrupamentos mais importantes de Estados não são mais os três blocos da Guerra

Fria, mas sim as sete ou oito civilizações principais do mundo (HUNTINGTON,

1997, p. 20).

Assim, percebe-se uma esquizofrenia desta classe de teoria, essencialmente

mitificadora (BARTHES, 1999) e de solução de problemas (COX, 1986), preocupada com a

conservação do poder das antigas potências, essencialmente dos Estados Unidos da América e

seus aliados da Europa Ocidental, a chamada civilização ocidental. As ameaças a esta ordem

de fatores, o terrorismo, o fundamentalismo religioso, o nacionalismo e regionalismo, o

autoritarismo, são postos como as novas ameaças à civilização e à liberdade.

Esta segunda categoria ameaçada é amplamente abordada por Fukuyama (2007),

tratando de posicionar suas ameaças como desafios particulares e momentâneos, referentes ao

momento de transição que, todavia, não impediriam o avanço rumo à liberalização e

integração irrestrita à economia global liberal. Apontam-se os exemplos de parcela notável

dos países da Ásia Oriental como respaldo ao argumento da liberalização econômica como

força motriz para o êxito econômico.

O seu desenvolvimento indica que países pobres, sem outros recursos além de suas

próprias populações laboriosas, podem aproveitar a abertura do sistema econômico

internacional e criar quantidades inimagináveis de nova riqueza, eliminando

rapidamente o fosso que os separa dos poderes capitalistas mais bem estabelecidos

da Europa e da América do Norte (FUKUYAMA, 2007, p. 61).

Hobsbawm (2007) não compactua desse otimismo quanto ao processo de globalização

econômica, no tocante às possibilidades de gestação de uma ordem pacífica nas relações

internacionais. Segundo este:

A globalização, na forma atualmente dominante do capitalismo de mercado livre,

trouxe também um aumento espetacular e potencialmente explosivo das

desigualdades sociais e econômicas, tanto no interior dos países quanto

internacionalmente (HOBSBAWM, 2007, p. 56).

35

A “nova geopolítica do mundo” apresentava uma face sumamente hierarquizada,

contudo, instável e limitando de forma decisiva a “eficácia dos estados nacionais” que

encontram-se nas camadas intermediárias e inferiores da divisão hierárquica da ordem

mundial. “Neste novo cenário, as estratégias econômica e militar do hegemon apontam numa

mesma direção: a da redução crescente da autonomia dos estados mais frágeis, que ficam

incapacitados para estabelecer e sustentar seus próprios objetivos nacionais” [...] (FIORI,

2000, p. 214).

Estes fenômenos são consequências de distúrbios sócio-econômicos nos países pobres,

que não eram solucionados simplesmente pela expansão do capital internacional,

principalmente por meio dos investimentos diretos. Para Cox (1986), a rápida industrialização

do Terceiro Mundo foi contraposta pela habilidade dos governos locais em manter o controle

sobre suas forças de trabalho industriais, sendo que a maioria das populações desses países

não observava melhoras e, em muitos casos, provavelmente se deterioravam suas condições

de vida.

As novas condições de trabalho industriais estavam atrasadas em relação aos

incrementos da força de trabalho, concomitantemente com as transformações na agricultura,

com a mecanização intensiva, provocando o amplo deslocamento da população rural. Por

conseguinte, não importa como se dê a distribuição da produção internacional, uma

importante parcela da população mundial nas regiões mais pobres permanecerá marginalizada

em relação aos avanços da economia mundial, não contando com empregos ou renda, muito

menos o poder de compra derivado de tais condições (COX, 1986).

Concatenando com os apontamentos de Hobsbawm, Cox também observa a

potencialidade conflituosa residente nas disparidades inerentes ao processo de globalização

econômica. Segundo este, “um grande problema para o capital internacional em suas

aspirações de hegemonia é como neutralizar o efeito dessa marginalização de talvez um terço

da população mundial, para prevenir que essa pobreza seja o combustível de uma rebelião”

(COX, 1986, p. 177, tradução nossa).

Entretanto, a análise do “fim da história” de Fukuyama, por seu enfoque universalista

e ahistórico, não considera todos os componentes de uma estrutura histórica, fixando-se

apenas nos fatores pertinentes aos seus intentos, ficando em consonância com a descrição de

Barthes (1999) acerca do mito nas ciências sociais. Conseguintemente, Fukuyama (2007)

afirma que uma ordem livre e democrática seria o novo arranjo das relações internacionais.

36

Do ponto de vista das abordagens legitimadoras da nova realidade, o Império

representa o fim da história; nesse sentido, os autores reconhecem as bases concretas

que alimentam perspectivas como a de Fukuyama, para quem desapareceram

definitivamente as alternativas ao capitalismo, eliminando as bases de conflito

originárias de forças externas ao sistema (AYERBE, 2005, p. 332).

Isto ocorreria pela acomodação das tensões relativas aos períodos anteriores, com sua

absorção pelo ideário liberalizante. Portanto, as duas dimensões pessoais fundamentais da

conflituosidade anterior, a megalothymia, que podemos sintetizar como o desejo de ser

reconhecido como superior aos demais, a glória, o “amor-próprio”, e a isothymia, sintetizada

como o desejo de ser reconhecido como igual aos demais, a justiça (FUKUYAMA, 2007, p.

186), são mitigadas e incorporadas pela democracia liberal, forma de governo otimizada para

o novo período.

No entanto, é necessário observar que Fukuyama (2007) aponta para a necessidade de

bases culturais e sociais favoráveis a essa estruturação política. Notavelmente, o modelo para

tal processo é a sociedade americana, tida como exemplo suficientemente bem sucedido do

apaziguamento das tensões causadas pela megalothymia e pela isothymia, que são

incorporadas à sociedade americana por meio do jurisdicismo, que visa manter a liberdade

individual na busca por seus anseios, todavia, restringindo seu espaço de ação até a liberdade

individual dos demais.

É então que a teoria se transforma em mito e em solução de problemas, ao conceber o

homem como uma entidade separada do processo histórico, um homem geral e universal, não

relacionado com os inumeráveis contextos particulares, o que converte o postulado

democrático liberal em uma cruzada aos redutos conservadores dos elementos potencialmente

perigosos ao seu projeto.

Estamos atualmente engajados no que pretende ser um reordenamento planejado do

mundo, protagonizado pelos países poderosos. As guerras do Iraque e do

Afeganistão são apenas uma parte de um esforço supostamente universal de criação

de uma nova ordem mundial por meio da “disseminação da democracia”. Essa ideia

não é apenas quixotesca: é perigosa. A retórica que envolve essa cruzada implica

que tal sistema é aplicável de forma padronizada (ocidental), que pode ter êxito em

todos os lugares, que pode remediar os dilemas transnacionais do presente e que

pode trazer a paz, em vez de semear a desordem. Não é verdade (HOBSBAWM,

2007, p. 116).

Huntington (1997) reconhece as limitações que tais propósitos contêm, entretanto,

argumenta que as contraposições ao projeto ocidental se dariam com base no contexto

avaliado pela teoria realista, ou seja, coalizões não-ocidentais a fim de contrapor a expansão

37

ocidental, de forma a manter um novo equilíbrio de poder, constituído por pressões

civilizacionais.

Em grande medida, ambas as concepções são marcadas pela imprecisão gerada pelo

turning point que representou o fim da Guerra Fria. Ambas comprometem-se com a

manutenção da hegemonia ocidental, basicamente dos Estados Unidos, no novo Sistema

Internacional. No entanto, não encontram subsídios suficientes para apresentar uma visão

mais ampla e factível de comprovar-se como linha diretriz das novas Relações Internacionais.

1.2 A lógica hegemônica das relações internacionais no pós-Guerra Fria: perspectivas e

desafios à estabilização e manutenção da ordem mundial

É neste contexto que retornamos a Robert Cox e suas três categorias analíticas que

permitem compreender a estrutura vigente. Primeiramente, deve-se observar que há uma

estreita relação entre a institucionalização coxiana e o conceito de Gramsci de hegemonia.

Segundo Cox (1986), as instituições são provedoras de modos distintos para o enfrentamento

dos conflitos e, consequentemente, a minimização do uso da força. Deste modo, quando uma

potência concebe sua missão como hegemônica, e não simplesmente dominante ou ditatorial,

“se deseja fazer concessões que possam assegurar a aquiescência do débil com relação a sua

liderança e se pode expressar sua liderança em termos de interesses universais e gerais, mais

que como mero apoio e seus próprios interesses particulares” (COX, 1986, p. 145, tradução

nossa).

Em termos gerais, a hegemonia nas Relações Internacionais é descrita por Cox da

seguinte maneira:

A hegemonia mundial é descritível como uma estrutura social, uma estrutura

econômica, e uma estrutura política, e não pode ser simplesmente uma dessas coisas,

mas tem de ser todas as três. A hegemonia mundial, além disso, é expressa em

normas universais, instituições e mecanismos que estabelecem regras gerais de

conduta para os Estados e para as forças da sociedade civil que atuam além das

fronteiras nacionais - regras que apoiam o modo de produção dominante (COX,

1993, p. 62, tradução nossa).

38

Neste âmbito, ao avaliarmos os governos de George Bush (1989-1993) e Bill Clinton

(1993-2001), compreendemos que ambos atuaram internacionalmente de modo a manter e

intensificar a hegemonia estadunidense. Ao tomarmos o conceito de hegemonia de Gramsci,

adaptado por Cox para a análise internacional, percebemos que os Estados Unidos na década

de 1990 utilizaram-se dos dois tipos de recursos de poder necessários a uma potência

hegemônica, tanto o consenso quanto a coerção. O pensamento coxiano concebe tais recursos

enquanto imprescindíveis a uma ordem hegemônica:

Na medida em que o aspecto consensual de poder está na vanguarda, a hegemonia

prevalece. A coerção é sempre latente, mas só é aplicada em casos marginais,

desviantes. A hegemonia é suficiente para assegurar a conformidade do

comportamento na maioria das pessoas, na maioria das vezes (COX, 1993, p. 52,

tradução nossa).

Ações militares como na Guerra do Golfo (1990-1991), na Guerra da Bósnia com os

ataques aéreos de 1994 e a resolução diplomática com o Acordo de Dayton (1995), na Guerra

do Kosovo com os ataques aéreos de 1999 que levaram da mesma forma a retomada das

conversações diplomáticas, são todos exemplos de momentos em que após as tentativas de

mediar conflitos com considerável potencial de expansão para as regiões mais próximas,

utilizou-se de meios de coerção com intervenção militar nas áreas de conflito e posterior

retorno do diálogo diplomático (HOBSBAWM, 2007).

Em alguns momentos, premidos pelas circunstâncias, os Estados Unidos

efetivamente intervieram, como no caso da Guerra do Golfo, quando encabeçaram

uma coligação internacional que expulsou Saddam Houssein do Kuwait. Esta

mesma ação pôde ser verificada na Guerra da Bósnia, que se arrastava há muitos

anos e que, só depois de uma intervenção mais energética norte-americana, se

obteve uma trégua temporária, mas garantida pela presença de tropas americanas na

área. Da mesma maneira, os Estados Unidos também intervieram em crises de outras

naturezas – econômicas – como no caso do México, no final de 1994 e começo de

1995, e também por meio do Fundo Monetário Internacional, para socorrer as

economias asiáticas submetidas a fortes pressões especulativas e que levaram à sua

desestabilização durante o ano de 1997 (PEIXOTO, 2002, p. 45).

Kissinger (1999) observa na atuação internacional dos Estados Unidos ao final da

Guerra Fria, pela terceira vez no século XX, a intenção de construção de uma ordem mundial

fundada na aplicação universal de valores internos. Neste sentido, atesta que:

Pela terceira vez, neste século, os EUA proclamaram, assim, sua intenção de

construir uma nova ordem mundial, através da aplicação dos seus valores internos

ao mundo inteiro. E, pela terceira vez, os EUA pareciam destacar-se de forma

absoluta, no palco internacional. Em 1918, Wilson dominou a Conferência de Paz de

Paris, na qual os aliados da América estavam por demais dependentes dela, para

poderem insistir em expressar seus receios. Próximo ao fim da Segunda Guerra

Mundial, Franklin Delano Roosevelt e Truman pareciam em posição de refazer o

mundo ao modelo americano. [...] O fim da Guerra Fria foi uma tentação ainda

39

maior de remodelar o ambiente internacional à imagem dos Estados Unidos. Wilson

foi contido pelo isolacionismo em casa, e Truman colidiu no expansionismo

stalinista. No mundo pós-Guerra Fria, os Estados Unidos são a única superpotência

restante, com capacidade de intervir em qualquer ponto do globo. O poder, contudo,

ficou mais difuso e diminuíram as questões onde a força militar é relevante

(KISSINGER, 1999, p. 882).

Discorrendo acerca das análises de Cox, Messari e Nogueira (2005, p. 147)

formularam um quadro geral das relações internacionais no pós-Guerra Fria, segundo a teoria

crítica. Essa nova ordem seria composta por: globalização desigual, baseada em corporações

globais, em organizações internacionais e na crescente atuação de movimentos sociais; uma

ordem mundial caracterizada pela unipolaridade, pela hegemonia e pelo aprofundamento dos

processos de regionalização, tanto econômica quanto política; e mudanças nas formas estatais,

com o advento dos Estados falidos, semiprotetorados e territórios sem governo.

No que tange a economia internacional, a rápida expansão das políticas de ajustes

neoliberais para as regiões do Segundo e Terceiro Mundo entre o final da década de 1980 e a

de 1990, em consonância com as necessidades apresentadas pela globalização liberal a estes

países, concatena com os aportes coxianos. Primeiramente, há de se observar que seus

resultados ficaram aquém do esperado. Abordando o caso das ex-repúblicas soviéticas,

Hobsbawm (2005, p. 542) aponta que:

(...) quando se fizeram tentativas para instituir-se de uma hora para outra,

essas economias de laissez-faire em substituição às antigas economias

soviético-socialistas, através de “terapias de choque” recomendadas por

assessores ocidentais, os resultados foram economicamente apavorantes, e

política e socialmente desastrosos. As teorias em que se baseava a teologia

neoliberal, embora elegantes, pouca relação tinham com a realidade.

O grande problema, segundo Hobsbawm (2005), residia na perpetuação e acirramento

das desigualdades sócio-econômicas. Os principais exemplos bem sucedidos das políticas de

industrialização globalizante – Hong Kong, Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul – representam

menos de 2% da população do Terceiro Mundo. Com a liberdade crescente para os

movimentos de capitais, estes fluíam naturalmente para as regiões mais lucrativas, no caso do

capital produtivo, para os países pobres onde a mão de obra era mais barata.

Deste fenômeno surgiam duas complicações: “a transferência de empregos de regiões

de altos salários para outras de baixos salários e, com base em princípios de livre mercado, a

queda de salários nas regiões de altos salários, sob a pressão da competição salarial global”

(HOBSBAWM, 2005, p. 550). O que o otimismo liberal não conseguiu visualizar

adequadamente foi o ator beneficiado com essas novas relações econômicas.

40

À medida que as economias nacionais se integraram mais na economia mundial,

foram as maiores e mais avançadas empresas as que se adaptaram melhor às novas

oportunidades. Um novo eixo de influência vinculou as redes de política

internacional com as agências centrais chave dos governos e com os grandes

negócios. Esta nova estrutura corporativa informal eclipsou o mais antigo

corporativismo nacional formalizado e refletiu na dominação do setor orientado para

a economia mundial sobre o setor orientado mais nacionalmente na economia de um

país (COX, 1986, p. 168, tradução nossa).

Tais ajustes estruturais foram possíveis apenas com a anuência das elites locais, em

um claro processo de “revolução passiva”. Este conceito gramsciano, empregado por Cox,

refere-se ao cenário em que sociedades importam – ou lhes são impostos – aspectos de um

ordenamento criado no exterior, sem que a sua ordem antiga tenha sido deslocada. Desse

modo, essas sociedades apanham-se numa dialética de revolução-restauração, que tende a

bloquear-se de maneira que nem as novas forças, tampouco a tradição, poderiam vencer.

Nestas sociedades, a nova burguesia industrial não conseguiu alcançar a hegemonia.

O impasse resultante com as classes sociais dominantes tradicionais criou as

condições que Gramsci chamou de "revolução passiva", a introdução de alterações

que não envolvam qualquer excitação das forças populares (COX, 1993, p. 54,

tradução nossa).

Para Cox (1986), esse rearranjo da economia mundial acarretou reformulações na

hierarquia das classes sociais. No topo da estrutura global de classes, estaria a classe

administradora transnacional, com um conjunto próprio de ideologia, estratégia e instituições

visando à ação coletiva. Seus principais expoentes organizativos seriam a Comissão

Trilateral5, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico6, e por meio destas, empreende seu esforço de

internacionalização do Estado, utilizando-se do rol de políticas neoliberais para adentrar nos

países do Terceiro Mundo, tendo estas políticas como fatores imprescindíveis para a

concessão de empréstimos por meio das instituições supracitadas.

Depois aparece a classe dos capitalistas nacionais, distintos da classe transnacional.

Como reflexo da expansão do capital e da produção internacional, sua postura foca-se no

protecionismo e no desejo de utilizar-se do Estado como agente central da economia nacional

independente, e quando isto não é possível, utiliza-se da “oportunidade de preencher nichos

5 Fórum de discussão privado, constituído por nomes proeminentes do empreendedorismo mundial, visando

debater perspectivas econômicas e políticas para o capitalismo mundial, sendo formado por membros da

América do Norte, Europa e Ásia/Oceania. 6 Fundada em 30 de setembro de 1961, é formada atualmente por 33 países membros, comprometidos com os

princípios da democracia representativa, da economia de livre mercado, buscando conformar uma plataforma de

políticas econômicas compartilhadas que permitam solucionar problemas comuns e coordenar políticas públicas

domésticas e internacionais.

41

desejados pela produção internacional em uma relação simbiótica subordinada com os

anteriores” (COX, 1986, p. 173, tradução nossa).

Aparecem, então, os trabalhadores industriais, que passaram por um duplo processo de

fragmentação. O primeiro diz respeito à separação entre o trabalho estabelecido, onde os

trabalhadores conseguiram relativa segurança e estabilidade em seus empregos, tendo também

algumas perspectivas de evolução nas suas carreiras, com certo grau de especialização e

organização sindical, e o trabalho não estabelecido, onde os trabalhadores não contam com a

mesma segurança em seus empregos, sem perspectivas de evolução na carreira e

relativamente menos especializados, enfrentando grandes obstáculos para a conformação

efetiva de sindicatos.

O segundo processo de fragmentação dos trabalhadores industriais refere-se à

separação entre os envolvidos na produção com capital nacional e com o capital internacional.

Os trabalhadores do setor de capital nacional estão potencialmente mais suscetíveis à

influência do protecionismo e do capital nacional, enquanto os trabalhadores do setor de

capital internacional são “aliados potenciais do capital internacional” (COX, 1986, p. 174,

tradução nossa). Ocorre, assim, a “criação de um corporativismo empresarial, no qual ambas

as partes percebem seus interesses como resultado da expansão contínua da produção

internacional” (COX, 1986, p. 175, tradução nossa).

É necessário observar ainda a crescente relevância adquirida pelo trabalho não

estabelecido, na lógica da globalização do capital, tornando-se importante fonte de mão de

obra para o investimento externo direto nos países pobres.

O trabalho não estabelecido adquiriu uma importância particular na expansão da

produção internacional. Os sistemas de produção são desenhados de tal modo que se

possa utilizar uma recente proporção de trabalhadores semi-especializados (e, em

consequência, frequentemente não estabelecidos) em relação com os especializados

(e estabelecidos) (COX, 1986, p. 175, tradução nossa).

Em suma, a internacionalização da economia liberal fomentou o aprofundamento do

processo de hierarquização do poder em escala mundial. Ademais, com a expansão do aspecto

globalizado da produção mundial, foram as grandes corporações trans e multinacionais que

mais se beneficiaram desse processo.

Cabe agora adentrarmos no debate da institucionalização da hegemonia estadunidense

no pós-Guerra Fria, a fim de apreciarmos os movimentos recíprocos da estrutura histórica

coxiana. Destarte, faz-se necessário definir precisamente o conceito de hegemonia na

42

abordagem coxiana, essencialmente destoante dos enfoques das teorias tradicionais, nos

seguintes aspectos:

Em uma ordem hegemônica, o poder dominante faz certas concessões ou

compromissos para assegurar-se a aquiescência de poderes menores até um nível em

que possa ser expressa em termos de interesse geral. É importante, ao avaliar uma

ordem hegemônica, conhecer: a. que funciona basicamente por consentimento, de

acordo com princípios universalistas e b. que permanece dentro de certa estrutura de

poder e serve à manutenção dessa estrutura. O elemento consensual distingue as

ordens mundiais hegemônicas das não hegemônicas. Também tende a mistificar as

relações de poder nas quais, em última instância a ordem permanece (COX, 1986, p.

193, tradução nossa).

Depreende-se deste pequeno fragmento dois fatores que endossam a compreensão do

fenômeno de mitificação das teorias de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) da ordem

mundial do período estudado. Os princípios universalistas do projeto hegemônico

estadunidense não representam um movimento geral rumo à pacificação, por meio da

globalização econômica e da difusão da democracia liberal e dos direitos humanos.

Representam o consentimento de parcela considerável das nações menos poderosas a essa

configuração da estrutura histórica, e a modelação por meio da potência hegemônica,

considerando os limites impostos pelas particularidades desse novo cenário.

Consequentemente, a aquiescência dos submetidos à ordem hegemônica não

representa sua incorporação irrestrita, e sim a conclusão de que as alternativas existentes são

demasiado custosas em relação à submissão. Assim, o temor de Huntington (1997) com

respeito a um levante não-ocidental contra a hegemonia da civilização ocidental, fomentado

pela agregação de potencial material, não encontra justificativa plausível, num curto ou médio

prazo.

De fato, o que Hobsbawm (2007) apresenta, numa perspectiva histórica, é a

inexistência de uma “autoridade global efetiva” que possa dirimir os conflitos armados, não

havendo hegemonia política ou militar que pudesse se estender permanentemente a todo o

planeta. “O mundo é demasiado grande, complexo e plural. Não existe nenhuma

probabilidade de que os Estados Unidos, ou qualquer outra potência singular, possam

estabelecer um controle duradouro, mesmo que o desejassem” (HOBSBAWM, 2007, p. 29).

Todavia, isto não acarreta uma percepção dos não-ocidentais de que possam contrapor

esta hegemonia, por meio da conflituosidade. Por um lado, pelo fato de os Estados Unidos

possuírem incontestavelmente o maior agregado de potencial material, seja com fatores

econômicos ou com fatores militares, no pós-Guerra Fria. E, por outro, por serem a primeira

43

potência hegemônica a possuir interesses efetivamente globais, estando engajados nos

assuntos de todas as regiões do globo, seja por fatores econômicos, políticos, estratégicos

(HOBSBAWM, 2007).

Para manterem sua hegemonia no Sistema Internacional pós-Guerra Fria, os Estados

Unidos valeram-se de um amplo conjunto de instituições internacionais adaptadas às

necessidades que emergiam como complicadoras ao novo cenário internacional. No

pensamento coxiano, as organizações internacionais são um mecanismo que possibilita que as

normas universais de uma hegemonia mundial se expressem. São o processo que desenvolve

as instituições de hegemonia e sua ideologia.

Entre as características da organização internacional que expressam o seu papel

hegemônico estão as seguintes: (1) elas incorporam as regras que facilitam a

expansão das ordens mundiais hegemônicas; (2) são elas mesmas o produto da

ordem mundial hegemônica; (3) ideologicamente legitimam as normas da ordem

mundial; (4) cooptar as elites dos países periféricos; e (5) absorvem ideias contra-

hegemônicas (COX, 1993, p. 62, tradução nossa).

No âmbito econômico, a doutrina do livre mercado e da globalização benéfica foram

as ideias universalistas que permearam a ação internacional da potência hegemônica. Aos

países do Terceiro Mundo, de modo mais intenso na América Latina e no antigo bloco

soviético, as políticas neoliberais – advindas do Consenso de Washington7 – tornaram-se

receituário fundamental para as economias que quisessem equilibrar suas finanças, por meio

de empréstimos aos órgãos financeiros internacionais e, consequentemente, serem aceitas no

escopo da globalização liberal. Cria-se, assim, um mecanismo profundamente eficaz para a

dominação econômica destas regiões.

Cox observa como inegável a dominação exercida pelas economias das nações

poderosas sobre as nações subordinadas. O fator agravante neste fenômeno é a discrepância

entre as economias subordinadas, relativas ao seu contexto histórico-espacial, que determinam

distintas reações ao ímpeto dominador. “A vida econômica das nações subordinadas é

penetrada por, e entrelaçada com, a de nações poderosas. Isto é ainda mais complicado pela

7 Em novembro de 1989 é formulado o chamado Consenso de Washington, no qual relevantes instituições com

sede nesta cidade (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados

Unidos), elaboram um planejamento de ação para as economias em desenvolvimento. Essas diretrizes visavam o

apaziguamento da onda de crises que ocorria nestes países, baseados nos pressupostos de uma nova forma de

política econômica (já surgida após a crise do petróleo de 1973-1974), o neoliberalismo. Dentre as principais

medidas indicadas destacam-se: a disciplina fiscal; a redução dos gastos públicos; a reforma tributária; os juros

de mercado; o câmbio livre de mercado; a abertura comercial; a intensificação dos investimentos estrangeiros

diretos, com eliminação de restrições; a privatização das empresas estatais; a flexibilização das leis trabalhistas;

e a regulamentação do direito à propriedade intelectual.

44

existência dos países de estruturalmente diversas regiões, que possuem padrões distintos de

relação às forças externas” (COX, 1993, p. 59, tradução nossa). É neste contexto que

fortificam-se os argumentos universalistas, tornados essenciais para a ampla dominação

econômica dos países subordinados.

Apresenta-se a lógica da liberalização comercial como imprescindível para o êxito

dessas economias. Entretanto, para que a liberalização não seja prejudicada pelos

desequilíbrios dos períodos anteriores, essas economias devem se estabilizar, recorrendo aos

fundos internacionais para tanto. Estes recursos, provenientes das instituições comandadas

pelas potências econômicas como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, são

disponibilizados apenas após a adoção de políticas de ajustes de coorte neoliberal. Lograda a

estabilização, o país recebe crescente fluxo de capitais das grandes corporações

transnacionais, e como sua base de políticas sociais fora profundamente alterada pelos ajustes

anteriores, emergem as problemáticas do subemprego, das más condições de trabalho e do

desemprego.

Percebe-se que, no quadro geral das relações econômicas internacionais inseridas

nesse contexto, o fenômeno da dispersão do poder implica na consubstanciação de novos

desafios à potência hegemônica, que serão visualizados com maior clareza quando de sua

contestação efetiva. Apresentando um quadro analítico geral, Ayerbe concebe a transição da

hegemonia dos Estados Unidos para um período de busca de afirmação unipolar, inaugurado

com as respostas aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, distinguindo a crise

hegemônica estadunidense com as transições hegemônicas anteriores, expondo quatro

situações específicas que distinguem este momento.

1) A potência em declínio não tem concorrentes no campo militar, mas tornou-se

dependente, na administração do seu poder, de recursos financeiros de outros

centros de acumulação de capital, marcadamente Europa ocidental e Japão. 2)

Diferentemente do processo de globalização das últimas décadas do século XIX, em

que os Estados-nação eram protagonistas fundamentais da internacionalização do

capital, há uma diminuição do seu poder em detrimento do setor privado

transnacional. 3) Em comparação ao aumento dos conflitos sociais que acompanhou

os períodos de transição holandesa e britânica, especialmente os vinculados à luta

antiescravista e ao movimento operário, os autores identificam uma perda

conjuntural de poder dos movimentos sociais. No entanto, os efeitos estruturais

desagregadores da atual configuração global criam novas fontes de conflito para as

quais não existe capacidade adequada de resposta. 4) Nas transições hegemônicas

anteriores, a emergência de uma nova potência precipitou o desmoronamento do

antigo poder: Inglaterra em relação à Holanda, Estados Unidos em relação à

Inglaterra. Embora os autores coloquem em evidência a crescente expansão

econômica do Leste da Ásia, isto não configura uma ameaça ao poderio militar

estadunidense. Esta situação impõe uma marca peculiar à atual mudança no sistema

45

mundial, cujo desfecho poderá ser mais ou menos problemático dependendo da

atitude dos Estados Unidos (AYERBE, 2005, p. 333-334).

Do ponto de vista político, a ordem do pós-Guerra Fria pautou-se por uma agenda

expansiva de questões fundamentais no debate internacional. Destarte, ressalta-se a

inexistência de contraposição à reconfiguração do poder mundial, centrado nos Estados

Unidos, não havendo oposição real que revivesse os antigos equilíbrios de poder. Não que os

Estados Unidos submetessem as demais potências ao seu poderio absoluto, e sim que estas

potências não se engajavam na contraposição à hegemonia, cabendo aos Estados Unidos

edificarem uma nova ordem, e agirem internacionalmente a fim de mantê-la quando

ameaçada.

A longa década de 1990 [...] viu, enfim, uma frente democrática e liberal liderada

pelos Estados Unidos batalhando no Iraque, na Sérvia ou no Afeganistão, onde as

outras potências preferiram acomodar-se aos Estados Unidos, no lugar de buscar

alguma forma de equilíbrio entre si, influenciando neste processo, pelo qual

provavelmente não sentiram ameaçados seus interesses vitais (GHOTME, 2011, p.

50, tradução nossa)

Recordemos Cox e Hobsbawm quando estes autores elencam os principais desafios ao

Estado nas relações internacionais pós-Guerra Fria. Todos dizem respeito a ameaças ao

conceito clássico de soberania, norteador fundamental das relações internacionais desde a Paz

de Vestfália (1648), e ditaram o relacionamento entre os Estados Unidos e as potências

emergentes do novo cenário internacional, principalmente quando a superpotência agiu em

países subordinados em prol de ajustes pertinentes aos ideários dos direitos humanos.

O governo chinês desafiou estas regras do jogo mundial, no que concerne à

concepção da soberania como algo contingente, crença que no Ocidente se reforçou

desde a década de 1990 pelas múltiplas intervenções internacionais justificadas em

nome da defesa dos direitos humanos e a ajuda humanitária no Sudão, Somália,

Haiti ou Bósnia [...], ou na busca de terroristas, ditadores sanguinários ou Estados

que produzem e comercializam armas de destruição em massa; em todos estes casos,

a China e outras potências emergentes, como o Brasil, a Índia, a África do Sul, e

agora a Turquia, opuseram-se às medidas do Conselho de Segurança da ONU

referentes às violações dos direitos humanos na Birmânia, Sri Lanka, Sudão ou

Zimbábue [...] (GHOTME, 2011, p. 52, tradução nossa).

O fator complicador deste cenário é o incremento do número de ameaças e

vulnerabilidades enfrentadas pelas potências para afirmarem seu poder e influência. Isto se dá

pelo transbordamento das capacidades materiais (principalmente das com poder destrutivo)

para muitos atores, não apenas para organizações globais, corporações transnacionais,

terroristas ou Organizações Não Governamentais, mas também para outros Estados que

incrementaram suas capacidades em termos absolutos (GHOTME, 2011). “O sistema mantém

um caráter hierárquico, mas apresenta uma maior dispersão do poder. A hegemonia vai se

46

desestruturando e com ela produzem-se mudanças no poder relativo dos Estados principais”

(PIRES; CASTRO, 1991, p. 86).

O fim da Guerra Fria criou aquilo que alguns observadores chamaram de mundo

“unipolar” ou de “uma superpotência”. Mas os Estados Unidos não estão, na

verdade, em posição melhor para ditar a agenda global, unilateralmente, do que

estavam no início da Guerra Fria. Os EUA preponderam mais que há dez anos,

porém o poder tornou-se também mais difuso. Assim, a capacidade dos EUA de

empregá-lo, para moldar o resto do mundo, realmente decresceu (KISSINGER,

1999, p. 886).

Se, por um lado, a China tornava-se crescentemente foco das atenções dos Estados

Unidos para manterem seu poderio hegemônico, tendo em vista seu crescente protagonismo

no jogo político mundial, por outro, mantinha-se a percepção do potencial contestatório

relativo à Rússia, essencialmente em seu espaço próximo de projeção de poder. Estes foram

argumentos que possibilitaram a manutenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte

(OTAN), mesmo após o fim da Guerra Fria8.

Se o desaparecimento do sovietismo deu muito maior jogo à OTAN, a importância

estratégica da Rússia não foi, todavia, passada por alto. Por razões táticas e

estratégicas, os atlânticos nunca duvidaram de seu peso na arena internacional. Isto

explica a criação, em 1991, do Conselho de Cooperação do Atlântico Norte

(COCONA), no qual os antigos membros do Pacto de Varsóvia se aliaram junto com

os da OTAN num acordo de assistência mútua, cooperação e colaboração

comprometendo-se a respeitar as fronteiras dos Estados membros. A COCONA

tendeu, sem dúvida alguma, a equilibrar o jogo de forças entre uma potência em

declínio, a Rússia, e a OTAN, equilíbrio que tornava-se essencial, especialmente no

marco da integração da Alemanha Oriental com a Federal (ALDÁS, 2011, p. 35,

tradução nossa).

Nessa seara, a relação do antigo bloco soviético com a Europa Ocidental e os Estados

Unidos, sob o marco da OTAN, no pós-Guerra Fria sugere três grupos de problemas:

[...] as relações internas na estrutura da aliança tradicional; as relações das nações

atlânticas com os ex-estados satélites da União Soviética, na Europa Oriental; e,

finalmente, o relacionamento dos estados sucessores da União Soviética,

especialmente da Federação Russa, com as nações do Atlântico Norte e com a

Europa Oriental (KISSINGER, 1999, p. 901).

8 A OTAN consiste em uma aliança militar estabelecida em 1949, entre nações da América do Norte e Europa

Ocidental, a fim de conter o afã expansionista soviético e estabilizar o ordenamento mundial emergido com o

fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1955 sobreviria a contestação do bloco soviético com a conformação do

Pacto de Varsóvia. Desta forma, a existência de ambas as organizações permeou-se pela manutenção do

confronto bipolar. Portanto, com o encerramento da ordem mundial da Guerra Fria e a extinção do Pacto de

Varsóvia em 1991, projetava-se o mesmo desfecho à OTAN. Contudo, a aliança atlântica manteve-se e serviu à

potência hegemônica como a instituição multilateral que pauta seu relacionamento no aspecto político-militar

com a Europa.

47

Todas essas considerações voltam-se relevantes para a análise da política externa

norte-americana para o antigo bloco soviético, da mesma forma que para a ex-Iugoslávia, por

tratar-se do relacionamento com um império em decomposição.

Administrar a decadência de um império é uma das mais difíceis tarefas

diplomáticas. [...] Impérios em colapso geram duas causas de tensão: tentativas dos

vizinhos de tirar proveito da fraqueza do centro imperial, e esforço do império em

declínio para restaurar a autoridade na periferia (KISSINGER, 1999, p. 892).

Outro norteador para a definição das potências na ordem pós-Guerra Fria é a

capacidade tecnológica, preponderante para a renovação econômica e produtiva, induzindo ao

acréscimo ou decréscimo dos níveis de poder material das potências, posicionando-as de

forma superior ou inferior na hierarquia do poder mundial. Alexsandro Eugenio Pereira

utiliza-se do pensamento de Joseph Nye Jr. para apresentar um quadro analítico da produção

ligada a informação no Sistema Internacional pós-Guerra Fria. Neste afã, observa que:

Para determinar o impacto da revolução da informação sobre os países, Nye Jr.

considerou relevante examinar a capacidade de coletar e produzir informação nova

que exige grandes investimentos. A capacidade dos americanos, da Grã-Bretanha, da

França e da Rússia na alocação desses investimentos é muito superior às demais

nações. A informação nova está associada ao papel dos pioneiros, responsáveis pela

criação de padrões e pela arquitetura dos sistemas de informação. Nesse campo,

também, os Estados Unidos estão entre os principais responsáveis pelo

desenvolvimento de sistemas de informação, o que assegura sua liderança e

predomínio (PEREIRA, 2011, p. 248).

Apreciando-se tais perspectivas, o cenário político global pós-Guerra Fria pode ser

traçado nas seguintes linhas-mestras: 1) hierarquização profunda com a supremacia dos

Estados Unidos; 2) as demais potências – Inglaterra, Alemanha, França, Rússia, China e Japão

– não atuam de modo contestatório, apenas o fazem quando seus interesses são afetados; 3)

transbordamento de poder, nos espaços em que a atuação das potências é apenas reativo,

oferecendo possibilidades de projeção de poder às potências emergentes e países

subordinados; 4) ampla utilização das instituições internacionais, tanto como legitimadoras

das políticas universais da potência hegemônica, quanto como espaço de contra-hegemonia

para as demais nações.

Quanto à afirmação das grandes potências neste cenário, Kissinger (1999) elenca um

panorama genérico de sua atuação da seguinte forma:

De todas as grandes, e potencialmente grandes potências, a China é a que mais

cresce. Os Estados Unidos já são a mais poderosa, a Europa está na faina de uma

unidade maior, a Rússia é um gigante que cambaleia, e o Japão é rico mas, até agora,

tímido (KISSINGER, 1999, p. 909).

48

Este ordenamento internacional funciona adequadamente com os objetivos da potência

hegemônica – principalmente pela redução dos encargos –, bem como sem afetar

drasticamente os interesses das demais potências, durante a década de 1990. Crises

humanitárias e econômicas são contornadas, apaziguadas ou censuradas, de modo que não

desestabilizam o sistema como um todo. Todavia, os sinais de erosão já se mostravam antes

mesmo da configuração desta ordem.

Quando dos ataques terroristas da rede Al Qaeda em 11 de setembro de 2001, e a

posterior resposta norte-americana, com apoio de grande parte das demais nações e,

posteriormente, a invasão do Iraque a fim de destituir o regime de Saddam Hussein, baseada

nos princípios de direitos humanos e luta contra o terrorismo, de forma unilateral, foram

eventos que determinaram o fim da ordem hegemônica pós-Guerra Fria, e inauguraram um

breve período de dominação estadunidense, que, como fora observado por Hobsbawm (2007),

teria consequências marcantes para o rumo das Relações Internacionais e para a hegemonia

dos Estados Unidos.

Neste escopo, Jorge Sampaio e José Paulouro das Neves forneceram um quadro

analítico geral das relações internacionais a partir do fim da Guerra Fria marcadamente

efetivo, ao considerarem amplos movimentos das forças potenciais que aportavam desafios

distintos à estrutura história, que, por sua vez, constrangia as possibilidades práticas dos

atores internacionais.

Consolidaram-se, assim, tendências anteriores que hoje marcam o nosso viver: o

declínio do Estado-Nação, cujo ocaso alguns apressadamente profetizam, mas que

os acontecimentos posteriores ao 11 de Setembro desmentem nas suas formulações

mais excessivas, por terem mostrado que, não obstante a efectiva perda de anteriores

instrumentos de supervisão, verifica-se afinal que vem reganhando espaços de

manobra, nomeadamente pelo alargamento de certos dos seus poderes; o

enfraquecimento dos governos nacionais face a uma bem mais livre actuação das

grandes corporações económicas; a permeabilidade dos países às clandestinas tramas

da criminalidade transnacional; as preocupantes projecções securitárias nos direitos

individuais; o alargamento do fosso entre as nações que beneficiam da globalização

e aquelas que se vão enleando nas suas carências, de que as dolorosas imagens

quotidianas das migrações anárquicas constituem amarga ilustração; a crescente

importância das ONG, apesar da persistência de ambiguidades do seu modelo de

representatividade; ou a proliferação de movimentos que contestam com vigor as

omissões dos governos quanto a alguns efeitos predadores da globalização,

configurando esta (de formas crescentemente radicalizadas e de elevado poder

mobilizador popular) como instrumento de dominação económica e veículo de

estratégias de hegemonia cultural (NEVES; SAMPAIO, 2007, s/p).

Entrementes, enquanto os estudiosos das relações internacionais esforçavam-se para

formular o panorama analítico mais apto a desvendar seu objeto de estudo no novo momento

49

histórico, condicionados por suas metodologias específicas, encontramos em outra atividade

humana de grande repercussão, alguns elementos que permitem elucidar os anseios, angústias

e ímpetos que permeiam a ação humana – individual ou coletiva –, podendo ser a imitação da

realidade que observa, ou um suplemento que comporte sua superação.

Pois o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria

o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for

apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico

dessa realidade natural, colocada junto dela a fim de superá-la (NIETZSCHE, 2001,

p. 140).

Neste escopo, concebemos a arte como “socialmente progressiva”, possibilitando a

construção de um quadro analítico das relações sociais que abarcam o contexto de produção

do artista, explanando as concepções de mundo que este e seus contempladores expressam.

Toda a grande arte é socialmente progressiva, no sentido de que, seja qual for a

filiação política consciente do autor [...], ela apreende as forças historicamente vitais

de uma época que vão no sentido da mudança e do crescimento, revelando o seu

potencial em desenvolvimento na mais plena complexidade (EAGLETON, 1978, p.

44-45).

A análise dos entrelaçamentos de arte e política é profundamente elucidativa,

justamente pelo fato do artista ter um grau muito maior de liberdade para expressar suas

inquietações em comparação ao cientista social. Por isso, enquanto o artista capta a essência

do espírito humano e busca assim construir um panorama genérico do que seja a realidade, o

cientista social – como nos casos de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) – por vezes se

impacienta no afã de encontrar algum fator potencialmente explicativo da realidade. “Há o

enigma e a falta de paciência para decifrá-lo, no momento” (VELOSO, 2005, p. 199).

O homem precisa de arte porque além de ter nervos e músculos tem uma coisa que

se chama alma. E a arte é a maior carícia para a alma. Por isso ele sempre praticou

esses exercícios do espírito. Praticou ou contemplou. Porque a arte é prazer para

quem a faz e para quem a observa. E o homem necessita desse prazer. Para quem a

pratica é o prazer de externar seus sentimentos. Para quem a contempla é o prazer de

ver o belo ou de reconhecer, no sentimento do artista, seu sentimento (VELOSO,

2005, p. 253).

Deste modo, considerando-se os objetivos deste estudo, encontramos na obra de

Caetano Veloso uma trajetória artística que vai de encontro aos ímpetos da teoria crítica

coxiana, visando capturar os momentos de transição e explorá-los em toda sua potencialidade.

Caetano é um artista que teve sua carreira marcada pela adaptação, pela transitoriedade, pela

singularidade e pelo pioneirismo.

50

O “estilo” cancional de Caetano é não ter estilo definido, e poder transitar por

dicções diversas estabelecendo a sua especificidade na multiplicidade, como que a

transformar o sincretismo experimental tropicalista em marca pessoal, ao compor

canções de grande difusão. Há, portanto, traços inconfundivelmente singulares no

seu modo de articular música e letra, que vão desenhando, ao longo do tempo,

possibilidades imprevistas de encontro entre a sofisticada depuração bossa-novista e

a agilidade pregnante das baladas oriundas do rock (de Beatles a Roberto Carlos)

(WISNIK, 2005, p. 98).

Partindo da Tropicália, passando pelo exílio londrino, o experimentalismo dos anos

setentas, a evolução técnica dos oitentas, chegando ao internacionalismo dos noventas e do

novo milênio, o capítulo seguinte pretende lançar-se à análise da trajetória artística de

Caetano Veloso e sua contribuição para o estudo das relações internacionais, partindo de uma

concepção do posicionamento do Brasil no mundo.

2 ENTRELAÇAMENTOS DE ARTE E POLÍTICA EM CAETANO

VELOSO: CONTESTAÇÃO E CRÍTICA ÀS RIGIDEZES ANALÍTICAS

Captar e descrever desde os maiores conflitos às nuanças da alma humana,

apreciando-se seus impulsos e reações, seus efeitos para o indivíduo e para toda a coletividade

em que está imerso, havendo-se de ponderar a estrutura histórica que lhe constrange suas

ações, tornam a atividade artística indubitavelmente essencial para a superação da realidade.

Do mesmo modo que o cientista social vê-se por vezes imerso nos caleidoscópios

teórico-empíricos proporcionados pelos momentos de transição, o artista também é coagido

pelas transformações perpassadas pela humanidade, nos mais diversos momentos da história.

Todavia, retomando os aportes de Eagleton (1978) percebemos que a arte é socialmente

progressiva, e o artista é o agente histórico que apanha as forças históricas vitais implicadas

no desenvolvimento histórico humano.

Alguns artistas, além de apreender a realidade, participam ativamente da sua

construção, atuam na transição dos padrões artísticos de uma época, abrindo novas

perspectivas para tal atividade humana. Personalidades artísticas que ao se transmutarem

acarretam a transformação da arte são imprescindíveis para a evolução dos agrupamentos

humanos.

Caetano Veloso é, certamente, uma das mais “inexplicáveis” personalidades

brasileiras. Não apenas por ser um artista polêmico e camaleônico, cuja força

sempre esteve na capacidade de escapar às classificações e desautomatizar chaves

convencionais de interpretação, mas também por se tratar de alguém que não cansou

de se auto-explicar ao longo dos seus quarenta anos de vida artística (iniciada em

1965), a ponto de parecer esgotar tudo o que de novo se poderia dizer a seu respeito

(WISNIK, 2005, p. 8).

Nascido em sete de agosto de 1942 – dia de São Caetano9 –, em Santo Amaro da

Purificação, no Recôncavo Baiano, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (VELOSO, 1997)

9 Conhecido como o Santo da Providência, Patrono do pão e do trabalho, Caetano de Thiene (1480-1547) é

nomeado padroeiro dos gestores administrativos, bem como das pessoas que buscam trabalho e dos

desempregados. Na concepção de Caetano Veloso, sua relação com o santo que lhe determinara seu nome não

consistia em uma relação de idiossincrasia. Valendo-se das análises do psicanalista italiano Contardo Calligaris,

Caetano considera que “é característico do brasileiro ser nomeado irresponsavelmente, sem vínculo simbólico

com, por exemplo, o santo correspondente ao dia do seu nascimento. Meu nome é Caetano porque nasci no dia

52

converteu-se em um dos principais ícones artísticos nacionais, desencadeando uma série de

revoluções culturais que evidenciariam toda a potencialidade da música brasileira.

Desde menino, na pequena Santo Amaro, Caetano Veloso deparou-se com a onda

avassaladora da cultura de massas norte-americana, e o esforço nacionalista pela preservação

das forças criativas da arte brasileira, em um país que caminhava paulatinamente ao

capitalismo alienante10 dos anos pós-Segunda Guerra Mundial.

Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes

regionais ou nacionais não lidávamos com tais noções, embora uma forma branda e

ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses

meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar um

estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como

acompanhar (VELOSO, 1997, p. 12).

Entrementes, Caetano opunha-se tanto à alienação da cultura de massas quanto às

tentativas do “nacionalismo ingênuo”, ávido por rotular a cultura brasileira em qualquer

parâmetro que não remetesse aos Estados Unidos, depauperando o riquíssimo espírito criativo

brasileiro em uma acomodação a padrões estilísticos simplórios que representassem uma

pretensa essência brasileira.

O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de

contrastar com esse ambiente desencadeado do que da responsabilidade de

compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto.

Refiro-me aqui à minha atuação em música popular desde meados da década de 60

e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo superestimadas que, no final

daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo. Esse movimento, no que me

diz respeito, teve todas as características de uma descida aos infernos. Para entender

isso que acabo de dizer, é necessário considerar o clima da MPB do meio dos anos

60, ou seja, os desenvolvimentos do samba-jazz, o surgimento da canção engajada e,

finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo

superficial e ingênuo se comparado com a densidade da bossa nova (VELOSO,

2005, p. 46).

Neste escopo, torna-se possível aproximar as investidas de Caetano Veloso contra o

“nacionalismo ingênuo” à antropofagia que permeou os esforços dos modernistas da década

de São Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência.

Nunca me senti uma exceção por causa disso” (VELOSO, 1997, p. 176-177). 10 Podemos apreciar tal conceituação do período abordado por dois motivos: por um lado, a retomada do

crescimento econômico acentuado nas principais economias capitalistas mundiais, após as décadas da recessão

(pós-crise de 1929) e do conflito mundial, intensificando o processo de alienação do produtor quanto às

mercadorias por meio dos modelos produtivos utilizados; e, por outro lado, pelo desenvolvimento da indústria

cultural que, segundo Adorno (2009), efetuava procedimento adicional de alienação dos indivíduos em relação

tanto à estrutura quanto à superestrutura, fetichizando a realidade por meio de produtos frívolos que reproduziam

apenas elementos úteis aos interesses das classes dirigentes. Neste sentido, Adorno (2009) focava sua análise no

cinema e no rádio, contudo, será com a massificação da televisão que a indústria cultural passará a influenciar

decisivamente nos relacionamentos interpessoais e sociais, em aspectos tão amplos que implicaria efeitos aos

relacionamentos políticos (HOBSBAWM, 2005).

53

de 1920, mais especificamente Oswald de Andrade. Caetano compreende a contribuição de

Oswald para os debates sócio-culturais brasileiros de modo que superássemos a mera

imitação, utilizando-nos de nossa criatividade a fim de “abrasileirar” as informações novas

advindas do exterior.

Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de

onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espécie brasileira

a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais

iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam,

em principio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto

internacional, como produto de exportação (VELOSO, 1997, p. 172).

Assim, a antropofagia cultural era compreendida como um fenômeno absolutamente

distinto da incorporação ingênua (comumente classificada como comercialista, e, no caso

brasileiro, americanista), consistia em elencar referências e orientações para a formação

cultural nacional.

Oswald subvertia a ordem de importação perene - de formas e fórmulas gastas - (que

afinal se manifestava mais como má seleção das referências do passado e das

orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores) e

lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o

ritual canibal (VELOSO, 1997, p. 172).

Tendo em conta tais aspectos, Caetano reconhece a proximidade do movimento

deflagrado pelos modernistas na década de 1920 com o que fora perpetrado pelos tropicalistas

nos anos sessentas. Contudo, relativiza tanto o potencial crítico quanto os efeitos relativos a

ambos os movimentos, reconhecendo as realidades distintas em cada momento histórico.

Sendo assim, assinala que:

A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva.

Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a

atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e

exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem

cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos.

Procurei também - e procuro agora - relê-la nos textos originais, tendo em mente as

obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal

poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a

experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos

dos anos 60. [...] eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a ideia de

antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada (VELOSO, 1997, p. 172-

173).

Consequentemente, gestava-se no interior do artista baiano um movimento que

encadearia a definitiva inserção da cultura brasileira no cenário internacional, de forma

abrupta, irresistível e libertadora, não obstante, demasiado complexo para o jovem que saía de

Santo Amaro para estudar em Salvador no início da década de 1960.

54

Um movimento que queria apresentar-se como uma imagem de superação do

conflito entre a consciência de que a versão do projeto do Ocidente oferecida pela

cultura popular e de massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora -

reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações mais ingênuas de

atração por essa versão - e o horror da humilhação que representa a capitulação a

interesses estreitos de grupos dominantes, em casa ou nas relações internacionais

(VELOSO, 1997, p. 9).

Influenciado pelo rock’n roll norte-americano dos anos 1950, o jazz difundido

mundialmente como musicalidade “mais pura”, em relação aos avanços técnicos que a arte

comercial presenciava, pelo neo rock’n roll inglês dos anos 1960, o samba de roda da Bahia,

Caetano Veloso ainda não havia sido arrebatado pela música (WISNIK, 2005 e VELOSO,

1997).

A incerteza quanto aos seus rumos pessoais, permeados pela atividade artística,

dificultava o desenvolvimento de suas capacidades criativas. Caetano estava dividido entre o

cinema, sua grande paixão, a crítica artística, aprimorada em sua meia década em Salvador, a

pintura, que despendeu seus maiores esforços na adolescência, e a música, obstaculizada pela

sua timidez de garoto do Recôncavo Baiano (VELOSO, 1997).

Entretanto, ao mesmo tempo em que intensificavam-se as convulsões sociais

brasileiras instigadas pelo período democrático dos anos cinquentas e sessentas, surgiu no

Brasil um movimento artístico que alterou todos os padrões e debates culturais, imprimindo

uma realidade absolutamente inovadora e que necessitava de novas concepções de mundo,

desvinculadas da querela do americanismo versus nacionalismo.

A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias

para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança

de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é

mais importante – as nossas possibilidades (VELOSO, 1997, p. 21).

Certamente foi João Gilberto quem mais influenciou Caetano em sua decisão de

adentrar nos trâmites da produção musical (WISNIK, 2005). O disco Chega de Saudade

(1959) inaugurou uma nova era na Música Popular Brasileira, oferecendo novas

possibilidades para captar a essência do espírito brasileiro. Caetano Veloso destacava-se

gradualmente como compositor, desde sua transferência para o Rio de Janeiro na segunda

metade da década de 1960, e firmava-se como revelação artística da época.

Concomitantemente, ocorriam alterações profundas na estrutura histórica brasileira,

com o golpe militar de 1964, que buscava apaziguar os ímpetos de um pretenso “avanço

comunista”. Não obstante, Caetano e Gilberto Gil (companheiro desde os tempos de

55

Salvador) ainda planejavam o grande golpe à cultura brasileira, neste momento, em que o

antigo debate que marcara a adolescência de Caetano acirrava-se decisivamente, com a

afirmação das canções de protesto, contestatórias do regime militar e de qualquer

identificação com a arte comercial internacionalizada. Os ímpetos transformadores e

contestatórios de Caetano iniciam a delinear-se, conformando uma posição de auto-

transmutação constante e inconformismo com qualquer padronização.

Em 64, a esquerda parecia se compor de todos os brasileiros que merecessem sê-lo e

mesmo de todos os seres humanos dignos desse nome. [...] O que se pretende contar

é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da musica popular brasileira, na

segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas [...] queriam poder mover-se

além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da

revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim

reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade

cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso valendo por um

desvelamento do mistério da ilha Brasil (VELOSO, 1997, p. 9).

Portanto, ao considerar-se o projeto tropicalista de transformação sócio-cultural do

Brasil, volta-se necessário apreciá-lo enquanto um projeto abrangendo duas esferas de

atividade humana, a artística e a intelectual. O processo de desenvolvimento histórico que se

apresentava aos tropicalistas colocava o seguinte problema:

A antítese corriqueira entre arte e ciência, que separa as duas em diferentes setores

culturais, a fim de que, enquanto setores culturais, elas possam ser ambas

administradas, faz com que cada uma delas, enquanto exato oposto, converta-se

finalmente na outra em virtude de suas próprias tendências. A ciência, na sua

interpretação neopositivista, torna-se esteticismo, um sistema de signos soltos,

destituídos de qualquer intenção que transcenda o sistema: jogo que os matemáticos,

já há muito tempo, orgulhosamente declararam ser o seu assunto. Mas a arte da

reprodutibilidade integral abandonou-se à ciência positivista até mesmo nas suas

técnicas. Mais uma vez, de fato, ela se torna mundo, duplicação ideológica, dócil

reprodução. A separação entre signo e imagem é inevitável. Todavia, se for mais

uma vez hipostasiada, num incauto contentamento consigo mesma, cada um dos

dois princípios isolados induz à destruição da verdade (ADORNO, 1996, p. 34).

Essa problemática emerge da pretensa desvinculação de alguns intelectuais em relação

à coletividade. Inicialmente, há de questionar-se, como o fez Gramsci (1982, p. 3), se “os

intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente, ou cada grupo social

possui sua própria categoria especializada de intelectuais”? A complexidade inerente ao

problema é causada, segundo Gramsci (1982, p. 3), pela multiplicidade de formas assumidas

pelo “processo histórico real de formação das diversas categorias intelectuais”. De todas as

formas assumidas por tal processo sobressaltam-se duas. A primeira diz respeito ao grupo dos

intelectuais orgânicos, que pode ser assim concebida:

56

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no

mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo

orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e

consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no

social e no político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o

cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo

direito, etc., etc. Deve-se anotar o fato de que o empresário representa uma

elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e

técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não

somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas ainda em outras

esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um

organizador de massa de homens: deve ser um organizador da "confiança" dos que

investem em sua fábrica, dos compradores de sua mercadoria, etc.). [...] Pode-se

observar que os intelectuais "orgânicos", que cada nova classe cria consigo e elabora

em seu desenvolvimento progressivo, são, no mais das vezes, "especializações" de

aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à

luz (GRAMSCI, 1982, p. 3-4).

A segunda forma assumida refere-se ao grupo dos intelectuais tradicionais, forma

elementar da análise efetuada por Adorno (1996) quanto à problemática entre a arte e a

ciência. Esta segunda forma pode ser definida nestes limites:

Cada grupo social "essencial", contudo, surgindo na história a partir da estrutura

econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou

pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias categorias intelectuais

preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade

histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais

modificações das formas sociais e políticas. A mais típica destas categorias

intelectuais é a dos eclesiásticos, que monopolizaram durante muito tempo (numa

inteira fase histórica que é parcialmente caracterizada, aliás, por este monopólio)

alguns serviços importantes: a ideologia religiosa, isto é, a filosofia e a ciência da

época, através da escola, da instrução, da moral, da justiça, da beneficência, da

assistência, etc. [...] Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais

sentem com "espírito de gripo" sua ininterrupta continuidade histórica e sua

"qualificação", eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e

independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não deixa de ter

consequências de grande importância no campo ideológico e político: toda a

filosofia idealista pode ser facilmente relacionada com esta posição assumida pelo

complexo social dos intelectuais e pode ser definida como a expressão desta utopia

social segundo a qual os intelectuais acreditam ser "independentes", autônomos,

revestidos de características próprias, etc (GRAMSCI, 1982, p. 5-6).

Retomando à análise do projeto tropicalista de transformação sócio-cultural,

concatenando com os apontamentos de Gramsci (1982) e Adorno (1996), é possível

percebermos a imprescindibilidade da atuação de Caetano Veloso tanto como artista quanto

como intelectual, a fim de efetivar a potencialidade buscada pelo movimento que o mesmo

gestava.

Sob tais perspectivas, podemos conceber o Tropicalismo enquanto um intento de

formação de uma nova cultura e uma nova intelectualidade, nos termos gramscianos. Desse

modo, ao falar-se de uma nova cultura:

57

Deve-se falar de lutar por uma nova cultura, ou seja, por uma nova vida moral que

não pode deixar de estar [intimamente] ligada a uma nova concepção da vida, até

esta voltar-se um novo modo de sentir e de intuir a realidade e, portanto, um mundo

intimamente conforme no artista e em suas obras (GRAMSCI, 1986, p. 97, tradução

nossa).

Ao empreender-se o intento de efetivação de uma nova cultura é essencial conceber o

indivíduo enquanto imerso na sociedade, historicamente determinado. O artista deve ser

observado como membro da sociedade da qual participa, e na qual atua, e uma sociedade

determinada, historicamente. É assim que Gramsci (1999, p. 121, tradução nossa) considera o

artista pertencente ao projeto de objetivação de uma nova cultura, sendo “mais ou menos

amplo e global, mais ou menos ‘histórico’ ou ‘social’”.

No tocante à nova intelectualidade, do mesmo modo, faz-se necessário apreciar a

ligação intrínseca do intelectual com a estrutura histórica em que o mesmo insere-se. Quando

logra estabelecer tal nexo, aportando uma concepção de mundo perpassada pelo

desenvolvimento histórico, estamos considerando um intelectual orgânico. Em síntese:

O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em

elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um em determinado

grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso

no sentido de um novo equilíbrio e conseguindo-se que o próprio esforço muscular-

nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova

continuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e

integral concepção do mundo (GRAMSCI, 1982, p. 8, grifo do autor).

Tendo em conta todos os processos de fragmentação que o capitalismo alienante

efetiva nas sociedades contemporâneas, o artista possui papel importante na construção de

imagens coletivas multifacetadas, que possibilitem aos indivíduos a percepção da totalidade

em que estão imersos.

Numa sociedade em que o geral e o particular, o conceptual e o sensual, o social e o

individual são cada vez mais dissociados pelas “alienações” do capitalismo, o

grande escritor une-os dialeticamente numa totalidade complexa. A sua ficção

espelha assim, de forma microcósmica, a totalidade complexa da própria sociedade.

Fazendo isto, a grande arte combate a alienação e fragmentação da sociedade

capitalista, projetando uma imagem rica e multifacetada da integridade humana

(EAGLETON, 1978, p. 43).

Portanto, ao analisarmos o projeto tropicalista e a participação de Caetano Veloso,

depreendemos a atuação deste enquanto artista e intelectual, visando o estabelecimento de

uma nova cultura e uma nova intelectualidade. Por construir um projeto nacional de

transformação artístico-cultural, que possibilitasse influenciar diretamente no âmbito político-

econômico, Caetano pode ser considerado um intelectual orgânico, atuando na contestação

58

das elites dirigentes e de suas superestruturas conformadas no momento histórico em que

deflagra-se o Tropicalismo.

O III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1967, realizado no

Teatro Paramount de São Paulo, representou o maior acontecimento artístico nacional pós-

bossa nova. Além de toda a discussão acerca dos rumos da cultura brasileira, Caetano e Gil

apresentaram as bases do que seria o Tropicalismo, uma completa virada artística para

oferecer novas possibilidades à arte no Brasil.

De fato, nós tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos que era

necessário, tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos. Tínhamos de

destruir o Brasil dos nacionalistas, tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a

imagem do Brasil carioca (VELOSO, 1997, p. 31).

Neste evento histórico foram apresentadas ao público canções que marcariam uma

época, uma geração, delimitariam a transição da Música Popular Brasileira para rumos

absolutamente inovadores, reposicionando-a entre as principais formas de apresentação

artística no cenário pós-modernista.

Edu Lobo, acompanhado por Marília Medalha, venceu o festival com a canção

Ponteio, ode à arte musical brasileira. Chico Buarque apresentou, juntamente com o conjunto

MPB4, a canção Roda Viva, elevando o nível das canções politicamente engajadas quanto aos

seus arranjos e à musicalidade com que a poesia de contestação era apresentada. Todavia, não

há dúvidas que o maior impacto causado pelo festival referiu-se às apresentações de Domingo

no Parque de Gilberto Gil e os Mutantes, e Alegria, Alegria de Caetano Veloso e os Beat

Boys.

A utilização de guitarras elétricas e conjuntos de rock n’roll nas apresentações já

prenunciavam uma revolução cultural. As vestimentas pouco convencionais (excetuando-se

Gilberto Gil) apenas agregavam elementos à polêmica central: a música tradicional versus a

música comercialista e alienante internacionalizada. Caetano e Gil almejavam a dissolução

desta polêmica em um rito de exorcismo, uma “descida aos infernos”, em que todas as forças

criativas artísticas do espírito brasileiro fossem libertas das amarras do convencionalismo

modernista. Utilizavam-se de táticas próximas as que fundamentavam a guerrilha urbana, no

ímpeto de combater os desígnios da realidade dominante.

Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que

colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções, sons desagradáveis

e ruídos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural

59

brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da

guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação

poética (VELOSO, 1997, p. 31-32).

Após o III Festival da Record, Caetano “organizou o movimento” e empenhou-se em

desenvolver a crítica aos padrões artísticos nacionais. O ano de 1968 foi significativamente

emblemático (mundialmente pelas mobilizações sociais da chamada geração de 6811,

estereotipadas nos movimentos estudantis franceses de maio daquele ano), despendendo a

maior parcela das energias criativas dos tropicalistas. Por ende, os fenômenos relativos à

micropolítica passaram a pautar os debates societários, num movimento diametralmente

oposto às concepções ideológicas fundadas na totalidade dos grupos humanos.

Os estilos modernistas se transformaram assim nos códigos pós-modernistas. A

questão da micropolítica demonstra claramente que também é um fenômeno político

a hoje extraordinária multiplicação dos códigos sociais em jargões de disciplinas e

de profissões (mas também em índices de adesão à afirmação étnica, sexual, racial,

religiosa ou à facção de classe). Se, antes, as ideias de uma classe dominante (ou

hegemônica) formavam a ideologia da sociedade burguesa, os países capitalistas

avançados são, em nossos dias, o reino da heterogeneidade estilística e discursiva

sem norma. Senhores incógnitos continuam a reajustar as estratégias econômicas

que limitam nossas vidas, mas não precisam (ou não conseguem) mais impor sua

fala; e a pós-alfabetização, característica do mundo do capitalismo tardio, reflete [...]

a ausência de qualquer grande projeto coletivo [...] (JAMESON, 1997, p. 44).

Caetano lança seu primeiro Long Play individual, Caetano Veloso, em 1968,

apresentando ao público o produto de seu esforço tropicalista. Não obstante, retomando aos

apontamentos de Chaia (2007), percebemos que neste primeiro momento da carreira de

Caetano Veloso, a canção Alegria, Alegria tornou-se emblemática para a compreensão de

todo o processo desencadeado. Por mais que o próprio artista posicione a canção como

simplória e sem grandes atributos, sua representatividade no contexto da estrutura histórica

em que foi concebida a situam como obra com presença política.

Independentemente ou não da vontade do sujeito e do projeto do artista, uma obra de

arte pode tornar-se um símbolo político que evoca um conjunto de ideias ou

condições sociais, sempre recuperável no presente político. Destacam-se, nesse caso,

mensagens, conteúdos ou valores que entram em circulação com a obra

11 De acordo com Hobsbawm (2005, p. 325), o movimento surgido na segunda metade da década de 1960

consistia numa crítica dos velhos padrões sociais, uma atitude dos jovens de rejeição das convenções sociais

precedentes, visando estabelecer novos parâmetros para as temáticas mais particulares referentes aos

relacionamentos pessoais. Desse modo, adentrou-se num subjetivismo, no fortalecimento das concepções

individuais, essencialmente das liberdades individuais. “Mesmo quando tais desejos eram acompanhados de

manifestações, grupos e movimentos públicos; mesmo no que parecia, e às vezes tinha, o efeito de rebelião de

massa, a essência era de subjetivismo” (HOBSBAWM, 2005, p. 326). Lutava-se pela liberação pessoal e

liberação social, buscando subverter a dominação do Estado, dos pais e de toda a “velha sociedade”, de suas leis

e convenções. “Mais significativo ainda é que essa rejeição não se dava em nome de outro padrão de ordenação

da sociedade, embora o novo libertarismo recebesse uma justificação daqueles que sentiam que ele precisava de

tais rótulos, mas em nome da ilimitada autonomia do desejo humano” (HOBSBAWM, 2005, p. 327).

60

resignificada. As imagens tornam-se essenciais tanto para a contestação quanto para

a propaganda política e estratégias econômicas (CHAIA, 2007, p. 28).

Alegria, Alegria deflagra um novo estilo cancional, comprometido com a

decomposição de tudo o que seja padronizado, permeada pela colagem de imagens justapostas

que lhe oferecem certa uniformidade, lançando mão de figuras cotidianas com um discurso

político transfigurado, afastando-se do apelo da canção de manifesto.

Em “Alegria, Alegria”, a eficácia do discurso cancional estava na afirmação de

independência ideológica do eu que canta, que, sob uma cama orquestral de cordas

sintetizadas, soando como um órgão de igreja, numa marchinha propositalmente

ingênua, podia desenhar claramente linhas melódicas descendentes (“O sol nas

bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia?”)

concluídos ascendentemente (“Por que não?”), reforçando sua atitude de deslocar-se

decididamente no espaço (WISNIK, 2005, p. 18-19).

Pode-se conceber o Tropicalismo, de tal modo, enquanto um esforço de repensar o

Brasil e a brasilidade, bem como o papel da arte na (des) construção do fenômeno Brasil. O

ímpeto tropicalista centrava-se em descaracterizar os arcaísmos patriarcais nacionalistas e

imergi-los na “geleia geral” da cultura de massas internacionalizada, para assim liberar o

impulso criativo intrínseco a arte brasileira.

No caso da música popular, o mesmo espírito de negatividade alimentou o assim

chamado tropicalismo, na incorporação da música comercial “cafona”, dos

instrumentos eletrônicos “importados” e do ruído dissonante, na colagem heteróclita

de referências várias com vistas à dissolução dos gêneros musicais, e na construção

paródica e alegórica de imagens sincréticas do Brasil, em que se justapõem

modernidade internacional e arcaísmos patriarcais (WISNIK, 2005, p. 46).

Neste escopo, o tropicalismo aproximava-se dos movimentos pós-modernos, no que

concerne ao seu comprometimento com a desconstrução de figuras universais, a

desconstrução das figuras homogeneizantes da sociedade, encontrando na fragmentação das

forças sociais um impulso para tais ímpetos.

O sentido do pós-moderno, como um conjunto de referências pré-teóricas que

estabelecem certas “semelhanças familiares” entre suas diversas manifestações, é

dado pelo processo de erosão e desintegração de categorias tais como “fundação”,

“novo”, “identidade”, “vanguarda” etc. O que a “situação de pós-modernidade”

contesta não é tanto a diferenciação e a escolha de identidades sociais e culturais,

mas sim o status e a lógica de sua construção (LACLAU, 1992, p. 129)

O projeto de Caetano reconhecia a importância que deveria ter a apresentação de

Alegria, Alegria (VELOSO, 1997), entretanto, o artista não contemplava a potencialidade

inerente à canção, a empatia dos ouvintes às imagens transmitidas pela canção com sua forma

melódica simples e poderosa, por sua ruptura com os padrões estéticos até então vigentes.

61

Definitivamente inaugurava-se um novo período artístico na Música Popular Brasileira. Por

conseguinte, a canção ganhou autonomia em relação aos desígnios que o artista lhe atribuía,

perpassando suas expectativas e tornando-se ícone do movimento em geral.

A obra de arte possui presença autônoma, dada a sua estrutural potencialidade,

expondo diferentes formas de falas, linguagens ou expressões, disponibilizando

fluxos para trafegar poderes, sejam eles estéticos ou ideológicos. Assim, ao abrir

inúmeras possibilidades em sua apropriação, a obra coloca inusitados, ou até

improváveis, recursos para o conhecimento e a ação no mundo (CHAIA, 2007, p.

28).

Não obstante, o desenvolvimento do movimento da Tropicália influenciou de tal forma

o cenário artístico nacional, seus precursores empenharam-se profundamente no acirramento

de todas as tensões que lhes instigavam seus impulsos artísticos, empreenderam a “descida

aos infernos” (VELOSO, 2005), confrontando-se com uma estrutura histórica conduzida pelo

conservadorismo do regime militar. Como resultado, Caetano Veloso e Gilberto Gil são

presos em 27 de dezembro de 1968 – duas semanas após a decretação do AI-512 –, após uma

sucessão de golpes deflagrados pelo movimento Tropicalista, simbolicamente enterrado no

programa Divino, maravilhoso da TV Tupi (WISNIK, 2005).

A nossa descida aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande

otimismo – ainda não superamos a fase sombria iniciada em 1967. “Alegria, alegria”

era um começar a mexer no lixo – claro que ela trata da alegria real, mas apenas para

ter mais eficácia no tratamento do tema fundamental que é o mesmo de

“Superbacana” e de “Geleia geral”, a saber, uma visão autodepreciativa da nossa

vida cotidiana e do seu quase nenhum valor no mundo (VELOSO, 2005, p. 51).

Em julho de 1969, Caetano e Gil, acompanhados de suas esposas, partem para o exílio

em Londres, em um novo momento de transição na trajetória artística de Caetano Veloso. A

desconstrução total proposta pela Tropicália seguiu a evolução esperada pelo movimento,

possibilitando a fase de experimentalismo dos anos setentas, em que Caetano apresentará

inovações na técnica vocal que lhe elevarão a um novo patamar de produção artística.

O lançamento do disco Caetano Veloso de 1971, em Londres, representou o ponto de

transição da desconstrução tropicalista para a explosão criativa da nova Música Popular

Brasileira. O impacto causado pelos novos empreendimentos artísticos perpetrados por

Caetano neste trabalho evidenciaria ao público suas profundas pretensões criativas

impulsionadas pelo experimento tropicalista.

12 O Ato Institucional Número Cinco fora instaurado durante o governo de Artur da Costa e Silva, delegando

poderes extraordinários ao executivo, suspendendo garantias constitucionais e representando o decisivo

fortalecimento do regime militar. O AI-5 recrudescia a censura, estendendo a censura prévia à imprensa, à

música, ao teatro e ao cinema (WISNIK, 2005).

62

O disco esteve marcado por canções representativas do momento pessoal do artista,

exilado em Londres, envolvendo-se num simbolismo acerca das forças históricas que

movimentavam as relações de poder no Brasil à época. London, London foi a mais

significativa canção permeada por tal escopo, compartilhando as atenções com as demais

canções em que Caetano aventurou-se profundamente na língua inglesa para produzir canções

com marcante difusão ideológica do projeto de um novo Brasil, internacionalizado e que

reconhecesse, ao mesmo tempo, sua singularidade.

Entrementes, o maior impacto causado pelo disco refere-se à interpretação da clássica

Asa Branca, na qual Caetano inova sua técnica vocal, explorando possibilidades estéticas de

altíssimo requinte e exigência na execução, que envolvidas pela áurea política da própria

canção, configuraram-se em um manifesto contra a severidade da vida no campo brasileiro,

especificamente na região Nordeste, concatenando com a situação dos exilados políticos do

regime militar que, assim como os retirantes nordestinos, esperam uma renovação de sua terra

natal para regressarem ao espaço que lhes caracteriza enquanto atores sociais.

“Asa Branca”, em particular – a mais perfeita canção do exílio, que fala de alguém

que se vê forçado a abandonar o sertão castigado pela seca, deixando guardado ali

seu coração como promessa de volta –, marca o momento inaugural de sua hoje tão

consagrada vocação de intérprete criador. [...] a gravação de “Asa Branca” significa

um salto para outro patamar criativo. Um salto que implica tanto a criação de um

estilo pessoal de interpretação, na poderosa integração formal entre os modos de

cantar e de tocar violão, envolvendo experimentações silábico-sonoras que parecem

mastigar antropofagicamente os antigos exercícios mentais, quanto a amplificação

de uma perspicácia definitivamente aguçada na capacidade lírica de extrair sentidos

exponencialmente novos do cruzamento de elementos dados (WISNIK, 2005, p. 37).

Tomando-se o disco de forma unitária, observamos que o mesmo aportou

contribuições para a politização da arte (CHAIA, 2007, p. 24), onde voltam-se relevantes “a

existência de componentes ideológicos, a influência de orientações partidárias e a circulação

de ideias brotadas dos manifestos de vanguardas permeando a produção artística”. Certamente

a contestação ao cerceamento da liberdade de expressão, seja a perpetrada pelo aparato

estatal, seja a difundida pelos meios tradicionais conservadores, fora a principal colaboração

desta obra de Caetano Veloso. Seu “manifesto do movimento Joia” expressa pontualmente

suas aspirações quanto à liberdade de criação, ao apontar que:

Nenhum círculo é vicioso a ponto de impossibilitar o verde, o aparecimento do

verde, a esperança do aparecimento do verde, escravo livre da insensatez azul e do

equilíbrio amarelo. [...] Respeito contrito à ideia de inspiração. Joia. Meu carro é

vermelho. Inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma

música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e

o milênio (VELOSO, 1977, p. 163).

63

Agregam-se a tais considerações, o fato de o projeto do disco Caetano Veloso (1971)

intencionalmente visar esclarecer seus consumidores quanto à sua mobilização pela liberdade

irrestrita de expressão artística, possibilitada pela deflagração do anterior movimento

tropicalista, ideário mantido durante a década de 1970, coroada com a canção Terra, de 1978,

em que Caetano liricamente aborda sua prisão em 1969, concatenando com o progresso

mundial que representaram as primeiras fotografias do planeta obtidas desde o espaço.

Na politização da arte, a obra tende a adquirir um sentido pragmático, a partir da

fusão de interesses individuais e institucionais, tanto que nessa produção se

manifesta a ambiguidade nascida da livre vontade do artista e do entendimento de

que a arte é um meio de transformação (gradativa ou revolucionária) da sociedade.

Artista e obra incluem-se no fluxo da propagação difusa de algum projeto político,

sem deixar-se apanhar completamente pela rede do poder centralizado e impositivo

de alguma instituição (CHAIA, 2007, p. 24).

No decorrer dos anos setentas, Caetano intensificou seu experimentalismo,

culminando em sua principal obra de tal cunho, o disco Araçá Azul (1973), que por sua

completa despretensiosidade comercial resultou em grande número de devoluções. Joia

(1975), Qualquer coisa (1975), Bicho (1977), Muito (1978) e Cinema Transcendental (1979)

conformaram o empreendimento de Caetano Veloso na década de 1970, a transfiguração do

escândalo absoluto da Tropicália em liberdade criativa e expressiva, recolhendo seus ônus e

bônus, inerentes ao experimentalismo que, todavia, seja pelos comentários da crítica

especializada, pela arrecadação lograda pelos discos (não todos, claro está) e pela difusão que

a obra e o artista tiveram nessa década, posicionando-o definitivamente no seleto rol de

personalidades artísticas nacionais, demonstraram que o projeto de Caetano brindou

resultados positivos tanto ao artista quanto à arte brasileira em geral.

Nesse arco de tempo, que compreende quase toda a década de 70, está concentrada

boa parte da produção musical mais intensa de Caetano (13 discos lançados), que,

como vimos, irá reincorporar, após a prisão e o exílio, o lirismo antes renegado pela

“máscara anti-bossanovista” do tropicalismo: “Às vésperas de acontecimentos

violentos, nossa poesia queria aniquilar o lirismo para dar lugar a uma saúde feroz.

Mas isso é muito mais profundo, essa história da alma lírica”, reconheceu Caetano,

numa carta escrita em Londres. “Eu sou brasileiro, os meus olhos costumam se

encher de água, eu sou humilde e miserável, estou na janela e na rua” (WISNIK,

2005, p. 74).

O êxito logrado pela difusão do trabalho de Caetano Veloso guarda estreita relação

com a combinação, efetuada pelo artista, da produção de obras com maior preocupação

técnica e outras vinculadas ao consumo de massas. Caetano busca equilibrar ambos elementos

diametralmente opostos, proporcionando maior abrangência de público, captando os anseios

64

do consumismo massivo de produtos culturais em consonância com seus projetos de inovação

artística.

Uma das razões por que eu gosto de manter uma produção de canções “de massa” é

a vontade de reequilibrar a média da criação pop brasileira a cada passo, em

detrimento de um possível afastamento para pesquisar algo fundador. É como se

fosse um não-querer estar demasiado à frente, ou acima, ou à margem (VELOSO,

2005, p. 69).

Guilherme Wisnik capta de modo sagaz os limites genéricos da obra de Caetano nessa

década, mencionando que as canções de tal período estavam profundamente perpassadas pelas

reflexões do artista sobre “o ser e o tempo”, bem como acerca do “ser e o nada”. “Quer dizer,

sobre questões importantes postas pelo existencialismo sartriano13, tais como a

responsabilidade da ação individual em meio à coletividade e a condenação à liberdade”

(WISNIK, 2005, p. 75).

Neste período, novamente sobrevêm à análise da obra de Caetano Veloso sua relação

com o pós-modernismo, especificamente em seu esforço de crítica à totalidade nas

apreciações da realidade humana.

De forma geral, a nova sensibilidade pós-moderna dirige suas forças para a

desconstrução sistemática dos mitos modernistas questionando não só o papel do

iluminismo para a identidade cultural do Ocidente mas também o problema da

totalidade e do totalitarismo na epistemologia e na teoria política modernas

(HOLLANDA, 1992, p. 9).

Contudo, o projeto artístico-político de Caetano Veloso esteve ligado a uma posição

alternativa dentro das considerações pós-modernas, na qual a postura crítica, de resistência e

transformação do status quo perpassava suas contribuições artísticas, colaborando

representativamente com as transformações sociais e culturais do país. Sua atuação, de modo

algum pode ser enquadrada na simplória negação absoluta, mas sim no escopo crítico-

propositivo.

Contra o codificado alto modernismo das décadas precedentes, o pós-modernismo

dos anos 60 tentou revitalizar a herança da vanguarda europeia e dar-lhe uma forma

norte-americana (...). Na década de 70, esse pós-modernismo vanguardista dos anos

60 havia esgotado seu potencial, embora algumas de suas manifestações tenham

sobrevivido na nova década. O que havia de novo nos anos 70 era, de um lado, a

emergência de uma cultura do ecletismo, um pós-modernismo amplamente

afirmativo que abandonara qualquer reivindicação de crítica, transgressão ou

13 O aporte existencialista sartriano envolve-se numa concepção humanista, antropocêntrica, todavia, sem

considerar o homem como fim, pois o toma como incompleto ou modificável, constantemente estando por fazer-

se. Através do existencialismo a vida humana se torna potencialidade e possibilidade, abordando o homem

enquanto ator primário. Afirma, em suma, a liberdade do ser humano como agente histórico, lutando contra as

diversas formas de dominação que lhe constranja a potencialidade de suas ações.

65

negação; e, por outro lado, um pós-modernismo alternativo em que resistência,

crítica e negação do status quo foram redefinidas em termos não-vanguardistas e

não-modernistas, que se adequavam mais efetivamente aos avanços políticos da

cultura contemporânea do que as antigas teorias do modernismo (HUYSSEN, 1992,

p. 31).

Tendo a transformação como constante em sua trajetória artística, Caetano Veloso

novamente altera as linhas produtivas de sua obra na década de 1980. Impelido pelo crescente

retrocesso econômico do regime militar, concomitante aos primeiros sinais da transição

democrática, Caetano transita da politização da arte para a estetização da política, situação na

qual a obra visa estabelecer o gozo estético coletivo de um projeto político perpetrado por

determinado grupo social (CHAIA, 2007). Não obstante, carecemos de elementos que

permitam estabelecer uma relação de causalidade ou intencionalidade da obra de Caetano

neste período com qualquer tendência política ou ideológica, especialmente pelas

características do próprio artista, “camaleônico” (WISNIK, 2005).

A causa difundida por Caetano, desde a Tropicália, era a da liberdade de expressão e

criação, de forma irrestrita. Mesmo tomando as canções que favorecem a concepção da

situação da politização da arte em Caetano Veloso, como Quero Ir a Cuba (1983), Podres

Poderes (1984), O Quereres (1984), Trilhos Urbanos (1986) e Merda (1986), não é possível

estabelecermos definitivamente tal nexo, sendo preferível tomarmos a produção de Caetano

Veloso nos anos oitentas enquanto um esforço de difusão do projeto libertário de Caetano,

lançando-se mão de imagens políticas coletivas que permitissem sua contestação da ordem

vigente e a apresentação de realidades alternativas, enquanto opções postas ao ímpeto

brasileiro de retorno à normalidade institucional democrática.

Quer dizer, no limiar da abertura política do país, Caetano está situado no polo

oposto do sentimentalismo ufanista de “Coração de Estudante” (Milton Nascimento

e Wagner Tiso), que marcou a eleição (indireta) de Tancredo Neves e a comoção

nacional com a sua morte inesperada. Mas está, também, distante da exaltação

apoteótica – embora irônica – de “Vai Passar” (Chico Buarque), igualmente

emblemática desse período. Pois enquanto Chico, ligado aos anseios de

transformação social representados pela emergência histórica do Partido dos

Trabalhadores, se engajava positivamente no ideal de libertação ali representado,

Caetano desconfiava da imaturidade política do país, preferindo enxergar o futuro

democrático como um equacionamento de extremos [...] (WISNIK, 2005, p. 113).

Este particular ceticismo de Caetano quanto aos delineamentos do futuro sócio-

político brasileiro com o fim do regime militar refere-se à insuperada transição do

tradicionalismo arcaico, do paternalismo, para a sociedade ampliada, democrática e livre,

permeada por uma infinidade de interesses conflitantes, mediados pelos constrangimentos que

o projeto de coletividade impõe. “Para Caetano, a violência da situação brasileira impõe ao

66

artista a necessidade de desrespeitar os pruridos de sensatez que normalmente cercam as

opiniões políticas [...]” (WISNIK, 2005, p. 113).

Nesse deslocamento da adesão ao clima otimista da abertura política, há uma

sensível coerência com a postura tropicalista de não demonizar a ditadura militar, e

não ceder, portanto, à nostalgia do Brasil nacional-popular dos anos 50, país idílico

cuja pureza teria sido maculada pelo golpe de 64. Esta visão romântica, em que se

tenta frequentemente encerrar a obra de Chico Buarque, está de fato na antípoda da

posição assumida por Caetano Veloso, atento ao fato de que o Brasil e toda a

“América Católica” ao longo da sua história, frequentemente “optaram” por

substituir suas democracias por líderes carismáticos ou “ridículos tiranos”. “Será que

a gente consegue fazer um Estado democrático razoável, ter uma política liberal

respeitável?”, pergunta Caetano. “Ou a gente tem que estar sempre sob o regime de

força”? “Que gente somos nós?” (WISNIK, 2005, p. 115).

Fornecendo um esclarecedor quadro analítico da situação política e cultural brasileira

desde os anos cinquentas, Caetano Veloso concebe a evolução histórica das forças criativas

brasileiras em constante tensão com as estruturas históricas nacionais, não perpassando um

caminho de linearidade, envolvendo-se em utopias e frustrações que delimitariam as novas

possibilidades apresentadas ao Brasil, em seu ímpeto de solucionar as problemáticas que

obstaculizam o desenvolvimento da sociedade em âmbito geral.

(Qualquer um pode ver claro que os problemas culturais do Brasil estão bem longe

de serem resolvidos). Depois da euforia desenvolvimentista (quando todos os mitos

do nacionalismo nos habitaram) e das esperanças reformistas (quando chegamos a

acreditar que realizaríamos a libertação do Brasil na calma e na paz), vemo-nos

acamados numa viela: fala por nós, no mundo, um país que escolheu ser dominado

e, ao mesmo tempo, arauto-guardião-mor da dominação da América Latina. Se se

fechou o círculo vicioso da economia e da política abjetas, isto é, se os problemas

básicos estão distantes da solução a ponto de permitirem soluções às avessas, não

será no campo da cultura que nos teremos aproximado de uma autonomia definitiva

(VELOSO, 1977, p. 2).

No entanto, a promulgação da Constituição de 1988 forneceu os pilares para

estabelecer análises factíveis das possibilidades institucionais da democracia brasileira,

contornando os temores de Caetano pela legalidade institucional, mitigando as implicações do

personalismo político brasileiro.

A transição brasileira tem na Constituição de 1988 um momento fundamental para a

definição da nova institucionalidade, da qual se devem destacar a dimensão

propriamente "constitucional", isto é, os sistemas eleitoral, partidário e de governo, e

a dimensão "procedimental", ou seja, as regras que regulam o processo decisório,

fundamentalmente as relativas aos poderes de agenda e à capacidade de formulação

das políticas públicas por parte dos Poderes Executivo e Legislativo (MORAES,

2005, p. 2).

Determinantemente, Caetano posicionava-se criticamente quanto ao desenvolvimento

histórico das forças sociais brasileiras. A grave crise econômica da segunda metade da década

67

de 1980 contribuiu para seus apontamentos, concomitantemente aos arranjos políticos

efetuados a fim de manter a “governabilidade” da recente democracia brasileira, protelando o

mandato de José Sarney por 5 anos, e elegendo Fernando Collor de Mello para o executivo

nacional, em acirrada disputa com Luiz Inácio Lula da Silva, ambos representantes do anti-

tradicionalismo político nacional (RODRIGUES, 2000).

Entretanto, o turning point do Sistema Internacional com o fim da Guerra Fria, e suas

implicações para a realidade brasileira, instigaram riquíssima produção artística de Caetano

Veloso, oferecendo obras interessantíssimas para a percepção da nova realidade internacional,

bem como a inserção do Brasil em tal contexto, constrangida pelas inovações institucionais

internas permeadas pelos fatores determinantes da nova economia global liberal e pela

hegemonia estadunidense dos anos noventas. Portanto, “a obra de Caetano conseguiu não

apenas manter-se viva nos anos 80 e início dos 90, mas configurar-se como uma das mais

eloquentemente criativas nesse período” (WISNIK, 2005, p. 120).

O álbum Circuladô, de 1991, inaugura um período da produção artística de Caetano

permeado pela crítica aos ideais universalizantes, fundamentalmente aos concernentes à

globalização liberal e ao modelo ocidental de organização social. Por conseguinte, Caetano

empenha-se num movimento de contestação ao recente projeto hegemônico estadunidense,

utilizando-se de sua realidade enquanto brasileiro para despertar a observação crítica dos

fenômenos internacionais.

Situado no início dos anos 90, o disco Circuladô (1991) prolonga e complementa

aspectos de uma importante mudança na obra cancional de Caetano, processada no

álbum Estrangeiro (1989). Mudança que se verifica tanto em termos sonoros, com a

incorporação das guitarras e teclados eletrônicos de Arto Lindsay e Peter Sherer, do

grupo nova-iorquino Ambitious Lovers, quanto de discurso poético, fundando um

ponto de vista novo, marcado por um estranhamento radical em relação ao momento

presente (WISNIK, 2005, p. 15).

A canção Fora da Ordem revela o emblema empunhado por Caetano a partir da

constatação do esforço norte-americano em circunscrever sua atuação mundial nos limites da

hegemonia. Ao apontar que “alguma coisa está fora da Ordem” (VELOSO, 1991), o artista

posiciona-se definitivamente como crítico das abordagens dominantes. Entre o pessimismo

civilizacional e o otimismo liberal, Caetano decididamente está à margem, imerso na teoria

crítica coxiana.

Em rápidas palavras, eu próprio poderia dizer que não vivencio o que me interessa

em minha criação a partir da perspectiva do "século americano" e sim de uma sua

possível superação. Mas isso sobretudo porque no século americano ainda sobra

68

espaço para que se teime em fazer dos Estados Unidos da América o mastim de um

grupo racial e religioso. O livro de Huntington tem algo de profundamente

antiocidental: ele expõe o esforço dos conservadores em transformar a cultura de

Camões, Lutero, Washington e Picasso numa cultura fechada. Simplesmente não dá

(VELOSO, 1997, p. 346-347).

A inquietação de Caetano refere-se à universalização de estruturas históricas

específicas e à homogeneização de forças potenciais dissonantes. As abordagens surgidas no

centro hegemônico endossavam tais fenômenos. Fukuyama (2007) intentava elucidar a

consubstanciação de uma nascente “sociedade global”, derivada do triunfo do capitalismo

globalizado na corrida bipolar das décadas anteriores, num processo que o próprio autor

caracterizou como inevitável.

Huntington (1997), em contrapartida, observou no encerramento da bipolaridade a

polarização civilizacional. “[...] Samuel P. Huntington descreve o retorno das antigas forças

civilizacionais que estiveram recalcadas pela guerra fria, a volta de um mundo mais velho e

muito mais resistente do que a aventura ocidental que culminara com os Estados Unidos

(VELOSO, 1997, p. 344)”.

Caetano empenhava-se na desconstrução dos mitos que permeavam o projeto

hegemônico. Para tanto, utilizava-se da exposição do caso brasileiro, suas conjunturas

específicas e a interação destas com a estrutura histórica presente, a fim de elucidar os limites

que as abordagens dominantes impunham à análise do novo momento histórico.

Sob o marco de tal atuação, torna-se possível analisá-la tendo em conta a

categorização de Miguel Chaia da arte crítica, encontro de arte e política que permite a

contestação da realidade vigente, pois consiste em:

Uma relação básica entre arte e política [que] se estabelece a partir de uma aguçada

crítica do artista, propiciando a um indivíduo ou a um pequeno grupo criar obras

baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços e pesquisas

para o avanço ou a revolução da linguagem. Estão unidos, neste caso, aspectos

formais e questões sociais (CHAIA, 2007, p. 22).

Seguindo nessa senda, encontramos na situação da arte crítica a consubstanciação da

atuação do indivíduo enquanto artista e intelectual, sob o âmbito da intelectualidade orgânica

(GRAMSCI, 1982), tendo o artista logrado estabelecer um projeto que comporte o desejo de

intervenção na sociedade. Neste sentido:

A arte crítica deixa transparecer os caracteres filosófico, intelectual e analítico da

arte e deve ser remetida diretamente à pessoa do artista, exercendo um papel que o

aproxima do estudioso social e, não raras vezes, do cidadão combativo. [...] De tais

69

considerações nascem obras de reflexão que carregam o desejo de intervir na

sociedade – sendo que estas obras, nas formas tradicionais, conceituais ou tornadas

ações, deixam transparecer ideias articuladas e concepções de mundo dissonantes

com a ordem estabelecida (CHAIA, 2007, p. 23).

Contudo, o fato da obra estar permeada por um projeto coletivo mais amplo não

condiciona suas qualidades estéticas, suscitando, de fato, uma relação tênue e de difícil

equação entre o elemento artístico e o político do projeto perpetrado pelo artista.

Na situação da arte crítica se estabelece uma tênue relação entre arte e política, de

difícil equacionamento, uma vez que o artista independente deve resguardar a sua

obra da pressão da política que tende a ser exercida de forma contínua ou

programada. Neste delicado equilíbrio, a posição política assumida pelo artista não

subjuga a obra que mantém suas qualidades estéticas, conseguindo sensível e

poeticamente transmitir a arguta percepção que o seu autor tem da realidade

(CHAIA, 2007, p. 23).

Nesta seara, compreendemos a atuação de Caetano Veloso em dois escopos: enquanto

artista e enquanto intelectual. Com base nos apontamentos gramscianos, apoiando os esforços

analíticos de Chaia (2007), podemos considerar o projeto artístico-político de Caetano Veloso

como ímpeto de apresentar e desenvolver uma nova cultura e nova intelectualidade, fundada

em concepções do Brasil e da brasilidade, num espaço mundial crescentemente hierarquizado,

contudo, universalizante.

É instigante o fato da obra de Caetano presenciar transformações ao mesmo tempo em

que a estrutura histórica sofre alterações. Torna-se possível – como o objetivo geral deste

trabalho esforça-se em comprovar – aproximar a produção artística de Caetano Veloso com a

evolução das estruturas históricas que sobrevêm à análise das relações internacionais.

Portanto, o turning point do Sistema Internacional ao iniciar-se o novo milênio, com

os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e a resposta dos Estados Unidos, veio

acompanhado de uma nova transformação na produção de Caetano. Durante a década de 2000

a contribuição artística de Caetano Veloso para a análise dos fenômenos internacionais

remeteu-se a uma crítica da atuação da potência dominante, contrapondo seus atos neste

período com o que seria a atuação de uma potência hegemônica. Para tanto, Caetano

apresenta o sofisma da atuação norte-americana em relação aos direitos humanos, difundindo

tal ideário, ao mesmo tempo em que comete violações em seu projeto de combate ao

terrorismo internacional (A Base de Guantánamo – 2009).

Em suma, Caetano apresentará a transformação dos parâmetros de ação da potência

norte-americana, evidenciando que o caráter consensual fora suprimido em prol da

70

manutenção dos interesses nacionais, confrontados por novas ameaças que, na concepção da

classe dirigente, deveriam ser combatidas com recursos coercitivos, marcando o turning point

do ordenamento hegemônico do pós-Guerra Fria para um novo período, de busca unilateral

pela dominação, lançando-se mão de meios coercitivos de forma preventiva.

3 HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: A APROXIMAÇÃO DE CAETANO

VELOSO À TEORIA CRÍTICA COXIANA

Neste capítulo se efetuará a análise de quatro canções de Caetano Veloso relativas ao

período dos anos 1990 e 2000, evidenciando sua contribuição para a compreensão das

relações internacionais deste período, com enfoque nas temáticas centrais apresentadas pelo

artista nas canções. Elucidar-se-á a crítica de Caetano ao projeto hegemônico estadunidense,

aportando seus desafios e limites que, quando confrontados definitivamente, resultaram na

transformação do modo de atuação dos Estados Unidos, recorrendo aos meios coercitivos para

a manutenção do Sistema Internacional. Portanto, ao realizar tais análises, intenta-se

aproximar as contribuições de Caetano Veloso para a percepção dos fenômenos internacionais

com os apontamentos da teoria crítica coxiana, compreendendo sua lógica hegemônica e

fornecendo alternativas viáveis para a solução das problemáticas humanas centrais que

permeiam tal contexto.

3.1 Alguma coisa está fora da nova ordem mundial

O desfecho do período bipolar das relações internacionais trouxe consigo uma ampla

gama de dilemas e desafios para os analistas e policymakers. Resgatando o aporte de Gramsci

e Cox concebe-se que, sob esse panorama, emergiram perspectivas analíticas fundadas na

necessidade do projeto hegemônico de permear-se de elementos universalizantes, a fim de

obter a aquiescência dos dominados, prescindindo do fator coercitivo, renegado às situações

marginais e desviantes.

Não obstante, observa-se um marcado dissenso entre tais abordagens, fundadas em

concepções diametralmente opostas dos fenômenos centrais para a percepção das relações

72

internacionais no pós-Guerra Fria, bem como nas possíveis implicações que tais fenômenos

aportariam ao desenvolvimento histórico da humanidade. Dentro dos limites inerentes a este

trabalho, focamos em dois grupos de teorias, e seus principais baluartes, a fim de expor e

analisar suas contribuições para o discernimento dos arranjos de poder prevalecentes no

período estudado: o otimismo provindo do triunfo do capitalismo na disputa bipolar, tendo

seu principal expoente na teoria do “fim da história” de Francis Fukuyama, e o pessimismo

com o aprofundamento das tensões reprimidas pela lógica estruturante do período anterior,

exemplificada na teoria do “choque de civilizações” de Samuel Huntington.

Contudo, numa observação geral de ambos os argumentos sobressalta-se a

compactuação quanto a existência de uma civilização ou sociedade ocidental homogênea,

“fechada” (VELOSO, 1997), base para as duas teorias. Enquanto uma concebe a

imprescindibilidade da difusão dos elementos estruturantes desta sociedade como modelo

universal visando a estabilização das relações humanas, a outra atenta à necessidade de

proteção dessa civilização num mundo intercivilizacional crescentemente conflituoso. “As

perspectivas tanto de Fukuyama quanto de Huntington padecem de tentar encaixar o mundo

pós-Guerra Fria em um ou outro padrão. No entanto, não se pode falar em um padrão único

que sirva para todos” (NYE, 2009, p. 314).

E é justamente nesse “fechamento” da cultura ocidental proposta pelas teorias

universalizantes onde encontramos a base do inconformismo de Caetano, expresso em sua

recusa da “nova ordem”. O artista reconhece os fatores estruturantes de tal ocidentalismo,

presente tanto em Huntington (1997), quanto em Fukuyama (2007). “Foi no Ocidente que se

desencadeou um processo de secularização do conhecimento que resultou na ciência de

eficácia universal tal como a conhecemos, e na moral individualista ateia em que se baseiam

os ‘direitos humanos’” (VELOSO, 1997, p. 345).

Portanto, Caetano lança-se ao esforço de contrapor a categorização civilizacional, suas

limitações intrínsecas, propondo uma abordagem paralela às considerações de Huntington

(1997), que levasse em conta o vasto rol de nuances presentes no seio das civilizações

propostas pelo autor. Inquieta-se, do mesmo modo, com o pretenso triunfo do capitalismo

liberal e sua extensão inevitável a toda humanidade. Caetano preocupava-se em caracterizar

“um Ocidente ao ocidente do Ocidente”.

E quando falo, a esse respeito, de "um Ocidente ao ocidente do Ocidente", penso não

num fundamentalismo dessa cultura particular, mas no compromisso com alguns

conseguimentos historicamente ocidentais irreversíveis, Takeshi Umehara (citado

73

por Huntington) escreveu que "o completo fracasso do marxismo e o espetacular

esfacelamento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do

liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a

alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo

será a próxima pedra de dominó a cair". Essa observação leva Huntington a sugerir a

união estratégica dos Estados Unidos com os países europeus "cristãos" (VELOSO,

1997, p. 345).

Tendo em conta as pretensões explicativas das teorias surgidas no centro hegemônico,

Caetano Veloso lança-se à crítica e ao questionamento da aplicabilidade de tais aportes. Tanto

o otimismo liberal quanto o pessimismo civilizacional comprometiam-se com a

universalização de fenômenos específicos, referentes aos processos mais recentes do

desenvolvimento histórico. De tal forma, se efetivamente estávamos adentrando em uma

“nova ordem mundial”, onde estaria o Brasil nesta ordem?

No disco Circuladô, o que parece estar deslocado é novamente o lugar: o Brasil,

visto como um estrangeiro diante do quadro restritivo de uma “nova ordem

mundial”. O que não quer dizer que o mal-estar ante o neoconservadorismo dos

novos tempos tenha sido apaziguado. Ao contrário, o sujeito indeterminado

(“alguma coisa”) que na canção “Fora da Ordem” aparece como estando deslocado –

em que adivinhamos a referência ao Brasil –, nada mais é do que uma extensão

coletiva (cultural, geográfica) [...], representa um aprofundamento de sua fratura,

mirando a falta de lugar definido para um país como o Brasil no cenário de uma

globalização excludente, que o presidente americano George Bush (pai) havia

chamado de “nova ordem mundial” (WISNIK, 2005, p. 20).

Caetano empenhava-se na desconstrução dos mitos que permeavam o projeto

hegemônico. Para tanto, utilizava-se da exposição do caso brasileiro, suas conjunturas

específicas e a interação destas com a estrutura histórica presente, a fim de elucidar os limites

que as abordagens dominantes impunham à análise do novo momento histórico. “Eu sei o que

é bom/ Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas

harmonias bonitas possíveis sem juízo final” (VELOSO, 1991).

[...] em meados dos anos 80 dá-se uma importante guinada na obra de Caetano em

direção a uma nova focalização temática do Brasil – tanto como afirmação de um

potencial singular-construtivo contido na sua riqueza cultural quanto como acusação

da miséria de sua realidade social urbana. Há, portanto, um retensionamento da

relação de suas canções com o país [...] (WISNIK, 2005, p. 111).

Ao apreciar a estrutura histórica vivenciada no Brasil do início dos anos noventas,

Caetano percebe a persistência de elementos que permearam a vida social brasileira no

período anterior. A manutenção da criminalidade nos grandes complexos urbanos nacionais,

fundada no estabelecimento e fortalecimento do setor narcotraficante, as mazelas econômicas

enfrentadas pelo país desde a eclosão das complicações inflacionárias de meados da década de

1980, e intensificadas na nova década, faziam com que o artista estivesse convicto de que a

74

pretensa nova ordem mundial não era observada na realidade doméstica. Neste sentido, atesta

na canção Fora da Ordem o seguinte panorama:

Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,/ Foi encontrado na ruína de uma

escola em construção/ Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína/ Tudo é

menino e menina no olho da rua/ O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua/ Nada

continua (VELOSO, 1991).

Analisando este trecho, a frase “aqui tudo parece construção e já é ruína” sobressai-se

como instigante para a compreensão do argumento de Caetano. Define certa desilusão com o

Brasil, enquanto projeto nacional, escondendo por detrás de si uma revigoradora esperança de

que a construção seja retomada, pois ainda há a necessidade de se construir. O dilema

proposto entre o ceticismo quanto às possibilidades de efetivação do projeto Brasil e sua

antítese, a confiança na possibilidade de êxito em tal empreendimento, surge como elemento

motriz dos exames efetuados pelo artista ao mencionar que:

Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda

está por fazer. Dito assim, isso parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a

seguinte pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma

grande oportunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a

degradação social que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco

ou ponto de partida, ou seja, se estivermos diante da mera entropia, e não do caos

inicial de onde se pode extrair uma ordem bela (VELOSO, 2005, p. 61-62)?

O ímpeto de Caetano foca-se na desconstrução das convenções teórico-científicas

surgidas com o fim da Guerra Fria no seio da potência hegemônica, e suas pretensões de

universalização. Mais especificamente, visa elucidar a situação dissonante do Brasil neste

cenário, para além dos anseios hegemônicos, evidenciando as debilidades estruturais

historicamente presentes na realidade nacional, persistentes na nova conjuntura mundial.

[...] o que aparece tematizado na canção não é exatamente a exclusão que os países

ricos, alinhados a essa “nova ordem”, impõem àqueles considerados

economicamente pobres, como o Brasil, mas a exclusão congênita, intestina, que se

auto-alimenta da própria miséria do país: assassinatos, tráfico de drogas, crianças

morando nas calçadas e brincando com armas, montanhas de lixo nas ruas, esgotos a

céu aberto; um estado precário de eterna construção que não chega a se completar,

transformando-se logo em ruína (WISNIK, 2005, p. 20).

De tal forma, era inconcebível ao artista a inclusão do Brasil nessa ordem benéfica e

progressista, que levaria toda a humanidade - de acordo com as capacidades de cada parcela –

rumo à liberalização (FUKUYAMA, 2007). O Brasil era, nesta acepção, um ator marginal,

envolvido nessa estrutura histórica, todavia, destoando de suas linhas-mestras.

75

Terrível e luminoso, o Brasil não está nem incluído na “nova ordem”, podendo

gozar de seus privilégios, nem comprometido ideologicamente com suas causas. E é

justamente tal ambiguidade que vem determinar a dificuldade de se encontrar um

lugar certo para o Brasil nessa “nova ordem” (WISNIK, 2005, p. 21).

Conseguintemente, torna-se possível aproximarmos as inquietações e inconformismos

de Caetano Veloso, presentes na canção Fora da Ordem, com o empreendimento

contestatório da teoria crítica coxiana. As forças potenciais, os relacionamentos entre os

diversos atores relevantes na análise das relações internacionais do novo período, delimitando

a estrutura mundial de poder, eram todos fatores amplamente dispersivos, desbordando-se das

lógicas de “fechamento” em categorias rígidas. É neste sentido que Caetano provoca tais

abordagens, mencionando a dinâmica dos relacionamentos sociais contemporâneos, e a

dificuldade de enquadrá-los em categorias rígidas: “Te encontro em Sampa de onde mal se vê

quem sobe/ ou desce a rampa/ Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais/ Parece

pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz/ Parece paz” (VELOSO, 1991).

Nietzsche havia analisado as disputas relativas à ciência e à cultura, com as pretensões

universalistas e racionalistas da ciência que, por vezes, intentavam captar a essência do mais

íntimo do ser humano por meio de seus métodos, logrando tão somente apresentar sua

aparência e, de tal modo, empenhar-se em caracterizá-la como a essência de seu objeto de

estudo.

Enquanto o infortúnio que dormita no seio da cultura teórica começa paulatinamente

a angustiar o homem moderno, e ele, inquieto, recorre, tirando-os de suas

experiências, a certos meios a fim de desviar o perigo, sem que ele mesmo creia

nesses meios; isto é, enquanto esse homem começa a pressentir as suas próprias

consequências, grandes naturezas, com disposições universais, souberam utilizar

com incrível sensatez o instrumento da própria ciência, a fim de expor os limites e

condicionamentos do conhecer em geral e, com isso, negar definitivamente a

pretensão da ciência à validade universal e a metas universais: prova mediante a

qual, pela primeira vez, foi reconhecida como tal aquela ideia ilusória que, pela mão

da causalidade, se arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das coisas

(NIETZSCHE, 2001, p. 110).

Percebemos, assim, a relevância do papel desempenhado pela difusão da obra de

Caetano Veloso ao debate do novo ordenamento mundial emergido na década de 1990. A

clareza, precisão e sensibilidade com que o artista logra apresentar sua inquietação com as

abordagens hegemônicas do novo período das relações internacionais apenas endossam e

auxiliam o empreendimento da teoria crítica coxiana, determinada à contestação do

positivismo e do universalismo dessas abordagens.

76

Enquanto Fukuyama (2007) buscava elucidar a formação de um Sistema Internacional

benéfico, tendente à acomodação das tensões conflituosas por sua absorção ao projeto da

globalização liberal, Huntington (1997) temia o acirramento da conflituosidade causado pela

necessidade de coletivização do ser humano, tendo na civilização o grupo social mais

propenso a englobar os interesses expansivos das distintas agrupações humanas, mantendo

sua vinculação à coletividade por meio da identificação de valores, cultural e religiosa. Por

sua parte, a teoria crítica coxiana, Hobsbawm (2005 e 2007) e Caetano Veloso questionavam

aqueles modelos analíticos, por sua aproximação decisiva com a conservação dos novos

arranjos de poder.

Os fenômenos que eram tidos pelas novas abordagens do centro hegemônico como

balizadores das relações internacionais no novo período histórico já haviam sido considerados

por outras matrizes analíticas. O que se observou, de fato, foi a manutenção das problemáticas

que instigavam os estudos das teorias contestatórias nas décadas anteriores, contudo,

favorecidas agora pelo desbordamento de tais complicações no cenário internacional. Sob tais

apreciações, poderíamos considerar que a ordem mundial proposta por Fukuyama ou por

Huntington seja o próprio fator que “está fora da ordem”. A observação de tais eventos fez

com que Nye (2009, p. 307) lança-se o veredicto: “Com o fim da Guerra Fria, houve uma boa

quantidade de conversações sobre as perspectivas de ‘uma nova ordem mundial’. Como

descobrimos depois, estávamos longe de entender com clareza seu significado”.

3.2 A função das mídias na difusão do projeto hegemônico

Todavia, o discurso do presidente estadunidense George Herbert Walker Bush (1989-

1993) – endossado pela teoria do “fim da história” – de que emergia uma nova ordem

mundial, difundia-se amplamente pelos meios de comunicação, que, como apontado por

Gramsci e Cox, reservam papel de suma importância ao projeto hegemônico. Tal discurso

fora avalizado pelo êxito da segurança coletiva no episódio da Guerra do Golfo, no afã de

77

demonstrar que os desafios à segurança internacional também seriam solucionados de modo

conjunto, fomentando o estabelecimento e manutenção da ordem hegemônica estadunidense.

A invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 foi a primeira crise pós-Guerra Fria. Uma

vez que a União Soviética e a China não exerceram seus vetos, a segurança coletiva

da ONU foi usada pela primeira vez em quarenta anos. Houve três razões para essa

notável ressurreição. Primeiro, o Iraque cometeu uma agressão extraordinariamente

bem definida, muito semelhante à da década de 1930, que lembrou aos líderes o

fracasso da segurança coletiva. A segunda razão foi o sentimento de que, se a

segurança coletiva da ONU falhasse nesse caso tão bem definido, então ela não seria

um princípio para a ordem num mundo pós-Guerra Fria. Terceiro, os pequenos

estados das Nações Unidas apoiavam a ação porque a maioria deles era frágil e tinha

fronteiras pós-coloniais questionáveis (NYE, 2009, p. 216).

A receptividade que tal discurso teve nos países subordinados, especialmente no Brasil

sob o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), entusiasta do rompimento com o

legado do período anterior, foi percebida argutamente por Caetano Veloso na canção Santa

Clara, padroeira da televisão14 (VELOSO, 1991), oferecendo outro elemento de aproximação

de sua contribuição artística com a teoria crítica coxiana.

A cobertura midiática de eventos internacionais, notadamente após a participação

norte-americana na Guerra do Vietnã (1965-1973), o crescente interesse pelos assuntos

internacionais e a difusão massiva das mídias, especialmente da televisão, tornaram o papel da

mídia um elemento crucial para a análise das relações internacionais contemporâneas.

O papel central da grande imprensa na política moderna é flagrante. Graças a ela, a

opinião pública é mais poderosa do que em qualquer período anterior, o que explica

a ascensão ininterrupta das profissões que se especializam em influenciá-la. Menos

compreendido é o vínculo crucial que existe entre a política de imprensa e a ação

direta, ou seja, a ação vinda de baixo e que influencia diretamente os principais

tomadores de decisões, ignorando os níveis intermediários da representação

governamental oficial. Isso é particularmente óbvio quando tais níveis

intermediários não existem, isto é, nos assuntos transnacionais (HOBSBAWM,

2007, p. 108).

Neste sentido, o fim da Guerra Fria, o consenso neoliberal e os genéricos discursos da

globalização, emergem como fenômenos sobremaneira relevantes para analisarmos o papel da

mídia na difusão do projeto hegemônico estadunidense.

Caetano Veloso, partindo de uma observação da realidade brasileira, aponta para os

desafios postos à difusão dos meios de comunicação e seus efeitos na sociedade.

Primeiramente, deve-se considerar que Caetano estava presenciando o processo de

14 Segundo registros da época, um ano antes de sua morte em 1253, Santa Clara (Clara de Assis) assistiu a

Celebração da Eucaristia sem precisar sair do seu leito. É por tal evento que é aclamada contemporaneamente

como protetora da televisão.

78

democratização, iniciado com o governo de José Sarney (1985-1990), e que acabava de

presenciar a primeira eleição direta para a presidência após o regime militar, realizada em

1989. Neste contexto, a liberdade de expressão afirmava-se paulatinamente na realidade

brasileira, ao mesmo tempo em que recebia amplas pressões dos centros de poder mundial

para a consideração de fenômenos e eventos essenciais para a humanidade no novo cenário.

Consequentemente, Caetano alerta para uma dupla necessidade relativa ao que tange o papel

das mídias nesse cenário.

[Por um lado,] Que o menino de olho esperto saiba ver tudo/ Entender certo o sinal

certo se perto do encoberto/ Falar certo desse perto e do distante porto aberto [...].

[Por outro,] Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo/ Um ver no excesso o

eterno quase nada (quase nada) (VELOSO, 1991).

O sujeito “menino” utilizado por Caetano pode ser compreendido em outro contexto,

ao considerarmos a estrutura histórica que envolve o momento da produção do artista. No

início dos anos 1990, a democratização brasileira possibilitava a participação universal,

independente de classe, etnia, gênero, religião, escolaridade e, de tal modo, atores sociais que

até então eram “infantilizados” pelos processos políticos nacionais, passavam a atuar,

recebendo direito de decisão no processo eleitoral. Sendo assim, a categoria “menino” pode

ser expandida para todos aqueles atores marginalizados nos períodos anteriores.

Se, de uma parte, os “meninos” deveriam ter consciência das informações que

recebiam, e saberem discernir os fatos dos artifícios relativos às tendências do meio de

comunicação que estes consumiam, de outra parte, Caetano alerta para a premência de que a

televisão não se torne um “inferno, interno, ermo” e, principalmente, “quase nada”

(VELOSO, 1991). Neste trecho, Caetano foca no papel social da mídia, que não deve ater-se

ao seu ambiente interno, e sim atuar enquanto ator social com potencial de influenciar nos

distintos processos humanos.

É aqui que voltamos à aproximação de Caetano Veloso com a teoria crítica de Robert

Cox. Segundo Cox (1986), dentre as ideias relevantes para o estabelecimento e manutenção

de uma estrutura histórica, as imagens coletivas recebem função essencial. Tais imagens

coletivas referem-se ao modo como os diferentes grupos percebem a ordem social vigente,

resultando em visões distintas, relativas às concepções de justiça e bem público, como

exemplificado pelo autor.

As imagens coletivas possuem um caráter dual. Da coalizão entre imagens coletivas

rivais é que surgem possibilidades de formas distintas de desenvolvimento para a estrutura

79

histórica (COX, 1986). É dizer, podem servir tanto aos projetos alternativos quanto aos

hegemônicos, residindo aqui sua importância crucial. E, no mundo do pós-Guerra Fria,

haviam elementos mais eficientes para a difusão de imagens coletivas que os meios de

comunicação?

Estamos todos familiarizados com o chamado efeito CNN: o sentimento

politicamente poderoso, mas totalmente desestruturado, de que “algo precisa ser

feito” em função das imagens televisivas de terríveis atrocidades cometidas – no

Curdistão, no Timor ou onde quer que seja –, cuja força é tão grande que gera em

resposta ações governamentais mais ou menos improvisadas. Mais recentemente, as

demonstrações em Seattle e em Praga mostraram a efetividade que têm as ações

diretas bem enfocadas, realizadas por pequenos grupos atentos às câmeras, mesmo

sobre organizações construídas para serem imunes aos processos políticos

democráticos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Se hoje

aparecem editoriais como “Líderes financeiros do mundo escutam advertências”,

isso se deve, pelo menos em parte, aos fotogênicos combates havidos entre grupos

violentos de manifestantes com balaclavas negras e policiais antidistúrbio armados

com capacetes e escudos, como nas batalhas medievais, que apareceram na maior

parte das manchetes e destaques da imprensa (HOBSBAWM, 2007, p. 108-109).

Com a universalização do projeto hegemônico estadunidense, a divulgação dos

ideários da globalização liberal, da democracia liberal e dos direitos humanos passaram a

pautar parcela considerável das informações transmitidas. Por outro lado, com a imersão

definitiva da sociedade brasileira na indústria cultural (ADORNO, 2009), após a reabertura

democrática, os meios de comunicação, definitivamente a televisão, depararam-se com a linha

divisória da informação e do entretenimento, havendo que adequarem-se às necessidades do

mercado, não obstante, correndo o risco de frivolidade. Por conseguinte, Caetano sugere que:

Possa o mundo ser como aquela ialorixá/ A ialorixá que reconhece o orixá no

anúncio/ Puxa o canto pra o orixá que vê no anúncio/ No caubói, no samurai, no

moço nu, na moça nua/ No animal, na cor, na pedra, vê na lua, vê na lua/ Tantos

níveis de sinais que lê/ E segue inteira (VELOSO, 1991).

O foco do aporte de Caetano reside na resistência da consciência individual e coletiva

frente às investidas da publicidade, em seus anseios de fetichizar elementos da realidade

social. O ator social deve discernir entre sua realidade efetiva, a estrutura histórica em que

está inserido, e as imagens transmitidas pela mídia, pertinentes ao escopo comercialista que

ganhou novo fôlego com sua compactuação com os meios de comunicação de massa.

Quando o ator social compreende esta lógica, pode então utilizar-se dos meios de

comunicação como ferramenta para a divulgação de seus projetos. O potencial de penetração

da televisão na vida social a transforma em um instrumento eficiente aos movimentos

contestatórios, restando a estes a adaptação às oportunidades postas. É, então, necessário:

80

“Saber calar, saber conduzir a oração/ Possa o vídeo ser a cobra de outro éden/ Porque a

queda é uma conquista/ E as miríades de imagens suicídio/ Possa o vídeo ser o lago onde

Narciso/ Seja um deus que saberá também/ Ressuscitar” (VELOSO, 1991).

Neste âmbito, Eric Hobsbawm registra o papel da mídia como elemento fomentador

da agitação social, contudo, a disposição das massas em manifestar-se seguia sendo o fator

essencial para que tais eventos ocorressem.

O que quer que tenha estimulado as populações até então inertes a entrar em ação –

comunicações modernas como TV e gravadores de fita tornavam difícil isolar

mesmo as mais isoladas das questões mundiais –, era a disposição das massas de

manifestar-se que decidia as questões (HOBSBAWM, 2005, p. 444).

A opção de Caetano Veloso por tratar da televisão em sua contribuição para a análise

das implicações políticas dos meios de comunicação não reside apenas em sua declarada

paixão por esta forma de mídia específica (VELOSO, 1997) – explicitada no trecho “Que a

televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada

pelo que ela é/ De poesia” (VELOSO, 1991) –, senão que na potencialidade inerente a um dos

aparelhos mais influentes nas relações sociais da segunda metade do século XX.

[...] embora um aparelho de TV continuasse sendo muito mais caro e fisicamente

desajeitado que um de rádio, logo se tornou quase universal e constantemente

acessível mesmo para os pobres de alguns países atrasados, sempre que existia uma

infra-estrutura urbana. Na década de 1980, cerca de 80% de um país como o Brasil

tinha acesso à televisão. Isso é mais surpreendente que o fato de nos EUA o novo

veículo ter substituído tanto o rádio quanto o cinema como a forma padrão de

diversão popular na década de 1950, e na próspera Grã-Bretanha na década de 1960.

Sua demanda de massa era esmagadora (HOBSBAWM, 2005, p. 484).

Outra implicação da atuação da mídia nos processos políticos é apresentada e debatida

por Eric Hobsbawm, evidenciando a função política dos meios de comunicação sob o marco

dos regimes democráticos, aportando elementos substanciais para a análise de um dos pilares

do projeto hegemônico estadunidense, qual seja, a universalização da democracia liberal. Sob

este âmbito, o historiador inglês evidencia que:

[...] a tendência cada vez mais sistêmica de governos contornarem o processo

eleitoral ampliou a função política dos meios de comunicação, que agora chegavam

a todas as casas, proporcionando de longe o mais poderoso meio de comunicação da

esfera pública para os homens, mulheres e crianças privados. Sua capacidade de

descobrir e publicar o que as autoridades desejavam manter na sombra, e de dar

expressão a sentimentos públicos que não eram, nem podiam ser, articulados pelos

mecanismos formais da democracia, transformavam esses meios de comunicação

nos grandes atores no cenário público. Os políticos os usavam e temiam

(HOBSBAWM, 2005, p. 559).

81

A necessidade que os governantes passaram a ter de manterem vínculos com a mídia,

cautelosamente, imbuiu-a de um poder singular, que se acrescia àquele advindo da própria

potencialidade intrínseca aos meios de comunicação. Ademais, como analisa Hobsbawm, com

todo o progresso da tecnologia de informação, os meios de comunicação sobressaíram, e

muito, aos possíveis constrangimentos do aparato repressor estatal no pós-Guerra Fria.

O progresso técnico tornava-os cada vez mais difíceis de controlar, mesmo em

países altamente autoritários. O declínio do poder do Estado deixava-os mais difíceis

de monopolizar nos Estados não autoritários. Quando o século acabava, tornou-se

evidente que os meios de comunicação eram um componente mais importante do

processo político que os partidos e sistemas eleitorais, e provavelmente assim

continuariam – a menos que os políticos dessem uma forte guinada para longe da

democracia. Contudo, embora fossem enormemente poderosos como um contrapeso

aos segredos do governo, não eram de modo algum um meio para um governo

democrático (HOBSBAWM, 2005, p. 559).

Conseguintemente, emerge a necessidade de debatermos outra categoria central do

ordenamento hegemônico pós-Guerra Fria, e que fora perspicazmente captada e analisada por

Caetano Veloso, a democracia.

3.3 O caráter multifacetado da disseminação da democracia: perspectivas domésticas e

internacionais

Como abordado anteriormente, o tema da democracia esteve presente na obra de

Caetano marcadamente durante a década de 1980, quando o Brasil finalizava seu processo de

transição democrática, com o fim do regime militar, as eleições indiretas no Colégio Eleitoral

em 1984, o governo de José Sarney, a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições

nacionais diretas de 1989. Entretanto, o êxito na transição pacífica para a democracia

contrapunha-se à manutenção das assimetrias que corroíam a sociedade brasileira. Este

fenômeno recebeu consideração especial por Caetano em seus escritos nas décadas de 1990 e

2000, enquanto em sua obra cancional tal preocupação expressar-se-á na canção O heroi

(2006), foco desta análise. Deste modo, Caetano Veloso se destacará pela:

82

[...] capacidade de desafiar a sobrevivência de práticas arbitrárias e retrógadas no

seio da “Nova República”, como o obscurantismo moralista da censura imposta pelo

presidente José Sarney ao filme Je Vous Salue, Marie, de Godard, apoiada por

Roberto Carlos, o individualismo boçal dos motoristas que desrespeitam as leis de

trânsito e “avançam os sinais vermelhos”, e o racismo generalizado no apartheid

social brasileiro, indicando uma permanência velada da escravidão. Práticas que

indicam um mesmo diagnóstico severo: “Ninguém é cidadão” (“Haiti”). Portanto,

retirado o álibi da opressão política e ideológica, era necessário mostrar, naquele

momento, que não tínhamos mais o direito de reproduzir visões colonizadas de nós

mesmos (WISNIK, 2005, p. 114-115).

A democracia representa a faceta política do projeto hegemônico, ademais, exprime o

desenvolvimento histórico desta que é uma das instituições fundamentais da sociedade

estadunidense. Portanto, o desfecho da bipolaridade trouxe consigo a intensificação da crença

na democracia por parte dos governantes norte-americanos. “O sucessor democrata de Bush, o

presidente Bill Clinton, definiu os objetivos americanos em termos muito parecidos,

preceituando sobre o tema de ‘expandir a democracia’” (KISSINGER, 1999, p. 881).

Destarte, faz-se necessário expormos os riscos advindos da difusão da ideologia da

democracia liberal, enquanto integrante do projeto universalizante da potência hegemônica,

aos países receptores das mudanças preconizadas pelos centros de poder mundial.

Primordialmente, há de se considerar os desafios advindos dos demais atores – internos e

internacionais – aos Estados-nações, impondo-lhes constrangimentos que delimitam a eficácia

das estruturas políticas.

Do lado prático, os governos dos Estados-nações, ou dos Estados territoriais

modernos – quaisquer governos –, apoiam-se em três presunções: primeiro, que eles

têm mais poder do que qualquer outra unidade que opere em seus territórios;

segundo, que os habitantes dos seus territórios aceitam mais ou menos de bom grado

sua autoridade; e terceiro, que eles podem proporcionar aos habitantes serviços que

de outra maneira não poderiam ser prestados com efetividade, como é o caso da

manutenção da lei e da ordem. Nos últimos trinta ou quarenta anos, essas presunções

têm perdido cada vez mais a validade (HOBSBAWM, 2007, p. 104).

Tais implicações relacionam-se à capacidade do Estado para manter o monopólio do

uso da força dentro de seu território, com instituições que lhe permitam a direção da

sociedade sobre as bases da lei e da ordem. Portanto, ao apreciarmos esses fenômenos,

devemos ter em mente que ao referimo-nos às capacidades do Estado, estamos considerando

“[...] a extensão das intervenções dos agentes estatais em recursos não estatais, as atividades e

as conexões interpessoais alteram as distribuições existentes desses recursos, atividades e

conexões interpessoais, bem como as relações entre as distribuições” (TILLY, 2013, p. 174).

Tilly (2013) empenha-se em descrever e explicar as variações e alterações que

ocorrem na extensão com que o Estado comporta-se ao deparar-se com as demandas

83

expressas pelos seus cidadãos. Por conseguinte, no afã de esclarecer tais pretensões, o autor

divide sua investigação em quatro partes, que são amplamente úteis para nossa compreensão e

investigação do que seja a democracia, contrapondo esta concepção com a fornecida pela

ideologia hegemônica da democracia liberal. As quatro partes trabalhadas por Charles Tilly

são:

[...] o quão amplas são as demandas expressas pelos cidadãos, como diferentes

grupos de cidadãos experimentam a tradução de suas demandas em termos do

comportamento do Estado, em que extensão a própria expressão das demandas

recebe proteção política do Estado, e quanto o processo de tradução compromete

ambos os lados, cidadãos e Estado. Estes quatro componentes levam diretamente à

nossa definição operacional: um regime é democrático na medida em que as relações

políticas entre o Estado e seus cidadãos engendram consultas amplas, iguais,

protegidas e mutuamente vinculantes (TILLY, 2013, p. 73).

Paulatinamente, definimos as linhas analíticas que permeiam um conceito de

democracia na contemporaneidade. Assim, podemos apontar que “um regime democrático

inclui eleições que são limpas e institucionalizadas, assim como uma aposta

institucionalizada, inclusiva e universalista” (O’DONNELL, 2013, p. 29). Deste modo, é na

aposta institucionalizada democrática que reside um dos fatores imprescindíveis às pretensões

de um projeto democrático. Enquanto os atores políticos aceitarem que esta é a forma mais

eficiente, ou menos custosa, de atingirem seus objetivos, aceitarão participarem da

competição eleitoral. Quando não o percebem de tal modo, valem-se de outros meios,

normalmente coercitivos e violentos, a fim de substituírem a ordem vigente.

Proeminente figura da política externa norte-americana, Henry Kissinger alerta, do

mesmo modo, para a observação das assimetrias existentes entre as sociedades dos países

dominados e a estadunidense, as capacidades materiais dos Estados, bem como a

conformação das oposições e sua atuação no jogo político-institucional. Por conseguinte,

aponta que:

Refrear o poder do governo central tem sido uma das principais preocupações dos

teoristas políticos ocidentais, enquanto, na maioria das outras sociedades, a teoria

política tem tentado sustentar a autoridade do estado. [...] Na maioria das outras

partes do mundo, o estado tem precedido a nação; ele foi, e frequentemente continua

sendo, o elemento principal na sua formação. Os partidos políticos, onde existem,

refletem identidades fixas e geralmente locais; minorias e maiorias tendem a ser

permanentes. Em tais sociedades, o processo político trata de dominação, e não de

alternância nos cargos, que ocorre, quando ocorre, através de golpes, em vez de

procedimentos constitucionais. O conceito da oposição leal – essência da

democracia moderna – raramente se firma. O mais normal é a oposição ser vista

como ameaça à coesão nacional, igualada à traição, e impiedosamente reprimida

(KISSINGER, 1999, p. 889).

84

Logo, ao efetivarem a aposta democrática, os atores políticos pressupõem, e

necessitam de, algumas liberdades e direitos que lhes sejam garantidos a fim de apresentarem,

discutirem e efetivarem seus projetos para a sociedade. Desse modo:

A cidadania política consiste da atribuição universal (embora territorialmente

delimitada) dos direitos e liberdades vinculados a uma aposta democrática inclusiva,

ou seja, tanto de algumas liberdades circundantes quanto dos direitos à participação

em eleições limpas e institucionalizadas, incluindo votar e ser eleito(a)

(O’DONNELL, 2013, p. 34).

Consequentemente, ao analisar os processos de democratização e desdemocratização,

Charles Tilly apresenta três caminhos que os Estados podem percorrer ao buscarem

incrementar sua capacidade e avançarem na democratização. Primeiro, aparecem os Estados

fortes, nos quais a capacidade do Estado aumenta muito antes da evolução da democratização.

Segundo, apresentam-se os Estados médios, onde ocorre a concatenação do aumento na

capacidade do Estado com o processo de democratização, e, portanto, qualquer alteração no

movimento da capacidade do Estado tem efeito similar na democratização. E terceiro, o

caminho dos Estados fracos, possuidores de poucos recursos, refletindo em baixa capacidade

do Estado, que, por conseguinte, dificulta o processo de democratização, especialmente na

contenção de agentes complicadores, tornando a desdemocratização muito mais frequente – e

fácil de ocorrer – que nos outros dois caminhos (TILLY, 2013).

Não obstante, a retórica universalizante da democracia liberal ignora essas nuances da

construção democrática, referentes às assimetrias dos Estados quanto às suas capacidades

materiais essenciais para o estabelecimento e a manutenção do regime democrático.

Ao considerar a realidade brasileira, Caetano Veloso fornece uma contribuição

reveladora da manutenção das assimetrias sócio-econômicas, mesmo após a democratização,

fazendo com que sejam necessários esforços sobremaneira custosos para a manutenção do

regime democrático. Numa apresentação pessoal do “heroi” da canção, este relata sua

trajetória de vida do seguinte modo: “Nasci num lugar que virou favela/ cresci num lugar que

já era/ mas cresci a vera/ fiquei gigante, valente, inteligente/ por um triz não sou bandido/

sempre quis tudo o que/ desmente esse país/ encardido” (VELOSO, 2006).

Neste trecho, o artista explicita que o sujeito da canção teve sua trajetória pessoal

permeada pela desigualdade social, que lhe constrangeu as opções e escolhas na construção de

sua identidade e de sua carreira. Ao rejeitar tudo o que considera imundo, e que está

impregnado em sua sociedade, o “heroi” constata a existência de tratamentos diferenciados

85

por parte do Estado. Esse fenômeno é profundamente corrosivo para o regime democrático,

por ser fundamental a isonomia e a igualdade de tratamento de todos os cidadãos pelos

agentes estatais. “Na democracia, as instituições do estado têm o dever (correlativo aos

direitos da cidadania política e civil) de tratar a todos com a equidade, consideração e respeito

devidos a um agente” (O’DONNELL, 2013, p. 55). Essas disparidades entre os indivíduos são

fatores que minam o processo de democratização, restringindo-lhe as possibilidades de êxito.

A desigualdade social impede a democratização e mina a democracia sob duas

condições: primeiro, a cristalização de diferenças contínuas (tais como aquelas que

distinguem você de seu vizinho) e diferenças categóricas cotidianas em virtude de

fatores como raça, gênero, classe, etnia, religião e outros tipos de agrupamentos

similares; segundo, a tradução direta dessas diferenças categóricas em diferença nos

processos políticos públicos (TILLY, 2013, p. 123).

As diferenças categóricas são aprofundadas por Caetano na canção, quando o “heroi”

define seu projeto individual, expressando as consequências que este teria para a coletividade

em que ele está inserido. Neste sentido, ele menciona: “descobri cedo que o caminho/ não era

subir num pódio mundial/ e virar um rico olímpico e sozinho/ mas fomentar aqui o ódio

racial/ a separação nítida entre as raças” (VELOSO, 2006).

O argumento apresentado por Caetano é poderosamente fomentador de reflexões

acerca das implicações do reconhecimento/não reconhecimento e da igualdade/subordinação

para os processos políticos relativos ao regime democrático. Sob tal âmbito, Nancy Fraser

ofereceu uma análise reveladora dos efeitos de se considerar o reconhecimento – e, portanto, a

igualdade – como uma questão de status.

Entender o reconhecimento como uma questão de status significa examinar os

padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre a

posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões constituem os atores

como parceiros, capazes de participar como iguais, com os outros membros, na vida

social, aí nós podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status.

Quando, ao contrário, os padrões institucionalizados de valoração cultural

constituem alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros” ou

simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na

interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de

status (FRASER, 2007, p. 108).

Portanto, o “heroi” empreende uma busca por reconhecimento, em novos padrões de

identidade, que rompam com os vigentes em sua realidade social. Neste sentido ele diz que:

“já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos/ quero ser negro 100%, americano,/

sul-africano, tudo menos o santo/ que a brisa do Brasil briga e balança” (VELOSO, 2006).

Todavia, seu empreendimento no intento de ser reconhecido pela coletividade está fundado no

reconhecimento da diferença, e não na igualdade. Ele quer ser reconhecido como um

86

indivíduo distinto do agrupamento criado pela sociedade, que o mesmo define como “santo”.

Então, depara-se com as dificuldades advindas da reivindicação pelo reconhecimento da

diferença.

Normas de justiça são pensadas como universalmente vinculatórias; elas sustentam-

se independentemente do compromisso dos atores com valores específicos.

Reivindicações pelo reconhecimento da diferença, ao contrário, são mais restritas.

Por envolverem avaliações qualitativas acerca do valor relativo de práticas culturais,

características e identidades variadas, elas dependem de horizontes de valor

historicamente específicos que não podem ser universalizados (FRASER, 2007, p.

104).

Além disso, regressando à distribuição dos recursos materiais, os indivíduos

marginalizados devem ser integrados na sociedade democrática enquanto cidadãos, de modo

que a redistribuição dos recursos materiais possibilite sua independência e o porte de voz

participativa. Esta seria uma condição objetiva da paridade participativa. Por outro lado, há

uma segunda condição, denominada de condição intersubjetiva, requerendo dos padrões

institucionalizados de valoração cultural a expressão de igualdade no respeito a todos os seus

participantes, assegurando igualdade de oportunidade para alcançar a estima social. Assim,

“são excluídos os padrões institucionalizados de valores que negam a algumas pessoas a

condição de parceiros integrais [...], seja sobrecarregando-os com uma excessiva atribuição de

‘diferença’, seja falhando em reconhecer o que lhes é distintivo” (FRASER, 2007, p. 119-

120).

Deparando-se com a dualidade do padrão de socialização que havia recebido ao longo

de sua vida, fundado em preceitos universais dentro da sociedade em que participa, e do novo

padrão que buscava implantar, o “heroi” percebe o choque de valores, crenças e ideais

inerentes ao seu intento de universalização do reconhecimento através da diferença. Neste

momento, ele realiza a auto-avaliação de seu projeto, concluindo que: “no entanto, durante a

dança/ depois do fim do medo e da esperança/ depois de arrebanhar o marginal, a puta/ o

evangélico e o policial/ vi que o meu desenho de mim/ é tal e qual/ o personagem pra quem eu

cria que sempre/ olharia/ com desdém total” (VELOSO, 2006).

Essa alteração na percepção da realidade, ocorrida com o sujeito, bem como de sua

concepção do projeto que havia perpetrado, vincula-se com um fato inerente à própria

condição humana, podendo ser potencializada ou mitigada pela ação da estrutura histórica.

Esse fato é consequência de restrições institucionais e econômicas, mas também da

diversidade social que advêm da agência humana e, portanto, das diversas

perspectivas, estilos de vida, ideologias e interesses que os agentes representam, seja

87

(estaticamente) num momento determinado, seja quando essas características se

desenvolvem e se modificam (dinamicamente) no transcorrer do tempo

(O’DONNELL, 2013, p. 83).

É possível notar, até aqui, que o “heroi” da canção de Caetano Veloso consiste em um

líder de determinado setor da sociedade, que perpetrou a implantação de um projeto de

sociedade, flagrantemente contrário àquele vigente. Este projeto é sintetizado na declaração

do “heroi” de que: “É como em plena glória espiritual/ que digo:/ eu sou o homem cordial/

que vim para instaurar a democracia racial/ eu sou o homem cordial/ que vim para afirmar a

democracia racial” (VELOSO, 2006).

Assim, Caetano analisa o processo de democratização do Brasil concomitantemente

com a afirmação das disparidades sociais, especificamente as relativas à etnia, comparando o

processo vivenciado no âmbito brasileiro com o estadunidense, logrando atingir as seguintes

conclusões:

Para mim é óbvio que os Estados Unidos, ao superar (sic.) a situação de racismo

institucionalizado, em poucas décadas tinham um negro como chefe do Estado-

Maior das suas Forças Armadas, três prefeitos negros nas suas três maiores cidades,

muitas aeromoças negras em seus aviões e crianças negras em seus anúncios de

televisão – enquanto nós não temos generais negros sequer e o nosso único

governador negro, o do Espírito Santo, teve sua filha barrada na entrada “social” de

um prédio na capital do seu estado; mas isso não nos deve levar a pensar que

institucionalizar o racismo teria sido necessariamente melhor para nós: o que faz a

enorme diferença entre o nazismo e outras formas de perseguição assassina de raças

e minorias é o fato de, no caso do nazismo, esses massacres serem oficiais

(VELOSO, 2005, p. 45).

No entanto, quais são as implicações deste projeto para o processo de democratização?

Retornando aos apontamentos de Charles Tilly, existem três categorias centrais de mudanças

para os processos de democratização e de desdemocratização:

1) Aumento ou diminuição da integração entre redes de confiança interpessoais (por

exemplo, parentesco, pertencimento religioso e relações de mercado) e processos

políticos públicos. 2) Aumento ou diminuição no insulamento dos processos

políticos públicos em relação às principais desigualdades categóricas (por exemplo,

as de gênero, raça, etnia, religião, classe, castas) em torno das quais os cidadãos

organizam suas vidas cotidianas. 3) Aumento ou diminuição na autonomia em

relação aos processo políticos públicos por parte dos principais centros de poder

(especialmente aqueles que se valem de meios coercitivos significativos), tais como

as milícias, as redes de clientelismo, o exército, e as instituições religiosas (TILLY,

2013, p. 37).

Todas essas categorias de mudanças são potencializadas ou amenizadas de acordo com

as capacidades do Estado. Referem-se à atuação de atores não-governamentais, que, desde a

década de 1970, passaram a influenciar diretamente os processos políticos, econômicos e

88

sociais. Esta afirmação é sobremaneira verificável no âmbito dos “Estados fracos” e seus

esforços para a democratização.

As implicações são óbvias, ao menos em teoria: um Estado fraco enfrenta

importantes obstáculos à democratização até encontrar um ponto limítrofe. Esses

obstáculos existem porque um Estado fraco falha em suprimir ou subordinar os

centros de poder autônomos, permitindo aos cidadãos insular suas redes de

confiança do processo político público e tolera ou mesmo encoraja a inserção de

desigualdades categóricas em seus processos políticos públicos. Quando

comparados com os estados fortes e médios, os estados fracos enfrentam uma maior

proporção de conflitos, geralmente violentos, nos quais o Estado se vê envolvido de

forma apenas periférica. [...] eles também são o maior palco da maior parte das

guerras civis que ocorreram no mundo (TILLY, 2013, p. 177).

Na América Latina, os efeitos do projeto hegemônico na década de 1990 revelaram

distintas e inovadoras perspectivas e desafios à evolução da democratização. Concatenando

elementos trabalhados por Caetano Veloso na canção Fora da Ordem (VELOSO, 1991) com

os aportes específicos da canção O Heroi (VELOSO, 2006), o artista registra a perpetuação de

algumas problemáticas relativas às assimetrias sociais, que dificultam o fortalecimento dos

direitos políticos dos cidadãos afetados por esta lógica permanente. Nestes termos:

Em contraste com os países pioneiros, na maior parte da América Latina (e, em

termos de população, para a grande maioria da população desta região), os direitos

políticos foram obtidos, ou têm sido recuperados recentemente, antes de completar-

se uma generalização dos direitos civis. Por sua vez, dependendo da trajetória

seguida por cada país, alguns direitos sociais foram outorgados antes ou depois dos

direitos políticos, mas em todos os casos esses direitos foram limitados e

ultimamente têm sofrido, em muitos países, retrocessos significativos

(O’DONNELL, 2013, p. 70).

Cabe ainda ressaltar outro fator indicador dos limites do projeto hegemônico de

disseminação da ideologia democrática liberal. Ao defrontarem-se com os principais dilemas

do pós-Guerra Fria, as potências mundiais utilizam-se de foros e organizações democráticas

de modo seletivo, sendo que algumas das principais problemáticas para as sociedades são

debatidas e suas resoluções definidas por mecanismos frequentemente não democráticos. De

tal modo:

Além de ter possibilidades muito baixas de êxito, o esforço de disseminar a

democracia ocidental padronizada sofre também de um paradoxo fundamental. Em

grande medida, ela é concebida como solução para os perigosos problemas

transnacionais dos nossos dias. Uma parcela crescente da vida humana ocorre

atualmente fora do âmbito de influência dos eleitores – em entidades transnacionais

públicas e privadas que não têm eleitorados, ou pelo menos eleitorados

democráticos. Uma democracia eleitoral não pode funcionar efetivamente fora de

unidades políticas como os Estados nacionais. Os países poderosos estão, portanto,

tratando de disseminar um sistema que eles próprios consideram inadequado para

enfrentar os desafios da nossa época (HOBSBAWM, 2007, p. 119).

89

É nesse linear que emergem as principais críticas das demais nações à atuação das

potências mundiais nas instituições internacionais. O ex-chanceler brasileiro Celso Amorim

(1993-1994/2003-2010) reforça a percepção de que as potências mundiais não podem mais

negar o surgimento de novos centros de poder, assegurando sua participação nos debates das

problemáticas mundiais. “O realinhamento de forças no sistema internacional está construindo

o caminho para uma ordem mais multipolar” (AMORIM, 2010, p. 215, tradução nossa).

Entretanto, do mesmo modo como observado por Eric Hobsbawm, Celso Amorim constata

que:

Esta tendência para a multipolaridade não foi seguida por uma democratização das

instituições multilaterais, que sofrem de obsolescência progressiva. A governança

global deu-se com pouca legitimidade, transparência e efetividade, entre outras

razões, porque os países em desenvolvimento continuam sub-representados

(AMORIM, 2010, p. 216, tradução nossa).

Entrementes, considerando-se a anarquia inerente ao espaço internacional, as

organizações internacionais tornam-se relevantes atores do jogo político mundial, pois os

atores estatais reconhecem sua utilidade prática aos seus anseios e à estabilização das relações

internacionais. Assim, as organizações internacionais “são uma parte importante da realidade

política, porque influenciam a maneira como os estados se comportam. Os estados têm

interesse na legislação internacional por duas razões: previsibilidade e legitimidade” (NYE,

2009, p. 211).

Na concepção de Joseph Nye Jr. emergem, então, dois fatores que impelem os Estados

a recorrerem às instituições internacionais quando de sua atuação na arena internacional,

visando à resolução dos problemas que lhes são postos.

O tratamento desses problemas pela legislação internacional e segundo princípios

aprovados ajuda a despolitizá-los e torna-os previsíveis. A previsibilidade é

necessária para que as transações prosperem e para o controle ordenado dos

conflitos que inevitavelmente se as acompanham. [...] A legitimidade é a segunda

razão pela qual os governos têm interesse na legislação internacional. A política não

é meramente uma luta pelo poder material, mas também uma disputa pela

legitimidade. Poder e legitimidade não são antiéticos, mas complementares. Os seres

humanos não são nem puramente morais nem totalmente cínicos. É um fato político

que a crença no certo e no errado ajuda a induzir as pessoas a agir, e portanto a

legitimidade é uma fonte de poder. Se os atos de um estado são percebidos como

ilegítimos, os custos de uma política serão altos. Os estados apelam à legislação e à

organização internacional para legitimar suas próprias políticas e deslegitimar a dos

outros, e isso geralmente dá forma a suas táticas e seus resultados. E a legitimidade

aumenta o poder brando de um estado (NYE, 2009, p. 212).

Todavia, podemos acrescentar às considerações de Joseph Nye Jr. uma outra categoria

analítica acerca da utilização das instituições internacionais pelos Estados. Refere-se ao caso

90

da contestação e proposição de novos modos de tratamento das questões internacionais,

fundadas no multilateralismo, sendo empreendidas pelas potências emergentes e, em certos

casos, pelas potências mundiais quando afetadas pelos desígnios da potência hegemônica.

Neste sentido, ressalta-se a atuação internacional do Brasil sob o marco do multilateralismo

recíproco, participando das discussões dos principais problemas postos à ordem mundial após

a Guerra Fria.

Para descrever o multilateralismo recíproco que caracteriza a política externa

brasileira no século XXI, nós elencamos exemplos em cinco áreas, para propósitos

didáticos. (1) reciprocidade na economia internacional e nas decisões dos grandes

poderes econômicos: o G-8, cujas reuniões são atendidas pelo Chefe de Estado

brasileiro; e o G-20, cuja primeira reunião ocorreu em novembro de 2008 para

combater os efeitos da crise e da estagnação do desenvolvimento desses países; (2)

comércio internacional e a conduta brasileira na Rodada de Doha da OMC

[Organização Mundial do Comércio], bem como sua determinação para estabelecer

coalizões com países emergentes; (3) segurança internacional, especialmente os

esforços perante o Conselho de Segurança [das Nações Unidas], e a valorização da

estratégia de negociação em vez daquela de violência para lidar com tais questões;

(4) mudanças climáticas e outros assuntos ambientais; (5) saúde e direitos humanos

(CERVO, 2010, p. 12, tradução nossa).

No concernente aos dilemas de segurança consolidados no novo cenário internacional,

a diplomacia brasileira alterou seu modus operandi, paulatinamente inserindo-se nos debates

travados nos fóruns internacionais desse âmbito, fundamentalmente no Conselho de

Segurança das Nações Unidas. “O processo gradual mencionado [...] permitiu uma nova e

notável ferramenta na política externa brasileira: o movimento de uma aproximação reativa

para uma mais assertiva com relação às questões de segurança” (VIANA; VILLA, 2010, p.

91, tradução nossa).

Os esforços brasileiros para participar nas operações de paz da ONU – notavelmente

no Haiti – podem ser entendidos como uma estratégia circunscrita na aspiração do

país de participar no Conselho como membro permanente. É relevante destacar que

o Brasil juntou-se às missões de paz no Timor Leste e Angola durante os governos

de Cardoso. Não obstante, o ativismo no caso haitiano revela um caminho mais

explícito para aspirar a um assento no organismo (VIANA; VILLA, 2010, p. 96,

tradução nossa).

Regressando à análise interna da canção O Heroi, considerando as implicações

negativas de seu projeto, após a sua implementação, o “heroi” analisa-o sob perspectiva

histórica, concluindo que a atual situação que ele vivencia é seu dilema moral, indagando-se

acerca dos benefícios que seu projeto efetivamente trouxe. Isto é observado em sua afirmação

final: “eu sou o heroi/ só deus e eu sabemos como doi” (VELOSO, 2006). Deste modo,

podemos lançar apontamentos sobre a eficácia da disseminação da democracia, por um lado

91

para o projeto hegemônico, e por outro lado para as estruturas internas dos países afetados por

tais desígnios.

Primordialmente, ao considerarmos os aportes dos autores investigados até aqui, torna-

se evidente o entrelaçamento de três matérias, que, a nosso ver, devem ser tratadas de modo

conjunto: a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. O’Donnell (2013) referiu-

se a tal entrelaçamento como decorrente da concepção do ser humano. Neste sentido, “a

democracia, o desenvolvimento humano e os direitos humanos estão baseados em uma

concepção similar de ser humano como um agente” (O’DONNELL, 2013, p. 16). Um dos

grandes equívocos do projeto de disseminação da democracia liberal é preterir tal

consideração pela crença no institucionalismo, cabendo à instauração de instituições

democráticas o papel central no processo de democratização. Isto pode ser encontrado nas

considerações de Fukuyama, quando o autor menciona que:

Kojève proclama que chegamos ao fim da história porque a vida, neste estádio

universal e homogéneo, satisfaz completamente os seus cidadãos. Por outras

palavras, o mundo liberal democrático moderno está livre de contradições. [...] O

cerne da questão tem a ver com princípios – isto é, se as “coisas boas” da nossa

sociedade são verdadeiramente boas e satisfatórias para o “homem enquanto

homem” ou se existe uma forma superior de satisfação que um outro tipo de regime

ou organização social poderia proporcionar (FUKUYAMA, 2007, p. 148).

As generalizações e conclusões precipitadas de Fukuyama, ao serem testadas pelos

eventos do pós-Guerra Fria, revelaram-se demasiado otimistas, e profundamente apressadas.

Como analisado anteriormente, esses apontamentos foram efetivados de tal modo como uma

contingência do momento em que surgiram. Serviram como respaldo ao projeto hegemônico

estadunidense que, contudo, quando de sua implantação deparou-se com fenômenos

internacionais para os quais seus desígnios não estavam adequadamente preparados.

92

3.4 Limitações à atuação da potência hegemônica: o sofisma entre a premissa dos

Direitos Humanos e a segurança interna

Destarte, estamos compelidos a apresentar uma definição mínima de tais elementos,

fundamentalmente dos direitos humanos, foco no presente momento. Sendo assim, diretrizes

eficazes são trazidas por O’Donnell (2013), analisando tanto o desenvolvimento humano,

quanto os direitos humanos.

Estas duas perspectivas têm alguns elementos cruciais em comum: ambas começam

e terminam pelos seres humanos e ambas se perguntam qual pode ser, ao menos, um

conjunto mínimo de condições, direitos e/ou capacidades que os permitam viver de

forma apropriada a sua condição de tais. Na verdade, em suas origens, o conceito de

desenvolvimento humano se concentrava no contexto social, enquanto que o de

direitos humanos o fazia no sistema legal e na prevenção e reparação da violência

estatal (O’DONNELL, 2013, p. 18).

Consequentemente, partindo destas considerações e, principalmente, atribuindo ao ser

humano a agência no contexto analisado, adentramos no debate do universalismo de tais

concepções, sendo este distinto em duas categorias, o universalismo limitado – restrito à

lógica interna – e o universalismo irrestrito – aplicado aos ímpetos internacionais.

Note-se que esta atribuição implica designar a condição de agentes a todos os que se

aplica – os(as) cidadãos(ãs). Esta condição diz respeito às relações diretamente

referidas a um regime – democrático – baseado em eleições limpas e

institucionalizadas. Observe-se, no entanto, que esta é uma atribuição de agência

feita mediante um universalismo limitado: se aplica a quase todos os adultos no

território de um estado organizado segundo um regime democrático, não, por

exemplo, aos estrangeiros nesse território. Este universalismo limitado se distingue

do universalismo ilimitado, pois este último se predica para a garantia e expansão do

desenvolvimento humano e os direitos humanos através de todo tipo de países,

estados e regimes. Entretanto, o universalismo limitado dos direitos políticos tem

uma vantagem distintiva sobre o segundo, a de identificar claramente aos

destinatários desses direitos: esses podem ser reclamados, por meio do sistema legal,

ao estado e a qualquer indivíduo que possa tê-los infringido. Trata-se, então, de

direitos subjetivos (legalmente acionados) que existem pelo simples, mas

fundamental, fato de que estes indivíduos vivem em um estado territorialmente

delimitado que contém um regime democrático (O’DONNELL, 2013, p. 28).

É inerente aos preceitos de direitos humanos a sua universalização, a sua difusão por

meio de normas, valores, instituições e ideias que permitam sua penetração nas distintas

sociedades humanas. Portanto, “em termos da lógica de seus argumentos, [...] os

patrocinadores [...] dos direitos humanos devem ser rigorosos universalistas, ao menos no que

93

se refere à realização e defesa dos direitos, condições sociais e capacidades ‘básicas’ que

propiciam” (O’DONNELL, 2013, p. 19).

A universalidade intrínseca ao preceito de direitos humanos tornou-se notória na

retórica de atores políticos e de grupos da sociedade civil com o final da Guerra Fria. Se, por

um lado, Fukuyama apresentava esse evento histórico como representando o último estágio da

história, por outro lado, para a interpretação solidarista dos direitos humanos, representava a

conformação das perspectivas de paz perpétua, nos moldes kantianos.

Com o final da Guerra Fria [...] a perspectiva da paz perpétua parece ter voltado a

seduzir intelectuais e políticos, e mais uma vez o ensaio de Immanuel Kant foi

resgatado para tentar compreender o mundo contemporâneo e propor medidas no

sentido de construir uma paz internacional duradoura, particularmente no que diz

respeito ao papel que os Direitos Humanos devem ocupar nessa nova ordem pós-

Guerra Fria, na qual o processo de globalização parece ter acelerado ainda mais o

processo pelo qual se estabelece “uma comunidade entre todos os povos da Terra”

(REIS, 2009, p. 61).

Todavia, tomando esses direitos como universais, o projeto hegemônico os adéqua a

fim de legitimar tanto a dominação quanto o uso de poder coercitivo, em casos que possam

ser enquadrados como flagrantes – ou com evidências mais modestas – violações dos direitos

humanos, desconsidera necessidades imprescindíveis ao reconhecimento dos direitos

humanos numa sociedade. Portanto, a universalização dos direitos humanos volta-se como

fator potencialmente conflituoso, sobretudo por sua utilização como apologia para o uso do

poderio militar dos Estados Unidos. Hobsbawm (2007), comparando a ideologia dos direitos

humanos com a da abolição do tráfico de escravos pela Grã-Bretanha do século XIX, aponta

as implicações que tal ideia pode tomar, ao observar que:

[...] a abolição do tráfico de escravos foi usada como justificativa para o poder naval

britânico, assim como os direitos humanos são hoje utilizados com freqüência para

justificar o poder militar dos Estados Unidos. Por outro lado, os Estados Unidos,

como a França e a Rússia revolucionárias, são uma grande potência que tem por

base uma revolução universalista – e, por conseguinte, crê que o resto do mundo

deveria seguir seu exemplo e que deve até ajudar a libertar o resto do mundo. Poucas

coisas pode haver que sejam tão perigosas quanto os impérios que buscam satisfazer

seus próprios fins acreditando que estão fazendo um favor à humanidade

(HOBSBAWM, 2007, p. 155).

Não basta a substituição de regimes políticos para a alteração do padrão de

reconhecimento dos direitos humanos. Estes se referem ao reconhecimento dos seres humanos

como agentes. Sob tal âmbito, O’Donnell menciona que:

[...] esses direitos pertencem a todos os seres humanos na medida em que os

reconhecemos como agentes, e que seus direitos como tais agentes na esfera política

94

dificilmente podem ser exercidos se os indivíduos carecem das capacidades

“básicas” aos que se referem os direitos humanos (O’DONNELL, 2013, p. 77).

Ademais, não basta o reconhecimento de um Estado da necessidade de implementação

de políticas públicas que visem à prevalência dos direitos humanos, do mesmo modo como da

democracia. É fundamental o reconhecimento dos indivíduos enquanto agentes, dotados de

direitos e liberdades, bem como a eliminação das assimetrias que impossibilitem sua agência.

Neste sentido, não basta o discurso dos direitos humanos, pois este vincula-se estreitamente

ao que Hobsbawm (2007) definiu como o “efeito CNN” (previamente abordado).

Por sua vez, o núcleo histórico dos direitos humanos (à vida, à integridade física, à

proteção e reparação de violências de diferentes tipos, e semelhantes) tem sido

consagrado pelos sistemas legais de praticamente todos os países no mundo atual.

Nos dias atuais poucos aspirariam, ao menos publicamente, que esses não fossem

direitos válidos e exigíveis, ainda que tenhamos visto que numa parcela da América

Latina estejamos distantes da sua implementação plena (O’DONNELL, 2013, p. 94-

95).

Não obstante, a incompatibilidade do discurso com os atos não está restrita apenas aos

Estados subordinados. Neste âmbito, na canção Base de Guantánamo (VELOSO, 2009),

Caetano Veloso aponta para os limites da atuação da própria potência hegemônica, ao

denunciar os desrespeitos aos direitos humanos que esta realiza, em sua luta contra o

terrorismo internacional.

A Base Naval da Baía de Guantánamo é utilizada pelos Estados Unidos, desde 2002,

como prisão para suspeitos de terrorismo internacional. Os métodos utilizados, denúncias de

prisões com escassas evidências, bem como das condições dos prisioneiros levaram algumas

organizações a condenarem a atuação estadunidense na Base.

O foco da preocupação de Caetano Veloso refere-se à facilidade com que os Estados

Unidos violam uma política basilar de seu projeto hegemônico, implicando indivíduos de

outros Estados-nações e, principalmente, em instalações localizadas fora de seu território

nacional. Por conseguinte, esta é sua denúncia:

O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos/ em solo cubano/ é por

demais forte/ simbolicamente/ para eu não me abalar/ A base de Guantánamo/ a base

da Baía de Guantánamo/ a base de Guantánamo/ Guantánamo (VELOSO, 2009).

A canção desenvolve-se sob o ritmo marcado de uma marcha militar, com presença

determinante do elemento de percussão, um bumbo que repetidamente é acionado, somado à

evolução lenta da interpretação de Caetano. O teor nefasto que permeia a canção refere-se

justamente à nocividade da realidade observada. Como poderiam os norte-americanos

95

desrespeitarem os direitos humanos? A nação que mundialmente portava-se como baluarte da

defesa de tais direitos, quando desafiada por atores não-estatais que se utilizavam de meios

violentos na execução de seus projetos, acaba preterindo a realização dos direitos humanos

em prol dos interesses de Estado, considerados ameaçados pela proliferação dos grupos

terroristas e suas atividades em território estadunidense.

Portanto, tendo em conta a contribuição de Caetano Veloso com a canção Base de

Guantánamo (VELOSO, 2009), concomitante com os aportes teórico-empíricos tratados,

torna-se possível elencarmos três implicações gerais da política norte-americana de

disseminação dos direitos humanos: a importância da doutrina de direitos humanos para o

projeto hegemônico dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria; os desafios enfrentados quando

de sua implementação nos países subordinados; e a falácia empírica quando a potência

hegemônica confrontou-se com o dilema que opunha os direitos humanos aos seus interesses

de segurança.

Resta-nos analisar a segunda dessas implicações – as outras duas já foram abordadas

anteriormente – que, notoriamente, não fora apreciada de modo adequado pela potência

hegemônica, constrangendo-lhe as aspirações consensuais e voltando-se complicadora para a

manutenção da dominação no início do século XXI. Eric Hobsbawm constata o aumento da

violência no pós-Guerra Fria, ao mencionar que:

Por um lado, a escala dos sofrimentos humanos aumentou terrivelmente na década

de 1990 e, por outro lado, as guerras religiosas que eram alimentadas por ideologias

seculares expandiram-se com o retorno a várias formas de fundamentalismo

religioso que se manifestam em cruzadas e contracruzadas (HOBSBAWM, 2007, p.

128).

Concomitantemente, Joseph Nye Jr. realiza um inventário dos conflitos armados no

período do pós-Guerra Fria, endossando os apontamentos de Hobsbawm quanto ao aumento

da escala dos sofrimentos humanos, apresentando o seguinte panorama:

As guerras maiores tornaram-se menos prováveis depois do fim da Guerra Fria, mas

os conflitos regionais e internos persistem e sempre haverá pressões para que outros

estados e instituições internacionais intervenham. Dos 116 conflitos que ocorreram

entre o fim da Guerra Fria e o início do novo século, 89 foram puramente

intraestatais (guerras civis) e outros 20 foram interestatais com intervenção

estrangeira. Mais de 80 protagonistas estatais estiveram envolvidos, assim como

duas organizações regionais e mais de 200 partidos não governamentais (NYE,

2009, p. 197).

Seguindo esta senda, Caetano Veloso apresenta seu inconformismo quanto ao fato do

Ocidente considerar-se a vanguarda universalizante da liberdade, da democracia e dos direitos

96

humanos, embasados na crença inequívoca de seu “dever” disseminador, por ser o berço de

tais fenômenos. Rebatendo, neste sentido, os aportes de Samuel Huntington, Caetano elucida

que:

Huntington cita também Arthur Schlesinger Jr.: "A Europa é a fonte – a fonte

singular- das ideias de liberdade individual, democracia política, império da lei,

direitos humanos e liberdade cultural. Essas ideias são ideias europeias, não são

asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção". Mas, como

disse Ernest Gellner, que tais ideias tenham surgido no Ocidente (assim como a

ciência moderna) não significa que os povos brancos europeus sejam seus donos ou

mesmo que estejam mais capacitados para pô-las em prática ou desenvolvê-las

(VELOSO, 1997, p. 346).

Entrementes, a escalada da violência no novo contexto internacional não advém

apenas desse fenômeno de fundamentalismo religioso, o que ratificaria a análise de

Huntington (1997) acerca do choque de civilizações. Refere-se, de fato, ao radicalismo

tomado pelas posições político-ideológicas, que forneceu justificativas ao uso de meios

violentos na consecução de tais objetivos. Consequentemente, Hobsbawm aponta que:

Existe [...] um fator mais perigoso na geração da violência sem limites. É a

convicção ideológica, que desde 1914 domina tanto os conflitos internos quanto os

internacionais, de que a causa que se defende é tão justa, e a do adversário é tão

terrível, que todos os meios para conquistar a vitória e evitar a derrota não são só

válidos como necessários. Isso significa que tanto os Estados quanto os insurgentes

sentem ter uma justificativa moral para o barbarismo (HOBSBAWM, 2007, p. 127).

Especificamente no concernente à ideologia dos direitos humanos, a disseminação do

projeto hegemônico aos países subordinados resultou no aprofundamento de tendências que

paulatinamente retornavam às relações internacionais. Neste âmbito, o nacionalismo ganhou

ânimo renovado no pós-Guerra Fria, fomentado pelas intervenções estrangeiras com o ímpeto

de reestruturar as sociedades dessas nações (HOBSBAWM, 2007).

Além disso, outro desafio apresentava-se na nova realidade internacional, que se

agregava ao tradicional nacionalismo das nações dominadas. Estas mesmas nações são as que

presenciaram o desbordamento do poder coercitivo, que passou a ser utilizado amplamente

por atores não-estatais, imergindo-as em cenários profundamente violentos. “O que é novo

atualmente é que a tecnologia põe nas mãos de indivíduos e grupos transviados poderes que

antes eram reservados basicamente aos governos” (NYE, 2009, p. 321). Como consequência

desses fenômenos:

As guerras dentro dos Estados fracassados assumem características muito diferentes

das guerras tradicionais e revelam uma mistura de conflitos (terrorismo, guerrilha,

guerra urbana e crime organizado) com grande potencial para provocar verdadeiros

97

desastres humanitários e todos os tipos de ameaças à paz e à segurança

internacionais (NASSER, 2009, p. 121).

Neste âmbito, os conflitos nos chamados Estados falidos com intervenção das

potências internacionais tornaram-se úteis para estas em um novo sentido. Atores privados

ligados ao setor de segurança beneficiaram-se com os ímpetos intervencionistas, durante a

década de 1990 com a justificativa humanitária, e durante os anos 2000 sob o escopo da

doutrina de segurança preventiva.

O Estado falido, portanto, tem se transformado em uma instituição conveniente para

a ação das grandes potências em que a privatização do uso da força tem repercussões

nos níveis internacional e interno (segurança pública) como consequência da cessão

do monopólio do uso da força por parte do próprio Estado. Uma das consequências é

que Estados e empresas se associam no intuito de acumular riquezas por meio da

exploração de recursos naturais, mesclando as categorias tradicionais: civil/militar e

privado/público, gerando atores híbridos que trabalham frequentemente com redes

informais que favorecem a corrupção e criminalidade (NASSER, 2009, p. 123).

O fenômeno incompreendido pelos precursores do projeto hegemônico estadunidense

é a consubstanciação de uma crise global, representando as transformações que passa a

violência política no novo período histórico.

Elas parecem refletir os profundos desequilíbrios sociais causados em todos os

níveis da sociedade pelas alterações mais rápidas e intensas jamais experimentadas

pela humanidade, social e individualmente, dentro do período de vida de um ser

humano. Elas parecem refletir uma crise dos sistemas tradicionais de autoridade,

hegemonia e legitimidade do Ocidente e sua dissolução no Oriente e no Sul, assim

como uma crise dos movimentos tradicionais que pretendiam proporcionar

alternativas a eles. Elas têm sido exacerbadas pelos fracassos da descolonização em

certas regiões do mundo e pelo fim de um sistema internacional estável [...] desde o

colapso da União Soviética. E elas se revelarão estar além dos poderes utópicos dos

neoconservadores e neoliberais que acreditam na exportação dos valores liberais do

Ocidente por meio da expansão dos mercados e das intervenções militares

(HOBSBAWM, 2007, p. 137).

Por ende, é possível estabelecermos duas conclusões das análises até aqui efetuadas: o

ordenamento internacional surgido com o fim da Guerra Fria, observado com as ferramentas

teóricas da teoria crítica coxiana, caracterizou-se pela hegemonia dos Estados Unidos; a

contribuição artística de Caetano Veloso acerca de fatores estruturantes dessa ordem

internacional é surpreendentemente reveladora da realidade observada, sendo possível sua

aproximação com os aportes da teoria crítica coxiana.

O projeto hegemônico dos Estados Unidos baseou-se em três categorias de ideologias

fundamentais: a globalização liberal; a democracia liberal; e os direitos humanos. A utilização

de um amplo rol de instituições internacionais para respaldar suas atividades é outro

fenômeno que marca sua atuação hegemônica, além das alianças e acordos ad hoc,

98

envolvendo a efetivação de coalizões de Estados no afã de legitimar intervenções e a

utilização de meios coercitivos para a consecução de seu projeto. Ademais, as vantagens da

potência hegemônica quanto às forças potenciais – especialmente no âmbito militar, onde sua

superioridade fora elencada como incontestável (HOBSBAWM, 2007 e KISSINGER, 1999) –

apenas endossou o quadro que se lhe apresentava. Ainda assim, a atuação das demais

potências no novo cenário, não oferecendo elementos de contra-hegemonia, aceitando e, em

alguns casos – como da Rússia na Guerra da Bósnia –, esperando a atuação da potência

hegemônica, atuando apenas quando seus interesses estavam ameaçados, foram fenômenos

que dificultaram a estruturação do ordenamento internacional. A estagnação, ou mesmo

retrocesso, na aquisição de forças potenciais é um dos fatores que explica tal modo de

atuação. Portanto, a década de 1990 postulou dilemas sobremaneira relevantes para as

potências mundiais.

Iria, porém, caber a esta década atravessar o render do milénio. Contudo, o “devagar

depressa do tempo”, de que falava Guimarães Rosa, não tardou a mostrar que

começava mal o século, manchado pela tragédia de Nova Iorque, depois repetida em

Madrid, Londres, Bali, Beslan e outros lugares. Mal também, por ter sido um

período marcado por opções unilateralistas, como a invasão do Iraque, que iriam

abalar os alicerces do sistema da legalidade internacional, criando um perigoso

precedente no preciso momento em que a globalização dos problemas aconselha às

potências o abandono de estratégias individuais e antes recomenda políticas de

reforço de solidariedades e colaborações. Mal ainda pela célere expansão de

pandemias que desestruturam Estados e atrasam o desenvolvimento de continentes,

perante a impotência de muitos e as desatenções de alguns. Mal, finalmente, pelo

súbito avolumar de difusos riscos alimentados pela pregação de violências

indiscriminadas assentes em irracionais ideologias fundamentalistas com perigosa

capacidade mobilizadora ou pelo recente ressurgir da ameaça de uma desordenada

proliferação nuclear (NEVES; SAMPAIO, 2007, s/p).

Não obstante, quando a potência empreendeu a execução de seu projeto hegemônico,

deparou-se com os limites, desafios e dilemas da hegemonia. O principal, amplamente

analisado por Cox e Gramsci, diz respeito a manter a utilização do consenso como elemento

fundamental, deixando a coerção como elemento marginal, apenas para os casos desviantes.

Neste âmbito, Caetano Veloso logrou perceber e apresentar tais fatores em suas

canções dos anos 1990 e 2000. As quatro canções aqui analisadas aportam elementos

analíticos fundamentais para a compreensão da hegemonia norte-americana, evidenciando que

a pretensa nova ordem mundial, liberal, democratizada, globalizada, não efetivava-se do

modo como o otimismo liberal esperava. Um amplo rol de ameaças e desafios consolidou-se

nesse cenário, inúmeros eventos conflituosos atestaram a permanência da principal

característica das relações internacionais, sua complexidade.

99

O período que seguiu o fim da Guerra Fria testemunhou maior cooperação

internacional, especialmente na ONU. Testemunhou também crises globais

relacionadas com: mercados financeiros; segurança alimentar; energia; mudanças

climáticas; terrorismo; crime transnacional. O surgimento de numerosos atores não

governamentais influentes e alianças inconstantes são também fenômenos dos

nossos tempos que fazem a arena internacional um ambiente muito mais complexo

(AMORIM, 2010, p. 216, tradução nossa).

O início do século XXI demonstrou que as interpretações de Caetano Veloso da

realidade internacional, próximas dos apontamentos da teoria crítica coxiana, eram não apenas

justificáveis, mas também acertadas. Quando a potência hegemônica foi confrontada, em uma

escala muito restrita, é certo, contudo evidenciando que nem mesmo a maior potência militar

do mundo estava imune às ações fomentadas pelo aumento da violência e o transbordamento

do poder coercitivo para além dos limites do Estado, sua resposta suprimiu o projeto

hegemônico em prol dos seus interesses de segurança.

O fim da Guerra Fria e a disseminação transnacional da tecnologia podem produzir

uma perspectiva mais ampla de armas nucleares serem usadas em alguns dos novos

países que tentam entrar na corrida nuclear do que era o caso no último meio século.

E uma das maiores ameaças no futuro será o fato de os terroristas transnacionais

obterem armas de destruição em massa. Sabemos que Bin Laden e a rede al Qaeda

estiveram fazendo esforços para obter essas armas e fizeram contato com cientistas

que trabalhavam no programa nuclear do Paquistão (NYE, 2009, p. 320).

Apreciando a conformação de tal ameaça, e considerando a imprescindibilidade do

apoio da população doméstica às ações externas, os formuladores da política externa norte-

americana idealizam um cenário de oposições contingentes, visando à cessão de parcela da

liberdade em prol da manutenção da segurança.

A instrumentalização do terrorismo em prol da balança de poder americana fez-se,

especialmente, por meio da via ideacional, seja ela científica ou discursiva. Para

tanto, destaca-se o papel desempenhado pela tragédia, a qual surge como elemento

de choque capaz de alterar a balança social entre liberdade e segurança, a favor deste

último pendor. Isso é, a população traumatizada dispõe parcela de sua liberdade em

troca de maiores níveis de estabilidade, retroalimentando as vias formais de controle

público. Logo, à medida que a população concede porções de sua liberdade, o

Estado acresce proporcionalmente seu potencial autoritário, alcançando graus

elevados de liberdade prática e influência subjetiva (SELIS; GALLO; MASO, 2011,

p. 55).

De tal modo, quando o elemento consensual das relações internacionais da potência

hegemônica para a resolução das problemáticas com que se deparava fora transformado,

passando a utilizar-se da doutrina de segurança preventiva, lançando mão dos meios

coercitivos para a estabilização do sistema internacional, a ordem hegemônica dissolveu-se.

Por conseguinte, o período de análise foco deste trabalho, que marcou o Sistema Internacional

pós-Guerra Fria, é delimitado como abarcando desde a derrocada da União Soviética em 1991

100

até os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Este período esteve permeado pela

atuação dos Estados Unidos como potência hegemônica no novo ordenamento mundial.

CONCLUSÃO

As intrincadas redes de relacionamentos humanos historicamente despertaram os mais

notáveis esforços de compreensão por parte de indivíduos impelidos pelo afã de desvendá-las

e aportar-lhes inteligibilidade ao conjunto da coletividade. Neste escopo, as ciências sociais

receberam paulatinamente maior proeminência no desenvolvimento técnico-científico

perpassado pela humanidade em sua trajetória histórica.

Sob o âmbito das ciências sociais, inegavelmente as relações baseadas em recursos de

poder instigaram vigorosas contribuições analíticas, posicionando a ciência política como

campo de estudo recorrentemente apreciado tanto à manutenção quanto à transformação da

ordem utilizada para a redução dos sofrimentos humanos intrínsecos às interações

interpessoais e intercoletivas. A busca pela obtenção ou sustentação dos recursos de poder –

em qualquer das esferas da vida humana – fomentou (e continuará fomentando) inúmeros

conflitos e tensões entre grupos inseridos numa sociedade, bem como entre as sociedades.

É neste ponto que emerge a imprescindibilidade dos estudos das relações

internacionais para a contribuição científica à compreensão dos (des) encontros entre as

distintas sociedades no espaço internacional, propiciando uma ampla gama de eventos e

fenômenos que implicam em processos que afetam profundamente as dinâmicas internas.

O cientista social, imerso nas profundas tensões inerentes aos dilemas da

individualidade e da coletividade, constrangido pelos limites impostos pela estrutura histórica

em que está envolvido, recorrentemente depara-se com os períodos de transição do

desenvolvimento histórico humano. Sua tarefa de capturar a realidade momentânea, analisá-la

com as ferramentas metodológicas de que dispõe, tendo em conta o movimento histórico

transcorrido para que tal realidade se apresentasse, do modo como a observa, permeia-se de

incógnitas, e as tentações da simplificação e da precipitação voltam-se sobremaneira atrativas.

Este estudo lançou-se ao debate do período mais recente em que tais circunstâncias

conformaram-se, no que tange ao campo das relações internacionais. Considerando as

dificuldades substanciais encontradas pelos esforços teóricos que intentavam compreender a

lógica do cenário internacional conformado com o final da Guerra Fria, encontramos na

102

produção artística um elemento essencialmente revelador dos principais fenômenos

resultantes dos relacionamentos entre os diversos atores internacionais.

Analisando os principais fenômenos internacionais, percebemos a continuidade de

fatores observados durante o período anterior, sendo tão somente intensificados no novo

momento histórico. Enquanto algumas abordagens teóricas buscavam caracterizar o período

pós-Guerra Fria como um momento desvinculado do anterior, no qual as tensões relativas

àquele período haviam dissipado-se ou mitigado-se pela ação de uma nova estrutura histórica

que, todavia, remetia suas bases à fenômenos da antiguidade histórica, ressurgindo como

balizadores dos relacionamentos internacionais, fortaleciam-se algumas abordagens

alternativas.

De tal modo, como observado no capítulo I, os apontamentos efetuados por Robert

Cox, sob o marco da teoria crítica internacional, voltaram-se importantes para a percepção e

compreensão das relações internacionais no período de transição que representou o pós-

Guerra Fria. Por conseguinte, consideramos este período como fundamentalmente marcado

pela hegemonia dos Estados Unidos da América, utilizando-se de suas forças potenciais, das

instituições internacionais e do âmbito normativo-jurídico das relações internacionais, das

mídias, para difundirem e conformarem seu projeto hegemônico baseado nas premissas de

democracia liberal, globalização liberal e direitos humanos.

Tendo em conta a contribuição de Antonio Gramsci para o estabelecimento do debate

da hegemonia na ciência política, e de Robert Cox para a análise desta no escopo das relações

internacionais, percebemos que os Estados Unidos utilizaram-se dos elementos de consenso e

coerção para submeterem os demais países ao seu projeto hegemônico. Para tanto, foi preciso

entender o funcionamento da lógica hegemônica, na qual o aspecto consensual representa o

baluarte do projeto hegemônico, enquanto a coerção recebe papel marginal, sendo utilizada

apenas nos casos desviantes.

Consequentemente, encontramos linhas interpretativas similares na produção musical

de Caetano Veloso, que atuou durante as décadas de 1990 e 2000 em busca de apresentar as

características estritamente hegemônicas do ordenamento internacional vivenciado. Ademais,

o artista, em posição de contestação, crítica e inconformismo, empreende um debate acerca de

algumas teorias surgidas no centro hegemônico (sob o âmbito do que Robert Cox chamou de

teorias de solução de problemas) que visavam apresentar o quadro das relações internacionais

103

naquele momento como uma nova ordem mundial, oscilando entre posições otimistas e

pessimistas, porém, estritamente vinculadas com os desígnios do projeto hegemônico.

Neste escopo, o capítulo II realizou uma análise da vida e obra de Caetano Veloso, os

entrelaçamentos de sua produção musical com as principais discussões políticas, econômicas,

culturais e sociais do Brasil e do mundo. É altamente intrigante o fato de que ao mesmo

tempo em que Caetano transforma sua atuação artística, ocorrem transformações na estrutura

histórica, seja ela nacional ou internacional. Logramos, assim, traçar um paralelo entre a

produção musical de Caetano Veloso (bem como sua atuação política) e a análise das relações

internacionais, essencialmente no período pós-Guerra Fria.

Analisando o projeto do Tropicalismo, podemos conceber a atuação de Caetano

Veloso impelida ao estabelecimento de uma nova cultura e uma nova intelectualidade. De tal

modo, tendo em conta os apontamentos gramscianos, tornou-se passível considerarmos

Caetano Veloso enquanto intelectual orgânico, comprometido com a contestação dos padrões

artísticos e intelectuais vigentes ao longo de sua carreira. Contudo, foi no período pós-Guerra

Fria que a concatenação de ambas as facetas de Caetano tornaram-se sobremaneira

observáveis, em seus esforços de crítica e contestação às abordagens dominantes.

A emersão deste trabalho na teoria crítica coxiana e nas contribuições artísticas de

Caetano Veloso representa o reconhecimento da afirmação de Messari e Nogueira (2005) de

que a teoria crítica consiste na contestação da ordem vigente, bem como de suas ferramentas

analíticas, e no aporte de ordens alternativas viáveis, fundadas em concepções históricas,

normativas e materialistas, que apresentem as possibilidades de emancipação dos estreitos

limites impostos pela realidade presente.

Deste modo, foi possível efetuar a aproximação da produção artística de Caetano

Veloso para a compreensão do sistema internacionais pós-Guerra Fria com a teoria crítica

coxiana, fornecendo elementos teórico-empíricos, relativos aos métodos científicos, com a

observação empírica permeada da sensibilidade e subjetividade intrínsecas à produção

artística. De tais ímpetos, consubstanciou-se um quadro teórico, analítico e empírico que

buscou comportar os dilemas centrais das relações internacionais nesse momento histórico

específico.

Por conseguinte, as relações internacionais começaram a presenciar a intensificação do

processo de corrosão das estruturas estatais, inaugurando percepções pessimistas quanto à

104

intangibilidade do Estado em relação aos demais atores internacionais. O aprofundamento das

assimetrias internas e internacionais, a crescente preocupação com o meio ambiente, com a

cultura, a ascendente relevância da opinião pública para a política externa e as relações

internacionais, o acirramento da pobreza, o terrorismo transnacional, a complexificação da

luta de classes, o reavivamento do nacionalismo e do autoritarismo, além do aprofundamento

da alienação, com o desenvolvimento decisivo da indústria cultural, a institucionalização

internacional, o regionalismo (com a conformação dos blocos econômicos), a democratização

e a globalização são todos fenômenos que testemunham a conformação de novos desafios aos

Estados.

Apreciando os limites do ordenamento internacional emergido com o final da Guerra

Fria, delimitamos os fatores constitutivos essenciais desta estrutura histórica, destacando-se: a

globalização desigual, baseada em corporações globais, em organizações internacionais e na

crescente atuação de movimentos sociais; uma ordem mundial caracterizada pela

unipolaridade militar com crescente multipolarização nas demais esferas, pela hegemonia e

pelo aprofundamento dos processos de regionalização, tanto econômica quanto política; e

mudanças nas formas estatais, com o advento dos Estados falidos, semiprotetorados e

territórios sem governo.

Neste contexto, partindo das observações de Caetano Veloso, buscou-se estabelecer

uma discussão pertinente aos limites impostos à atuação hegemônica, os custos relativos a tal

modo de relacionamento no âmbito internacional, como apresentado no capítulo III. Com

esses ímpetos, realizou-se a análise interna de quatro canções de Caetano Veloso referentes às

décadas de 1990 e 2000, evidenciando os desafios e limitações ao projeto hegemônico

estadunidense dos anos noventas, bem como suas respostas unilaterais baseadas na coerção

que inauguraram o período de dominação e contra-ofensiva das demais nações ao iniciar o

novo milênio.

Portanto, ao cruzarmos a primeira década do século XXI, analisando

retrospectivamente as duas décadas anteriores, percebemos que nem o otimismo liberal,

tampouco o pessimismo civilizacional, são fontes amplamente efetivas para compreendermos

as relações internacionais no novo panorama. A conformação de tantos fatores que

constrangem as ações dos Estados, ademais do crescente protagonismo dos demais atores

internacionais, apenas reforçaram a imprescindibilidade de se analisar as temáticas mundiais

sob o marco de aportes que não se restrinjam pelas rigidezes tradicionais, tanto quanto pelas

105

conclusões apressadas (por vezes inconsequentes), reconhecendo a complexidade

fundamental dessa área do conhecimento.

Do mesmo modo, ao considerar-se o cenário mundial consolidado com o combate ao

terrorismo internacional por parte da maior potência militar, os Estados Unidos, não podemos

apressar-nos em nossas conclusões. A virada no projeto internacional dos Estados Unidos

marcou um novo turning point no Sistema Internacional. A globalização liberal enfrentou

desafios difusos, como a consolidação da ascensão de economias periféricas que passaram a

participar ativamente da economia internacional, tendo no crescimento da China uma

importante fonte de contestação quanto as suas premissas básicas. Soma-se a isso o

fortalecimento dos esforços de regionalização, tendo seu principal baluarte na União Europeia

e na consolidação da zona do euro, amplamente resgatada como modelo para as demais

regiões do globo.

Todavia, é na América Latina e no antigo bloco soviético que encontramos os

principais eventos que corroboram o fracasso do projeto hegemônico estadunidense de

globalização liberal. A colossal derrocada do neoliberalismo, após uma década de consenso

sobre sua imprescindibilidade, marcada pelas crises financeiras da segunda metade da década

de 1990, o retrocesso dos indicadores sócio-econômicos e o esfacelamento do poder estatal no

controle dos efeitos perversos da economia globalizada (como exemplificado pela Argentina),

foram todos fatores que, na virada do século, fomentaram a retomada de ideologias

desenvolvimentistas e progressistas, que em alguns casos marcaram o ressurgimento do

nacionalismo.

Contudo, no concernente à economia, indubitavelmente a crise financeira

internacional eclodida em 2007 representou o maior golpe às potências mundiais,

especialmente aos Estados Unidos. Os riscos advindos do endividamento público

demonstraram-se efetivamente aos norte-americanos, porém, foram sentidos mais

profundamente pelos europeus, incitando questionamentos acerca da viabilidade do projeto

integracionista europeu, ao menos nos moldes até então efetivados. Por outro lado, os efeitos

relativamente mais amenos apresentados às economias em ascensão ressaltaram seu papel

preponderante na nova economia mundial.

O cenário da disseminação da democracia é ainda mais instigante, tendo em conta os

inúmeros movimentos em direção tanto à democratização quanto à desdemocratização, sendo

necessário considerar as capacidades dos Estados para perpetrarem o desenvolvimento do

106

processo de democratização, limitadas pelas inconstâncias da economia globalizada, a

proliferação de novas ameaças não governamentais ao Estado, assim como os efeitos do

desenvolvimento histórico oscilante nas nações surgidas dos processos de descolonização e do

esfacelamento dos principais Estados do antigo bloco soviético.

Não obstante, é nos assuntos de segurança que a atuação dos Estados Unidos

modificou definitivamente as linhas para a compreensão do Sistema Internacional. Quando

premida pela atuação violenta de atores não estatais, a potência global empreendeu uma

estratégia unilateral e fundada em elementos essencialmente coercitivos. A doutrina de

segurança preventiva dos governos de George W. Bush (2001-2009), em seu combate contra

o terrorismo internacional, preteriu as premissas que permearam a atuação hegemônica dos

Estados Unidos na década de 1990 em prol dos interesses governamentais, especificamente os

vinculados à segurança doméstica. Neste sentido, a intervenção militar no Iraque iniciada em

2003 tornou-se emblema do novo posicionamento norte-americano nas relações

internacionais, assim como em 1990, no mesmo Iraque, a intervenção amplamente apoiada

prenunciava a “nova ordem mundial”.

Assim sendo, é possível apontar para fenômenos de desencontros que influenciaram

tanto nas limitações da estabilização da ordem mundial pós-Guerra Fria por meio da atuação

hegemônica dos Estados Unidos, quanto nas diversas crises internacionais estabelecidas no

novo século, com a atuação estadunidense baseando-se na dominação e, consequentemente,

em fatores coercitivos.

Durante a década de 1990 os Estados Unidos sentiram as implicações dos custos

(materiais, políticos, institucionais) de uma hegemonia mundial, especialmente pela opção das

demais potências mundiais de se resguardarem da atuação efetiva, fazendo-o apenas quando

seus interesses estavam diretamente afetados. Por conseguinte, os norte-americanos arcaram

em grande parte com os ônus da manutenção da ordem pós-Guerra Fria, desgastando-se e

abrindo espaço para posicionamentos fundados no insulamento.

Diametralmente oposto é o cenário dos anos 2000. Quando as demais potências

internacionais, especialmente as emergentes, aproximavam-se dos foros de debate das

problemáticas mundiais, ocorre a transformação do projeto internacional dos Estados Unidos,

afastando-se dos elementos consensuais e rumando perigosamente para a coerção. Não apenas

no concernente ao combate ao terrorismo e aos Estados párias, a atuação dos Estados Unidos

frente às principais crises internacionais do novo século esteve envolvida numa crescente

107

espiral de coerção. Seja no protecionismo econômico retomado com a crise financeira iniciada

em 2007, na difícil e travada evolução das conversações acerca dos regimes internacionais

relativos às mudanças climáticas e ao meio ambiente, bem como nos debates acerca das

problemáticas energéticas, fundamentais ao capitalismo contemporâneo, em todos esses

exemplos a resposta estadunidense às situações de crise foi unilateral, enfraquecendo o

diálogo com os demais atores que influenciam ativamente na realidade internacional.

Apreciando tal cenário, é na produção artística, e em Caetano Veloso, que

encontramos uma poderosa ferramenta norteadora das relações internacionais sob tais

perspectivas e desafios. O principal dilema posto às potências mundiais é a conformação de

estruturas vinculantes que possibilitem a atuação conjunta para a resolução das crises e

problemáticas que afligem a humanidade na atualidade, tendo em conta as experiências

históricas, especialmente as recentes, das duas últimas décadas.

Sob tal âmbito, é na experiência brasileira de construção nacional, no projeto do Brasil

que, segundo Veloso (1997), encontra-se um potencial de realização humana ainda

necessitando de exploração. Mesmo após todos os revezes que o desenvolvimento histórico

lhe imprimiu, o Brasil segue sendo algo em formação, uma utopia ávida por concretizar-se.

Se, com todas as comoções e adversidades que abateram-se sobre o Brasil, o país mantêm seu

ímpeto de realização, é passível de fornecer um exemplo às demais nações de que, por um

lado, não podemos olvidarmos do desenvolvimento histórico que nos coloca no momento

presente e, por outro lado, não devemos nos constranger pelas imposições desse momento, a

criatividade inerente ao ser humano deve procurar realizar-se em todas as esferas da vida,

desde a euforia dionisíaca proporcionada pela arte, até as tênues limitações que impelem-se

aos relacionamentos políticos.

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ANEXOS

Anexo A – Fora de Ordem

Vapor barato

Um mero serviçal

Do narcotráfico

Foi encontrado na ruína

De uma escola em construção...

Aqui tudo parece

Que era ainda construção

E já é ruína

Tudo é menino, menina

No olho da rua

O asfalto, a ponte, o viaduto

Ganindo prá lua

Nada continua...

E o cano da pistola

Que as crianças mordem

Reflete todas as cores

Da paisagem da cidade

Que é muito mais bonita

E muito mais intensa

Do que no cartão postal...

Alguma coisa

Está fora da ordem

Fora da nova ordem

Mundial...

Escuras coxas duras

Tuas duas de acrobata mulata

Tua batata da perna moderna

A trupe intrépida em que fluis...

Te encontro em Sampa

De onde mal se vê

Quem sobe ou desce a rampa

Alguma coisa em nossa transa

É quase luz forte demais

Parece pôr tudo à prova

Parece fogo, parece

Parece paz, parece paz...

114

Pletora de alegria

Um show de Jorge Benjor

Dentro de nós

É muito, é grande

É total...

Alguma coisa

Está fora da ordem

Fora da nova ordem

Mundial...

Meu canto esconde-se

Como um bando de Ianomâmis

Na floresta

Na minha testa caem

Vem colocar-se plumas

De um velho cocar...

Estou de pé em cima

Do monte de imundo

Lixo baiano

Cuspo chicletes do ódio

No esgoto exposto do Leblon

Mas retribuo a piscadela

Do garoto de frete

Do Trianon

Eu sei o que é bom...

Eu não espero pelo dia

Em que todos

Os homens concordem

Apenas sei de diversas

Harmonias bonitas

Possíveis sem juízo final...

Alguma coisa

Está fora da ordem

Fora da nova ordem

Mundial...

Composição: Caetano Veloso

In: VELOSO, Caetano. Circuladô. Rio de Janeiro: PolyGram, 1991. 1 CD digital, estéreo.

115

Anexo B – Santa Clara, Padroeira da Televisão

Santa clara, padroeira da televisão

Que o menino de olho esperto saiba ver tudo

Entender certo o sinal certo se perto do encoberto

Falar certo desse perto e do distante porto aberto

Mas calar

Saber lançar-se num claro instante

Santa clara, padroeira da televisão

Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo

Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)

Que a televisão não seja sempre vista

Como a montra condenada, a fenestra sinistra

Mas tomada pelo que ela é

De poesia

Quando a tarde cai onde o meu pai

Me fez e me criou

Ninguém vai saber que cor me dói

E foi e aqui ficou

Santa clara

Saber calar, saber conduzir a oração

Possa o vídeo ser a cobra de outro éden

Porque a queda é uma conquista

E as miríades de imagens suicídio

Possa o vídeo ser o lago onde narciso

Seja um deus que saberá também

Ressuscitar

Possa o mundo ser como aquela ialorixá

A ialorixá que reconhece o orixá no anúncio

Puxa o canto pra o orixá que vê no anúncio

No caubói, no samurai, no moço nu, na moça nua

No animal, na cor, na pedra, vê na lua, vê na lua

Tantos níveis de sinais que lê

E segue inteira

Lua clara, trilha, sina

Brilha, ensina-me a te ver

Lua, lua, continua em mim

Luar, no ar, na tv

São Francisco

Composição: Caetano Veloso

In: VELOSO, Caetano. Circuladô. Rio de Janeiro: PolyGram, 1991. 1 CD digital, estéreo.

116

Anexo C – O Heroi

Nasci num lugar que virou favela

Cresci num lugar que já era

Mas cresci a vera

Fiquei gigante, valente, inteligente

Por um triz não sou bandido

Sempre quis tudo o que desmente esse país

Encardido

Descobri cedo que o caminho

Não era subir num pódio mundial

E virar um rico olímpico e sozinho

Mas fomentar aqui o ódio racial

A separação nítida entre as raças

Um olho na bíblia, outro na pistola

Encher os corações e encher as praças

Com meu guevara e minha coca-cola

Não quero jogar bola pra esses ratos

Já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos

Quero ser negro 100%, americano,

Sul-africano, tudo menos o santo

Que a brisa do Brasil beija e balança

E no entanto, durante a dança

Depois do fim do medo e da esperança

Depois de arrebanhar o marginal, a puta

O evangélico e o policial

Vi que o meu desenho de mim

É tal e qual

O personagem pra quem eu cria que sempre

Olharia

Com desdém total

Mas não é assim comigo.

É como em plena glória espiritual

Que digo:

Eu sou o homem cordial

Que vim para instaurar a democracia racial

Eu sou o homem cordial

Que vim para afirmar a democracia racial

Eu sou o herói

Só Deus e eu sabemos como dói

Composição: Caetano Veloso

In: VELOSO, Caetano. Cê. São Paulo: Universal Music, 2006. 1 CD digital, estéreo.

117

Anexo D – A Base de Guantánamo

O fato dos americanos

Desrespeitarem

Os direitos humanos

Em solo cubano

É por demais forte

Simbolicamente

Para eu não me abalar

A base de Guantánamo

A base

Da baía de Guantánamo

A base de Guantánamo

Guantánamo

Composição: Caetano Veloso

In: VELOSO, Caetano. Zii e Zie. São Paulo: Universal Music, 2009. 1 CD digital, estéreo.