hegel trabalho

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MÁRCIO EGÍDIO SCHÄFER O CONCEITO DE TRABALHO NA FILOSOFIA DE HEGEL E ALGUNS ASPECTOS DE SUA RECEPÇÃO EM MARX Porto Alegre 2012

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    MRCIO EGDIO SCHFER

    O CONCEITO DE TRABALHO NA FILOSOFIA DE HEGEL E

    ALGUNS ASPECTOS DE SUA RECEPO EM MARX

    Porto Alegre

    2012

  • MRCIO EGDIO SCHFER

    O CONCEITO DE TRABALHO NA FILOSOFIA DE HEGEL E

    ALGUNS ASPECTOS DE SUA RECEPO EM MARX

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Agemir Bavaresco

    Porto Alegre

    2012

  • MRCIO EGDIO SCHFER

    O CONCEITO DE TRABALHO NA FILOSOFIA DE HEGEL E

    ALGUNS ASPECTOS DE SUA RECEPO EM MARX

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    BANCA EXAMINADORA:

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Agemir Bavaresco (orientador)

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Christian Iber

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira

    Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao Prof. Dr. Agemir Bavaresco, por sua acolhida e seu acompanhamento do

    meu projeto de mestrado, que foram de valor inestimvel para que a presente pesquisa

    pudesse chegar aos resultados que chegou. Agradecimento que tambm se estende ao Prof.

    Dr. Christian Iber, pela disponibilidade em ler e discutir vrias passagens do presente estudo,

    alm de disponibilizar o acesso literatura em lngua alem relativa minha pesquisa. A eles,

    e ao Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira, que compuseram a banca examinadora, agradeo

    pela tarde de reflexo e discusso filosfica que possibilitaram quando do ato acadmico de

    defesa da presente dissertao. Agradeo igualmente ao Prof. Dr. Matthias Schnadt, de

    Bochum, pelo seu empenho em reunir textos que foram importantes para o desenvolvimento

    desta pesquisa. Agradecimentos que ainda se estendem aos meus professores da graduao,

    especialmente ao Prof. Dr. Denis Lerrer Rosenfield, com o qual pude iniciar meus estudos

    sistemticos da filosofia de Hegel e da filosofia poltica moderna em geral, e ao Prof. Dr. Jos

    Pinheiro Pertille, em cujos seminrios de pesquisa comecei a desenvolver in nuce os

    problemas que culminaram na presente dissertao. Agradeo tambm ao Prof. Dr. Draiton

    Gonzaga de Souza, cujos comentrios ao meu projeto de pesquisa e simpatia pelo tema foram

    um estmulo para perseverar. Agradeo minha famlia, especialmente aos meus pais, Roque

    Idrio e Maria Iraci, pelo apoio em cada etapa da minha vida, e tambm ao meu tio Pe. Incio

    Valdir Schfer, SJ, pelo apoio constante. Alm disso, registro meu agradecimento aos

    secretrios do PPG em Filosofia da PUCRS, Andrea da Silva Simioni e Paulo Roberto Soares

    da Mota, pela sempre precisa orientao nos assuntos acadmicos. Por fim, agradeo a todos

    os meus amigos que me acompanharam ao longo dessa caminhada.

    A realizao da presente pesquisa contou com o apoio financeiro da CAPES

    (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e com o aporte institucional

    da PUCRS (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul).

  • RESUMO

    A presente pesquisa procura analisar o conceito de trabalho (Arbeit) na filosofia de

    Hegel, enfatizando alguns aspectos de sua recepo em Marx. Para tanto, em primeiro lugar,

    explicita-se o lugar e a funo do conceito de trabalho no sistema hegeliano, focando os

    problemas que pretende resolver e as influncias que Hegel teve para desenvolver um

    conceito de trabalho numa acepo positiva, para o que a Modernidade, especialmente a

    Economia Poltica, deu uma contribuio especial. Em segundo lugar, investiga-se o conceito

    do trabalho com o propsito de esclarecer o significado da clssica formulao hegeliana

    segundo a qual o trabalho forma (bildet). Isso feito tanto na esfera do Esprito Subjetivo, em

    que se analisa a dimenso formadora do trabalho em relao ao indivduo, como tambm na

    esfera do Esprito Objetivo, em que se esclarece a dimenso formadora do trabalho em relao

    ao gnero humano. Porm, esclarecer essa dimenso exige que se revisite a estrutura

    especulativa do trabalho tal como ela aparece na Lgica. Mas, se o trabalho assume esse

    papel de formador, Marx acrescenta que tambm pode se suceder o inverso, ou seja, pode ser

    deformador do ser humano, o que aparece sob a rubrica da face negativa do trabalho ou do

    problema da alienao. Isso investigado no terceiro momento, tentando explicitar o

    tratamento hegeliano desse problema. Por fim, com base na argumentao desenvolvida,

    busca-se expor alguns pontos com base nos quais possvel pensar a atualidade do conceito

    de trabalho.

    Palavras-chave: Hegel; Marx; Trabalho; Formao; Alienao.

  • ABSTRACT

    This research aims to analyze the concept of work (Arbeit) in Hegels philosophy, by emphasizing some aspects of its reception in Marx. In order to do so, in the first place, the

    argumentation focuses to explicit the place and the role of the concept of work in Hegels system pointing out the problems that it aims to solve and the influence that Hegel has had to

    develop a concept of work in a positive sense, for which the modern world, especially the

    political economy, has a special contribution. Secondly, the concept of work is examined with

    the purpose to clarify the meaning of the classic Hegelian formulation according to which the

    work forms (bildet). This is analyzed in the sphere of the Subjective Spirit, which discusses

    the forming dimension of work in relation to the individual as well in the sphere of the

    Objective Spirit, in which the forming dimension of work in his relation to the humankind is

    cleared. Nevertheless, to clarify this dimension demands to revisit his speculative structure as

    it appears in the Logic. However, if the work assumes this forming dimension, Marx ads that

    can succeed the opposite, in other words, it can also deform the human being, and that appears

    under the heading of the negative face of work or of the problem of alienation. This point is

    examined in the third moment, which aims to explain the Hegelian treatment of this problem.

    Finally, on the basis of the arguments presented, this search intends to expose some

    arguments on which basis it is possible to think the actuality of the concept work.

    Key-words: Hegel; Marx; Work; Formation; Alienation.

  • SUMRIO

    I. INTRODUO................................................................................................................. 07

    1. AS RAZES DO CONCEITO DE TRABALHO EM HEGEL......................................... 12

    1.1. A Filosofia de Hegel como Mediao entre Sujeito e Objeto................................12

    1.2. A Influncia da Economia Poltica Moderna no Projeto Filosfico de Hegel.............. 24

    2. O TRABALHO COMO ATIVIDADE FORMADORA EM HEGEL.............................. 35

    2.1. A Forma Lgica do Trabalho..................................................................................35

    2.2. A Dimenso Formadora do Trabalho no Esprito Subjetivo....................................... 46

    2.3. A Dimenso Formadora do Trabalho no Esprito Objetivo.......................................... 65

    3. O TRABALHO COMO ATIVIDADE DEFORMADORA DO SER HUMANO..... 76

    3.1. O que Trabalho Alienado?....................................................................................... 76

    3.2. Hegel e as Contradies do Trabalho na Sociedade Civil-burguesa.......................... 84

    3.3. Os Limites da Resposta de Hegel.................................................................................. 93

    4. ALGUNS TPICOS ACERCA DA CONTEMPORANEIDADE DO TRABALHO COMO

    PROBLEMA FILOSFICO............................................................................................. 104

    5. CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................118

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................121

  • I. Introduo

    A articulao entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade, entre natureza e

    esprito, ente liberdade e natureza marcaram decisivamente o itinerrio filosfico moderno.

    Da Teoria do Conhecimento Filosofia Poltica, a questo fundamental formulada nos

    seguintes termos: qual o ponto de partida da justificao das nossas crenas ou do Estado?

    Deve sua justificao assentar-se na natureza, redutvel s leis matemticas, portanto

    marcadas com um determinismo radical ou num ato livre do sujeito?

    Hegel tem uma forma peculiar de tratar esses problemas tipicamente modernos,

    medida que objetiva ser uma grande Aufhebung das filosofias precedentes, notadamente das

    filosofias idealistas de corte transcendental, que pretendiam responder s grandes aporias

    legadas pela Modernidade. Isto significa que ela nega os aspectos falsos dos sistemas

    anteriores, conserva os aspectos que possuem uma ponta de verdade, elevando-os, todavia, a

    um nvel superior. Tal aspecto torna-se proficuamente sensvel na concepo do conceito de

    atividade, e mais especificamente do conceito de trabalho, presente no Idealismo Alemo.

    Precisamente esse o objetivo da presente pesquisa: desenvolver, a partir do cenrio da

    filosofia clssica alem, especialmente em Hegel, mas com alguma ateno para Marx, a

    centralidade que o conceito de trabalho assume para a reflexo filosfica, especialmente

    quando ela se ocupa de temas cruciais como o ser humano, a liberdade, buscando tomar

    distncia daquelas teorias que propugnam uma perda da centralidade do trabalho.

    A estratgia adotada no consiste em delimitar o foco da anlise a uma obra especfica,

    mas de examinar o conceito de trabalho enquanto enquadrado numa certa problemtica

    filosfica. Isso permite investigar o conceito de trabalho em seus diversos nveis na filosofia

    de Hegel, seja na sua funo sistemtica, seja em sua dimenso especificamente econmica,

    como ela se d na esfera do Esprito Objetivo. Mas, em ambas, a definio do trabalho pelo

    predicado ser formador se sobressai. Por isso, a articulao do trabalho, a partir de sua

    funo sistemtica ou econmica, buscar explicitar o sentido da afirmao hegeliana

    segundo a qual o trabalho forma ou, na clssica formulao marxiana, j presente em algum

    grau tambm em Hegel, como se pretende demonstrar, o trabalho, em circunstncias

    especficas, deforma.

    Para iniciar a investigao, na seo 1.1, expor-se-o algumas aporias decorrentes das

    formulaes tericas dos idealistas que precederam Hegel, em especial Kant e Schelling, nos

    quais o conceito de atividade, mesmo que restrito atividade da conscincia sobre si se torna

  • 8

    saliente. Para Hegel, as consequncias que se seguem ao idealismo transcendental, ao

    idealismo subjetivo ou do idealismo absoluto, tal como desenvolvidos respectivamente em

    Kant, Fichte e Schelling, conduzem a um desarrazoado completo no que concerne ao saber

    filosfico. Hegel recusa peremptoriamente essas formas de idealismo, pois elas concedem um

    espao significativo ao ceticismo, na medida em que abdicam do conhecimento da coisa-em-

    si ou do absoluto, ou mesmo negam a existncia da coisa-em-si ou, ainda, por fundamentarem

    seu conhecimento em mtodos alheios ao saber filosfico, ao saber racional. Sem pretender

    esgotar a anlise desses problemas em Hegel, buscar-se- desenvolver a gnese da filosofia de

    Hegel, indicando como o conceito de trabalho ganha cidadania no seu empreendimento

    filosfico e corrobora no desenvolvimento de uma nova forma de idealismo, que no arreda

    p no que concerne ao conhecimento da coisa-em-si, do absoluto.

    Posta esta importncia capital do conceito de trabalho em Hegel, num momento

    posterior, na seo 1.2, examinar-se-o as possveis influncias que Hegel recebeu na

    formulao do seu conceito de trabalho, dado o histrico de acepes pejorativas com que tal

    conceito foi usualmente empregado ao longo da histria filosfica ocidental. Para tanto, dois

    vieses de anlise so absolutamente centrais: (i) a mudana que a Modernidade operou no que

    tange concepo de cincia e suas implicaes no conceito de trabalho, divergindo

    radicalmente da tradio greco-romana, o que se mostra sobremaneira na afirmao da

    dimenso ativa do ser humano no mundo moderno, contraposta dimenso contemplativa,

    tpica do mundo grego, e (ii) a anlise da influncia que a cincia sui generis da Modernidade,

    a saber, a moderna economia poltica tem sobre o projeto hegeliano.

    No captulo 2, incursionar-se- propriamente na anlise do conceito de trabalho em

    Hegel. A anlise pautar-se- no exame dos reflexos que a inverso do modo de tratar o

    conceito de trabalho, a qual se sucedeu na Modernidade e cuja chancela mxima foi dada

    pelos economistas polticos, produziu no modo igualmente peculiar de compreender o modo

    mediante a qual o Eu das filosofias do sujeito pode chegar sua verdade. Rastreando a

    evoluo do conceito de trabalho em Hegel, buscar-se- evidenciar, tomando por base um

    arcabouo conceitual j forjado em parte por Hegel nos seus escritos de juventude, cuja

    formulao mxima est na Fenomenologia do Esprito sem olvidar a Cincia da Lgica ,

    como o trabalho coopera no processo do devir do saber absoluto, isto , na reconciliao entre

    sujeito e objeto, da subjetividade com a objetividade. Ou seja, como o trabalho, mesmo sendo

    o trabalho do esprito e, por isso, segundo os crticos, um trabalho mistificado, ainda um

    trabalho que leva o sujeito a encontrar a sua verdade ao se reconhecer a si mesmo no mundo

    transformado pelo seu trabalho.

  • 9

    Aps situar o conceito de trabalho no panorama sistemtico da filosofia hegeliana,

    torna-se premente abordar o tema precisamente a partir dos escritos sistemticos. Isso exige

    que se analise o delineamento deste problema na Wissenschaft der Logik, em que tal questo

    abordada em sua estrutura especulativa. Em funo disso, a seo 2.1 se intitula A forma

    lgica do trabalho, pois para compreender o problema do trabalho em Hegel torna-se

    necessrio interpelar a estrutura que subjaz ao mesmo. E na Cincia da Lgica corao do

    sistema , na seo sobre a teleologia, que Hegel expe o que aqui se denomina de estrutura

    lgica do trabalho. Trs so os momentos centrais dessa estrutura: (i) o fim subjetivo

    (subjektiver Zweck), (ii) a objetividade (die Objektivitt) e (iii) o fim desenvolvido (der

    ausgefherte Zweck). Entre a objetividade e a subjetividade torna-se necessrio um momento

    intermedirio, qual seja: o meio (die Mitte). Tendo por panorama esta estrutura geral do

    problema do trabalho, tencionar-se- elucidar, nas sees que se seguem, a saber, em 2.2 e

    em 2.3, como Hegel desdobra a dimenso formadora do trabalho. As referidas sees

    correspondem, respectivamente, dimenso formadora do trabalho no mbito do Esprito

    Subjetivo, na formao do ser humano como indivduo e, aps ter esmiuado o papel do

    trabalho na formao do sujeito humano enquanto indivduo, torna-se legtimo perguntar pela

    relao, se que existe, entre o trabalho e a formao de um gnero peculiar, qual seja: o

    gnero humano, cuja investigao h de ser empreendida no mbito do Esprito Objetivo. Para

    levar a termo tal propsito, a insero da temtica da Filosofia da Histria de Hegel, na qual

    se d o aparecer e o desaparecer das diferentes culturas, dos distintos usos e costumes, que no

    Estado recebem sua expresso plena, torna-se extremamente valiosa.

    Todavia, se o percurso at aqui procura destacar os aspectos positivos do trabalho,

    demonstrando seu papel absolutamente central no desenvolvimento do idealismo hegeliano,

    na superao dos dualismos da Modernidade, em especial a infranqueabilidade entre sujeito e

    objeto, a pergunta que h de ser feita agora : Hegel respondeu satisfatoriamente ao problema

    que balizou suas investigaes, isto , a necessidade de suprassumir os dualismos tpicos que

    dilaceram o mundo moderno? Para tanto, um parmetro para pr prova o projeto hegeliano

    o exame do xito ou fracasso que Hegel obtm ao tratar uma forma peculiar de dualismo

    representado na auto-alienao do trabalhador, no qual o produtor no se reconhece mais

    frente aos seus produtos, acabando por ser dominado pelos mesmos. Isso pressupe trs

    momentos de anlise. Assim, na seo 3.1, tratar-se- de formular o problema da alienao tal

    como ele foi classicamente formulado por Marx, a fim de, ao ter uma formulao conceitual

    precisa do mesmo e considerando que Hegel o reconheceu, avaliar os alcances da filosofia

    hegeliana no trato do mesmo. De posse desse referencial, buscar-se-, na seo 3.2, visualizar

  • 10

    como Hegel desdobrou a ciso entre sujeito e objeto peculiar ao mundo moderno, cuja

    expresso mxima se d na alienao do trabalhador frente aos produtos de seu trabalho.

    Analisando vrias passagens de Hegel, tanto nos escritos jovens como nos sistemticos,

    demonstrar-se- que Hegel captou com profunda acuidade o abismo que se institui, na

    Modernidade, entre a riqueza e os produtores da riqueza. Contudo, como Hegel enquadrou

    esse problema em seu sistema? Qual a raiz dessas contradies que ameaam romper o tecido

    tico? Quais solues pode haver para essas contradies? Na resposta a essas questes que

    se assenta a radical diferena dos projetos filosficos de Hegel e Marx, a qual ser abordada,

    em seus contornos gerais, na seo 3.3.

    No captulo 4, a presente investigao alar voo sobre os princpios fundamentais do

    cenrio terico no qual se movimenta o problema do trabalho. Sua anlise precisa assumir um

    movimento duplo, econmico-filosfico, na medida em que se concebe esse como uma

    categoria que medeia a constante tenso entre sujeito e objeto e as inmeras implicaes que

    essa tenso possui , em que o sujeito, para perseverar em sua existncia, precisa estar num

    incessante metabolismo com o objeto, seja no nvel do trabalho social, em que desde muito se

    encontra o remdio mais eficaz para a primeira. Isso requer que se compreenda a

    macroestrutura que determina a atividade produtiva, isto , o contexto no qual se executa o

    trabalho. Portanto, o trabalho h de ser investigado a partir de um escopo mais amplo, isto ,

    na forma como cada sociedade organiza sua produo para dar conta dessa tenso

    fundamental entre sujeito e objeto.

    Destarte, para desenvolver essa anlise, torna-se necessrio delinear um panorama geral

    dentro do qual se situa o problema especfico do trabalho. Este pode ser encontrado na

    determinao da natureza da finalidade da produo de mercadorias. Aqui se tm dois

    grandes paradigmas: a produo de mercadorias com nfase no seu valor de uso, como em

    Aristteles (nos gregos em geral ou, ainda, nas sociedades pr-capitalistas) ou a produo cuja

    nfase se assenta na produo de mercadorias para a troca, isto , no valor de troca (nela se

    baseia a reproduo do capital). Esta forma de investigar o conceito de trabalho permite aferir

    a atualidade ou no do referido conceito. Ou seja, se o trabalho perdeu sua centralidade numa

    determinada sociedade como Habermas advoga, por exemplo, com respeito sociedade

    contempornea ou mesmo os economistas neoclssicos, que explicam a gerao da riqueza a

    partir de esquemas conceituais que marginalizam o trabalho ou se o trabalho permanece

    irretocvel como elemento central de compreenso da sociedade e da economia. A partir de

    uma reconfigurao do mundo do trabalho, da classe trabalhadora, a qual pode ser posta sob a

  • 11

    rubrica de classe-que-vive-do-trabalho1, pretende-se demonstrar que o tema do trabalho

    permanece atual.

    1 Conceito que se empresta de Ricardo Antunes, de seu livro Os Sentidos do Trabalho (2003).

  • 1. AS RAZES DO CONCEITO DE TRABALHO EM HEGEL

    1.1. A Filosofia de Hegel como Mediao entre Sujeito e Objeto2

    A tradio filosfica moderna legou, segundo Hegel, uma aporia fundamental. Com

    algumas excees3, a filosofia moderna persistiu num dualismo radical entre sujeito e objeto,

    entre esprito e natureza, como princpio de explicao da realidade4, tanto em sua vertente

    racionalista como na de corte empirista. Deste modo, os sistemas filosficos modernos, como

    os desenvolvidos por Descartes ou Kant, propuseram formas de explicao da realidade

    assentadas numa concepo dualista entre sujeito e objeto, cuja ponte deveria ser construda a

    partir de um terceiro elemento, qual seja: a representao, atravs da qual o sujeito acessaria a

    realidade exterior.

    A superao destes dualismos constitua a pedra-de-toque do movimento terico

    alemo, seja no romantismo, seja na filosofia. Assim, assevera Hlderlin, ser um com o todo,

    est a vida da divindade, este o cu do homem (1954, p. 317). Contudo, esta unidade

    evanesce com o advento do mundo moderno, em que a liberdade no se d mais no

    compartilhamento de uma lei comum, na qual a lei da comunidade pulsa no corao do

    indivduo. Tal liberdade s era possvel na infncia da histria, no mundo grego, cuja

    inocncia se perdeu. Por isso, tanto os autores da literatura quanto da filosofia alem da poca

    exaltaram tanto a bela unidade tica grega, na qual a potncia da unificao imperava. Ora, a

    questo premente, neste caso, parece ser a de postular uma reconciliao entre os opostos,

    entre sujeito e objeto, entre indivduo e comunidade, natureza e esprito, etc. Obviamente, o

    2 Nas citaes feitas no presente trabalho buscou-se seguir, na medida do possvel, as tradues j existentes no

    vernculo. Eventualmente, elas podem ter sofrido pequenas modificaes. Caso contrrio, as tradues

    apresentadas so de responsabilidade do autor. 3 Recorde-se aqui o monismo da substncia nica de Baruch Espinosa, que tanto influenciou os jovens idealistas

    alemes. 4 Michael Forster, em sua obra: Hegels Idea of a Phenomenology of Spirit, dedica um longo captulo discusso

    dos dualismos que perpassam a filosofia moderna, o que numa perspectiva hegeliana se constitui como uma

    doena que precisa ser curada. Diz o autor: nos escritos teolgicos da juventude, Hegel identificou particularmente oito dualismos como distintos e pervasivos dentro da cultura europeia moderna. Quatro desses

    tem a caracterstica de dividir o homem de outros aspectos da realidade, enquanto os outros quatro tm a

    caracterstica, ao menos em parte, de dividir o homem dentro de si mesmo. A seguir, enumera os dualismos que correspondem, respectivamente, aos dois blocos antes mencionados: (i) dualismo que cindem o homem com

    outros aspectos da realidade: diviso entre Deus e o homem e a natureza; a aguda diviso entre homem e

    natureza; a diviso entre indivduo e comunidade e, por fim, a diviso entre o pensamento, o eu e o resto da

    realidade; e (ii) dualismos que cindem o homem em relao a si mesmo: diviso entre fato e volies humanas;

    oposio entre dever e inclinaes; diviso entre virtude e felicidade e, por fim, a diviso entre alma e corpo.

    Para uma exposio mais detalhada, ver Forster (1998, p. 23-42).

  • 13

    projeto hegeliano, na esteira do projeto crtico de Kant, diverge da posio do romantismo

    frente aos dualismos modernos, pois a reconciliao h de ser concretizada com base em

    princpios racionais e no pela sensibilidade.

    Hegel concede que as teorias filosficas modernas, malgrado seus dualismos, impeliram

    o pensamento a alcanar degraus dantes nunca galgados. Contudo, e esse foi o limite

    intransponvel das mesmas em razo dos dualismos e das dicotomias nas quais enveredaram,

    no conseguiram apresentar uma explicao satisfatria da realidade como uma totalidade

    articulada, na medida em que no mediaram satisfatoriamente os polos que fixaram como

    opostos, desde uma exterioridade, instaurada pelo entendimento. A consequncia mais cabal

    destes dualismos foi a instituio de domnios da realidade inacessveis ao conhecimento

    humano, como a coisa-em-si ou Deus ou o desenvolvimento de uma teoria formalista da

    liberdade.

    Isso implica, para Hegel, num claro abandono do propsito fundamental da filosofia,

    que, conforme sua acepo, constitui-se, precisamente, na apresentao e exposio do

    absoluto, que, em logrando xito, d conta de explicar a realidade como uma totalidade

    articulada. Ora, instaurando um abismo intransponvel entre sujeito e objeto, finito e infinito,

    entre o emprico e o racional, chega-se a um cruzamento no qual se forado a abdicar de um

    ou outro caminho, no podendo trilhar concomitantemente os dois.5 Assim, ao se querer

    separar o domnio da razo e da sensibilidade, o esprito da natureza, e se a realizao da

    liberdade algo pertencente ao domnio da razo, a liberdade no pode ser atingida enquanto

    as causas naturais no forem afastadas da determinao da vontade. Resta, assim, uma

    doutrina transcendental da liberdade, cuja efetivao no domnio da empiria incerta.

    Igualmente, no campo da filosofia terica, pode-se afirmar que se o conhecimento depende da

    dadibilidade do seu objeto no espao e no tempo, que ele est, portanto, atrelado finitude, o

    infinito, Deus, no sendo dado no espao e no tempo, inacessvel ao conhecimento

    humano.6

    Para tanto, diferente de Kant e das filosofias transcendentais em geral, que operam num

    dualismo entre natureza e esprito, Hegel desdobra uma noo de temporalidade que h de

    estar incrustada na histria, algo que a filosofia transcendental, particularmente em sua teoria

    5 Este problema Hegel tenciona solucionar com uma concepo de razo que se desdobra na Histria; portanto,

    uma razo dialtica, liberta das dicotomias nas quais as filosofias do sujeito se enrascaram. Assim, a razo e o

    emprico, o inteligvel e o sensvel no mais se opem, mas se entrecruzam. 6 Alis, o prprio problema do tempo um ponto crucial para a investigao em curso, pois uma mediao

    genuna entre sujeito e objeto requer que a atividade do sujeito no seja to somente uma atividade ideal,

    metafsico-moral, mas incida sob um objeto real, concreto, isto , a ao h de ter um grau de realidade, de

    sensibilidade, implicando, assim, sua efetivao na temporalidade histrica.

  • 14

    moral, no comportava. De maneira mais precisa, uma concepo ideal do tempo uma

    pressuposio fundamental da liberdade transcendental. Conforme Arantes, sabe-se que para

    Kant a liberdade do sujeito moral permanece inconcebvel enquanto no se aceita a hiptese

    capital da idealidade do tempo (1981, p. 241). Sendo a liberdade apenas possvel se causada

    por uma causa nuomenal, a causalidade livre, o mundo phoenomenal se torna antpoda da

    liberdade. Deste modo, Kant recobra o lugar da metafsica que, diga-se de passagem,

    evanesceu na Kritik der reinen Vernunft, na qual o conhecimento no pode se desatrelar do

    mundo fenomnico, das determinaes sensveis, pois a dadibilidade do objeto no espao e no

    tempo um pressuposto inelutvel para que seja conceitualizado pelas categorias do

    entendimento.

    Na moral, ao contrrio, o nuomenon determina o phoenomenon. A partir deste vis, a

    metafsica novamente se torna possvel, porque na moral a vontade determinada pelo

    inteligvel e no pelo sensvel, ou seja, a priori, sem remisso experincia, s pulses e

    inclinaes.7 Por isso, a necessidade de uma teoria ideal do tempo, pois qualquer associao

    ao tempo histrico a dadibilidade no tempo sucumbiria novamente a metafsica,

    ressuscitada por Kant na sua filosofia moral, pois no tempo ideal a determinao da vontade

    est livre das circunstncias necessitantes inerentes ao tempo histrico, portanto, das

    ingerncias empricas, que, no domnio do conhecimento, demarcaram os limites da razo

    pura terica.8 Deste modo, o dualismo entre esprito e natureza faz com que, para Kant, a

    razo pura atinja seu ponto de culminncia ao se tornar prtica na filosofia moral.

    Em virtude de seus pressupostos filosficos, Hegel perpetra crticas acerbas contra Kant

    e Schelling, cujas filosofias, mesmo que por vias distintas, conduziram ao mesmo resultado,

    qual seja: a impossibilidade de conhecer, por vias racionais, o absoluto, de modo que so

    teorias inaptas para a realizao da tarefa primignia da filosofia, a saber, a explicao da

    realidade como uma totalidade articulada. Para Kant, essa incognoscibilidade decorre das

    limitaes intrnsecas capacidade epistemolgica do sujeito, que vedam o acesso ao

    7 A discusso da filosofia moral de Hegel e sua relao com Kant no concerne presente investigao. Mas,

    tendo ela alguma aproximao com o tema proposto, vale a pena fazer um breve comentrio a respeito. O que

    vale destacar que, para Hegel, no obstante a vontade moral buscar sempre se autodeterminar desde um

    contedo universal, por isso mesmo inteligvel, ela no prescinde do interesse particular. Com isso, Hegel rompe

    com as oposies que o entendimento estabelece entre universal e particular, indicando uma soluo dialtica

    para o problema. A determinao da vontade no pode ser redutvel ao universal dado pelo sujeito a si mesmo,

    pela razo, sob pena de num puro formalismo (Kant). Tampouco se pode reduzir a determinao da vontade a

    um objetivismo utilitrio, particular, do qual evanesce todo o contedo universal (Bentham, Mill). Isso significa,

    concretamente, que a ao da vontade deixa marcas no espao e no tempo, pois ela se d um contedo, mas este

    contedo no dado a partir de um puro Sollen, mas com base num Sein, numa existncia real, inerente s leis,

    aos usos e costumes que correspondem a um povo determinado. 8 Para uma anlise mais profunda deste complexo e intrincado problema desenvolvido no Idealismo Alemo, ver

    Arantes (1981, especialmente o captulo III, ... O Dia Espiritual do Presente, p. 241 ss.).

  • 15

    conhecimento de Deus, visto que Ele no dado intuio, no podendo, por conseguinte, ser

    conceitualizado pelas categorias do entendimento.

    J para Schelling, a limitao deriva de uma incorreta compreenso da natureza do

    conhecimento do absoluto. O autor de O Idealismo Transcendental associava o acesso

    cognitivo do absoluto intuio intelectual. Ou seja, na relao epistemolgica entre fundante

    e fundado, para no cair num regresso ad infinitum, necessrio estabelecer um princpio

    primeiro9, que no carece de fundamentao.

    Para Schelling, tal fundamento dado imediatamente pela intuio intelectual.10

    Contudo, isto implica importar para o domnio do saber racional, filosfico, pressuposies

    que esto excludas da prpria investigao. Vale dizer que, para Hegel, o projeto

    schellingiano deficitrio, porque um saber efetivo do absoluto no pode estar atrelado a

    qualquer sorte de pressuposies, dentro do que se presume, igualmente, a no plausibilidade

    de ancor-lo em algo que dependa apenas da experincia da conscincia, vista sob o prisma da

    pura subjetividade, da qual se deduz a proposio da identidade, fundamento do saber

    absoluto. A esse propsito, diz Hegel:

    O verdadeiro o todo. Mas o todo somente a essncia que se implementa atravs

    de seu desenvolvimento. Sobre o Absoluto, deve-se dizer que essencialmente

    resultado; que s no fim o que na verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em

    ser algo efetivo; em ser sujeito ou vir a ser de si mesmo (1992, p. 31).

    O conhecimento do absoluto, portanto, exige mediaes. Porm, para haver mediaes,

    preciso negar o ponto de vista estritamente subjetivo mencionado acima. Hegel faz isso ao

    orientar sua reflexo a partir de um pressuposto fundamental bastante original, a saber, o

    processo de ascenso ao conhecimento do absoluto tem como ponto de partida a conscincia

    tal como ela se d no mundo. Mediando-se com o mundo, suprassumindo o aparente dualismo

    entre conscincia e mundo que se acede ao conhecimento do absoluto. Porm, Mas o que

    horroriza essa mediao: como se fazer uso dela fosse abandonar o conhecimento Absoluto

    a no ser para dizer que a mediao no nada de Absoluto e que no tem lugar no

    Absoluto (1992, p. 31).

    A esse respeito, cumpre recordar que a superao dos dualismos nos quais a

    Modernidade enveredou ocupa um lugar central nas discusses filosficas de Hegel desde sua

    juventude. A referida problemtica j se encontra no texto em que ele trata do Direito natural,

    em que o foco das discusses a crtica aos dualismos que imperam na fundamentao do 9 Cf. Schelling (1957, p. 12).

    10 Esta crtica a Schelling vem na trilha da crtica de Hegel ao movimento romntico em geral, que enfocava a

    imaginao, a intuio, como formas possveis de se chegar ao conhecimento do absoluto. No preciso

    acrescentar nada para saber as razes que levaram Hegel a refutar estas tentativas de conhecer o absoluto.

  • 16

    Estado nas teorias polticas modernas, que opem indivduo e Estado, seja nas teorias de corte

    empirista (Hobbes) ou de matiz formalista-transcendental (Kant, Fichte), como tambm no

    Escrito da diferena, em que sustenta a necessidade da Filosofia (Bedrfniss der Philosophie)

    para a superao dos dualismos, pois quando a potncia da unificao desaparece da vida dos

    seres humanos, e as oposies perdem sua relao viva e recproca e se tornam independentes,

    ento surge a necessidade da Filosofia (1958, p. 46). Mas, uma discusso mais definitiva

    entabulada na obra que lanou Hegel no cenrio filosfico do sculo XIX, a saber, a

    Fenomenologia do Esprito. Nesta obra, Hegel intenta apresentar o percurso de formao da

    conscincia comum at a conscincia cientfica, isto , o desdobrar-se do esprito at o saber

    absoluto, no qual o sujeito e o objeto, esprito e natureza, que se determinaram e

    condicionaram mutuamente ao longo de todo o processo fenomenolgico, se identificam.

    Vale salientar que essa unidade, mais precisamente essa identidade entre sujeito e objeto, que

    alcanada no saber absoluto, alcanada no fim do percurso fenomenolgico da conscincia

    e no uma identificao imediata atravs de uma intuio intelectual.

    Com essa nota caracterstica, Hegel se ope s filosofias idealistas precedentes, como a

    de Kant, a qual pressupunha uma investigao sobre as possibilidades do conhecimento

    humano antes do prprio ato de conhecimento, portanto, concebiam o conhecimento como

    meio (Mittel) ou ferramenta (Werkzeug)11

    , de modo que teorizavam sobre a ferramenta do

    conhecimento sem ingressar in media res. Nota Kant, eu denomino de conhecimento

    transcendental todo aquele conhecimento que se ocupa propriamente no com objetos, mas

    com nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve ser possvel a priori

    (KANT, 1956, p. 63).

    Igualmente a empreitada hegeliana afasta-se da filosofia da identidade schellingiana que

    pressupe o A=A, o absoluto como ponto de partida. Ou seja, enreda-se em dificuldades

    medida que quer provar o absoluto, mas quer prov-lo, como se viu, a partir de algo no

    demonstrvel, pressuposto, que a intuio intelectual. Hegel prima pelo saber filosfico e

    isso significa que aquilo que se quer apresentar, isto , o saber absoluto, h de ser feito com

    base numa argumentao racional.

    Aps a parte negativa, de crtica, a tarefa primordial do projeto hegeliano , agora, o de

    demonstrar como possvel conhecer o absoluto. Algumas peculiaridades que cercam a

    exposio fenomenolgica do saber absoluto j so localizveis no prprio texto que prefacia

    o texto da Fenomenologia do Esprito. L Hegel assevera que no faz sentido prefaciar um

    11

    Essa discusso Hegel desenvolve na Introduo da sua Fenomenologia do Esprito.

  • 17

    texto filosfico, porque no possvel expor uma teoria filosfica prescindindo do caminho

    pelo qual se chegou at ela, ou seja, de cindir o resultado do percurso de sua conquista. Disso

    decorre outra tese no menos importante, segundo a qual a verdade sempre o todo, ou que a

    cincia s pode ser apresentada como sistema.12

    S tal tese legitima a pretenso de conhecer o

    absoluto, sancionando, portanto, o projeto hegeliano.

    Ora, o desafio de expor o absoluto se constituir, notoriamente, pela edificao de um

    sistema da cincia, um sistema de filosofia. A Fenomenologia do Esprito ocupa um lugar

    importante nessa empreitada, pois constitui aquilo que a introduo ao sistema13

    . Em outros

    termos, para poder tratar maneira cientfica a exposio do absoluto, necessrio levar a

    conscincia finita ao ponto de vista especulativo (FERRARIN, 2001, p. 66). Importa

    destacar, por ora, a articulao que a Fenomenologia do Esprito possui com as demais obras

    de Hegel, especialmente a Cincia da Lgica, na qual expe, por assim dizer, a gnese lgica

    do conceito do pensamento puro, do pensamento que se pensa a si mesmo diferente da

    gnese fenomenolgica, tal como se sucede na Fenomenologia do Esprito. A esse respeito,

    esclarecedora a formulao de Rosenfield:

    A Cincia da Lgica pressupe a Fenomenologia do Esprito. Esta ltima obra a

    cincia da conscincia em seu aparecer. Tal como ela se faz conscincia de si, razo, esprito e, por ltimo, saber absoluto ou saber puro. Ou seja, a pergunta sobre: qual deve ser o comeo da cincia? Pressupe que o comeo do ponto de vista lgico o resultado de todo um caminho fenomenolgico. A questo

    do comeo, tal como est formulada na Cincia da Lgica tributria do

    desenvolvimento fenomenolgico da conscincia que se vai realizando e

    concretando nas formas mais elevadas do saber, a do saber absoluto que interiorizou

    em si o seu momento fenomenolgico e lgico (2007, p. 158).

    Ora, para a exposio do saber absoluto, que, como se mencionou, objetiva a unidade do

    sujeito e do objeto, do ser e do pensar, h que se percorrer um longo caminho. Avaliando

    criticamente as teorias de explicao da realidade dos sistemas filosficos anteriores, Hegel

    apresenta as contradies que decorrem das tentativas de compreender a realidade baseadas

    num dualismo radical entre sujeito e objeto. Assim, Hegel toma distncia das teorias

    racionalistas ou empiristas do conhecimento, na medida em que seccionam rigidamente

    12

    Na Enciclopdia das Cincias Filosficas, 7, Hegel reitera esse aspecto da totalidade do saber, asseverando

    que a filosofia tambm essencialmente Enciclopdia, na medida em que o verdadeiro somente pode ser como totalidade, e somente atravs da distino e determinao de suas diferenas, a necessidade do mesmo e a

    liberdade do todo; ela , portanto, sistema. 13

    Aqui se d uma polmica que s se mencionar, pois no o ponto fulcral da presente pesquisa, qual seja: no

    pacfico se a Fenomenologia do Esprito uma primeira parte do sistema ou a introduo ao sistema,

    constituindo-se, assim, em motivo de controvrsia. Qual o lugar da Fenomenologia do Esprito no sistema de

    Hegel? Sabe-se que Hegel, na introduo Cincia da Lgica, reitera que a Fenomenologia do Esprito o

    ponto de partida da Lgica, ou seja, a gnese lgica do conceito se desdobra a partir do resultado da gnese

    fenomenolgica.

  • 18

    sujeito e objeto. Ambos so tomados, nessas respectivas teorias, como j dados, constitudos,

    subsistindo independentemente um do outro. Dessa forma, a tarefa que se pe ao pensamento

    filosfico nas referidas teorias a de pensar como possvel articular uma ponte entre essas

    duas esferas. A posio hegeliana diametralmente oposta, pois cabe filosofia no edificar

    uma ponte sobre o fosso estabelecido entre sujeito e objeto, mas aterr-lo, porque um fundo

    falso sobre o qual se move a filosofia, isto , uma questo equivocada.14

    Hegel diverge no que tange a essa fixidez das categorias sujeito e objeto. Dito

    claramente, sujeito e objeto se constituem concomitantemente a partir de uma relao de

    determinaes recprocas. Isso aponta para uma primeira diferenciao radical do ponto de

    vista terico de Hegel em relao s filosofias do sujeito. De fato, isso implica num abandono

    da pretenso de tomar o sujeito em seu isolamento, tom-lo como objeto par excellence da

    investigao filosfica e examin-lo com vistas a estabelecer as possibilidades e os limites do

    conhecimento humano sem minimamente considerar seu vir a ser no mundo.

    Ora, qual teoria filosfica pode dar conta da apreenso do sujeito e do objeto nos termos

    que Hegel os prope? Certamente, aquelas teorias baseadas em categorizaes fixas, que

    partem de uma ciso radical entre sujeito e objeto, so inaptas para tal tarefa, porque se sujeito

    e objeto se constituem a partir de um processo de determinaes recprocas, a ideia de

    movimento, de fluxo, algo intrnseco ideia de processo. Disso decorre, igualmente, a

    necessidade de ao se querer teorizar a relao sujeito e objeto, ter de se dar conta do

    movimento inerente sua constituio, ao seu devir.

    Hegel numa estrutura exposta no Prefcio primeira edio da Cincia da Lgica ,

    para suprassumir o dualismo entre sujeito e objeto e, por conseguinte, as limitaes que se lhe

    seguem, vai ancorar sua filosofia numa lgica dialtica, cuja articulao se d em torno de trs

    momentos fundamentais: (i) o momento do entendimento, que comporta certa ambiguidade,

    na medida em que pode ser visto a partir de um ponto de vista positivo, como antdoto para a

    fluidez reinante nas representaes, como tambm desde uma perspectiva negativa, na medida

    em que, instaurando uma rigidez demasiada, interdita o movimento negativo de constituio

    que inere ao objeto do saber filosfico, (ii) o momento da razo negativa ou o momento

    dialtico e (iii) o momento especulativo ou a razo positiva. Ao articular sua filosofia nesse

    arcabouo, Hegel pode, por um lado, criticar as filosofias do entendimento, redutveis ao

    primeiro momento, no conseguindo se libertar das oposies nas quais enredaram, como

    14

    Para Ferrarin (2001), Hegel, ao conceber a relao sujeito/objeto nesses termos, inverte uma tradio que ou

    afirmava que nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu ou que nihil est in sensu quod prius non fuerit

    in sensu, acenando para sua inseparabilidade fundamental.

  • 19

    finito e infinito, sujeito e objeto, etc. Hegel atribui razo negativa o papel de superar as

    oposies fixas engendradas pelo entendimento sem, contudo, conduzir, ainda, ao

    conhecimento propriamente dito. Ou seja, atua como um solvente que dissolve a fixidez das

    categorias do entendimento; por outro lado, permite ao esprito aceder ao conhecimento

    verdadeiro, pois, quando liberto das oposies rgidas do entendimento, pode percorrer o

    caminho pelo qual o prprio esprito se esfalfou at chegar ao saber absoluto, mostrando que

    o infinito, o absoluto, no seu percurso de efetivao, no est num mundo do alm, numa

    realidade transcendente, como o mundo das ideias de Plato, mas que imanente ao prprio

    finito.

    Um pensamento propcio para capturar esse desenvolvimento da Ideia, o absoluto em

    sua dinamicidade, o pensamento dialtico, que, para Hegel, corresponde filosofia, na

    medida em que ela a cincia especulativa par excellence, que pode perfazer o percurso do

    desenvolvimento do absoluto. E tal exposio exige uma radical inverso da relao entre ser

    e pensar. No pode ser uma articulao executada num tempo ideal, mas que se realiza na

    concretude da histria, portanto, na temporalidade histrica. Neste sentido, o pensamento

    dialtico hegeliano diametralmente oposto ao de Kant, pois se para o filsofo de Knigsberg

    a investigao sobre as capacidades epistmicas do sujeito numa esfera ideal, sem se articular

    com o mundo exterior, com o nvel do ser, era legtima, tal no sucede em Hegel. Ser e pensar

    devem ser mediados num novo patamar.

    Mesmo permanecendo num esquema idealista, numa metafsica do absoluto, a pergunta

    pelo pensar no pode ser abstrada da do ser. Ao contrrio, perguntar pela possibilidade de

    conhecer um objeto, uma realidade determinada, implica, antes, numa pergunta se tal objeto

    ou realidade de fato pensvel. Para tanto, Hegel estrutura seu sistema de filosofia a partir de

    uma Lgica, na qual expe o devir da Ideia pura, as puras determinaes do pensamento que

    se pensa a si mesmo e de uma Filosofia Real, que se organiza em torno de uma Filosofia da

    natureza e de uma Filosofia do esprito, em que as determinaes tanto da natureza como do

    esprito correspondem quelas da Lgica, na medida em que correspondem ao

    desenvolvimento da Ideia absoluta na natureza e no esprito. Neste sentido, o domnio do real,

    a natureza e o esprito so, de certa maneira, participantes de um la Anaxgoras, sendo,

    por essa razo, apreensveis pela Ideia absoluta. Em outros termos, o mtodo e o objeto da

    filosofia, para Hegel, no so, em absoluto, distintos. Assim, afirma Goldmann:

    O pensamento dialtico no pode, com efeito, separar radicalmente o sujeito e o

    objeto, dado que qualquer reflexo sobre o mundo exterior descobre este como

    sendo de uma natureza tal que durante a sua evoluo tornou possvel e talvez at

  • 20

    necessrio o aparecimento da vida e, por conseguinte, da conscincia que o pensa

    atualmente (1978, p. 12).

    necessrio, agora, perscrutar mais de perto o aparato conceitual que torna vivel

    desdobrar uma teoria filosfica constituda nos moldes do pensamento dialtico. Hegel se

    serve de conceitos da tradio terica alem para desenvolver sua filosofia. Assim, o conceito

    de esprito proveniente da tradio do romantismo alemo, em especial de Herder, que em

    sua obra Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit se detm em analisar as

    possibilidades de uma histria da humanidade, em que seja possvel concatenar

    coerentemente suas diferentes etapas a partir de um elo comum o conceito central no

    arcabouo terico hegeliano para compreender como se d esse processo de determinao

    recproca entre o sujeito e objeto, cujo ponto de culminao, sua identificao, o saber

    absoluto. Atravs do conceito de esprito, Hegel apresenta o percurso fenomenolgico da

    conscincia at o saber absoluto, mostrando como o esprito, ao se alienar a si mesmo, isto ,

    ao arrancar a conscincia de sua natureza imediata e elev-la a formas mediatas, conduz

    identidade entre sujeito e objeto. Assim, diferente das teorias racionalistas e empiristas do

    conhecimento, a dialtica hegeliana coloca a tarefa do saber em novos termos: no se trata de

    buscar mediar uma ciso absoluta entre sujeito e objeto, mas de rememorar o percurso

    fenomenolgico, dialtico, cujo ponto de culminncia o saber absoluto, a identidade entre

    sujeito e objeto.

    No sendo o propsito aqui desenvolver um estudo exaustivo sobre a Fenomenologia

    do Esprito, atentar-se- aqui somente queles elementos indispensveis para a compreenso

    do conceito de trabalho (Begriff der Arbeit) na estrutura sistemtica da filosofia de Hegel15

    ,

    pois diferente dos idealistas alemes precedentes, Hegel atribui um papel seminal ao trabalho

    propriamente dito, no obstante, ao fim e ao cabo, o subsuma ao trabalho do esprito16

    .

    Bem entendido, trata-se de esboar como o conceito de trabalho atua para responder s

    aporias modernas decorrentes do paradigma dualista sujeito versus objeto, no qual se

    assentam, e do desenvolvimento de uma teoria monista para aceder ao conhecimento do

    absoluto. Com esse modo de proceder, pretende-se fazer um delineamento mais preciso da

    formao do conceito de trabalho a partir de sua articulao com a problemtica filosfica

    15

    Interessa aqui apresentar, em linhas gerais, como o desdobramento argumentativo da Fenomenologia do

    Esprito abre espao para o conceito de trabalho. Com isso, intenta-se evitar qualquer leitura reducionista da

    obra, destacando as diretrizes da obra e como nelas se insere a categoria que o objeto de investigao do

    presente trabalho. 16

    Aqui o trabalho propriamente dito pode ser visto sob dois momentos: (i) como o trabalho concreto-sensvel

    individual, com o qual o indivduo se produz a si mesmo, e (ii) como um momento especfico do Esprito

    Objetivo, em que o trabalho assume uma forma econmica, de satisfao dos carecimentos.

  • 21

    especfica de Hegel. Tal linha interpretativa a de autores como Arndt (1985)17

    e Washner

    (1999), que interpretam o conceito de trabalho como tendo uma funo sistemtica na

    resoluo dos problemas filosficos que a Modernidade legou, particularmente na superao

    do dualismo entre subjetividade e objetividade (WASHNER, 1999, p. 173). Washner, de

    forma ainda mais incisiva, afirma que, com a categoria trabalho, Hegel encontra um

    princpio que permite efetivar o monismo da Ideia (1999, p. 174).18

    A estrutura do discurso da Fenomenologia do Esprito algo indito na histria da

    filosofia. Precisamente em funo disso, emerge uma gama de discusses sobre a natureza do

    projeto hegeliano da exposio fenomenolgica do saber absoluto. notvel que a obra inicie

    com uma discusso profundamente epistemolgica, que busca dar conta da mediao entre

    sujeito e objeto no que concerne apreenso da realidade pelo sujeito, seja isso no nvel da

    Certeza sensvel, em que a conscincia almeja conquistar o saber imediato da coisa, isto , um

    conhecimento no inferencial, passando pela Percepo, em que se busca subsumir o objeto a

    universais, classificando-o conforme suas propriedades ou, ainda, pela Fora e Entendimento,

    em que se busca articular as oposies das leis e dos fenmenos pelo entendimento.

    A necessidade de suprassumir essas formas de acesso realidade se baseia no fato de

    elas pressuporem um fosso entre sujeito, a res cogitans, e objeto, a res extensa e, mais

    precisamente, de defender a possibilidade do conhecimento do sujeito apenas no mbito da

    res cogitans. Se, para Descartes, esse conhecimento circular do Eu era o caso, em Hegel muda

    o cenrio, pois entre o homem e ele mesmo existe sempre o outro (SANTOS, 1993, p. 11).

    Assim, somente ao satisfazer essa condio primordial que ele pode encontrar-se a si

    mesmo. Alis, Espinosa, em sua tica, foi o primeiro que se contraps a esse dualismo

    cartesiano entre a res cogitans e a res extensa, afirmando sua unidade indissolvel na medida

    em que sendo atributos da mesma substncia, de Deus Deus sive natura , expressam sua

    essncia sob faces distintas. Entretanto, Hegel, no obstante tenha em vista o problema que j

    Espinosa quis resolver, diverge da resposta dada pelo autor da tica, pois este teria ignorado

    que a substncia tambm (essencialmente) sujeito. Sob essa crtica de Hegel doutrina da

    17

    Para Arndt (1985), Hegel, desde sua mudana para Frankfurt, teria assumido o conceito de Hlderlin de

    filosofia da unificao (Vereinigungsphilosophie), a qual contm uma teoria do trabalho como Poiesis. Nesse texto, Arndt quer demonstrar como a apropriao da problemtica de Hlderlin da Vereinigungsphilosophie por

    Hegel fez este desenvolver um conceito prprio de trabalho. 18

    Por isso se chama ateno ao seguinte ponto: o conceito de trabalho em Hegel deve ser analisado (i) a partir

    de sua insero na estrutura sistemtica na filosofia de Hegel e sua funo na resoluo dos problemas por ela

    propostos, dentro do que se situa propriamente uma concepo formadora do trabalho, e (ii) a partir do problema

    especfico do Sistema de carecimentos, no Esprito Objetivo, em que o trabalho opera uma funo precisa para a

    resoluo de problemas de ordem econmica. Mas, tambm, o trabalho em sua acepo econmica no recusa

    uma dimenso formadora que transcende o mbito das relaes de produo.

  • 22

    substncia nica de Espinosa, Deus sive natura, subjaz um aspecto extremamente relevante

    doutrina hegeliana do trabalho, pois se a doutrina da eticidade constitui o ncleo da filosofia

    hegeliana (SANTOS, 1993, p. 39), ou seja, se a instaurao de um mundo moldado com os

    desgnios do esprito, a segunda natureza, o ncleo da filosofia de Hegel, essa s possvel

    se o esprito for concebido no como uma substncia nica, como uma natureza una, mas

    como sujeito que capaz de se dar novas determinaes. O trabalho propriamente dito,

    mesmo se seu sujeito for o trabalho do esprito, portanto, se for um trabalho espiritual, exerce

    uma posio chave nesse percurso de passagem da primeira segunda natureza.

    A interrogao que se coloca agora : como se efetua essa passagem da conscincia para

    a conscincia de si, onde o sujeito no se conhece a si mesmo para conhecer, posteriormente,

    o mundo no mbito da res extensa, mas seu conhecimento, e o conhecimento do mundo, se

    do na suprassuno do dualismo entre sujeito e objeto? A resposta a essa questo comea a

    ser esboada por Hegel num enunciado no qual define o movimento que marca essa

    passagem, a saber, a conscincia de si desejo. Tal formulao tem implicaes

    importantes no que tange ao desenvolvimento posterior da obra Hegel, especialmente no que

    concerne articulao entre sujeito e objeto, pois compreender que a conscincia de si

    desejo significa compreend-la de um modo completamente distinto daquelas teorias

    representacionalistas do conhecimento, que isolavam sujeito e objeto e, na sequncia,

    buscavam erigir uma ponte entre os dois a partir da representao. Assim, ao articular o em-si

    (o subjetivo), o para-outro (o objetivo) e o em-e-para-si, o reconhecimento do subjetivo no

    objetivo, o que acaba por culminar no saber absoluto, Hegel busca descobrir a verdade da

    conscincia de si no mais a partir do prisma de uma subjetividade ou objetividade isolada,

    mas de uma conscincia desejante inscrita no mundo.

    O pressuposto fundamental que Hegel cimenta aqui pode, ento, ser formulado da

    seguinte forma: o Eu no chega sua verdade nem atravs do conhecimento da res cogitans

    (Descartes) nem atravs da mediao da res cogitans com a res extensa quando essa nada

    mais do que o no-Eu posto pelo Eu (Fichte). Disso se segue, ento, que, para Hegel, sujeito

    e objeto, esprito e natureza so dimenses irredutveis uma outra. Ora, se o conhecimento

    do sujeito no pode ser unilateral, a questo essencial , ento, de como se efetiva a mediao

    do eu com seu outro. Precisamente nesse contexto, o conceito de trabalho assume

    proeminncia. o trabalho, mesmo numa estrutura que prioriza o trabalho do esprito, que

    essencialmente sujeito o qual requer os sujeitos particulares e, por isso, o trabalho material

    sensvel , que permite desdobrar a suprassuno do dualismo fundamental que perpassou a

    modernidade filosfica atravs do monismo do esprito. Essa estrutura permite que o esprito

  • 23

    se aliene a si mesmo para, posteriormente, reencontrar-se a si mesmo na objetividade na qual

    ele mesmo se exteriorizou.

    Ainda quanto a Fichte, cumpre assinalar que a doutrina hegeliana do trabalho assume

    desdobramentos distintos. Se verdade que Fichte, no seu intento de suprassumir o dualismo

    entre o Eu terico e o Eu prtico kantiano desdobrou, pela primeira vez, uma teoria da ao,

    na qual o Eu para chegar sua verdade precisa articular-se com o no-Eu, de modo que seu

    conhecimento est, agora, atrelado a uma noo de atividade, essa , ainda, uma atividade

    ideal. O argumento fundamental para isso est justamente no fato de Fichte deduzir o no-Eu,

    pressuposto para o conhecimento do Eu, do prprio Eu. Como se viu, para Hegel, o no-Eu

    no redutvel ao Eu. Disso se seguem consequncias importantes para que a doutrina

    hegeliana do trabalho se afaste da de Fichte, a saber, (i) o trabalho no assume um carter

    formador, tal como Hegel pensa, pois mesmo que Fichte defina o Eu em razo de sua

    atividade, [o Eu] atuante, e quando no atua, assim ele no nada (1971, p. 22), a

    atividade do Eu fichteano no medeia um no-Eu genuno, mas um posto pelo Eu, vale dizer,

    no h uma mediao entre sujeito e objeto, mas uma posio do objeto pelo sujeito, e (ii)

    quando entra em cena o trabalho propriamente dito, Fichte no desdobra as especificidades

    do trabalho na vida econmica, baseando sua anlise no contexto da explicitao das relaes

    de contrato, em que o pressuposto bsico a efetivao da determinao fundamental do ser

    humano: a liberdade. Na sua teoria da liberdade, exposta nos Fundamentos do direito natural

    conforme os princpios da doutrina da cincia, de 1796, ou seja, que se ancora nos

    pressupostos da relao entre Eu/no-Eu desdobrados na Doutrina da cincia, a liberdade

    concebida como pressupondo outros seres que busquem a liberdade. Precisamente neste

    cenrio que Fichte, ento, define a liberdade como o poder viver, em que a conduta de cada

    Eu no interdite esse direito fundamental, que deve ser assegurado pelo Estado. Se o poder

    viver uma caracterizao importante da liberdade, tambm o trabalho (o direito a

    trabalhar) deve ser assegurado a todos os indivduos, pois cada um deve poder viver de seu

    trabalho, diz o axioma posto. O poder viver est assim condicionado pelo trabalho, e no

    existe tal direito onde esta condio no foi preenchida (FICHTE, 1971, p. 213-214). O

    trabalho , ento, o pressuposto fundamental para o desdobramento das relaes de contrato.

    Uma ltima considerao: se no delineamento da problemtica sujeito/objeto a obra de

    Hegel referida at agora foi a Fenomenologia do Esprito, esta estrutura subjaz em maior ou

    menor grau s outras obras de Hegel. O 10, da Introduo Filosofia do Direito,

    particularmente importante. Diz Hegel: Esse contedo, ou a determinao diferenciada da

    vontade, , inicialmente, imediato. Assim a vontade apenas livre em si ou para ns, ou, de

  • 24

    maneira geral, a vontade em seu conceito. Somente quando a vontade tem a si mesma por

    objeto, ela para si o que ela em si. Essa estrutura, como ser visto adiante, serve de base

    para que tambm na esfera do Esprito Objetivo o trabalho possa ser analisado a partir da sua

    dimenso formadora.19

    1.2. A Influncia da Economia Poltica Moderna no Projeto Filosfico de Hegel

    A assimilao do conceito de trabalho na tradio filosfica do Ocidente como um

    conceito que denota um sentido positivo requereu um longo perodo de maturao20

    .

    Especialmente na vertente oriunda da tradio judaico-crist, o trabalho denotava antes uma

    punio, uma negao, do que propriamente uma via de realizao, de afirmao do ser

    humano. Preste-se ateno aqui, por exemplo, s palavras que Deus dirigiu a Ado quando da

    expulso deste do paraso: de agora em diante havers de viver do suor do teu rosto

    (Gnesis, III, 19), ou seja, do trabalho. Assim, em contraposio a uma vida plena, abenoada

    por Deus, num gozo absoluto da vida no paraso, o ser humano, com sua queda, foi punido

    pelo criador com a obrigao do trabalho.

    Mas no s no contexto da tradio religiosa que se encontra uma acepo

    predominantemente negativa do trabalho. Na filosofia poltica grega21

    , especialmente tal

    19

    A presente pesquisa enfatiza muito a dimenso formadora do trabalho. Por isso, cumpre no olvidar que essa

    dimenso especfica do trabalho, ao menos na posio terica aqui adotada, perpassa vrias obras de Hegel, e

    aparece em momentos distintos da sua sistemtica filosfica. Por essa razo, eventuais passagens de um contexto

    para outro sempre devem ser lidas luz do problema em questo e no como intromisses indevidas. 20

    Uma breve digresso filolgica pode ser til para elucidar essa questo. O vocbulo grego que significa

    trabalho , que significa esforo, fadiga, punio e o termo latino tripalium, que era um instrumento de tortura. Caso se admitir que a lngua a expresso mxima de uma cultura, fica evidente como o trabalho era

    visto seja na cultura grega, seja na cultura latina. 21

    Em filosofia, todas as afirmaes demasiado gerais portam seus problemas. No deixa de ser assim quando se

    afirma que no mundo cultural grego no se reconhecia a dignidade do trabalho. Pois, na prpria antiguidade grega ouvem-se vozes que discordam dessa atitude depreciativa em relao ao trabalho produtivo e s artes

    mecnicas. Assim, por exemplo, o poeta Hesodo, em Os trabalhos e os dias (302-313), v no trabalho humano

    um significado que ultrapassa o seu sentido estrito utilitrio, posto que, em sua opinio, tem um valor de

    redeno e, por outro lado, agrada aos deuses e, ao criar riquezas, proporciona independncia e glorifica (SNCHEZ VZQUEZ, 1968, p. 24). Neste sentido, h que se pontuar aqui uma profunda distino entre o

    mundo de Hesodo e o mundo homrico. Hesodo, membro de uma comunidade de agricultores, v o trabalho

    num sentido positivo, pois assegura a conquista dos bens indispensveis para a vida feliz. J para Homero, ao

    traar um rgido fosso entre o Olimpo e a comunidade humana, idealizando aquele, em especial no que concerne

    aos banquetes e festas dos deuses sem, contudo, terem de trabalhar para tais gozos, v o trabalho, a necessidade

    do trabalho, como caracterstica definidora da condio humana. Para uma discusso detalhada dessas questes,

    vale a pena ver as obras de Rodolfo Mondolfo, La Compreensin de Sujeto Humano en la Cultura Antigua, em

    especial o ltimo captulo, e de Felice Battaglia, Filosofia del Trabajo, especialmente o captulo II. Isso significa

    que a no estava completamente ausente do mundo grego. Obviamente no era a concepo predominante.

  • 25

    como desenvolvida na Poltica de Aristteles22

    , o trabalho visto de forma profundamente

    negativa, pejorativa, na medida em que conflita com a realizao da liberdade, que, para a

    tradio da grega, constitui o objetivo supremo que o ser humano entenda-se aqui o

    homem livre deve alcanar.23 Ora, se trabalhar significava permanecer vinculado ao nvel

    elementar da satisfao das necessidades naturais, significava, igualmente, que aquele que

    trabalhava no podia ser livre, ao menos no sentido aristotlico, porque estava alijado da

    participao dos assuntos da , o que precisamente caracteriza a liberdade. Ou seja, se a

    glria da vida est na esfera pblica, na discusso dos destinos da e no na esfera de

    resoluo de problemas privados, como o caso da satisfao das necessidades vitais,

    precisamente a vida pblica que o ser humano deve ambicionar24

    .

    Deste modo, a condio bsica para algum ser livre e participar ativamente da vida da

    a insero de um terceiro elemento entre ele, o sujeito, e a natureza, para, de algum

    modo, satisfazer seus desejos e suas necessidades naturais sem, contudo, trabalhar. Por isso,

    na acepo de Aristteles, o escravo um simples instrumento mediante o qual os homens

    livres medeiam a natureza com vistas satisfao de suas necessidades, que, diga-se de

    passagem, inerem sua existncia enquanto humanos, de tal modo que elas inelutavelmente o

    acompanham enquanto perseverarem em sua existncia. Este era, em geral, o argumento

    mediante o qual se legitimava a escravido por parte daqueles que se declaravam os

    cidados/livres.

    Essa viso negativa que acompanhou o conceito de trabalho no decorrer do mundo

    greco-medieval, assim como tantas outras, passa por importantes transformaes nos albores

    da Modernidade. Em grande parte, essa mudana se deu em funo da nova forma de

    compreender a relao entre o sujeito e o mundo, referida anteriormente. Neste sentido,

    crucial lembrar que essa mudana se deve, em larga medida, mudana da concepo de

    cincia ou de conhecimento, em especial no tocante aos fins que se almeja com os mesmos,

    22

    Aristteles, em 1252 b, escreve que fora dessas duas relaes entre o homem e a mulher e entre o senhor e o escravo, o que primeiro deve ser erguido a famlia, e Hesodo est correto quando diz primeiro uma casa e mulher e depois um boi para o arado, pois o boi o pobre homem escravo. 23

    Tambm em Plato a atividade prtica sistematicamente desvalorizada. Plato, alis, teve a inteno radical

    de reduzir a prtica teoria. Fracassando este intento, centrou-se integralmente na teoria. Assim, o tem, em ltima instncia, supremacia sobre o , sendo a teoria, a contemplao, o que deve ser buscado como ideal de realizao, relegando a vita activa a um segundo plano. 24

    Interessante observar aqui a relao entre o pblico e o privado na Poltica aristotlica. Ao privado, o qual

    abarcava a economia, era concedido um papel secundrio em relao poltica, ao pblico, que era precisamente

    o domnio em que os seres humanos buscavam realizar sua liberdade. Por essa razo a hierarquia explcita entre

    poltica e economia, entre o pblico e o privado.

  • 26

    que marca decisivamente a Modernidade. Essa inflexo expressa por Descartes25

    numa

    passagem bastante importante do seu Discurso sobre o mtodo, quando afirma que:

    Em lugar da filosofia especulativa ensinada nas escolas, possvel encontrar uma

    prtica por meio da qual, conhecendo to claramente a fora e a ao do fogo, do ar,

    dos astros, do cu e de todos os demais corpos que nos rodeiam como conhecemos

    os mais variados ofcios de nossos artesos, poderamos aproveit-los da mesma

    maneira em todos os usos adequados e, desse modo, nos convertermos em donos e

    possuidores da natureza (1974, p. 71).

    O que importa sublinhar, nesta passagem do Discurso do mtodo, a inverso efetuada

    no que concerne postura que, no perodo renascentista-moderno, o ser humano assume

    frente ao universo. O ser humano deixa de ser um mero expectador dos fenmenos csmicos,

    um como Tales de Mileto, que ao observar as estrelas caiu num buraco,

    tornando-se motivo de risada para sua serva para assumir o papel de agente transformador

    no novo cenrio que se instaura, isto , um . Em relao filosofia aristotlica,

    essa nova concepo da relao homem/mundo acarreta, num primeiro momento, uma

    transformao da concepo de cincia note-se que Descartes direciona sua crtica

    filosofia especulativa das escolas, que era exatamente a filosofia de matriz aristotlica e, por

    conseguinte, engendra mudanas substantivas no modo de compreender o trabalho, a

    atividade prtica.26

    Diferente de Aristteles, Descartes no concebe mais somente o saber contemplativo

    como estando no topo da hierarquia dos saberes, como um saber que deve ser buscado por ele

    mesmo, sem nenhum condicionante no que tange aplicao prtica. No ensejo dessa

    inverso vem tambm aquela concernente ao trabalho, pois se agora, para o filsofo da

    Modernidade, encarnado por autores como Bacon, Descartes, etc., o saber que deve ser

    buscado deve ter implicaes no que diz respeito relao do ser humano com o mundo,

    25

    Para Santos (1993), a discusso acerca da autoproduo do homem pelo trabalho perpassa a histria da

    filosofia moderna de Descartes a Marx. Para isso, a valorizao do trabalho sobre o dado natural assume uma

    dimenso to precpua. Cf. p. 13-14. 26

    Contudo, no se deve ter a iluso de que a Modernidade afastou, logo, em sua totalidade, as concepes

    negativas vinculadas ao trabalho. Da Vinci, por exemplo, d uma mostra peculiar como este processo foi

    dificultoso, pois para defender a grandeza da arte, isto , de afast-la de aproximaes com o trabalho manual,

    foi forado a desenvolver toda uma teoria mostrando que a arte, antes de qualquer coisa, trabalho intelectual.

    Assim, no incio da Modernidade, foi necessrio todo um percurso para instituir uma genuna valorizao do

    trabalho, sem excees. Conforme Snchez Vzquez, Giordano Bruno, por exemplo, pensa que o trabalho torna possvel a existncia de um reduzido grupo de sbios ou heris contemplativos. A contemplao de Deus, por

    conseguinte, no est ao alcance de todos os mortais. Thomas Morus, em sua Utopia, estende a obrigatoriedade

    do trabalho fsico a todos os membros da comunidade, mas subtrai dela um punhado de cidados que devem

    dedicar-se especulao e cincia. Campanella, em sua Cidade do Sol, que empreende a tentativa mais

    vigorosa para superar a oposio entre o trabalho fsico e o intelectual, entre a contemplao e a prxis material

    produtiva. Nele, o trabalho j no aparece como condio necessria para que um grupo privilegiado de homens

    possa elevar-se a um estado superior: a contemplao. Todos o compartilham por igual e, por isso, todos esto

    em igualdade de condies para dedicar-se a atividades propriamente espirituais (1968, p. 28-29).

  • 27

    corroborando no domnio do ser humano sobre a natureza, h que se inquirir, igualmente, o

    modo mediante o qual a teoria pode ser transmudada para o domnio da prtica. O conceito de

    trabalho surge, assim, como um candidato qualificado para mediar a passagem da teoria, da

    cincia, para a prtica, porque ele viabiliza a concretizao do domnio humano da natureza,

    preconizado por Descartes. Ferrarin, aproximando a referida discusso com a filosofia

    hegeliana, comenta essa passagem dizendo que:

    Como bem conhecido, a dramtica mudana na relao entre a humanidade e a

    natureza nos primrdios da Modernidade vai passo a passo com a redefinio da

    cincia e da filosofia. No podemos resumir essa mudana no reverso do mote

    tomstico operari sequitur esse (o agir segue o ser). Enquanto para Aristteles o

    mundo da produo era subordinado prtica, assim o reino da liberdade e da

    produo no podia pretender mudar a natureza, mas no mximo imit-la, para a

    moderna arte tornar-se instrumento para a libertao da humanidade da natureza.

    Embora Hegel no seja Hobbes, Descartes ou Bacon, para os quais a arte, em sua

    superioridade sobre a natureza precisa conquistar ou neutralizar a natureza atravs

    do Leviat poltico ou atravs da cincia, Hegel completa a dissoluo da tradicional

    tripartio aristotlica. Produo e atividade tornam-se dois lados da auto-

    objetificao histrica do esprito que so unificadas no conceito de trabalho. E a

    negao de um imediato dado a definio hegeliana para ambos: o trabalho e o

    pensamento eles mesmos (2001, p. 96).

    Contudo, isso ainda no explica em sua integralidade o que leva Hegel, na esteira da

    tradio moderna, a elaborar em seu sistema filosfico uma acepo positiva do trabalho,

    conferindo-lhe um significado ontolgico fundamental27

    , tal como tambm Marx o faz.28

    Pois,

    como assevera Mszros, com Hegel a atividade se torna um conceito de importncia

    crucial, destinado a explicar a gnese e o desenvolvimento humanos em geral (2009, p. 86).

    Ou seja, mais do que simplesmente explicar a produo do ser humano pelo trabalho, explica

    o prprio ser humano a partir de sua constituio originria. E ao ser um ser com tal e tal

    constituio, permite que se crie desta e daquela maneira. Precisamente nesse sentido que a

    27

    fundamental observar a importncia que essa conceitualizao possui, pois com ela pretende-se evitar uma

    leitura meramente antropolgica do conceito de trabalho, o que, alis, muitas vezes foi o caso na interpretao

    da Dialtica do senhor e do escravo da Fenomenologia do Esprito. Colocando o problema do que seja a correta

    relao entre ontologia e antropologia numa perspectiva marxiana, Mszros afirma que [...] nesse contexto, a profunda percepo de Marx sobre a verdadeira relao entre antropologia e ontologia da maior importncia.

    Pois s h uma maneira de produzir uma teoria histrica geral e coerente sob todos os aspectos, ou seja, situando

    positivamente a antropologia num quadro ontolgico geral adequado. Se, porm, a ontologia subsumida sob a

    antropologia [...] nesse caso, princpios antropolgicos apreendidos unilateralmente, que deveriam ser explicados

    historicamente, tornam-se axiomas autossustentados do sistema em questo, e solapam sua historicidade. Nesse

    aspecto, Feuerbach representa um retrocesso em relao a Hegel, cuja abordagem filosfica evitou no todo a

    armadilha de dissolver a ontologia dentro da antropologia (2009, p. 45). 28

    Obviamente esse ponto pode suscitar as mais variadas discusses. Mas naquilo que nos interessa enfatizar

    aqui, entende-se o trabalho como tendo um significado ontolgico fundamental quando se compreende o

    trabalho como um aspecto constitutivo da formao do ser humano, a partir do qual possvel explicar sua

    gnese, seja como indivduo, seja como gnero. Isso significa ter uma compreenso do ser humano despida de

    certos essencialismos, mas que este aquilo que vem a ser a partir da mediao que realiza com o mundo, seja

    com os seres puramente naturais ou seres conscientes de si. neste sentido que se compreende o trabalho em

    seu sentido ontolgico.

  • 28

    antropologia deve ser circunscrita dentro de um quadro geral de uma ontologia, o que

    viabiliza fazer uma histria sistemtica do gnero humano, dentro da qual as implicaes

    antropolgicas devem ser analisadas.

    Com o fito de explicitar a originalidade do conceito hegeliano de trabalho, pode-se

    aludir ao tratamento dispensado por Locke, no captulo V de seu Segundo Tratado, ao

    conceito de trabalho. Locke articula o conceito de trabalho sua tentativa de justificar a

    propriedade privada. Ou seja, de justificar como possvel de uma posse comum, dada pela

    natureza fruio de todos os seres humanos, instituir a restrio do usufruto de bens de uns

    em relao aos outros, isto , como se pode falar do meum e do tuum justificando, assim, a

    propriedade privada?

    O argumento lockiano vai se desdobrar no sentido de demonstrar que no obstante essa

    inexistncia do meu e do teu nos primrdios da humanidade, no status naturalis, tal distino

    se torna vivel na medida em que os seres humanos nascem com a capacidade de trabalhar

    da mesma forma que no nascem com as ideias, mas com a capacidade de apreend-las. Com

    o trabalho, ao se elaborar aquilo que dado pela natureza ao usufruto de todos, institui-se algo

    no natural. Ora, sendo algo criado por algum, aquele que trabalhou adquire o direito de

    usufruir o produto de seu trabalho. Desta forma, o trabalho aparece, em Locke, como aquela

    instncia legitimadora da propriedade privada. Ou seja, aquele elemento natural no qual se

    misturou o trabalho, o trabalho de ao menos um ser humano, no mais propriedade de

    todos. O trabalho, portanto, engendra uma clivagem entre os bens comuns e o meu e o teu, a

    propriedade privada. Assim, Locke no se afasta da tradio moderna que carrega o conceito

    de trabalho com uma carga semntica positiva, porm, ao reduzir o trabalho legitimao da

    propriedade no contempla aspectos cruciais para uma completa compreenso, ou melhor,

    para a ampliao da carga semntica positiva em torno do conceito de trabalho.

    Hegel indubitavelmente leva a srio todos esses desenvolvimentos proporcionados pelos

    autores modernos no tocante ao desdobramento do conceito de trabalho29

    . Mas, em virtude

    desses autores circunscrevem suas doutrinas do trabalho a um espectro bastante circunspecto,

    como, por exemplo, a justificao da propriedade privada, de se pensar que o autor da

    Fenomenologia do Esprito viu-se lanado ao desafio de encontrar o aporte conceitual para

    29

    A explicitao de algumas teses importantes acerca do conceito de trabalho na economia poltica e sua

    influncia em Hegel no deve levar interpretao de que o conceito hegeliano de trabalho pura e

    simplesmente uma importao do conceito de trabalho da economia poltica. notrio que a problemtica da

    economia poltica, a qual ainda ser objeto de estudo, que aparece sob a rubrica de sistema de carecimentos,

    central na filosofia hegeliana do Esprito Objetivo. Ao se falar em influncia, o que se intenciona aqui

    fundamentar um conceito positivo de trabalho, o que o caso na economia poltica. Com isso, no se ignora a

    especificidade do conceito de trabalho no sistema de Hegel.

  • 29

    ampliar o escopo do significado do conceito de trabalho, em sua filosofia, num outro ramo da

    cincia. A hiptese que se sugere que tal aporte terico Hegel encontra na cincia

    econmica moderna30

    , especialmente em pensadores como Steuart, Fergunson, Hume, Smith

    e Ricardo31

    .

    A ideia fundamental que perpassa o sentido que o conceito de trabalho assume na

    economia poltica clssica, que Hegel adota com as devidas alteraes, a ideia de produo,

    de criao, que, no caso dos economistas polticos, diz respeito riqueza. Este aspecto

    iluminado quando se arrola, na argumentao em questo, para a inverso j salientada que o

    conceito de trabalho sofre na Modernidade. Para os gregos, aquilo que era praticado com

    vistas obteno de um fim que lhe era intrnseco, como, por exemplo, a atividade

    contemplativa, a , ou a ao moral ou poltica, a , era mais nobre do que aquilo

    que era realizado com o propsito de criar algo extrnseco, um produto, cuja finalidade no

    era dada pela prpria ao, mas no produto engendrado na exterioridade, isto , a .

    Portanto, a estava hierarquizada acima da , mas subordinada .

    Ora, a referida estrutura conceitual tpica do mundo grego frontalmente oposta quela

    desenvolvida pelos economistas polticos modernos. Aquela ao que valorizada, nobre, no

    seio da Modernidade, objeto da teoria dos economistas modernos, aquela atividade que gera

    algo exterior, um produto no sentido pleno do termo. Alis, a quantidade de trabalho

    produtos acumulado por uma nao que permite aferir sua riqueza. O conceito que Adam

    Smith utiliza para formular estes tipos de trabalho o de trabalho produtivo contraposto ao

    trabalho no produtivo32

    . Ou seja, o trabalho produtivo, o que valorizado, aquele que gera

    riqueza, bem entendido, produtos. Assim, quanto mais trabalhadores uma nao tiver

    tanto mais rica ser. Quanto mais mdicos, filsofos, ou homens

    virtuosos, mas no produtivos , tanto mais pobre ser.

    30

    Sobre essa relao de Hegel com a economia poltica, cabe considerar a originalidade e o pioneirismo

    hegeliano. Assim, afirma Avineri: Alone among the German philosophers of his age, Hegel realized the prime importance of the economic sphere in political, religious and cultural life and tried to unravel the connections

    between what he would later call civil society and political life (1972, p. 5). 31

    Na linha de interpretao aqui seguida, a remisso aos temas de ordem econmica, que Hegel trata

    especificamente na sua filosofia do Esprito Objetivo, no significa uma intromisso na ordem de exposio.

    Quanto a esse ponto, a Fenomenologia do Esprito e a Filosofia do Direito tem uma afinidade importante no que

    toca a dimenso formadora do trabalho. Por isso, na prpria Filosofia do Direito, na anlise hegeliana da

    sociedade civil-burguesa, o trabalho no redutvel a uma categoria puramente econmica. Quanto a isso, ver

    especialmente o 197. Esse ponto de vista analtico tambm adotado por Jarczyk (1984). 32

    Sobre esse ponto, h uma discordncia terminolgico-conceitual entre Smith e Say. Enquanto para este o

    trabalho do mdico trabalho produtivo imaterial, pois indica o que deve ser feito para o paciente ficar curado e de fato ele fica curado, o que prova a eficcia do trabalho mdico, aquele assevera que improdutivo, pois s

    pode ser produtivo aquele trabalho que gera produtos exteriores, que podem ser acumulados, e no uma bula.

  • 30

    Posto esse esquema conceitual, urge inquirir qual a questo angular a partir do qual se

    desdobram as investigaes da economia poltica. Isso pode ser feito nos seguintes termos:

    como, dada a constatao de que a natureza, no obstante as necessidades e os desejos que

    incutiu no ser humano, e no tendo provido o mesmo com os meios proporcionalmente

    necessrios para a satisfao desses desejos e necessidades, este pode, ainda assim, levar uma

    vida de prazer e felicidade, satisfazendo seus carecimentos? Vale dizer, como possvel

    satisfazer suas demandas advindas tanto do estmago quanto da fantasia, se essas so muitas e

    os recursos disponibilizados para sua satisfao no so dados imediatamente? Este um

    problema que permanece no centro do debate filosfico-econmico dos autores do scottish

    entlightenment. David Hume, em seu Tratado da natureza humana, tem um modo peculiar de

    formular este problema e lhe dar uma resposta sui generis. Afirma ele que:

    De todos animais que povoam o globo no h nenhum para com o qual a natureza,

    segundo parece primeira vista, tenha exercido mais crueldade do que para com o

    homem, pela quantidade infinita de carncias e necessidades com que o encheu, e

    pela fraqueza dos meios que lhe concedeu para satisfazer essas necessidades. Nas

    outras criaturas, estas duas circunstncias geralmente compensam-se. Se

    considerarmos o leo como animal voraz e carnvoro, descobrimos facilmente que

    tem grandes necessidades; mas, se dirigimos o nosso olhar para a sua constituio e

    modo de ser, a sua agilidade e coragem, as suas armas e fora, verificaremos que as

    suas vantagens esto em proporo com as suas necessidades. [...] s no homem

    que se pode observar no mais alto grau de perfeio, esta conjuno antinatural da

    fraqueza e da necessidade. [...] apenas atravs da sociedade que ele capaz de

    suprir essas deficincias e elevar-se igualdade com as outras criaturas e mesmo

    adquirir superioridade sobre elas. [...] quando cada pessoa individual trabalha

    isoladamente e s para si, as suas foras so demasiado fracas para executar um

    trabalho importante; e como as suas foras e o seu xito so sempre iguais, o menos

    deslize num ou noutro desses pontos ser necessariamente acompanhado de

    inevitvel catstrofe e desgraa (2002, p. 559-560).

    Quem tambm postulou esta questo e lhe deu uma resposta num nvel mais abstrato e

    que se aproxima significativamente de Hegel, inegavelmente foi outro autor do scottish

    entlightenment, a saber, Fergunson, em sua obra An Essay on the History of Civil Society, que

    afirma, na seo IX da obra Of National Felicity, que:

    Man is, by nature, the member of a community; and when considered in this

    capacity, the individual appears to be no longer made for himself. He must forego

    his happiness and his freedom, where these interfere with the good of society. He is

    only part of a whole; and the praise we think due to his virtue, is but a branch of that

    more general commendation we bestow on the member of a body, on the part of a

    fabric or engine, for being well fitted to occupy its place, and to produce its effect. If

    this follow from the relation of a part to its whole, and if the public good be the

    principal object with individuals, it is likewise true, that the happiness of individuals

    is the great end of civil society [grifo meu M.S.]: for in what sense can a public enjoy any good, if its members, considered apart, be unhappy? The interests of

    society, however, and of its members, are easily reconciled [grifo meu M.S.]. If the individual owe every degree of consideration to the public, he receives, in

    paying that very consideration, the greatest happiness of which his nature is capable;

    and the greatest blessing that the public can bestow on its members, is to keep them

  • 31

    attached to itself. That is the most happy state, which is most beloved by its subjects;

    and they are the most happy men, whose hearts are engaged to a community, in

    which they find every object of generosity and zeal, and a scope to the exercise of

    every talent, and of every virtuous disposition.

    Basta prestar ateno na citao de Fergunson para perceber o quo o Essay adianta

    alguns tpicos centrais da filosofia hegeliana, como a prpria ideia de civil society

    (brgerliche Gesellschaft) ou a mtua satisfao do interesse universal com o interesse

    particular, matizada pela ideia de reconciliao. Assim, tal qual Hegel, Fergunson um autor

    moderno, que respeita as conquistas do indivduo na Modernidade, a liberdade da vontade

    subjetiva, ao mesmo tempo em que acentua essa dimenso social da satisfao dos

    carecimentos.

    A remisso ao movimento terico do scottish entlightenment foi efetuada aqui, pois

    ele permite pensar um problema bastante obscurecido, talvez negligenciado, na reflexo

    filosfica moderna at ento, a saber, a compreenso do indivduo e sua realizao articuladas

    a partir de sua relao com a comunidade poltica, realando, novamente, a dimenso social

    do ser humano. A filosofia poltica moderna, centrada numa oposio demasiada a

    Aristteles, devido s mudanas j aludidas que vieram tona com o devir do mundo

    moderno, buscou seu fundamento exclusivamente no indivduo. Na reflexo filosfica sobre a

    poltica, isso teve por consequncia que a pedra-de-toque da reflexo fosse an