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emanuel dimas de melo pimenta

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Hans Joachim Koellreutteras revoluções musicais de um mestre Zenemanuel dimas de melo pimenta

2010Primeira edição, 2010

www.emanuelpimenta.netwww.asa-art.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida, em qualquer forma, sem prévia autorização escrita dos detentores dos direitos autorais. Copyrights das imagens: dos seus autores. Direitos reservados.

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em memória de Roti Nielba Turin

A filosofia não é um jantar de gala. Nem um guia de boas maneiras. Nem uma panaceia antidepressiva. A filosofia é uma batalha, um face-a-cara com os nossos desafios íntimos e últimos: a preocupação com a verdade e com a mentira, o teste de moralidade, o fogo do amor, o desafio de sobreviver. No ringue, dois pesos pesados do pensamento: Sócrates, o inventor de uma sa-bedoria Ocidental e desenraizante, (...). Heidegger, filósofo e nazi, e, paradox-almente, reverenciado em todas as universidades do mundo, morreu na sua cama. Duas maneiras de existir e pensar, dois compromissos inconciliáveis.

André Glucksmann

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Introdução 5Manifesto Oswad de Andrade 71 382 783 1144 1465 1776 2217 2468 2699 30510 32811 34812 38713 41414 43515 46916 49317 537Estética 555Música do Século XX 605Brevebibliografia 629Índiceonomástico 631Brevebiografiadoautor 637copyrights 641

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Eutinhapoucomaisdevinteanosde idadequandocomecei a estudar com Hans Joachim Koellreutter.Rapidamenteficamosamigosparatodaavida.

Em1983prometiaelequeescreveriaumlivrosobrea sua vida – mas isso apenas poderia ser feito depois da sua morte, obrigou-me a prometer.

Hácincoanos,Koellreutterdesaparecia.Elecompletarianoventa e cinco anos de idade neste ano de 2010.

Este livro começa com um manifesto do grande escritor epensadorBrasileiroOswalddeAndradeque,emboratenhasidoescritodezanosantesda chegadadeKoellreutteraoBrasil, ilustrao ambiente intelectualque tantoo fascinou.TerminacomumpensamentodofilósofoSuíçoRenéBerger,escritonoiníciodoséculoXXI.Cercadeumséculoseparamos dois pensamentos.

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Depois, há dois dos seus cursos anotados por mim no ano de 1981 – Introdução à Estética e Panorama da Música do Século XX.Aquelescursoseramestruturadosempensamentos, elementos pontuais, que desencadeavamdebatesereflexões.Assim,nãosetratadeumtextodescritivoe linear.

EstelivroédedicadoàmemóriadeRotiNielbaTurin,genialmestra,importantepersonagemnomundosemióticoeparaalémdele,minhaprofessoraedetantosmais,combatidapelosseuspares,tambémelasempreinesquecível.

Trata-sedeumlivroescritoapartirdeanotaçõesedememória.Assim,ele tambémacontecepor saltos.Apenasum pequeno sinal de amor a um grande e inesquecívelmestre e amigo.

Emanuel Dimas de Melo PimentaNova York 2010

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Oswald de AndradeManifesto Antropofágico

1928

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os colectivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi*, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos

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suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reacção contra o homem vestido. O cinema Americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande*.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem colecções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada.

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A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraíba*. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direcção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contacto com o Brasil Caraíba. Oú Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

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Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar Brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

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Contra o mundo reversível e as ideias objectivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou

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figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti.

Imara Notiá.

Notiá Imara.

Ipejú*.

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me

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respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagónicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: - É mentira muitas vezes repetida.

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Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti*.

Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci* é a mãe dos viventes. Jaci* é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de imaginação + sentimento

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de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objectivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos Portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

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Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males

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identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna electivo e cria a amizade. Afectivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsemos a dinastia. É preciso expulsar o espírito Bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

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Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

* Tupi - O tupi é uma língua indígena extinta, originária do povo tupinambá, que teve sua gramática estudada pelos jesuítas, e que deu origem a dois dialectos, hoje considerados línguas independentes: a língua geral paulista, e o nheengatu (língua geral Amazónica). Esta última ainda é falada até hoje na Amazónia.

Caraíba- (Do tupi “Kara ‘ ib” (sábio, inteligente) ) é o nome de duas pequenas árvores, Cordia calocephala e C. insignis da família Boraginaceae de casca tuberosa que produz pequenas flores amareladas com os lábios inferiores estriados em vermelho, também conhecida como Carobeira, Caraúba do Campo e Para-Tudo. Ocorre em regiões de pouca densidade vegetal da Floresta Amazónica, nos campos baixos da Ilha de Marajó, e também no sul do Pantanal Matogrossense. É tida como indicação segura de solo fértil. Sua madeira possui excelentes qualidades para várias aplicações, razão do seu nome popular “Para-tudo”.

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Catiti – na teogonia Tupi é a Lua Nova e também o despertar do amor.

Catiti Catiti. Imara Notiá. Notiá Imara. Ipejú, em Tupi, poderá ser traduzido como “Lua nova, ó lua nova! Assoprai nele as minhas lembranças”.

O jabuti é a designação vulgar dos répteis do género Chelonoidis da ordem dos Quelónios, da família dos testudinídeos.O género mudou de Geochelone para Chelonoidis.

Guaraci ou Quaraci (do tupi kwara’sy, “sol”) na mitologia tupi-guarani é a representação ou deidade do Sol, às vezes compreendido como aquele que dá a vida e criador de todos os seres vivos, tal qual o sol é importante nos processos biológicos. Também conhecido como Coaraci. É identificado com o deus hindu Brahma e com o egípcio Osíris.

Jaci (do tupi îasy “lua”), na mitologia Tupi, é a deusa da Lua, protectora dos amantes e da reprodução. É identificada com Vishnu dos hindus e com Ísis dos egípcios.

Cobra grande, também conhecida como boiúna, é uma criatura fantástica do folclore Brasileiro.

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Rua Aurora, São Paulo, Brazil

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A música apenas é realmente música quando esquecemos o somHans Joachim Koellreutter

Final dos anos 1970.

Eu vivia na cidade de São Paulo – que já erauma megacidade, então com cerca de dez milhões dehabitantes.

O Brasil ainda arrastava, teimosamente, o regime ditatorial militar. Os rios da cidade já estavam podres,contaminadospelos fétidosdetritose resíduosdemilhõesde pessoas. A sensação, quando passávamos por perto

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daquelesrios,eraadeestarmospróximosdosintestinosdeum gigantesco animal.

Aimensacidadejáestavacercadaporbairrospobrese favelas.

Havia, como sempre houve, um cenário de profundos contrastes. Pessoas maravilhosas, pessoas violentas, intelectuais fabulosos, empresários semi-analfabetos sem escrúpulos, geniais empresários como JoséMindlin – quetambém era um reconhecido coleccionador de livros – artistasepensadores,ladrõesbaratos,gangsters.

Aquele mundo era uma antropofágica geléia geral,onde a figura de Macunaíma estava presente um pouco por todo o lado – do vendedor ambulante ao dono de uma grande indústria.

Mas,naquelalevezaamorfadafiguradoMacunaíma,

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herói sem carácter, todos poderiam fazer qualquer coisa.Tudoeraleveebrilhante,comoofascíniodequalquerumdiante de uma diversidade total.

Duranteanos,euvisitava frequentementeacasadeumafamíliadeorigemFrancesa,osD’Elboux–queeracomoaminhaprópria.ElesviviamnumapequenamasmaravilhosacasaprojectadapelogenialarquitectoCarlosMilan.Aquelacasaterásido,provavelmente,oseuúltimoprojecto.

Eraumacasamoderna,todaconstruídaemconcretoaparente, com grandes lâminas de vidro, portas coloridas, árvores gigantescas à volta, e a porta da frente sempre aberta.Aquela casa se tornounumpontodeencontrodeintelectuaiseartistas.

Lá, tudo era extremamente refinado. Uma pequenamas interessante colecção de arte contemporânea sobre as paredes – e até mesmo o mobiliário era feito de obras de

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arteencontradasnaBienalouemgaleriasdearte.NaquelacasaeutiveomeuprimeiroencontrocomaobradeClaudeLévi-Strauss.

Como se fosse um paradoxo, a violência urbanajá invadira tudo com a sua cega voracidade animal –principalmente nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro–masaindanãoeraalgoquesepudessecompararcom aquela que entraria em erupção alguns anos maistarde.

Em1977eutinhadezanoveanosdeidadeerecebiaoprémiobrasileirodemarketing,atribuídopelaAssociação Brasileira de Marketing,juntocomograndepoeta,escritorejornalistaJorgeMedauar–inesquecívelamigocomquemaprendi um sem número de coisas.

Uma das vantagens daquele mundo era de, muitasvezes,nãoexistiremdiferençasdeidade.Medauareraquase

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quarentaanosmaisvelho,mastínhamosamesmaidade.

Anosantes,quandoeutinhacatorzeanosde idade,meuspaismedisseramque,seguramente,eumetornariaumartista,quepraticamentetodososartistaserampobres,quemuitosdelesnãogostavamdetrabalhareque,portanto,euseria imediatamente obrigado a começar a ganhar a vida.

Depois de algum tempo, comecei a trabalhar com marketing e comunicação. Assim, eu receberia o prémioBrasileirodemarketingem1977.

Cercadedoisanosanteseucomeçaraaestudarflautatransversal, história damúsica, teoriamusical e harmoniaentre várias outras disciplinas musicais com diferentes mestres.

Comecei relativamente tarde, pois tudo deveria sersempreescondidodaminhafamília,quenãoadmitiasequer

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apossibilidadedeacolherummúsico,artistaouintelectualno seu espaço.

Durante vários meses, eu saía do trabalho no finaldatardeeia–semquesepudesseperceberemcasa–aocentro da cidade, estudar numa escola de música. Também éverdadequenãohaviagrandepreocupaçãoemsesaberparaondeeuia.Essapreocupaçãosóaconteciaquandoeuvoltava tarde demais para dormir.

Aquelaescolademúsica–queficavanaruaAurora–estava profundamente encravada nos subterrâneos mundos do centro da cidade, nos fundos de uma casa antiga, deparedes rachadas, plantas para todos os lados, numa famosa ruadeprostituição,comoseestivesseescondidadoplanetaTerra.Osalunoseram,nasuagrandemaioria,velhosejovensmúsicosdejazz,gentedanoite,pessoaspobreslutandoporalgo melhor.

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PessoasparaasquaisosheróisnãoeramBeethoven,Mozart ou John Cage, mas Cannonball Adderley, OrnetteColeman, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, TheloniousMonk e um mar de músicos cujos nomes se perdem notempo.

Todos estavam ávidos por aprender algo novo, a cada dia, uma nova técnica, um novo segredo.

Nãoexistiaqualquerplacaouindicaçãodequeatrásdaqueleportãodeferroquenosconduziaparaumcorredoracéuabertolevandoparaosfundosdacasa,poderiaexistiruma escola de música.

Sempremepareceuqueaquiloeraumestabelecimentoilegal,contornandosinuosamenteasbarreirasburocráticasdas autoridades.

A estreita entradaque levava aos fundos, era como

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uma entrada para o submundo. Na rua, vendedores dedrogas,drogados,bêbados,prostitutasetravestispasseavamalegremente e sabiam tudo sobre o lugar.

A polícia não existia, e naquela rua ela não eranecessária.Olugartinhaasuapróprialei.

Ao contrário do que se pode imaginar, o nível deensinodaquelapequenaescola,marginaleescondida,cujaentradaguardava, apenasela, váriashistóriasparamuitoslivros,eraumdosmelhoresqueconheci,nosdiversospaísespelosquaispasseiaolongodosanos.

Láexistiaumespíritoderespeito,ímpeto,seriedade,colaboração e dedicação únicos. Professores ou alunos, todos estavam ali por puro amor à música, por puro amor ao saber.

Naquele lugar, todoséramos iguais, cadaumcomo

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seu instrumento, cada um com a sua música.

Devezemquando,aindaqueraramente,apareciaummúsico importante. Quando isso acontecia, entrava como pessoacomum,simpleseassistiaàsaulasconnosco.

Algunsdaquelesprofessorestambémleccionavamnasmelhoresuniversidadesdopaís.Mas, ali, o programanãoeraelaboradoporqualquer Estado. Elenasciada vontadedas pessoas.

Pareceexcessivamentepoético.Mas, era issooquesentíamos.Estarali,eracomoestarnumoutromundo,livredaganância,dasmentiras,dosjogosdepoder.

A violência dos militares na Argentina conseguiaultrapassar todos o horrores imagináveis. Centenas depessoas assassinadas. Certa vez, apareceu um rapaz quevinhadeBuenosAires.Oseuinstrumentotambémeraflauta

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transversal.Eleeramuitomagro,extremamentebranco,delongos cabelos negros e olhos assustados. Ninguém sabiaquemeramosseusparentesouoseusobrenome.Eeleeraquieto,muitoquieto,comoseguardasseumterrívelpesadelo.Passava muitas horas ali, tocando sozinho, longe das pessoas. Comosepudesse,finalmente,respirarlivremente.Comoseestivesserefugiadonumatoca.

Ninguém incomodava o rapaz Argentino.Silenciosamente, as pessoas fingiam não conhecer a suadramáticahistóriaeusavamessepropositaldesconhecimentopara afastar qualquer suspeita que o pudesse levar àpolícia.

Em1979,conseguiumperíododefériasnotrabalhoeviajeicomumaturmaderecémgraduadosemgeografia,história,sociologiaegeologiaatéastribosindígenasKarajéeTapirapé,nosuldoPará,comoobjectivodecompreendercomoaconteciamosprincípiosestéticosdeespaço tempo

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naquelassociedades.

Assimquevolteidafabulosaexperiêncianafloresta,daqualresultouumextensoensaiofotográfico,acabeiporviajar,profissionalmente,quasequedirectamente,paraosEstadosUnidos,paradesenvolverumtrabalhodepesquisana área de marketing em diversos estados Americanos.

Marketing era, paramim, conhecimento da históriahumana,oquelevavaaspessoasàtroca,asrazõespelasquaisisso as unia ou as separava, como funcionavam o cérebro e o corpo, a formação das ideias, a comunicação, a ordem caótica que costurava aquela sociedade antropofágica dasgrandes cidades...

Assim, para além do marketing, da arquitectura, dourbanismoedaflautatransversal–quesignificavatambémo picollo, ou flautim, a flauta contralto e a soprano – eutambémestudavasaxofonestenor,sopranoealto,clarinete,

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violino,piano,músicaelectrónica,músicaconcreta,publicavaosmeusprimeiros livros–entãodepoesiae ficção–eraredactor, director de arte, participei na direcção de umfilme documentário para cinema, escrevia story-boards paraalgunscurtosfilmescomerciaisparatelevisão,estudeiteatro, dedicava um razoável tempo à pintura, aos desenhos, era fotógrafo, já tinha as minhas primeiras exposições,mergulhavanafilosofia,estudavaelectrónica,electricidade,comunicação, aventurava a minha alma – ainda tacteando –nosuniversosdafísicaedalógica.ATeoria do Pensamento e a neurologia viriam mais tarde.

Essafrenéticaloucuradeactividades,essaincontrolávelobsessãoporagarrartudooqueeupudesseconhecer,nasuamaisvastadiversidade,conheceriaumadramáticamudançaalgumtempomaistarde,semqueeupudesseprever.

AssimquevolteiaoBrasil–eutinhaviajadopelaFlórida,Califórnia,Nevada,Ohio,CarolinadoNorteeGeorgia–tomei

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umadecisãofirmeeradical:procuraromelhorprofessordemúsica,sepossívelomelhorprofessordemúsicaemtodoomundo.

Desde cedo, certamente como condição genética,fui uma espécie de outsider, meio alienígena, quaseextraterrestre.Nuncagosteidegruposfechados,dequalquertipo,eissoacabouporrepresentar,sempre,umaespéciedebarreiraquemetornavaaindamaisoutsider.

Naquelaépoca,rapidamente,omundojáintensificavaassuaspegajentasteiasburocráticas,esclerosando-secomoaparecimentodeumaignorantearistocraciaburocráticaeumvastocontinentefeitodemãodeobranãoqualificada.

Cadavezmais,tudopassavaaexigirapresençadeumintermediário.

Curadores para museus, marchands para galerias

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dearte, jornalistaspara viabilizar aentradaem jornaisourevistas, professores para indicar outros professores nas universidades e assim por diante.

Aquelesquesaíssemdessafórmulatirânica,comoeraomeu caso, geralmente acabavam condenados ao ostracismo, a um lento e profundo apagamento.

Pormaisterrívelqueessaameaçapossaparecer,elanunca me incomodou.

Sempre fui livre, sempre lutei pela liberdade e sempre paguei, com prazer, o preço do livre ser e pensar.

Essesdetalhesdedesenhopessoal,quetantasvezesfazem corar as pessoas, estão aqui como parte de umahistóriae,porisso,jánãosãopessoais.

Quem seria o melhor professor do mundo?

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Fui perguntando, ouvindo histórias de músicos,alunos, o que diziam outros professores, gente de outrasáreas.NãoexistiaInternetetudoacabavaporestarsempree inevitavelmente envolvido num grande mistério.

Comeceiapesquisarsobrequemtinhasidoprofessorde compositores Brasileiros.

EgbertoGismontiestudoucomNadiaBoulanger,masnãoapenaselaestarialongedemais,emParis,comotinhafalecidoem1979.HermetoPascoalventilavalivrementequetudooquesabiatinhasempreaprendidoconsigomesmo!

Mas, passo a passo, gradualmente, a história depraticamente todos os outros compositores revelava,insistentemente, um nome Alemão: Hans JoachimKoellreutter.

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Atéosmaisvelhostinhamsidoseusalunos.

GilbertoMendes,JúlioMedaglia,Guerra-Peixe,ClaudioSantoro,DiogoPacheco,EdinoKrieger,ClaraSverner, IsaacKarabtchevsky, Eunice Katunda, Gilberto Tinetti, DamianoCozzella eMarlosNobreentremuitosoutros,tinhamsidoseus alunos.

Para além de regentes e compositores da chamada áreaerudita,haviaaindamuitosquesededicavamàmúsicapopular,talcomoTomJobim,TomZé,NelsonAyres,PauloMoura e uma incontável lista de grandes músicos.

Poroutrolado,quandoeuperguntava,aspessoasnemsempre diziam coisas boas sobre ele. Alguns rapidamente torciamonariz,comirritação,dizendoqueelenãopassavadeumenganador,quenãoeraumverdadeiromúsico,massimumpéssimoprofessorquedesencaminhavaos jovens,comprometendo as suas carreiras.

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Deumaoudeoutraforma,existiasempreumaauradegrandemistérioemtornodaquelenome.

Quem seria aquele misterioso personagem? Unsdiziam que vivia na Índia, outros no Japão. Entretanto,naqueleprecisomomento,eusabiaqueeleestavadevoltaaoBrasil.Mas,nãosabiaexactamenteonde,nemporquantotempo.

TudooquesesabiasobreHansJoachimKoellreuttereraumaespéciederumor,comoseainformaçãoflutuassevolátil,mudandoaquieali,demexericoemmexerico.

Aquelaaurademistérioproduziaemmimumaforteondadeintimidação.

Fuipedirajudaaumdosmeusprofessoresdehistóriadamúsica.Apesardeintimidado,euestavadecididoaencontrarum meio de entrar em contacto com aquele Professor

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Koellreutter,cujonomepoucaspessoasconseguiamfalarequaseninguémeracapazdeescrevercorrectamente.

«Esse sujeito é louco! Para ele, valequalquer coisa.Ele não é músico! É um charlatão!» – foi o que ouvi emmeio a risos de descrédito. Aquele jovem professor tinhaficadofurioso,apenaspelofactodeterreferidooseunome.Imediatamente, acrescentou: «Ele é um homem muitoculto.Exigeumaprofunda formaçãodosseusalunos.Nãoé qualquer umque ele aceita comoaluno.Mesmoassim,ele não é um bom professor. Ele não tem regras, método... Eu lhe indico outro professor, com ele será pura perda de tempo».

Mas! Aquilo era uma manifesta contradição. Comoo professor Alemão poderia ser muito culto, exigir umaprofunda formação dos seus alunos e, ao mesmo tempo, ser um charlatão, um farsante?

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Poroutrolado,quandoeuperguntavacomoelepoderiaser um charlatão tendo sido professor de tantos reconhecidos compositores,normalmentearespostarezavaqueeleeraumenganador,quefaziaapenasaquiloqueosalunosqueriam,pordinheiro,quenãoosensinavaverdadeiramente,queeraumafraude,quenãopossuíamétodo.

Assim, o sucesso de alguns dos seus alunos seria, segundo aquelas pessoas, explicado pelo resultado dotrabalho de outros professores e pelo incontornável talento do estudante que inevitavelmente vingaria, mais cedo oumais tarde.

Outrasvezes,asuairrefutávelauraeraexplicadapelofactodeser“estrangeiro”.«Eleéumestrangeiro!Osbrasileirosdãovaloràspessoasdeoutrospaíses,principalmenteaosquevêmdaEuropaoudosEstadosUnidos...curvam-seaoestrangeiro...AquinoBrasil,bastaserestrangeiroparaserglorificado»–diziamoutros,tantos,semdisfarçarumaboa

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dosededesdémquevinhamnaquelaspalavras.

Outros preferiam nem falar sobre ele. E apesar de tudoisso,onomedeletinhaumaaurafabulosa.

Naturalmente,haviamprofessoresqueodefendiam,comoMariadeLourdesSekeff,maseuaindanãoaconhecidanaquelaépoca,euviriaaserseualunoapenasmuitomaistarde.

A importância de Koellreutter como compositor ecomomestreerainegável.Apesardisso,eraextremamenteraro encontrar artigos nos jornais sobre o seu trabalhonaquelaépoca.Elevoltariaaterumapresençamaisregularnos meios de comunicação apenas alguns anos antes de morrer.

Naquelestempos,finaldadécadade1970,existiaumnotável paradoxo: ele era tão famoso como praticamente

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desconhecido.

Ninguémsabia informar–ounãoqueria–ondeeledavaaulas.«Eleestásempreviajando»,eraoutrarespostatípica.

Quando diziam que era um charlatão, geralmentetratavamdeacrescentar:«Paraeletudoémúsica,atémesmoo som de uma panela contra uma parede, de um grito ou deumacidentedecarropodesermúsica»–comentavamironicamente.Mascadavezqueofaziam,eusentiaqueeleseria, certamente, um maravilhoso mestre.

Aquelas ferozes acusações lembravam, também, asqueeramfrequentementedirigidasaoJohnCage.

Finalmente, descobri onde ele estava dando aulas em São Paulo.

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Leccionava na antiga Faculdade Paulista de Artes,localizada no centro da cidade, muito perto do hospital BeneficiênciaPortuguesa,relativamentepróximodofinaldaAvenida Paulista e bastante distante de onde eu morava.

Telefonei para lá. Procurei por alguma informação. Descobrique,realmente,eledavaaulaslá.VinhadoRiodeJaneiro, poucos dias por semana.

A pessoa do outro lado acrescentou, lacónicae rispidamente, que eu deveria ir pessoalmente até afaculdade – pois não dariammais quaisquer informaçõespor telefone.

Nodiaseguinte,fuiatélá.Naépoca,osmeuscabeloseram longos, cobriam os ombros e a minha barba também era longa,lisaecresciainsistentementeparabaixo,praticamentenunca para os lados.

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Quando cheguei à faculdade, logo na secretaria, a pessoa que me atendeu era um rapaz baixo, negro, pelemuito brilhante, com rápidos olhos redondos e brilhantes, masprofundamentesérioscomoseestivessesempredemalhumor.

Pedi para falar comKoellreutter. Perguntou-mequaleraoassunto.Disse-lhequegostariadefalarcomele,apenasisso. O rapaz balançou negativamente a cabeça e foi logoinformandoqueelenuncaatendiaquemquerquefosse.

Insisti,dizendoqueeuqueriametornarseualuno.Osujeito sorriu cheiode ironia:«Então, você teméde falarcomigo,nãocomele!»–desapareceubruscamenteportrásde pastas e estantes repletas de papéis.

Voltoudepoisdealgunslargossegundostrazendoumgrande livro de capa dura, negra, coberta a tecido. Abriu, eeupudeverqueoprogramaeohoráriodosprofessores

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estavalá,manuscritoemtintaazul.

Perguntou qual era o nome do professor que meindicava.Disse-lhequenãotinhaqualquernome.Nenhumprofessortinhaescritoumacartadeapresentação.Irritado,o rapazbalançounovamentea cabeçaem tomnegativoesinaldedesprezo,comoseeufosseumcasodefinitivamenteperdido, e foi virando as páginas, lambendo a ponta dos dedos,semprecomumaexpressãomuitonegativa,comosea minha presença ali não passasse de uma grande perda de tempo para ele.

«O professor Koellreutter não temmais vagas. Nãoo pode aceitar como aluno», disparou de forma final elacónica.

Caput! Fechou o grande livro negro com uma forteestalada. Foi para o outro lado, atendeu rapidamente ao telefone, desligou, e começou a separar alguns papéis, como

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seeunãomaisestivesseali.

Tudofoitãoseco,agressivoerápidoqueeudemoreiumpoucoaperceberqueelenãoestavamaisfalandocomigo.Osujeitotinhamedeixado“falandosozinho”!

Fiquei chocado com aquela atitude. «Não há maisvagas?» – insisti inconformado. «Não...» – respondeu àdistância, monossilabicamente, como se estivesse falandocom um fantasma, e principalmente como se fosse um grande favor,conformeliaemsilêncioumartigonumjornalsobreumjogodefutebolquetinhaacontecidonodiaanterior.

«Então, nesse caso, eu gostaria de conversar pessoalmentecomele»–repliquei.«Impossível»–continuounoquaseimperceptíveltommonocórdicoquevinhadesdeoinício–«Ninguémfalacomele».Orapazestavaagoralendoaindamais distraidamente o seu jornal, confortavelmentesentado atrás de uma velha mesa.

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O descaso era absoluto.

AquelerapazeraconhecidocomoBirae,maistarde,comopassardosanos,pormaisincrívelquepossaparecer,viríamosaterumexcelenterelacionamentopessoal!

Aocontráriodaquelaprimeiraetãonegativaimpressão,eu descobriria que ele era uma pessoa extremamentededicada, competente mas muito informal. Os alunos, em geral, gostavam muito dele.

OBiratinha se tornadonumaespéciede referênciaessencialnaquelafaculdade.Eradaquelespersonagensquepassamrelativamenteinvisíveisediscretospelahistóriadomundo, mas marcam profundamente os lugares por onde passameaquelescomquemconvivem.

O que eu interpretara como descaso e até mesmo

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desprezonadamaiseraquefrutodeumasimpática,soltaefluídainformalidade.

A faculdade estava instalada num antigo casarãoconstruídonosfinaisdoséculoXIX.Oedifícioacabariaporserdemolidonosfinaisdosanos1980paradarlugaraumlucrativoedifíciocomdezenasdeapartamentos.

Aoladodasecretaria,quefuncionavacomumbalcãopara atendimento geral, havia um lance de escadas para o andar inferior do casarão.

Reparei quemuitos alunos passavamdiversas vezesporaquelasescadas,subindoedescendo.

Do outro lado de onde eu estava, no mesmo andar, doisestudantes–umpoucomaisnovosdoqueeu–estavamencostados à parede conversando alegremente como se fossem donos de todo o tempo do mundo.

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Fui até eles. Perguntei se conheciam Koellreutter.Responderamquesim,naturalmente!Pergunteiquandoeleestarialá.«Eleestáaquihoje!».Pergunteiseelessabiamporondeelepassariaquandoasaulasterminassem.«Sópoderáserporessasescadas.Eleestáláembaixodandoaulasagorae esse é o único caminho. Todos passam obrigatoriamente poressasescadas!».

Havia mais um problema – eu não fazia a menor ideia decomoeleerafisicamente.

Pergunteicomoeleera.«Velho...»–foiaúnicacoisaque souberam dizer. Insisti e fui sabendo que tínhamospraticamente a mesma altura, talvez fosse um poucomais baixo,magro, não tinha barba ou bigode, não usavaóculos...

Perguntei, novamente, se eles iriam ficar por lá

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mais tempo e se poderiammostrar quemera ele quandoaparecesse.Rindocomoseeufosseumtoloseralienígena,acabaram por concordar em me ajudar. Fariam um sinalassimqueeleaparecesse.

Disfarçadamente, curvei o meu corpo magro e fui passando sorrateiramente pelo balcão da secretaria sem queoBirapudessemever.

Caminhei silenciosamente até a escada e fiquei àespera, encostado à parede, onde não podia ser visto da secretaria,esperandoqueKoellreutteraparecesse.

Foram cerca de duas horas pacientemente encostado contra a parede fria.

Comosempre,eulevavaumlivrocomigo.Aproveiteiparalerenquantoesperava.Muitosalunosforampassandopor mim. Alguns olhavam curiosos. Em certos momentos,

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cheguei a temer ser descoberto pelo Bira.

Não foi fácil ficar encostado à parede durante todoaqueleinesgotáveltempo,quepareciaaindamaiorcomigoali espremido, escondido dos agudos e espertos olhares do rapazquetrabalhavanasecretaria.

Então, depois de mais de duas horas com o irritado corporecto,imóvelcomosefosseumfaquir,quandoadordocansaçojáconquistaradefinitivamenteasminhaspernase a minha alma se revoltava em ansiedade, subitamente, comecei a ouvir vozes e mais vozes.

O que até então tinha sido quase puro silêncio ecalmafoirepentinamentetransformadoporumacampainhametálicaepor sereshumanosqueborbotavamumpoucode todos os lados como se fossem o som do mar, como se uma membrana tivesse sido repentinamente rompida eumoceanodevidatomassetodoaqueleespaçocomouma

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caóticaeincontrolávelenchente.

Paradoxalmente,podia-seperceberquesetratava,narealidade, de um relativamente pequenomar de pessoas,cujarápidaaproximaçãoeraperfeitamentenotável.

Aquelessonsmudaramtudo,oespaço,asluzesecoresdo lugar.

A realidade mudou.

Asaulastinham,finalmente,terminado.

Alunoseprofessoresjorravampelasescadas.

Aescadaficourepleta.

Tudo foi invadido por vozes, olhares, mãos e corpos.

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Eu já não conseguia ver os rapazes que tinhamprometido indicarquemeraKoellreutter.Certamentenemestariam mais ali.

Naqueleprecisomomentotudoperdeuimportância.Havia pessoas a mais. Tudo era uma grande confusão.

Atrás da primeira e da segunda onda de alunos de todosostiposecores,sorrisoseempurrõesqueseapertavamparasubir,vinhaumpequenogrupo,maisquieto,cercandoumhomemdeaparência jávelha,ar severo,comgrandessobrancelhas de longos fios espetados e cabelos muitobrancos penteados para trás.

Eraele!

Koellreuttertinha,então,quasesessentaecincoanosdeidade,masaparentavamais.Eutinhapoucomaisdevintee aparentava menos.

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Assimqueelefoisubindoaescadaria,desciumdegrau,impondo-me à sua frente de forma perturbadora, como uma ameaçadora barreira impedindo a sua passagem.

- Professor Koellreutter? – perguntei com seriedade,sem meias palavras.

- Sim?- Preciso de falar com o senhor.- Diga...- Preciso de conversar como senhor emparticular. É

sobrealgoquenãopossofalaraqui.Trata-sedeumassunto privado.

Quandoeudisseisso,eleficouvermelho.Oseurostose tornou muito sério, revelando imediatamente sinais de tensão e preocupação.

O que seria aquele assunto privado? Quem seriaaquelerapazaliàfrente,impedindoasuapassagem?

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Os alunos à sua volta se calaram com gravidade. Todos imaginaram as mais mirabolantes histórias. Qual seria aavalanchederumoresquedesenhariamospróximosdias?

Koellreutterficoudesconcertado.Mas,eraumhomemdeterminado.Compassosdecididos,gestosquerevelavamirritação, foià frentee fezsinalcomamãoparaqueeuoseguisse.

Pediuparaqueoesperassenumcorredorpróximoàescadaria. Foi até a secretaria. Ouviu-se uma rápida discussão. DeondeeuestavaerapossíveldestacardaconfusãoavozdoBira,quaseimplorando,dizendonãofazeramenorideiadoquêpoderiaser.

Atéaquelemomento,orapaznãoimaginavaqueeraeu.Pensavaqueeutinhadesistidoduashorasantes.

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Koellreutter voltou caminhando na minha direcção,sério e enérgico.

Atrás dos passos do Koellreutter saltaram os olhoscompridosdoBira,que levouamãoà cabeçaprevendoodesastrequeemergiainevitável.

Entramos,apenasosdois,Koellreuttereeu,numasalade aulas, vazia, e ele fechou secamente a porta atrás de si.

- O que é? – perguntou com braços cruzados,visivelmente irritado e impaciente.

- Eu preciso ser seu aluno.

Koellreutterficousemsaberoque fazer.Aquiloera,definitivamente, algo que não podia prever acontecernaqueledia.Quantaousadia!

Olhou-me profundamente surpreendido e permaneceu, desconcertado, em silêncio durante alguns

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longos segundos, como se estivesse elaborando amelhormaneira de tratar o assunto.

De repente, num tom mais amigável, mas ainda irritado eseco,disparou:

- Muito bem... converse na secretaria... você tem defalar na secretaria... eu não cuido disso. Você tementenderqueeunãotenhotempoparaessascoisas– foi encerrando a conversa sempre com um pesado sotaqueAlemão.

- Mas! Eu fui obrigado a esperarmais de duas horasencostado à parede, e até mesmo a ser indelicado com o senhor, porque na secretaria fui informado,laconicamente,dequeera simplesmente impossívelser seu aluno e, ainda, de que era praticamenteproibido falar consigo. Como uma situação dessaspodeserpossível?Peçoqueosenhormeperdoe,massimplesmente não havia outra saída. Eu não podiafalar na frente dos outros alunos...

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Aindacomosbraçoscruzados,Koellreutterbalançouo corpo para trás e para a frente. Julgou a situação. Apesar daminha ousadia, eutinha alguma razão.Os argumentoseram correctos. Faltava saber se eu era sério.

- Muitobem...oquevocêfaz?- Estudo arquitectura, urbanismo, trabalhei em

marketingdurantealgunsanos,escrevo...- Não,não,não...vocêtocaalguminstrumento?- Flauta transversal.- Qualéoseurepertório?- Debussy, Bach, Mozart, alguma coisa de Prokovief,

maseunãoqueroserumflautistaprofissional.Tocopor amor à música. Quero ser compositor. Tenho trabalhado nisso... tenho estudado...

- Quemforamosseusúltimosprofessores?

Disseonomedeunstrêsouquatroprofessores.- Eporqueelesnãooencaminharamparacá?

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Fiquei perdido. Não tinha uma resposta. Eu era,realmente, um outsider. Não era alguém que segue umpercurso criteriosamente demarcado. Nenhum dos meusprofessoresquisme“encaminhar”oumesmoescreverumacarta de recomendação.

- Muito bem... muito bem... Mas, agora, realmente, eu penso que todos os meus horários estãopreenchidos.

- Nãohaveráumaforma?...

Diantedaminhainsistênciaeleparoupormaisalgunssegundos, ainda com os braços cruzados, uma vez mais balançou ligeiramente o corpo para a frente e para trás, olhou-mecomseriedadeedissecomoseestivesseinsegurosobreasuadecisão:

- Sim, há uma forma. Você vai começar a estudarestética e música contemporânea. Vai entrar noscursosdeintroduçãoàestéticaedemúsicadoséculo

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XX.Asclassesjáestãocompletas,nãohámaisvagas,aprincípiovocênãopoderiaentrar,ejátivemosumaaula, mas eu o posso colocar lá... Podemos criar uma excepção.Vamosfazeressaexperiência.

Ele falava sempre carregando muito nos erres e cometendofrequentementeerrosdeconcordância.

Fomosjuntosatéasecretaria.Biraestavavisivelmenteperturbado, desculpava-se insistentemente, quase comveneraçãojuntoaoKoellreutter,queapenasdizia«Nonterrrprrroblema...nonterrrprrroblema...».

Colocou as mãos na cintura, voltou-se para mim edissecomfirmeza:

- Muitobem.Entãonosvemosnapróximasemana.

Virouefoiembora.

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Aquelefoionossoprimeirocontactoqueconduziriaa uma profunda amizade ao longo de cerca de vinte e cinco anos.

Seeutivessedesistido,seeletivessedecididoquenãoerapossívelmeaceitarcomoaluno,setivesseconsideradoaminhaousadiademasiadamentearrogante,senãotivessecompreendido a minha situação, provavelmente a nossa grande amizade nunca teria acontecido.

Essa é uma das grandes diferenças entre os grandes seres humanos e a mediocridade.

Os medíocres se consideram rapidamentedemasiadamenteimportanteseseguemrígidaecegamenteas regras a que elesmesmo se obrigam.Mas, os grandesestão sempre abertos para os outros e livres para mudar, paraaprender,emqualquertempooulugar.

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Ser livre para aprender é manter uma permanente postura de humildade.

E humildade é a palavra chave para a improvisação.

Todo o grande ser humano é criativo e não hácriatividadesemalgumtipodegenerosidade.

Assim, humildade e generosidade se combinam magicamente nos grandes personagens.

Koellreutterfoiumgrandehomem.

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Naquela época, muitas pessoas o acusavam dearrogância, talvez por ele ser uma pessoa extremamenteséria, clara, frontal, prática e radicalmente comprometidacom o trabalho.

Comelenuncahavialugarparamuitaconversa–elesempreiadirectamenteàquestão.

Mas, no íntimo do seu ser, ele era uma pessoaextremamentehumildeegenerosa.Umapessoaquepassoutodaavidaasequestionaracercadesipróprio,acercadaNatureza,detudo.

O facto de ter me acolhido como seu aluno, principalmenteconsiderandoaquelasestranhascondições,é prova cabal da sua grandeza espiritual.

Se eu estava pedindo para aprender, ele não podia deixardemeajudar.

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Na semana seguinte, comecei a frequentar os seuscursosdeestéticaedemúsicadoséculoXX–que,naverdade,poderiasechamarde“históriadamúsicacontemporânea”.

Eufaziatantasperguntasduranteasaulasqueparaelepassou a não ser fácil cumprir o programa. Entretanto, para alémdehonestaseram,emgeral,perguntaspertinenteseelenunca se esquivava.Ao contrário, a cadaperguntaeletratavadedesenvolverumlongomomentodereflexão–enunca escondia como apreciava fazer isso.

Muitas vezes, ele dava uma pergunta como resposta.

Tanto as suas perguntas como as suas respostas eram umdesafiointelectualparatodos.

Cada aula se tornava, rapidamente, num profundoexercício de brainstorming que ele regia com grande

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maestria.

Se ele estava demonstrando um princípio da físicaquântica ou se estava falando sobre Santo Agostinho ealguém lhe perguntasse por quê,qualarazãodeseroudeteracontecidoalgo,qualomotivopeloqualalgumacoisatinha sido dita, elemergulhava imediata e animadamentenumareflexãoqueabriaoutrasportas,queiluminavaoutrasquestões.

Ele não escondia o facto de serem esses os momentos quemaisamava.

Emmuitasocasiões,asaulasacabavamporsetornarvibrantesdebatessem,entretanto,jamaisperderorumo.

Algumasvezessetornavamdiálogosapenasentrenósdois.Euestavaprofundamentemaravilhadocomavastidãodasuacultura,comasuasabedoria.Nãoconseguiapararde

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fazer perguntas e ele se animava com elas. A sua animação me impelia para a frente, para mais perguntas.

Rapidamente, os alunos começaram a brincar comigo, dizendoqueeununcaodeixavaempaz.Mas,eupensoqueelenãogostavamuitodeumtaltipodepaz.

Oquetinhacomeçadode formaríspidaeagressiva,com o meu acto frontalmente indelicado, para dizer o mínimo, transformou-se gradualmente numa relação dereciprocidadenabuscadacompreensãodasraízesdascoisas– naturalmente, eu como aluno e ele como mestre.

Mas,narealidade,quemquerqueseja,emqualquertempooulugar,nósnuncaensinamos,apenasaprendemos.

Rapidamente ele percebeu o quanto eu tinha sidosinceroquandooabordeinasescadasdafaculdadepedindoparaserseualuno. Issoera,paraele,oquehaviademais

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importante:ahonestidade.

Paraalémdahonestidade,oqueelemaisapreciavanum aluno eram as suas capacidades de dedicação e de participação.

Quandooescutavamemsilêncio,semquestionar,semmanifestardúvidas, semprovocardebates, reflexões, tudosetornavacansativoeaborrecidoparaumespíritocomoodele.

Quando isso acontecia, por vezes ele reclamava consigomesmo,quaseemsilêncio,resmungandoqueaaulanãotinhasidoboa.

Poroutrolado,quandoalguémcomeçavaaperguntarapenas por perguntar, sem base, sem saber muito bem onde estava pisando, sem ter um espírito aberto, procurandoatender – por vezes de forma aduladora – ao desejo do

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mestre com perguntas sem profundidade, sem substância, ele imediatamente desmascarava o impostor e perguntava porqueestavafazendoaquilo,oqueestavafazendoali.

ComoKoellreutternuncahaviameiaspalavras.

Asreacçõeseramvariadas,masemgeral,quandoissoacontecia, o aluno desaparecia imediatamente. E não era muito raro isso acontecer.

Assim, rapidamente, ele adquiria a fama de pessoadura, implacável e autoritária.

ParaKoellreutter,ahonestidadeintelectualsemprefoiumvalorprimeiroeinquestionável.

Aprimeiracoisaqueelefaziaquandodavainícioaumcurso, principalmente quando se tratava de vários alunos,era explicar com clareza emuita paciência cada palavra e

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cada conceito que iria usar – colocando imediatamente aseguir o assunto em discussão.

Seduranteocursoeleiriautilizaroconceito“estética”,porexemplo,aprimeiracoisaqueelefaziaeraexplicaroqueele entendia por estética.

Depoisdaexplicação, eleesclarecia as razõesqueolevavamautilizartantotempoemtornodeumapalavraoudeumconceito:

- Isso é o que eu quero dizer com a palavra“estética”,nãoimportasevocêstêmoutraideiasobreela. Setiverem,podemosatédiscutirdepois.Oqueimportaévocêscompreenderemcadapalavraqueeuuso, o queeuquerodizer comaquela palavra, comaquele conceito. Se nós não utilizarmos osmesmosconceitos, nunca vamos ser capazes de nos comunicar com clareza. Esse é um dos grandes problemas do mundohoje.Bastaolharumnoticiáriopelatelevisão,

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ou ler um jornal. Muitas pessoas usam ideias econceitos com sentidos diferentes, produzindo umagrande incompreensão e conflitos, de todas asnaturezas.Porisso,éimportantedeixarmuitoclarooqueeuquerodizercomcadapalavra.

Esseeraumpontoessencialdassuasaulas:aclarezade pensamento.

- Senãocompreendemosexactamenteoquedizemos,se não compreendemos com precisão o sentido decada conceito, de cada palavra que vou usar, entãovocês não poderão compreender o que eu tenho adizer e o que produziremos será apenas uma Torrede Babel. Muitas vezes eu leio críticas, discussõesou textos científicos, ou filosóficos, onde a pessoasimplesmentenãocompreendeuosentidodoconceitoque o outro está usando. E, então, meus amigos,perde-seumtempoenormesemqualquerresultado.E isso acontece commuitomais frequência do que

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imaginamos.

Koellreutter resgatava, com frequência, a imagembíblicadaTorredeBabel.

O elenco de palavras e conceitos que ele explicavapormenorizadamente antes de cada curso ia de estética, a entropia, comunicação, conhecimento, ruído, inteligência, informação, monotonia, redundância, unidade, totalidade e assim por diante.

Nassuasaulasdeestética,detemposemtempos,eleparava, cruzava os braços, voltava-se para a classe e dizia, comfirmeza:

- Bom...meusamigos,agoravocês têmdeperguntar.Estouàdisposição.–Mantinhaosbraçoscruzadoseficavaàesperaquesurgissemperguntasecomentários.Logo acrescentava: – Eu não tenho pressa, possoesperar... se ninguémperguntar podemos ficar aqui

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olhandounsparaosoutros.–Epermanecialá,quieto,atéquealguémlevantasseumaquestão.

Koellreutter era, de facto, uma pessoa iluminada.Alguémquenecessitavadedesafiospermanentesequesealimentavadeles,pormenoresquefossem.

Certa vez, ele levou a classe a reflectir longamentesobre um célebre koanZen:qualéosomdeaplausosfeitoscomumasómão?

Depois, eleperguntava: comoéo somdeumúnicoaplauso,deumaúnicabatidadepalmas?Ecadaumdenóseralevadoaouvironossoprópriocorpo,adesenharoqueseriaaquelesom,aanalisaraquelesomprimitivo.

A consciência da nossa existência humana, daimportância da interacção e também dos fenómenos depercepção, dentro do universo em que as pessoas estão

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mergulhadas,eraumdosobjectivoscentraisdassuasaulasdeestética.

Algumassemanasmaistarde,umadasalunas–queera uma brilhante professora de crianças – apareceu com dezenasdedesenhosmuitointeressantes.Elatinhapedidoacriançasdeseteadezanosdeidadequerepresentassemosomdoaplauso,doexactomomentoemqueasmãossetocam.

Eram formas surpreendentes e reveladores do fenómenoacústico.

− Vocêsestãovendo?Ascriançassãosempremuitomais inteligentes do que os adultos, porqueestão abertas, ainda não estão esmagadas por preconceitos.

UmdoscompositoresqueelemaisadmiravaeraFranzLiszt.

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Muito antes de Arnold Schoenberg, ainda em pleno século XIX, Liszt fora responsável pela primeira composição atonal:Bagatela sem Tonalidade, de 1875.

− Lisztdizia,comrazão,quequalquersompodeserseguidodequalqueroutrosom.ÉapenascomessepensamentoquepodemoscompreenderWagner,Mahler, Debussy ou Schoenberg.

Então, admirávamos e analisávamos obras de Kandinsky, de Mondrian, de Picasso, de Bracque, mastambémdeMonet,deCèzanneoudeHokusai.

Foram aquelas primeiras aulas de estética queestabeleceram definitivamente as raízes da nossa longaamizade.

Semanas mais tarde, ele passou a me convidar para ser seu aluno privado em diversas outras disciplinas.

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Tudo aconteceu gradualmente, passo a passo.

Inicialmente o convite foi apenas para os cursos de harmonia funcional e composição. Algumas semanas depois para contraponto; para análise; percepção e assim foi acontecendo para várias outras disciplinas.

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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No início,eudividiaoscursoscommaisumoudoisalunos,atéque,depoisdepoucotempo,passeiateraulassozinho com ele.

A minha integração nos seus cursos foi tão gradual mas simultaneamente tão rápida e inesperada que eumesmofiquei surpresoquandomedeicontadequeeraalunodoKoellreutteremtantasdisciplinas,amaioriadelas,comoseualunoprivado,quandopoucotempoantestudopareciaserimpossível.

Poucos meses antes eu tinha estado em tribosindígenasenosEstadosUnidos.

Na floresta ou nas ruas de São Francisco, eu jamaispoderiaimaginarqueseria,poucodepois,alunodeumdosmais geniais mestres do mundo.

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Algumas ideias marcavam de forma muito especial praticamentetodasassuasaulas.

Desdeoinício,esempre,eleinsistiaemquedeveríamospermanentemente perguntar a razão de tudo e da nossa própriaexistência.

Nas primeiras aulas dos cursos de estética, porexemplo,eracomumeledizer:

- Por quê, por quê, por quê?...Vocêsdeveriamescreveruma grande placa com a expressão por quê? e a pendurar sobre as vossas camas. Assim, todos os dias,quandoacordassem,seriaaprimeiracoisaqueveriam – Por quê?.Nuncaacreditememmimouemqualquerprofessor,nuncaacreditemnoquelêeme,principalmente,nuncaacreditememvocêsmesmos.Sempre, durante toda a vida, perguntem por quê?.

Elerepetiaissoincansavelmente,acadacurso,acada

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encontro.

Se estávamos ali para estudar música, tínhamos desaber do que se tratava – não apenas o que eramúsica,masoqueéramoscadaumdenós.Quemsomos,porquefazemosistoouaquilo?

- Qualosentidodamúsica?Oqueémúsica?Paraqueserve?Porquefazemosmúsica?Por quê?

Amaiorpartedaspessoasclassificatiposdemúsica,entre aqueles que gostam ou que não gostam, que nãoválidosounão,estabelecendoumjulgamentodevalor.

ComoKoellreutter,desdeasprimeirasaulas,osalunosse tornavamconscientesdequeosmaisdiversostiposdemúsica são todos igualmente correctos e interessantes –quersetratedemúsicapopular,rock, jazz, folclórica,dachamadamúsica erudita, de qualquer época, ou dasmaisradicaisexperiênciasdouniversomusicalcontemporâneo.

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Todas as músicas podem ser interessantes.

Como seu aluno, qualquer pessoa estava livre paratrilhar o caminho que bem entendesse, desde que essecaminho fosse coerente.

Assim, para ele, não importava se o estudante se dedicava à chamada música erudita, popular ou comercial. Todas podiam ter qualidade, e os princípios estéticos, osprincípios de composição, os questionamentos eram osmesmos.

Para ele, a coerência naquilo que se fazia devia serencontrada na função social.

Tudo deveria ter uma função social. Assim como deve acontecercomouniversodamúsicaerudita,ascomposiçõescomerciais, trabalhos para musicoterapia, ou para diversão e entretenimentotambémtêmfunçõessociais.Oimportanteera estar consciente de como isso acontece. Estar consciente

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dequaleraafunçãosocialdasnossasactividades.− Determinarafunçãosocialésaberoquevocêestáfazendo.Quandovocêsabeoqueestáfazendo,a função social é determinada automaticamente,porqueoserhumanoéumsersocial,estamossempreintegrados numa sociedade. Você pode fazer o quequiser,músicaparacomerciais,paratelevisão,cinema,entretenimento ou musicoterapia e assim por diante. Nadaéerradoeumtipodemúsicanãotemmenosvalordoqueoutro.Sevocêescolheuaquiloaquechamamosde música nova, estará lidando com os limites da própriamúsicae,assim,teráaconsciênciacomoseuelemento essencial. Você estará trabalhando com aprópria estrutura do conhecimento, da descoberta.Mas,esseéocaminhomaisdifícil,porqueninguémpagaporaquiloqueaindanãoexiste.Eéporissoquemuitaspessoasduvidamqueamúsica nova possa ter uma função social.Nesse caminho, você teráde sereconomicamente independente. Se você depender

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da música para viver, fazendo música nova, ela estará imediatamente comprometida, porque você se veráobrigadoafazerexcepções,decederaquiouali...esefizerisso,tudoestaráperdido.

Essaconsciênciaapenaspoderiaexistirapartirdeumcontínuoquestionamento–por quê, por quê, por quê? – e deumpermanenteexercíciodeautoconhecimento.

Rapidamente, percebi a razão pela qual muitosprofessores não o suportavam.

Essaposturadequestionamentopermanentecolocavaem causa tudo e todos, todo o tempo. Um projecto semcoerência ou aquele que não tivesse competência, seriaimediataeautomaticamenterevelado.

Oincessantequestionamentoeliminaasimportânciaspessoais, condena as certezas.

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AdiferençaentreaquelesprofessoreseKoellreutter,emtermosdecompetência,aberturadeespíritoecultura,erasimplesmenteastronómica.

Para o Koellreutter, liberdade e consciência eramos dois elementos essenciais da vida, que deveriam serdefendidos a todo o custo.

Vinteecincoanosmaistarde,quandomorreu,aquelesmesmos professores – que a ele tantas vezes tinham sereferido com profundo sarcasmo e desprezo – fariam rasgados elogiosementrevistaseartigosdejornais,declarandoteremsido sempre seus grandes amigos e admiradores, tal como tambémaconteceucomJohnCagequandomorreu.

O carácter daquele formidável mestre, por muitose durante um longo tempo considerado um perversor de jovens,porincutiroespíritodepermanentequestionamento

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seria claramente ilustrado pelo depoimento do compositor Valério Fiel da Costa, feito em 2005 quando damorte domestre: «Quando conheci Koellreutter, estava estudandoanálise musical em Londrina durante um festival nasfériasdejulhode1994.EunãosabiaqualquercoisasobreKoellreutter. Na primeira aula, para uma classe de jovenscompositores de todo o país, que formavam uma granderoda no meio da sala de um colégio estadual em Londrina, numamanhãextremamentefria,omestreperguntoucomnaturalidade: “O que vocês fazem aqui?”. Nossos olhosesbugalhados, nossos dedos congelados, nossos ouvidos em dúvida. Fez-se um longo silêncio e alguém, ávido pordestaque supôs ter a resposta: “viemos estudar análise,professor!”.JávisivelmenteimpacienteKoellreutterretornouapergunta:“Porquevocêsvieramestudaranálise?Paraqueserveaanálise?”.Comoninguémsemanifestava,vistoqueodesconcertohaviasidogeral,Koellreutterlançouumúltimodesafio:“Vãoparacasapensar!Amanhãvocêsmeexplicamoqueestãofazendoaquieassimpoderemoscomeçarcom

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ocurso!Adeus!”Esaiudasala.Ficamosaindamaisunsbonsquinzeminutossentadosesperandoalgumacoisaacontecer.Paramimjáhaviaacontecido».

AssimeraHansJoachimKoellreutter.Aprimeiraaulavivida pelo então jovem compositor tinha sido resumidanumaúnicaquestão–oqueestavamfazendoali?Quemera,realmente, cadaumadaquelaspessoas?Oque,paraeles,era a vida?

Questãofundamentalqueresumiatodasasoutraseasdescobertasaolongodasnossasvidas.Naverdade,tratava-sedeumaposturadequestionamentofaceàprópriaexistência,fundamentalnãoapenasparaocursoqueseseguiria,paraoquecadaumestudaria,paraasdescobertaspessoais,comotambém para o percurso de vida de cada um.

Em 1981, Koellreutter me ofereceu pela primeiravezumdosseuslivros.Chamava-seHarmonia Funcional, e

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tinhasidopublicadotrêsanosantes,noRiodeJaneiro.Naintrodução, ele escreveu: «Não é da obediência às regraseprincípiosdeordemtradicionais,masda coragemdeostransgredirquedependeovalordaobradearte».

- Esse é o único sentido da obra de arte. Se não hátransgressão, então... será outra coisa, mas não uma obra de arte. – ele me diria alguns anos mais tarde, comoqueeusempreconcordeiintegralmente.

Oscursosdeestética,nofinaldosanos1970ecomeçodos1980,aconteciamnumaconvencionalepequenasaladeaulas.

Koellreutter ficava sentado atrás de uma pequenamesa demadeira, ao fundo, do lado esquerdo e à frentede um grande quadro negro. Sobre amesa, ele distribuíapequenas fichas de cartão que o ajudavam a orientar odesenvolvimento da aula. Ao lado, um toca-discos – quenem sempre funcionava bem.

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Ele trazia sempre uma pasta preta, de couro, onde tinhafichas,anotações,algunslivrosediscos.

Aquelasaulascontavamcomcercadevintealunos–nuncamaisdoqueisso–enovosalunosnãoeramadmitidosquandoocurso játinhacomeçado,àexcepçãodequandocomecei a estudar com ele.

Na verdade, os cursos de estética – que duravamaproximadamente um semestre – tinham o título de“introduçãoàestética”,eelefaziaquestãodeoenfatizar.

Fiz esse curso algumas vezes e cada uma delas era um renovado prazer. Embora o programa básico fosse sempre praticamenteomesmo,Koellreutterintroduziaregularmentenovasreflexõesfilosóficasduranteasaulas,tornandotudodiferente.

- O programa é o mesmo. Mas, o mundo é diferente,

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eusoudiferenteevocêédiferente.Estamossempreaprendendo coisas diferentes. – justificou-se, certavez, e em tom animado, quando perguntei por quetodososanosoprogramadaquelecursoerasempreigual.

Há algum valor na música gravada? - alguém perguntou numa das aulas. A música gravada não eliminaria, pelasuapróprianatureza,averdadeiraexperiênciamusicalque está enraizadanadescoberta, na novidade? - alguémacrescentou.

Eram os momentos que ele mais gostava. Olhavaquietoparaaclasseenãorespondia.

− Muitobem...Oquevocêsacham?

Logo, um grande e animado debate absorvia a atenção detodos.Aquieali,Koellreutteriaacrescentandopequenasquestões, comuma ou duas palavras, como se orientasse

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com delicadeza o curso de um rio.

Nofinal,commuitasegurança,elefaziaumasíntesedetodaadiscussão:

− Nãosomostodosdiferentesacadamomento?Eujánãosouaquelequeestavaaquinoiníciodestaaula. Como poderíamos ouvir “a mesma coisa”duas vezes? Da mesma forma, ouvir uma música gravadaserásempreumaexperiênciadiferente.

E contouuma curiosa história relatadapelo próprioSalvadorDali,quandoestetinhavivido,entre1940e1948,nosEstadosUnidos.

Duranteaquelesoitoanos,depoisdograndesucessoda sua exposição em 1941 no MOMA Museu de Arte Moderna de Nova York, Dali teria se ausentado da cidade peloperíododeumano.Antesdepartir,tiveraumalmoçocom amigos. Quando voltou, um ano mais tarde, almoçou

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novamente com os mesmos amigos. Ficou espantado – porqueaquelaspessoas,comquemtinhaalmoçadoumanoantes, continuavam conversando sobre asmesmas coisas.Masele,Dali,jáera,definitivamente,outrapessoa.

Naturalmente, a aula deslizava para as sendas deHeráclito,Parménides,Zenão,projectava-sesobreoparadoxode Epiménides e chegávamos, inevitavelmente, aos sistemas termodinâmicoseàmecânicaquântica.

Ouvi-lo significava estar em contacto directo com opensamentodocélebrefilósofoehistoriadordearteJacobChristoph Burckhardt, mas também de Alois Riegl ou deWilhelmWorringer.

Koellreuttereraexpressãovivadatradiçãoquecunhouas ideias de Schoppenhauer, de Kant ou de Nietzsche,enquantométodo.

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Quemhoje lê umaobra do genial JacobBurckhardtencontrará nos seus livros um espírito muito semelhanteàquelequeexistianasaulasdoKoellreutter.Algumasvezes,chegará a encontrar até mesmo expressões semelhantes,outras vezes a mesma estrutura lógica, o mesmopensamento.

Nas suas aulas e nas suas brilhantes ideias estavamvivososespíritosquenosligavamdirectamenteaPalestrina,aBeethoveneaSchubert,eapartirdestesaSchoemberg,AlbanBergeAntonWebern.

Cada aula era uma experiência profundamentemarcante, inesquecível. Viajávamos com as suas palavras,com os seus pensamentos – e ele tinha uma grandecapacidade oratória, fazendo com que nós realmentemergulhássemos numa grande diversidade de mundos – da IdadeMédiaaJohnCage,deHokusaiaPalestrina,dePlatãoaClaudeDebussyouàÍndiaeaoJapão–equandosetratava

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deArnoldSchoemberg,deAntonWebernoudeAlbanBerg,a segunda Escola de Viena, então tudo ficava ainda maisemocionanteporque,algumasvezes,elepassavaafalardasuaexperiênciapessoaleeraumpoucocomosepartilhasseconnoscoasuamemória,asuaalma.

As aulas do curso de Música do Século XX eram um verdadeiro mergulho nas raízes do pensamento musicalocidental, desde a segunda metade do século XIX. Cadaaula era desenhada por audições, análises de partituras edebates.

Numadasaulas,visivelmenteemocionado,elecontoucomoemdezanovedeabrilde1936,quandoeletinhaapenasvinteanosdeidade–aproximadamenteanossaidadeentão– pouco antes de fugir da Alemanha em1938, foi assistirà primeira audição mundial do Concerto para Violino e Orquestra de Alban Berg.

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EraaúltimaobradeAlbanBerg.Aprimeiraaudiçãomundial aconteceu quatro meses após a morte docompositor, no Palau de Musica Catalana, em Barcelona, durante o XIV Festival da Sociedade Internacional de Música Contemporânea.

Louis Krasner – que tinha encomendado a peça aAlban Berg – tocou o solo de violino, e Hermann Scherchen, professordoKoellreutter,regeuaorquestra.Adirecçãodeorquestra deveria ter sido assumida por Anton Webern,mas ele estava demasiadamente emocionado pela morte do grande amigo, e não foi capaz.

O concerto também ficou conhecido como Em Memória de um Anjo.

Com lágrimas nos olhos, Koellreutter contou comoas pessoas naquela noite de 1936 estavam chocadas comasnotíciasdoamordeAlbanBerg,muitomaisvelho,pelajovemManon,filhadeAlmaMahler–quetinhasidoesposa

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deGustavMahler–edogenialarquitectoWalterGropius,fundador da Bauhaus.

Alban Berg tinha exactamente cinquenta anos deidadeeManonapenasdezoito.Eraumamorproibido.Umescândalo. Todos comentavam. Berg estava dilacerado por tantoamor.Derepente,Manonmorreuvítimadepoliomieliteem 1935. A sua morte foi devastadora para o compositor.

Alban Berg morreria poucas semanas mais tarde, na noitedeNatal.

As coincidências aumentaramos rumoresda época.Oescândaloquasesilenciosodoamordovelhomestrepelajoveminocente.Dasbarreirassociais.Davelhice.Daimensa,oceânicatristezadeAlbanBergqueoterámatado.

Aautópsiafoiinconclusiva.Supõe-sequeterámorridodevido a um envenenamento produzido por uma picada de

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algum insecto.

Muitos diziam ter sido devastado de forma avassaladora pelo amor.

- Vocês não podem imaginar. Todos amavam AlbanBerg. E, naquele momento, todos nós prestávamos umaemocionantehomenagemaele.Osilêncioeratotal.Todosestavam profundamente comovidos. Naquela época, umcompositor tinha um importante papel na sociedade. Aspessoasestavamtotalmentetomadasporaquelemomento.EmtodaaEuropa,eraapenasoquesefalava,semprecomimensopesar.Ninguémriaousorria.Mas,nãohaviacenasdedoroudedesespero.Tudoestavaquieto.Muitoquieto.Era avassalador.

Quandoelecontavaessashistórias,cadaumdenósficavaimediatamenteconscientedasgrandestransformaçõesplanetáriasquetinhamacontecidodesdeentão.

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Hoje em dia, um compositor – principalmente demúsica contemporânea – não tem praticamente qualquerimportância social, mesmo na Europa. As pessoas, em geral,passaramanãoconhecermuitoparaalémdoqueésuperficialmenteestabelecidopelosmeiosdecomunicaçãode massa e pelo entretenimento.

Atravésdassuaspalavras,dashistóriasquecontava,nóspodíamosimaginaroscafésdeViena,asestreitasruasaindailuminadascomlâmpadasaóleo,anoiteemBarcelona,agrandedivisãoqueexistiaentreumgrandecompositoreopovo–numcertosentidocomoviriaaacontecercomosactoresdeHollywoodprincipalmenteapósaSegundaGuerraMundial.

Koellreutter insistiuna imagemdasaladeconcertosemsilêncio.Aspessoasquietas.Comoseocompositoraindaestivesseali,vivendoograndedramadasuavida.Comoseoescândalodeumhomemmaisvelhoapaixonadoporuma

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adolescente ainda pudesse ferir de volúpia a alma de cada pessoaqueláestava.

Contou das emoções, dos murmúrios que corriamvoláteis entre as cadeiras do teatro.

E colocou para ouvirmos uma sublime gravação do concertodeAlbanBerg.Eoouvimostodos,quaseparalisados,nomaisprofundosilêncio.

Quando acabou, no final daquela viagem, muitoschoravam, principalmente as alunas, e todos – mesmo ele – estavam profundamente emocionados.

Tínhamosviajadocomele,atravésdosseusolhos,dasuaalma,aoqueeletinhavivido.

Cadavezqueasaulasdeestéticaterminavam,haviasempre um momento para a audição de uma ou duas peças

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musicais–quandonãoofazíamostambémduranteaaulaequandoasperguntaseodebatenãoeramtantosapontodeconsumiraquelespreciososminutosdofinal.

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Mas,asaudiçõesmusicaisnãoeramexclusividadedasaulas do curso de Música do Século XX.

Ficávamos maravilhados com peças musicais em gravaçõesmuitorarasqueelenostrazia–aindanãoexistiaInternet e não havia como as ter no Brasil.

Elas incluíam não apenas fabulosas gravações deconcertos de Ravi Shankar, como de grandes mestres da Índia,comoHariprasadChaurasiaouUstadSabriKhan,queeram totalmente desconhecidos no Brasil, mas também de um incontável número de compositores Japoneses como TohruTakemitsu,MakiIshii,paraalémderarasinterpretações

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de peças de Beethoven, Bach, Schubert, Guillaume deMachault, Perotin, Leonin, Palestrina, Debussy, GustavMahler,Stockhausen,PierreBoulez,JohnCage,GyorgyLigetiou Franz Liszt entre muitos outros.

DesdeaprimeiraauladehistóriadamúsicadoséculoXX,repareique,assimquecomeçávamosumaaudição,elefechava os olhos para a ouvir, e mergulhava na música como se fosse um sonho.

Algumas vezes, ou em alguns momentos, os seus olhos permaneciamabertos,masdistantes,perdidosno infinito.Com olhos abertos ou fechados, o seu corpo balançavaligeiramente, principalmente a cabeça, ritmicamente, às vezes osbraços,umdedo,comoseestivesseregendooconcerto.Cadaaudiçãoeraumaviagemaummundomaravilhoso.

A primeira vez que vi a sua reacção física ao ouvirmúsica, fiquei desconcertado – aqueles movimentos

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corporais mergulhados numa visão cega eram algo natural emmim,desde criança. Eutinha sempredeme controlarparaevitarquefossereprimidoporbrincadeirasechacotas,poisaspessoasnãocompreendiamoquesepassava.

A sensação é como estar fisicamente envolvido nodiscurso musical.

Tínhamosomesmocomportamentofísicoemrelaçãoàmúsica–umaidentidadeque,eudescobririapoucomaistarde,écompartilhadapormuitosmúsicos.

Mas eu ainda não sabia disso e aquele primeiromomentofoi,numcertosentido,comodescobrirneleumaprofunda relação espiritual.

Quando, final da tarde, já quase noite, cada umadaquelas aulas terminava, a tristeza era geral. Todosqueríamos continuar.Mas, Koellreutter era irredutível. No

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momentoprecisoemqueotemposeesgotava,erapontofinal,nemumminutoamais–enormalmenteaaulanuncachegavaverdadeiramenteaofim.

Sempre faltava alguma coisa para dizer, que eleretomaria, atenciosa e rigorosamente, na próxima. Haviasempreumalunoqueanotavaondeaaulatinhaterminado.Eelasterminavamsempre“cortadas”,mutiladaspoisnoseutodo mais pareciam um continuum,umaviagemsemfimesem escalas ou pausas.

Quando alguém chegava atrasado e vinha se desculpar, elediziacomgravidade:«Meuamigo,omortoésempreoculpado.Nuncaoassassino!».Eraumaformadefazercomque cada um percebesse a importância de contar com oimprevisível,planejandomelhorcadapasso.

Elediziaamesmacoisaparaqualquerumqueviessecom uma desculpa.

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Nada podia servir como desculpa. Quando ele diziaqueo morto era sempre o culpado, nunca o assassino, surgia sempre risos e alguma discussão, mas breve e animada. Alguma surpresa e risos.

Durante anos aquela expressão se tornaria umadas suas marcas mais conhecidas. Em muitos lugares, principalmenteentrealunos,essaafirmaçãodoKoellreuttererasempreanimadamentecomentadaerepetida.

A frase servia para os mais diversos momentos. Se alguémdissessequenãotinhaconseguidofazerotrabalhoporquealgootinhaimpedido,ouviaimediatamente:

- O morto é sempre o culpado, nunca o assassino. Se você tivesse se precavido, pensado no que poderiaacontecer, isso teria sido evitado.

Elefariausorecorrentedessamáximaatémuitotarde,quandoaviolênciaurbana,principalmenteemSãoPauloe

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noRiodeJaneiro,nãomaisopermitisse.Então,elepassouadizer,semprecomseufortesotaqueAlemãoesempreemtomdebrincadeira:

- Agorra não é mais possível. Agorra, o morto qvase sempre é o culpado, qvase nunca o assassino...

Quando um aluno insistia em justificar o atrasojuntandomais emais desculpas, por vezes ele dizia fria esecamente:

- Meuamigo,euviajeimaisdequinhentosquilómetrosparadaressaaulaechegueiantesdahora.Oquevocêquerqueeudiga?

E a conversa estava encerrada.

Alguns alunos não aceitavam, chegavam a ficarofendidos e iam embora para sempre. Mas, ele não se importava.Paraele,tudoeraofluídodaNatureza,eaquelesquepartiamassimodeveriamfazer.

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Ele não era um fatalista, alguém agarrado cegamente ao destino. Pelo contrário, acreditava firmemente no livrearbítrio,naliberdadededecisãoenaresponsabilidadequeessa liberdade implica. Mas, não era pessoa de fechar os olhos paraaestranhamagiadecertascoincidências.Eletinhaumlado mágico dentro de si, muito profundo, indeterminável e imprevisível.

Koellreutterfoi,seguramente,oprofessordemúsicamaisexigente,rigorosoededicadoquejátive.

Para começar a estudar com ele, a pessoa deveria saber ler fluentemente uma partitura tradicional, ter umaboa cultura musical, conhecer pelo menos os fundamentos da harmonia, do contraponto e de outras disciplinas.

Naépoca,eujáliacomfluência,pelomenosaspartituraspara o meu instrumento principal, a flauta transversal, já

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tinha umaboa culturamusical e conhecimentos razoáveisdaquelasdisciplinas–masexistiam lacunas, comosemprehá.

Ele também poderia aceitar um aluno que nadaconhecesse de música – mas, seria para aulas de composição, tal como para desenvolver princípios de uma composiçãoplástica,porexemplo,ouestética.

Não importava quem fosse, Koellreutter jamaisrecusavaumalunodedicadoesério,emqualqueráreaqueestivesse,masprocuravadistinguircomclarezaosobjectivose mantinha uma notável diferença de metodologia deensino.

- Composiçãopodeestaremtudo,umaobradearte,umtexto,umfilmedecinemaouumapeçamusical.O importante são os princípios da composição. E aestética é sempre fundamental em praticamentequalqueractividade.Nãosepodeconfundirascoisas.

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Se alguém estuda música, é uma história; se querestudarcomposiçãocomoutrosfins,nãoháproblema,mas será diferente. Da mesma forma, uma pessoa podequererestudarmúsicaparaserumprofissionalou simplesmente um diletante. Isso não o coloca num grauabaixodasoutraspessoas.Nãohálugarparajuízosdevalor,parajulgamentosoupreconceitos.Cadaumdeveserlivreparaestudareseroquequiser.

Eleerasempremuitoexigente.Quandocometíamoserros em alguma das várias disciplinas que ensinava, nãoraramente ele estabelecia uma multa em dinheiro e ameaçava cobrarcomumtomdetantaseriedadequedeixavaoalunoconstrangido e sinceramente preocupado.

-Meuamigo,esseseuerrofoitãogravequeamultaseráodobrodaquelaqueeucobronormalmente.

Noinícionuncasabíamosseelerealmenteficariaounãocomonossodinheiro,seaquiloerarealmentesérioou

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apenas uma brincadeira.

Vários alunos não suportavam a pressão – diziamqueeleerademasiadamenteautoritário–esimplesmentedesistiam.

Naturalmente, embora ameaçasse com firmezae seriedade – pois tudo aquilo era muito sério – elenunca chegava a cobrar as multas em dinheiro. Quando conversávamossobre isso,elediziasemqualquertraçodehumor:

- Mas! Eu não estou brincando. As pessoas têm decompreender que o trabalho deve ser levado comresponsabilidade, de forma séria. Ninguém podecobrar umamulta de alguém que está trabalhandocomseriedade.Mas, seestiver “nomundoda Lua”,distraído,então,oqueessapessoaestáfazendoaqui?Eunãoestouaquiparaperdertempo.Vocêstambémnãoestãoaquiparaperdertempo.Seapessoapensar

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queotempoperdidopodeserdinheiroperdido,entãoeladarámuitomaisimportânciaaoquefaz.Otempo,principalmenteaquinoBrasil,comotambémacontecena Índia, não tem muito valor. Mas, todo mundo dá valor ao dinheiro.

ParaoKoellreutter,otrabalhoeraacoisamaissériadomundo, uma seriedade que, de facto, nunca foimuitocomum no Brasil.

Seelepedisseparaqueumatarefalhefosseentreguenum determinado dia, não podiam haver desculpas. Ele dava todaaliberdadeparaoalunodiscutireatémesmodefinirosprazos de entrega antes, nunca depois.

Parte importante do seu papel como professor era dar aos estudantes a capacidade de auto gestão. Mas, muitos dos alunos não cumpriam os seus compromissos – apesar de serem,tantasvezes,extremamentetalentosos.

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- Dolce far niente... dolce far niente… – resmungava sorrindo e cruzava os braços, balançando suavemente o corpo para a frente e para trás, como se nada houvesse a fazer.

ElepensavaqueoBrasileraopaísdodolce far niente, numcertosentidocomoa Itália.Masnãotinhaessa ideiacomoalgoobrigatoriamentenegativo.

Era, simplesmente, a forma natural das pessoas. Apenas isso.

Ao longo dos anos fui testemunha, ainda que eletenhasidosempremuitodiscreto,derecriminaçõessuasaalunos, tantas vezes devido a atrasos ou a não entrega de trabalhos.Emboapartedasocasiõesosalunoschegavamsorrindo,brincando,pediamdesculpasotempotodoesaíamsorrindo.Sorriammesmoquandoeleestavasério.Eleficavavisivelmentecontrariado.Chegava,emalgunsmomentos,a

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serduro:- Meuamigo,dessejeitooquevocêquer?Oqueserá

da sua profissão?Não trabalha!Dessa formanuncaconseguirá qualquer coisa na vida. O que podemosfazer?

Quandooalunonãoestavamaisporperto,Koellreutternãoescondiaoseufascíniopeloespírito leve,peladoçurado povo brasileiro e fazia, em tom confidencial, algumcomentário brincalhão.

Umdos seus grandes prazeres era viver cercado dealunos. Quando os alunos estavam por perto, ele estava bem.

Na outra extremidade do espectro, algo que eleabominava eram os encontros sociais. Jamais usava fato ou gravata.

- Nãohácoisamaispreciosanavidaqueotempo.Estar

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junto de pessoas que falam coisas superficiais, seminteresse,éoverdadeirosofrimento.Nãoseaprendequalquer coisa. Tudo são futilidades. Pura perdade tempo. O mundo está repleto de pessoas fúteis. Algumasvezeseunãoconsigoescapar.Oquefazer?Éumterrívelconsumodetempoparanada.

Certavez,elefoiobrigadoadesmarcarumjantarquetínhamos agendado, porque já tinha acertado um outrocompromisso,mastinhaseesquecido.

O encontro marcado era com uma mulher importante, alguém da alta sociedade, uma das pessoas que ajudavafinanceiramenteafaculdade.

- Eunãopossodeixarde ir.Sãocompromissos. Issoépolítica.Eéimportanteparaafaculdade.Voutentarsobreviveraessasituação...Amanhãvocêmetelefonapara saber se ainda estou vivo... – disse brincando.

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Nodiaseguinte,quandoestávamosasósnasaladeaula,pergunteicomotinhasidooencontrodanoiteanterioreeleconfessou:

- Muito desagradável... muito desagradável... A pessoa eraextremamentegentil,mas sãopessoasdeoutromundo, não são do meu mundo, do nosso mundo, do mundo da música, do mundo da arte. Ela colocava para tocar no seu excelente e caríssimo equipamento desommúsicasparaeuouviremedesafiavaparaqueeudescobrissequemera,quemestavatocando!Eracomosefosseumconcurso,umjogo.Pareciaumprogramadetelevisão...Comoseeufosseumcãoamestrado.Quedesagradável!Omaridoeosoutrosconvidadostambémparticipavam.Numdeterminadomomento,ela colocou para tocar um solo de violino e perguntou quemera.Eraclaro!EvidentementesetratavadeumsolodoJachaHeifetz.Eraclaro,notório,evidente!Mas,ela ficou impressionada, espantada, como se fossealgo extraordinário, como se eu fosse um feiticeiro.

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Ora, era extraordinário para ela, mas não para ummúsico.Elaconheceasmarcasdasroupas,oqueparamiméextraordinário!Eunãoconsigodistinguirumamarca da outra. Esses encontros acabam por ser um grandeconsumodetempo,muitocansativo...

NuncachegueiasaberseKoellreuttertinharealmenteouvido absoluto – pelo menos comigo ele dizia sempre não dar o menor valor a isso.

- O que nós chamamos de ouvido absoluto é compreensão das relações, e é algo que pode serestudado, melhorado, treinado.

Quandoalguém lhediziaquenãotinhaouvido para música,elebrincava:

- Você não terrr ouvido? – e olhava para a orelha da pessoa–Mas!Eleestarraí!

Paraele,qualquerpessoapoderiaserummúsico,de

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uma ou de outra forma. Tudo dependia apenas da dedicação, do tempo entregue com amor ao trabalho.

- Existem, de facto, algumas pessoas com problemasreais de audição ou mesmo de percepção musical ao nível cognitivo, em termos neuronais.Mas, quandoisso acontece, trata-se de algo de natureza médica. E é raro. Todo o resto, noventa e nove por cento dos casos, é somente uma questão de trabalho, de educação.UmaboríginedaAustráliapode“nãoterouvido”paraamúsicaocidental;mas, seguramente,nós também“não teremos ouvido” para a sua música. Quando não setratadeumgraveproblemafísico,todoorestoéumaquestãocultural.

A sua compreensão de educação não era a da informação. Isto é, a ideia de um professor à frente da sala de aulas fornecendo grandes quantidades de informaçãopara os alunos lhe parecia algo perfeitamente bizarro.

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Eletinhaacompreensãodaeducaçãocomoformação do ser humano, uma verdadeira paideia. Assim, ele estava abertoparaserprofessordepraticamentequalquerpessoa,poisoqueeletratavaeraométodo,oautoconhecimento,adescoberta–eissopodeaconteceremqualquerdisciplina.

Alguns dos seus alunos nem músicos eram. Havia físicos, filósofos, químicos, matemáticos, comunicadores.Muitas pessoas o queriam como mestre, e não poucosvinhamdelonge,atédeoutrascidades,paraassistiràssuasaulas.

Porvezeseutinhadeesperarparaoacompanharàcasa,jáànoite.Haviaatémesmoalunosqueaparentavamsermaisvelhos doqueele,muitas vezes cientistas, principalmentepesquisadores de física e de química. Eram sempre aulasparticulares.Eotratavamcomverdadeirareverência.

Asaulasdeestéticaestavamentreassuaspreferidas.

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Ali, sempre começava uma viagem ao desconhecido, à surpresa, ao inesperado.

Especialmente naquelas viagens de estética, mastambémemoutrasaulas,elegostavadeenfatizarosentidoderelatividadeentreascoisas.

- Vivemostudocomoumailusão.Maia!Tudoérelativo.Quandosedizquetudoérelativo,significadizerqueestamos tratando de relações, nunca das coisas em si mesmas. Dois cientistas defenderam recentementequeaconsciênciamodificaarealidade–aconsciênciamodifica amatéria! Eles são EugeneWigner e JohnArchibaldWheeler.

Naqueledia,Koellreuttertratoudeescrevercomletrasbem grandes no quadro negro: a consciência modifica a matéria.Ereforçava,sublinhando:em termos experimentais. E, também em grandes letras, escreveu o nome dos cientistas.

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Aquelaaulafoiumdosmomentosmaismarcantesdaminhavida.Ora,seaconsciênciamodificaamatéria,entãopraticamente tudo o que sabemos está inevitavelmentecondenadoaumaprofundarevolução!

Toda a cultura ocidental está fundamentada no princípiosegundooqualamatériamodificaaconsciência,enuncaocontrário!

Não se tratava doPrincípio da Incerteza deWernerHeisenberg, segundo o qual a observação – através dosseus meios – modifica o estado da matéria numa escalasubatómica,masdaconsciência modificandoamatéria!

E aquela dramática afirmação colocada no quadronegro não dizia sobre uma eventual mudança da compreensão doqueeraamatéria,massimdasuamudançaemtermosconcretos,estrutural,dasuatransformação!

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Quandoalgumoutroprofessorouviaumaafirmaçãocomoaquela,logotorciaonarizcomoquemdissessequeovelhomestreAlemãotinhapassadooslimites,quedeveriaestar ficando senil – e muitos diziam precisamente isso,embora nunca à sua frente.

Koellreutter amava profundamente física e filosofia– eram duas bases essenciais do seu pensamento, da sua vida.

Quandosereferiaaofactodaconsciênciamodificaramatéria,eleestavaindicandoacélebreexperiênciachamadaDouble Slit Experiment,realizadanoiníciodoséculoXXpelofísicoematemáticoinglêsGeoffreyIngramTaylor,queviveuentre 1886 e 1975.

John Wheeler e Eugene Wigner comentaram essasensacionalexperiêncianoâmbitodeumaprofundareflexão

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sobresistemasdissipativoseaflechadotempo.

Koellreutter também discutia abertamente, nãoimportavaquemfosseoaluno,sobreprocessosdissipativos,sistemas complexos, flechas de tempo, questões sobretempo assimétrico ou simétrico, fundamentos da teoria geral darelatividade,teoriadocaosemuitosoutroselementosdafísicateórica–ejáofazianofinaldosanos1970.

IlyaPrigogineeraumareferênciaconstantenassuasreflexões,mas tambémNielsBorh,AlbertEinstein,RobertOppenheimer, Richard Feynmann, Erwin Schröndinger ou WernerHeisenbergentreoutros.

Nessas reflexões que enfeixavam física, filosofia eestéticaafiguradoaleatório,doacaso,estavamuitasvezespresente.

- Em última instância, tudo é acaso. Quer dizer, semergulharmos numa escala subatómica teremos o

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Princípio da Incerteza de Heisenberg. Segundo ela, é impossível determinar aposiçãodeumapartículasubatómica.Mas,poroutrolado,tudoécausalidade,pois todas as coisas estão ligadas entre si. Quando trabalhamos com música, estaremos sempre operando o acaso, num ou noutro sentido, sendo o acasodeterminísticoounãodeterminístico.Oimportanteédarformaaisso,paraquepossaserpercebido.Ouseja,oimportanteéestabelecerumquadrodecausalidadeno acaso.

Eram conceitos por vezes muito abstractos e, não raro, eletinhaderepetircalmamentediversasvezes,raciocinandocom os alunos.

Quandoo ouvi falar que a consciênciamodificava amatéria em termos concretos e experimentais, tratei deentraremcontacto,logonodiaseguinte,comoConsuladodosEstadosUnidosemSãoPaulo,ondeobtiverapidamente

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oendereçodocientistaastrofísicoJohnArchibaldWheeler,naUniversidadedePrinceton,pertodeNovaIorque.

Apesar de então não existirem rápidos meios decomunicaçãocomoosquesurgiriamalgunsanosmaistarde– tudo era feito através de cartas – também não havia os medos,perigosdeterrores,imagináriosounão,exageradasatençõescomsegurança,controlesdetodootipoe,porisso,oConsuladoamericanomeenviouquasequeimediatamenteo endereço do cientista sem quaisquer hesitações ourestrições.

Algumasvezeseumeperguntose,paradoxalmente,oavassalador desenvolvimento dos meios de comunicação não acabouportornarmaisdifícilocontactocompersonalidadescomoJohnWheeler.

Escrevi imediatamente uma carta para o célebre cientistaexpondoaminhaprofundaperplexidade–mesmo

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sendo eu na época um menino com pouco mais de vinte anos deidadeeeleumcelebradocientista,váriasvezesnomeadoparaoprémioNobel.

Nemespereiquehouvesseresposta.

Mas, para a minha surpresa, ela chegou. Eu estava estupefacto! John Archibald Wheeler escrevera muitogentilmente agradecendo a minha carta, informando quetinha montado um grupo de reflexão sobre as minhasquestõesnauniversidadedePrinceton!

AquelaatitudetãogenerosadeJohnWheelerfezcomque eu ficasse absolutamente capturado pelo seu espíritolivre e aberto.

Duranteosquasevinteanosseguintes,JohnWheelereeumantivemoscontactoatravésdecartasmas,infelizmente,nunca chegamos a nos conhecer pessoalmente.

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Nosanos1990,comocoordenadordeumimportanteencontro internacional de arte e ciência em Lisboa, naFundação Calouste Gulbenkian, cheguei a convidar JohnWheelerparadarumaconferência,maselenãopôdeaceitarpoisjáestavacomidademuitoavançada.

Quando Koellreutter soube que eu tinha escrito aoJohnWheeler,queeletinharespondidoequemantínhamoscontacto através de cartas, ficou imensamente feliz,verdadeiramente entusiasmado.

ParaoKoellreutter,aquilosignificavaosucessodeumaluno, e não haveria melhor recompensa para o seu trabalho como professor.

O sucesso para ele não era a fama ou o dinheiro, mas a descoberta, a iluminação. Estar em contacto com John Wheeler significava estar próximo de uma fonte de

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conhecimentos, estar mais integrado na rede planetária de inteligência.

Aquela liçãoquedesencadearaomeucontactocomJohn Wheeler não foi algo isolado. Não havia aula comKoellreutter em que não houvesse alguma surpreendentedescoberta e que ele não estivesse profundamentecomprometidocomumabsolutoespíritoprofissional.

Comele,cadaumdenóstinhadeviverquotidianamentea realidade da descoberta. Mas essa realidade deveria estar, sempre,abertaefortementecomprometidacomarealidadedavida,comasobrevivência,comasquestõessociaiseassimpor diante.

Ninguémpoderiaestaralienado.Mas,aalienação,paraele, não se resumia às forças e mecanismos de produção. Ela implicavaumuniversomaispróximodeMichelFoucault,deuma espécie de microfísica do poder.

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Eraumaquestãodeconsciência.

Osalunosorespeitavamquasequedeformareligiosa.Quandoeleentravanasala,todosficavamautomaticamenteemsilêncio.Nãoeraprecisopedirenãoeraalgodeterminadopor ele, por alguma lei ou regulamento escolar.

Havia, em relação a ele, um verdadeiro amor a um grandeeinesquecívelmestre.

Nuncaviqualqueralunodiscutircomele,nemmesmofalardeformamaisexaltada.Quandoficavamcontrariadasporalgummotivo,aspessoasnãodiscutiam–Koellreuttertinhaalcançadoumestadodeadmiraçãoerespeitoquenãopermitiagrandesexaltações.

Por outro lado, a sua dedicação aos alunos era total. Dava aulas em cidades distantes centenas de quilómetros

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entre si. Durante anos viveu entre o Rio de Janeiro e São Paulo.Mas,nessemesmoperíodo,iaregularmenteaCuritiba,a Belém, a Belo Horizonte, a Salvador – onde viveu durante anos na década de 1960 – e a muitas outras cidades. Por vezes, durante algumas épocas, chegava a percorrer mais de doismilquilómetrosporsemana,paradaraulas.

Numa única semana, muitas vezes durante váriosmesesconsecutivos,eleeracapazdeviajarentreoRiodeJaneiro, São Paulo e Belo Horizonte para estar com seus alunos.

Aúnicapessoaqueconhecicomumtalfrenéticoritmode viagens e dedicação aos alunos era outra professora, outra grandemestra:RotiNielbaTurin.

Paranãocomprometerotempodosalunos,Koellreutterviajava à noite e na maior parte das vezes de autocarro.Procuravasempreficarnaprimeirafila,comagrandejanela

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frontal reservada apenas para si. Em cada viagem, comprava dois lugares, para estar mais confortável e, principalmente, para não ter alguém sentado ao lado, falando com ele.

Preferiaviajaremsilêncio.«Quemfalamuito,pensapouco»,diziasempre.Porvezes,pessoasviamqueolugaraoseuladoestavavagoeseaproximavamparasentar.«Estáocupado!»–alertavaelesempaciência.

- As pessoas não compreendem! Eu pago por doislugares exactamente para não ter uma pessoa aomeu lado.Quando alguém insiste emquerer sentaraomeuladoeuperguntosenãoécapazdeverqueaquele lugar já está ocupado, como se lá estivessesentada uma pessoa. As pessoas não compreendem e,algumasvezes,sentam.Entãoeuinsisto:“Agoraosenhor acabou de sentar sobre o meu amigo. Levante-se,porfavor!Rápido!Rápido!”.Algumasvezesriem,achamqueéumapiada,entãoeutenhodefazerumaexpressãomuitosériaevoltarainsistir;outrasvezes,

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pensam que sou maluco vendo fantasmas e saemrapidamente.

Ao longo dos anos ele reunia alunos para viagens a Madras, no sul da Índia, durante a estação seca. Iam todos assistiraofamosofestivaldemúsicaindiana.

Infelizmente, apesar de termos combinado ir juntosalgumasvezes,nuncachegueiairaessesfestivais.Conhecialgumaspessoasqueforamevoltavamencantadas.Aviagemnãoeraapenasparaassistirumfestivalderagas, mas também visava compreender um outro mundo e mesmo aquelecomoqualestavamtodosjádemasiadamentehabituados,amortecidos, insensíveis. Era, no final das contas, umaviagem espiritual.

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HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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Elesevestiasemprecomumablusacomgolaolímpica,queemPortugalémaisconhecidacomogola alta. Durante boapartedosanosquesepassaramnuncaovicomoutraroupa,mesmoquandofaziamuitocalor,noverão.

Perguntei por que se vestia sempre assim. OcompositorJorgePeixinho–queeraumgrandeamigomeu– também usava sempre, religiosamente, blusa com gola olímpica. Muitos compositores daquela época se vestiamdessa forma.

- Normalmente,osmúsicosdachamadamúsicaeruditausam camisa branca e calça preta. Mas, os músicos de esquerda,socialistas,passaramausarablusacomgola

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olímpica, como um símbolo, uma forma das outraspessoassaberem,automaticamente,aquiloqueelespensam.Umcompositordemúsicacontemporânea,deesquerda,veste-seassim.IssocomeçounoséculoXX,depoisdaSegundaGuerraMundial.Eunãopossousar outra roupa. É como um uniforme. Quandoalguémolhaparamimjásabeoqueeufaçoeoqueeupensoemtermossociais.Mas,nofinaldascontas,tudoé fantasia.Você, por exemplo, temumafiguramuitoromântica.

- Romântico,eu?!!!...–fiqueisemsaberoquedizer.Asuainesperadaafirmaçãomedeixoudesconcertado.Umadasaulastinhachegadoaofim,osoutrosalunosjátinhamsaídoeestávamosasósnasala.

- Sim,vocêpareceumpersonagemromântico,doséculoXIX...

- Porquê?- Porqueéasuaimagem!Veja...asualongabarba,os

seus longos cabelos. Parece que estou falando com

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alguémdoséculoXIX.Vocêdeveriacortarabarbaeo cabelo.Vocêéum compositor contemporâneo!Aimagem também é comunicação. Mas essa é uma decisão sua, eu nada tenho a ver com isso.

Cercadedoisoutrêsanosmaistardeeuacabaria,defacto, por cortar definitivamente a barba e o cabelo. Nãoporquetinhasidooudeixariadeser“romântico”.Aminhadecisãofoibaseadanaideiadequeépreferívelobservarmosdo que sermos observados, principalmente para quemtrabalha com arte e com música. Assim, eu deveria me tornar invisível, para poder melhor observar as pessoas, e passar despercebido – pois a sociedade é a nossa mais pura matéria prima.Umaideiaminha,muitoíntima,pessoal.Aindaassim,aquelaespertaobservaçãodoKoellreutterficouimpressadeformaindelévelnaminhamemória.

Eletinhaumgrandecuidadocomaaparênciapessoal,emborafingissenãoligar.Levava,talcomooJorgeMedauar

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oumesmoomeupai,sempreumpequenopentenobolsodetrásdacalça.Nuncaovíamosdespenteado.

Francamente contrária à imagem que tínhamosdele – uma pessoa séria, germanicamente austera, fria e relativamente fechada – eram as impressões deMaurícioNogueira Lima,que foi umdosmeusmelhores amigos aolongo de muitos anos. Ele era um importante pintor concreto, que terá influenciadodecisivamenteacarreiradeMaxBill–segundodeclaraçõesdopróprioartistasuíço.SegundooMaurício,Koellreuttersemprecausavaumverdadeirofurorentre as mulheres.

O pintor concreto – corrigia severamente quem ochamasse de concretista, pois amava o Dadaenãoadmitiaosismos–estiveramuitasvezescomoKoellreutternopassado,tinhamsidobonsamigosenãoescondiaoseuespanto:

- Vejacomatenção.Eleéumhomemfeio.Temumnarizenorme, sobrancelhas enormes... Mas as mulheres

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ficamderretidascomele!Comopodeser?!

AquelaimpressãodoMauríciopodiaserverdadeira,mas–aindaassim–Koellreuttereraumhomemextremamentediscreto e clássico.

Quando ele me convidou para ser seu aluno de composição,aprimeiracoisaquefezfoiexigirqueeulessedoislivros,fundamentaissegundoeleparaqueeupudessecompreenderoespíritodassuasaulas.

Pedia sempre o mesmo a todos os alunos, independentementedocurso:Carta a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke e A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel.

Eujátinhalidoaquelesdoislivros–tinhamsidodoistextosmuitoimportantesnaminhavida.Naquelemomento,fiqueiencantadoaosaberquetínhamosmaisumpontode

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identidadeentrenós.- Bom,meuamigo...sevocêjáleu,entãopronto...está

feito–dissedandoumpequenopassoparatrás,semmanifestar qualquer admiração ou surpresa. Falavaquasecomindiferença,comoseestivessetratandodeumametaqueforacumprida,apenasumaexigênciasuperada.

Ao contrário do que acontece com a maioria dosprofessores, Koellreutter não seleccionava fragmentos doslivros que indicava para serem analisados. Ele pedia paraque os seus alunos lessem o livro todo e tivessem umacompreensão total da obra.

Nesseespírito,elesugeriaaleituradediversoslivros,como O BanquetedeMáriodeAndrade–queeleanalisavacríticaecomparativamenteàobradePlatão;oTao da Física, deFritjofCapra,queanalisamosquaseaomesmotempoemqueeralançadonosEstadosUnidoseoutros.

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Mas, haviam livros que eram especialmenteimportantes para ele. PaideiadeWernerJaegereraumdeles;outro, era Física e FilosofiadeWernerHeisenberg;etambémFilosofia em Nova Chave,dafilósofaSusanneLanger.

Outrolivroque,nofinaldosanossetentaeiníciodosoitenta,eraquasequeobrigatoriamenteadoptadoporele,mas não nas primeiras aulas, era o Ensaio para Uma Nova Estética da Arte Musical, de Ferruccio Busoni.

Busoni escreveu esse interessantíssimo tratado em1907.Quaseumséculomaistarde,eleaindaerainstiganteedesafiador.«...caminhamosparaosomabstracto,paraumatécnica sem vínculos, para o ilimitado sonoro. E todos osesforçosdeverãoconduziraisto,afimdequesurjaumnovocomeço da arte musical, maravilhoso e virgem», escreviaBusoni.

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AúnicatraduçãodessetextoparaoPortuguêstinhasido feita em 1966 por um seu velho amigo, o genial maestro emusicólogoSérgioMagnani,daUniversidadedeSalvador,na Bahia.

Koellreutterpossuíaumúnicovelhoexemplaroriginaldaquele livro. A única cópia, que durante anos transitavapelos alunos, tinha sido definitivamente perdida. Alguématinhalevadoenãodevolveu.Assim,apartirdoexemplaroriginaldoKoellreutter,tratamosdefazercópiasparatodososquequisessem.

A missão ficou a cargo de uma aluna, que eraextremamente cuidadosa. Perder ou danificar um livro ouum disco seus era algo muito grave – mas, tal risco não impedia que emprestasse. Fazia-o com muito cuidado.Cercava-sedeprecauções.Aolongodavida–dizia–tinhaperdido uma verdadeira biblioteca nas mãos de alunos menos atenciosos.

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Certavezpergunteiseelenãotinhareceioememprestardiscos ou livros para os alunos, se não desapareciam. Pessoalmente, eu nunca levei qualquer dos seus livros oudiscos para fora da sua casa.

- Sim, é verdade... às vezes desaparecem. Quando isso aconteceémuitograve.Mas,oqueeupossofazer?Osobjectosnãoexistemparamimouparavocê,elesexistempara as pessoas.Nósnadamais somosquefiéis depositários dos objectos. Tudo é uma rápidatransição. Rapidamente não estaremos mais aqui.Qualseriaousodeumlivroouumdiscoseeleficasseapenas comigo?

Naprimeiraauladecomposição,elepediuqueeulhemostrassealgoquetinhaelaborado,umapeçaqualquerqueeutivessecomposto.

As nossas aulas de composição não começaram do

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nada,masnasceram,numcertosentido,dealgoqueeujátinhafeito,dealgoconcreto.

TudoparaKoellreuttertinhadeteressacomponenteobjectiva.Nadapoderiaestarforadarealidade–daquiloquesomosedoquefazemos.

Naturalmente, eu não tinha comigo algo que lhepudesseapresentar.Assim,aquelaprimeiraaulafoidedicadaaconhecermelhoroqueeufaziaemtermosgerais,omeurepertório,omeuníveldeleitura,umalongareflexãosobreprincípiosdeordem,umpoucodehistóriadacomposiçãoeassim por diante.

Nãofoiprofessoral,pedante,pelocontrário,estávamosnuma mesa e conversávamos como dois amigos.

Àsaída,caminhandopeloscorredores,comenteisobreolivrodeEugenHerrigel,quetinhasidoumimportantelivro

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para mim. Ele sorriu mas mudou rapidamente de assunto. Nós dois gostávamos muito daquele livro. A sua históriasobreaconsciênciatinhacapturadoosnossosespíritos.

Todavia, existia um grave problema em relação aHerrigel – tal como aconteceu com Ezra Pound, T.S. Elliot ou Villa-Lobos, cada um deles por diferentes razões mas,emcertosentido,semelhantes.Herrigelelaborou,defacto,um belíssimo livro sobre o Zen. Mas, por misteriosas esombriasrazões,filiou-seaoNationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, Partido Nazista, em 1937, tornando-seum nazista entusiasta e fervoroso seguidor de Hitler – mesmaépocaemqueKoellreuttereraobrigadoa fugirdaAlemanha.

-Perguntamosanóspróprioscomoalgoassimpodeacontecer.Avidaéfeitadeparadoxos.

Naaulaseguinte,comopedido,leveiumadasminhaspartituras totalmente gráficas, feita com lâminas semi

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transparentes em papel vegetal. A composição se chamava Cantos.

Aquelapeçatinhasidoelaboradaapartirdeelementosda Teoria do Caos e, tal como acontece com as minhascomposiçõesmusicaisparaserexecutadaporoutraspessoas,privilegiavaacriatividadedosmúsicos–todavia,semdeixardeestabelecerprincípioslógicosquevisavamrompercomaformatradicionaldesearticularaprópriamúsica.

Naquela composição, tudo acontecia comoum jogodinâmico onde o trabalho do compositor e dos intérpretes estavafortementeentrelaçado–algoqueviriaacaracterizarpraticamentetodososmeustrabalhosfuturos.

Ele olhou atentamente, de forma fria e profissional,folha por folha, sem esconder alguma surpresa diante daquelaslâminascomváriosdesenhoscoloridos.

- Muito bem... vou levar isso comigo, para analisar.

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Umasemanamais tarde,novamenteduranteaaulade composição, sozinhos numa sala de aula, Koellreutterespalhouasminhaspartiturasgráficassobreamesa,cruzouosbraçoseperguntoucomgrandeseriedade:

- Foivocêquemfezisso?- Sim,naturalmente!...–respondimuitosurpreendido

pelasuapergunta.Afinal,comopoderiatersidooutrapessoa?

- Vocêsabeoqueéplanimetria?Vocêjáestudouisso?- Não...–eununcatinhaouvidoaquelaexpressão.

Planimetriaéotermousadoparadesignarpartiturasgráficasrealizadassobreumasuperfíciebidimensional.

Pediu para que lhe explicasse pormenorizadamentea minha composição, como funcionava, como os músicos a deveriam interpretar, de onde tinha surgido a ideiafundamental,quantascomposiçõescomoaquelaeujátinha

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elaborado e assim por diante.

A cada resposta, ele perguntava algo verdadeiramente perturbador. Eu era obrigado a estar extremamenteconcentrado. A sensação era de que se tratava de umaespéciedejogoentreasnossasduasmentes,tendoaquelacomposiçãocomopanodefundo,comoreferência.

Essa foi verdadeiramente a minha primeira aula de composição com Koellreutter. Um intenso e desafiadordebate intelectual.

- VocêconheceaminhapeçachamadaÁcronon?

Eu não conhecia.

CompostaporKoellreuttercercadedoisoutrêsanosantes, em 1978, Ácronon éumapeçamusicalcujapartituragráficaestádesenhadasobreumagrandeesferadecristal.Aesferaécolocadanomeiodaorquestra.Dependendoda

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posição de cada músico, a sua leitura é diferente. Isto é, cada músicoolhaparaaesferaeinterpretaoquevê,oselementosindicativosdossonseassuasrelações,tomadosdediferentespontosdevisão,dediferentesângulos.Oqueestáàfrenteouatrásécombinadonatransparênciadaesfera.Mastudopermaneceestruturadonumúnicosentidodeunidade.

SérgioVillafrancaeKoellreuttercoma

partituraesféricadeÁcronon

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CreioqueaprimeiraaudiçãomundialdeÁcronon foi aquelarealizadaem1978pelaOrquestradoTeatroNacionaldeBrasília,comregênciadopróprioKoellreuttertendoCaioPagano como solista ao piano.

Muitos anos mais tarde, ele me contaria algo surpreendente.ElediziaquenoBrasil,naquelaépoca,porvezesosmúsicosdasorquestrassimplesmenteserecusavamatocarumadeterminadacomposição,quandoconsideravamque “não era música”! Creio que isso também aconteciaem Portugal. E talvez ainda aconteça e em muitos lugares diferentes.

AexecuçãodeÁcrononexigiuumcansativotrabalhopreliminarparaconvencerosmúsicosdaorquestraque,aprincípio, recusavam-se a tocar.Nãotinha sido a primeiravezqueaconteciaarecusadosmúsicosparatocarumapeçacomaqualnãoconcordavam.

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SoubequeatémesmopeçasdeArnoldSchoemberg,de Anton Webern ou de John Cage eram, muitas vezes,recusadaspelosmúsicosdasorquestras!

A minha peça – que mostrei na primeira aula decomposição – não era uma esfera, mas as várias lâminas transparentes, permitindo uma leitura independente,móvel, flexível e, simultaneamente, interdependente dossignosmusicais,estabeleciaumainequívocarelaçãocomasua obra.

Era algo totalmente diferente do seu trabalho, mas como se o fenómeno da serendipidade emergisse comtoda a sua exuberância, evidenciando a realidade de umaideosfera,haviaumquestionamentoclaramentesemelhantenasduascomposições,peçasquepossuíamumanaturezaequivalente,quepertenciamaummesmomundo.

- Por que você fez essa composição assim? Por queescolheu essa estratégia? – ele perguntou sem

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esconder a curiosidade e, ainda, alguma relutante surpresa.

- Porque cada pessoa é um universo completo, cadapessoa deve ser criativa. A partitura deve ser umaespécie de guia, de condutor para a experiênciamusical,nuncaumaprisãoparaointérprete.Umjogo,um processo de diálogo entre seres humanos.

- Vocêémuitonovo...asuapeçaémuitointeressante.Durante esta última semana eu mostrei a suacomposição para algumas pessoas. Muito interessante. Naverdade,elaémuitoimportante.Oquevocêbuscacomessetipodecomposição?

- A subversão. Procuro designar elementos queestabeleçammomentosdequebra,derupturacomaformadepensar.Emcadapeçadevehaverumdesafiopara aquele que ouve. Um convite à descoberta.Estabelecendo esses elementos, estamos criando uma mudança na forma de pensar. Mudando a forma de pensar, mudamos a forma de agir, mudamos as nossas

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naturezas. – respondi muito seguro daquilo que eufazia.

- Muito interessante. Tudo deve ter uma função social. Nunca se esqueça disso. Hámuito trabalho a fazer.Nãohátempoparadescansar.

Então, ele foi fazendo perguntas e mais perguntas. Geralmente curtas. Cada pergunta desencadeava umalonga argumentação, uma longa resposta, que ele ouviaatentamente.

Dinâmicapartituravirtualsobretela de computador, com uso de inteligênciaartificial.Concertoparagrandeconjuntodeinstru-

mentos, de Emanuel Pimenta, 1982.

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Para alguém que não compreendesse o que estavaacontecendo,aquilo tudopareceriamuitoestranho–poisele apenas fazia curtas perguntas e eu falava sempre.

Numcertosentido,assuasperguntasconduziamomeupensamento. Elas orientavam a construção do pensamento.

Normalmente, são os professores que falam mais.Especialmente nas aulas de composição e em algumas outras aulasprivadas.IssonãoaconteciacomKoellreutter.

Cada palavra do aluno era cuidadosamentemedidae relacionada com outras. Para ele, pormais simples quefossem,nãohaviapalavrasquenãomerecessemsertomadasprofundamente a sério.

As aulas eram momentos de grande dedicação.

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Intuitivamente,eucomeçaraosmeustrabalhoscompartiturasgráficasnofinaldosanos1970.Eunãoimaginavaqueeraalgojápertencenteaumalinhahistóricadecomposição.Seporum lado,o factodoKoellreutter termesituadonocontextohistóricoamplioudramaticamenteocaminhoqueeu ainda tacteava, por outro os seus ensinamentos sobre técnicasdecomposiçãonessenovomeiotornarampossívelao rápido aprimoramento dos meus trabalhos em universos dinâmicosoperandoemtrêsequatrodimensões.

Até então grande parte – senão a sua totalidade – das partituras gráficas eram bidimensionais e estáticas, comexcepção à Ácronon e aqueles meus primeiros trabalhoscom lâminas soltas.

Alcançar um tal grau de complexidade exigia umelevadoníveldeconcentraçãoeseriedade.

No Brasil, como nos Estados Unidos, é comum os

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alunos fazerem brincadeiras, trocadilhos, durante as aulas. Quandoissoacontecia,eleficavavisivelmenteirritado.

- Meuamigo,eunãoestouaquiparabrincadeiras.Sevocê não levar a sério, então o melhor é procuraroutra coisa para fazer – dizia com gravidade, mas sem irritação.

Testemunhei várias vezes cenas como essa com os mais diferentes tipos de alunos. Creio que isso nuncaaconteceuentrenósporqueeueramuitoformaledesdeoiníciocompreendiquefazerbrincadeirassignificava,paraele,gastarumpreciosotempocomalgoquenãoeraestudar.

A grande flautista Paula Robinson descreveu comoaconteceuumaperformanceque fezcomPaulHindemith,quando ela ainda era estudante, revelando um traçocomportamental muito semelhante ao do Koellreutter.«PaulHindemithfoivisitaraJuilliardSchool,quandoeueraestudantelá.(...)Quesorteeutivedepodertocarnaorquestra

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deHindemith!(...)Eleeraintenso,exigente,econduziacomprazer. Seu semblante era severo na maior parte do tempo, mas os seus olhos brilhavam com humor e às vezes com ternura.Bem...depoisdeosjovensmúsicosteremensaiadoe tocado nesse ambiente durante quase duas semanas,começouasefazersentirumacertapressão.Estávamostodoscansados e super animados – uma combinação perigosa. Algo estavaprestesaacontecer.Assim,duranteaexecuçãofinal,nummomentoparticularmenteintensonamúsica,ouvimosumroncoabafadodonossoclarinetista.Derepente,todaasecçãodesoprosdemadeiratremiaeseasfixiavadetantorir!Ficamoshorrorizados,masnãoconseguíamospararderir.Hindemithficoucomo rostovermelhoescuro, furioso.Continuouregendo,olhandoparanós–oquesófezpiorarasituação.Dealgumaforma,aqueleterrívelmomentopassou.Nóstodosnosrecolhemoseterminouaperformance.Depois,todos fugiramrapidamente,maseufiqueipara trás.Tocarcomograndecompositortinhasignificadomuitoparamim–nãopoderia eu... –bastaria ir aosbastidoresparapedir

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desculpasemnomedetodosnóseparaagradecertambém?Aproximei-medaSalaVerde.Sim,eleestavalá,rodeadopormembrosdoConselhodeAdministraçãodaJuilliardSchooleoreitordaEscola.Eumeaproximei.Entãoelemeviu.Seusolhos se arregalaram, seu rosto ficou vermelho de novo.Sua boca assumiu a formade umgrandequadrado, e elecomeçouagritar:‘Nãotêmrespeito!Vocêsnãotêmrespeitopelamúsica!’».

A questão essencial era o respeito pela música. Hindemithnãoestavapreocupadoconsigooucomqualqueroutra coisa. Ele pensava na música.

Emmuitoslugares,comooBrasil,porexemplo,quandoum músico está tocando num local aberto, público, como umarua,porexemplo,boapartedaspessoasnemconsideraa possibilidade de fazer silêncio. Continuam conversando,como se a música não fosse algo muito importante.

Quando algo semelhante acontecia – quer em

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execuções dos seus trabalhos, quer nas suas aulas– Koellreutter simplesmente não podia admitir. Era umdesrespeito à música, ao trabalho e, assim, à civilização.

Essa curiosa identidade entre Paul Hindemith eKoellreutterestendia-seaummododeestareuropeudiantedamúsica,mais inflexíveleformalqueomodoamericano– do norte, do centro ou do sul.

ParaoantigomododepensarnaEuropa,amúsicanãoeraumadiversãooualgoquesepodiatomardeânimoleve.Então, amúsicaeraoquehaviademais sérionomundo,comoamedicina,afísicaouaarquitectura.

Nãoeraumadiversão–comoboapartedaspessoaspassouaconsiderarnoiníciodoséculoXXI.Eraamaispuraexpressãodacivilização.

Fora das aulas, ele era diferente – gostava de

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brincadeirasetinhasemprebomhumor.

Aliás, nunca pude perceber nele, ao longo de vinte e cinco anos, qualquer notável traçodemal humor,mesmoquandoele estavaemaulaouquandopassavapor algumproblemasério.Elepoderiaestarsério,masjamaisdemauhumor.

Entretanto, a sua seriedade e frontalidade, o seu sentido prático e a sua dedicação eram, algumas vezes,erroneamente interpretados como sinais de mal humor.

Elenuncadistinguiaalunosportermaissimpatiacomesteoucomaquele.Todosnósestávamosláparatrabalhar,e o nosso trabalho era a descoberta e a elaboração.

Era evidente nos seus olhos que, de alguma forma,os meus trabalhos o encantavam, e isso provocava algum malestarentrealgunsdosseusalunosmaisantigos.Mas,à

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excepçãodisso,elesempretratouatodosdeformaigual.

Entremuitos alunos, pareciahaveruma competiçãoem torno do mestre. Uma competição na qual eu nãoparticipava e nunca quis participar. Simplesmente nãomeinteressava.

Eu estava unicamente preocupado com os meus novos projectos, comoaprender, comomergulharemalgonovo,num novo processo de composição. Todo o resto era pura distracçãofolclóricaeeunãotinhatempoparaisso.

Àsaídadeumadasaulas,logonosprimeirostempos,fui confrontado por um estudante. Ele era um pouco mais velho do que eu mas tinha tido uma formação musicalincomparavelmentemaisrigorosadoqueaminha.

Eueraobrigadoafazertudoescondidodaminhafamíliae por conta própria, trabalhando para pagar pela minha

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própriaeducaçãomusical.Apesardessadifícil situação terprojectadoumirrefreávelsentidodeliberdade,elatambémprovocouinevitáveislacunascontraasquaiseutinhadelutarpermanentemente.

De forma arrogante e grosseira, o rapaz quase meempurrou para dentro de uma das salas, vazia. Queria falar comigo. Fechou a porta. Estava visivelmente nervoso. Eu o conhecera poucas semanas antes, mas nunca tínhamossequerconversadolongamente.EraumdosprincipaisalunosdoKoellreutter.Atirouparacimadeumadaspequenasmesasacópiadeumapartituraconvencional.Umapáginaapenas.

- Vamos lá. Quero ver quem você é. Diga-me, quecomposição é essa? Quem é o compositor?

Ele estava muito agressivo. A página era de um fragmentodeumapeçaparaorquestra.

Fiquei sem saber o que fazer. Profundamente

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desconcertadoeintimidadopelasuaagressividade,pegueiafolhadepartitura.

Fiqueiperdido.Naturalmente,onomedocompositor,otítulodapeçaetudooqueapudesseidentificartinhasidodeliberadamente apagado.

Nãosabiaoqueresponder.

Eu estava literalmente confuso. Para além de tudo, aquilo era profundamente ridículo. Repentinamente, todaa constrangedora situação me pareceu ser algo de outro mundo.Provaroquêparaquem?–pergunteiamimmesmo,interiormente,emsilêncio.

Percebendoaminhaconfusão,mesmoantesqueeupudesse dizer qualquer coisa – ainda que nada houvesseparadizer–arrancouafolhadasminhasmãos:

- É Beethoven, uma página do meio do terceiro

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movimento da quarta sinfonia. Está vendo? Você éuma farsa. Não consegue nem mesmo reconheceruma página de Beethoven e pretende ser aluno do Koellreutter?Umavergonha!

E saiu envolvido nas suas próprias gargalhadas, tãoagressivo como chegou.Mas! Como eu poderia conheceruma página do meio de um dos movimentos de uma sinfonia deBeethoven?Especialmenteporqueeuestavamuitomaisenvolvido com a música contemporânea.

Detodaaforma,aqueleincidente,dadaaviolênciaeograudeabsurdo,deixou-meverdadeiramenteperturbado.

Chegueiamequestionarseeuestarianolugarcerto,se deveria realmente ser compositor, se tudo não seria apenasumsonhosemsentido.Compessoasdaqueletipo,seriaummundoqueeudesejariaparticipar?!

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Mas,aperturbaçãonãoduroumuito.Nodiaseguinteeuestavaaindamaisdeterminadodoqueantes.

Eu sabia que ao longo da vida encontraria muitaspessoas como aquela, em qualquer área que estivesseactuando.

Apósalgunsmeses,orapazsimplesmentedesapareceu,misteriosamente.

Nunca contei ao Koellreutter ou mesmo a outrosalunosqualquercoisasobreaqueleincidente.

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As aulas continuavam. Discutíamos estratégias degestalt,princípiosdateoriadainformação,conceitosdafísicaquânticaaplicadosaoestabelecimentoeaoquestionamentodaforma,àemergênciadaconsciência.

Tudo isso poderia ser discutido tanto sobre umapartituragráficacomosobreumaconvencional.

Por vezes, para exemplificar o que ele dizia, pegavauma partitura de Schubert, de Palestrina, de Bach ou deDebussyefazíamosumarápidaanálise.Tudoestavabaseadona análise, na compreensão do processo.

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Naquelaépoca,especialmentenasaulasdemúsicadoséculoXX,haviaumapeçamusicalqueeletinhaumprazerespecial em que fosse analisada. Era Artikulation, do seu amigo, o compositor Gyorgy Ligeti. Composta em 1958,apeçaétotalmenteelectrónicae foiaprimeiraqueLigeticompôsvivendonoOcidente.

Em1970,RainerWehinger–artistavisual,amigodocompositor – elaborou uma interpretação gráfica da música deLigeti.

PartituragráficadeRainerWehingerparaArtikula-

tiondeGyorgyLigeti,1970

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Nósouvíamos,analisávamosapeçadeLigetiedepoisconfrontávamosasnossasanálisescomotrabalhográficodeWehinger.

Assim, tínhamos uma profunda noção do todo dacomposição e não apenas das suas partes.

Mas,haviaalgoque,emtermosgeraiseaprincípio,Koellreutternãogostava:glissandos:

-Umanotamusicaldeveexistircomclareza.Oué,ounãoé.Não sepodeficar nomeiodo caminho.Nãodeveseralgosemdefinição.Adefiniçãodeumsomestánassuasrelações.Aquiloquenãoébemdefinido,não comunica.

Nas aulas de composição, os minutos passavamdemasiadamente rápido e tudo parecia sempre terminar subitamente. Quando chegava ao final eu percebia que

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praticamente apenas eu tinha falado. Ele ouvia o que eudiziaedisparavarápidasecerteirasperguntas.Compreendirapidamente que esse era o espírito das suas aulas decomposição.

Cada breve pergunta desencadeava um complexoraciocínio.Eramperguntasfundamentaisquecolocavamemquestãotudooqueeutinhafeitoatéentão.

Cadaaulaera,naverdade,umprofundoexercíciodeauto análise e de auto conhecimento. De tempos em tempos ele introduzia um novo conceito, que desencadeava umaverdadeira revolução de ideias e uma avalanche de novas reflexões.

- Semanálise,nuncapoderemosterumasíntese.–diziasempre.

Eraotrabalhodecadaumdenós,anossaacção,queprovocava a descoberta. E a base de toda a acção deveria

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seraanálise.Nuncapoderiaserumprofessoraditar regras, exercícios ou fórmulas de qualquer natureza. As regrasdeviam ser encontradas, descobertas, compreendidas, como indicadores do funcionamento das coisas e, portanto, sempre abertas à refutabilidade.

Oseupapelerafazercomquereflectíssemoscomamaisprofundaatençãosobrecadadetalhedonossoprópriotrabalho,dasnossasprópriasacções.

As suas perguntas eram uma verdadeira orientação num percurso de conhecimento. Eram verdadeiros ensinamentos sobre como pensar com clareza.

- Cada elemento da composição deve ser pensado,analisado, trabalhado. Se for um elemento estrutural, todas as relações devem ser cuidadosamentetrabalhadas, sejam de que natureza forem. Se vocêadoptar um som... imagine, por exemplo, um somde percussão, de uma grande placa metálica... ele

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deve ser trabalhado. A placametálica por si só nãoérelevante,nãoéhumano.Mas,sevocêtrabalharosom,entãoelasetransformaemmúsica.Vocêpodedescobrir um algoritmo interessante, pode estabelecer um conjunto de timbres interessantes, mas se elesnãoestiveremelaborados,nãohácomposição.Nadaporsisóérelevante.

Perguntei, então, como ficaria a obra de MarcelDuchamp, ou – como alertava Octavio Paz, seu grande amigo–oqueseriamaspedrasque,escolhidaseassinadaspor um mestre budista, desde há várias centenas de anos, transformavam-se em algo semelhante ao que chamamosde obra de arte?

- Asobrasconceituaistambémpodemexistiremmúsica.Mas, elas devem ser ainda mais profundamente elaboradas.Detodaaforma,omeutrabalho,enquantomúsico, é com sons. Eu trabalho a organização dos sons. Eles podem implicar um elevado grau conceptual,

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masenquantosons,devemsertrabalhados–esseéopapeldacultura,doquechamamosdecivilização.Mesmo que intencionalmente você utilize algo cru,semtratamento,essaausênciadetratamentodevesercomunicada, caso contrário não será percebida como tal. Assim, tudo é ilusão e tudo deve ser elaborado, ao mínimodetalhe.Issoéoquechamamosdequalidadedeumtrabalho.SevocêfosseaoJapão,veriacomoeleselaboramosseusinstrumentosdepercussão.Aquiloéalgoúnico.Nuncavialgoassim,emnenhumapartedomundo.Cadainstrumentorecebeadedicaçãodehorasehoras,quandonãomesesouanos,deváriaspessoas.Essaquantidadedeatençãodáàquelessonsumaqualidadeinigualável.Mesmoquandovocêusarintencionalmente algo sem tratamento, nunca se esqueçadequetudoéilusãoeque,dealgumaforma,aquele facto deve ser comunicado, e então já seráelaboração.

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Muitos anos mais tarde, estudando a obra de Joseph Beuys, eu veria que ambos tinham um método muitosemelhantedetrabalho,possivelmenteumaantigatradiçãoGermânica.

Essemétodo–queeuachavasimplesmentefabuloso–nãoeraencaradocombonsolhospormuitosalunos,quequestionavamseumataldedicaçãoaomínimodetalhedecada composição eliminaria, de alguma forma, a leveza, a autenticidadeeoriginalidadedaobra.

Pode parecer estranho, mas essa era uma questãocorrente,mesmoentrealgunsinstrumentistas,quelutavamcontra o que chamavam de excesso técnico, como sendo algoquepoderia,dealgumaforma,empobreceraexpressãoartística.

- Isso é uma grande bobagem. Se uma pessoa não conhece a técnica, a linguagem, como poderá se manifestar, como poderá comunicar? Tudo é, de

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alguma forma, tradução. Não se trata de traduzirsentimentosoubobagensdogénero.Aquestãoaquiétraduzirquestõesestruturais,lógicas.QuandoPicassopintou Guernica, e colocouoquadrocomoprotestopolítico,issonãosignificaquetenhapintadooquadrocomoprotestopolítico.Elepintouoquadro,queemsimesmoéumaobraimportante,depoiseledissequeeraumprotestopolítico.

Ele não estava minimamente interessado naquelaspreocupações contra a técnica. Para ele, composição eraapenas uma questão demétodo, umprocedimento de sefazer, que poderia acontecer das mais diferentes formas,enquantomúsica,pintura,escultura,cinema–nãoimportavaoquefosse,oimportanteeraométodo,eométodoeraaforma de conhecer.

Tudopareciagiraremtermosdeumquestionamentocontínuoapartirdoqualnovosconceitosemergiam.

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Nas aulas de percepção, por exemplo, as notas nãoeram importantes em si mesmas. Desde o primeiro momento devíamosestarconcentradosapenasnasrelações entre as notasecomocadatipoderelaçãoimplicavaumadiferentenatureza sonora, uma diferente função.

Essas aulas aconteciam, geralmente, com dois alunos –sobasuadirecção.Eramhorasehorasdeexercício.Umdosalunos estava à frente do teclado do piano; o outro estava distante,nãopodendoverquenotaestavasendotocada.

Começávamoscomduasnotas–umanotaisoladanãofaziaqualquersentido.Então,passávamosparatrêsnotaseassimpordiante.Algunsmesesmaistarde,eramconjuntosdecinco,seisousetenotas–atéchegarmosaosdesafiosdossimultanoides,quesãoacordesimpossíveisdeseclassificarsegundoospadrõesdotonalismo.

− Parem de pensar! Fiquem livres. Façam com

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queaintuiçãoseexpanda.Sevocêsficarempensando,tentando explicar o que são as notas, nada darácerto. Mas, se simplesmente as ouvirem, perceberão que cada relação é como uma espécie de forma. Quando percebemos essa forma, isto é, quandoouvimos sem pensar,quandoestamoslivres,todasasrelaçõesmusicaissetornamsubitamenteclaras.Issomuitas vezes não acontece gradualmente. Grandepartedasvezeséumamutaçãodaconsciência,umadescoberta.

Emqualquerdassuasaulas,éramosobrigadosaumpermanenteexercíciodeautoconhecimento.

Aolongodetodasasdisciplinasqueeuviriaaestudarcomele,aafirmaçãodequetudo deve ter uma função social estava sempre presente.

Nofinal das aulas de composição,muitas vezes, ele

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fazia uma última pergunta, que deveria ser respondidasomentenopróximoencontro.

E, não raramente, apesar de curta, a pergunta era de talimportânciaqueacabavaporalterartudooqueeufizera,toda a composição – e eu me via impelido a refazer tudo, desdeoinício.

Afunçãosocial,semaqualnenhumamúsicapoderiaexistir,implicavaaatençãopermanente.

- Aspessoasgeralmentenãotêmatenção.Fazemmuitascoisassemperceberoquefazem.Perguntarsempre“porque”implicaquestionararazãodeexistênciadecada coisa, pormenor que seja. Uma notamusical,umruído,umsilêncio–sejaeledeexpressãooucomoentidadeforte,autónoma–tudodeveterumarazãodeexistir.Nãoapenastudodeveserminuciosamentetrabalhado mas, mesmo antes disso, deve ter uma razãodeexistir –nadapodeexistir semuma razão,

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mesmoporque,semquesejamoscapazesdeperceberimediatamente, tudo o que fazemos tem as suasrazões.Arazãodeexistir,asuajustificativa,nãoéumsímbolo, um conteúdo,mas está nas suas relações.É importantecompreender.A funçãosocial tambémacontece assim, enquanto relações, e sem atenção,até ela passa despercebida. Quando isso ocorre, tudo se torna apenas entretenimento empobrecido.

A natureza de existência de cada coisa era algo defundamental importância no seu pensamento.

- Vocêdevesempreperguntar:porqueessamúsica?Eatémesmo:porquemúsica?Semsaberresponderaisso,paraqueestáfazendomúsica?

Outro aspecto essencial dos seus ensinamentos sobre composição era a importância da compreensão do conceito de unidade.

- Sem unidade não há forma, e sem forma não há

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composição, pois não há consciência, percepção.Composiçãoéoestabelecimentodeforma.–elediziaquaserispidamente.

Esse conceito também estava, naturalmente, fortemente presente nas aulas de estética. Era algo quetrazia do seu aprendizado desde a infância na Alemanha.

Durante os vários anos que convivemos, em váriasocasiões ouvimos juntos fitas magnéticas de jovenscompositores que lhe enviavam os seus trabalhos,perguntando o que ele pensava e quais eram as suasimpressões. Muitas vezes, as gravações revelavam umaexcelentequalidade sonora,timbres formidáveis,masnãoexistia,realmente,umtrabalhodecomposição. As pessoas se encantavam com o colorido sonoro, com uma aparente improvisação, mas não passava disso. Quando tal acontecia, Koellreutterficavamuitoincomodado:

-Eagora?Oqueeupossodizerparaessapessoa?É

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evidentequesetratadealguémcomtalento.Mas,elanãopercebeuoqueéumtrabalhodecomposição.Nãoéalgoqueeupossadizernumacarta.Apessoaprecisacompreender isso. Por outro lado, se digo qualquercoisa do género e a pessoa não entender o que euquerodizer, poderá ser um factor dedesmotivação.Isso eu não posso fazer, pois as pessoas precisam estar abertas para descobrir. E, para complicar ainda mais, vejopelacartaqueapessoajáseconsideraumgrandecompositorequetemumgrandeorgulhonissoqueenviou...Umgrandeproblema...

Então, Koellreutter tratava de escrever uma cartaprocurando medir cautelosamente o uso de cada palavra, de formaadarumapistaparaapessoa,semadesmotivar–oquêeradifícileextremamentedesgastante.

Na sala de aula, ele traçava um grande círculo deHeráclito no quadro negro, para os atentos alunos de

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estética.- O iníciodeumcírculoé tambémo seufim– citava

o pensador Grego que era um dos seus preferidos– Informação total ou ausência de informação nãocomunicam. Esse é o problema da comunicabilidade em muitas composições contemporâneas. Muitoscompositores trabalham com novos sons mas, por vezes,na suaestruturaaquantidadede informaçãoétãograndequenadaexiste.Oníveldeinformaçãoé fundamental para distinguirmos entre aquilo quechamamos de música popular ou música erudita. A formaapenasexistequandoa informaçãoestámaispróxima do meio do círculo. Quando caminhamospara mais informação, temos a música erudita. Se caminharmosnosentidodemenosinformação,temosa chamada música popular. Mas, depois de um certo ponto, ambas desaparecem. Se chegarmos aos limites docírculo,aformasedesintegra.

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E sobre a música minimal? – foi uma pergunta geral, e foicolocadacomoumaespéciededesafio.Tínhamossempreestado maravilhados com LaMonte Young, com Terry Riley e comPhillNiblock.

Naquelaépoca,PhilipGlassfaziaumgrandesucessocom Koyaanisqatsi, que também foi filme dirigido porGodfreyReggio, na sequência deEinstein on the Beach; e SteveReich,quetantoaprenderacomJohnCage,aindaquenão o admita, lançava a bela composição Tehillim.

-Essaéumaboaquestão.Amúsicaminimal inverteu oprocesso.Elacaminhouparainformaçãoquetendea zero. Quando se trata de LaMonte Young, por exemplo,entãoelaézeroetudoémuitoconceptual.Aquiestáumexemplo–masesseaspectoconceptualéuma forte referência aumquadrohistóricomuitoantigo.Detodaaforma,nãoseiludam,quandotemosum concerto como In C, de Terry Riley, ou muito antes deleJohnCageeatémesmo,numcertosentido,Eric

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Satie,asreferênciasculturaissãoimensas.Nãosetratade algo fora de uma cultura. Por outro lado, algumas obras minimais são apenas aparentemente simples –naverdade,paraquemécapazdeidentificarassuasrelações estruturais, são bastante complexas. Tudodepende da escala.

Comparava o pensamento de Heráclito com o deParménides, estabelecendo os seus pontos conflituosos,saltavarapidamenteparaTales,paraAnaximandro,ouparaPlatãoeAristóteles.

- Tudo é transformação.Heráclito dizia: «As almas setransformamem água quandomorrem, amorte daágua é se tornar terra, mas da terra renasce a água, edaáguaaalma».–repetiacuidadosaelentamenteasentençadeHeráclito,queeleapreciavadeformamuitoespecial–Mas,nessametamorfose,queétudo,que é a vida se transformando, apenas a busca deuma totalidade pode gerar a forma.Umatotalidade é

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produzidapelosentidodeunidade,oqueédiferentedeum totos. O totosétudosemforma,plenaqualidade.A totalidade é a unidade da forma.

E repentinamente apresentava um fragmento doGénesissegundoJoão,eestabeleciaassimilaridadesaonívellógicocomHeráclito.

-Aqui,nóstambémtemosocírculo,queeraaformaporexcelêncianaIdadeMédia.

As aulas não aconteciam apenas em relação ao passado ou a questões exclusivamente teóricas. Algumasvezes – quando o assunto estava justificava – ele contavasobre algum facto controverso, mas nunca dizia o nome das pessoasenvolvidas,mesmoquetivessemsidoprofundamentedesleais com ele ou com outras pessoas. Os alunos sempre insistiam,curiosos,parasabersobrequemeraestaouaquelahistória.

− Meus amigos, eu não posso dizer. Jamais diria o

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nome das pessoas, simplesmente porque elas nãoestãoaquiparasedefendere,emboraeupensoestarcorrecto, ninguém é dono da verdade. O importante não é saber o nome das pessoas, mas aprender com o queaconteceu.Amemóriaéfundamental.

Certavez,surgiuaquestãosobreofactodeKarlheinzStockhausen ter feito uma peça onde cada tom é dividido em treze partes, obrigando aos músicos a um treinamento especialparapoderexecutarapeça.

− Stockhausenéummístico.Mas,qualéaverdadeiraimportância de se dividir um tom em treze partes se a grande maioria das pessoas não consegue ouvir a diferença?

Analisávamos obras de diferentes compositores.- As pessoas têm de saber como ouvir, prestar

atenção,identificaraquiloqueouvem!–diziaele,com ar inconformado.

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Certavez,durantealgumasaulasdocursodemúsicado século XX, ele nos pediu para ouvir e analisar os dois livros, de 1952 e de 1961, da obra Estruturas Para Dois Pianos, de Pierre Boulez, numa gravação dos irmãos Alfons e Aloys Kontarsky–queeramverdadeirosídolosparanós.

Koellreuttertinhaumdiscoepartituras,masomaisimportante era ouvir.

- Depois nós podemos nos dedicar às partituras,masagoraomaisimportanteéouvir.Oquevocêssentem ao ouvir esses dois trabalhos, de 1952 e 1961,separadosporquasedezanos?Oquevocêspodemidentificarcomodiferençasentreeles?

Paragrandepartedosalunos,eraevidentequeaobrade1961eramenosrígidaqueade1952,masninguémestavaseguro disso. Era apenas uma sensação, uma impressão. Seriarazoávelerelevantesentirmosalgoemrelaçãoauma

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música,istoé,manifestarmosalgopuramentesubjectivoemrelação a ela?

- Éissomesmo.Vocêsestãocertos.Apeçade1961émuitomaissuave,maishumana.Porque?

Novamente,aclasseficavasemsaberoquedizer.

Algunsmomentosmaistarde,Koellreutterdizia:- Porqueohumano é aquilo que émaismisterioso.O mais importante não são as explicações, mas asperguntas.QuandoPierreBoulez compôs a peçade1961, ele estava mais maduro, já tinha vivido maise, portanto, estavamenos rígido,menos agarrado adogmas. As duas peças foram compostas seguindo os princípios do Serialismo Integral, mas sãoprofundamente diferentes.

E passávamos a analisar As Nenúfares,aúltimapinturadeClaudeMonet.

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Algumas semanas após as nossas primeiras aulasde composição ele pediu para que lhe contasse o que eufaziaparaalémdamúsica,quaiseramosmeusverdadeirosobjectivosnavida.

Contei sobre o meu trabalho em marketing, em direcçãodearte,aminhapinturautilizandoosmaisvariadosmeios, trabalhos de artes plásticas sobre papel, vídeoarte, arte electrónica, questionamentos Zen, teatro,meuspequenos projectos para cinema, os vários instrumentosmusicais, o desenho, design,aarquitectura,ourbanismo,osestudoscomsistemaselectrónicos,electrotecnia,apoesia,a literatura, a fotografia, omeu amor pelas ciências, pelafilosofia–umafervilhanteavalanchedeactividades.

Disse-me, secamente, cruzando os braços, como se estivessediantedeumsérioproblema,quegostariadeverosmeustrabalhosemoutrasáreas,equetinhaalgoadizer,

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mas que não o faria até conhecermelhor tudo o que eufazia.

Insistiuparaquelevasseosmeustrabalhosatéele,nafaculdade,acrescentandoqueapenasdepoispoderiadecidirsecontinuariaounãoasermeuprofessor.

Fiquei sem saber o que dizer. Eu tinha centenas depinturas sobre papel e sobre tela – elas eram um intenso e contínuoquestionamentoZensobreoartificialeonatural,sobre a intenção e o acaso, o livre arbítrio, o destino. Eutrabalhava incansavelmente.

Havia, ainda, algumas milhares de fotografias,textos,umagrandequantidadededesenhos,filmes,peçasmusicais electrónicas gravadas, projectos para instalaçõesouvídeoarte.Nasfériasounosfinaisdesemana,enquantoos meus irmãos e meus amigos iam para a praia ou para o campo,descansar,euficavasozinhonacidade,trabalhando

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febrilmente. Como poderia mostrar apenas um ou outrotrabalho?

Eraimportantemostraroconjuntodosmeustrabalhos,caso contrário ele não poderia ter uma ideia concreta sobre o que eu realmente fazia. E eram muitas as peças. Eraliteralmenteimpossívelaslevarparaafaculdade.Levarumououtrotrabalhonãofariaqualquersentido.

Muitas das minhas fotografias eram realizadas emdiapositivoseseria,portanto,necessárioumprojector,umatela e uma sala escura para as ver. Muitas peças musicais estavam gravadas em grandes rolos de fitas magnéticas.Havia papéis com desenhos por todo o lado.

Mas,existiaoutroproblema.Egrave.Desdesempre,aminha famíliatinha sidoabsolutamente contraqualquertrabalhomeuque estivesse relacionado commúsica, comarte ou com qualquer tipo de operação cultural. Assim,

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praticamentetudooqueeufaziatinhadeserescondido.

Emcasa,atrásdagaragem,haviaumpequenoquarto,uma espécie de porão pequeno, húmido e escuro. Era oespaçoquemeeradestinado,deformaanãoincomodarafamíliacomasminhasactividades,queeramcontráriasaoque tinha sido firmemente determinado pelosmeus pais,especialmente em relação à música.

Aquele pequeno quarto, junto à garagem, era umaforma de me manter à distância, de não serem incomodados ededesmotivar,aomáximo,omeudesenvolvimentocomomúsico,comoartistaoumesmocomoarquitecto.

Estandoláembaixo,elesficavamprotegidosdosmeussons,dasminhas imagens,dosmeustextos.Muitasvezes,eu chegava e ia imediatamente para lá. Era o meu lugar. Por vezesdiassepassavamsemveraminhafamília–quandosaíaparatrabalharpelamanhã,játinhamsaído,viajavammuito

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enãoseinteressavampeloqueeupoderiaestarfazendolá.Algumasvezeseusentiaestarnaquelacasaporacidente.

Durante anos eu era praticamente proibido defalar comaminha família acercadosmeus trabalhos commúsica ou arte e, mesmo mais tarde, de nada adiantaria querer compartilhar asminhas experiências em casa, poissimplesmente ninguém estava interessado.

É curioso dizer isso,mas nunca qualquer pessoa daminha família, ao longo de toda a minha vida, assistiu aqualquer um dosmeus concertos ou esteve presente emqualquerumadasminhasexposições.

Como eu poderia fazer? Levar os trabalhos até afaculdadeeraalgoimpossível.

- Euvouasuacasa!Nãoháproblema.

Koellreutterdisse issocomoumraio.Gelei.Mas,eu

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não poderia negar.

Comofaria?

Não havia saída. Apesar daquela constrangedorasituação, eu precisavamostrar ao Koellreutter o que faziae,realmente,aúnicamaneiraeraolevarescondidoàquelepequenoquartoatrásdagaragem.

Como eu poderia explicar que ele não poderia ir àminha casa?

Não tive coragem de lhe contar o que acontecia.Acertamos,simplesmente,umadeterminadanoite,apósojantar,quandoolevariaparaconhecerosmeustrabalhos.

Alguns dias mais tarde, na data marcada, passei pelo seu apartamento no centro de São Paulo e seguimos, à noite, para a minha casa.

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Coloqueicuidadosaesilenciosamenteomeucarronagaragemeentramosporumaportadosfundos.Eutinhadeserextremamenteatenciosoparanãofazerqualquerruídoquepudesserevelaranossapresença.Seeufossechamadopelos meus pais, seria um desastre. Quem poderia prever o quepoderiamfazer?

Poroutrolado,eudeviaagircomamáximanaturalidadepara que Koellreutter não percebesse que estávamosentrando escondidos.

Hoje, tenhoplena convicçãodeque, desdeo início,elesabiaperfeitamenteoqueestavaacontecendo.

Paraumhomemcoma suaexperiência aquilo tudoera evidente. Mas, ele fingiu nada perceber. Agiu comnaturalidade,sempreemsilêncio.Eletestemunhavaodramafamiliardeumjovemcompositor.

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Entramoseopequenoquartoondeeutinhaosmeustrabalhosestavaforradodelivros,discos,aparelhos,quadros,desenhosefotografias.

Koellreutter sentou numa pequena cadeirametálicacom assento e encosto em tecido colorido. Passamos algumas horasassistindocurtasmetragensqueeufazia,fotografias,ouvindogravações,vendodesenhos,algumasexperiênciasdevídeoarte,quadroseconversandosobretudoaquilo.

Comoeuprevira,ninguémapareceu.

Assalaseosquartosqueseestendiamsobreaquelepequeno porão eram uma grande construção e naquelemomento,numcertosentido,maispareciaumagrandecasafantasma.

No final, ultrapassada a meia noite, saímos comochegamos:escondidos,discretamente,eemsilêncio.

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Nocaminhodevolta,semprecomfrontalidadeesememoção,eleperguntou:

- Onde os seus pais estavam?- Nospisosdecima.- Porquenóstivemosdeentraresairescondidos?

Emanuel Pimenta na sua sala ao lado da garagem, São Paulo, 1981.

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Pode-se imaginar o meu profundo embaraço – o lendário compositor e mestre, Hans Joachim Koellreutter,já com quase setenta anos de idade, entrando e saindoescondidodeumacasa,nassombrasdanoite!

Expliquei,muitosinteticamente–emaisconfusoquenunca–queosmeuspaisnãoaceitavamoqueeufazia.

Ele não fez qualquer comentário específico sobreaquilo, parecia compreender a situação muito melhor doqueeupodiaimaginar.

- Meuamigo,voulhedizerumacoisamuitoimportante:vocêéumapessoahonesta.Háumaclaracoerênciaemtudooquevocêfaz.Háumanotávelligaçãoentreasuafotografia,asuamúsicaouosseusoutrosprojectos.Quando vejo um desenho seu, uma fotografia, ououço uma música, estou claramente diante da mesma estruturalógica.Ostrabalhosdealguémquemente,

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quecopia,quefingeseralgoquenãoé,nunca têmcoerência.Num certo sentidoos seus trabalhos sãosurpreendentes. Mas, há muito trabalho a fazer. Vocêéhonesto. Issoémuito importanteparamim.Émesmoessencial.Euestavapreocupadocomoqueiria encontrar. Precisamos conversar muito seriamente napróximaaula.Nãolevequalquercomposiçãodessavez. Apenas precisamos conversar, e é algo muito sério. Tenho algo muito sério para lhe dizer.

Eu estava cheio de curiosidade. Insisti para quemecontasseoquehaviade tãosério.Mas, comosempresecamente,comumpequenosorriso,eleapenasdissequeeudeveriaesperarpelapróximaaula.

Fiquei com receiodequeelenãomaismequisessecomoaluno,masasuaafirmaçãodequeeuerahonestoerarelativamentetranquilizadora.

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Oquehaveria,então,detãosérioparafalarcomigo?

Na semana seguinte cheguei à aula de composiçãosem nada nas mãos, esperando pelo pior.

Elepediuparaqueeusentasse.

Caminhou até porta, trancou e colocou a chave nobolso,mostrandoqueofazia.

Como quase sempre, a sala estava vazia. Éramosapenasnósdois.Mas,destavezeletinhatrancadoaportaecolocadoachavenobolso–comoseeuestivessepreso.

Antesdefechar,esticouopescoçoparaforaeavisouoBiraquenãoqueriaserinterrompido,deformaalguma.

Senteinumadascarteiras.Eletinhaumamesaàsuafrente.Nãoabriuapastanegradecouroquelevavasempre

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consigo.- Meu amigo, o que eu tenho para lhe dizer émuito

sério. Desta vez você não fala. Quem fala sou eu.Hoje será diferente. Você vai ficar quieto. Duranteas aulas, eu pergunto e você fala. Agora, hoje, nãohaverá qualquer pergunta. Apenas eu vou falar.Ninguém vai nos interromper. Eu fui à sua casa, vio que você faz. Você pinta, desenha, faz fotografia,música,arquitectura,urbanismo,escreve,fazpoesia,fazilustrações,estudafilosofiaemuitasoutrascoisas.Omundonãoéfeitoapenasdepessoascomovocê.Navidahápessoasquenãotêmmuitointeressenascoisas. A maior parte das pessoas simplesmente passa por esta existência, e acaba por fazer o que a vidalhecolocaà frente.Pessoasqueseacomodamnumemprego,porexemplo, sem fazermuitasperguntas.Passamavida lá,esãofelizes.Vãopassandoavida.Há outras pessoas que querem agarrar o mundocom todas as suas forças, como puderem. Estas são

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vorazmentecuriosas.ANaturezatemummecanismodeequilíbrioparatudo.Elaprocurasempreequilibrartodas as coisas, tornar tudo mais igual: equalizar.Assim,aspessoasquefazemmuitascoisasnuncatêmtempoparamelhorarasuacompetência.Issoacontecesimplesmente porque não temos tempo suficiente.Nãoéumaquestãodefaltadecapacidade,éapenasfalta de tempo. Temos de dormir oito horas por dia, temos de comer, e temos de viver. Viver é muitoimportante. Se uma pessoa não vive, não participada sociedade, não faz coisas para além do trabalho, não pode criar algo de interessante. A vida é a nossa matéria prima, aquilo sobre o qual nós fazemos anossamúsica, ou o que quer que seja. Assim, umapessoaque fazmuitas coisas será automaticamenteeliminada,vaisetornar–inevitavelmente–medíocre,incompetente.Eissoacontecesemqueelaperceba,porque ela está permanentemente envolvida nosprazeres da descoberta. As pessoas que não têm

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muitointeresse,quenãotêmmuitacuriosidade,quesesatisfazemfazendoapenasumacoisa,oquecalhar,eafazemsempre,contínuaerotineiramente,acabamporsetornarboasnaquiloquefazem.Tambémcomelasesse fenómenodeequilíbrioacontece semquepercebam. E também com elas se trata somente de umaquestãodetempo.Assim,aNaturezaequilibraascoisas, mediocrizando os mais curiosos e valorizando os menos interessados. A cultura deve exercer opapeldecontrariaressefenómeno.Esseeraopapeldos professores que, antigamente, tinham a funçãode formar o aluno. Hoje, tudo se transformou eminformação, não há mais a formação do estudante, doserhumano.Vocêaindaénovo.Atéagora, tudoo que você tem feito pode ser considerado comoa sua cultura geral. E é muito bom, é mesmo, eu diria, formidável. Mas, este é o último momentoda suavidaparaevitarque se tornemedíocre.Nãohaverá um segundomomento. Por isso, a partir de

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hoje você tem de decidir entre três escolhas: podecontinuarcomoestá,podeescolherporfazerapenasmúsica, ou pode escolher música e arquitectura. Omelhor,penso,seráfazermúsicaearquitectura,maspoderiasermúsicaemedicina,porexemplo,porqueamúsica – principalmente essa que você faz – nãodá dinheiro, e mesmo que fosse outra é sempremuito difícil sobreviver apenas com música. Commúsica experimental contemporânea é literalmenteimpossível. Se você escolher a primeira opção,continuando como está, fazendo mil e uma coisas,não há problema – mas nunca mais fale comigo. Eu não tenho tempo a perder. Se você escolher fazermúsicaearquitectura–aopçãoqueconsideromaisacertada– tereiomaiorprazeremcontinuar sendoseuprofessoreeulhegarantoquevocêteráumgrandesucesso.Vocêpodeseperguntar se fazendoapenasumaouduascoisasnãoficarámaisempobrecidonassuas experiências – pois é exactamenteo contrário.

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A partir de uma determinada idade, se você fizermuitascoisas,empobrecerá.Sefizerapenasumaouduas coisas, enriquecerá. No futuro, quando tiverquarenta ou cinquenta anos de idade, com muitocuidado,poderágradualmenteseaproximardeoutrasactividades.Mas,atélá,não!Vourepetir:seescolhercontinuar fazendo tudo o que está fazendo agora,nuncamaisfalecomigo!Nãoqueroquevocêabraabocanestemomento.Nemumapalavra.Volteapenasnapróximasemana.Aívocêdiráoquedecidiu.Agorapode ir embora. –tiroua chavedobolso, levantou,caminhou pela sala e abriu a porta, sem dizer mais uma única palavra, apenas estendendo o braço como umconviteparaqueeumeretirasse,deformasecaeaté agressiva.

Ele tinha falado continuamente durante cinquentaminutos.Mas,tinhamparecidoapenascinco!

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Eusabiaqueeleestavacerto.

Tudo se tornara subitamente claro na minha vida. Mas, ainda assim, apesar da minha certeza, da clareza de tudo, aqueledesafioeraumabombacolocadanaminhaalma.

Eu amava artes plásticas, cinema, poesia, literaturae tantasoutras coisas. Comoconseguiria abandonar tudo,deummomentoparaooutro?Comopoderiaficarrestritoapenasàmúsicaeàarquitectura?

“Restrito”eraapalavraquemeabalavaprofundamentenaquelemomento.

Eu estava arrasado. Telefonei para um amigo, Fernando Zarif, colega na faculdade de arquitectura, com quem eudesenvolviaváriosprojectosdearteeconcertosdemúsica,e pedi para que nos encontrássemos num restaurante nobairrodoBixiga,emSãoPaulo.

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Euprecisavadesabafar.Nemsabiaoquedizer.Eratãoóbviomas,aindaassim,euestavaperturbado.

Jantamos e conversamos longamente num restaurante italiano. A forma clara e directa com que Koellreuttertinhadesnudadoaminhavidatinhasidoverdadeiramentechocante, devastadora.

Eu teria de mudar, subitamente, toda a minha vida. Abandonar vários projectos em curso. Reorientar o meupercurso. Estabelecer um novo método de vida – quasecomosetivessenascidonovamente.

A decisão estava imediatamente tomada, de forma definitiva. Não havia qualquer dúvida. Toda a minha vidatinhasetornadoclara,subitamente.

Aindaassim,eraumadecisãoterrível.

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Aquelemomento representouuma radicalmudançaemtodaaminhavida.NãofossemaspalavrasdoKoellreutter,revestidas damais dura e frontal seriedade, seguramenteeununcateriatidooimpulsoparaassumirumaatitudetãodramática.

A partir daquele preciso momento, quando cruzeia porta da sala de aulas, deixando para trás a lição doKoellreutter, passei a me dedicar exclusivamente àarquitecturaeàmúsica.

Continuei escrevendo, desenvolvendo teses, massemprerelacionadasàquelasáreas.Abandoneia literaturadeficção,apoesia.Nafotografiapasseiamededicarquasequeexclusivamenteàarquitectura,paraespaçoscriadosoumodificadospelaHumanidade.

Somente cerca de vinte e cinco anos mais tarde, muito

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gradualmente, eu voltaria a realizar trabalhos em áreas diferentes. Ainda assim, com muita cautela, nunca com a incontrolávelvoracidadedequandoeueranovo.

Se por um lado essa mudança implicou um certo rigor e umabandonodeumaabordagemabertamenteholística;poroutro,possibilitouresgatardeuniversosdiferentessoluçõesparaquestõesespecíficasdamúsicaedaarquitectura.

Assim, de facto, eu nunca abandonei por completo as outras áreas. Mas, agora elas estavam orientadas.

Anos mais tarde eu perceberia como fora acertada, apesardedolorosa,aqueladecisão.

Os meus conhecimentos em arquitectura, música eestéticaseexpandiramcomoeununcapoderiaprever.Elesmepermitirammergulhosmaisprofundosnasmaisdiversasdisciplinas. Eu não mais pretendia conhecer tudo, mas

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resgatar de tudo, das mais diversas áreas, recursos para as minhasactividadescentrais.

Aprendi, com o tempo, que era exactamente o quetinham feito JohnCageeRenéBergerentre tantosoutrospersonagens geniais.

Tudoeraumaquestãodemétodo.

Noaulaseguinte,comapenasduasoutrêspalavras,anuncieiaminhadecisãoaoKoellreutter.Elesimplesmentecruzou os braços e deu um leve sorriso.

- Muitobem.Eusabiaqueseriaessaasuadecisão.–disse,semgrandesconversas,comoserealmente jásoubesseoqueeulhediria.Evoltamosaotrabalho.

Nuncamaisfalamossobreaquilo.

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Os meses se passaram e fui me tornando muito amigo dequasetodasaspessoasnafaculdade.

Durante um período, praticamente todas as sextasfeiras à noite, quando Koellreutter estava em São Paulo,reuníamos todos para comer uma pizza num famosorestaurante do Bixiga, Cantina Speranza, na rua Treze de Maio.

Ele adorava fazer piadas e trocadilhos com o nome do restaurante.

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Nesses jantares, ele sempre chegava por último.Então, tudo deveria estar previamente bem organizado, e ele nemprecisavapedirqueassimfosse.Casocontrário,todostemiam,poderiaseraúltimavez.

A sua presença naqueles jantares era uma imensahonra para todos os seus alunos. Todos nós estávamosbastanteconscientesdecomoeleeraimportante,nosentidomais profundo do termo.

Cadavezqueeleentravanomeucarro,olhavaparaobancodetrásque,nãoraramente,estavaatulhadodelivrosecadernos,quandonãotinhatempodeosorganizar.

− Meuamigo,vocêvêcomoestáobancodetrásdoseucarro?Écomoestáasuacabeçahoje,ládentro.– e dava risada.

Quando os livros e cadernos estavam organizados, ele faziaomesmo,masdizia:

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− Muitobem...hojeo seu cabeça está muito melhorrr. -rindo,semprecomofortesotaqueAlemão.

Asaulasdeestéticaque,decertaforma,representavammenos compromissos, desencadeavam sempre momentos mágicos. O número de alunos era restrito. E as aulas

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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começavam rigorosamente no horário previsto.- Quando alguém chega atrasado, está ocupando

o tempo do outro. É autoritário – dizia ele, cominsistência. Ninguém tinha o direito de ocupar otempo do outro. Tudo deveria passar por um critério democrático.–Meuamigo,vocênãoestáacostumadoaviveremdemocracia?Paraviveremdemocraciavocêtemderespeitarooutro.–diziaparaquemchegavadepois da hora.

Umdosconceitosquecaracterizavamnãoapenasasaulasdeestética,maspraticamentetodasasoutraseraaquelesegundooqualapenas a diferença produz a consciência.

Trata-se de um antigo princípio Védico, gravadono universo filosófico indiano há milhares de anos, queKoellreutterouviucentenasdevezesduranteo tempoemqueviveunaÍndia.

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Para além do tempo, outro elemento essencial queparece ter desenhado toda a sua vida era a preocupação em relação à consciência.

Tudo na consciência é formado por princípios dediferenciação. Esses princípios são fundamentais tanto naanálisecomonaelaboraçãodeumaobra–sejaelamusicalou não.

Aindadeformamaisevidentedoqueaconteciacomasaulasdecomposição,assuasaulasdeestéticanãoeramfrequentadassomenteporpessoasligadasàmúsica.Haviaprofessores, cientistas e profissionais das mais diversasáreas.

Assim, especialmente aquelas aulas de estéticarapidamente se tornaram num ponto de encontro verdadeiramente transdisciplinar.

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Outroconceito–queelerepetiaemdiversoscontextos– era o dequeo ocidente é um acidente, formulado pelo filósofo Francês RogerGaraudy, durante anosmembro doPartido Comunista Francês e com quem tinha estado emcontacto nos anos 1960.

Koellreutter gostava de repetir, com o seu pesadosotaqueAlemão–«ooccidente é um accidente»eprovocavaumlongodebatesobreaquestão.

Por que surgiu o Ocidente? Quais são os conflitoscom o Oriente? Eles existiriam de facto? – para além deuma interminável série dasmais diversas outras questõessemelhantes.

Nofinaldosanos1990,GaraudyassumiriaumaposiçãopolíticaqueteriasidofrancamenterejeitadaporKoellreutter.Então, o filósofo Francês publicou o livro negacionistaFoundational Myths of the Politics of Israel defendendo um

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revisionismohistórico,recusandoofactodoholocaustoterrealmenteexistidoeseconvertendoaoislamismo.

Koellreutter viveu directamente as atrocidades donazismo. Foi obrigado a fugir da Alemanha. Ele chegou a afrontaroexércitonazistacomumaagressivacartaquandoera jovem.Organizou um grupo de protesto contraHitler,ainda quando vivia na Alemanha. Seu grande mestre,HermannScherchenera judeu.A suaprimeiramulhererajudia. Perdeu muitos amigos na Guerra e era um radicaldefensor das liberdades individuais.

Muitas coisas mudaram no planeta durante a sua vida.

Apósalgunsmesesestudandocomelenafaculdade,as aulas de composição foram transferidas para a sua casa, umbeloapartamentonaAvenidaSãoLuiz,praticamenteàfrentedofamosoedifícioItália.

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Passei a ir muitas vezes à sua casa. E saíamosfrequentementeparaalmoçar,apenasosdois.

Noinício,íamosaumpequenoeausterorestauranteAlemão lá perto – seu preferido. Eu já era vegetariano.Naqueles tempos ele gostava especialmente de bifes devitela, e os almoços, sempre austeramente acompanhados de um copo de água, não raramente corriam no mais absoluto silêncio.Nenhumdenósdiziaqualquercoisadurantelongosminutos.

- Nósprecisamosdetempoparapensar,paraobservar.–diziaele,semesconderumgrandeprazerquetinhaem estar em silêncio. – As pessoas falam demais!Ficam sem tempo para pensar.

Íamosevoltávamosapé,praticamentetodootempoem silêncio. CruzávamosaPraçadaRepública. Ele apenasolhava com curiosidade, sem parar, a feira de objectos

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coloridos espalhada pelo chão.

Eusempredeixavaorádio ligadonomeucarro.Nosautomóveis, os equipamentos de rádio consumiammuitopoucaenergiaeléctricaeeubrincavadizendoqueeraumaformadocarronãosesentirmuitosóquandoeunãoestavapor perto. Mais tarde, nas minhas casas, sempre houve músicademanhãànoite–eemtodososcómodos.

Esse hábito o deixava surpreso. Tal como JohnCage,elenuncaouviamúsicasenão fossenummomentoespecialmentedestinadoparatal.

Para ele, a música não podia acontecer como um contínuo, como algo pertencente ao mundo. Deveria seralgo especial. Para mim, a música e os sons das cidades e do campo sempre foramumaúnica coisa, num certo sentidocomoatrilhasonoradeumfilme.

- Ouvirmúsicanãoéalgosemimportância.Nãopode

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haver importância naquilo que acontece sem parar.Música é uma coisa muito especial. Precisamos dar atenção a ela. Dar-lhe tempo. Respeitá-la. Não fazsentido ter música a todo o momento. Se ela estáacontecendo todo o tempo, então ela simplesmente nãoacontece!Nãoháconsciência.

Certavez,quandocaminhávamosdevoltaparaasuacasa, assim que chegamos à avenida São Luiz, ele parousubitamenteefezumacuriosaobservação:

- Vocêvêessaavenida?Vêaspessoasqueestãoandandonela?Vocêécapazdeselembrardecomoelaeraháapenasquinzeanos?Aspessoaserammuitodiferentes.Imaginehácinquentaanos.Mas,parecequefoiontem.Éimpressionante.Euobservoeficosurpreso.Elassevestiamdeformatotalmentediferente.Haviamuitaspessoascomfatoegravata.Hojesãomuitosmestiços,vestindooutrasroupas,muitomaiscoloridas.Tudosetornoumaisdescontraído,menosformal.Aspessoas

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mudaram.Omundomudou.Nãosetratadedizerqueestámelhor ou pior, mas apenas de que tudo estátransformadoequeessatransformaçãovaicontinuar.Éumaimpressionantemetamorfose.

PergunteiseoBrasillhepareciaestarmaispróximodaÍndiaapósessametamorfose.

- Meu amigo, num certo sentido é verdade. O Brasiltem o mesmo perfume da Índia. Mas, são paísesmuito diferentes. A Índia tem uma história commilhares de anos. Essa história se reflecte naspessoas, naquilo que elas são. Os indianos acham,em geral, que os brasileiros são muito incultos emgeral. Se compararmos as histórias, eles têm razão.Poroutro lado,háuma liberdadenoBrasil quenãoexiste em outros lugares. Essa liberdade por vezestambém significa menos respeito. Mas, a educaçãoaquinãodevesercomoacontecenaEuropa.Aqui,asnecessidades são outras. O ensino deve respeitar o

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lugar,éumaquestãosocial.E,afinal,ametamorfosenãoterminou.Elaestácontinuando.

Essaconversaaconteceunoiníciodosanos1980.

Perguntei,ainda, seeleconsideravaqueoBrasil iriaviverumarevolução,umalutaarmada.Vivíamososúltimosanosdaditaduramilitar,agoranoiníciodeumatransiçãoparaum regime democrático. Haviamuita tensão, a corrupçãopareciasergeneralizada–nósnãopodíamossequerimaginarosníveisqueelaatingirianofuturo–eparamuitosaúnicasolução parecia ser a luta armada.

Era incompreensívele inaceitávelumpaísricocomooBrasil ter tamanhaquantidadedemiseráveis.Eumesmoquestionavasenãoseriaaquelaaúnicasaídaparaopaís,ainda que considerasse com gravidade os terríveis custossociaisqueumarevoluçãosemprerepresenta.

- Há dois caminhos para o Brasil. Pode acontecer uma

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revolução,éverdade...nãoéimpossível.Mas,eunãoacreditomuitonessecenário.OmaisprováveléqueoBrasilseencaminhe,numcertosentidocomoaÍndia,não por revoluções, mas por evoluções. Se assim for, tudovaidemorarmuitasgerações,tudoserálento,apobreza não acabará rapidamente, nem a corrupção. Isso me parece mais coerente com o espírito dobrasileiro.Seébomouruim?Nãoexistebomouruimnessas coisas.

Em todas as suas aulas, quaisquer que fossem, aformaçãodoserhumano,afunçãosocialearelatividadedetudo estavam sempre presentes.

Nasaulasdepercepçãoeleprocuravafazercomquecompreendêssemosasrelaçõesentreossons.

- Música não é memorização, mas compreensão. E a compreensãopodeserdenaturezanãoverbal.Vocêtemdeouvirecompreender.Mas,eunãopossoexplicar

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essas relações compalavras, exactamente porque éalgo não verbal. Preste atenção. As pessoas desistem de compreender as relações entre as coisas porquenão prestam atenção, e se desanimam rapidamente. Compreensãoéapenasestarlivreeatento.

A análise musical era algo fundamental para ele. Algo que deveria ser tomado como essencial não apenas porcompositores, mas também por intérpretes, professores, enfim,porquemquerquefosse.

JohnCage,Aria,1960

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- Muitas vezes, você conhece um intérprete pelapartitura,seelaestáanotadaounão;ecomoéessaanotação–acaligrafiamusicaldomúsico.Querdizer,qualfoiaenergiaqueelegastouparaanalisarecompreenderoprocesso.

Outro elemento fundamental era o estilo.Normalmente,aspessoastomavam–emuitasaindatomam– a palavra estilocomoalgopejorativo.Istoé,consideramqueoestiloéumaespéciedeprisão,tolhendoalivreexpressão.Ninguém queria tocar neste ou naquele estilo; e quandoalguémtinha um estilo próprio, era visto comoestilizado, como caricatural.

Mas,paraKoellreutter,aquestãodoestiloeracentral,semaqualnãosepoderiaconhecerumgrandecompositorou um grande intérprete.

- Todos os compositores sérios, todos os compositores comvalor,honestos,têmumestilo.Oestiloestáligadoàhonestidade.Àsvezes,hápessoasquequestionam

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isso,maséarealidade.Oestilodeumapessoaécomoasuacaligrafia,comoasuaimpressãodigital,comoasuaformadecaminhar.Apenasquandoconhecemosessaespéciedeimpressãodigital,deidentidade,équecomeçamosacompreenderodesígniodocompositor,asuagrandeobra.Geralmente,cadacompositoracabaporterumaobraqueé,numcertosentido,asíntesedasuavida.Umaobraquetrásemsitodososelementosdo seuestilo, dequemele é. ParaBeethoven, foi oConcertoparaPianon.º1emDóMaior,opus15;paraFranz Schubert, a sua oitava sinfonia, em Si menor, inacabada; para Claude Debussy, o seu formidávelJeux;paraGustavMahler,o segundomovimentodaQuarta Sinfonia.

Quando perguntei sobre Das Lied von der Erde, a Canção da Terra – e eu amava muito especialmente uma gravaçãocomKathleenFerrier, JuliusPatzake regênciadeBrunoWalter–elerespondeu:

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- Éumagrandeobra,masnãosintetizaavidadeMahler,asuagénese.Vocêatépodedizerquenoseupontodevista a Canção da TerraéasíntesedopensamentodeGustavMahler.Mas,eunãoestoufalandodepontosde vista. Estou falando de análise. Quando analisamos a sequência de cadências na desintegração doprincípiodatonalidadenaquelemovimento,temosaconstruçãomaiscompletadetudooqueelefez,antesedepois.Éummistériocomoissoacontece.Mas,emgeral, cada grande compositor tem uma grande obra, queestápresenteemtodasasoutras,comosefosse,numcertosentido,aimagemdoseupensamento.

E quando falávamos de Gustav Mahler, viajávamosespiritualmenteatéViena,atéasuaesposabelíssimaAlma,por muitos considerada a mais bela mulher da sua época; até Oskar Kokoschka, o grande pintor e amante dela; o seu desespero, e a sua morte.

- Mahlersabiaexactamentequeiamorrer.Nadamais

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existiaparaele.

E ouvíamos o adágio da sua décima e inacabadasinfonia.

Hans JoachimKoellreutter,

Tanka II, 1972

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Nas aulas de contraponto, tínhamos de mergulhare compreender com clareza o método de diferentes compositores medievais, como se o nosso trabalho fosse decifrarasualógicaereconstruiromúsico.Apenasassim,penetrando na sua alma, poderíamos compreender osseusdilemas,assuasangústias,easquestõesdetodaumaépoca.

Se estivéssemos compondo algo como Guillaumede Mauchault, por exemplo, devíamos ir para além decompreendercomoelepensava–devíamos,decertaforma,nos tornar parte do seu pensamento.

Koellreutterditava,pacientemente,linhaporlinhadasregras de composição de Machault ou de Palestrina, entre outros.Tínhamosdecompreendertodasaquelasrelaçõesecompor peças como eles o faziam.

Depois,Koellreuttercorrigiapacientementetodosos

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erros,apontandoasrelaçõesentreasnotas,osistemacomoumtodo,sempreextremamenteexigente,durantehorasehoras.

Em alguns momentos eu imaginava termos voltado no tempo, estarmos num mosteiro medieval e o mestre, pacientemente, corrigindo os deslizes do aluno.

- Nãoépossívelvocêvoltarnotempo.Hoje,nóstodossomosoutrossereshumanos,diferentes.ÉimpossívelpensarcomoMachault,JosqindesPrèsouPalestrina.Mas, eles nos deixaram regras, pistas, vestígios. Apartirdelespodemosimaginaraquelemundoe,numcertosentido,oreconstruirimaginariamente.Sigaasregras,queparaeleseramaordemdomundo.Comelas,compreendaaquelamúsica.Nãoéfácil.

Eram,porvezes,exercíciosextremamentecansativos,quetomavamhorasehorasequepareciamnuncamaisterfim.Eleiacorrigindo,severaerigorosamente,atéaosmais

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ínfimospormenores.

Assimtambémaconteciamosexercíciosdeharmonia.Tudo era muito trabalho e acção, a todo o tempo.

Quando uma série de aulas terminava, estávamos todosexaustos.Quandoasaulascontavamcomapenasumaluno, como era o meu caso em composição, contraponto para além de outras disciplinas, algumas vezes a aula terminava mas havia ainda muito trabalho a fazer. Quando issoacontecia,eumemudavaparaoutrasalaeKoellreutterdava início a outra aula, para outra turma ou para outroaluno.Aoterminar,vinhaverificaremquepontoeuestava.Isso não acontecia apenas comigo, mas também com outros alunos.Elecolocavatodosparatrabalhareeraextremamentededicado a cada um.

Koellreuttertinhasidoumgrandeflautista,reconhecidoem todo o mundo. Fora aluno do lendário Marcel Moyse, e

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colega de classe de Jean-Pierre Rampal.

Tal como Rampal, ele representou uma linha directa comogenialPaulTaffanel,consideradoofundadordaescolaFrancesadeflautatransversal,aindanoséculoXIX.

Eucomeçaraaestudarflautatransversalnasegundametade da década de 1970 com um professor da escola Italiana.Naquelaépocaenascondiçõesqueeutinhaparaestudar, ainda não podia saber da profunda diferença entre asescolasItalianaeFrancesaparaflautatransversal.

Creio que aquelemeu primeiro professor – emboratenha se tornado maestro com algum reconhecimento – tambémnãoeracapazdeasdistinguir.

Naescolaitaliana,bloqueamosagloteetensionamosvigorosamenteosmúsculosdaface.Tudoétensão.Ofluxodearadquirepressãoevelocidadeatravésdadiminuiçãoda

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abertura labial.

Numa via radicalmente diferente, a escola Francesatrabalhatudonaturalmente,relaxandoosmúsculosdaface,libertando a glote e trabalhando intensamente o diafragma. NaescolaFrancesa, tudoédistensão.Ofluxodearganhavelocidadeatravésdotrabalhododiafragmaeaqualidadedo som é desenhada pela precisão na forma da abertura labial.

São formas totalmente diferentes de se tocar o mesmo instrumento.

NaescolaItaliana,osomé“pequeno”.NaFrancesa,osomécheiodeharmónicosadquirindoumcorpomagnífico,oquechamamosderedondo, podendo ser ouvido a grande distância,mesmoquandonãosetocaforte.

Comoum terrível e trágico acidente naminha vida,

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estudeiosmeusprimeirosdoisanosdeflautatransversalpelaescola italiana. Mecanicamente cheguei a desenvolver muito, mas o som era péssimo, irremediavelmente pequeno.

Atéque conheciumgrandemestre:Demétrio Lima,queensinavadeacordocomaescolaFrancesa.

Demétrio é essencialmente ummúsico de jazz, umgrandemúsico.Dizia-sepor todosos ladosqueaprimeiraexigênciadecompositorescomoBurtBacharacheraadeotercomochefedeorquestraquandoiamaoBrasil.

Estudei com Demétrio antes de começar as minhas aulas com Koellreutter. Ele foi um grande mestre e umqueridoamigo.

Eu estava desesperado quando encontrei Demétrio–quetambémerabemhumoradamenteconhecidonomeiodejazzdeSãoPaulocomoSatanás,porquetinhaacabeçaraspada.

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Eupercebiaquealgocorriamal.

Noprimeirodiadeaula,Demétriofoiextremamenteduro comigo. Mostrou-me as grandes diferenças entre aquelasescolas.Mas,euteriademesubmeteraumlongoprocesso de desautomatização muscular, exercícios paraapagaramemóriadocorpo.

Durante um ano, fui obrigado a parar de tocar e começar tudo novamente, com penosos exercícios diáriospara eliminar os vícios. Ao longo de vários meses eu eraobrigadoafazercansativosexercíciosàfrentedeumespelho,utilizandoapenasobocaldoinstrumento.

Foiterrível,massereisempregratoaele.

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Naquela época não eram muitos os flautistas quedominavamatécnicadaescolaFrancesanoBrasil.Koellreutternãoapenasdominavacomoatinhaaprendidocomumdosseusmaioresexpoentesdesempre:MarcelMoyse.QuandosoubequeeutocavaseguindoatécnicadaescolaFrancesa,ficouumpoucosurpreso.

Quandooconheci,Koellreutternãomaisdavaaulasdeflautaenãomaistocavaempúblicoaquelequedurantetodaavidatinhasidooseuinstrumentoprimeiro.

Apenas alguns anos mais tarde tive orientaçõesparticularescomelesobreinterpretaçãonaflautatransversal,

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mas eram especialmente dirigidas para a análise.

Tudoparaeletinhadeestarrelacionadoentresi.Asaulas de composição, de contraponto, análise, harmonia funcional,percepção,ouasorientaçõessobreinterpretaçãonaflautatransversalentreoutrasdisciplinasdeveriamsempreestar focalizadas na compreensão da música enquantolinguagem não verbal.

Asregrasquenormalmentefundamentamasdisciplinasmusicais apenas tinham sentido se fossem descobertasenquantorealidadevivida.Deoutraforma,seriamsempreapenasregrasestabelecidasnumtexto,semgrandevalor.

Todostínhamosdeteremmentequeteríamossemprede viver o nosso trabalho, vivenciá-lo por inteiro. E esse trabalho,nosentidode labor, de elaboração, era a música –masessavivênciaprofundadependiadarealidadedecadaum.

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- QualéosentidodachamadamúsicaeruditaEuropeiaparauma sociedade comoabrasileira hoje?Aquelamúsica foi elaborada ao longo de séculos numa realidademuitoespecífica,quesedesenvolveutambémdeformamuitoespecífica.OBrasiléumamisturadesociedades,etemumapopulaçãofortementeacústica,oral.AmúsicaEuropeiasimplesmentenãofazsentidonessecontexto.Elapodesertocadacomoalgoexótico,masnãoépartedasraízesdageneralidadedaspessoasdaqui. O Brasil, como a Índia, é um outro mundo.Umarealidadediferente.Aindaassim,hápessoasqueparecemnãoperceber issoe continuam impondooensinodamúsicanasescolaseconservatórioscomoseestivéssemosnaEuropadoséculoXIX.Tudomudou.Aquelamúsicaquasenãotemvaloraqui.Oseuvaloré, muitas vezes, a superficialidade do kitsch. Isso não significaquenão tenhamosmétodoequeessemétodonãopossaserdesenvolvidoaqui.Tambémnãosignificadefenderumamúsicanacionalista.Mesmoa

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Europadehojenãoémaisadeduzentosoutrezentosanos.Estamosfalandodaconsciênciaedaeducação,não de nacionalismos, mas de realidade. – dizia ele numtomcríticoqueoacompanhouatéaosúltimosdias.

Assim, será que a música de concerto estarácondenada? Perguntei.

- Naturalmente! É lógico que está! As pessoas sãodiferentes.Mesmoquesinfonias,músicadecâmara,enfim a chamada música antiga erudita continue aser tocada em teatros, tudo será diferente, as pessoas são outras. Antes, ela era a revolução do seu tempo. Agora, ela é a imagem de outra época.

Desdeosprimeirosanosdonossotrabalhoconjunto,eu como aluno e ele como mestre, estabelecemos o compromisso de almoçar juntos pelomenos uma vez porsemana.

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QuandofuiparaaEuropa,noiníciode1986,osnossosalmoços continuarama acontecer, normalmente, cada vezqueeuvisitavaoBrasil.

Curiosamente,elenuncaseadaptouaouniversodoscomputadores.Numcertosentido,issotambémaconteceucomJohnCage,emboraJohntivessesempreumcomputadorno seu quarto, com o qual trabalhava. Mas, eles nuncachegaram a compor intensamente com computadores ou sintetizadores, e nunca se desenvolveram com sistemasdigitais, tal como aconteceu com René Berger – que foiummestredocibermundoatéaofinaldavida,entãocomnoventa e cinco anos de idade.

Na verdade, Koellreutter teve muito menosenvolvimentocomsistemasdigitaisqueJohnCage.NocasodoKoellreutter,esseenvolvimentoerapraticamentezero.

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Eu chegava ao seu apartamento na avenida São Luiz e já existia ummedo generalizado em relação à violênciaurbana.

OpróprioKoellreutterchegouaserassaltadoalgumasvezesàfrentedoedifícioondemorava.

Emanuel Pimenta,Concertoparagrande

conjuntodeinstrumentos,1982

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Nos primeiros tempos, o porteiro, que vigiava oedifício, ficava permanentemente escondido atrás de umaporta,àfrentedoselevadores–muitoantigos,demadeira–queficavamnofundodeumcorredor.

Quandoentrávamosnoedifício–quetinhaumbeloátriodeentrada–eleficavacontrolando,escondido,comoseestivessesempreprontoafugir.

Entrávamos e ninguém aparecia. Ficávamos ali parados, atéqueoporteiroperguntava,semqueopudéssemosver,queméramoseoquedesejávamos.Tínhamosdelhedarasinformaçõespedidas,eletelefonavaparaoapartamentodoKoellreuter e obtinha a autorização para que pudéssemossubir – tudo feito um pouco aos gritos.

Os elevadores eram regularmente bloqueados parafuncionar apenas com ascensorista. O porteiro, que faziasempre cara feia de tanto medo, também era o ascensorista,

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controlandocomopodiaomovimentodoedifício.

O homem estava sempre apavorado.

TodasasvezeseuchegavaaoandarondeKoellreuttervivia,tocavaacampainhaedavaquatrooucincopassosparatrás.

Havia quatro apartamentos por andar, a sua portaficavaàesquerdae,comoeracomumnosedifíciosantigos,o halltinhabastanteespaço.

Eudavasempreaquelesquatrooucincopassosrituaiseficavaàespera.Eraumcuriosocuidadoformalqueeutinhaequeaconteciadeformanatural.

Ritualmente, mesmo tendo já sido avisado peloporteiroqueeuestava lá,elesempredemoravaum longotempoatéabriraporta–anítidaimpressãoeradequeele

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esperava que eu tocasse a campainha e contava aqueleslongos momentos até abrir a porta, como uma espécie de preparação. E acontecia sempre da mesma forma.

Toda a nossa relação era caracterizada por uma grande formalidade, que até poderia ser considerada por muitoscomo sinal de frieza, mas era desenhada por um profundo afecto de ambas as partes.

Assimqueabriaaporta,logoàentrada,nóspodíamosver na parede lateral do lado direito um grande espaço vazio reservadoparaassinaturasdaspessoasimportantesqueláentravam.

- Ideia da Margarita. – dizia ele com orgulho.

MaisdoqueKoellreutter,MargaritaSchack,suaquartaesposa, era uma formidável mestra em relações públicas,paraalémdetersidoumaexcepcionalmezzo-soprano.

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Lá estavam as assinaturas de músicos, artistas,pensadores, cientistas, personalidades como MaurizioPollini, grande amigo de Koellreutter, ou AbrahamMoles,paraquemMargaritachegaramesmoaorganizarencontrose debates no Rio de Janeiro, entre muitos outros.

A parede estava cheia de assinaturas e divertidasmensagens.Coloqueiaminhaali,creioquenoanode1981ou 1982.

O apartamento era germanicamente austero. Muito poucosmóveis. Apenas um sofá à entrada, uma pequenamesa redonda no fundo da sala de estar, um belo piano de meiacaudanumasalinhacontígua,umapequenaestante,ondeficavaotelefone,carpetebeijeclaromuitoespessoeconfortável por todo o apartamento.

Antesdosdoisquartos,haviaaindaumapequenasala,com móveis vermelhos, pequenos sofás bastante rígidos,

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como o da sala de estar na entrada, alguns livros e uma minúscula mesa de centro. Mais tarde, ele passou a chamar essapequenasaladeKremlin.

Nessapequenasala,adaptadacomolugaracessório,queKoellreuttergostavadeusarparalerlivrosoujornaisemsilêncio,haviadezenasdebichosdepeluche,umpoucoportodo o lado. Ele os adorava. Quando algum começava a se desfazer,poralgummotivo,elelamentavacomsinceridade:

- Vaimorrer!Estácomcâncer!...Assiméavida...

Ao longo dos anos, dei a ele vários bonecos de peluche engraçados. Percebi queos queelemais gostava eramosmais expressivos, os mais curiosos, inesperados. Tambémeram,naturalmente,osquemaisatraíamaminhaatenção.

Por onde ia, fui descobrindo os mais engraçados bonecos e aumentando a sua colecção.

- Emanuel,vocêpercebeuexactamenteoespíritodessa

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minha colecção. São grandes amigos meus. - falava, cheio de humor.

Eu ficava imaginando qual seria a reacção daqueleshomens sérios, autoridades importantes, presidentes das mais diversas instituições se o vissem cercado daquelesbonecos coloridos. Certamente diriam que ele não estavanoplenodomíniodoseujuízo.Masissonãoserianovidade.Eraalgodoqualforaacusadopraticamentedurantetodaavida.

A verdade é que para Koellreutter tudo era purafilosofia. Cercava-se de bonecos, como poderia ser dequalquer outra coisa. Para ele, num certo sentido, tudotinhavida, tudoeramemóriaetambémpartedofluxodetransformaçãoqueéaexistência.

Quandoelepegavaumapedra,questionava-sesobreograudeconsciência,dememóriaquehaviaali.

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- Vemosaspedrasimóveisapenasporqueasolhamosmuito rapidamente. Se as pudéssemos ver ao longo demilharesdeanos,ficaríamossurpresos.

Uma das suas preocupações mais dissimuladas eracomasaúde.Elesimplesmentenuncaficavadoente.Mas,era cuidadoso, preocupava-se com prevenção.

Emanuel Pimentalançando seu segundo livro

na Bienal de São Paulo,1981

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Aindaassim,certavezpraticamentetodososalunosnumadasclassestinhamapanhadoumaviolentagripe.Masele, apesar de conviver connosco e de ser muito mais velho, estavasempreóptimo.Perguntei-lheàsaídadaclasse,qualeraoseusegredo,porqueelenuncaficavadoente.

- Ora,émuitosimples.Eunãopossoficardoente.Apenasisso.Quandoerajovemevivianacasadosmeuspais,eu vivia apanhando gripes e resfriados... como todas asoutraspessoas.Mas,quandotivedememudareassumircompromissossérios,eudeixeidepoderficardoente.Apenasisso.Quandoaspessoaspodem,ficamdoentes.Quemverdadeiramentenãopode,nãofica.

Asuaestóicaafirmaçãocertamentefariacorarmuitosmédicos, mas estava plena de uma sabedoria prática, deumalongaexperiênciadevida.

Depois de percorrer todo o ritual, ele abria a porta,

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eseguíamosparaapequenasalade leitura,oKremlin. Lá estavampreparadosdois coposmuitopequenos,uma friagarrafa de whisky e batatas fritas ou salgadinhos também frios.

Elecolocavamuitopoucowhiskyemcadacopo,quasenada.Comíamosumaouduasfolhasdebatatafritagelada,nãomais.Aquilonãoeraummomentoparacomeroubeber,masummomentosimbólico,comoumritual.

As batatas ou o whisky não eram importantes. O momento era.

Eletinhaocuriosohábito,tantoemSãoPaulocomono Rio de Janeiro, de conservar garrafas de whisky e pacotes desalgadosebatatasfritasnofrigorífico.

Conversávamos sobre muitas coisas, mas maisregularmentesobrecomportamentos,política,educaçãoe

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descobertascientíficas.

Paraele,aAlemanhaeoJapãoeramospaísesmaissemelhantes do mundo em termos de comportamento social.

ExplicavacomotudonoJapãoaconteciaporconsensoe,porisso,umapequenadecisãopoderialevarmuitosanospara ser adoptada.

Discussões sobre comportamento incluíampolítica, naturalmente. É possível existir uma verdadeiraanarquia?Oqueéeducação?Há,defacto,evoluçãosocialou de conhecimento? Quando lidamos com questõessociais, estamos tratando de questões genéticas oucomportamentais?

Perguntei se ele já tinha usado drogas. Como era ocomportamento social em relação às drogas no Japão.

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- Eunãotomodrogasenuncatomei.Nãoéomeucaso.Sempre tive muito trabalho para fazer. Não tenhomuito tempo para diversão. Podem haver pessoas interessadas na descoberta de outros estados de consciência. Nomeu caso, namúsica, eu creio quejá tenho muito com o que trabalhar em relação aisso... e trabalhamos sempre com uma função social. Os Japoneses são muito fechados para drogas. Mas, isso acontece em relação às drogas de outros lugares. Láeles têmasdeles.Elesnãoaceitamasdrogasdeoutroslugares,porqueparaojaponês,asdrogassãoparte de rituais, parte da cultura. Não é diversão,entretenimento. A função das drogas no Japão é algo muitodiferentedoqueaconteceaqui,porexemplo.

Perguntei-lheoqueachavadaspessoasqueusavamdrogas.Eunãousava,masimaginoquemuitosalunosseususarametivecuriosidadeemsaberseelefariaumjulgamentomoral.

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-Bom,meuamigo,navidacadaumfazoquequiser.Mas,senóstomarmosdrogas,seráqueconseguiremosalcançarumamaiorcomplexidadedepensamento?Euacreditoquenão.Pelomenosporenquanto.Nuncasesabedofuturo.Nãosabemosseumdiairãoinventarumadrogadiferente.Mas,tudooqueeutenhovistodedrogas até agora, parece reduzir a complexidadedo pensamento.

Koellreutter desconfiava seriamente dos critériosconvencionais de evolução, do chamado progresso.

Emalgunscasos,aevoluçãoexistia,eraclaraeevidente,talcomoacontececomossistemastecnológicosnaáreadacomunicação,porexemplo.Mas,elesnão resumiamoserhumano em toda a sua complexidade e não significavamobrigatoriamente um progresso humano.

- O índice de mortalidade diminuiu, é verdade.Os índices de expectativa de vida aumentaram,

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também é verdade. Mas, será que isso significa,obrigatoriamente,quenostornamosmaishumanos,isto é, mais civilizados? Eu tenho sérias dúvidas sobre isso.

Para ele, em certos aspectos, uma população pobre poderia, eventualmente, manifestar mais elementos de evolução civilizacional que uma sociedade materialmenterica.Aindaassim,elenuncaapresentavaessasquestõescomocondições fechadasemsimesmas.Asquestõesemergiamcomodesafios,paratodosnós.

- Nãopodemosparardequestionar.–defendiasempre – Quando tratamos de civilização, o queestamos querendo dizer com isso? É que somoscapazes de consumir mais? Será apenas isso?

Koellreutter conviveu com grandes personalidades.Nosnossosencontros,cheiodecuriosidade,euperguntavacomo eram aquelas pessoas. Como elas eram enquanto

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sereshumanos.Comoeleospoderiadescreveroqueeramnoconvívioíntimoentreamigos.

- RaviShankaréumsantonaÍndia.Éumapessoacomummagnetismoincrível.Mas,umapessoasimples...Octavio Paz era um grande amigo, uma pessoa de grande cultura e um excelente ser humano, umsujeitoexcepcionalcomumhumoreumaculturasemparalelo. Estávamos sempre juntos na Índia... LuigiDallapiccola foi um dos meus melhores amigos durante anos, assim como o Arthur Schnabel. Os dois eram pessoas muito amigas e afectuosas. Eu gostava muito deles... Pierre Boulez é um brincalhão, nunca para de fazer brincadeiras, tem um humor maravilhoso. Está sempre contando piadas... Stockhausen é uma pessoa muito inteligente, mas tem um temperamento muito difícil.

Naturalmente,eunãofaziaumalistadeperguntaseele passava a descrever as pessoas. Eu perguntava ao acaso,

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numalmoçoounumencontro,comoaquelaspersonalidadeseramenquantosereshumanos,comosecomportavam.

Certa vezodesafiei aescreverum livro sobrea suavida.EletinhavividonaÍndia, foraamigodeRaviShankar,viveu no Japão, conviveu com Tohru Takemitsu; conheceu Stravinsky,conviveucomPicassoemParis!

Estávamosvoltandodeumalmoço,eutinhadeixadoomeucarronumestacionamentoaoladodoInstitutodosArquitectos de São Paulo. Caminhávamos para a sua casaquando fiz o desafio. Ele riu como se fosse algo absurdo.Insisti.Eleparou,olhou-meseriamenteedisse:

- Eu?!Escreverumlivrosobremimmesmo?Nunca!- Mas,porquê?Seria importantenãoapenasparaos

seus alunos, mas para muitas pessoas.- Meu amigo, uma biografia é sempre falsa. Quando

alguémescrevesobresimesmo,escreveoquequerescreverenãooquerealmenteaconteceu,pormais

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sériaerigorosaquesejaessapessoa.Simplesmentenão tem valor. Mesmo como retrato de uma época, é algo obrigatoriamente vazio, fútil. A única formaquealguémpodeescreversobreasuaprópriavidaéquandonãoestápensandonela.Porexemplo,quandoescrevecartas.Comascartas,apessoaparticipadeum diálogo com o Outro e, portanto, é honesto. Eu jáfizisso,agoramesmo,comapublicaçãodasminhacorrespondênciacomSatochiTanaka.

- Mas! Ainda assim... com tantas experiências! Porque não escrever um livro? Se a pessoa sabe dessafragilidade, pode contornar, desviar-se dela.

- Nãosepreocupe,umdiavocêvaiescreverum livrosobremim.Mas,nãoenquantoeuestivervivo...

- Por quê? Era importante que o seu pensamento seexpandisse!Quefosseacessívelamaispessoas.Aquiloque pensamos, os nossos trabalhos, não devem serconsiderados como coisas meramente pessoais. Naverdade, não nos pertencem...

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- Éverdade.Vocêtemrazãosobumpontodevista.Mas,oquevocêestádizendonãoseriaaminhavida,aquiloquerealmentesou.Seriaalgofalsosefosseescritopormim.Nãofariaqualquersentido.Nãoestariacoerentecomomeumododepensare,assim,seriaimpossível.Eu nunca falo da minha vida pessoal, não interessa. A única coisaque interessaéo trabalho, todoo restoéumailusão.Mas,nofuturo,quandoeunãoestivermaisaqui,quandotivermorrido,vocêvaiescreverumlivro sobre mim.

Ele disse isso há mais de vinte e cinco anos, em 1983, numatardedesábado,quandocaminhávamoscalmamentepela Avenida São Luiz, chegando ao seu apartamento.

Num certo sentido, a polémica frase de GeorgesBataille – «Escrevo para apagar omeu nome» – tambémpoderiatersidoditaporKoellreutter.

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Noinício,osnossosencontrosparaalmoçaraconteciamgeralmente aos sábados, naquele restaurante Alemão,quandoocentrodacidadeestavavazio.Depoisdoalmoço,geralmente,caminhávamosemsilêncio,ladoalado,durantealguns minutos.

O livropublicado comas cartas entreKoellreutter eSatochiTanaka,umprofessordeAlemãonaUniversidadedeMeisei,emTóquio,temotítuloEstética – À Procura de um Mundo sem ‘Vis-a-Vis’,foitambémlançadoemJaponês,emTóquio,eindicacomclarezaassuasideiassobreestética.

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As duas edições foram lançadas praticamente emsimultâneo,noBrasilenoJapão,nofinalde1983.

Muito discretamente, na sua casa, cheguei a revisar aversãoPortuguesadeváriaspassagensdolivro.«Nãofaleparaninguémqueeulheestoumostrandoestetextoantesda publicação», alertava. Koellreutter tinha uma imensapreocupaçãocomatradução.Sentávamosnapequenasalade leitura, o Kremlin, ele me mostrava uma folha de papel comumafrase.Pedia-mepara ler.Depois,explicavaoqueelequeriadizeremAlemão.Todasas línguas têmos seustruques,eficávamostrocandoideiasduranteumbomtempopara encontrar as melhores palavras.

Numa das cartas a Tanaka, datada de sete de Abrilde1975,Koellreutterdizia:«Aindanãosabemosquaisdosvalores da herança do ser humano, numa cultura universal, serãodefinitivamenteintegrados.Istodependedosideaise

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dosobjectivosquecadapessoacolocarparaofuturo.Certoé,noentanto,queumafuturaculturauniversalfundirávaloresculturais do Oriente e do Ocidente num jogo dinâmico: aintroversãoserácompensadapelaextroversãoeviceversa,a subjectividade pela objectividade e a automação pelafrutificaçãodas forçascriativas.Dessamaneira,aproximar-nos-emos de uma estrutura de pensamento cuja essênciapoderáseroparadoxointegrante».

Revelando um profundo cepticismo em relaçãoàs ideias do mestre Alemão, Satochi Tanaka responderia dizendo que «a sua ideia de uma cultura planetária euniversalsoa,defacto,muitosedutora.ComoJaponês,elameparece ilusória,opensamento ilusóriodeumEuropeuqueconsideraofuturodaculturaedacivilizaçãoOcidentaiscomcepticismoeprocuraumasoluçãonoOriente.Osenhoré da opinião de que ainda não sabemos quais os valoresda herança do ser humano serão integrados numa cultura universal,equeistodependerádosideaisedosobjectivos

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que o ser humano se propuser para o futuro. Quanto amim,creioqueseránovamenteomundoOcidental,enãooindivíduo,adeterminarosideaiseosobjectivosfuturos.TambémestouconvencidodequeoJaponês,maisumavez,estará disposto a seguir as propostas do Ocidente. Mas essa cultura, em última instância, será novamente Ocidental enãouniversal...».

Mas,Koellreutterjamaispensouemalgocomo“buscarsoluçõesnoOriente”–comodiriamaistardenumaconversacomigo.

Ele se orientava pelos princípios da termodinâmica.Por outro lado, Satochi Tanaka estabelecia uma verdadeira barreiradiantedapossibilidadedaemergênciadeummundosem vis-a-vis, como propunha o compositor Alemão.

Enquanto que Tanaka agia como um Japonês,KoellreutterpensavacomoumBrasileiro.

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Apenas quem viveu no Brasil pode compreender oque é ser um Brasileiro. “Ser Brasileiro” significa não ternacionalidade e pertencer a todas. Tudo é incorporado. Todasasculturas,todasasexperiências.UmBrasileiroé,pordefinição, um cidadão domundo. Cada pessoa que chegaao Brasil, imediatamente à saída do aeroporto, torna-sepotencialmente um seu cidadão. Digo de forma potencial porque,naturalmente,haverãoresistênciasdetodootipo.Mas,esseéoprincípio.

QuandoKoellreutterescreveuassuascartasaTanaka,elenãopensavacomoumAlemão,umFrancêsoumesmocomo um Americano. Ele era Brasileiro e livre – e, portanto, também era Japonês, provavelmente tão Japonês comoTanaka,quenãofoicapazdeperceber,aolongodetodasascartas,comoissopoderiaserpossível.

Quandoolivrosaiu,recebiumadasprimeirascópias,comumadedicatória:«AoamigoEmanuel,comumgrande

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abraçodoKoellreutter».Apublicaçãoeramuitopobre,compapel e capa pobres, e não deixei de lhe comentar sobreisso.

- Meuamigo.Nãohádinheiro!Ninguémestárealmenteinteressado nessas coisas. Somos uma parte muito pequena do mundo. Aliás, uma parte cada vezmenor.

Quando voltei a perguntar sobre a intransigente posição de Tanaka, defendendo a impossibilidade de um mundointegrado,elerespondeucombrevidade:

- Vejacomoomundoé.Muitointeressante.Tudoissoémuito interessante.

A tradução e edição do livro foi brilhantemente feita porSaloméaGoldelman,quetambémfoiresponsávelpeloprefácio.Ostextoseprovasiamevinham,atodoomomento.Cadalinha,cadaexpressão,tudoerapensado,questionado,deformaanãopermitirmásinterpretações.Especialmente

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paraela,foramextenuantesmesesrepletosdepequenasesubtis alterações. Koellreutter tinha quase setenta anos eo livro acabou por ser uma espécie de discreto testamento sobre as suas ideias.

Naquela época, durante um dos nossos almoços,pergunteicomotinhasidoaexperiênciadetervividonacasade Pablo Picasso, em Montmartre, Paris.

- Eu era um jovem flautista, e viajava intensamentepelaEuropa.Nãotínhamosdinheiro,enãohavialugarparaficar.Avidadeumjovemmúsiconuncaéfácil.Naquela época, na Europa, era comum ficarmos nacasadeartistas,quecediamumquartoouàsvezesapenas um sofá para que pudéssemos dormir. ArealidadedomundoantesdaSegundaGuerraMundialeramuitodiferentedoquetemoshojeemdia.Tudomudoucomaquelaguerra.Eueramuitonovo.Picassoera um grande homem, um mestre. Ele não precisava falarparaqueaprendêssemoscomelemuitascoisas.

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Era uma pessoa muito especial. Tinha os olhos muito brilhantes.Numamanhã,quandoacordei,viqueeleestava pintando uma tela. Ela estava colocada ao lado da janela e era coberta com pequenos rectânguloscoloridos. Todos os dias pela manhã ele olhava pela janela,queseabriaparaainesquecívelpaisagemdeParis, e pintava apenas um rectângulo. Percebi queele fazia isso todos os dias. Pintava sempre apenas umpequenorectângulo.Cadacomumacordiferente.Pergunteioqueeleestavafazendo.Aquiloeramuitoestranho para mim. Eu não compreendia o queeram aqueles pequenos rectângulos coloridos. Elecontou que estava pintando o tempo. Explicou-mequepintavaumpequenorectânguloacadadia.Cadarectânguloeraumatelha,vistadajanelaquetinhaemMontmartre.‘Cadadiaaluzédiferente,ascoressãodiferentes, cada dia somos diferentes e vemos tudo de formadiferente’.Picassotrabalhavaparaapreenderaessênciadotempo.Asuaobraéarepresentaçãodo

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conceito de relatividade de Hermann Minkowiski etambém, naturalmente, de Albert Einstein. Esse é o princípiodocubismo sintético.Porvezes,aindahojehápessoasquepensamque“cubismo”significa“cubos”,algo feito com “cubos”. Na verdade, o cubismo étrabalharcomaquartadimensão,comotempo».

Otempoeraoquehaviademaispreciosoparaele.Nasuaconcepçãodevidatudopoderiaserdramaticamentemodificadopelotempo.

Elenãodirigiaautomóveis.Quandosoube,estranhei.Porqueelenuncatinhaaprendidoadirigir?

− Vocêstêmumaideiapadrão,estereotipada,paratodasascoisas.Enquantoqueparavocêoautomóvelpodeser um ganho de tempo, para mim, com esta vida de permanentes viagens de um lado para o outro, seria um consumo de tempo. E eu não tenho tempo para essascoisas!

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Em outro dos nossos almoços, contou-me uma interessantehistóriasobreanaturezadotempo.

- Eu estava voltando do exterior, creio que foi umaviagem à Índia, muitos anos atrás, penso que em

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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1954. Eu vivia em Salvador e dirigia a Escola de Música daUniversidadeFederaldaBahia.Mas,vocêsabe,oambiente académico é terrível. Há sempre alguémtraindo, há sempre ciladas, golpes, política no piorsentidodotermo.QuandochegueiaSalvador,assimque desembarquei, alguém comentou comigo, noaeroporto, perguntando se eu tinha visto a terrívelnotícia no jornal local. Ora, eu estava chegandonaquele momento. Não poderia saber de qualquercoisa.Procureiojornal.Láestavaanotícia:Koellreutterdemitidosumariamentepeloreitor.Aquiloeramuitograve.Eutinhaparticipadoda fundaçãoaEscoladeMúsica... Você não pode imaginar. Era um grandeescândalo. Pensei um pouco e decidi não ir para casa. Sem que qualquer pessoa visse fui escondidoparaumhotelnacidade.Fiquei trancadonoquartodurante três dias. Não saí daquele quarto durantetodootempo.Eucomialá.Fiqueitotalmentefechado.Nãofaleicomqualquerpessoa.Ninguémsabiaonde

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eu estava. Aquilo era claro paramim.Alguémtinhacolocadoanotíciafalsanojornal.Comaquelanotícia,apessoaesperavaqueeufossecriaroutroescândalo,não dando chances para o reitor senão me despedir. Se eu aparecesse naquele momento, o escândaloseriaamplificado.As fofocascorriamvelozes.Assim,eu decidi desaparecer durante três dias. Chegaramatéacolocarapolíciaparameprocurar.Naquelestrêsdiasdesilêncio,todaarealidademudouradicalmente.Quando saí do hotel, fui directamente falar como reitor, e tudo ficou rapidamente esclarecido ereequilibrado novamente. Tudo não passou de um‘malentendido’.Naverdade,eusabiaquenãoeraumsimples‘malentendido’.Eutivede‘trabalhar’otecidodaNaturezacomaquelesilêncio.Nãohouveemoção.Apenas silêncio.Eo silêncio como tempomudouarealidade.Otempoalteraarealidade».

Essa face Zen era uma forte característica do seu

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comportamento.Koellreuttereracapazdeficarimóvelparaqueotempomudassearealidade.Mas,issonãosignificavaqueelenãoeraumapessoanervosa.

Com o passar dos anos, fui observando que, naverdade,eletinhaalgunsmomentosdegrandetensão,nagrande maioria das vezes imperceptíveis para quem nãoconvivia com ele.

Umdosrarossinaiseraofactoderoerinsistentementeametadedaunhadodedoanulardamãoesquerda.Certavez, eu perguntei se ele era uma pessoa nervosa.

- Ora, que pergunta! Eu sou uma pessoa como outraqualquer.Todasaspessoastêmmomentosnervosos,mesmo um monge Budista! É a natureza humana,apenas isso.

Reparei como ele vivia sozinho. Margarita era internacionalmente aclamada e viajava muitas vezes em

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tournéspelomundo.Semprequenosencontrávamosparaalmoçar, especialmente nos finais de semana, ele estavasozinho.Chegueiaperguntarporqueeleestavasempretãosó.

- Meuamigo,aminhacasaestánoRiodeJaneiro!

AsuadedicaçãoaosalunoseratalquenosesquecíamoscomfrequênciadequeelenãomoravaemSãoPaulo,masquevivianoRioeestavaempermanentetrânsitoentreSãoPaulo, Belo Horizonte, Curitiba e, algumas vezes, tambémSalvador e Belém.

Conhecidoisdosseusfilhos,muitobrevemente–umqueviviaemSalvadorequetrabalhavacomturismoeoutro,quevivianoRiodeJaneiroequeerajornalista.Mas,foramencontros muito rápidos.

Durante anos, Koellreutter não foi apenas o meumestre, mas também o meu melhor amigo.

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Em1983,fuiseuassistentenoscursosdeestéticaedecomposiçãocolectivanoCentroCulturalSolardoBarão,quetinhaacabadodeserinauguradodepoisdeumagrandeobraderestaurodoedifício.

Naquelaépocaeujátinhameafastadodomarketing.Estudavaarquitecturaeurbanismo,erafotógrafofree lance, escreviapara jornais comoO Estado de São Paulo, para a revista Som TrêscomoMaurícioKubrusly,paraarevistadearquitecturaProjeto, dava aulas e era monitor na universidade nadisciplinadesemiótica.Exceptuando-seafotografia,tudoestavarelacionadocomamúsicaoucomaarquitectura.

Como sempre, a experiência em Curitiba foiinesquecível.Haviaalunosdetodootipo,muitotalentosos,vinhamdediversascidadesdopaís.

Todo o curso de composição colectiva era fundado

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no método, como estabelecer princípios de ordem, dediferenciação, funcionandodinamicamenteemequipe.Tera consciência da unidade, da totalidade, das relações dequalidade,damonotoniaeramfundamentosessenciaisdasaulas.

Koellreutter acreditava que o Brasil poderia ser umpaísúniconomundoparaodesenvolvimentodeestratégias

Emanuel Pimenta,ConcertoparaSaposeGrilos,

1984

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decomposiçãocolectiva,nasmaisdiversasáreas.

Em termos musicais, composição colectiva significauma mesma peça ser elaborada por diversos compositores simultaneamente – o que exigemuita disciplina,método,espíritodeequipeeabertura.

Nãoeramuitofácilencontrarpessoasqueaceitassemecompreendessemcomclarezaosprincípiosdacomposiçãocolectiva.

Muitos simplesmente recusavam liminarmente aqueles princípios, argumentando que se a composiçãofossecolectivanãohaveriaumcompositorparasercriticadopositivaounegativamentee,portanto,nãohaveriaobra.

- Vocêachaqueaquiédifícilaspessoascompreenderemo que é composição colectiva e a sua importância?Na Europa é muito mais difícil. – Koellreuttercomentavaanimado.–Acomposiçãocolectivapode

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não apenas ser um princípio interessante enquantométodo de composição em si, mas também, e talvez principalmente, é uma forma importante das pessoas aprenderemumascomasoutras.Quandoestiveremalertas para isso, o mundo se tornará mais rico em experiências.Aessênciadacomposiçãocolectivaéapartilha.

Em geral, as ideias do Koellreutter pareciam estarquasesempreancoradasemgrandesprincípiosuniversais.

Ele utilizava com grande maestria frases curtas emarcantes, tal como fazia Marshall McLuhan. E eram sempre de grande impacto.

Afirmações como “apenas a diferença produz aconsciência”, “o morto é sempre o culpado, nunca oassassino” e “o Ocidente é um acidente” entre várias outras estabeleciamprincípiosem tornodosquais se construíam

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verdadeiras teses e suportavam o desenvolvimento do pensamento musical.

- NapoleãoBonapartedizia,comtodaarazão:‘Apenasoqueémonótonoemocionaverdadeiramente’.Semmonotonia, não há emoção. Napoleão não era umsimplesmilitar,nemumsimplespolítico,comomuitasvezes as pessoas pensam hoje em dia. Ele era umgrandehomem,umverdadeiroestadista.Numcertosentido,asua facecomofilósofo,comoamantedasartes,ficoutotalmenteeclipsadapelaHistória.Eleeraum homem de grande cultura e sensibilidade. E ele tinha toda a razão: apenas a monotonia emocionaverdadeiramente.

AafirmaçãodeNapoleãoBonaparte–muitocomentadaduranteoséculoXIX,mascaídanoesquecimentoaolongodoséculoseguinte–dava lugarareflexõesedebatescoma audição de variados fragmentos de peças musicais e com a apreciação de quadros de alguns pintores conhecidos –antigosecontemporâneos.

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Cada vez que ele se referia à célebre afirmaçãode Napoleão Bonaparte – quer fosse naquele curso decomposição colectiva, nas aulas deestética, demúsicadoséculo XX ou nas de composição – logo desencadeava uma grande discussão sobre a natureza da monotonia e também da emoção.

Emdiferentestiposdecursos,Koellreutterresgatava,muitas vezes, os princípios da Teoria da Informação de ClaudeShannon,edavaaosalunosrecursosteóricossobrecomoestabelecerprincípiosdecomunicabilidade.

- A comunicação é sempre essencial. Se não há comunicação, também não há entendimento, compreensão e, portanto, não há obra.

Claude Shannon foi um engenheiro electrónicoAmericano,queviveuentre1916e2001–contemporâneodeKoellreutter,consideradoopaidaTeoria da Informação.

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Shannon dizia que a «informação é a resolução daincerteza».

DuranteaquelesdiasemCuritiba,acabeiporrealizarduasexposições.Fuicuradordeumaexposiçãodepartiturasgráficas com obras de diversos compositores, como JohnCage,KarlheinzStockhausen,FerruccioBussottiepeçasdopróprioKoellreutterentreváriosoutros;eoutraexposiçãocomumasériedepartiturasgráficasminhas.

Ousodepartiturasgráficasteveinícionosanos1950e1960especialmentecomEarleBowneJohnCage.Trata-sedeumprocessodenotaçãomusicalqueinauguranovaspossibilidades para a organização de sons. Algumas vezes, asnotaçõesgráficassãodesvalorizadasporalgunsmúsicosmais tradicionalistas por considerarem se tratar de um sistemamenosrigorosoqueanotaçãotradicional,oqueéuma grande ilusão.

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Partituras gráficas têm sido regularmente utilizadaspor importantes compositores, como Tohru Takemitsu, Stockhausen, John Cage, Ligeti, Koellreutter, Bussotti oumesmodeHerbertBrün,cujaobra-infelizmente-conheciapenasanosmaistarde.Istoé,aocontráriodoquealgumaspessoaspensam,aspartiturasgráficasfazempartedahistóriada música escrita.

Koellreutter,esboçoparapartituraplanimétrica,

1983

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Em 1968 John Cage publicou um belíssimo livrochamado Notations,contendopartiturasgráficasdemuitoscompositoreseartistasdetodoomundo.

Omeutrabalhofoi,desdeoiníciodosanos1980,odeamplificaresseuniversoparaquatrodimensões,elaborandopartituras em mundos virtuais - o que, na época, erabastanteinesperado.Lembro-me,umavez,deumjornalistaterescritoqueeuera“loucopelomundovirtual”,semsaberexactamenteoqueestavadizendo.

EmanuelPimenta,VAC,1994

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Mas, um tal trabalho não pode ser reduzido à elaboraçãodemundosvirtuaisepartituras.Trata-se,ainda,da elaboração de armadilhas lógicas - que já estavampresentesnaquelaépoca.

De toda a forma, naquele ano de 1983, eu tinhaconsciência da importância de estabelecer um panoramadepartiturasgráficas,dosmaisdiversoscompositores.Foi,provavelmente,aprimeiraexposiçãodogéneronoBrasil.

Naquela exposição pública com obras de diversoscompositores de todo o mundo aconteceu um inesperado incidente.

A pessoa que fez as pequenas placas sobre cartãocom as legendas para as partituras expostas errou, nãointencionalmente, a grafia do nome do Koellreutter,escrevendo-o com apenas um “t” – como tantas vezes acontecia.

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Equívocos semelhantes não eram comuns somenteem relação à grafia do seu nome. Em muitos lugares aspessoas não conseguiam nem mesmo falar correctamente Koellreutter. No nordeste brasileiro, por exemplo, ele eracarinhosamente conhecido como “Korroté”.

Naquelesdias,eumedividiaentreserseuassistentenoscursosdeestética,decomposiçãocolectivaedemúsicadoséculovinte,etambémcuradordasduasexposições.

Eramduasdasminhasprimeirasexposições–eutinharealizado poucas até então – e toda a minha energia era absorvida.Paraalémdisso,euerapraticamenteomotoristapara o Koellreutter. Quando eu chegava aomeu quarto ànoite, estavamais doqueexausto etinhademe levantarmuito cedo.

A minha inexperiência fez com que não tivesseobservado aquele erro de grafia. Quando ele entrou na

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exposição–antesdaabertura–eviuqueoseunomeestavaescritoerrado,ficoufurioso.

Creio que nunca o vi tão alterado, tão nervoso.Chamou-me numa sala e perguntou com grande ironia eagressividadeseeutinhameapercebidododesastrequeeuprovocara.

Quando me falou daquela forma, fiquei perplexo etotalmenteperdido.Eunemsabiadoqueeleestavafalando!A exposição estava muito bem feita, tinha conseguidomolduras, iluminação, contactos com a imprensa – e não havia dinheiro. Tudo estava muito bem organizado.

Paralelamente ao curso de composição colectiva eàs exposições de partituras gráficas, havia ainda cursos econcertosrelacionadosàmúsicaRenascentistaeàvioladagamba.Algunsmúsicosdeoutroscursospresenciaramaquelaterrívelreacçãoeficaramnitidamenteimpressionadoscom

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a sua agressividade.- Meuamigo,acabou!Onossorelacionamentoacabou!

Terminou.Vocêcometeuumgrandeerro!

Fiqueiboquiaberto.Insistiváriasvezesparasabersobreoqueeleestava falando.Eleserecusava,manifestamenteofendido.

- Ora,sevocêéumapessoacompetente,deveriasaberdoqueeuestoufalando.–diziacomironia.

Eu estava sinceramente perdido.Não fazia amenorideia do que ele dizia. Imaginei ser algo realmente grave.Continueiinsistindo,preocupadocomoqueeupoderiaterfeito.

Longosminutosdepois,finalmente,eleperguntouseeusabiaescreveroseunome.Pediuparaqueofizesse.Chegueiapensarqueeraumabrincadeira.Eunempodia imaginarqueaquelaperguntaestaria relacionadaàexposição. Sem

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saberdoquesetratava,pegueiumafolhadepapeleescrevioseunome.Eleviuqueestavacorrectoedisse:

- Vocêachaqueéadmissível teromeunomeescritoerrado?Poisvejacomoestána legendadeumadasminhaspartituras.Faltaum“t”!

Fiquei chocado. Aquela reacção estrondosa poralgo tão simples! Expliquei que umapessoatinha feito aspequenasplacasemcartãomasassumi,comonãopoderiaser diferente, a inteira responsabilidade. Procurei lhe mostrar oquantoeutinhamededicadoparaqueaquelasexposiçõesfossem um sucesso. Não tínhamos qualquer recurso. Nãohavia dinheiro. Praticamentenemmesmomolduras! Tudotinhasidoalcançadocomgrandeesforçoecolaboração.

- Mas, você sabe qual é a sua responsabilidade? Sevocê fizer isso na Europa, ou nos EstadosUnidos, asuacarreiraestarádefinitivamenteacabada.Vocênãopodesedarao luxodenãopensar,denãoverificar,de não observar, de não ser muito cuidadoso. Isso foi

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umdescuidogravíssimo!Bom...meuamigo.Voulhedarmaisumachance.Esperoquevocênãosejaumadessaspessoasqueestãoflutuandonavida.–virouascostas e foi embora.

Aquilofoirealmenteumchoque.Naquelemomento,fiqueiprofundamenteaborrecidocomele.Nocalordahora,aquelasuareacçãomepareceuumatempestadenumcopode água. A pequena placa foi imediatamente refeita e aexposiçãofoiaberta,commuitosucesso.

Apesar da sua avassaladora agressividade, ele tinhatoda a razão. Muitas vezes fazemos um enorme esforço para levaradianteumprojecto–esforçoquetantasvezesnuncachega a ser compreendido pelas pessoas – e, num único instante,umpequenodetalhepodecolocartudoaperder.

Passadaa“tempestade”,numadasnoitessaímostodosparajantarcomJaimeLeirner,entãoresponsávelautárquico

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pelacidadedeCuritiba,queeramuitoamigodeKoellreutter.Haviaapenasquatroooucincopessoasnaquelejantar.Fiqueiprofundamenteencantadocomasuapersonalidade.Umdosmeus sonhos, como urbanista, era elaborar new towns e eu investigava febrilmenteasmegaestruturasdePaoloSoleri,estudandocomEduardoKneesedeMelloeEduardoCorona.JaimeLeirnereraumapessoasimples,aberta,extremamentesimpática,semprecomumexcelentebomhumor.

No último dia dos eventos houve uma pequenaconferência do Koellreutter. A sala se encheu de pessoas.Todosqueriamouvirograndemestre.

Koellreutter fez uma conferência muito breve quearrebatou a todos. Genial, como sempre. Falou sobre aimportância da subversão.

No final, um homem que aparentava ter cerca desessenta anos de idade, no fundo da sala, levantou para fazer

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umapergunta.Na verdade, aquilo nãoeraumapergunta,masumlongoecansativomonólogo.Comgrandepompaepretensão,aquelapessoapassouafazerafirmaçõesabsurdas,comosefossemasmaisgeniaisdescobertasdesempre,quepoderiamser resumidasnuma ideia central:paraele todaa arte e toda a música nada mais eram que imitação daNatureza e, portanto,manifestaçõesdegeneradas. «A teia de uma aranha assim como uma colmeia de abelhas são perfeitasobrasdearte,muitomaisperfeitasdoquequalquerobra humana. Ora, o ser humano deveria, simplesmente, abandonaraarte.Aarte,qualquerqueseja,éumagrandebobagemeumaalienaçãofaceàNatureza»–defendia.

Não houve resposta, pois não se tratava de umapergunta.Koellreuttersemanteveemsilêncio,comumsorrisoneutro, e o anfitrião da mesa, muito diplomaticamente,perguntou se haveria alguém na sala que pretendia fazercomentáriossobreaquelasafirmações.

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Oqueaquelapessoatinhadito–e,principalmente,daformaqueotinhafeito,emtomdeescárnioeironia–colocavaKoellreutter numa posição relativamente embaraçosa.Comofizera,eledavaaentenderclaramenteumaveementenegaçãoaovalordetudooqueomestreAlemãofizeraaolongo da vida, como se fosse arte degenerada, pois não era algo do povo–fazendolembrarosataquesnazisàartedoseutempo,masagoracomoutrorevestimento ideológico.Tinha sido um gesto muito mal educado e grosseiro.

Koellreutter não podia dar início a uma defesa dassuas ideias, pois estaria falando de si mesmo e seguramente desencadearia uma discussão sem fim. Que teria sido,seguramente,aintençãodaquelapessoa.

Mas,ninguémreagia!Aspessoasestavamsimplesmenteparalisadas. O homem sorria como um rei cheio de orgulho de si mesmo.

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A sala foi tomada por um silêncio profundamenteconstrangedor.Osalunosseentreolhavam.NinguémtinhacoragemparadefenderKoellreutter.Eravergonhoso!

Por que as pessoas não têm coragem de defenderaquiloqueacreditam?Mas,seráqueacreditavamrealmente?Comopodiamdeixardedefenderummestreque,minutosantes, tinham aplaudido entusiasticamente por motivosdiametralmente opostos?

Alguémtinhadefazeralgo,tomaralgumaatitude.

Levantei e fiz breves referências a São Tomás deAquinoeaAristóteles,àsquestõesdaimitaçãodaNaturezacomo conteúdo e como processo, no seu modus operandi. Concluí simplesmente que se o corpus da imitação não fosseindependente,naquiloaquechamamosdelinguagemoudecultura,oqueestávamosfazendoali?Ouseja,nadapoderia ser a coisa em si e tudo era, no final das contas,

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metalinguagem!Reforcei o absurdoda sua tese – pois noseuconteúdoelacontradizia,pelasuaexistênciaenquantolinguagem,ousodassuasprópriaspalavras.

O homem, muito mais velho do que eu, fez ummordaze irónicoelogioaoqueeutinhaacabadodedizer,acrescentando uma afirmação bastante piegas sobre a“energia da juventude”, “a irreverência dos jovens”, “ficofelizaovero ímpetodos jovens”,oualgodogénero.E foiimediatamentedadacomoencerradaaconferência.

Quando saímos de lá, Koellreutter disse, não semalgumaironia:

- Meu amigo, você está queimado. Você acabou deganhar um poderoso inimigo.

SoubequeaquelehomemeraumpersonagemmuitoimportantenacenaculturaldeCuritiba.Fossequemfosse,eu não podia deixar de intervir. As suas palavras tinham

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montadoumcenáriotãoridículoeabsurdocomodebaixonível. As afirmações daquele homem, que então era umaimportantefiguradomundoacadémico,eramsimplesmenteridículas.

- Mas, de facto, ele não estava fazendo aquelasafirmações. Você não percebeu. Ele estava apenasprovocando. Aquilo não tinha qualquer valor. Nemmesmo para ele. Era apenas uma bobagem. Para ele tudo estava acontecendo nas segundas e terceiras intenções.Assim,osilêncioteriasidomelhor.

Haviaumdadoquesetornavadefinitivamenteclaroparamim:eunãotinha,nuncativeenuncateriasegundasouterceirasintenções.Cadaumadasminhasacções,aolongode toda a vida, foi apenas ela mesma, e de forma aberta e clara, para todos.

Mas,aindaassim,Koellreutterestavacerto.Osilêncioteriasidoamelhoratitude.Nadadaquilotinhaimportância

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eeutinhautilizadootempodetodoscomumareflexãosemimportância, respondendo a uma tola provocação.

Eueramuitonovoeaquelemomentomefezpensaroquantoseriadifícilconvivercomumambienteacadémicoatempointegral.Porqueaspessoasagiamdaquelaforma?

- Paravocê,tudoéconhecimento,música,arquitectura.Parapessoascomoele,tudoépolítica;apenasdepoissurge o amor ao conhecimento. O conhecimento está lá, mas muitas vezes como conteúdo. Não é comoumverdadeiroartistaqueéemsimesmoaobradearte,masalguémqueimita.Apesardetersidoumaprovocação barata e de não ter qualquer valor, nofundo ele estava sendo sincero. Ele foi coerente com aquiloqueeleé.Elenãoconheceoutraformadeser.Evocêdeveriasepreservarmelhor.

Tudo para Koellreutter era motivo para reflexão edescoberta.

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Naquelemesmoano,semanasdepoisdocursoedasexposições em Curitiba, ele me convidou para fazer umcursoemPetrópolissobreactualizaçãoeintensificaçãoemcontrapontodos séculosXVIeXVIII, harmonia funcional eanálise musical sobre Josqin des Près, Johann SebastianBach, Ludwig van Beethoven e Franz Schubert.

Era um curso intensivo restrito a seis alunos.

Inicialmente, eu deveria seguir para o Rio de Janeiro, ondeficariamorandodurantealgunsdiascomKoellreutter,no seu apartamento no bairro das Laranjeiras, estudandointensivamente sob sua orientação. Depois, seguiríamos

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juntos para Petrópolis onde encontraríamos os outrosalunos.

Aprimeiracoisaqueelefez,assimqueentreinoseuapartamento,foimelevarparaacozinha.Abriuofrigoríficoedisse:

-Agoraestaéasuacasa.Vocêpodepegaroquequisereusaroquequiser.

Aqueles dias morando com Koellreutter não eramapenas dedicados a estudar intensivamente composição, mas também a música do norte da Índia, a música Japonesa do teatro NoeosprincípiosdaestéticaZen.

KoellreuttertinhavividodurantequatroanosnaÍndia,onde fundouaEscoladeMúsicadeNovaDeliem1966;eseis anos no Japão, onde conheceu grandes personagens da música tradicional Japonesa.

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AqueleapartamentodoKoellreutternoRiodeJaneironão era muito grande. Havia uma confortável sala de estar, uma varanda, três quartos e uma cozinha relativamentepequena.

Da varanda, via-se magnificamente o Corcovado, eissonãotinhapreçoparaKoellreutter.

O belo piano de meia cauda Yamahanasalatinhasidooferecido pelos habitantes do bairro onde foram morar e por pais de alunos, no Japão.

- Foi uma grande surpresa para nós. Assim queMargarita e eu chegamos a Tóquio, recebemos, nodiaseguinte,pelamanhã,umpresente:umpianodecauda!Eraumaformadaspessoasagradecerempelanossa presença. Foi um presente da comunidade. Esseespíritogenerosonoscomoveuprofundamente.Comopoderíamosdeixardenosdedicaraindamaisintensivamente de corpo e alma ao nosso trabalho ali?

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Eleexplicouqueopianotinhasidoadquiridoporváriaspessoas,comoumamanifestaçãocolectivadeboasvindas– e esse gesto nunca seria esquecido, ao longode toda avida.

- Por vezes eram pais de futuros alunos. Outras vezes, apenas pessoas comuns, que nem filhos tinham.Mas,acreditavamquenósestaríamoslevandoalgumconhecimentoparaolugareque,portanto,seriaalgoimportante para todos.

Na sala também havia uma televisão, não muitogrande. Tudo era bastante austero. Simples. Margarita estavaviajando.Àfrentedatelevisão,nofundodasaladeestar, como se uma pequena sala contígua se formasse,havia uma chaise long de desenho moderno, linhas rectas, cor laranja forte, como se fosse feito numúnico bloco deespuma.Asuaaparêncianãodavaideiadeconforto.Mas,surpreendentemente, era extremamente agradável estarnela.

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Próximo da chaise long,ao lado dela, estavam as cítaras que ele eMargarita tinham trazido da Índia e quetanto amavam.

Dooutrolado,próximodaportaqueseabriaparaacozinha, havia um toca-discos e uma colecção com fabulosas gravações,muitoraras–taiscomooslegendárioscitaristasindianos Ustad Vilayat Khan e Nikhil Banerjee, amigos deKoellreutter, sobrequematéentãoeununcatinhaouvidofalar;oscantoresderagasUstadHafeezAhmedKhaneNeelaBhagwat; o genial flautista indiano Hariprasad Chaurasia;gravaçõesdo grupodepercussãoOndekoza, do Japão; ou rarasgravaçõesdocompositorJaponêsMakiIshii,tambémamigodeKoellreutter.

Naquelesdias,elemepediuparafazercópiasdoslivrossobre música Indiana – livros há muito esgotados. Entre eles havia The Ragas of North IndiadeWalterKaufmann,efiqueiestudando a música do norte da Índia sob sua orientação.

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Semanas antes, nas aulas de composição mas também, de formamais ligeira, nas de estética, tínhamos dedicadoum bom tempo à compreensão do alap,daarticulaçãodecélulas rítmicas flutuantes intercambiáveis, das séries quecaracterizam cada raga, e de diversos aspectos da música indiana.

Aqueles dias de intenso estudo em sua casa no Riode Janeiro funcionaram como um verdadeiro e profundo mergulho naquele universo, repleto de audições. Eulevantava cedo e logo começava a estudar, parando apenas comoiníciodanoite.Eunemchegavaasairàrua.

EstudávamostambémaestéticaZen–quenestecasoeraodesenvolvimentodecomplexasestruturasfundadasnoprincípiodoten, chi, jin – céu, terra, homem. Tudo acontecia comooestabelecimentode jogos, onde relações triádicasvisavam desencadear outras, num processo semelhante ao universo fractal.

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Eufazialongosexercíciosdeanálisedaquelasrelaçõesem estruturas complexas. Nesses exercícios, tudo erapercepção e análise.

Eram relações tambémpresentes nos ikebanas, nos hai-ku e nos tankas–formapoéticatradicionalJaponesatãocaraaoKoellreutter.Mastambém,eramestruturaspresentesna antigamúsica e na arquitectura tradicional do Japão –que,naquelaépoca,euestudavacomosmeusmestresdearquitecturaedeurbanismoEduardoCoronaecomEduardoKneese de Mello.

SegundoesseprincípioestéticoZen, todas as coisasse transformam imediatamente em mantras e em yantras, tudosendoobjectodepermanentemeditação.

-TodaaestéticaZenébaseadanaquebradesimetria,porque apenas com a quebra da simetria temos aconsciência.–diziaele.

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Mais tarde eu viria a realizar que o Zen nadamaisé que a consciência e, por isso, paradoxalmente, não temexplicaçãopossível.Essaéanaturezadoskoans.

Aquilo a que chamamos de consciência é como o presente, ainda livre do trabalho da razão, da explicação,masincorporadonele,sendopurarelaçãodequalidade.

- Tradicionalmente, o Ocidente aspira a simetria; e o Oriente a assimetria. Mas, no século XX, a evolução da ciênciatemimplicadoumatransformaçãonaestética.Vivemos esse paradoxo entre ocidente e oriente, oparadoxo integrante. – ele defendia a sua tese.

Muitas vezes, Koellreutter saíapelamanhãparadaraulas, e voltava apenas no meio da tarde.

Para além dos estudos, ele me autorizou a copiar várias partituras anotadas para flauta transversal, que tambémestavam esgotadas, assim como algumas daquelas rarasgravaçõesquetinhaemcasa.

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A sua casa era como um templo para mim.

Ele me ofereceu cópias das partituras de duascomposições suas para flauta transversal solo. Eram umaImprovisação e um Estudo publicados em Manaus, no Amazonas, datados respectivamente dos dias vinte e seise vinte e sete de julho de 1938, certamente as suas duasprimeirascomposiçõesemsolobrasileiro.

Koellreutter,Improviso,

1938

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Numdaquelesdias,numatardeemqueelevoltoumaiscedo, sem esconder um certo amargor, ele me mostrou uma partitura do compositor nacionalista Camargo Guarnieri,comumabeladedicatória a ele. Em seguida,mostrou-meamesmapartitura comuma tarjanegra impressa sobre adedicatória.

- OGuarnieriqueriaqueeuficassemembrodoPartidoComunista.Mas,eunãopossopertenceraqualquerpartido! Ele nunca conseguiu compreender isso.Quandoeulhedissequenãopoderiaaceitaroconvite,ficourevoltado.Começouumaguerraaberta.Começouadizerqueeuerafascista!Insinuouoabsurdoqueeuteriasidocolaboracionistadosnazis!Tentoudestruiraminhavida.Retirouadedicatória.Mandouimprimiratarjanegra.Oueufaziaoqueelequeria,ouestariacondenado.Agoravocêvêcomosãoaspessoas.Eutenteiexplicar,váriasvezes,masofactodenãopoderentrarnoPartidoComunistafezcomqueelepassasseameconsideraruminimigoparaorestodavida!Antes,

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nós éramos grandes amigos. Ele não compreendiaqueamúsicaéalgosuperioràsdivisõespartidárias.Quando lidamos com música, lidamos com liberdade.

Os almoços no seu apartamento – quando eleaparecia para almoçar – eram sempre muito simples. Havia umasenhoranegra,jácomalgumaidade,muitosimpáticaeextremamenteatenciosaquetrabalhavanacasa,cuidandoda limpeza e da cozinha.

Eujáeravegetarianonaquelaépocaeaquelasenhorasempre preparava algo especial. Ela ria muito pelo facto de eu não comer carne, frituras, açúcar branco ou refrigerantes. Eraumapessoamuitodoceeatenciosaquetrabalhavadesdehá muito tempo para ele e Margarita.

Koellreutter e eu falávamos relativamente pouco.Quando não era algo relacionado às aulas de composição, àmúsicaindiana,àfilosofiaouàflautatransversal,muitas

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vezesficávamosemsilêncio.

Aindaassim,tínhamossempretempoparaconversarsobrepolítica.

Eeleapreciavaosilêncio.

Nos finais de tarde, com amaravilhosa vista para oCorcovado,aproveitávamoso tempoparaumaperitivo.E,tal como acontecia na sua casa de São Paulo, havia sempre umagarrafadewhiskye salgadosnageladeira.NoRiodeJaneiro, para além do whisky também havia regularmente Campari e Martini seco.

- Músicanãoéalgoqueseexplique.SevocêcompreendeamúsicadeBach,porexemplo,serácapazdeatocar.Mas,sevocênãocompreenderamúsica,poderálermuitobemapartituraquequiserenadafuncionará.Poderá ler a partitura correcta e rapidamente, masnão haverá realmente música. A música está para

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além daquilo que está escrito. O fundamental écompreenderqueamúsicapodeacontecerenquantomelodia,ritmo,harmoniaouapenascomoruído,comonuvens de sons, como qualquer coisa. Emqualquersompodeexistirmúsica.Mas,nemtodosomémúsica.A música está nas pessoas e é organização.

Aparentemente,comaquelaafirmaçãofeitanumabelatardedeverãocarioca,elecontrariavaJohnCage.Mas,naverdade, eles falavam a mesma coisa – tal como eu também ouviriadeOrnetteColemanmuitosanosmaistarde.

Quando John Cage dizia que tudo poderia sermúsica,queumruídosetornavamúsicanomomentoquetivéssemosconsciênciadele,eraexactamenteoquedefendiaKoellreutter.

Mas, aquilo que aparentemente era restritivamentesubjectivo para John Cage, para Koellreutter podia ser

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operado objectivamente – e era o que testemunhávamoscomaperformancedeumgrandeintérprete,porexemplo,emqualquertipodemúsica.

Foi numdaqueles dias que eleme contou, em tommuitoemocionadoeconfidencial,sobreasuatrágicafugada Alemanha.

Koellreutter tinha sido aluno de Kurt Thomas, emcomposição e regência, e do legendário e genial regenteHermann Sherchen.

Nasceuem1915,emFreiburg,umapequenacidadeAlemãlocalizadanaFlorestaNegra,apoucosquilómetrosdafronteiracomaSuíçaedacidadedeBasileia.

Em 1987, visitei Freiburg, indo de Basileia e foi arrepiante cruzar a fronteira através da mesma linha de combóiosqueelefugiracercadequarentaanosantes.

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Koellreutter era um jovem e promissor flautista,formadoemGenebra,Suíça.TinhaestudadocomofabulosoMarcelMoyse–que,comPaulTaffanel,éconsideradoumdospaisdaescolaFrancesadeflautatransversal.MarcelMoysetinhasidoalunodePaulTaffaneledePhilippeGaubert.

Estudando com Moyse, Koellreutter foi colega deJean-Pierre Rampal, sete anos mais novo. Estudou, ainda, na Academia Superior de Música de Berlim – de onde acabaria porserexpulsoporserecusarintegrarumgrupodajuventudenazi.

Freiburg (wikipedia)

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A vida de um flautista nunca foi fácil. Ele viajavaconstantemente pela Europa para dar concertos associado a diversos músicos, como o compositor Darius Milhaud. Foi numadessasocasiõesqueacabouporficarhospedadonacasa de Pablo Picasso.

Estudou, em cursos de verão, com Paul Hindemith, de quemguardouasmaisfortesimpressões.

- PaulHindemitheragenial,mesmoquetenhamostidocaminhos diferentes. Ele tocava maravilhosamente bemtodosos instrumentos.Nuncavialguémassim.Era um verdadeiro génio. Um virtuoso em todos osinstrumentos! Mesmo a flauta transversal, quandoa tocava, era perfeito. Era um homem que vivia amúsica. Dedicava-se integralmente à música mas não deixou um único seguidor! Entretanto, deixoumuitos professores. Era uma pessoa generosa, mas extremamente exigente. Nós o cercávamos e o

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reverenciávamoscomoograndemestrequeeleera.Iam pessoas de todos os lugares para os seus cursos. Erasempreumaformidávelexperiência.

Entre 1934 e 1936 foi para Berlim estudar na Staatliche Akademische Hochschule für Musik. Lá, foi aluno de Kurt Thomas,emcomposiçãoeregência;GustavScheck,emflautatransversal–umdospioneirosnaescolaFrancesa;CarlAldolfMartiessen,empiano–quefoiprofessordegrandespianistasemaestros,comoSergiuCelibidache;GeorgShuenemanneolegendáriomusicologistaMaxSeiffert,entreoutros.

Nessaépoca,comapenasvinteanosdeidade,criouo Círculo de Trabalho para a Música Nova – Arbeitskreis für Neue Musik–queeraumgrupoantinazi.Tevedefugir.

Foi viver durante algum tempo com Hermann Scherchen,seugrandemestre,emNeuchatel,naSuíça.

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Muitas vezes, antes da Segunda Guerra Mundial,mestres convidavam alunos para viver durante algum tempo nas suas casas. Assim, poderiam dar uma formação intensiva. Nofinaldavida,Koellreutterdizia,numaentrevistaaCarlosAdriano e Bernardo Vorobow, em São Paulo: «...HermannScherchenfoi,semdúvida,apessoaquemaismeinfluenciou,tambémcomocarácter,naformadetrabalhar,deintensificaras coisas. Ele abriu realmente tudo, ensinou-me a evitar preconceitos,aestarabertoparatodasastendências».

Hermann SchercheninMaxenceCaron

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Em 2009, quando eu executava o meu concertoMicrocosmos–emmemóriadomeuqueridoamigoDanielCharles–noteatrodoMuseuMarcChagallemNice,França,conheciagrandecompositoraeartistavisualTonaScherchen,filha do professor do Koellreutter. Ficamos imediatamenteamigose,atravésdela,eupudesentiraindacommaisenergiao brilho do grande mestre Alemão.

Numcertosentido,aminhapresençaali,nasuacasa,vivendoaquelesdiascomele,eraoqueHermannScherchentinhafeitocomelequasecinquentaanosantes.Umatradiçãoquedesapareceriacomaguerra.

Em 1937, de volta a Freiburg, Koellreutter ficouapaixonado por uma moça judia. Naquela época, naAlemanha, praticamente não existiam famílias que nãoestivessem,deumaoudeoutraforma,ligadasaonazismo.EafamíliadeKoellreutternãoeraexceção.

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Ele foicontandotudooquepassousemesconderagrande emoção. Estávamos sentados na varanda, com o belo pordesoleoCorcovadoaofundo.

Amãetinhamorridoem1918,comagripeespanhola.O pai, médico otorrinolaringologista, casara novamente.

Assimqueopaieamadrastasouberam,proibiramonamorocomamoçajudia.

- Noinício,tratamosdenosencontrarescondidos.Mas,logo fomos descobertos. Aquilo era um lugarmuitopequeno.Todosseconheciam.Osmeuspaisestavammuito envolvidos com o nazismo, principalmente a minhamadrasta.EutinhaumtioqueeradaGestapo.Eleeradapolícia,mastambémdaGestapo.Umdia,mechamoulá.Elejátinhameadvertidomuitasvezes.Eusabiaqueasituaçãoestavacadavezmaisperigosa.Então, ele me perguntou se eu ainda continuavanamorandocomamoçajudia.Dissequesim.Eramuito

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grave.Eleme falou:«Você sabiaqueos seuspaisodenunciaram?Agora,eunãotenhooutraalternativasenão o prender. Você sabe o que isso significa.Agora,váembora.Nãodigaaninguém.Amanhãpelamanhãovamosprender».Euseria levadoparaumaprisão e depois seria transferido para um campo de concentração.Comaqueleavisoelenosdeuumachanceparafugir.Fizemosimediatamenteasmalase,naquelamesma noite, eu fugi de combóio para Basileia, naSuíça,ondeelaviviaetinhaparentes.DecidimoscasarevirparaoBrasil.Conseguicartasderecomendaçãodo Paul Hindemith e do Hermann Sherchen. Levou um tempoimensoparairmosdaSuíçaaoBrasil.Primeiro,tivemosdeirparaaInglaterra.Eutinhaapenasvinteedoisanosde idade.Éramosmuitonovos.Quando,meses mais tarde, descemos do navio, no Rio de Janeiro,eunãotinhaumtostão.Absolutamentenada.Tinha apenas as cartas de recomendação que eramdestinadas a Villa-Lobos. Entramos num táxi e nem

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Portuguêseusabiafalar.Aúnicacoisaqueeupodiafazer era mostrar ao motorista o envelope com o nomedoHeitorVilla-Lobos.Naquelaépoca,omundoera totalmente diferente. Bastava mostrar um nome e omotoristasabiaoquefazer.Levou-nosdirectamenteà casadeVilla Lobos. Eraumaenormemansão. Elecertamentesabiaqueiríamoschegar,masnãopodiasaberoexactomomento.Nãohaviacomunicação.Opessoaldasuacasa,osempregados,pagaramotáxienósficamosali,esperando.Esperamosumdiainteiro.Todoserammuitogentis.Villa-Loboschegounofinalda tarde, leua cartaemsilêncio. Elenosajudounocomeço. Mas, eu nunca mais tive muito contactopessoal com ele.

Koellreutterteráfugidonaquelanoite,deFreiburg.TeráseguidoimediatamenteparaBasileiaedeláparaGenebra,onde terá sido recebido por Hermann Scherchen. Depois disso, ter á seguido para Berlim, para obter o passaporte.

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Lá,foioficialmenteinformadodequeestavasendoacusado,pelaprópriafamília,de“crimededesonraracial”.

Koellreuttertinhalágrimasnosolhos.

Não é fácil uma pessoa contar livremente que foiobrigada a fugir pelo facto dos próprios pais o teremcondenado à morte num campo de concentração.

HaviaboatosdequeKoellreutterjamaisteriarecebidoreparaçõesdeguerraàAlemanha.Nósnuncaconversamossobre isso. Eununcaperguntei, porque sempre considereiserumassuntoextremamenteíntimo.

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A chegada ao Rio de Janeiro, no dia dezasseis de Novembrode1937,umaTerça-Feira–fugindoaoshorroresque emergiam rapidamente na Europa com Hitler –representouumadramáticamudançanasuavida.

Mas, o Rio de Janeiro não vivia uma época muito calma. Naquelemesmomês,GetúlioVargastinhadadoogolpeeestabelecidooEstadoNovo.Poucosmesesantes,emJulho,aAlemanhanazienviavaumnovoembaixador,KarlRitter,quecausariatodootipodeconflitodiplomáticonatentativadeobterdoBrasilumformalalinhamentocomoeixo.

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EraaperseguiçãoaLuizCarlosPrestes,aCamposdaPaz e a todososmembrosdoPartidoComunista. Emborao governo de Getúlio Vargas tenha resistido a assumirum alinhamento formal com a Alemanha nazi, havia uma declarada simpatia com o governo Alemão, claramentevisívelnotextodanovaconstituiçãodedezdeNovembrode1937,umasemanaantesdachegadadeKoellreutter.

Comosefosseumparadoxo,oBrasil–eemespecialo Rio de Janeiro – vivia já umamudança tecnológica: em1927,emtodooBrasil,tinhamhavidoapenasseiscentosequarentaetrêsviajantesdetransportesaéreos.Essenúmerosaltou rapidamente para mais de trinta e cinco mil pessoas em1937!

QuandochegouaoBrasil,KoellreutternãoeracapazdeleroufalarPortuguês.Todaaconvulsãosociallhepassavapraticamente invisível. Apesar do climapolítico, nãohaviaviolêncianasruas.

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- Osprimeirostempos?Meuamigo,eutinhachegadoaoparaíso!ORiodeJaneiroerao lugarmaisbonitoque já tinha visto. Era algo que ninguém podiaimaginar. Você não faz ideia. Havia relativamentepoucaspessoasnacidade.ANaturezaestavaemtodoolugar.Invadiatudo.Tudoeraexuberantementebelo.Tudoeratãobeloqueeupraticamentenãoconseguitrabalharduranteumano!Duranteoprimeiroanoeufiqueitotalmentehipnotizadocomtantabeleza.

Rio de Janeiro, 1938

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Koellreutter escapara ao terror da Noite de Cristal, queaconteceuexactamenteumanodepois,emnovembrode 1938, e aos mais pesados e sanguinários horrores do nazismo.

Fred Jordan, outro querido amigo, artista gráfico,seguramente um dos maiores especialistas em cor, em todo omundo,eradozeanosmaisnovoqueKoellreutter,echegouao Brasil um ano antes dele, em 1936, aos nove anos de idade–tambémelefugindodoshorroresquealgunspoucosjáeramcapazesdeprever.

OpaidoFredJordan,quetinhasidooprimeiroviolinistadaOrquestraSinfónicadeBerlim,foiexpulsodaorquestraeproibidodetrabalharporserjudeu,atravésdeumaordemexpressa e pessoal assinada por Richard Strauss no seupassaporte.RichardStraussoconheciamuitobem!Tinhamtrabalhado juntosduranteanoseaatitudedocompositornunca seria compreendida ou aceita pelo pai e até mesmo

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pelopróprioartistagráfico.

Fred Jordan morreu em 2001, na cidade de São Paulo. Muitas vezes, durante os nossos encontros durante as décadasde1980e1990,elecomentavasobreofascínioqueafiguradeKoellreutterexerciaemtodos,mesmonaquelesseus primeiros tempos de criança. «Era algo mágico. Eu era muito novo. Mais tarde, cheguei a conhecer pessoalmente Koellreutter.Eutinhaunsdezoitoanosdeidade.Elenuncapoderia se lembrar.Ele foi sempreumafigura importante.Mas,tambémhaviamuitapolémicapolíticaemtornodasuafigura».

Realmente, Koellreutter não se lembrava do Fred–maso conheciapornome,pelos seus trabalhos, eficouencantadoaosaberquetinhamestado juntostantosanosantes.

Um ano depois da sua chegada ao Rio de Janeiro,

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em 1938, Koellreutter começou finalmente a leccionar doConservatórioNacionaldeMúsica.

Algunsanosmaistarde,jánadécadade1940,juntoaVilla-Lobos,ajudouaformaraOrquestraSinfónicaBrasileira,ondeeraoprimeiroflautista.

Em 1939, a partir de encontros com músicos eintelectuaisnalojademúsicaPinguim, na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, ele criaria o movimento Música Viva,apartirdeumconceitocunhadopeloseuantigomestre,HermannSherchen, em 1933.

Música Viva significava, essencialmente, músicaenquanto função social. Três anos mais tarde, em 1942,juntocomFranciscoCurtLange,KoellreuttercriariaarevistaMúsica Viva, e apenas em 1944, lançaria o primeiro manifesto Música Viva, não por acaso no dia primeiro de Maio.

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Numanoite,nasuacasanasLaranjeiras,elecomentousobreessemovimento:

− Até hoje há pessoas que me perguntam se MúsicaVivaé algo sobreamúsica contemporânea, sobreachamadaMúsicaNova.Nãoé.OmovimentoMúsicaVivaerasobretudooquenãoconhecemos,tudooqueénovoparacadaumdenós.EsseeraopensamentodoHermann Scherchen. Pode ser uma música medieval, indiana, uma peça de Bach ou de John Cage, nãoimporta.Nósnãodevemosterpreconceitos.Oqueénovo pode estar em todo o lugar.

Nessemanifesto,Koellreutterescreveriaquea«músicadeve ser expressãodo seu tempo, deumnovo estadodeinteligência»,atravésde«ummundonovo,crendonaforçacriadoradoespíritohumanoenaartedofuturo».

O movimento Música Viva,quecontoucomHeitorVilla-Loboscomopresidentehonorário,representouadefinitiva

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integraçãodosprincípiosdoatonalismo, do dodecafonismo e do serialismo integral na cultura brasileira.

Claudio Santoro, que também foi seu aluno, tevealgumas composições dodecafónicas antes de conhecer Koellreutter, mas o velho mestre tinha uma opinião bemprecisasobreoqueacontecianoBrasilemrelaçãoàstécnicasdesenvolvidaspelaSegundaEscoladeViena.

- Havia alguns esforços, algumas tentativas.Mas, nãosecompreendiabemoverdadeiroespíritodeArnoldSchoemberg,deAlbanBergedeAntonWebern.Aspessoas tinham ouvido falar em qualquer coisa...mas ainda não conheciam realmente a técnica, não compreendiam com clareza o conceito.

NomomentoemqueoBrasil se juntou aos aliadose declarou guerra contra a Alemanha, em Agosto de 1942, KoellreutterfoipresoemSãoPaulo, juntoamuitosoutrosAlemães, comosuspeitodeespionagem.Ficou trêsmeses

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preso, até que ficou provada a sua inocência. Dentro daprisão, onde havia de facto muitos nazis, ele era acusado de ser“ojudeucomunista”.

EraessefactoqueaindamarcavaamemóriadeFredJordan tantos anos mais tarde.

Em1948,viajouparaaEuropaeleccionounoInstituto Internacional de Música de Darmstad, na Alemanha, onde estudaram Luciano Berio, Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez entre muitos outros; e no Centro Internazionale di Musica Contemporanea di Milano, na Itália, onde teve Luigi Nonocomoseualuno.

KarlheinzStockhausentinhavinteanosdeidade.

Noanoseguinte,KoellreutterconheceriapessoalmenteJohnCage,emGenebra,naSuíça,noEncontro Internacional de Compositores Dodecafónicos, em 1949.

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O clima que se vivia no Rio de Janeiro mudouradicalmente após o final da Segunda Grande Guerra.Se antes um compositor como Heitor Villa-Lobos, entãoabertamente relacionadocomGetúlioVargas,pró-fascista,ditador e integralista,poderiaapoiarum jovemflautistaecompositordeesquerdaeatémesmoaceitarserpresidentede um movimento como o Música Viva, mais tarde essa flexibilidadeserevelariacadavezmaisimpossível.

Em1950,desgostosopelofactodeKoellreutterrecusarsetornarmembrodoPartidoComunista,CamargoGuarnierilançaria a sua fúria contra ele, acusando-o de perverter os jovens–famaqueoacompanhariaatéaofinaldavida.

Naquele ano, no dia sete de Novembro, Guarnierilançava a sua famosa Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil onde gritava,semmeiaspalavras:«Considerandoas minhas grandes responsabilidades, como compositor

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brasileiro, diante do meu povo e das novas gerações decriadores na arte musical, e profundamente preocupado com aorientaçãoactualdamúsicadosjovenscompositoresque,influenciadosporideiaserróneas,sefiliamaododecafonismo–correnteformalistaquelevaadegenerescênciadocarácternacional de nossa música – tomei a resolução de escrever esta carta-abertaaosmúsicosecríticosdoBrasil.(...)étempodeerguerumgritoparadeteranefastainfiltraçãoformalistaeanti-brasileira(...)Comomacacos,comoimitadoresvulgares,comocriaturassemprincípios,preferemimportarecopiarnocivasnovidadesestrangeiras, simulando,assim,quesão‘originais’,‘modernos’e‘avançados’eesquecemdeliberadaecriminosamentequetemostodoumAmazonasdemúsicafolclórica – expressão viva do nosso carácter nacional – àesperadequevenhamtambémestudá-loedivulgá-loparaengrandecimento da cultura brasileira (...) É preciso quesedigaaessesjovenscompositoresqueododecafonismo,em música, corresponde ao abstraccionismo na pintura; ao hermetismonaliteratura;aoexistencialismonafilosofia;e

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aocharlatanismonaciência».

OswalddeAndradeePatríciaGalvão,aPagu,ficaramfuriosos com Guarnieri. Koellreutter sugeriu um debatepúblico para o dia sete de dezembro. Camargo Guarnierisimplesmente não apareceu.

Nodiavinteeoitodedezembro,Koellreutterpublicariaa sua resposta, na forma de uma nova carta aberta: «...o dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendênciaestética,massimoempregodeumatécnicadecomposiçãocriada para a estruturação do atonalismo, linguagem musical em formação, lógica consequência de uma evolução e daconversão das mutações quantitativas do cromatismo emqualitativas,atravésdomodalismoedotonalismo.(...)Elanão é mais nem menos ‘formalista’, ‘cerebralista’, ‘anti-nacional’ou‘anti-popular’doquequalqueroutratécnicadecomposição baseada em contraponto e harmonia tradicionais. (...)AocontráriodoqueafirmaosenhorCamargoGuarnieri,

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o que me parece alarmante é a situação de estagnaçãomentalemqueviveamodorradoomeiomusicalbrasileiro,decujasinstituiçõesdeensino,comseuprogramaatrasadoeineficiente,nãotemsaídonestesúltimosanosnenhumvalorrepresentativo. (...)Onacionalismoexaltado e exasperadoquecondenacegamenteedemaneiraodiosaacontribuiçãoqueumgrupodejovenscompositoresprocuradaràculturamusical do país, conduz apenas ao exacerbamento daspaixõesqueoriginamforçasdisruptivaseseparamossereshumanos.Alutacontraessasforçasquerepresentamoatrasoe a reacção, a luta sincera e honesta em prol do progresso e dohumanonaarteéaúnicaatitudedignadeumartista».

Com um discurso fortemente ideológico, CamargoGuarnieri, cujo primeiro nome era Mozart, filho de umimigrante italiano, representava São Paulo que emergiarapidamente como um futuro centro de cultura no Brasil, contra o Rio de Janeiro, ainda bastante caracterizado pela predominância da cultura Francesa.

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OpaideGuarnieri,Italiano,erabarbeiroeflautista.Amãe,filhadeumatradicionalfamíliadacidadedeSãoPaulo,e tocava piano.

Dois anos antes, em 1948, Koellreutter adquirira anacionalidadeBrasileira–mascontinuavasendoconsideradoestrangeiro pelo músico de São Paulo.

Num certo sentido, era como se CamargoGuarnierirepresentasse os pobres de São Paulo contra a burguesia ricadoRiodeJaneiro.Nessetipodelutahásempremuitoespaçoparaaemergênciadesituaçõesinjustaseabsurdas.

- Foiterrível.Eraumaverdadeiraguerra.Havialugaresemqueeunãopodia ir.Tudoaquilofoimuitosério.Vocênempodeimaginar.Aspessoasnemimaginamhoje emdia o que foi tudo aquilo.Guarnieri queriaimpor uma ditadura. Para ele, quem não estivesselutandopeloPartidoComunistaeraautomaticamente

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uminimigo!Antes,éramosmuitoamigos.Certavezeufiqueidoenteeelefoiaúnicapessoaquemevisitouquasetodososdias.–Koellreuttercomentavaaquelesacontecimentos com um ar de profunda gravidade.

Mas,Koellreutternuncafoiumapessoaquesedeixasseintimidar.MenosdedoisanosdepoisdoviolentoataquedeCamargoGuarnieri, eleparticipariada fundaçãodaEscola Livre de Música,emSãoPaulo,ondefrequentouoarquitectoeurbanistaJorgeWilheim,queconheciaindanoiníciodosanos1980quandoelecolaboravanaelaboraçãodoprimeiroPlanoDirectorIntegradodacidadedeSãoPauloequemeureencontraria muitos anos mais tarde em Lisboa.

Em 1954, criou os Seminários Internacionais de Música em Salvador, que se tornariam na Escola de Música daUniversidadeFederaldeSalvador.Trêsanosmaistarde,eleconvidariaWalterSmetak–ogenialmúsicoSuíço,nascidoemZurique,radicadonoBrasil–paraserprofessoreinvestigador

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na Universidade em Salvador. Smetak desenvolveria umtrabalho que influenciou profundamentemuitos dosmaisnotáveis músicos Brasileiros.

Eramhistóriasjáantigas.Trintaanostinhampassado.Koellreuttertinhaoolharperdidoeemocionado,admirandoobeloCorcovado.

Fazia calor, e tudo era muito húmido, como sempre.

Em 1960, ele compôs Concretion 1960. A partir deentão,deixoudechamarassuascomposiçõesde“obras”epassouautilizaraexpressão“ensaios”–«Concretion 1960 é o meu primeiro ensaio de estruturação planimétrica»,escreveria anos mais tarde.

Em 1962, com quarenta e sete anos de idade,KoellreutterrecebeuumimportanteprémiopelaFundação Ford “por vinte e cinco anos de serviços prestados ao

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Brasil” –oque lhe valeumais críticas,por serumprémiode origemnorte americana.Mas, aquele prémio permitiuque ele vivesse um ano em Berlim. Lá, foi convidado aorganizaraprogramaçãointernacionaldoInstitutoGoethedeMunique.

Dois anos depois, em 1964, instalou-se o regime ditatorialmilitarnoBrasil–equemquerqueoconhecesserealmentesaberiacomoseriapraticamenteimpossívelparaelesobrevivernumpesadoclimadetotalitarismo,qualquerquefosseasuanatureza.Aliberdadeeraalgofundamentalnoseuespírito.

Assim, entre 1965 e 1969, tornou-se director do Instituto Goethe de Nova Deli, na Índia, onde conviveucomOctavioPaz–queera,então,embaixadordoMéxico.Tornaram-se grandes amigos.

Então, convidou Karlheinz Stockhausen a visitar,

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pela primeira vez, a Índia. Uma viagem que influenciariaprofundamente a sua carreira.

ConheceueconviveucomRaviShankar.

Muitosanosmaistarde,jánadécadade1990,encontreicomRaviShankaremLisboa.Disse-lhequeKoellreutterlhemandavacumprimentos.OmúsicoIndianoficouemocionadoaorecebernotíciasdoamigodetantosanos.

- Foiumaépocamuitoespecialparanós.RaviShankaré um santo na Índia. Mas, há outros. Há músicos fabulosos.Margarita e eu gostamosmuitodaquelestempos. Estudei canto e Margarita cítara. Tambémestudeiumpoucodecítara.

Imerso naminha jovem ingenuidade, perguntei porqueMargaritanãoestudaracanto,poiselaeraumamezzosopranomundialmentefamosa,eporqueele–reconhecidoflautista – não estudara as técnicas indianas para flauta

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transversal.- Ora Emanuel, isso seria impossível. As técnicas

de canto e de flauta na Índia são diametralmenteopostasàsdaEuropa!NaÍndiapraticamentenãoseusaodiafragma.Senósfizéssemosoquevocêsugereprovavelmente destruiríamos as nossas técnicas enuncaaprenderíamoscorrectamenteasdeles.

Da Índia,Koellreutter foi transferidoparaadirecçãodo Instituto Goethe de Tóquio, onde viveu até 1974. NoJapão, conheceu e conviveu com muitos compositores e intelectuais.

- Os Japoneses e os Alemães são os dois povos mais parecidos,entreosmuitosqueconheciao longodaminhavida.–KoellreuttertinhaumagrandeestimaeprofundaidentidadecomaformadeestarnoJapão,ainda que o seu irrequieto espírito questionador,mesmo quando jovem, fosse algo estranho para aculturajaponesa.

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Em1975,apóstrezeanosentreEuropa,ÍndiaeJapão,KoellreuttervoltoufinalmenteaoBrasil,paradirigiroInstitutoGoethedoRiodeJaneiro,até1980.

NosúltimosanosdoperíodoemquedirigiuoInstitutoGoethenoRiodeJaneiro,finaldadécadade1970,KoellreutterintensificougradualmenteasuapresençaemSãoPaulo–efoientãoquenosconhecemos.

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Koellreutter apreciava o silêncio como ninguém.Depoisdecontarhistóriasemaishistórias,gostavadeficarlongos momentos em silêncio, fumando o seu cachimbo,como se pudesse reviver, sonhando, todos os instantes da vida.Naquelesmomentos,quandoestavanum outro mundo, por vezes voltava à realidade com um muito olhar sério e diziaapenas:

- Pois é, meu amigo. Essa é a vida...

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Sozinhoounão,euficavaquasesempreestudandonoapartamentodasLaranjeiras.

Mas,umdiasaímosparaumalmoçomuitoespecial.Era um encontro com uma grande e animada turma de estudantes de música, seus alunos.

Fomosaumrestauranteàbeiradomar,creioquefoiemCopacabana,naAvenidaAtlântica.

Quando chegamos à frente do mar, ele parou meditativoporalgunsinstantesedisse:

-É...meuamigo...avidaécomoasondasdomar...tudo aparece e desaparece rapidamente.

Omeu pai dizia sempre isso. Desde quando eu eracriança, ele sempre repetia: «A vida é como as ondas domar...elasserepetem,massãosemprediferentes.Nóssomosapenasisso,comoaespumadomar,tudoépassageiro».

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Muitos anos mais tarde, o maestro José Antônio Pereira me faria recordar essa visão poética doKoellreutter:«Eleafirmavaqueéramoscomoondasnomar.Podíamosverquandoelas se formavame rapidamente sedesmanchavam».

Comosempre,aregranoalmoçoera:cadaumpagavaoseu.Tudomuitodescontraídoecolorido.Éramoscercadetrintapessoaseosestudantestinhamem tornodosvinteanosdeidade,umpoucomaisnovosdoqueeu.

Koellreuttereraoúnicomaisvelho,entãocomquasesetenta anos.

Elesentouàpontadalongamesa.Fiqueiaoseuladoesquerdo. Era meio dia e meia hora quando fizemos ospedidos.Meiahoradepoisasrefeiçõesnãotinhamchegado.Os minutos passavam lentamente e, apesar dos insistentes

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solicitações, àumaemeiada tardenadaaindatinha sidoservido para além de algumas bebidas.

O serviço, que era lamentavelmente péssimo, eracompensado pelas nossas animadas conversas, que nosfaziam perder a noção do tempo.

Mas, quando faltavam quinze minutos para astrês horas, nada tinha sido servido e o atendimento erapraticamenteinexistente.

Discretamente, Koellreutter perguntou o que eupensavaquedeveríamosfazer.Fuimuitosinceroedissequepensavaqueomelhor seria irmos todos embora, de umaúnicavez.Eleconcordou.Combinamosdeesperarmaisdezminutos,precisamente.Acertamostodososnossosrelógios.Amaiorpartedosalunospensavaqueeraumabrincadeira.

À excepção do Koellreutter, de mim e de mais uns

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poucos, ninguém pensava seriamente em sair sem pagar.

Exactamente dez minutos depois, sem termossido servidos, ou mesmo atendidos, levantamos todos repentinamenteecaminhamosrapidamenteparaarua.

Koellreutter e eu fomos à frente em passos muitorápidos. Mal viramos a primeira esquina, o gerente dorestaurante apareceu correndo, desesperado.

Ohomemqueriaquevoltássemos.Chegouaameaçar.Calmamente,Koellreuttersugeriuchamarapolícia.Quandoouviu a palavra polícia, gerente do restaurante ficouimediatamentecalmoesugeriuumasolução.Concordamosem pagar apenas pelas bebidas consumidas e fomos embora.

Os estudantes ficaram encantados com a energia,frontalidadeeespíritodedecisãodoKoellreutter.Naquele

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momento,todostínhamosamesmaidade.

Eu voltei para o apartamento nas Laranjeiras econtinueiaestudar.

Depois do jantar, assistíamos sempre as notícias natelevisão–creioqueeramosúnicosmomentosqueoviaassistir televisão. A cada notícia sobre guerra, violência,roubo ou crime – e era praticamente apenas isso que osjornaismostravam–eledavaumpequenosalto,umpequenoriso de incompreensão, como se falasse consigo mesmo e dissesse:«estúpidos!».

Paraele,numcertosentido,eraincompreensívelqueummundotãobelo,comumanaturezatãoexuberante,tãogenerosa,comtantamúsica,arteeciência,pudessesertãodramaticamente desenhado pelos conflitos humanos. Era,realmente, uma estupidez.

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Praticamentenãoconversávamosnessesmomentos.Apósojornal,eleadoravaverumanovela.

− Esseéoretratofieldopaís.Écomoumacarta,nãopodeenganar.Sevocêquerrealmenteconhecero Brasil, preste atenção nas novelas.

Depois, a televisão era desligada e líamos cadaum o seu livro. Ele era sempremuito gentil e perguntavaatenciosamenteseeugostariadeassistiralgoemespecial,mesmosabendoqueeupreferialer.Insistiasempredizendoqueeupoderiafazeroquequisessenasuacasa–queeraaminha casa.

Lápelasdezhorasdanoiteeleseretiravaparadormir.Eu continuava lendo – pois não seria educado ir para oquartodehóspedesàmesmahora.Haviaapenasumacasadebanhono apartamento, e eunãoqueria correr o riscodeoincomodar,deoestarutilizandonomomentoemqueKoellreutterodesejasseusar.

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Assim,esperavaatéteracertezadequeeletinhaseretiradodefinitivamenteparaoseuquarto.Somentequandoelefechavaaportaeuseguiaparaoquartodoshóspedes.

E eu tratava de fazer tudo muito silenciosamente.

Koellreutteracordavapelassetehorasdamanhã.Emtornodasseisemeiaeujáestavadesperto.Ficavanacama,quieto,esperandoqueelelevantasse,fosseàcasadebanhoeseretirasseparaasala.

Quando ele saía para a sala, somente então eulevantava,rápidaesilenciosamente,arrumavatodooquarto,seguia na ponta dos pés para a casa de banho, tomava um bom banho e depois, arrumava tudo, cuidadosamente.

Nomomentoemquenosencontrávamosnasala,erapraticamente impossível alguém perceber que eu tinha lá

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dormidooumesmousadoacasadebanho.Eudeixavatudoexactamentecomoencontrara.

Era um ritual formal, todos os dias.

Noúltimodia,quandopartíamosparaPetrópolis,nocafédamanhã,elesevoltouedisse:

- Emanuel, você é o Ocidental mais Japonês que jáconheciemtodaaminhavida!

AviagemparaPetrópolisfoitranquila.

Quandochegamos,fiqueicompletamentemaravilhadocom o lugar. Era uma belíssima casa, em certo sentidosemelhante a uma casa japonesa, implantada nomeio deuma formidável floresta tropical com altíssimas árvoresmilenares,troncosinacreditavelmentebeloseumpequenolago.

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Eratantabeleza,queeunemsabiaoquedizerquandoláchegamos.Aentradaeraumapequenaediscretaestradaem terra.

Em alguns momentos mais parecia estarmos num mágicocenário,daquelesqueencantaramAlbertEckhout,JohannMoritzRugendasouJeanBaptisteDebret.

Aalturaemajestadedasárvores lembravamantigasgravurassobreasflorestasBrasileiras.

ApropriedadeeradeumFrancês.Sujeitoarrogante,fechadoeagressivo.Arrendavaaquelelugarparamilionáriosou, especialmente a um preço melhor, para Koellreutter– pois, num certo sentido, fazia a história do lugar eajudavaavalorizarapropriedade.Tudoparaelepareciaserdeclaradamente baseado em algum interesse pessoal.

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O arrendamento temporário daquele maravilhosolugar era dividido por todos os alunos, em partes iguais, de formaqueaténemficavamuitocaro.

Johann Moritz Rugendas, séc. XIX

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MasoFrancêstinhaumtemperamentoterrivelmentedifícil. Tratava a todos, e nósnãoéramosexcepção, comoignorantes, incivilizados.

Ele pareceu ficar menos histérico somente quando,para a sua surpresa, comecei a falar emFrancês comele.Foi como se falar Francês fosse um passaporte para acivilização!

Nós, os alunos, dormíamos numa pequena casa,dezenasdemetros,abaixo,pertodoportãodeentrada.Erauma construçãomuito simples, com vários quartos.Deviaserumaantigaedículaparaacriadagem.

Koellreuttertinhaparasiumabelacottage,próximadolago.EraumapequenacasaquemaispareciaalgoextraídodealgumcontodosirmãosGrimm.

Todos os dias devíamos estar pontualmente às sete

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horasdamanhãparaocafé,queeraservidonumapequenasala ao lado da cozinha, na casa grande.

OsdiaserampassadosemaulasparticulareseintensivascomKoellreutter,emespecialanalisandodetalhadamenteaSinfonia número 8 em Si Menor, D 759, de Franz Schubert e o Concerto para Piano número 1 em Dó Maior, Opus 15, de Beethoven – duas obras fundamentais para se poder conheceraquelesfabulososcompositores.

Aprofundamo-nos, ainda, em obras de Palestrina e algumaspeçasdeGuillaumedeMachault.

Tudo era trabalhado até ao mínimo pormenor,compassoacompasso,conjuntosdecompassos,secçõesdemovimento,movimentos,relaçõesinternaserelaçõesentreas peças, para além de inúmeros outros factores.

Eraumprofundomergulhonaqueleuniversomágico.

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Quando tudo terminava, pelas seis ou sete horas da tarde,quasesempreaindacommuitotrabalhoafazer,íamosparaosnossosaposentos,àesperadahoradojantar,comosolquemorriaparaumnovodia.

Oritmoeraapaixonantementefrenético.

Pelasmatasquecercavamamaravilhosacasa,haviaárvores centenárias com dezenas de metros de altura, troncos fabulosos, animais, pássaros, cipós e a música podia serouvidaatravésdeumformidávelsistemadesomcamufladono meio da vegetação.

OFrancêsnuncamaisapareceu.Depoisdoprimeirodia,nuncamaisovimos.Eraumhomemquetinhaperdidooamor pela vida. Tornara-se amargo, nervoso, sem esperança, semsonhos,sempaixões.

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Num daqueles dias, num momento de pausa, asonata para violino e piano em Lámaior de César Franckpodia ser ouvida nas matas. Eu passeava solitariamente pelospequenoscaminhosentreasgigantescasárvoreseopequenoesinuosolago–quelembravamuitoolagodenojardimde ClaudeMonet emGyverny, na França, como sefosse quase uma réplica dele – quando inesperadamenteencontreiKoellreutter.

Ele também caminhava solitário, sem qualquerobjectivo,meditando,comasmãosparatrás.

AmúsicadeCésarFranckeopequenolago,comcisnes,era algo aparentemente tão distante da realidade tropical do Brasilque,emtomdebrincadeira,sempensar,disse-lhequeaquilotudopareciaserumpoucokitsch.

Koellreutter se voltoueolhounosmeusolhos, comprofunda seriedade.

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- A música não tem horizontes, não tem fronteiras, nem género, nem raça ou credo. A música é livre. César Franck foi um grande compositor. Ouça comatenção, não como algo estranho, como algo colado aumcenário,masenquantoprocesso,ouçaamúsica. Agoranãovamosfalarmais.Continuemosacaminhar,apenas isso. César Franck pertencia ao universoromânticodoséculoXIX.

Continuamos,cadaumnoseupercurso,perdidosnapenumbra,comamúsicadeCésarFranckmisturadaaossonsdos pássaros e dos insectos.

Essafoiumadasgrandesliçõesdemúsicaquetive.FoientãoquecompreendirealmenteamúsicadeCésarFranck.

Muitas vezes não tínhamos electricidade. Asgigantescastempestadestropicaisfaziamcomque,porvezes,o fornecimento de energia eléctrica fosse inesperadamente

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cortado.

Assim, geralmente, jantávamos à luz de velas elamparinasaquerosene.

Existiaumapequenaigrejabarrocanaquelafloresta,parte da propriedade do senhor Francês. Nela havia umformidável harmonium.Mas,aigrejaestavasemprefechada,trancada a sete chaves. Havia ordens expressas para queninguém lá entrasse, jamais! Era mais uma das muitas erígidasproibições.

Numanoite,umaviolentatempestadeseaproximava.Euestavacaminhandopertodaigrejacomumaamiga,minhacolega.Elaeraumapessoadoceemuitosensível.

Fazia muito calor.

Tive uma ideia! Entraríamos na igreja e, no meio

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da terrível tempestade, eu faria uma improvisação noharmonium.

Dizia-se, entre os mais antigos empregados dapropriedade,quepertodacapelavagueavamfantasmas.

Seriaperfeito!Fantasmaseumharmonium tocando naigrejaproibida,nomeiodatempestade!

Mas!Comoentrar?Aportadafrenteestavafortementeaferrolhada com um pesado cadeado. A porta de trás também.Não podíamos forçar a entrada. Reparei que noalto,numadasparedeslaterais,haviaumajanelarectangular.Certamente por lá passaria um corpo, principalmente umcorpodealguémjovem,comoomeuouodela.

Conseguimosarrastarumapequenamesaqueestavaprovidencialmente abandonada num canto, no meio da vegetação, junto às árvores. Subi e descobri que a janela

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poderiaserabertacomoauxíliodeumarame.Atempestadese aproximava. Já sentíamos os pingos grossos sobre osnossos corpos.

Praticamente não havia luz. Era difícil distinguirqualquer coisa naquela densa escuridão. Mas, como umactodemágica,haviaumpoucodearamejuntoàportadeentrada.

Consegui abrir a janela, que era alta e difícil de sertransposta. Em silêncio, commuito cuidado, entramos osdoisnapequenaigreja.

Atempestadecomeçoucomviolência.Abriomagníficoharmonium e comecei uma longa improvisação.

Era fabuloso! Os violentos sons da tempestade e oharmonium!

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Quandoapesadachuvadeusinaisdoseufim,fecheicuidadosamente o harmonium. Em silêncio, saltamosnovamenteajanela,comocuidadodeatrancarnovamente,comosenuncativessesidoaberta.Arrastamosapequenamesa para o lugar onde estava, apagando os vestígios nochão.Colocamosopedaçodearamenoseu lugaroriginale voltamos rapidamente para os nossos aposentos na casa próximaàentradadapropriedade.

Namanhãseguinte,láestávamostodos,pontualmenteàs sete horas, para o pequeno almoço. Apenas nós doissabíamosoquetinhaacontecidona igreja.Nãocontamosnem mesmo para os nossos colegas.

Nacopa,umaespéciedepequenojardimdeinvernoao lado da cozinha, onde o pequeno almoço era servido,a senhora que trabalhava na casa perguntou se tínhamosouvidoalgodeestranhoduranteanoite.Todosdisseramquenão.Elatremeu.Perguntamosqualarazãodasuapergunta.

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Ela foi dizendo, com ar de desconfiança e de medo, quetinha seouvidomúsicana igrejadurantea tempestade.Aprincípio,pensaramquetinhasidoumdenós.Mas,aigrejaestava bem fechada. Quando a tempestade passou, foram lá verificar e surpresos constataramque ninguém lá tinhaentrado,poistudoestavaexactamentecomoanteseaigrejacontinuavabemtrancada.

Creioqueaquelanoiteentrouparaahistóriadolugarcomo mais um acontecimento com fantasmas.

Koellreutter ouviu tudo aquilo sem alterar os seusmovimentos,comosenadativesseacontecido.Simplesmentecontinuavaoseupequenoalmoço,calmamente–eacabouantesdetodos.Tivea impressão,nasuatotalausênciadeexpressãodequeelesabiaoquetinhaacontecido.

- Meusamigos,horadetrabalhar!–eopequenoalmoçosubitamente terminou.

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Todos os meus colegas – formidáveis e talentosos músicos – estavam muito envolvidos com a notação e técnicas tradicionais. Eu não estava. Para mim, o mais interessante eram os processos cognitivos, os conceitos entrelaçadosdeespaço tempo, a constituiçãode complexos arquétiposmatemáticosemplenametamorfose.

Numa das tardes, quando analisávamos uma peçamedieval,decidimudaraestratégiadeanálise–deixandoostradicionais modelos e estabelecendo uma espécie de mapa gráficobináriocomcamposnegrosebrancos.

O resultado foi um diagrama que mais parecia umturbilhãonumamesadexadrez.Mas,nóspodíamosvercomclarezaospadrõesdesonsdeterminadospeloscompositores,revelando uma interessante parte das suas estratégias de composição.

Os outros estudantes riram do que eu tinha feito.

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Aquilo certamente provocaria uma forte emuito negativareacçãoporpartedoKoellreutter,pensavam.

Mas,quandoKoellreutterviuoqueeutinhafeito,ficouencantado. Para a incompreensão dos outros estudantes, ele pediu para que eu explicasse pormenorizadamente comoaquelemétodo funcionava.Disse-lhequehaviaelementosderitmoedecombinaçõesmodaisquenãoeramclaras,amenos que criássemos outros recursos para as visualizar,comoespéciesdetranscriaçõesintermedia,istoé,passandode um meio para outro, neste caso para o visual.

Fiquei incumbido de desenvolver aquela técnica deanálise, que permitia uma percepção mais completa dacomposição, revelando escolhas estratégicas do compositor.

Nodiaseguinte,tínhamosamanhãlivre–finalmente!– e fomos todos visitar Petrópolis comKoellreutter, queéuma cidade encantadora.

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Petrópolis era a casa dos Imperadores brasileirosduranteosperíodosdeverão.Euaindanãoconheciaacidadeimperialqueestavaexactamentesobosnossospés.

Seguimosemdoisautomóveis–omeueoutrodeumdos estudantes.

Estacionamos e caminhamos pelas ruas. Fomos a um pequeno supermercado para comprar mantimentosnecessáriosparaospróximosdiasedecidimosalmoçarnumsimpáticorestauranteItaliano,muitosimples,bemàfrentedocanalfluvialquecortaacidade.

Assimqueacabamosdealmoçar,cercadospelossacosdos supermercados, ouvimos impressionados ensurdecedores trovõeseoiníciodeumanovatempestade.

Era bastante violenta. O nossos carros estavam

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relativamente distantes. Decidimos, por uma questão decortesia, ir – apenas os dois donos dos carros – buscá-los e voltarparapegarKoellreutteredemaisestudantes,paraquenão se molhassem na chuva intensa.

Assimfizemos.Saímoscorrendoechegamosaoscarroscompletamenteensopados.Achuvaeraquenteegenerosa.Conseguimosencostarcadaumdoscarros,umporvez,juntoàportadorestaurante,deformaqueaspessoaspudessementrar sem se molhar.

Atempestadeparecianãoterfim.

Com os carros completos, todos resgatados sem semolhar, lá fora ainda sob intensa chuva, voltamos para a mágicapropriedadedoFrancês,namontanha.

Mas,assimqueláchegamos,verificamosquefaltavamdois sacos de supermercado – exactamente os sacos que

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pertenciamamimeaooutro rapazque levarao segundoautomóvel.

Pergunteiporqueelesnãotinhamlevadoosnossossacos!Koellreutterrespondeusemesconderalgumaironia:

- Ora,porquevocêsnãoprestamatenção.Ossacoseramresponsabilidadedevocêsdois, independentementede trazerem ou não os carros. Muitas vezes na vida isso vaiacontecer.Háumimprevistoeseesquecedoqueérealmenteimportanteque,nestecaso,éacomida.Os vossos sacos estão bem guardados no restaurante. Mas, terão de voltar lá para os pegar.

Aindaquecontido,fiqueifurioso!Ora,seaquiloqueKoellreutterdisseraeraverdade,tambémeraverdadequepertencíamosaumaequipe,equecadaumtinhaaobrigaçãodepensarpelopróximo,emcolaborar,estabelecendoumacadeiasinergética,oquenãotinhaacontecido.

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Voltamos os dois, sozinhos, inteiramentemolhados,para pegar os sacos.

Detodaaforma,aqueleincidenteserviunãoapenaspara marcar nas nossas almas a importância de se ter atenção àsmínimascoisas–queseriadefundamental importânciaao longo das nossas vidas – mas também para revelar como paraKoellreuttertudoeraeducação,atodoomomento.

Tínhamosnosesquecidodossacoscommantimentoscompradosnosupermercado,maselenãoseesqueceudenosensinar,mesmosobumaterríveltempestadeemesmotendo de ser rude.

Asaulasnaquelemágico lugaraconteciamemtornodo belo piano de cauda, namaravilhosa casa sob aquelasárvores gigantescas.

Todos os dias, no final da tarde, uma violenta

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tempestadeconquistavatodasasatenções.

Napequenaemuitosimplescasaondenós,estudantes,ficávamos,oproprietárioexigiaquedormíssemossobreoscolchõesenvolvidosemplástico!

Tudoeraextremamentesimplórionacasaquenoseradestinada.Quandoentramos lápelaprimeiravez,umdosempregados da propriedade se adiantou e foi contando à nossafrentequantaslâmpadasboasláestavam.Noúltimodiatudoseriasubmetidoaumanovaverificação.Sefaltasseumalâmpada,umgarfoouqualqueroutracoisa,pormenoroumenos importante que fosse, o valor do objecto seriacobrado e adicionada uma pesada multa.

Aquilo era um verdadeiro absurdo. Contrariando asregras draconianas, tirávamos os sacos plásticos à noite–poiseraimpossíveldormirsobreeles–eoscolocávamosnovamentepelamanhã,paraquepensassemquetínhamos

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dormidosobreoplástico.Todasasmanhãs,umempregadovinhaverificarseoscolchõesestavamcobertoscomplástico.Se não estivessem, diziam que nos seria cobrada umamulta.

Tudonaquelelugarpareciagiraremtornodemultase ameaças.

Ninguémmaissuportavaoproprietáriodolugar–que,mesmo ausente, sempre se fazia representar por alguns dos seusempregadosquepareciamser,seguramente,pioresdoqueele.

O pequeno almoço era servido rigidamente às setehoras. Quem se atrasasse mais de dez minutos perdia o direitoaele.Eraamulta...OrdensexpressasdoFrancês,queagia como se fosse o rei ditador do lugar. E isso acontecia emborafôssemosnós,osestudantes,quemestavapagandoportudoaquilo.

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Conversei com Koellreutter sobre aquela situaçãoconstrangedora.

- É...meuamigo.Aspessoasmudam. Tudomuda. Sevocêtivesseconhecidoessapessoaalgunsanosatrásnãoacreditaria.Parecequesubitamenteperdeutodoodinheiro,ouquase todoodinheiro,eficouassim.Isolou-se do mundo. Nessas condições não serámais possível voltar aqui. Uma pena, pois o lugar éinesquecível.

Na primeira manhã naquele lugar paradisíaco,pontualmente às sete horas, estávamos todos reunidos no pequeno jardim de inverno para o pequeno almoço eaguardávamos pelo Koellreutter, que nunca aparecia. Eramuitoestranho,porqueeleerasempremuitopontual.

Naturalmente, recusamos, todos nós, a tomar opequenoalmoçoenquantoelenãochegasse.Eoatrasofoi

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se tornando cada vez mais preocupante.

Pedimosaumadasmusicistasqueestavaconnosco,e que eu já conhecia hámuito, que fosse até à pequenacottage onde ele estava dormindo e soubesse se ele estava emdificuldades,seprecisavadealgo.

Chegamosapensar,cheiosdemedo,queelepoderiaestar morto na cottage!

Alguns minutos mais tarde ela voltou muito nervosa epreocupada.«Elepareceestarmuitomal.Dissequenãopassoubemànoite.Quenãodormiu.Nemsequerabriuaportaparamim!Pediupara tomarmosopequenoalmoçosemele.AúnicapessoaqueelequerveréoEmanuel.ElepediuparaqueoEmanuelfosseláimediatamente».

Aquiloeraumpreocupantesinaldequeelepoderiaestarseriamentedoente.Mas,porqueapenaseupoderia

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lá ir? Ninguém compreendeu. Os outros alunos fizeramalgumas brincadeiras... o que poderia ser? Se fosse sério,comodeveríamosfazer?Seguiríamosparaumhospital?

Quando cheguei à cottage e bati à porta, ele abriuimediatamente e me puxou para dentro, muito nervoso.Fechou a porta velozmente, controlando para ter a certeza dequeeuestavasozinho.

- Emanuel, você não sabe o que aconteceu. Umdesastre!Esqueciomeuaparelhodebarbearnomeuapartamento,noRiodeJaneiro!

- Mas,qualéoproblema?Porquenãovemtomarocaféda manhã connosco? Poderia fazer a barba depois... oudeixarqueelacresçanestesdias...

- Meuamigo!Umhomemcomoeunãopodeaparecercom a barba por fazer! Jamais! É aminha imagem!Impossível!Comonóspodemos resolver isso?Éumproblema muito sério.

- Sequiser,euposso,muitodiscretamente,oumelhor,

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secretamente, ir à cidade e comprar um aparelho de barbear.Seocomércioestiveraberto,seráfácil.Aindaé muito cedo...

- Vocêtemacertezadequeserácapazdeirsemqueninguém o veja, que ninguém perceba o que estáacontecendo?

- Sim... creio que sim... posso sair em silêncio,escondido...

- Preste atenção, você tem de fazer isso sem queninguémpercebaoqueestáacontecendo.Volteparao pequeno almoço. Diga que eu não passei bem ànoite,quevoudescansarumpouco,masquenãoéqualquercoisadegrave.Digaqueficamsuspensasasaulasnestamanhã,equeascompensaremosànoite.Aí,logoapósopequenoalmoço,quandocadaumforparaoseucanto,vocêdeveiremsegredoàcidadeecomprar um novo aparelho de barbear. Mas, ninguém podesaber!

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Koellreutter estava extremamente perturbado comaquelasituação.Foientãoqueeutiveanítidanoçãodecomoa imagem pessoal era algo muito importante para ele.

Elecuidavadasuaaparêncianosmínimosdetalhes.

Certamente,esseseutraçodepersonalidadecontribuiuparaasuarelaçãoprofundamenteafectivacomoJapão.

Lá, a imagem pessoal – em termos positivos ounegativos–éalgodegrandeimportânciasocial.

Dois conceitos fundamentais na cultura japonesailustramcomclarezaessefenómeno:wabi sabi.

Numa das primeiras vezes que estive no Japão, fuiconvidadoparaumchánacasadeumimportantecientistadoInstitutodeTecnologiadeTsukuba.

Imediatamente,assimqueentreinasuacasa,reparei

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quenãohaviaquadrosnasparedes,apinturaeraantigaetudoeraextremamentesimples,tãosimplesquepoderiaseconsiderar uma casa pobre.

Reparei que as camisas que ele vestia eram quasesempreantigasepuídas.Osseusóculoseramvelhos,assimcomooseucarro–mas,eleeraumimportantecientista!

Ele vivia o princípiowabi – que é a simplicidade, odesapegomaterial,oafastamentodaexuberânciaemtodososseussentidos.Trata-sedeumprincípioqueéseguidoporumagrandequantidadedepessoasnoJapão.Quandoalguémmanifesta wabi, também manifesta integridade espiritual, credibilidade, respeito pela comunidade e liberdade entre muitos outros valores.

Originalmente, a palavra wabi indicava a ideia de afastamento da sociedade, uma espécie de monadismo, de vidasolitária.Maistarde,apartirdoséculoXIV,transformou-

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se num outro tipo de afastamento – distanciamento dosvalores materiais e, consequentemente, aproximação dosvaloreshumanos,dasrelaçõescomacomunidade.

A palavra sabisignificaaserenidadealcançadacomaexperiênciadavida,apazespiritualalcançadacomaidade.

Wabi e sabi são conceitos que caminham quasesemprejuntosesemanifestamnaaparênciadapessoa,noseu comportamento.

Ambossãoideaisestéticoseilustramcomoaimagempessoaléalgofundamentalparaaculturajaponesa.

Wabi e sabi lançam as suas origens conceituais no Zen, queéaessêncialivredoBudismo.

No universo de wabi sabi toda a existência éestruturada por três condições essenciais: anicca, quesignificaaimpermanênciadetudo;dukkha,queindicaaideia

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decontínuatransformaçãocomaconsequenteemergênciadeconflitos,essênciadaconsciência;eanatta,queindicaaideiadanãoexistência,istoé,aideiasegundoaqualtudoéapenas uma ilusão.

Koellreuttertinhaumaprofundaligaçãoespiritualcomo Japão. Esses valores estavam impregnados profundamente na sua alma.

Quando voltei para o pequeno almoço, disse aosmeuscolegasqueelenãotinhapassadobem,quedesejavadescansar,mas que não precisavam se preocupar, porquenãosetratavadequalquercoisagrave.

Mas,elesnãoqueriamacreditar.Seassimfosse,porqueelenadadisseraànossacolegaquetinhaidoláminutosantes? Eu não sabia o que dizer. Fui fleumático, conciso,tácito.Nadamaisdisse.Elenãotinhadormidobemànoite,apenas isso.

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Aquelahistóriacriouumclimaconstrangedor,porqueaspessoasnãoacreditaramnoquedisse,maseunãopodiacontaroqueacontecera realmente, pormais simplesquefosse.

Assimquetodosterminaramopequenoalmoço,muitodiscretamente, fui até ao meu carro e o empurrei, com o motordesligado,atéumadescida,paraarua,deformaqueninguémpudesseouvirqualquerruídoeperceberaminhasaída.

ChegueiaocentrodePetrópoliseespereiatéqueumpequenonegócioabrisse.Compreiumaespumadebarbear,um pincel e um aparelho mecânico, com lâminas – ele nunca usou aparelhos eléctricos – e voltei rapidamente.

A topografia do lugar permitia que eu entrasse napropriedade também comomotor desligado. Assimo fiz.

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Semquequalquerpessoapercebesse,corriatéacottage.

Visivelmentealiviado,Koellreutterabriuaporta.Estavaestudando numa pequenamesa junto à janela, protegidapelacortina.

- Obrigado! Obrigado! Agora, vá lá e diga que eu jáestoumelhor.Peçaparaestaremtodosprontos,juntoao piano, em dez minutos.

E as aulas recomeçaram normalmente, sem quequalquerpessoativessecompreendidooquetinharealmenteacontecido.Koellreutterdisse,semdetalhes,laconicamente,quenãotinhadormidobem,masquejáestavaóptimo.

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Num dos dias seguintes, fomos até a cidade deTeresópolis–quenãoficamuitodistantedePetrópolis.Láestava acontecendo o então famoso Curso Internacional de Férias–criadoporeleem1952–ondeseriaexecutadaa Música 1941 que Koellreutter tinha composto mais dequarentaanosantese cujaprimeira audiçãomundial forarealizadaporJuanCarlosPaz,emBuenosAires,em1942.

Foi então que conheci Beatriz Roman, que era aintérprete. Ela foimuito gentil. Koellreutter gostavamuitodaBeatriz–tinhaporelaumasinceraestimaeadmiração.

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Ficamosapenasostrêsnumapequenasala,comumpiano vertical. Beatriz tocou vários fragmentos da peça,paraqueelepudessefazerosseuscomentários,sugerindopequenasalteraçõesaquiouali.

Koellreutternãotinhapraticamentequalqueralteraçãoa sugerir, a interpretação estava exactamente como elepensava ser correcto.

Eu me encontraria novamente com a Beatriz, somente anosmaistarde,emSãoPaulo,duranteumdosFestivaisdeMúsicaNova, tambémcoma JocydeOliveira, aquemeusempretiveumagrandeestimaeadmiração,apesardenostermos encontrado pouco ao longo dos anos.

Por ironia do destino, Beatriz e eu nunca mais nosencontramos, embora ambos tenhamos vivido em lugares muitopróximosnacidadedeNovaYork,quasevizinhos,e

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elatendosido,ainda,muitoamigadoJohnCage,quenãoapenas foi um grande amigo, mas também uma pessoa com quemcolaboreiaolongodeváriosanos!

ApósocursoemPetrópolis,cadaumretornouparaoseu lugar, alguns vindos do Rio de Janeiro, outros de São Paulo oudeMinasGerais,eavidavoltouaoseuritmonormal.

Meses mais tarde, recebi um inesperado telefonema doKoellreutter.Elepediaparaqueeufosseàsuacasa.Queriater uma rápida reunião comigo, fora dos horários das aulas. Combinamosumalmoço.

Eletambémera,então,directordoConservatóriodeTatuí–queoobrigavaaumaviagemadicional,poisacidadedeTatuíficaacercadecentroetrintaquilómetrosdeSãoPaulo.

O Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de

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Campos, tambémconhecidocomoConservatóriodeTatuí,éamaior instituiçãodeensinomusicaldetodaaAméricaLatinaeumadasmaioresdomundo.

Quando cheguei ao seu apartamento, seguimos imediatamenteparaapequenasaladereuniões–oKremlin –elájáestavaowhiskyfrioesalgadinhosgelados.

Serviu a habitual dose, que não ultrapassava meiocentímetro no fundo do copo. Reparei como ele estavaanimado.

- Emanuel, tenho uma novidade muito importante. O queeutenhoparacontarpodeseralgorevolucionário,fabuloso. Mesmo em termos internacionais. Mas, para isso, eu serei obrigado a tomar uma decisão muito séria, verdadeiramente radical, na minha vida. Gostariadesaberasuaopinião.

Havia um estado de suspense, uma tensão presente

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nassuaspalavras,nosseusmovimentos.Koellreutterestavaanimado, mas muito ansioso.

- Fui convidado para dirigir uma profunda remodelação doConservatóriodeTatuí.Éumagrandeinstituição.Nãoseisevocêsabe,maselestêmatémesmoumaorquestra sinfónica, que pode ser tornar numa boaorquestra em termos mundiais. O objectivo serátornar o Conservatório de Tatuí numa entidade deensino musical com padrão mundial, se possívelpara rivalizarcomVienaoucomSalzburgo.Seráumenormedesafioparamim.Éodesafiodeumavida.Será,certamente,oúltimotrabalhodaminhavida.Setudodercerto,queroquevocêealgunsoutrosalunosmeus, sejam meus assistentes. Mas, eu não possoprometerqualquercoisaporenquanto.Porenquantoé segredo. Segredo absoluto! Preciso saber se vocêestaria ao meu lado.

Naturalmente, concordei imediatamente em ir

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trabalharcomelenessenovoprojecto–atotalremodelaçãodeumagrandeinstituiçãodeensinoeasuatransformaçãonumcentroplanetárioeraalgodesafiadoreimponente.

Koellreutterestavamuitoanimado,falavamuito,masnão disfarçava um certo nervosismo.

- Oproblema...ograndeproblema,muitosério,équepara o fazer, terei de abandonar definitivamente omeu trabalho na Faculdade Paulista de Artes e todos os meus outros compromissos. Terei de resignar ao meucargoeamuitasactividadesque tenhoestadoenvolvido. Na minha idade, muito poucas pessoasaceitariam um tal desafio. É um passomuito difícil,porqueháumtrabalhoimportantequepodeserfeitolá. Mas, se não der certo, poderá representar a minha destruição em termos financeiros e profissionais.Ficarei semtrabalho,oqueémuitodifícilnaminhaidade. Eu terei aberto mão de todos os compromissos quetenhohoje.Poderáserumdesastre.Mas,euterei

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de tomar uma decisão. Qualquer que seja ela, vaimudarorumodaminhavida.Primeiro,Tatuíterádegarantirqueesseprojectoderemodelaçãoseráfeitorealmente, que se trata de uma proposta concreta.Eu não posso dar passos sem ter essa certeza. E terei de ter uma carta branca para dirigir as mudanças. Naminha idade,eutenhodeprestarmuitoatençãoa cada passo. Para mim, há pouco tempo de vida à frente.

Disse-lhe que, na minha opinião, deveria abraçar oprojectoparaTatuí–desdequeestivessemuitoseguroemtermos legais, naturalmente.

Na semana seguinte nos encontramos novamente eelecontouquetinha,comalgumatristeza,apresentadoasuaresignação ao director geral da então Faculdade Paulista de Artes,porquemtinhaumagrandeestimapessoal,eaceitaraodesafiodoConservatórioedaOrquestradeTatuí.

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Alguns diasmais tarde, seguimos juntos para Tatuí.Ficaríamoslá,juntocomoutrosseusalunos,durantedoisoutrêsdias,apenasparaacertarosdetalhes,estabelecerumaestratégia global e assinar todos os documentos.

Fiquei impressionado.Mesmo já tendoouvido falar,eununcapoderiaimaginarqueoConservatóriodeTatuíeraumainstituiçãotãogrande!

Assim que chegamos, na primeira tarde, após asprimeirasreuniõescomadirectoriaeprofessores,nasquaisnãoparticipei,encontrei-measóscomKoellreutter.Eletinhaumaexpressãosombria,damaisprofundapreocupação.

- Emanuel, temos um problema muito grave. Umasituaçãomuito séria. O Conservatório de Tatuí estácompletamente anacrónico, velho, ultrapassado.Comoconversamos,fuichamadoparaotransformarnumcentrodeimportânciamundial.Oqueeupude

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verificaréqueonívelmédiodosprofessoresépéssimo.Háalgunsbons,massãoexcepção.Estousaindoagorade uma reunião com alguns deles. Eles são, em grande parte, donas de casa que ensinammúsica como sefazianoséculoXIX,namelhordashipóteses.Elesnãotêmamenornoçãodomundocontemporâneo,nemmesmoemrelaçãoàinterpretaçãodepeçasantigas.Mas,eutiveumaideia.Essaideiaéaúnicaformadesolucionaresteproblema...porquenósnãopodemossimplesmente colocar na rua todas essas senhoras e esses professores quemais parecem aposentados...emuitosdelessãomesmo.Elesnãotêmculpa.Elessãovítimasdesimesmos.Mas,poroutro lado,nãoos podemos manter como estão. Eles paralisam tudo, esclerosam tudo. Estão comprometendo o futuro dos músicos daqui, em termos internacionais. Comeles, como poderíamos fazer o nosso trabalho deremodelação?Nareuniãoquetivemos,elesforammeexplicando como funcionam e pareceram acreditar

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queeu serei igual aosanterioresdirectores, alguémqueusufruiacomodadodeumbomsalário.Mas,paramim estar aqui é um grande desafio! Eu não possoagirdeformadiferente.Nãoestouaquipelodinheiro.Então, pensei na seguinte ideia...

Koellreutter falava semesconder nervosismo e umagrande preocupação. Tinha mudado toda a sua vida em funçãodaqueleprojecto!E,defacto,eumesmopresenciaraalgo inesperado – numa das reuniões com professores,eu pude observar, pela porta entreaberta, que uma dasprofessorasfaziacrochéenquantoKoellreutterfalava!

Mas,elenãoeraumapessoadesedeixarabaterouestarenvolvidoporessetipodesituação.

Koellreutter era uma pessoa profundamente práticae pragmática. Para ele, cada coisa que acontecia era umindicador de como se manifestava a realidade e, portanto,

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eram elementos muito úteis para se estabelecer novas estratégias de acção.

- Preste atenção. A minha ideia é a seguinte: essesprofessores podem ter uma função muito mais importante,emtermossociais,doqueimaginam.Elesnunca serão capazesde formaralunosquepoderãoestaraoníveldosmúsicosdeParis,deNovaYorkoudeViena,porexemplo.Mas,poroutrolado,somenteumpequenonúmerodepessoasécapazdeentregarasuaprópriaexistênciaparaumdestinocomoesse,sacrificandoavidafamiliar,aprivacidade,oconsumoe, em alguns casos, a riqueza. A maior parte daspessoasquertocaruminstrumento,quersermúsico,masnãopode,nãoquerenãoconsegueviverapenasdisso. Assim, nós devemos separar o Conservatórioem dois grandes grupos. Um grupo, o maior, comtodasessassenhorasesenhoresquaseaposentados,poderiamsededicaraodiletantismo.Odiletantismoéalgomuitoimportantenasociedade.É,naverdade,

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oquejáacontecehoje–osalunosaquisãoeducadoscomodiletantes,semosaber.Ospoucosquepodemse entregar a essa vida, são educados como os outros. Assim,ooutrogrupo,muitíssimomenor,seriadedicadoàformaçãodegrandesprofissionais,aísimcomnívelinternacional.

Aquela ideia me pareceu muito interessante. Creioquenuncaantessetentouissoemqualquerinstituiçãodeensino musical. Em geral todas as pessoas se consideram osmaioresdomundo.AquelaideiaeraumaformadenãodestruiroConservatóriocomoestavaorganizadoatéentãoedecriarcondiçõesconcretasparaumaformidávelrevoluçãona sua estrutura de ensino.

Quando Koellreutter comunicou a sua ideia aosprofessores – de dividir a estrutura em diletantes e profissionais–areacçãofoibrutal.

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Do lado de fora da sala de reuniões, nós podíamosouvir os mais exaltados. Ninguém admitia trabalhar parao diletantismo – embora fosse isso o que já aconteciana realidade. Todos se consideravam demasiadamente importantesparaisso!

Assim, para os professores era uma verdadeira ofensa admitirapossibilidadedesededicaradiletantes!

Cada um se considerava o melhor professor domundo.

Koellreutterlevoucercadetrêshorasparaosconvencerde, pelo menos, pensar no assunto.

Eu aguardava pelo Koellreutter no lado de fora, nasaladeespera,eospudeverquandoosprofessoressaíramespumandodeódio.

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Quando saímos do edifício, ele tinha as mãos paratrás,olharpesado,esussurravadesconsolado:

- Muitodifícil...vaisermuitodifícil.

No dia seguinte, foi marcada uma reunião doKoellreuttercomtodososalunosdoConservatórioetodososprofessores,noteatroProcópioFerreira–aseupedido,naturalmente.

O auditório, que tinha uma dimensão considerável,ficoupequeno com tantos alunos.Algunstinhamdeestarsentados até mesmo no chão.

Váriosdosprofessorespresentesnãoescondiamoseudescontentamento.Olhavamparaoslados,comoseaquilofosseridículo.

A situação era de grande tensão.

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Koellreutter pegou o microfone começou a falar,caminhando no meio de todos.

- Meusamigos,eufuiconvidadoparaviratéaqui,dirigiresta instituição e fazer uma profunda remodelaçãonosmétodosdeensino.Mas,paraqueeupossafazerisso, preciso perguntar três coisas para vocês. Nóspodemosficaraquiotempoquequiserem.Vocêstêmtodo o tempo para pensar e dar as respostas. Podemos atédormiraqui,paramimnãoháproblema...Mas,euprecisosairdaquicomessasrespostas.Semelas,nãopoderei fazer o meu trabalho.

Osalunosestavamvisivelmenteintrigadoscomaquelasituação.

Koellreutter continuou falando, sempre com grandefirmeza, sem se importar com risadinhas dos professoresqueestavamaoseulado:

- Euquerosaberoquevocêsestãofazendoaqui,para

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queestãoaquieoquevocêsqueremnassuasvidas.Mas, sobre essas três questões vocês não podemperguntaraninguém.Nãopodemouviroamigo,ospais, e muito menos os professores... absolutamente ninguém...vocêsdevemouvirapenasavocêsmesmos.E não devem acreditar em qualquer pessoa, nemmesmoemvocês.Mesmoquandopensaremque játêmaresposta,devemseperguntarnovamente:“porquê?”.Então,vocêspoderãoresponder:oqueestãofazendoaqui,paraqueestãoaquieoquequeremnavida.

Koellreuttercruzouosbraçoseficouesperando,diantedeumpúblicoboquiaberto.Umsilêncioavassaladorinvadiuoauditório.

Derepente,umaalunalevantouepediuparaqueelerepetisseasperguntas.

- O que vocês estão fazendo aqui, para que vocês

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estãoaquieoquequeremdassuasvidas...–repetiupacientemente.

Aalunarespondeucomumcertoarirónico,comoseaperguntativessesidoóbvia–«Ora,estamosaquiparaoouvir,estamosaquiparasaberoqueosenhorfaráequeremossermúsicos».

- Muitobem,muitobem.Mas,vocênãorespondeuoprincipal,vocêsestãoaquiparaouviroque?Qualéaminhafunção?Oquevocêsesperamqueeudiga?Porque razãoeupoderia fazeralgoaqui?Paraalémdoqueeupossadizer,qualéaverdadeirafunçãodaquiloqueeupoderiafazer?Eoquevocêsqueremdasvossasvidas?Naturalmenteeuseiquevocêstodosqueremsermúsicos.Afinal,nósestamosnumconservatório!Mas,quetipodemúsico?Vocêsqueremviajartodaavida?Estãodispostosasacrificarasvossasvidaspessoais,aterdificuldadesfinanceiras?Queremdarassuasvidasaumaprofissãocomoadomúsico?Avidaédevocês,

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nãoéminha.Eunãopossochegaraquieimporaquiloqueeupenso.Eutenhodecompreenderoquevocêspensam. Se aquilo que vocês pensam coincide comoqueeupenso,mesmoquenãototalmente,bom...entãonóspodemosfazeralgo juntos.Mas,sevocêsacreditarem em coisas muito diferentes... então, a minhapresençaaquinãoterásentido.

Um dos professores levantou e, tremendo, muitonervoso, começou a defender a ideia de que já havia umprograma estabelecido no Conservatório, que ele tinhasidodeterminadohámuitosanosequeera,desdesempre,considerado como uma espécie de convenção sagrada daquela instituição, que deveria ser aceito pacificamentecomoaconteciatodososanosepontofinal...

Mas, Koellreutter, muito educadamente, pediu paracontinuarouvindoosalunos.

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Rapidamente, os estudantes começaram a falar, cada um com uma resposta diferente. Tudo se tornou um imenso caos. Professores se entreolhavam ainda com mais desdém ecomsorrisossarcásticos.

Koellreutterpacientementedeuumpassopara trás,mas não interrompeu a generalizada discussão. Estava comosbraçoscruzadoseesperouqueotempoalterassearealidade.

Muitospensaramqueaquelecaoseraofimdetudo,ofimdaqueleencontro,daqueledesafio.Pensaramquetudoestava descontrolado.

Alguns professores se mostravam declaradamente satisfeitos diante de tal possibilidade. Um deles chegou acomentar:«Estávendo?Énissoquedá...»–liberdade para os alunos inevitavelmente degenera em confusão, certamente teria completado.

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Koellreutter aparentava muita calma, sorriu econtinuouemsilêncio.

Derepente,umdosalunospediusilêncioesepropôsorganizar um grupo de contacto com os outros grupos de estudantes, de forma a poder organizar as diferentes ideias eestabelecerrespostascomunsàquelasquestões.

Imediatamente, de forma muito organizada, surgiu umasugestãodosalunosformarempequenosgruposparareflectirsobreaquelasquestõeselevarasrespostasàquelequesepropunhaorganizarogrupodecontacto.EsteficariaemcontactopermanentecomKoellreutter.

Tudo passou a se desenvolver de forma muito rápida edinâmica.Alimesmo,começaramaorganizarvotações,eocaos se transformou em algo muito civilizado.

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Váriosprofessorescomeçaramaseretiraremsinaldeprotesto.

AlgunsalunosdoConservatóriodeTatuítambémeramalunosdoKoellreutteremSãoPaulo.Criou-seàvoltadeleumagrandeondadesimpatiaeadmiração.

Ficou decidido que aquele grupo de trabalhodesenvolveria as questões junto aos alunos e que fariamumanovareuniãonumadatafutura.Trêsdiaseraumprazoestabelecidopelosprópriosestudantesparaqueasrespostasreflectissemumaopiniãogeral.

Nos momentos seguintes, professores comentavampeloscorredores,muitoexaltados,queKoellreuttereraumanarquista,quequeriadestruirtudooquetinhasidocriadoporeles,queasuaatitudeiriadesintegrarainstituição,queele era um louco... e coisas do género.

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No início da noite, naquele mesmo dia, tivemosa dramática notícia: rumores davam conta que algunsprofessores, profundamente indignados com as ideias do Koellreutter, tinham chamado a polícia. Acusavam-no dedesvioesubversãodeadolescenteseatémesmoqueomestreAlemão fazia uso de drogas estupefacientes acompanhado dosalunos!

As acusações eram torpes e inclassificáveis. Elasaconteciamnaformadeboatos,rumoresanónimos.Aindaassim,mesmodiantedomaisprofundoabsurdo,tivemosdesairdeTatuíevoltarimediatamenteaSãoPaulo.

Aquele grande conflito no Conservatório de TatuícriouumaprofundadivisãoentrealunoseprofessoresqueestavamafavordoKoellreuttereosqueestavamcontra.

Váriosalunoseprofessoresapoiaramassuas ideias,mas não eram suficientes para fazer frente aos que asabominavam.

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Continuei amigo de váriosmúsicos da orquestra deTatuí, comosquaischegueia realizaralguns interessantesconcertos no grande auditório do MASP Museu de Arte Moderna Assis Chateaubriand em São Paulo.

Nem todos os professores de Tatuí tinham aquelaatitudecontraKoellreutter.Haviaalguns,aindaquepoucos,verdadeirosheróisquecompreenderamoquesepassavaesempre o defenderam.

Emanuel Pimenta,concerto com dançarinos e

músicosdaorquestradeTatuí,MASP, São Paulo, 1983

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Tal como o maestro José Antônio Pereira, que foiseu amigo até ao final da vida.Mas, não erammuitos, eKoellreutteracabousendoexpulsodelá.

Nofinalde2009,JoséAntônioPereirameescreveriasobre Koellreutter: «a sua metodologia para as aulas deharmoniafoiamelhorquejápresenciei.Cadaleiharmónicaerapraticada,analisada,percebida,avaliada.Devetersidoesse o diferencial para que Isaac Karabtchesvky e BenitoJuarez tenham tido um desempenho tão excelente... OCoral da Universidade de São Paulo, dirigido pelo Benitoera baseado na audição. Embora o mestre tivesse umconhecimento amplo do assunto para oferecer aos alunos, eleinicialmentecolocavaoconhecimentonapráticaeapenasdepoisapresentavaateoria,trabalhandosobreaprática.(...)Lembro-medequeelepediaaoalunoparafecharosolhos,mesmoestandonumgrupo.Eleacreditavaquehaviaumaespéciedesincronia,decoincidência, ligandoa todos. (...)

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Lembro-medoseugostopelascorujas...».

Até a sua morte – embora tivesse sido director dainstituição durante algum tempo – praticamente todas asreferênciasàsuapassagempeloConservatórioparecemtersido apagadas.

Todavia,em2010,ositenaInternetdoConservatóriodeTatuí registrava, atravésdeum textodeCamila Frésca,aquelesdifíceismomentos:«QuandoJoséCoelhodeAlmeidadeixouocargo,assumiuadirecçãoHansJoachinKoellreutter,jácélebreemtodooBrasilcomoprofessorepersonalidademusical. Ao transferir-se para Tatuí, Koellreutter e algunsprofessores que com ele vieram procuraram instituir umametodologia que vinha sendo aplicada pelo educador emoutras instituições, comoaEscoladeMúsicadaBahiaeaEscolaLivredeMúsicaemSãoPaulo.Estatinhacomopontodepartidaumaeducaçãomusicalhumanísticaeampla,quenãose limitasseaensinamentostécnicos.Naprática,uma

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dasmudançaspropostasporKoellreuttereraaaboliçãodocurrículopré-estabelecido.Oprogramadeensinodosalunosdeveria levar em conta sua situação social, profissional,intelectualemental.Assim,seriamaisparticularizado,feitoespecialmenteparacadaturma.Seriamantido,noentanto,um“currículomínimo”,compreendendo,segundoopróprioKoellreutter,“composição,estéticaeanálisecomomatériasprincipais, e outras básicas: teoria elementar, quer dizer,semióticamusical.Composiçãodeveriaserindividualenãoem grupo, diferentemente de improvisação”. Outra mudança seria a eliminação das provas regulares. Yara Caznok, queduranteoperíodoesteveseismesesemTatuíministrandoaulas, conta que a receptividade dos alunos foi óptima,masosantigosdocentesdaescolaviamasmudançascombastante receio. “A ideiadeKoellreutter eramodernizaroConservatóriodeTatuí,tirardeleaideiadotradicionalpelotradicional.Segundoele,atradiçãoéformadaporinovações,portanto ser novo nadamais é do que seguir a tradição”afirma. O próprio Koellreutter, no entanto, afirmou que a

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aboliçãodocurrículoacadémicotrouxeinúmerosproblemassobopontodevistaadministrativo.Portantoaexperiência,embora ricaeestimulante,não foibemaceitaporgrandeparcela da comunidade do Conservatório. Na verdade, aoposiçãoextrapolouoslimitesdainstituiçãoegeroufortesprotestosqueacabarampor inviabilizarapermanênciadocompositornadirecçãodacasa».

AquilofoiextremamenteextenuanteparaKoellreutter.Foiumdurogolpe.EletinhaalimentadosonhosdegrandestrabalhosemTatuíetudotinhasidodestruídoporumgrupodeprofessoresautoritárioseretrógrados!Outerá,naquelemomento, o sonho superado a sua visão pragmática desempre?

De todaa forma,depoisdoqueaconteceu, elenãotinhanemmesmoemprego.Tinhaabertomãodetodososseus compromissos e levaria algum tempo para os refazer.

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Alguns dias mais tarde, quando os ânimos estavammenosexaltados,conversamossobretudooqueacontecerae sobre a sua delicada e frágil situação.

- Muito difícil... muito difícil... Agora, eu fiquei numasituação financeira muito difícil. Tenho as minhasobrigações, osmeus compromissos. Como fazer? Jánãotenhotrabalho.Naminhaidadenãoéfácil...Serámuitodifícil...Meuamigo,eupossoestardestruído.

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Ele estava realmente preocupado e francamente desanimado.

Tiveumaideiaqueopoderiasalvar.

Eu era muito amigo do Augusto e do Haroldo de Campos–tivesempreumaprofundaadmiraçãoporambos.Eu era, para além de amigo, também aluno do Décio Pignatari na PUC Pontifícia Universidade Católica em São Paulo emcursosdepósgraduaçãosobreSemiótica.Nósformávamosumbelogrupodealunos, juntocomoLuizAntônioGiron,Philadelpho Menezes e J. Jota de Moraes entre outros.

Décioeeufazíamosumprogramasemanaldedicadoàmúsicacontemporânea,naRádioUSPFMdaUniversidadede São Paulo.

Nosprimeirostempos,oprograma–quesechamavaCODA e que durou cinco anos ininterruptos – tambémcontava com a participação do artista plástico Fernando

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Zarif.Duranteváriosmeses,onosso locutoreraoWilliamBonner.

Naqueles tempos fui o responsável pelo design, produção gráfica e edição do poema visual Vocogramas do Décio Pignatari, para a revista Plural, de Octavio Paz, na Cidade do México; entre outros. Durante cinco anos,religiosamente todasasquintas-feiras,tínhamosum longobrainstormingnomeuatelierdearquitecturaemSãoPaulo.Assim,haviamuitasligaçõesentrenós.

HolgerCzukaie Emanuel Pimenta, no programaCoda,RádioUSP,SãoPaulo,1984

(foto Ennio Brauns)

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PenseiqueseKoellreutterpudessedarumcursodepós graduação na PUC Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo, ele teria condições de sobrevivência durantealgunsmeses,atéqueascoisassereequilibrassem.

Mas,todosospassosdeveriamserdadoscomextremadiscrição e rapidez.

Falei com o Décio, que entrou em contacto com oHaroldo. Depois, encontrei-me também com o Haroldo – eu gostavaimensamentedele.Certavez,nessaépoca,fizemosumaimprovisaçãojuntosnaTV Cultura, em rede nacional, ele com poemas e eu ao piano, com uma das minhas peças.

SugeriaoHaroldoqueKoellreutterdesseumaversãomais profunda do seu curso de introdução à estética napós graduação da PUC,mas ele considerou que isso seriapraticamente impossível, devido ao rígido programa de

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doutoramento da universidade.

Não havia muito tempo. A situação financeira doKoellreuttereragraveesedegeneravarapidamente.Elenãoerajovem,tinhaquasesetentaanosdeidadeeoBrasilviviaumadevastadoracrisedehiper-inflação.

ExpliqueiaoHaroldo,pedindotodoosigilo,asituaçãoemqueKoellreutterseencontrava.Elesseconheciamdesdehá muito tempo, mas nunca chegaram a se tornar amigos. A profundaadmiraçãoerarecíproca.

Haroldo teve a brilhante ideia de mudar o nome do curso do Koellreutter – originalmente Iniciação à Estética – para Sistemas Intersemióticos. Era perfeito pois, de facto, o cursotratavadesistemasintersemióticos!

A carta de convite foi enviada e o calendário marcado, tudo muito rapidamente.

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Mas, recebi um telefonema do Koellreutter, muitoabatido,pedindoparaqueoencontrasse.Fuiatéasuacasa.Koellreutterestavaprofundamentedesanimado.Eleestavaimpedido de dar aquele curso na PUC, pois não possuíaformação académica compatível com as exigências dauniversidadeparaprogramasdepósgraduação!

Fiqueiboquiaberto.Eleeraumdosgrandesmestresemtodo o mundo. Tinha formado grandes músicos em diversos países e nas mais diferentes áreas ao longo de décadas.Era a ligação viva com o universo dos grandes pensadores germânicos. Tinha representado uma verdadeira revolução na educação musical e mesmo na música brasileira. Mas, estava impedidodedaraulasnodepartamentodepósgraduaçãoporquenãotinhaadequadaformaçãoacadémica,nãotinhaumcertificadoburocráticoatestandoasuacompetência!

Muitas vezes as pessoas se esquecem de que atémesmo a bossa novarecebeuainfluênciadassuasluzes.

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Aoouviraquilo,fiqueiindignado.Corriparaconversarnovamente com o Haroldo e sugeri que a universidadelhe desse um título honoris causa. Ora, era motivo degrande honra para a universidade. Koellreutter era umpersonagem reconhecido internacionalmente. E assim ele estaria automaticamente habilitado para leccionar na pósgraduação.

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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Haroldo de Camposmoveumontanhas e conseguiurapidamentequeotítulofossedadoaomestreAlemão.

Aquelecurso,comaduraçãodeseismeses,dariaaoKoellreuttertemposuficienteparareestruturaravida.

Maistardeeletambémreceberiaostítulosdedoutor honoris causa pelasUniversidades Federais da Bahia e doCeará.

Haroldo de Campos que, para além de um dosgrandesexpoentesintelectuaisdoséculoXX,eraumaalmaprofundamente generosa, ficou mais do que feliz por terajudadoKoellreutter.

Em poucos dias todas as vagas para o curso estavam preenchidas.

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Ocursoeraumgrandesucesso!

Durante as aulas aconteceram factos muito interessantes. Muitos dos alunos estavam ali para completar créditos para o doutoramento em Semiótica e, maisespecificamente, sobre o pensamento de Charles SandersPeirce cujas ideias eram a base do curso de Teoria do Pensamento, reconhecido internacionalmente como um dos melhores, senão o melhor na época.

Ainda assim, as ideias do genial Charles SandersPeirce, que devem ser compreendidas na sua dinâmica,são geralmente estruturadas em rígidas classificações edepartamentos estanques, contrariando a sua concepçãooriginal.

Quando Peirce estabelecia categorias, sempre o fazia emtermosrelacionaiserelativos,numaestratégiaparadoxale não linear.

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Koellreutter nunca estudara a Semiótica de Peirce.Conhecia apenas superficialmente as ideias do pensadoramericano.

Ele era um músico, um compositor e um mestre de fundamental importância – mas, pertencia a outro “mundo”.

Nãoqueaqueleseu“outromundo”nãosejustificassenum programa dedicado a Peirce – pelo contrário. Era uma oportunidadeúnicaparaqueosalunospudessemexpandirassuasideiaseconfrontarquestõesessenciaisdaSemiótica,resgatando elementos de um outro universo.

Mas, algumas vezes essa diferença não era compreendida pelos estudantes menos iluminados, mais agarradosàsrígidastabelasdeclassificações.

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Numadasaulas,KoellreutterreflectiasobreoquenaÍndia era a compreensão do símbolo.Asuaexplicaçãopartiadaanáliseetimológicadapalavrasímbolo,quesignificaco-incidir.

Eleacrescentavaque,namúsicaindiana,porexemplo,uma raga matinal, era a própria manhã, enquanto puraqualidade. Em tal caso, amúsica, explicava, erao símbolo da manhã. Ambas, música e manhã, coincidiam; elas aconteciam juntas como um único fenómeno. Aquelamúsicasimplesmentenãopoderiasequerexistirnumoutromomento do dia. Se fosse tocada num outro momento do dia, seria outra música.

No universo conceptual de Peirce, esse fenómenoestaria mais coerente com o conceito de ícone, sendo uma primeiridade.ParaCharlesSandersPeirceadesignaçãodesímbolo implica a razão, é uma terceiridade.

De toda a forma, em última instância, a partir do

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momento em que compreendemos algo, tudo implica arazão.

Assim que Koellreutter terminou a explicação,subitamente,umpequenogrupodealunos,muitoarrogantena certeza do seu vasto conhecimento, pareceu estar revoltado.Deformarepentinaeemtomdesuperioridade,desencadearam um agressivo interrogatório contra ele,paralisandoaaulaetentandooexporaoridículo.

Mas, qual era a importância daquela intervençãomassacrando o velho mestre Alemão senão alimentar o ego deunsimberbesaspirantesafilósofos?

Koellreutterficouvisivelmenteintimidadocomaquelaagressividade. Os inquisidores usavam intencionalmentetermos técnicos que escapavam ao repertório docompositor.

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Naquelaépoca,euestudavaSemióticanãoapenascomoDécioPignatarimastambémcomagenialRotiNielbaTurin,quefoimestradomeuqueridoamigoPauloLeminsky.

Assim, eu conhecia bem aquele repertório. CharlesSandersPeircefoisempreumareferênciacentralnaminhavida.

Numdadoinstante,quandoaarrogânciaultrapassouos limites do aceitável, tratei de intervir e, educadamente, pediparaqueaquelesrapazescompreendessemalgoparaalém das rígidas departamentalizações. Pedi para queestivessemmaisatentosàscondiçõesparadoxaisdadinâmicaestabelecidaporPeirce,ao factodequeumsignosempreimplicaassuasrelações...eassimpordiante.

Rapidamente, a discussão passou para o meu lado e assumiafrancadefesadoKoellreutter–sendorapidamenteapoiado por toda a classe.

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Creioqueacabeipornãotersidomuitosimpáticocomeles,masestavamcolocandodeliberadamenteKoellreutternuma situação extremamente difícil sem qualquernecessidadeoujustificativaséria.

Quando essa agressiva e estéril discussão começou, um dosalunos,AlbertoMarsicano,citaristaqueviveunaÍndiaequefoidiscípulodeRaviShankaremLondres,simplesmentelevantou e foi embora.

Depois, foi a vez dos incómodos estudantes deSemiótica, que se consideravam demasiadamenteimportantes para continuar lá. Dessa forma, finalmente,deixaram-nostodosempaz.

Marsicanosofriaprofundamenteaopresenciaraqueletipodediscussões.Duranteasaulas–elesentavasemprenaprimeirafila,imediatamenteàfrentedoKoellreutter.Assim

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queaaulacomeçava,osseusolhosviravamparacima,ficavaparalisado, com os braços abertos, a boca semi aberta, por vezes babando.

Os alunos se acotovelavam perguntando se ele estava drogado.

Nunca!Eleentravaemtranse,parapoderabsorveraomáximocadapalavradoKoellreutter.

OpróprioKoellreutterseadmiravacomosestadosdetranse do Marsicano.

- Meusamigos,vocêsnãosabemoqueé isso.Muitointeressante! Ele entra em transeprofundo. Ele ficatotalmente concentrado durante as aulas. Na Índiaissoécomum.Mas,noBrasiléaprimeiravezquevejoalgoassim!Notável!–comentariamaistarde.

As nossas aulas de composição continuavam, cada

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vez com mais profundidade, agora no seu apartamento na AvenidaLuizAntônio.

Algumas vezes eu me encontrava com outros alunos. OcompositorChicoMelloeraumdeles.Comoseguíamosmuitasvezesparaosmesmos lados,nãoraramente íamosjuntos e parávamos sempre no caminho para tomar umcafé.

O Chico também estudava medicina e tinha umagrande dúvida sobre o que faria no futuro. Morava emCuritibae iamuitasvezesaSãoPaulo,especialmenteparaestudarcomKoellreutter.Maistarde,perdemosocontacto.Soube,muitos anosmais tarde, que ele tinha semudadopara a Alemanha.

Naquelaépoca,Koellreutternãoestavainteressadoemqualquermúsicaquenãofosseeruditaecontemporânea.Eleestavaconcentradonasmetamorfosesdamúsicaenquanto

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sistemascomplexos–eissoimplicavaaltorepertório.

Eu tinha uma antiga e grande admiração peloHermeto Pascoal. Sempre o considerei um músico genial. Umadasrazõespelasquaisescolhiaflautatransversalcomoinstrumento principal foi ter ouvido, ainda menino, uma das suasinesquecíveisinterpretações.

Perguntei se já tinha assistido a um concerto seu.Nunca!–foiaresposta.Pergunteiqualarazão,porqueserecusava de forma tão radical?

- Ora,porquenofinalésempreamesmacoisa.Tocamsempre o mesmo. Eu não estou interessado. Pode ser muito bom, mas é outro mundo. Eu não tenho tempo paraouvirtudo!

Perguntei se ele gostava da música indiana. Era uma perguntaclaramenteprovocatóriadetãoabsurda.Arespostafoi,naturalmente,quesim!

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Hermeto Pascoal é um dos grandes improvisadores de todos os tempos. A música indiana é pura improvisação. Se eleofosseassistir,masestivesseatentoaofabulosotalentodeimprovisador,assuasimpressõessobreoHermetoPascoaliriam mudar radicalmente – sugeri.

- Voupensar,voupensar...

Poucos meses mais tarde, num dos nossos almoços, elecontoucomotinhasidoassistiraumconcertodele,creioquenum festivalde jazz.Koellreuttertinha ido comoutroaluno.

- Emanuel,ontemfuiassistiraumconcertodoHermetoPascoal. Fui com um dos meus alunos que, assimcomovocê,tambémgostamuitodele.Poisvocêstêmrazão, ele é realmente um grande músico, um grande improvisador. É fabuloso. Lembrou-me, de facto,algunsmúsicosindianos.Eosmúsicosquetrabalhamcom ele também são muito bons. Muito interessante.

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Foiumaexperiênciainteressante.

Não se passou muito tempo até que a situação seinvertesse. Surgiu um concerto de um famoso compositor brasileiroqueinterpretava,elemesmo,assuascomposiçõesao piano.

Fomos ambos convidados e decidimos ir juntos. Noconviteestavaescritosetratardeumdosgrandesexpoentesda música contemporânea mundial.

Paraaminhasurpresa–queatéentãonãoconheciaomúsico–aquilofoiumespectáculoterrível.

O compositor procurava reconstituir a músicaromânticadoséculoXIX,tomando-acomocontemporâneaeaclassificandodepós-moderna. Ele acreditava ser um novo Franz Liszt.

Oraciocínioerasimples:apenasamúsicaantigapodia

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ser a verdadeiramúsica,factodiantedoqualtodosdeveriamsecurvarcomoúnicasaídaparaamúsicadofuturo...comoseamúsicaprecisassedesaídas.

Ali,tudoeraprofundamentereaccionário.Cadapeçapretendia ser uma réplica de outros tempos e, naturalmente, aquelas ideias eram frontalmente contrárias a tudoo queacreditávamos.

Nomundo,todasasrelaçõessetransformaram,todaa realidade planetária se metamorfoseou. Tudo mudou. Praticamente não tínhamos mais monarquias. As pessoasestavam ligadas por telefones, pela televisão – não andavam mais a cavalo.

Masaquelecompositor,saudosodostemposimperiais,era um verdadeiro atleta no seu instrumento... A sua música simplesmente não existia enquanto ruptura, como elepropunha.Mas,tambémnãoexistiaenquantopassado.

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Eraumacidentalepenosoexercíciokitsch.

Nofinaldoespectáculo,saímosdoteatroecomenteicom firmeza o que pensava. Para a minha surpresa,Koellreutternãoocriticou.

- Vocêtemrazão.Mas,cadaumtemasuavida.Elenãosepropõefazeralgodiferente.Elesepropõefazeroquefaz,eofazbemfeito.Elepensaqueissoéruptura.Éojulgamentodevalorqueelefaz.Podeseralgoquevocênãogoste,queeunãogoste,masessasopiniões,gostar ou não gostar, serão apenas julgamentos devalor – e, portanto, não quer dizer que seja bomou mal. Pode ser que não estejamos interessadosnessetipodemúsica,comoeunãoestou.Mas, issoé outra questão. De toda a forma, eu tinha de vir.Não devemos nos envolver demais nessas questõesdemasiadamente passionais.

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Meus concertos eram cada vez mais frequentes.Aconteciam muitas vezes no grande auditório do MASPMuseudeArteModernadeSãoPauloAssisChateaubriand,no Museu da Imagem e do Som, no legendário Teatro Lira Paulistana, mas havia também audições no Japão, emPortugalounoCanadá.

Omeutrabalhomusical,desdeofinaldosanos1970,como compositor, estava voltado para aquilo que eu viriachamar de armadilhas lógicas.

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A questão essencial que sempre designou os meustrabalhos foi saber como acontece o conhecimento e como opodemossubverter,porqueapenasadiferençaproduzaconsciência,comotantasvezesdiziaopróprioKoellreutter.

Assim, acabei por estudar a Semiótica de Peirce,neurologiaelógica.

Emanuel Pimenta,concerto no MASP

Museu de Arte Moderna de,São Paulo, 1982

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Gradualmente, Koellreutter e eu começamos ater sérias discussões, especialmente durante as aulas decomposição. Eram fervorosos debates.

Eledefendiaquetodaacomposiçãodeveriaterumaforma,uminício,ummeioeumfim.Euargumentavaqueessenãopoderiaseroobjectivoquandosetememmentearuptura,asubversão,porqueoambientelógicodaliteraturaera exactamente aquele e estávamos mergulhando numoutro universo, da hiper comunicação, de um planeta fortementeinteractivo.

Mas!Paraele,semforma simplesmente não poderia existirpercepção!

Então, eu argumentava dizendo que se a estruturamusicalobedecesseauma lógicadiferente, semprincípio,meio ou fim; se nãomais trabalhássemos com harmonia,

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melodia e ritmo, mas com complexas nuvens de sons ouelementos estabelecidos segundo diferentes princípios deordem,aísimteríamosasubversão,mudançaeaemergênciadaconsciência.

O estabelecimento da forma, como ele compreendia, tinhasidoumarevoluçãodeoutromundo,deumadiferenteépoca.Agora,tudosetornaramaissubtileumaruptura,umametamorfose na música, implicaria uma nova concepção da forma.

- Mas! Sem forma não pode haver percepção! – eleinsistia – Como poderia existir subversão sempercepção?

- E se a forma não mais fosse como a conhecemos, masquepudesseserestabelecidaporcadapessoanoseupróprioactocognitivo,enquantoumaespéciedeambiente? – respondia.

Eu utilizava o conceito de ambiente como é

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compreendidopelouniversodainteligênciaartificial.Assim,passávamos a discutir sobre a construção de autómatas celularesqueeuconstruía.

Naquela época, os meus concertos podiam durarquatrohorasou,algumasvezes,atémais.

- A partir deumdeterminadomomentonãohámaiscomunicação!–elereclamava–Vocênãodevefazerpeças tão longas.

Mas, sob a longa duração das minhas composiçõesresidiaoutroquestionamento.Quandoamúsicapassaaserambiente,torna-senaquiloaquechamamosdeinteligência, produzindo uma transformação, uma metamorfose em todos osnossosvalores,inclusiveoprópriotempo.–euinsistia.

- Então,meu amigo, você não é ummúsico,mas umdesignerdesons!–eledisparou,eeunãopudedeixardelembrarafamosaafirmaçãodeSchoembergsobreJohnCage,segundoaqualJohnnãoeramúsico,mas

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filósofo.Eleconheciamuitobemaquelahistóriaeasua provocação foi tão ambígua como nitidamenteintencional.

Koellreutterpassouaserecusarassistirqualquerdosmeus concertos. Eu deixava bilhetes à sua porta quandoele não estava, mandava convites para a sua casa... mas ele nunca aparecia.

Atéqueumdiaeulhefaleimuitoseriamente,dizendoque era uma vergonha ele se recusar assistir aos meusconcertos. Afinal, eu era seu aluno e amigo! Então, eleprometeu ir ao próximo, mas assegurando que seria umdesastre, devido às minhas ideias.

Embora sempre o admirasse muito e o respeitasse profundamente, eu nãopodia ir contra aquilo que ambosdefendíamos como princípio. Assim, não me importava oqueeleprevia–oquemeimportavaeraoresultado.

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Chegouodiaeoconcertoaconteceu.

Era um concerto para oito violinos, canto, rádio, papel ecomputador.Foiem1983.Vi,atravésdascortinas,queelenãoestavanopúblicoparaoinício.Chegueiapensarque,uma vez mais, ele não iria.

Mas,nomeiodoconcertohaviaummomentoemqueeupodiameretirar,rapidamente,poishaviaumlongosolosobre papel realizado por outros músicos.

Discretamente, saí do palco, fui pelos bastidores,entrei na sala por trás, no meio da escuridão, e vi queKoellreutterestava lá.Tinhachegadonoescuro,depoisdoiníciodoconcerto.Estavasozinho,sentadonumadasúltimascadeiras. O teatro estava ocupado em cerca de dois terços.

Rapidamente, tão discretamente como fui lá, voltei ao

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palco.Nofinaldoconcerto,quandoasluzesseacenderam,tivemossorte,tudocorreubem,eopúblicoaplaudiudurantevários minutos, mas ele não estava mais lá.

Tinhasaídoantesdofim!

Fiquei profundamente indignado. Telefonei e, commuita delicadeza, perguntei se tinha acontecido algo, euestavapreocupadopoisoviranoteatroequandooconcertoterminou ele não estava mais lá.

- Sim meu amigo... assuma o rumo que desejar. Saíantes da peça terminar para não precisar lhe dizer o queeupensodela...Venhaconversarcomigo.

Assim o fiz. Fui falar com ele no seu apartamento.Koellreutter estavamuito nervoso. Disse que eu era umaperdadetempo,quenãocompreendianadademúsica,quetudooqueeufizeranoteatrosimplesmente“nãoera”,“nãoexistia”.Acrescentouqueelenuncaaceitariaomeuconceito

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relacionadoàformamusical!

Aquelaposturaerainaceitável.Elequeriaimpor,atodoo custo, os seus princípios de composição,mas não tinhasidoelemesmoadefender,durantetodaavida,quenuncadeveríamosacreditaremqualquerpessoa,muitomenosnoprofessor?

Não era ele quem sustentava com toda a suadeterminaçãoopermanenteespíritoquestionador?

Escrevi-lhe uma longa carta dizendo muito claramente o absurdo que era aquela situação, denunciando a suanotávelincoerência.

Eraofimdoanode1983.Eutinhaumaúltimaauladoanocomele,masnãofui.Nãoapareci.Eleescreveuumacartaeumamensagem,dizendoquetinhaficadoàminhaespera.

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A sua atitude paradoxal tinha sido chocante paramim.Resolvideixarotempomudararealidade–eutinhaaprendido com ele.

Finalmente, ele telefonou. Tivemos um encontro e uma longa conversa. Falamos longamente de inúmeras questõestécnicasefilosóficas.

Depois desse encontro, a nossa amizade se tornou ainda mais forte.

Asaulascontinuaramnormalmentenoanoseguinte,durantealgumassemanas,semprecomdiscussõesqueeramcada vezmais animadas.Mas, agora, elas eram pacíficas.Eram profundas reflexões sobre a natureza damúsica, dacomunicação, do ser humano.

Para mim, aquelas discussões eram deliciosas, pois

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era uma forma de me manter em profundo e dinâmico questionamento.Eramumpermanenteexercíciodelógica.

O facto de estarmos mentalizados de que apenasdentro de certos parâmetros podemos criar o choque, adiferença, era a sua principal defesa.

Pelo meu lado, eu estava convencido de que todanossa paleta sensorial está inevitavelmente entrelaçada numa grande rede lógica, ou seja numa grande rede deprincípiosdeordem,princípiosdediferenciação.Alterandoparte dessa rede, produzimos uma onda de turbulência ealteramosestadosdeconsciência.Mas,paraisso,énecessárioarmadilharasnossasprópriasmentes.

Nãoapenas, eudefendiaqueaparticipação criativadaspessoaserafundamental–emesmoqueelasfizessemtudo errado, a experiência eraomais importante, porqueestamos sempre mudando, a cada momento e, de facto, não

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existemerros,masvivências.

Percebi que algumas coisa que eu dizia faziam comque ele ficasse intimamente perturbado, como se partedo seu mundo desmoronasse. Mas, poderia ser uma falsa impressão.Asuaexpressãoquasenãomudava.

Elemesmotinha elaboradoo conceito deparadoxo integrante – que equivalia ao princípio elaborado pelocélebrematemáticoStephanneLupasco,conhecidocomoalógicadoterceiro incluído.

Àsvezes,eracomoseeuestivessechegandodeoutroplaneta.Oqueeudefendiapareciaser,numcertosentido,inaceitável para ele.

Por outro lado, aquela situação de permanentetensão me obrigava a estudar cada vez mais, a ir mais e mais profundamente na raiz das questões. O nível das nossas

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aulassetornavacadavezmaiscomplexo.- Vocêéumpositivista!–elemeprovocoucertavez,no

finaldeumaaula.

Mas,comoeupoderiaserumpositivista?Aestruturaque ele estava aparentemente determinado a defender –fundada no princípio, meio e fim,napredicação–eraoquetinhagerado,emtermoslógicos,opositivismo!

Para mim, naquela época, as suas atitudes eramprofundamente estranhas. Eu tinha a sensação de que,mesmocomsimpatia,eleagia intencionalmentede formaaprovocarasminhasreacções,cadavezmaisprofunda eagressivamente,comograndemestrequeera.

- Você deve ir embora doBrasil. Pelomenos durantealgumtempo.Oquevocêestáfazendoaqui?

Num certo sentido, não estariam as suas peçasTanka, ou mesmo o Ácronon, livres da predicação, livres da

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dominação do princípio-meio-e-fim?

Quando eu argumentava isso, ele passava, pacientemente, a explicar novamente os fundamentosformais das suas peças.

Numaoutraocasião,duranteumaauladecomposição,elenãoseconteve:

- Vocêéumidealista!- Porquê?- Ora,porquevocêpretendemudaromundo.- Mas, eu não pretendo mudar o mundo! Eu não

pretendomudarqualquercoisa.Aúnicacoisaéoqueeu sou. E eu sou mudança num mundo em mudança.

Koellreutter ouviu aquelasminhas palavras e soltouumpequenoriso.

- Estábem.Vocêpodechamarcomoquiser.Averdadeéquehácoisasnasuaprópriamentequenãoécapaz

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deperceber.EessascoisaséquefazemcomquenaÍndiasediga,muitasvezes,queomaiorinimigodoserhumanoéasuainteligência,comoumacidentequenosacontecenavida.Porquetudoéilusão.

Eramraízesparaumanovareflexão,quecontinuariana aula seguinte.

Aquela situação me fazia estudar cada vez mais,estruturar cada vez commaior clareza osmeus princípiosestéticos.

Isso aconteceu em 1984.

Inesperadamente, numa das aulas de composição, numsábadoàsonzehorasdamanhã,quandoentreinoseuapartamento,eledisse,logoàentrada,friamente,quenãoseria mais meu professor.

- Eu não tenho nadamais que possa ensinar a você.

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–dissecruzandoosbraçosesemdeixartranspareceruma ponta de emoção na voz. A seguir, imediatamente, convidou-me para almoçar.

Eu estava chocado, profundamente chocado. Mas, mantive-mesereno,tomamosohabitualaperitivoefomosalmoçar.

Duranteo almoço, conversamos sobrepraticamentetudo. Discutimos as ideias de Douglas Hofstadter quetinha lançado o famoso livro Gödel, Escher e Bach – An Eternal Golden Braid pouco tempo antes. Mergulhamos nas enigmáticasideiasdeKurtGödel,quenosfascinava.

Acompanhei-o de volta a casa. Quando nos despedimos, foiaprimeiravezquemeabraçou.Foiumlongo,apertadoeafectuoso abraço.

Koellreutterpraticamentenuncadavaamãoparaas

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pessoas.Atodos,indistintamente,cumprimentavajuntandoas mãos à frente do rosto, como é hábito na Índia e no Japão.

- Émaishigiénico.–brincava.

Aquele dia nos despedimos com um longo abraço.Atitudequeserepetiriasempreduranteosnossosfuturosencontros, até ao seu desaparecimento.

Aquele dia foimuito confuso paramim. Eu adoravaas suas aulas. Com o fim delas, restou um grande vazio.Naverdade,asuadecisãoeraumgrandeelogio.Mas,eleacabava com a nossa relação de mestre e aluno. Por outro lado, ele inaugurava a nova fase de uma longa relação de amizade.

Comaqueleperíododetensão,eletinhameconduziraa um processo de permanente questionamento e a umadedicação cada vez maior aos estudos.

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Asaulasforamsubstituídaspelosalmoços.

Todas as vezes em que ele estava em São Paulo,marcávamos pelo menos um almoço.

A nossa amizade foi rapidamente ampliada. Quando a Margarita estava presente, era sempre muito atenciosa, simpáticaevibrante.

Margarita Schack foi uma das grandes mezzo soprano doséculoXX.Asuatécnicaprimorosaeasuaversatilidadefizeram com que muitos a comparassem com CathyBerberian, também mezzo soprano, esposa do compositor Luciano Berio.

PormaisqueamasseoBrasil,opaísnãotinhadimensãona sua áreapara absorver tanto talento. Cantar era a suavidaeparaissosetornounecessárioviajarcontinuamente.

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Nãoera fácilparaela,poissenosprimeiros temposviajarconstantementeémuitasvezesalgodivertido,comopassardosanospodesetornarextremamentecansativoepenoso.

Paraalémdisso,avidadeumviajantepermanenteéprofundamente solitária.

Mesmo assim, apesar das intensas viagens, da pesada agenda,aMargaritanuncadeixoudeserumapessoaalegre,dinâmicaeexuberante.Quandochegavaemalgumlugar,eraimpossívelnãoolharparaelaimediatamente.

AscontínuasviagenseavidanaÍndiaenoJapãolheampliaram ainda mais o seu universo musical.

Casaram-se no dia oito de junho de 1963. Um anoantes, Koellreutter tinha recebido o prémio da Fundação

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Ford e fora viver durante algum tempo em Berlim.

Doisanosapósocasamento,partiram juntosparaaÍndia.

MargaritanãoapenaseraosonhodeKoellreutter,mastambémumaformidávelexplosãodeenergia.

Em 1985, Luciana e eu viajamos ao Rio de JaneiroespecialmenteparaconheceranovacasadoKoellreutteredaMargarita,queficavanaUrca.

Para se chegar a ela, era necessário entrar numa rua fechada comportõese segurança.Algunsmetros adiante,pareciaqueestávamosnumoutropaís.Eraumaespéciedeilha, protegida de tudo.

Acasaeramuitoconfortáveletinhaumavistafabulosa.O piano de cauda, que antes estava no apartamento das

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Laranjeiras,agorapareciapairarsobreomar.

Margarita não cabia em si de tanta felicidade. Assim que entramos na magnífica sala, ela já tinha aberto umagarrafa de champanhe à nossa espera.

Fazia muito calor, o dia era de sol e o céu estava completamente azul. Conversamos longamente. Foi aprimeiravezqueconverseirealmentecomela.Nointervalodasnossaspalavras,eupodiaverexplodindonosseusolhosbrilhantes, no seu pensamento rápido, uma pessoa culta e cheiadeamoràvida.Naquelaépocaelaestavaespecialmenteinteressadaemfilosofia.

Confidenciou que o seu grande desejo era comprarumcachorroparaaquelanovacasae,muitoespecialmente,um akita, o cão do Palácio Imperial do Japão. Perguntou-me seseuapoderiaajudar.

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Apesardeamarosanimais,nenhumdoscãesquetiveduranteavidatinha sido comprado. Foramsempredadosouencontrados–oquenãoerapossívelnocasodeumraroakita.

Apesardaminhanotávelignorâncianaqueleassunto,quenãoescondi,propus-meperguntaraalgumaspessoasem São Paulo e considerei que, naturalmente, não seriadifícildedescobrirondeconseguirumakita.

Quando cheguei a São Paulo telefonei para uma queridaamiga,MagaliMussi,quenaépocaestavanoinícioda carreira comomezzo soprano. Tínhamosficadoamigosnos anos 1970, na escola preparatória para os examesde admissão na faculdade. Já tínhamos realizado algunsconcertos juntos, especialmente noMASPMuseu de ArteModerna de São Paulo. Para além de ser uma grande cantora, Magali é um ser humano maravilhoso.

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Eu sabia que ela conhecia muitas pessoas e tive aintuiçãodequepoderiaajudar.

Magali sempre foi uma pessoa muito doce, meiga e abertaparaajudarquemquerquefosse.

Doisoutrêsdiasmaistardeelatelefonoudizendoquetinhaconseguidodescobrirumcriadordecãesdaraçaakita emSãoPaulo–aoqueparece,eraoúniconaépoca.

Telefonei imediatamente à Margarita, que tomou oprimeiro avião para São Paulo. O criador morava numa casa muitoluxuosanobairrodosJardins,adoispassosdoclássicoClubePaulistano.

Margarita ficou emocionada e avassaladoramenteapaixonadapelobelocão–que,penso,nãolheterácustadopouco. Era um animal realmente muito belo, com uma forte personalidade.

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O encontro entre Magali e Margarita foi mágico, como sejáfossemgrandesamigasháséculos.

Algunsdiasdepois, aMagali – sempremuitotímida–disse-meoquantodesejariaseralunadaMargarita.Tinhareceiodelheperguntarpoissabiaqueelaeraumadasgrandescantoras líricasemtodoomundoequepraticamentenãotinhahoráriosvagosparanovosalunos.

Conversei com a Margarita e ela se tornouimediatamente professora da Magali, com grande entusiasmo – «Ora! AMagali poderia me ter dito! Ela é uma pessoamaravilhosa,umagrandeamiga!».

Creioquedepoisdisso,Magali tambémfoialunadoKoellreutter.O seu talentonãoparoude seexpandir.Paraalém de uma notável mezzo soprano, ela se tornou numa grande mestra.

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Os meses se passaram e eu não mais me encontrei com a Margarita. Tempos mais tarde, telefonei para o Rio de Janeiro,parafalarcomKoellreutter,maselenãoestava.Elaatendeu ao telefone. Reparei como a sua voz estava sombria, triste, vazia e devastada.

Perguntei,quasequeautomaticamente,sobreocãoakita e ela por pouco não começou a chorar. «Aconteceu algo terrível.O cãonãoexistemais.Nãoqueromais falarsobreisso.Éumcasoencerrado».

Eunãoinsisti.Nuncachegueiasaberatragédiaqueseabaterasobreopobreanimal.Margaritaficouvisivelmentechocada durante várias semanas.

Assim era a relação entre Koellreutter e MargaritaSchack – muitas viagens, muita música, uma profunda admiração e uma mútua cumplicidade aliada a um estado de

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independênciaquenãoeracomumnoBrasil.Muitasvezes,devidoàsconstantesviagenseconsequentesseparações,aspessoasnãocompreendiamaquelarelação.

Para ele, ela era uma deusa. Mas ele nunca demonstrava issopublicamente.Koellreutternuncademonstravaqualquersinal da sua vida privada. Quando o fazia, muito raramente, era inseridonumestritoquadrodeumrelacionamentodeamizade, profundamente pessoal. Quando falava dela para mim, fazia-o sempre com grande admiração.

- A Margarita é uma grande artista. Ela é muitoimportante.

Koellreutter praticamente nunca falava dos seussentimentos.

Aindaassim,eraumhomemprofundamenteemotivo,masapenasaquelesquetinhampartilhadodasuaamizadedurantemuito tempoeramcapazesdeperceberoquanto

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erasensível.

Quando ele falava de alguém, era obrigatoriamente sobrequestõespráticaseobjectivas,jamaissubjectivas.

− Meuamigo,omundodasfofocasnãoéomeu.- dizia sempre, com humor.

Em1985euexecuteiaminhacomposiçãoO Mar, na 18ªBienaldeSãoPaulo.Nãofoifácil.Oprojectoerabastanteaudacioso.Tratava-sedeumconcertoparaquatroconjuntosorquestraisespalhadospeloedifíciodaBienal.

Depoisdetersidooficialmenteconvidadoedeestartudo acertado, a apenas trêsmeses da datamarcada, fuilaconicamenteinformadodequenãohaveriamaisqualquerverbaparaomeuconcerto,masapenasparaosoutros!

De um dia para o outro não havia dinheiro para contratar osmúsicos.Mas,tudojáestavahámuitoagendado!

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ConverseicomoSígridoLeventhal–umadaspessoasmaisfascinantesqueconheci.Koellreutterlhetinhatelefonado.Sígridodisponibilizoutodososalunosdoseuconservatório,desdeque,naturalmente,euosconvencesse.

Passeiclasseporclasseenumúnicodiaeutinhaasquatro orquestras montadas. Mas, teríamos ainda quasetrêsmesesdeensaiosbastanteintensospelafrente.

Durante todo o concerto, O Mar, apenas uma nota musicalétocada.Paraessacomposiçãofizumaanálisedaformação espectral de harmónicos de cada instrumentomusical. Estabeleci uma partitura tomando como baselevantamentostopográficossubaquáticosdoOceanoPacífico,numaregiãopróximadaFossadasMarianas.Quandomaisprofundofosseolocal,maiormassadeharmónicos.

Estabeleci um outro mapa de subtis flutuações de

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afinação. Isso fazia comqueo choquedosharmónicosnoar produzissem mais sons resultantesedaquelaúnicanotamusical as pessoas podiam ouvir um grande número de outras.

A peça foi inspirada em Stimmung de Stockhausen, mas é estruturada e opera de forma bastante diferente.

O Marfoiumgrandesucesso.RecebeuoprémioAPCAdaAssociaçãoPaulistadeCríticosdeArte-secçãodaAICA-eteveváriosartigospublicadosemdiversosjornaiserevistas.

Emanuel PimentaO Mar, Bienal de São Paulo,

1985

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Koellreutter nunca apareceu em qualquer dasapresentações, que aconteceram duas vezes na Bienal deSãoPauloeumaveznograndeauditóriodoMASPMuseudeArteModernadeSãoPauloAssisChateaubriand.

Suaestranhaatitudeprovocavaaminhaperplexidade.Por um lado, era como se quisesse se afastar. Por outro,comosequisessereforçarosnossos laçosdeamizade.Eraprofundamenteparadoxal.

Os nossos encontros eram, agora, sempre aos almoços, longos e cheios de reflexões. Muitas vezes, os almoçosduravammaisdequatrooumesmocincohoras.

Tínhamos o “nosso” restaurante Japonês. Íamossempre lá. Era um restaurante que eu ia frequentementecom amigos muito antes de conhecer Koellreutter e que,coincidentemente, ele também lá ia regularmente.

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Certa vez, levei-o a um restaurante Japonêsespecializado na cozinha do norte do Japão, que tinhaacabado de ser inaugurado, no bairro da Liberdade.

Koellreutter e eu sempre apreciamos a cozinhajaponesa,mas especialmenteos sashimis e os makis, quesãofeitoscomcarnedepeixecrua.Noiníciodadécadade1980aindanãoerammuitososaficcionadosporpeixecruno Brasil.

- Vocêéumdosmeusúnicosalunosquegostadepeixecrú, tal como eu gosto. – disse-me numa das primeiras vezes que fomos almoçar num restaurante Japonês.Averdadeéque,comotempo,onúmerodepessoasquepassouaapreciarpeixecrunoBrasilaumentousensivelmente.Koellreutter conhecia comoninguémosrituaisdamesajaponesa.Bebíamossempresaquéquente–massaquédeboaqualidade.

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Destavez,onovorestaurante,compratostípicosdointeriordo JapãoenãodeTóquiooudeQuioto,prometiaumasurpresa–queacaboupornãosermuitoagradável.

O almoço correu bem e eu voltei lá dois dias mais tardeparajantarcomumapessoaamiga.Tiveumaviolentaintoxicação.Koellreuttertelefonava insistentemente,váriasvezespordia,paraaminhacasa.Pensouqueeutinhasidoenvenenado por fuguequeiriamorrer.

Também conhecido como baiacu, o fuguéumpeixecujoveneno–queé libertadoquandoocortenãoébemfeito,equenãotemsabor–éviolentamenteletal.

Fiqueidoisdiaspraticamenteinconsciente,comfebremuito alta e cheguei a delirar.

Felizmente,nãoerauma intoxicação com fugu e eu sobrevivi.Aindaassim,aquelaexperiêncianãofoisuficiente

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parameafastardasdeliciosasiguariasNipónicas.

Ambos sempre gostamos muito da cozinha Japonesa. Assim que chegávamos aos restaurantes, ele começava aconversaremjaponêscomaspessoasqueserviamamesa.

Ele falava com facilidade nove idiomas – incluindo o HindúeoJaponês.

A atitude de franca amizade, as nossas animadasdiscussões durante os longos almoços, as trocas de ideiassobreestratégiasdecomposição,sobreestética,acercadametamorfose planetária e a sua preocupação comigo eram totalmente opostas ao seu frio distanciamento dos meus concertos.

Pergunteiaelequaleraarazãodeumcomportamentotãoestranho:tãoafectuosoquandoestávamosjuntosetãodistanteapontodecontinuarnãoindoaosmeusconcertos.

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- Meucaroamigo,agoravocêtemdevoar.Eunãopossoestar por perto.

Compreendi imediatamente a razão do seucomportamento–elecontinuavasempreaserumgrandemestre.

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NaquelegrandeeventodaBienaldeSãoPaulotambémestavaJohnCage.OcineastaRodolfoNaninosapresentoude forma muito rápida.

No último dia, quando eu já estava convencido deque não haveria oportunidade para conversar com JohnCage, o Augusto de Campos percebeu o que acontecia eprovidenciou,porsuainiciativaexclusivamentepessoal,umbrevemomentoasóscomele.

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Poucos meses mais tarde, John Cage me convidavapara trabalhar com ele, com David Tudor e com Merce CunninghamemNovaYork.

Então, eu partia para a Europa com a Luciana,inicialmente para Portugal, e em outros poucos meses estavacolaborandocomRenéBergernaSuíça–tambémelese tornaria um amigo para toda a vida.

Em Locarno, onde eu fixaria residência em 2003,colaborei com René Berger e Rinaldo Bianda no famoso LocarnoVideoArtFestival,juntocomNanJunePaik,FrancisFord Coppola, Edgar Morin, Daniel Charles e BasarabNicolescuentremuitosoutros,nasdécadasde1980e1990.

Em 1990 comecei a colaborar com a Baronesa Durini, naItália,emdiversosprojectosparaaTrienaldeMilãoeaBienaldeVeneza,mastambémnarevistadearteeculturaRISK Arte Oggi.

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Em1989,participeinolançamentoparalelodawww world wide web pelo Tim Berns-Lee, em Locarno. Em 1993, semprejuntoaRenéBerger,fizemosaprimeiratransmissãodetelevisãoatravésdaInternetenaquelemesmoano,aindacom René, mas também com Edgar Morin, participei naformaçãoda primeira universidadena Internet. Com JohnCageeMerceCunninghamhouveramconcertosemtodoomundo, mas também outros acontecimentos musicais com obrasminhas,econferências,exposições...Naqueleperíodomuitos dos meus compact discs áudio e livros foram lançados emdiversospaíseseemdiferentesidiomas.

EssasnotíciaspareciamanimaraindamaisKoellreutteremcadaumdosnossosencontros.ComaminhamudançaparaaEuropa,elespassaramaaconteceracadavezqueeuia o Brasil.

- VocêseráumdosúnicosalunosmeusquecontinuarávivendoforadoBrasil.Nãoporque láouaquisejam

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lugares piores ou melhores. São lugares diferentes, apenas isso. Mas, é a sua forma de ser. Quando uma pessoa muda de lugar, a sua música também muda – elasetornaoutrapessoa.SevocêviveremNovaYork,asuamúsicareflectiráassuasexperiências.OmesmoacontecerásevocêficarnaEuropa...

A mudança era, para ele, algo essencial para todas as pessoas.

- A mudança de país dá para o músico uma outradimensão. Ele é obrigado a viver diferentes realidades. Éobrigadoasequestionarcommaisfrequência.

Passamos a falar regularmente por telefone, mas eramgeralmenteconversascurtas–ambosnuncativemosohábito de falar durante longos minutos ao telefone.

Eu sempre telefonava para ele, durante muitas épocas pelomenosumavezpormês,parasabercomoestava.

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Koellreutter fumava cachimbo, nunca charutos. Eutambém fumava cachimbo, mesmo antes de o ter conhecido –eueramuitonovoeporvezeseraobjectodecríticasabertasporfumarcachimbocomaquelaidade.

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 1999

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Influenciadoporamigosnaescolaeucomeceiafumarcigarros quando eramuito novo, aos nove anos de idade.Fumava escondido. Quando tinha dezoito anos, chegueia fumar quatro maços por dia, que equivaliam a oitentacigarros!Aquiloseriaaminhadestruição!Eunadavaeeraflautista–actividadesincompatíveiscomocigarro.

O melhor amigo do meu pai, braço direito na sua empresa durante décadas, e um grande amigo meu, também éAlemão, comoKoellreutter,masnascido emHeildelberg–chama-seAlfredGerardSchwarz–tambémelefoiflautistae sempre foi um amante dos cachimbos.

Fumar cachimbo requer um conhecimento especial,alguns passos sem os quais a pessoa pode até mesmoprovocargravesferimentosnalíngua.Emrelaçãoàsaúde,ocachimbo tem imensas vantagens sobre o cigarro – pois não sepode levarafumaçaaospulmõeseofumogeralmentenãotemtantosprodutosquímicos.

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Assim,AlfredGerardSchwarzfoiumagrandeinfluênciaparaqueeucomeçasseatocarflautaefoimeumestrenaarte do cachimbo, ensinando-me até mesmo a os curar com asmaisvariadasflagrâncias.

Osfumadoresdecachimbotêmosseussegredos,quevãodesdeasuaformaaostiposdefumo.

Assim como Alfred Gerard Schwarz e eu, tambémKoellreutterapenasfumavacachimbosretos–oschamadositalianos.Mas,enquantoqueeuapreciavaespecialmenteosfumos black cavendish, o seu fumo preferido também era a suamarcapessoal:Revelation.

Todavia, aparentemente por conter alguma substância condenada pelos serviços de saúde, o fumo Revelationdeixoudesercomercializadoemdiversospaíses.ApenasnaSuíçaerapossíveloencontrar.Eupasseialevarregularmenteesse

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fumoparaKoellreutter,queoesperavacomansiedade.

Quando nos encontrávamos e eu lhe entregava os pacotesdefumoelediziarindo:

-Obrigado!Chegouaminhasalvação!

Maistarde,jávivendonaEuropa,comeceitambémafumar charutos. Certa vez, aindano início dos anos 1990,numadasminhas idas aoBrasil, perguntei por que ele serecusava a fumar charutos.

- Porqueestragamoslábios.Umflautistanuncadeveriafumar charutos. Eles amolecem os lábios. Por outro lado, o cachimbo é seguro pelos dentes, e os lábios ficamlivres,nãosendoprejudicados.

- Mas,oTomJobimfumacharutos!Eeleéumexcelenteflautista.

- Háumagrandediferençaentreumexcelenteflautistaquenãovivedeconcertoseoutroquevivedeles.Seelefosseumconcertistadeflauta,nãodeveriafumar

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charutos.Detodaaforma,nãoseesqueçadequeoTomusaumapiteiraespecialparacharutos.Comela,ele pode segurar o charuto com os dentes e não com os lábios.

De facto,apiteiradoTomtinhasidodoVilla-Lobos,e foiumpresentedaviolinistaArmindad’Almeida,aDonaMindinha, viúva do compositor.

Outra vez, perguntei como era o Tom Jobim, como eleeraenquantopessoa,naquiloqueapenasa intimidadedas amizades permite conhecer. Como Chico Buarque deHollanda,Tomtambémestudouarquitectura.

KoellreutterforaoprimeiroprofessordoTomJobim,quandoestetinhaapenascatorzeanosdeidade.

TomestudoucomKoellreutterduranteosanosde1939e1940,quelhedeumuitosdosprincípiosquecunhariama

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bossa nova, vinte anos mais tarde. Quando alguém poderia imaginarqueaAlemanhaestá,dealgumaforma,presentenasraízesdabossa nova?!

Muitasvezeselediziadesejarnosapresentar,etambéma um aluno seu da Índia, que lhe escrevia regularmente.Infelizmente,nãochegueiaconhecerpessoalmentequalquerum deles.

Koellreutterrespondeusorrindo:- O Tom Jobim é um homem diferente. Ele gosta de

beberwhiskyedetocarpiano.Gostadeestarcomaspessoas, de conviver. Ele não é um músico fechado, um compositorquevaiparaasuamesatrabalhar,quesefechanumquartoeficaseparadodasoutraspessoas.Ele gosta de estar com as pessoas, de tocar todo o tempo, como se fosse uma diversão. É uma pessoamuitointeressante.Umamigodosseusamigos.Vocêsdeveriam se conhecer. Eu tenho sempre falado de

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vocêparaele.NosencontramosmuitasvezesnoRio.

Durantetodosaquelesanos,acadavezqueestavanoBrasil,eulevavaKoellreutterparaalmoçar.

Os nossos almoços aconteciam regularmente mesmo antesdeeumemudarparaaEuropa.Noiníciodadécadade1980 um dos nossos lugares preferidos era um restaurante chamado Fiorella, no bairro do Brooklin, coincidentemente onde nasci.

Ficava muito distante da sua casa, mas o restaurante era espectacular.

Na verdade, o Fiorella era um restaurante instalado numa antiga casa, muito confortável, com uma excelentecozinha vegetariana. Em todos os ambientes havia muitas plantas e obras de arte. Era um lugar mágico. Eram várias salas, umas muito diferentes das outras, dando a sensação de como se estivéssemos nas nossas casas. Todos os que

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trabalhavam lá eram estudantes universitários. Não haviaplacaouqualquertipode indicaçãona rua.Só ia láquemconhecia.

Muitosanosmaistarde,quandojáviviapartedaminhavidanacidadedeNovaYork,euviriaaconhecerláapessoaquetinhacriadoaquelelugar.ÉMartinPenrose,umartistaplástico,comtrabalhosmuitointeressantes.Contei-lhedasnossasidasaoseurestaurante.EleficouencantadoaosaberqueKoellreuttergostavatantodeestarlá.

Estar no Fiorella era como estar num outro mundo. Tudo era coberto por obras de arte contemporâneas, plantas, flores, com cadeiras muito confortáveis e uma cozinhaexcelente.

Pedíamossemprepelomenosumagarrafadevinhobranco, bem gelado, frascati, italiano.

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Passávamos horas conversando sobre os mais variados assuntos.Umavez,falamoslongamentesobreoestadodamemóriaparaalémdoraio de Schwarzchild em direcção à singularidade de um buraco negro.Comoficariaamemórianuma condição como essa? Seria desintegrada pela força da gravidade? Ou se manteria, apesar das poderosas forças assimétricasdaqueleambiente.

Nãotínhamos respostas, nem formação para as ter.Mas,asreflexõeserammuitointeressantes,enosatiravampara considerações acerca da natureza do tempo e daordem.

Muitos anosmais tarde, quando Stephen Hawkingsdemonstrou que, surpreendentemente, a memória seriapreservada naquelas condições, eu conversava comRené Berger, na Suíça, sobre o mesmo tema. Ficávamosmaravilhados com a revelação de que, afinal, o Universopareceserumformidávelacumuladordememória.

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Tanto Koellreutter como René Berger amavam aciência.Numcertosentido,tudogiravaemtornodela.

ComKoellreutter, todavia,asconversaserammuitasvezes focadas nas diferentes abordagens do Oriente e do Ocidente sobre a realidade.

Mas, para além do Fiorella e dos restaurantes Japoneses do bairro da Liberdade, passamos, já nos anos1990, a frequentar o restaurante Japonês que ficava noúltimoandardoHotelCaesar Park, na rua Augusta.

Em agosto de 1994, quando estive no Brasil, fomosalmoçar lá. Sem que eu tivesse feito qualquer referência,Koellreutterfoidizendo:

- Emanuel,quandoéquevocêiránosvisitarnovamenteno Rio de Janeiro? Da próxima vez, quero convidarvocêeoTomJobimparaalmoçar.Vocêsprecisamseconhecer pessoalmente.

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Oencontro foi acertado para dezembro, quando euvoltaria novamente ao Brasil. Mas, Tom Jobim morreu no dia oitodedezembrodaqueleanoe,infelizmente,nãochegamosa nos conhecer.

A morte do Tom Jobim tocou profundamente Koellreutter,quetinhaumaverdadeiraestimaporele.

Conformeaspessoasmorriam,elemanifestavamaisemaisapreocupaçãosobrecomoeondeviveriaofinaldasua vida.

Aquele almoço no restaurante do hotel CaesarPark foi uma grande surpresa. Quando perguntei sobre a Margarita,comoelaestava,Koellreutterarregalouosolhoseperguntou:

- Mas,vocênãosabe?- Não!Aconteceualgo?Elaestábem?

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- AMargaritasetransformounumafeiticeira!- Numafeiticeira?–nãoconseguiconteroriso,pensei

queeraumabrincadeira.- Ésério.Eunãoestoubrincando.Nãoéumafeiticeira

no sentido folclórico. Chegamos a pouco tempo deumencontromundialdepessoasquelidamcomessasquestões,numailhadoPacífico.Elaémuitoséria.Eesse é um assunto sério. Apenas não é levado a sério pormuitaspessoas.Vocêachaquenósconhecemostudo?Essesencontrossãosobreaquiloqueasciências,comasquaisjáestamosacostumados,nãoconsegueexplicar.Antes,eueracasadocomumafamosacantoralírica, agora estou casado com uma especialista noinexplicável.Émuitointeressante.

Fiqueiboquiaberto.Eunãopodiaesperaraquilo.Nãoqueeutivessequalquerpreconceitoemrelaçãoaomundosobrenatural – que sempre considerei natural. De formahumildeesocrática,sempretiveplenaconsciênciadeque

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nada sei.

Mas,eununcapoderiaimaginarqueumdiaagrandecantora Margarita Schack viria a se dedicar ao sobrenatural.

Perguntei-lhecomotinhasidooEncontronasilhasdoPacíficoeKoellreutterdissecomgrandeseriedade:

- Muito interessante. Foram discutidas coisas muitointeressantes,quenosfazemterconsciênciadecomorealmente nada sabemos.

Naquelemesmoano,MargaritainaugurounacidadedeTiradentes, emMinasGerais, uma instituição chamadaCentro Aura Soma,dedicadaaousodeóleosecoresparaodesencadeamento de um processo de auto conhecimento.

Naquelaépoca,minhafilhatinhacercadequatroanosde idade e eu procurava a melhor forma de lhe dar alguma formaçãomusicalbásica.Koellreuttertinhacercadeoitenta

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anos.Numdosnossosalmoços,perguntei-lhesepoderiamedar uma orientação sobre como eu deveria fazer. Eu estava especialmenteatentoaosmicrotonse,consequentemente,emnãoformatarasuamentetãonovacomrígidosformatostonais.Intuitivamente,elajáestavabastanteorientadaparaopiano,eusouflautista,enãoháquasenenhumaliberdadeemtermosmicrotonaisnopianoenaflautatradicionais.

− Músicosdecordassãomaissensíveisapequenasmudançasdeafinação,atrabalharcomelas.Quandovocêconsideraaflauta,porexemplo,ouaindapior,opiano,todosossonssão“fechados”numrígidosistemadeafinação.Vocênãoadeveriacolocarparaestudarpiano antes dos cinco ou seis anos de idade. Por outro lado,vocêdeveriafazer música, isto é, organizar sons comela,usandoosmaisvariadosobjectos.Vocêpodeusar tudooquequiser,brinquedos, sinos,peçasdemadeira,garfos,papel...Ossonsdosobjectosnuncaseguem o sistema tonal clássico. Quando ela trabalhar a dinâmica, variando a intensidade dos sons, e a sua

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distribuição no tempo, então ela estará consciente da naturezaessencialdamúsica,queestáemtudo.Mas,deveexistirumaordemnabase.Vocêdeveriapassarparaelaalgunsprincípiosdeordem.Eelesdevemsermuitosimplesnoinício.

FizcomaLauraoqueelesugeriu,eeucreioqueissodeu a ela uma formação inicial que lhe abriu diferentespossibilidades em diferentes campos.

Koellreutter sempre perguntava pela Laura. Certavez eu lhe dei algumas fotografias dela, e ele as colocouno seu apartamento em São Paulo, revelando uma grande sensibilidade.

Várias vezes, com crescente insistência, a partir doanode1990,Koellreuttercomeçouapediropiniõesminhassobreparaondeeledeveriasemudarnovamente.Paraquepaísdeveriaseguir.Ondedeveriaviverosseusúltimosanosde vida.

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Ele tinha, então, cerca de setenta e cinco anos deidade.

- Você sabe, eu não vou vivermuitomais. É hora depensaremmeretirar,paraumlugardistante.Queroirpara um lugar distante de tudo. Apenas desaparecer. O quevocêachadeeuirviveremPortugal?Eugostariadeficarmaispróximodevocê.

Durantemeses,procurei informaçõesparaelesobretodas as condições, inclusive legais, para uma possívelmudançapara Lisboa.Mas, tudopareciaestarbloqueado.Afinal,nãoéfácilfazerumamudançadessaenvergaduraaossetenta e cinco anos de idade.

Nãoapenas,antesdoCentro Aura Soma, Margarita e Koellreuttertinhamcriadoum interessantecentroculturalna cidadede Tiradentes, emMinasGerais. Eles adoravamTiradentes.

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Comoseafastardaquilotudo?

Nessamesmaépoca,tambémcombinamosderealizarumacomposiçãomusicalconjunta.

Osmesespassaram,maselecontinuavacoma ideiade se mudar para algum lugar distante.

- Éverdade.Essemeuprojectodemudançaéalgomuitodifícil.Nãoseisevouconseguir.Mas,sintoquedevomorrer em algum outro lugar. Eu gostaria de passar os meusúltimosdiasnumailha...Morarosmeusúltimosanosnumailha.OquevocêachadaIlhadaMadeira?Margarita e eu gostamos muito da Ilha da Madeira. Lá oclimaébomenãoháviolência.

Durante os meses seguintes, tratei de recolher o máximo de informações sobre a Ilha da Madeira eespecialmente sobre o Funchal.

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Eu conheço bem a Ilha da Madeira, onde tenho ido desdemenino.Mas,conhecerascondiçõesparamudançadeumimportantecompositor, jácomidadeavançada,requerumtipodeinformaçãodiferente,muitomaisespecífico.

Durante os primeiros anos da década de 1990, ele insistiumuitasvezesdizendoquegostariasimplesmentededesaparecer,emudarparaumailhaeraumaestratégiaquelhepareciaadequada,comoseelepudesseapenasevaporar,semqueaspessoasdessemporisso.

- Eunãovouviverparasempre.Nemvocê.Essascoisasrelacionadas àmorte sãomuito dramáticas...muitoromânticas. Eu não sou uma pessoa dramática. Nomeu caso, eu gostaria simplesmente de desaparecer. Morarnumailhaseriaumaboasolução.Umasoluçãosimples.

Lembrei-medoquetinhaacontecidoemPetrópolis,

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quandoeletinhaesquecidooaparelhodebarbearnoseuapartamento no Rio de Janeiro.

Koellreuttereraumapessoaextremamentecuidadosacomasuaimagempessoal.Mesmoquandojátinhamaisdeoitenta anos nunca o vi com a barba por fazer, mal penteado, oucomumaroupasuja.

Apartirdos anos1990ele começoua vestir roupasmuitocoloridas.Sempreamesmablusacomgolaolímpica,masagoraazulturquesamuitoforte,porexemplo.

Uma das suas preocupações permanentes era vivercercadode jovens.Nosanos1990, elepassoua se referirfrequentementedeumdosseusalunos,MauroMuszkat,eaojovemartistaplásticoSauloDiTarso.

EletinhaumaprofundaestimapeloSaulo,peloMauro,mas também pela Regina Porto e por tantos outros. São

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muitosnomeseéimpossívelrelacioná-lostodos.

O Saulo nunca chegou a ser seu aluno, mas estava semprepróximodelenosúltimosanos.

Eracomoseelefosseautomaticamenterenovadopelasnovasgerações.Todosenvelheciam,menosele.Naverdade,o seu grande amor nunca foi ensinar, mas sim aprender. Ele estavaperfeitamenteconscientedequenuncaensinamos,apenas aprendemos.

Jánosúltimosanosdadécadade2010encontreicomMarceloBratkeemNovaYork-eele,quetambémtinhasidoseualuno,lembrava-secomemoçãodeKoellreutter.

Osalunosqueocercavamnuncaosentiamcomoumapessoa velha.

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Em 1994, telefonei no dia primeiro de setembro, quinta feira,umdiaantesdo seuaniversáriode setentaenove anos, para o convidar para um almoço. Perguntei se ele estarialivrenodiaseguinte.Disse-mequesim.EuestavanoBrasil por alguns dias. Marcamos uma hora e no dia seguinte o fui buscar.

Fomos almoçar, como fazíamos nessa época, norestauranteJaponêsdohotelCaesar Park, da Rua Augusta.

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Ele não sabia que eu tinha me lembrado do seuaniversário,oufingiunãosaber.Eununcameesquecidosseusaniversários.Senãoestivessenacidade,eusemprelhetelefonasse, de onde pudesse estar.

Mas,aquelediaeraespecial.Elecompletavasetentae nove anos.

Eu lhe ofereci mais um bicho de pelúcia e um livro. Ele ficouemocionado.

- Você é a primeira pessoa a me cumprimentar peloaniversário. – disse, com uma certa emoção na voz, o quenãoeracomumnele.

Ele fazia setenta e nove anos e estava sozinho. Mas, não era algo raro – ele esteve sempre muito sozinho.

- Tenhoumagrandenecessidadedosilêncioedeestarsozinho. São condições essenciais da minha vida.

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Preciso de tempo para estudar, para pensar – dizia.

Resolvi organizar um jantar para ele, poucos diasmais tarde, convidando alguns artistas importantes.Naturalmente,assegureidequeninguémsaberiase tratardoseuaniversário.Eleficariatãoconstrangidoseaspessoassoubessem,queseguramenteserecusariair.Mas,passandodiscretamente, como se fosse um simples encontro entre amigos,aquiloseriacomoumverdadeiropresenteparaele.

Mas, havia um sério problema. Eu não morava mais no Brasiljáhaviacercadedezanosenãoencontravaumlugarondepoderíamosrealizaraqueleencontro.

Ninguém se dispunha a ajudar. Até queinesperadamenteuma senhoraqueeu conhecia desdehámuitosanos,tipicamenteburguesa,comumacasaenfeitada de forma bastante pretensiosa e muito kitsch, cheia de quadros decorativos pelas paredes, para não dizer dos

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livros e garrafas de whisky para enfeitar o ambiente, muito amavelmenteseofereceuparaquefizéssemosoencontrolá.Essaeraaaparênciadolugar.

Noinício,chegueiavacilar.Mas,apessoaeramuitosimpáticaehonestamentegenerosa.Aqueleeraoseumundo.Quem éramos nós para julgar o mundo onde as pessoasvivem?Porqueaspessoastêmdeesgrimarpreconceitos?Afinal, não é estemundo concreto a nossamatéria primaessencial? Não trabalhamos todos para as pessoas? Ora,nãofazemososnossostrabalhosparaartistas,masparaomundo,paraaspessoas,sejamquemforem!

Para Koellreutter – que lutou toda a vida contrapreconceitos de qualquer natureza – aquela casa nãorepresentariaqualquerproblema.

Lembro-medequeentreosartistasláestavaCláudioTozzi,queeraumgrandeamigomeu,oMaurícioNogueira

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Lima,queduranteváriosanosfoiumirmãoparamimequedesapareceria poucos tempo depois, para além de muitos outros.

Koellreutter vestia um fabuloso casaco indianovermelho bordado com figuras coloridas. Ele estavavisivelmentefeliznaquelanoite.Eramquaseoitentaanosdeidade.

KoellreuttereEmanuel Pimenta,

São Paulo, 1999

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Mas, a aparência fortemente kitsch da casa afectou pelo menos um dos artistas, amigo do Cláudio, que nãoconseguiu estar lá durante muito tempo. Suportou pouco mais de meia hora e saiu desesperado.

Quando, depois da meia noite, levei Koellreutter àsuacasa,eledisseoquantotinhaapreciadoterencontradoalguns velhos amigos, e ter conversado animadamente com aquelaspessoas.

- SabeEmanuel.Comotempo,nósvamosficandocadavezmaisisolados.Évida,meuamigo...éavida...Eupraticamente não saio mais. Não tenho mais comquemconversar,comquemtrocarideias...Parafalarsobre coisas interessantes. No próximo ano fareioitentaanos...comootempopassou!

Nessa época, ele trabalhavanafinalizaçãodaóperaCafé,quetevelibretodoMariodeAndrade.Foiumtrabalho

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queconsumiuumlongotempo.MariodeAndradeterminouo libreto em 1942, Koellreutter começou a escrever apartemusicalquandoviviaemTóquio,entre1974e1975.Terminaria apenas em 1996. Foram vinte e dois anos de elaboração!

Ao longo de 1996, conversamos muitas vezes sobre aquela ópera. Foi um período extremamente animadoparaele.Koellreutterpareciaestarmuitofeliz,sempreemcontacto com muitas pessoas.

Ele parecia não envelhecer. Parecia ter simplesmente parado no tempo. Foi se tornando cada vez mais vegetariano e,pelomenosquandoestavacomigo,nuncaexagerounasbebidasalcoólicas.

No início de 1998, compus o concerto Difesa della Natura,paraumfilmesobreJosephBeuys,dirigidoporMarcoAgostinellieproduzidoporLucreziaDeDomizio,Baronesa

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Durini,naItália.EsseconcertofoidedicadoaoKoellreutter.

Eu játinha lhededicadooutroconcertoquinzeanosantes,em1983.Eraumconcertodemúsicaelectroacústicacom sistemas digitais, utilizando sintetizadores, fitasmagnéticas,peçasmetálicas,pequenoconjuntodemetais,anões,locutoreseumcomputadorcontroladoporbatimentoscardíacos.AprimeiraaudiçãomundialaconteceunoteatrodoSESCPompéia,emSãoPaulo.

Emanuel Pimenta,partituradoconcerto

dedicadoaKoellreutter1983

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Naquelemesmoanode1998,umcompact disc com o concerto Difesa della Natura foi publicado na Inglaterra, e oenvieiimediatamenteaoKoellreutter.Assimquerecebeu,elemetelefonou,agradecendomuitoedizendoqueficaramuito emocionado.

Alguns amigos comuns escreviam ou telefonavam paradizersobreoquantoKoellreuttertinhagostadodaquelamúsica.

Emanuel Pimentaconcerto Difesa della Natura (1998),

dedicadoaKoellreutter,performancenasmontanhasSuíças,

2004

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Para mim foi uma sensação estranha, pois durante todos aqueles anos ele tinha sempre semantido extremamentedistantedejulgamentosacercadosmeustrabalhos.

Mesmoquandoeuestudavacomele,especialmentenas aulas de composição, ele nunca afirmava que umdeterminadotrabalhoestavabomouruim.Omáximoqueeracapaztinhasidoperguntarcomoeuconsideravaaquiloquetinhafeito.

- Meu amigo, nós todos sabemos o que se passa.Perguntamos aos outros porque não conseguimosouviranóspróprios.Eàsvezesnãoconseguimosouvirporque falamos demais. Assim, você é quem deveresponder acerca daquilo que faz. Deve aprender asaberresponderasipróprio.–eletinhaditomuitosanos antes, numa das nossas aulas.

Agora, ele dizia – embora nunca a mim directamente –quegostavadosmeustrabalhos.Eaquilosoavacomouma

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interessante surpresa, algo inesperado.

Algumas semanas depois de lhe ter enviado Difesa della Natura, passei por São Paulo. Encontrei-o muito animado,emexcelenteforma.

Embora ele nunca falasse dos seus sentimentose evitasse julgamentos de valor, quando entrei no seuapartamento percebi que dois dos compact discs quetinha enviado, com amúsica a ele dedicada, estavam ali,intencionalmente colocados um sobre o piano e outro no Kremlin–pequenasalacheiadecoloridosbonecosdepelúcia–comoseestivessemnumaexposição.

Eraumaformatímidadedizeroquantotinhaapreciadoaquelahomenagem.

Enquanto estivemos no apartamento, ele não disseuma única palavra sobre a composição ou sobre o compact

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disc – e eu não perguntei.

Apenasdepois,quandoalmoçávamoselecomentou,de forma muito abreviada, que tinha gostado da peça eagradeceu,novamente,adedicatória.

Aquele foi um ano cheio de novidades para oKoellreutter. Três anos antes ele tinha celebrado oitentaanos. Em poucos meses a instituição Brasileira Funarte Fundação Nacional de Artes lançaria em formato compact discumdiscoquetinhasidolançadoem1985,comobrasdediversos compositores dedicadas a ele.

OcompactdisccontoucomumapeçadoKoellreutter,Constelações, composta entre 1982 e 1983, quando euestudava com ele, elaborada para voz, sete instrumentos solistasefitamagnética.Elapartedeumtrabalhodopoetaconcreto Alemão Eugen Gomringer, nascido em 1925 eadmirador do pioneiro e famoso grupo Brasileiro de poesia

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concreta Noigrandes.Opoemadiz:Tua hora meu poema / Tua hora meu silêncio / Tua hora meu sonho.

Constelações de Gomringer é uma obra de caráctertransnacional e transcultural, com a fusão de palavras dos mais diversos idiomas em todo o mundo - como sempre acreditouKoellreutter.

AssistiàpremièremundialdeConstelações em 1985, quecontoucomoKoellreuttercomoregente.Elaprovocoutodo o tipo de discussões no público. Foi uma verdadeirapolémica.

Aquelecompactdisccontou,ainda,comobrasdeWillyCorrêadeOliveira,JorgePeixinho,CláudioSantoro,RicardoTacuchian,RodolfoCoelhodeSouzaeGilbertoMendescoma peça O Meu Amigo Koellreutter.AengenhariadesomficouaocargodocompositorConradoSilva.

VolteiparaaEuropa.

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Alguns meses mais tarde, ainda em 1998, passei novamenteporSãoPaulo.Comosempre,combinamosdeiralmoçar–eumavezmaisnorestauranteJaponêsdohotelCaesar Park, na rua Augusta, em São Paulo.

Mas, desta vez ele pediu para não o buscar no seu apartamento. Iríamos independentemente e nosencontraríamosnorestaurante.

- Amanhã, eu terei uma reunião muito importante pela manhã.Mas, eu creio que não vai demorar. É algomuitosério.Eucontonoalmoço.Esperoquedêtudocerto.Vocêdevetorcerpormim.

Pergunteisobreoqueera,se lhepoderiaserútildealguma forma.

- Amanhãconversamos.Nãohánadaquevocêpossafazer.–foiaúnicacoisaquedisse.

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Fiqueiinquieto.Asuavozestavaséria.Oquepoderiaser de tão sério? Teria sido convidado para algum trabalho importante? Algum desafio inesperado? Apesar da idade,tudo seria possível com ele. Sugeri, uma vezmais, que ofossebuscar,ondequisesse.Nãoaceitou.Insisti.Aindaassim,recusou.

- Amanhã conversamos. – e encerrou a conversa.

No dia seguinte, cheguei ao restaurante quinzeminutosantesdahoramarcada,comosemprefaziaquandoacertávamos um lugar para nos encontrar. Pela primeira vez, eleseatrasou.Fiqueiumpoucopreocupado.Comcercadevinte minutos de atraso ele finalmente apareceu. Estavafirme e decidido como sempre,mas com um olhar sério,preocupado.

Perguntei, muito delicadamente, se a reunião lhe tinhacorridobem.Elesevoltouparaajanela,comumolharperdido, e acenou a cabeça.

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- Depois falamos sobre isso... – e eu, naturalmente, resolvinãoinsistir.

Eleestavavisivelmenteabatidoecomeceiaoanimarcom os mais variados assuntos.

Conversamos sobre a política brasileira, sobrequestões macro-económicas mundiais, sobre filosofia,descobertascientíficas,revoluçõestecnológicas.Almoçamose,gradualmente,oseuestadodeespíritoalertaeanimadofoi voltando ao normal.

Mas, eu podia perceber que algo de muito sériocontinuavaaoincomodar.

Nofinaldoalmoço,elemeolhoucomumaexpressãomuitograveerevelouoquetinhaacontecido.

- Emanuel, tenho um segredo para lhe contar. Mas, é algoextremamenteconfidencial.Ninguémsabeepor

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enquantoninguémdeverásaber.Vocêtemdemantersegredo. É sobre a reunião que tive nesta manhã.Acabei de voltar do médico... há poucos minutos. Vimdirectamenteparaorestaurante.Porissoeumeatrasei.Vocêéaprimeirapessoaa saberenão sei,ainda,aquantasmaiscontarei.Fizalgunsexameseomédicoconstatouqueestoucomalzheimer.

Oqueeledissefoicomosetivessecaídoumgrandemeteoro sobre a Terra.

Tudomudou,todaarealidade,imediatamente.Fiqueisubitamente pálido. Ele tinha lágrimas nos olhos. Mas,continuavafleumáticoetácito,comosempre.

Pergunteiseeletinhaabsolutacertezadodiagnóstico.A sua aparência era absolutamente normal. Tínhamosconversado durante todo o almoço sobre os temas mais diversos e mais complexos. Em nenhum momento ele

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apresentouqualquerfalhadememória.Aliás,eutinhamaisproblemasparamelembrardenomesdoqueele.Pergunteicomotinhadescobertoalgotãograve.

- Todos os exames indicaram isso, com clareza.Infelizmente, não há margens para dúvidas. Repentinamente comecei a me esquecer de coisas.Tudo começou relativamente rápido. Algumas vezeseusaíadecasaedepoisnãomelembravamaisondeestava, o que estava fazendo ali ou para que tinhaido num determinado lugar. Esses esquecimentoscomeçaram a ser mais frequentes e passaram aacontecer também com coisas menores. Decidi ir a um médico,meuamigo.Fizemostodososexames.Estouvoltandoagoradelá.É...meucaroamigo...essaéavida...Poressaeununcaesperava...Mas,nóspodemosesperar esse tipo de coisas? Nunca pensamos quepode acontecer connosco.

Perguntei se haveria alguma saída. O que poderia

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ser feito? Se haveria alguma solução. Ele riu e suspirou discretamente.

- Saída?Não...Nãohásaída.Éoquemeespera.Enãoénadabom...nadabom...serámuitodifícil.Temposmuito difíceis à frente.Umfinalmuito difícil,muitotriste...

Subitamente,eleficouparalisadocomoolharperdidodurantelongossegundos,comoseomundotivesseparadonaqueleexactomomento.

Tudosetornarasilêncio.

Eu não podia dizer uma palavra, a minha alma estava estrangulada.Voltou-separamimedissecomafirmezadesempre:

- É...meuamigo...assiméavida.Nãoháqualquercoisaqueeupossafazer.Éterrível.

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Ficamos ainda durante vários minutos no restaurante, atéquetodostivessemidoembora.Conversamoslongamentesobre a vida e a morte, sobre as metamorfoses da vida, sobre o dharma, sobre o karma,sobreciênciaesobrereligião.

Dali, seguimos para o seu apartamento. Mas, eu não cheguei a subir. Parei o carro de forma irregular à frente da portadeentradadoedifício.Saíparanosdespedirmoseeleme abraçou demoradamente.

Anotíciasobreadoençatinhasidodevastadora.

Nos meses seguintes, fomos conversando pelotelefone. Eu não voltei a ir imediatamente ao Brasil.

Nas várias conversas telefónicas ele me pareciabem, iguala sempre.Aquelas conversas se tornarammaise mais longas, como se procurássemos, de alguma forma, compensarainevitáveldistânciafísica.

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Evitávamos falar sobre a doença. Eu apenas insistiaemqueeledeveriaverificarcomoseumédicoacercadosbenefíciosdogincko biloba e do fosfatidilserina,queentãoele não conhecia.

As semanas se passaram e ele me parecia tão bem queeuchegueiaimaginaralgumarevoluçãodamedicinanotratamento da doença.

Começamos a colocar em prática os planos para anossacomposiçãoconjunta.Houvealgumasdificuldadesnoinício.Eleachavadifícilfazermosumtrabalhojuntosestandotãodistantes.Sugeriquefizéssemosduaspeçasdiferentes,para serem juntas no final – como sempre trabalhei,inspirado em Antonin Artaud, mas, naturalmente, também emJohnCageeMerceCunningham.Elemedesafiouparaencontrarmosoutrasolução.Chegamosacogitarfazerapeçaem fragmentos, com idas e vindas, cada um preenchendo

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com algum novo elemento a cada passo. Mas, o contacto humano, o debate, o brainstorming era algo fundamental para ele.

NessaépocaelefoiprofessorconvidadodoInstitutodosEstudosAvançadosdaUniversidadedeSãoPaulo.

Em outubro de 1999 eu cozinhava em minha casa para unsamigosemLisboa.Prometiamtrazerumapessoamuitoespecialquetinhachegadonaqueledia,vindodoBrasil.

Surpreendentemente,oarquitectoeurbanista JorgeWilheimentroupelacozinhadecasa!Euotinhaconhecidomuitos anos antes, no início dos anos 1980, quando eraestudantedearquitectura.OnossoencontrotinhasidonaEmplasa, queeraumaempresadedicadaàelaboraçãodoprimeiro plano director da cidade de São Paulo – onde o Jorge colaborou.

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Foiumagrandesurpresaoencontrarquasevinteanosmaistarde,emLisboa,naminhacozinha!

Jorge Wilheim tinha sido aluno do Koellreutter naEscola Livre de Música, criada em 1952.

Conversamos longamente sobre a situação políticabrasileira, sobre os problemas da violência urbana, dacorrupção generalizada, da educação.

Então, ele comentou ter se encontrado por acaso com Koellreutter,diasantes,caminhandopelaAvenidaSãoLuiz,emSãoPaulo.ConversaramsobreDon Giovanni de Mozart. Jorgecomentouqueoachoumuitoenvelhecido,masqueestavacomboamemória.

Naturalmente,eunadalheconteisobreoalzheimer. Mas, fiquei aliviado ao saber que as impressões do JorgeWilheimeramtãopositivas.Koellreuttertinhaquaseoitenta

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ecincoanosdeidade,eénaturalqueaparentasseestarmaisvelho.

No mês de novembro daquele ano, passei por SãoPaulo e fui almoçar com Koellreutter, como era a nossatradição.

Ele me pareceu estar muito bem. Áurea – quetrabalhava na sua casa de São Paulo havia muitos anos – estava sempre presente.

Duranteonossoalmoçoelenãoapresentouqualquerproblemadememória.

- É...meuamigo... euestoume sentindomuitobem.Aliás, sempre me senti muito bem. Quando eutinha aqueles “apagamentos”, nãotinha consciênciadeles,naturalmente.Assim,mesmoquandotinhaosproblemasdememória,sentia-mebem.Mas,agoraeutenho de tomar medicamentos durante toda a vida e

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não posso fazer certas coisas. Toda a minha alimentação foialterada.Bebidasalcoólicasestãocompletamenteproibidas para mim. Muitas coisas mudaram na minha vida... muitas coisas... Tive uma pequena isquemiacerebral.Omédicomeavisouqueagoravaicomeçaradecadência.Disse-mequeéinevitável.Estouvivendoosmeusúltimosmomentosdenormalidade.Eutereitemposmuitodifíceisàfrente...eestãopróximos.Omelhorédeixarmosdelado,porenquanto,osnossosplanos para uma composiçãomusical em conjunto.Daqui para a frente, tudo vai ser muito difícil paramim.

Não havia como não concordar. Eu sabia que se adecadênciacomeçasse,anossacomposiçãoconjuntanuncairiaexistir.

Repareique,apartirdessaépoca,aproximadamenteem1999,assuasentrevistasdeclaraçõespúblicascomeçaram

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a mudar rapidamente, tornando-se mais animadas. Nãoapenas,elassetornarammuitomaisfrequenteseelepassouafalarmaisvivamentedasuavidapessoal–algoquenuncalhefoicaracterístico.

Foicomose,subitamente,eletivessesetornadomaisexpansivoecontraditóriocommuitodoquesempreotinhacaracterizadoeoquetinhadefendidoaolongodavida.

Assuasdeclaraçõeseentrevistassetornaramcoloridascomimagensquechegavam,acertoponto,aserinfantis,porvezes negando factos históricos, outras vezes exagerandocenas familiares, incluindo nelas elementos tácteis como empurrõesoupontapés.

Foicomoseasuapersonalidadedirecta,filosoficamenteprecisa, desafiadora, radical, impassível e aparentementepoucoemocional,desselugaràfiguradeumvelhobrincalhão,cheio de imprecisões, contradições, pouco profundo em

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termos filosóficos, bonachão, utilizando gírias e popularesfigurasdeexpressão.

Em alguns momentos passou a manifestar até mesmo um sentimento nacionalista em relação ao Brasil – algototalmentecontrárioaoquetinhamanifestadodurantetodaa vida.

- Todosospaíses,todasasculturas,todasasreligiõeselivrossagradossãointeressantesetêmimportantesvalores, lições que podemos aprender. As religiões,enquantoinstituições,assimcomoosEstados,apenasdividem as pessoas. Quando você vai a um paísdiferente,procureveraquiloquemaisocaracteriza.NoBrasilsãoasnovelasdetelevisão.NosEstadosUnidossãoosfilmesdecinema.Cadapaístemasuaformade intercomunicação típica. Se você observar essesmeioscomosefosseumextraterrestre,serácapazdecompreendermelhor os valores daquela sociedade.Nósdevemos,todos,sercidadãosdomundo,livresdos

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conflitos interssociaisou interculturais.Nãohá lugarpara nacionalismos ou preconceitos. – Koellreuttertinhameditoissocercadevinteanosantes.

Agora,apartirdofinaldadécadade1990,aspessoascomquemeleconversavaeatémesmoalgunsexperientesentrevistadores pareciam não perceber os seus novos limites entre fantasia e realidade –mesmo porque até então eleraramentedavaentrevistas,principalmentequandovisavamasuahistóriapessoal.

Telefoneiparaele,emSãoPaulo,emjaneirode2000,de Lisboa, onde eu vivia. Ele me pareceu bem. Mas, falamos pouco.

Eu tinha passado vários dias, entre dezembro ejaneiro,nas ilhasSeychelles,escrevendoo livro John Cage – O Silêncio da Música, e depois de uma breve passagem porLisboa,fiqueiviajandoconstantementeentreaItáliaea

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Suíçaparaconcertoseexposições.

Essegrandenúmerodeviagens fezcomqueeunãofalassecomKoellreutteratéaomêsdeabrilde2000,quandopassei novamente por São Paulo.

Telefonei para combinarmos um almoço, como sempre fazia.Mas,elemepareceuperdido,muitovacilante.Nomeiodanossaconversapelotelefone,esqueceu-sedequemeuera.Perguntoucomquemestava falando.Depois voltouasaberquemeuera,comoseumaondalhetivesseresgatadoamemória.Aquilomedeixoumuitoabatido.Aindaassim,combinamos o nosso almoço para dali a dois dias, numa quintafeira.

Eu sabia como o JorgeWilheim desejava estar comKoellreutter.TelefoneiparaoJorgeecombineidealmoçarmostodos.

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DulceCabrita,queridaamiga,grandecantoramezzosoprano Portuguesa, que trabalhou intensamente juntoaocompositorFernandoLopesGraçadurante todaavida,também estava em São Paulo. Joanna, esposa do Jorge, muitogentilmenteinsistiuemquefôssemostodosalmoçarna casa deles.

Contei confidencialmente ao Jorge que Koellreuttersofria de alzheimer. Era meu dever o dizer. Ele foi muito atenciosoeinsistiuparaquemantivéssemosoquetínhamosplanejado.

Naquintafeira,diavintedeabril,fuibuscarKoellreutternoseuapartamento,comotinha feitoao longodemuitosanos.Comosempre,toqueiacampainhaedeialgunspassospara trás. Mas, agora, pela primeira vez, a porta não demorou aabrirequemapareceunãofoiele.Quemaabriuparamereceber foi a Áurea.

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Quando a porta abriu, eu o pude ver do outro lado da salaolhandofixamentepela janela, sentadoàmesa,ondedurante tantos anos eu estudara com ele.

O seu olhar estava perdido. Vestia uma blusa azulturquesa, uma espécie de bata feita de seda. Levantou,caminhou na minha direcção, agarrou os meus ombros e me olhoudemoradaefixamente.

Nãoeraumolharseguro.Osseuslábiosjánãoeramrectos e rígidos como antigamente. Estavam mais soltos,maisflácidos.

- Comoébomover...comoébomover.–repetiu.–Háquanto temponãonos vemos?Dois anos? Já sepassaram dois anos?

Fiqueiprofundamenteconstrangido,semsaberoquedizer.«Sim,doisanos!»–aÁurearesumiu,comosecolocasseumpontofinalnaquestão.Maternalmente,elapareciase

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preocuparmuitocomele.Verificavaseestavabemvestido,se não se esquecia de nada, se a sua roupa estava bemarrumada.

Koellreuttermostrouumsorrisovacilanteepudeverque já não tinha alguns dentes. Cambaleou um pouco. AÁureaestavaeufórica–dissequeeleficavasemanasfechadoemcasa.Praticamenteninguémmaislhetelefonava.

Entretanto, a sua aparência geral eramuito boa. E,rapidamente,a suamemóriapareceuvoltareele jáeraomesmoKoellreutterdesempre.

- Comoestãoasuamulhereasuafilha?Vocêdeveriavirmaisvezesaqui!–faloucomafirmezaqueanteslheeratãocaracterística.

Descemospeloelevadorepudeperceberqueumdosseus olhos estavabaço, como setivesse sido ligeiramentemanchado de branco. O meu olhar não lhe passou

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despercebido. Explicou-me que estava com catarata em ambososolhosequejátinhasidooperadonumdeles.

Aquelarápidaresposta,apresençadeespíritoeasuacapacidadedeperceberoqueeuestavapensando,aliviouosmeusreceiosdequejáteriasidodefinitivaeprofundamenteisolado pela doença.

Eutinhadeixadoocarronumestacionamentoláperto,a poucas ruas de distância. Luciana preferiu ficar fechadadentro do automóvel, commedo dos assaltos, que erammuitoseviolentosnaquelaregião.

Na ida ao estacionamento, Koellreutter caminhounormalmente,compassosrelativamenteseguros,comoemoutros tempos.Antes,eledisparavaà frente–eeradifícilacompanharosseuspassoscheiosdeenergia.Agora,íamoslado a lado, eu sempre fazendo muita atenção a todos os seus movimentos.

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Quando chegamos ao estacionamento, Luciana – sempremaravilhosa–saiuepercebiqueKoellreutterficoumuito emocionado. Eles não se encontravam há cerca de quinze anos! Era como reencontrar uma pessoa querida,alguémdafamília.

NocaminhoparaacasadoJorgeedaJoannaWilheim,elecontou,muitoanimado,queumdosseusfilhosestavamorando na Inglaterra. A Margarita teria se mudado definitivamente para Tiradentes, Minas Gerais, ondetinhamcriadoumafundação.Conformeeleiacontandoassuas novidades tambémperguntava, de vez emquando erepetidamente,háquantotempovivíamosforadoBrasil.

- Háquantotempovocêfoimeualuno?- Há uns vinte anos. – respondi.- Nãoépossível!Parecequefoiontem!- Éverdade...–eurespondiasorrindo.Defacto,também

para mim parecia ter sido ontem.

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- Para onde estamos indo agora? – a sua pergunta era desconcertante...

- Almoçar com o Jorge Wilheim. Lembra-se dele? –perguntei. Tínhamos falado durante longosminutosnodiaanteriorsobreaquelealmoçoeoJorge.

- Sim, naturalmente. Foi meu aluno.- A sua esposa, Joanna, é uma brilhante psicanalista.

– acrescentei.- Entãoelaémuitoperigosa!–brincouarregalandoos

olhos e rindo gostosamente.

Paramos num semáforo durante longos momentos. Ao ladohaviaumapequenabancaimprovisadadeumvendedorambulante, cercado de coloridos brinquedos e balões deplástico.

Koellreutteradmiroumaravilhado,quasehipnotizado,paraaquelaexuberânciadecoresedeformasquepassavadespercebidapelaspessoasquecaminhavampelacalçada.

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Inesperadamente, uma mulher muito suja, comcabelos emaranhados, mãos negras de gorduras e cinzas, cicatrizes nos braços e no rosto, vestido velho e rasgado,quasesemdentes,aproximou-secolandoorostoaovidrodocarro,mesmoao ladodoKoellreutter,pedindodinheiro.Ajanelaestavafechada.Eleaolhavaadmiradocomosefosseumacriança,sorrindoingenuamente.Amulhergesticulavade todas as formas e ele achava muito engraçada e inocente aquelacenadramática.

JorgeWilheimnosesperavanoportãodasuacasa.Oencontro foi claramente uma emoção para Koellreutter.OJorgetinhasidoseualunocercadequarentaanosantes.

DulceCabritajátinhachegado.Sentamosinicialmentetodos na sala e conversamos sobre generalidades do Brasil e de Portugal.

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EuolhavaparaKoellreuttere,emalgunsmomentos,parecia que ele não estava compreendendo o que nósfalávamos. Mas, de repente, ele parecia entrar em sintonia e fazia uma brincadeira, com alguma observação aguda e espirituosa.

Joanna o observava com atenção.

Comoeletinhamudadoemtãopoucassemanas!

Impressionante e, embora trágico, era fascinante perceber como o seu desligamento do mundo não era linear e gradual. Acontecia por saltos. Ele apagava e voltava. Quando voltava não era pela metade. Quando se reconectava ao mundo, era capaz de insights,deinterpelaçõesinteligentes,complexas.

Mesmo podendo perceber aqueles“desaparecimentos”, todos o trataram com imensa

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cordialidade, carinho e atenção – como se nada de estranho estivesseacontecendo.

Koellreutterestavaimensamentefeliz.Eficamostodosprofundamenteemocionadoscomasuavisívelfelicidade.

O almoço foi maravilhoso. Joanna tinha preparadouma verdadeira festa de babette. Começamos com umrefinadosouflédehaddockefigos.Seguiram-sebeterrabasagridoces, cebolas caramelizadas, farofa com avelãs, arroz selvagem e uma carne – que deveria estar deliciosamas,comosouvegetariano,nãoexperimentei.

KoellreuttereJorgeWilheim,

São Paulo, 2000

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Para além de brilhante psicanalista, Joanna é uma grandeartistadacozinha.

Semquetivéssemosplanejadoesemquesedissesseumaúnicapalavra,ficounoarasensaçãodequeaqueleeraum encontro de despedida, a celebração de uma vida.

Nos seus momentos de lucidez, Koellreutter erabrilhante,comosempre.Nosmomentosemqueseapagava,era como se estivesse isolado, num outro mundo, numailha.

O longo almoço correu maravilhosamente, em paz e com muita alegria.

À saída, o Jorge lhe fez algumas perguntas sobre opassado.Observeiquedessavez,oapagamento foi parcial. Koellreuttereracapazdeselembrardealgumascoisas,mas

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nãodeoutras.Assim,aflutuaçãoeranãolinearemtodosossentidos.

Também foi curioso observar que num dadomomento,opróprioKoellreutterpraticamentejustificouassuas ausências dememória como se estivesse totalmenteconsciente delas e como se se tratasse de um processo natural.

- Nãosoucapaz.Desculpe-me.Issoéassimmesmo.Àsvezeseupercoamemória.Àsvezesnãoestouaqui.Mas, em seguida, eu volto... – disse brincando, com muitasimpatia.

- Eu compreendo... – respondia o Jorge.

Aquelediálogofoimuitoinesperadoparamim.Apesardosseus“apagamentos”haviaumainteracçãoeumquadrodeidentidademútua.

Finalmente, foram as despedidas e entramos no carro

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– Luciana, Koellreutter e eu – para que o levássemos devolta ao seu apartamento. Durante o percurso, ele foi me perguntando diversas vezes se eu sabia onde ele morava.

- Vocêpodemefazerumfavor?–perguntou.- Lógico!- Poderia transmitir um forte abraço ao Augusto de

Campos?- Naturalmente,comprazer.- Você sabe onde eu moro? Pois eu me mudei

recentemente. Agora, vivo na Avenida São Luiz...

EletinhasemudadoparaaAvenidaSãoLuizhácercadetrintaanos!

- Vocêfezaliçãodecasa?- Mas!Eunãosoumaisseualuno...- Nãoé?!

Eeutinhadelheexplicar,commuitacalmaecuidado,queotempotinhapassado,queelenãoselembrava,mas

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queestavatudobem...Nessesmomentos,elepareciaficarmuito inseguro e perdido.

Ele flutuava entre a consciência, a inconsciência emomentos no passado.

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 2000

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Nãopodíamosestacionarocarroàfrentedaentradadoedifícioondeelevivia.Nãoerapermitido.Parei,novamentedeformairregular.Saíparanosdespedirmos.Abraçamo-nos.Mas,quandoeulhedissequenãoiriaemboraenquantoelenão entrasse e eu o visse sendo acompanhado pelo zelador, Koellreutter ficou novamente perdido. Naquele exactomomento,elejánãosabiamaisondevivia,qualeraoedifícioonde estava o seu apartamento – embora estivéssemosexactamenteàsuafrente.

Com muita delicadeza, como se fosse algo natural,pegueipeloseubraçoeoleveiatéaoedifício.Pediaozeladorparaqueoacompanhasseatéaoapartamento.

Ele tinha, subitamente, mergulhado num vazio – oquenãoaconteceuemqualquermomentoantesduranteonosso longo almoço.

Mais tarde telefonei perguntando à Áurea como ele

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estava.Soubequetudotinhacorridobemequeeleestavacalmo e muito feliz.

Foram momentos muito impressionantes. Fiqueimuito triste. Profundamente triste.

Nosábadoseguinte,recebiumtelefonemadoSauloDiTarso–queaindanãoconheciapessoalmente.EleestavapreocupadocomasaúdedoKoellreutter.

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Cercadeummêsmaistarde,jáemLisboa,telefoneiparasabercomoKoellreutterestava.FaleicomaÁurea.Elaestavamuitonervosa,quaseforadesi.Pediparafalarcomele.

Conversamosumpouco.Pareceu-memaislúcido,massemidentidadecomomundo.

- Nãotenhomaisprojectos.Estousempreaqui,fechado.Uma pena eu não podermais viajar. E é uma penaestarmostãodistantes.Quandovocêvemparacá?

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As minhas idas ao Brasil se tornaram cada vez mais imprevisíveis.

De toda a forma, ele me parecia melhor.

Fui telefonando regularmenteatéquechegouo seuaniversário de oitenta e cinco anos, em setembro do ano 2000.EuestavaemLisboaetivemosumalongaeprazerosaconversatelefónica.

Eleestavatotalmentelúcido!Falamossobreomundo,sobrepolítica,economia,etambémsobrefuturosprojectos.Disse que fazia planos empassar alguns dias emPortugalconnosco!Naturalmente,disse-lhequeeraumprazereumahonra,tantoparaaLucianacomoparamim,recebê-loemnossa casa.

Aquilo era algo absolutamente inesperado! Estava

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totalmentetransformado.Muitomelhor!BastantediferentedosmomentosemquetínhamosestadojuntosnacasadoJorgeWilheimmesesantes!

Novamente, imaginei que tinha acontecido umarevolução da medicina.

Naqueleano,ocompositorSérgioVillafranca-umdosseusalunos,sobrequemKoellreuttersempresereferiucom

HansJoachimKoellreutter-fotografiadeEmanuel Dimas de Melo Pimenta em São

Paulo, em 2000

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grandeestima-lançouumcompactdisccomváriasdassuascomposições,incluindoÁcronon.

AquilofoiumverdadeiropresenteparaoKoellreutter,eleficouimensamentefeliz.

Os meses se passaram e a cada telefonema ele parecia melhor. Em Abril de 2001, tivemos uma longa conversa epareciaqueelenãotinhamudadodesdequandotínhamosnos conhecido mais vinte anos antes.

ComentousobreagravesituaçãodeinsegurançanasruasdeSãoPaulo,dadegeneraçãodospadrõesdeensino,dacorrupçãogeneralizada.ContouquetinhasidoassaltadoquandopasseavapelaAvenidaSãoLuiz.Falousobrecomogostaria de estar connosco em Portugal. Que há anos o seu maior sonho era ir viver no Funchal, Ilha da Madeira.

Osonhodeviverosseusúltimosanosnumailhaainda

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estavam muito presentes.

Commuitadelicadezadissequeessessonhosmuitoprovavelmente não seriammais possíveis, devido à idadeavançada e aos seus problemas de saúde. Ele mostrou um perfeito estado de lucidez.

- É...meuamigo...vocêtemrazão.Ascoisasmudaram.O tempo passa e tudo se transforma. A própriarealidade se transforma. Às vezes é terrível pensarnisso.Oqueeugostariaeradepassarosmeusúltimosanos numa ilha. Já lhe falei nisso tantas vezes. Nãomorrer,massimplesmentedesaparecer.Porquenadatem importância. Tudo é maya.

PerguntousobreaLuciana,sobreanossafilhaLaura.Comentou, semesconderalgumapena, sobreaMargaritatersemudadodefinitivamenteparaTiradentes.

Aquelanossaconversafoiimpressionante.Eleestava

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novamente óptimo, lúcido, com pensamento rápido, eexcelentememória!

Lucianaeeuchegamosmesmoaconsiderarahipótesedeoreceberemcasa,apesardasdificuldadesquesabíamosele teria de enfrentar, devido à idade, numa longa viagem. Eletinhaquaseoitentaeseisanos.

Naquele ano de 2001, Teca Alencar de Brito lançouo livro Koellreutter Educador: o humano como objectivo da educação musical, com prefácio de Carlos Kater. Aquelelivro sensibilizou muito Koellreutter, foi muito importanteparaele.Certamentefoioprimeirolivroescritosobreoseutrabalho.Mesesantes,tínhamosconversadosobreolivroeele estava muito feliz pelo trabalho da Teca.

Nomesmoano,CarlosKater lançariao livroMúsica Viva e H. J. Koellreutter - movimentos em direção à modernidade.

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Nodiavintedejunhode2001,SauloDiTarsotelefonounovamente dizendo que Koellreutter lhe pedira para meenviarumamensagem:«EstouvivendonumaprisãosocialaquinoBrasil.EudeveriaseguirparaLisboa,paraestarcomoEmanuel».

Tenteitelefonarparasaberoqueestavaacontecendo,masninguématendianacasadoKoellreutter.Issoserepetiudurante semanas.

Em dezembro de 2001 consegui, finalmente, falarcom alguém na sua casa. Áurea atendeu ao telefone. Estava novamentemuitonervosa.«Elenãosabemaisquemé,nãose lembranemmesmodaMargarita. Estádefinitivamentesó.Adoençavoltou»–disseela,comvozemocionada.

Contouqueeramuitodifícil lheexplicaroqueeramfogosdeartifício.Asuamemóriatinhaseapagadosúbitaedefinitivamente.Nãosabiamaisoqueeramúsica,nemsom,

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ano,mês,tempo,cinema,fotografia,arteouciência.Ficavacompletamente perdido com os sons das explosões dosfogosdeartifíciodasfestasdefinaldeano.Comiadurantetodoodia,praticamentesemparar,tinhaengordado,eficavaparalisadoàfrentedatelevisão.Estavafisicamenteforteefeliz,apenasnãoexistiamais.

Depoisdisso,telefoneiaindaemjaneirode2002.Faleinovamente com a Áurea, que estava cuidando dele, maspouco ou nada foi acrescentado.

Eunãotinhacomoajudar,nãohavianovidades,tudoestavainalterado.Denadaadiantavacontinuartelefonando.Elenãosabiamaisquemeueraouatémesmooqueeraumtelefone.

Como todasasvezes,assegurei-medequeosmeustelefones estavam anotados correctamente na agenda da suacasa,paraoqueprecisassem.

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Cadavezquetelefonava,apartirdeentão,eraapenasparasaberquenadatinhamudado.Eletinhadesaparecidodefinitivamente.

Emjunho,telefoneideLisboa,preocupado,parasabernovidadessobreoestadodesaúdedoKoellreutter.FaleicomaMargarita.Elaatendeuaotelefone.Eradiaoitodejunho.Asuavozeraadeumapessoatristeearrasada.Naqueledia,eles celebravam trinta e nove anos de casamento.

Ela foi relatando, cheia de tristeza mas também com amor,queKoellreutterestavacadavezpior,equeoúnicoprazerquelherestaraeraassistirtelevisão.

Quandoviaumfilmegravado,podiaassistirsempreamesmacoisasemnotarquesetratavadomesmofilme.

Naqueledia,CeciliaBartoli,agrandesoprano,amiga

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da Margarita, tinha passado por lá e lhe oferecido umequipamentodeDVD.Mas,elenãosabiamaisquemeraelaouoqueeraumaópera.

Koellreutter passara toda a semana anterior numhospital,paraumasériedeexames.Estavacomumapequenainfecçãoseseriasubmetidoaumacirurgiasemgranderiscodentro de alguns dias.

Muito magoada, Margarita disse como sofria profundamentecomcríticasdepessoasqueacondenavampor ter isoladoKoellreutter.Mas,oqueelapoderia fazer?«Quando alguém aparece, ele fica terrivelmente nervoso.Nãosabeoqueestáacontecendo...ficaperdidoeconfusocomascoisasmaissimples».

Lembrei-me, uma vez mais, de como Koellreuttertinhasidosempreextremamentecuidadosocomaimagempessoal. Escondera-se na pequena cottage em Petrópolis

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paraqueninguémopudesseversemtersebarbeado!

Agora, com alzheimer, se fosse ele a decidir, seguramenteteriafeitoexactamenteoqueaMargaritafazia.Teria se isolado, se afastado.

Teria ido para uma ilha.

Muitos anos antes, num dos nossos almoços, conversamos longamente sobre a morte. Ele, tal como também defendera o Jorge Medauar numa situação diferente, abraçavafirmementeasideiasdeEpicuro–segundoasquaistodos devem zelar pela dignidade na vida, mas também pela dignidade na morte.

Margarita estava profundamente triste, mas sempre foi uma mulher forte, decidida.

Em dezembro daquele ano de 2002, telefonei

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novamente para saber como ele estava. Conversei coma Áurea. Ela contou que ele estava bem de saúde, mascompletamente desligado da realidade. Não sabia nemmesmo quem era. Naquele dia, soube que Áurea lhemostraraumvídeoqueelemesmogravaradoisanosantes.Nãoreconheciaqualquercoisa.Nadamaisfaziasentidoparaele.

Mas, estava feliz, profundamente feliz.

Em2003eumemudeiparaLocarno,naSuíça.

Em fevereiro daquele ano, recebi uma mensagemde correio electrónico de um querido amigo, ValdemarJorgeque,então,eradirectordaTVCultura.Enviou-meumlamentávelartigosobreKoellreutterescritoporumjornalistade Londrina.

O jornalista escrevia que omestre «hoje vegeta na

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sua casa, sem reconhecer ninguém, sem poder falar, sem aomenoscomersemquealguémlhedênaboca,fazendonecessidadesnasfraldasgeriátricas».Acusavaosamigosdeo terem abandonado. Acusava a Alemanha de não lhe pagar uma reforma.

EraexactamenteissooqueMargaritaqueriaevitar–eque,tenhoabsolutacerteza,Koellreuttertambémquereria:especulaçõesdepessoassemqualificaçãoàprocuradeautopromoção.

Se aquele infeliz jornalista soubesse um pouco darealidadeeestivesseagindodeboafé, jamaisteriaescritoaqueleartigo.Mas,pareciaseralguémentregueàprópriaignorância, fascinado por ela – julgando-se importante aopontodejulgaroquelheeraestranho.

Todosnósvamosmorrer,masadignidadecomquesesaidopalcodavidaéalgoquedeveserrespeitado,como

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ensinava Epicuro.

Muitas pessoas passaram a me telefonar do Brasil, indignadasechocadascomoartigo.

TelefoneimaisalgumasvezesparaacasadoKoellreutter,mas não fazia mais sentido telefonar insistentemente. Eunadapodiafazer.VivianaEuropa.AMargaritatinhatodososmeuscontactoseeusempreestiveàdisposiçãoparaoquefossenecessário.

Mas, nem ela mesma podia fazer grande coisa. Ele estava isolado num outro mundo.

Koellreutter estava bem tratado, feliz e livrementesubmerso nummundo que era descoberta contínua, numoutro planeta, numa ilha.

Nodiadezdenovembrode2003–quandorecebia

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notícia damorte deMarioMerz, que era um bom amigo– telefoneinovamentepara sabernotíciasdoKoellreutter,masonúmerodetelefonenãoexistiamais.

Soube, então, pelo Saulo Di Tarso, que aMargaritavendera o apartamento da Avenida São Luiz e o tinhamudado,secretamente,semavisarqualquerpessoa.

Saulo Di Tarso estava profundamente desgastado por não saber onde Koellreutter estava vivendo. Mas,seguramente,essedesaparecimentoeraexactamenteoqueopróprioKoellreutterdesejaria.

Subitamente, eu não tinha mais qualquer contactodele. Os telefones do Rio de Janeiro tinham há muitodesaparecido. Margarita nunca chegou a me telefonar.

No dia catorze de setembro de 2005, recebi umamensagem enviada por Saulo Di Tarso: Koellreutter tinha

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falecido aos noventa anos de idade.

Naquelemesmodia,recebiumamensagemdoRenéBerger,outroqueridoamigodelongosanos:«SobreamortedoseumestreKoellreutter:estoumuitopróximodevocê».

No ano seguinte, soube por outras pessoas queMargarita Schack tinha criado uma fundação dedicada àmemóriadoKoellreutter.

A Fundação Koellreutter foi criada graças à doaçãodosseuspertencesfeitaporMargarita–livrosepartituras–eàUniversidadeFederaldeSão João-del-Rei,emMinasGerais.

NelaháoEspaçoKoellreutter,noCentroCulturaldaUniversidade, cujos curadores são Regina Porto e CarlosKater.

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Estima-se que Koellreutter tenha deixado setenta esete obras compostas.

Eletinhamorridocomosempredesejara–numailha,distante de tudo e de todos.

ApenassereintegrouàNatureza,comoumaondanomar.

O acontecimento da consciência significa para o ser vivo, ao mesmo tempo afastamento e proximidade. O objecto que eu viso está

sempre, por definição, distante (ob-jecto, etimologicamente jogado à frente), mas, simultaneamente, estabeleço com ele uma relação

que me permite o integrar (con-sciência, saber com). Ter consciência se torna então simultaneamente descartar e religar, processo

duplamente complexo.

René Berger, 2007

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ESTÉTICA

Apontamentos sobre o curso Introdução à Estética de Hans Joachim KoellreutterSão Paulo, 1981

A estética é a ideologia – a filosofia – do artista. Asua função é levar a sociedade a um grau mais elevado de consciência.

Consciência:capacidadedoserhumanodeapreendersistemas de relações que o determinam: relações de umdadoobjectoaserconscientizadocomomeioambienteecomoEuqueoapreende.

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Não me refiro à consciência como conhecimentoformal. Nem como mero conhecimento ou qualquerprocesso de pensamento, mas sim a uma forma de inter-relacionamentoconstante,umactocriativodeintegração.

Leitura–Merleau-Ponty:A Fenomenologia da Percepção.

Omelhormétodoparaseconheceromundodehojeétraçarumacomparaçãoentrediferentesperíodosdahistóriada arte.

Ouniversomodalécaracterizadopelainexistênciadanotasensíveledaperspectiva.Éumperíodoquepoderíamoschamar,numcertosentido,deirracional,eédominadopelacultura oral.

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O universo tonal é caracterizado pela existência danotasensíveledaperspectiva.Éumperíodoquepoderíamoschamar,numcertosentido,deracional,eédominadopelacultura escrita.

O universo atonal não tem, novamente, a nota sensível–eleéarracional e aperspectívico,ondeapartícula“a” é o alfa privativo e não se trata de negação. O universo contemporâneo é um período também designado pelamúsica psofal–doGregopsofos,queindicaaincorporaçãodoruídocomomúsica.

Quandousamosexpressõestaiscomoaperspectívico ou atonal,apartícula“a”éoalfa privativo,queprivaotermode alguma coisa. Priva o conceito de uma validade absoluta. Indicaatranscendênciadoconceitoe,assim,tambémasuaindependência.

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A música atonal incorpora os princípios da músicatonal num universo mais amplo.

Audição: Wozzeck, de Alban Berg. Orquestra FilarmónicadeViena, regênciaChristophvonDohnányi,comEberhardWaechtereAnjaSilja.

Definições:irracional:oqueéinconscientedoprocessodarazãoconsciente:oqueéconscientedoprocessodarazãoarracional:consciênciadeumprocessomaior

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Épocas:primeira época:Deuseoserhumanosegunda época:descobrimentodoespaçoterceira época:domíniodotempo

O bom professor nunca ensina, apenas conscientizaaquiloqueosalunosjásabem.

Se o ser humano não tem consciência do espaço,tambémnãotemconsciênciadesipróprio.

IdadeMédia:Deus / ser humano – unidade / comunidade

Renascimento:dualidade–indivíduoeDeus

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Períodocontemporâneo:emergênciadeumtriadismogestáltico

NosséculosIV,VeVInãoexistiaoquechamamosdeestilo.

Os primeiros compositores musicais na Idade Média não assinavamassuasobras.OCantoGregorianoé,tipicamente,produtodaprimeiraépoca:Deuseoserhumano.

Petrarca,comascartasdoMonteVentoso,estabeleceuomarcodofimdoperíodomedieval.AoadmiraraNaturezaelepercebeuquenãoeramaisalguémpertencenteàIdadeMédia.

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Aconsciênciaparticipadarealidade.

JohnWheeler:a consciência modifica a realidade; a consciência modifica a matéria.

A consciência é a capacidade de compreender asrelaçõesquenosconstituem.

Conscientização é um processo de estabelecimentoderelaçõesfuncionais.

O objecto por nós conscientizado, participa dahistória.

JohnArchibaldWheeler:o ser humano não é apenas intérprete da realidade – ele é participante dela.

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Música stegmática – do Grego stegma – som predominantemente vocal, que acontece até operíododoRenascimento.

Música plagal – do Grego clagal – som predominantemente instrumental, que aconteceaté ao século XX.

Linguagem psofal – que transcende a perspectiva eincorporaoruído,apartirdoséculoXX.

Numacomposiçãomusicalaênfasenuncaestánoegodo compositor, mas na comunidade.

A ênfase artística nunca está no pessoal, mas noimpessoal.

Sem se compreender o background de uma sociedade,

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nãoépossívelcompor.

− Consciênciabidimensional:Terra/além− préracional− intuitivoeglobalizante–nosentidodequeDeuse

o ser humano formam uma unidade.− o conceito de religião, surgida de duas raízes

etimológicas: do latim relegere, significando“reler”; e tambémdo latim religare, significando“religar”.

− emantigassociedades,comoaculturahinduououniverso do zoroastrismo, a religião é um acto de lererelercontinuamentenormaseregras.

− nasantigasreligiões,Deuseoserhumanosãoumaúnica coisa.

− então,aconsciênciaémonodimensional.

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Ahistórianuncaelimina,sempreintegra.

Atendênciadaprimeirafase(medieval)éespiritual.

Então, no mundo medieval, o processo de conscientização é o resultado do relacionamento do serhumano e da comunidade com a divindade.

− Consciênciatridimensional:racionalmentalanalistatendênciaaomaterialismoperspectiva

Então,apartirdofimdaIdadeMédia,oprocessodeconscientizaçãogiraemtornodarelaçãoentreoserhumanoeoespaço;tendooserhumanoenquantoindivíduo.

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Tudoaquiloquepodemosdescobrir,jáexiste.

− Consciênciaquadridimensional:tempo− formadepercepção:arracional− intelectualeintegrante− processo de conscientização: função do artista

contemporâneo, estabelecendo as relações entreoserhumanoeotempo;eentreo indivíduoeaHumanidade

− tendênciaaouniversointelectual

- Modalmonodimensionalbidimensional

Então, na pintura tudo é bidimensional, a estrutura é adireccional e a composição é de carácter serial.

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No universo adireccional, para se compreender é necessáriolererelercontinuamente–religião. O resultado éavivênciadoconceito.

Três fases a partir da Idade Média, até o mundocontemporâneo:

Primeira fase: formacircular–oartistacircunscreveconceitos.

Segundafase:formatriangularoupiramidal–oartistadescreve conceitos.

Terceirafase:formaesférica.

Formacircular:GénesissegundoSãoJoão

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

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APrincípio

|B VerboDeus(C) Verbo B

|Princípio

A

ABCB

A

Formadogótico:AB|BC|CB|BA

Ocírculonãotemprincípiooufim.

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Nãohávalores.

Tudoéfluxocontínuo.

Numa tal realidade, a interpretação deve serhomogénea.

Emtermosestéticos,amonotoniaéosilêncio.

Quandoosvaloressãoiguais,háforterepetição.

É interessante observar a grande unidade que ésimbolizadapelocírculo.

Em grande parte das culturas do mundo, possivelmente emtodaselas,ocírculorepresentaaalma.

Encontramos esse símbolo do círculo em Lao Tsé, e

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nos ensinamentos do Buda.

EmHeráclito:

Para a alma é morte Tornar-se água Para a água é morte Tornar-se terra Da terra nasce a água Da água nasce a alma

NasuiteLulu, Alban Berg opera um sistema circular.

Muitas vezes a abordagem circular é utilizada pelosfísicoscontemporâneos.

Certos fenómenos não podem ser descritos, masapenas circunscritos.

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MENTAL/INTELECTUAL

Oestadodaconsciênciasereflectena linguagem.OestadodaconsciênciaéomotordaHistória.

Entreoperíodoaproximadode1500e1907temosapredominânciadomental–mas,deveríamosampliaresseperíodo até cerca de 500 a.C. – pois é entãoquenasce apredominânciadomentalnaGréciaAntiga.

Em Sânscrito, a palavra mental é ma, queetimologicamenteestárelacionadoàspalavrasquecomeçamcom mam, ma, mat, me, men – como matéria e medida por exemplo.

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Aantigaraizetimológicama,tambémindicaosentidode energia criativa, fúria, medida e assim por diante.

O primeiro canto da Ilíada de Homero é Ménin Aquileos –quesignificaaIra de Aquiles. A obra de Homero pode ser considerada a primeira obra da era moderna, elaborada na suaformafinalprovavelmenteemcercade700ou800a.C.

Na Ilíada, como na Odisseia, o poeta apresenta os acontecimentos não mais em forma circular, mas directamente, de forma direccional e causal.

Méninsignificairaenquantorevoltadoraciocínioeéuma significaçãoespiritual;mas também indica a ideiadecoragem.

Então,aconteceochoqueentreossereshumanoseos deuses.

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Tales de Mileto terá sido o primeiro a escrever da esquerdapara adireita.A expressãoda linguagemescritareforçaomovimentodecimaparabaixo.

Movimentoescritodecimaparabaixo:expressãodaunidade Deus / ser humano.

Movimento escrito da direita para a esquerda :expressãoemocional.

Movimento escrito da esquerda para a direita:afastamento da emoção, emergência da razão –conhece-te a ti mesmo.

Apalavralatinamens–quesurgedaraizetimológicama ou me,indicaosseguintessignificados:

ira

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direccionalmentecoragempensarpensamentointeligênciamentalidadeimaginaçãomedir

A palavra manu em Sânscrito – que também surgedaquela mesma raiz etimológica – indica os seguintessignificados:

homempensadoraquele que mede

Mannalínguainglesa,mente, homem, metro, medir,

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matéria, materialismo, mentira, dimensão e matemática –todasessaspalavrasindicamamesmaraizetimológica:oantigoIndoEuropeuma ou me.

O mental encerra todas as componentes do universo perspectívico.

Éafugadoespiritual.

Háumamutaçãodaconsciência.Trata-sedeumsaltoe não de uma evolução como tantas vezes se diz.

Ocírculoprotegeaalmae,então, tudooqueo serhumanopossuiécaracterizadoporpóloscomplementares.Nãoexiste,ainda,oconflitodialécticodoscontrários.

Intelectual:palavra ligadaàcriaçãodeconceitoseàprocurademodosdeconsciênciaanteriores.

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O conteúdo da arte é a psique, a estrutura da alma.

Aartenãoexpressaemoções.

A arte sublima a alma humana.

Oserhumanoparticipadofenómenoartístico,assimcomooouvinteparticipadamúsica.

Audição:GyorgyLigeti–Quarteto de Cordas.

Naarquitecturaessatransiçãoindicaapassagementretransparências,comoacontececomogótico;paraespaçosfechados, como ocorre com o barroco; e temos novamente atransparêncianomundocontemporâneo.

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Amonotonianãoéalgopejorativo,masumimportantevalorestéticonasartes.

Pseudo-DionísioAreopagita,cercade500d.C.dizia:As almas adquirem a compreensão racional quando procuram discursivamente e em movimentos giratórios a verdade das coisas.

Napoleão Bonaparte: ...amo intensamente essa música. Ela é monótona e apenas o que é monótono nos comove realmente.

NapoleãoBonaparteindicaameditaçãoeareflexãocomoelementosdeenriquecimentointerior.

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Monotonia: predominância dos elementos deredundância.

Redundância: elementos que se espera que sejamrepetidos.

É então que emerge uma estética informacional, baseadanosprincípiosdaTeoriadaInformação–eNapoleãoBonapartefoi,emcertosentido,seuprecursor.

Semexpectativanãoháexpressãomusical.

Informação:aquiloqueseesperaquenãoocorra.

Redundânciaeinformaçãopodemacontecerenquantoquestões subjectivas, objectivas ou ainda como dadoshistóricos.

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Hans Joachim Koellreutter: a música apenas é realmente música quando esquecemos o som.

IdadeMédia–tempomedidopelossinosdasigrejas.

Século XIII – gradualmente o tempo se torna mais e mais racionalizado.

Primeirorelógiopúblico:1283emLondres.

Universobizantino:interior:paraísoexterior:protecção,monumento

Nouniversobizantinotudoéhorizontal,nãohávolume,não há tridimensionalidade, os planos não se movimentam. Tudoésímbolo–oouro,océueassimpordiante.

Trata-sedeumarealidadeanti-naturalista.

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Nummesmoespaço,umacena.

Não há movimento. Os rostos não sãoindividualizados.

CírculoemtornodeCristo.

Românico:unidadeexterior/interiornãodinâmica. Gótico: unidade exterior / interior dinâmica –emergênciadonaturalismo,consciênciadavisão.

ÉimpossívelumaanálisedeestilosemrelaçãoàBaixaIdadeMédia.Todasassociedadescolectivistasorganizadasnão referem a estilos, mas apenas a escolas.

NaIdadeMédiaaarteéfuncionaleoindividualpassa

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para segundo plano.

A unidade na Idade Média é resultado de um sentimentodeintegraçãoentrecéueterra.

Espaço é intervalo.

Caverna:dualidade interior/exterior.Acombinaçãodesses dois intervalos conduz à catedral.

A cúpula de uma catedral não é algo interior, mas parte fundamentaldaNaturezaenquantoconceito.

Primeiras catedrais – paredes cavernais, apenas com função protetora. Colunas–elementosdedivisãodoespaço.

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Galileu Galilei: Tudo pode ser medido, e o que não pode deve ser transformado até poder ser medido.

Arteprimitiva–tudorepresentadoemmeioaplantas,vegetais, signos em confusão.

Unidade–emergênciadamagia.

*Ma também é a raiz etimológica de magia e de emancipação – assim como de máquina.

Qualquer que seja a sua condição, o ser humano ésempreparticipantedaNatureza. Seessaafirmaçãoé verdadeira, então, aquilo aque

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chamamos de consciênciaéumasócoisa.

Positivismo: corrente hostil à metafísica, aspirandobasear o conhecimento unicamente nos factos: factosdefinitivosefactosseguros–dadosdefinitivosesegurançasãoainadmissibilidadededúvidas:absolutismo.

Metafísica:tudooquetranscendeafísica.

Metamúsica: o que transcende amúsica tradicional– reflexão sobreapróprianaturezadamúsica: JohnCage,Karlheinz Stockhausen e mesmo a música hindu tradicional.

Metamúsica:oqueprocurasublimar.

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Pensamentodireccional–intencional,visaumobjecto,umobjectivo.

Religiãoenquantoler e relernoperíododopensamentocircular.Acompreensãopassaaseraexperiênciaenãoumconteúdo.

Então,Deusnãoéumconteúdo,masaexperiência.

Analisar a Arte da FugadeJohannSebastianBach.LerGoethe,fragmentos,eaBíblia,oAntigoTestamento,fragmentos.

Lógicacircular–inclusiva,essencialmentecriativa.Lógicatriangular–objectiva,esvaziaacriatividade.

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Ninguémorganizaasartesdeumadeterminadaforma.Tudo é processo e conhecimento. O importante é criar.

A obra de arte que não tem uma ordem não temsignificado.

Ordemimplicarepetição–aexistênciadeelementosconjuntivos.

A repetição é necessária para causar a sensação deunidade.

Arepetiçãoénecessáriaporqueoqueserepeteéoquesefixanamente.

Apenasadiferençaproduzaconsciência.

A arte e amúsica entre o final da Segunda Guerra

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Mundial e 1980 foi caracterizada, em geral, por uma comunicaçãounilateral–oqueéfeitoexistedevidoaumarelaçãocomorepertóriodosqueouvem.Arteconceptual.

Símbolo:umsignoquecoincidecomoobjecto.

Protestantismo:primeirareacçãodoracionalismonareligião ocidental.

Um símbolo é, portanto, mais que um signo, poisneleestão latentesduaspossibilidades fundamentaisque,quando abordadas racionalmente, estão contrapostas, equandoabordadaspsiquicamenteformamumtodo. Umautêntico símbolo é um conjunto de dois pólosquesecompletamnaturalmente.

NaÍndiaéumcrimetocarumaragamatinalànoite.

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A ragamatinalé,emsimesma,aprópriamanhã.Elanãoexistenumoutrohorário,numoutrotempo.

NaÍndia,vive-seacoincidência.

O processo de arte racional – assim como toda a história das artes – é um processo de esvaziamento dos símbolos.

Todos os símbolos estão baseados numa realidadepolar–dualidadequeformaumtodo.

A ideia do contraste como oposição não existe naIdade Média.

Averdadeiraexperiênciaésempreirracional.

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Nafantasia,aalmanosensinaoquearazãonãoqueradmitir.

Éatravésdaexperiênciaquesechegaaoverdadeiroconhecimento.

Lógicadopensamentocircular:todosospontostêmamesmadistânciadeumpontofixo.

Há uma interessante e misteriosa relação entre a ideia de noite e o número oito.Emtodasaslínguasanglo-saxãselatinasapartícula“n”indicaaideiadenegação. Em todas essas línguas, as palavrasnoite e oito são escritasdeformasemelhante,comosetivessemamesmaorigem. Noite e oitoemPortuguês;night e eightemInglês;nuit e ouitemFrancês,notte e otto em Italiano e assim por

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diante. ParaouniversoÓrfico, anoiteerao iníciode tudo,mas também a negação de tudo.

Noite como o inconsciente do ser humano – negação do consciente. O número oito,deitado,éosímbolodoinfinito.

Com Giotto surgem os primeiros elementos daperspectiva plana.

Os trovadores foram os primeiros músicos e cantores a cantar poemas sobre o seu eu,sobreoindivíduo.

ÉentãoqueteminícioumabismoentreoserhumanoeaNatureza–aproximadamenteentreoséculoXIIeXIII.

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São Tomás de Aquino revela o racionalismoaristotélico.

OPapaJoãoXXI,nascidoemLisboaem1210,equefoipapa entre 1276 e 1277 – considerado um dos papas mais intelectuais de sempre – escreveu De Anima, provavelmente o primeiro tratado de psicologia.

Westminster, Londres, 1285 – primeiro relógiopúblico.

Otempopassadequalitativoaquantitativo.

A representação plástica egípcia era, num certosentido, inumana–poisnãoexistiaaconsciênciadovalorhumano interior, de uma alma, como aconteceria mais tarde. Então,oserhumanoeracompostoporelementosdíspares,materiais e imateriais.

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OMilagreGregoéumapreparaçãoparaoRenascimentoitaliano.

Cibernética–doGregokubernus,quesignificapiloto. Ciênciadapilotagem do cérebro humano.

A Teoria da Informação e a Teoria da Comunicação fazem parte da Cibernética.

Redundância: ocorrência de elementos que sãoesperados.

Oselementosderedundânciasãooquecaracterizaoestilo.

Caos: equivalência de todos os elementos,equiprobabilidade de todos os elementos.

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Caos:entropiaOrdem:neg-entropia

Omundocaminhaparaaentropiaeoresultadofinaléamorteparatodososelementos,tudosetornarequivalente.

O artista sempre cria unidade. Sempre relaciona. Oartista trabalhano sentidocontrárioàentropia, sempreestabelecendo uma estrutura.

Idade Média – o ser humano se comunica com Deus.Renascimento – trovadores cantam à alma humana.

JosqindesPrès–musica reservata. A música deve ser apenasaquiloqueelarepresenta.

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Teoria dos Afectos – relaciona o andamento com os sentimentoshumanos:barroco.

Estéticadamúsicadescritiva–música programática.

SéculoXVI,movimentodeconsciênciadoserhumano,emerge o retrato. Terceira dimensão no ser humano.

ApartirdePierodellaFrancesca,teminício,nahistóriadaarteocidental,umainflaçãodeensaiosespaciais.

WernerHeisenberg:Não há mais linguagem dentro do contexto dos problemas quânticos.

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Aperspectivavisualizaoserhumano.

Parte tomada pelo todo – pars pro toto.

IdadeMédia:dimensãometafísicaRenascimento:perspectiva,espaçoMundocontemporâneo:tempo

O tempo questiona e anula as três dimensõesclássicas.

Audição:GyorgyLigeti,Artikulation II.

Toda a ampliação implica uma prévia diminuição.

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Tudooqueépositivosetornanegativoatravésdeumprocessodesuperintensificação.

Totalidade é a soma das partes. Totos – nada e simultaneamente tudo.

Tudoérelativo. Emjaponês,etambémemchinês,aspalavrasverde e azulnãoexistiam–amboseramtonalidadesdeumamesmacor.Nãohaviaaconsciênciadeumadiferençaentreaquelascores. NoIndustãoapalavrakalsignificatantoontem como amanhã,osentidodependerádocontexto.

As nossas vidas são ilhas num totos.

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Tonalidadeimplicasempreambiguidade:ampliação das possibilidades de combinaçãoredução das possibilidades pela fragmentação

Século XIII – trovadores, cantando a música do indivíduo.

Em seguida, surgem os primeiros compositores da chamada escola flamenga, estabelecendo os princípiosda tonalidade. Também surgem os pintores flamengos,estabelecendoosprincípiosdaperspectiva.

MÚSICARESERVATA.

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Adrianus Petit Coclico, aluno de Josqin des Près,estabeleceamúsicaaoserviçodotexto– reservada a um pequenonúmerodeouvintes.

Música coral que apenas pode ser executada emdeterminados locais.

Evolui ao barroco, onde faz emergir a Teoria dos Afectos.

Teoria dos Afectos: todos os ornamentos ecaracterísticas da composição devem significar emoções esentimentosdossereshumanos.

Por sua vez, a Teoria dos Afectos culmina no século XIX comomúsicaprogramática.

QUADRATURA: processo de se organizar a melodia

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através de números pares de frases, todas de igual tamanho.

LeonardodaVinci–terminaaeranãoperspectívica.

ApósLeonardodaVinci:Cristóvão Colombo (1437-1506), descobre o

espaço terrestre.Nicolau Copérnico (1473-1543) estabelece o

heliocentrismo.Andreas Vesalius (1514-1564), descobre o

espaço corporal.Galileu Galilei (1564-1642), desenvolve e

populariza o instrumento para a conquistadoespaçosideral:otelescópio.

Johannes Kepler (1571-1630), descobre o movimento dos planetas em elipses.

WilliamHarvey(1578-1657),descobreapressão

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arterial.

Século XVI – surge a técnica da pintura a óleo, atéentãopraticamentedesconhecida.Apinturaaóleopermiteaexpressãode transparênciaeprofundidadequenãoerapossívelcomosafrescos.

Namesmaépoca,popularizam-seasrendas–técnicadetecerquepossibilitaatransparência.

SéculosXVI,XVIIeXVIII,surgem:O cismaAfragmentaçãoedivisãodasreligiõesColóniasCConquistasPPolíticasdopoder

Transformações que culminam no mundo

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contemporâneocomaeradatecnologiaedaconquistadospovos.

PrimeirafasedoRenascimento:emergênciafortedocontrapontoedasensível.notaçãomaisprecisaquantoàduraçãosurge o pensamento dualista

Os contrastes se tornam opostos.

Guillaume de Machault – utilizando intervalos dequartas, quintas e oitavas. Monteverdi, utilizando pelaprimeiravezintervalosdeterçasesextas.

Antes do temperamento – estabelecidos largamente porJohannSebastianBacheporJean-PhilippeRameau–amúsica não temperada era muito mais rica em termos de frequências.Quando issoacontece,praticamentetodosos

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intervalos são diferentes.

NaÍndia,ouvem-sedevinteedoisatrintaintervalosem uma oitava.

A síntese, simplificação das relações, com otemperamentoindicaumahipertrofiadoego–conduzindoaoindividualismoeàmassificação.

Aconscientizaçãodoespaçoampliaaspossibilidadesereduzoespectro,constituindopólosparadoxais.

Barroco–significaestranho, extraordinário em termos etimológicos.

Emsociologia,quandosesuperacentuaalgo,significaqueessealgoestáemdecadência.

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Históriaéumasériedeconscientizaçõesdecoisasquejáexistem.

NoséculoXX,seguramente,oeventomaisimportantefoiaconscientizaçãodotempo.

Tempocomoquartadimensãodoespaço.

Otempogradualmentedeixadeserumfactorfísicopara se tornar numa forma de percepção.

1916 – Teoria Geral da Relatividade,deAlbertEinstein:conceito do tempo.

Oespaçonãoétridimensional,masquadridimensionalcom o tempo.

Nãoépossívelexcluirotempo,doespaço.Tempo e espaço são dois aspectos de uma mesma

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coisa–quenãosabemosoqueé.

Albert Einstein: O continuum espaço-tempo é o espaço quadridimensional onde ocorrem fenómenos físicos caracterizados por três coordenadas espaciais num referencial tridimensional e por uma quarta coordenada dada pelo produto c.t onde c é a velocidade e t o instante de ocorrência de um acontecimento no referencial do espaço.

Contínuo: algo que não demonstra componentesdiscretos.

Dimensão: sentido em que se percebe o discursomusical para avaliar e o apreciar numa relação que seconsiderasusceptíveldemedidaeanálise.

Dimensão – mensão... medir:racionaleespacial.Dimensão – di:atravésdealgumacoisa.

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O tempo destrói as dimensões, transcendendo e asintegrando.

Magia, mágica: demag, maquinar-se, emancipar-se através de máquinas,demaquinação.

De acordo com os conceitos estabelecidos por Einstein, na suaTeoriadaRelatividadeGeral, a tridimensionalidadeclássicasimplesmentenãoexiste.

Oespaçonãopodeexistirsemotempo.

Qualquerquesejaumamedidaespacialoutemporal,ela nunca será absoluta.

JorgeLuisBorges:o ser humano sonha o mundo.

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Namúsica contemporânea não hámais referenciaisclássicos, tais como um tema ou a tónica.

Não mais existindo espaço independente, acaba oprincípiodedirecção.

Asartessetornampotencialmentemultidireccionais,comelementoscambiáveis,numamultifuncionalidade.

Audição:Só-Gú II,deMakiIshii,paraGagakueorquestra.

Audição: Cassiopeia, de Tohru Takemitsu, para solo de percussãoeorquestra.

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Espaço e tempo são apenas formas de percepção do observador.

O novo conceito de tempo visa recuperar o todo. Tende ao todo.

Memória–fundamentalparaapercepçãosistática.

Espaço e corpo se tornam gradualmente transparentes.

Otemponãoexiste.

Opresenteéinfinito,éaorigem.

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A origem é eterna, tudo é origem.

Opresenteéaquinta-essênciadotempo.

Presente é tempo puro.

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Música do Século XX

Apontamentos sobre o curso Música do Século XX, de Hans Joachim KoellreutterSão Paulo, 1981

Ahistóriadamúsicaapresentaquatrograndesperíodoscaracterizadosporquatroidiomasmusicais:

- Idioma modal1. Românico2. Gótico3. Renascimento

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- Idioma tonal1. Barroco2. Classicismo3. Romantismo4. Impressionismo

- Idioma atonal1. Expressionismo

- Idioma psofal

O primeiro período é essencialmente ftegmático – palavra de origem Grega que indica a ideia de sompredominantemente vocal.

Os segundo e terceiro períodos são essencialmenteclagais – predominantemente instrumentais.

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O quarto período é essencialmente psofal – o queincorporaosruídos,tomaosomcomoumtodo.

Primeiroperíodo–sucessãodesonsSegundoperíodo–simultaneidadedesons

Terceiroperíodo–convergênciadesonsQuartoperíodo–emergênciadoconceitodetempo

Em Tristão e Isolda,de1859,RichardWagnerprocurou–segundoassuasprópriasdeclarações–enfatizarodualismoentre a vida e a morte.

O terceiro acto de Tristão e Isolda mostra um dos momentos de gradual desintegração do tonalismo através demúltiplasmodulações.

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A partir de então – embora as ideias presentes emTristão e Isolda fizessem parte do mundo de Wagner e,principalmente, de Liszt – pode-se desenhar uma linha de transformaçõesemdiversasobrasecompositores:

1875, Bagatela sem Tonalidade de Franz Liszt – primeira obra atonal.

1889, Ave Maria sobre Escala Enigmática,deGiuseppeVerdi.

1896, Quarteto número 1deCharlesIves.

1899, Noite Transfigurada de Arnold Schoemberg.

1900, Sinfonia nº 4, segundo movimento, deGustavMahler.

1901, Salomé e Electra, de 1908, compostas por

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Richard Strauss.

1909, Três peças para piano, opus 11, de Arnold Schoemberg.

1911, Seis peças para piano, opus 19, de Arnold Schoemberg.

1912, Jeux,deClaudeDebussy.

Em1908surgeumagrandepolémicasobreofimdatonalidade.

1912, Arnold Schoemberg com Pierrot Lunaire, opus 21:obramaisimportantedoatonalismo.

Em Pierrot Lunairetudoélevadoaomáximoexagero– incluindo uma extrema radicalidade em regiões sonoras

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graves e agudas.

Alban Berg integrou a tonalidade à atonalidade.

O serialismo é caracterizado por elementos de repetição,quesãoelementosconjuntivos.

O atonalismo anuncia uma acausalidade – evidente nafísica.

PRIMEIROPERÍODODAMÚSICADOSÉCULOXX

Característicafundamental:oidiomamusicaléatonal, comainexistênciadanotasensível.

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Estrutura:triequadridimensional.

Pensamento:racionalista.

Tendência:materialista.

Conscientização:relaçãoentreoserhumanoenquantopersonalidadeindividualeamassa,ocoletivo.

As formas são discursivas. O estilo inovador éo expressionismo. Mas, existem ainda as tendênciasrestaurativas–ouseja:oneoclassicismo,ofolclorismoeonacionalismo.

SEGUNDO PERÍODO DAMÚSICA DO SÉCULO XX – após a

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SegundaGuerraMundial

Idiomamusical:psofal(incluioruído)

Tendência:planimetria,partiturasgráficas

Tendênciasrestaurativas:Krzystof PendereckiLuciano BerioWiltoldLutoslawskiKarlheinzStockhausen(nofinaldacarreira)

Estrutura muldimensional

Pensamento: arracional – que é, na sua essência,paradoxal.

Tendência:intelectual

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O processo de conscientização gira em torno dorelacionamento do ser humano com o tempo, e do indivíduocomaHumanidade.

As novas formas são novamente esféricas.

Estilos:experimental.

WernerHeisenberg,livro:Física e Filosofia.

FaygaOstrower:A arte é uma forma de crescimento para a liberdade, um caminho para a vida.

PRIMEIRAFASE:Igor Stravinsky, Minha VidaRene Leibowitz, Schoemberg et son ecoleAdorno e BoulezMartinHeidegger,O Ser e o Tempo

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IgorStravinsky:Romântico:SinfoniaImpressionismo:O Pássaro de FogoExpressionismo: Sagração da Primavera e

História do SoldadoNeoclássico:Suite PergolesiSerialismo: Canticum Sacrum e In Memorian

Dylan Thomas (1954)

Curiosamente,FranzJosephHaydn,WolfgangAmadeusMozart, Arnold Schoemberg, Alban Berg e AntonWebernnasceram na Áustria.

ArnoldSchoemberg:O Sobrevivente de Varsóvia – obra politicamenteengajada.

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ArnoldSchoemberg:Concerto para Violino e Orquestra –pontomáximodoexpressionismonamúsica.

CONCEITOATONAL

Éaequivalênciadosintervalos,acordeseaemergênciade simultanóides.

Simultanóide:acordequenãopodeseranalisadoporintervalos de terças.

Em1937,PaulHindemithprovocougrandesdiscussões:osacordesexistemcomoestãosendoouvidosenãocomoestão descritos na teoria.

No universo atonal não existemais hierarquia. Não

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maisexisteodualismoentredissonânciaeconsonância.

AmúsicadoséculoXXconscientizaaemancipaçãodadissonância.

O conceito de dissonância surge com o músico flamengoJohannesTinctoris,queviveuentre1435e1511,compositor e grande teórico – instituiu os conceitos dedissonância e de consonância.

A atonalidade é fundamentalmente acausal – não se podepreveroqueaconteceráaseguir.

Atonal–circular,esférico,transparência:sístase.

AlbertEinstein:A esfera é ilimitada, mas finita.

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PRIMEIRADIMENSÃO:linhamelódica,horizontalSEGUNDADIMENSÃO:relaçõesverticais,harmoniaTERCEIRA DIMENSÃO: tonalidade, atonal, diversas

ordens de relaçãoQUARTADIMENSÃO:percepçãosistática

Sístase:englobartudopartindodetodososladosdoobjetoquesepercebe.

Sístase:nãohápontosfixosdereferência.

Excessodeinformação:desordemabsoluta. Excessoderedundância:ordemabsoluta. A desordem absoluta é igual à ordem absoluta.

Primeira lei da termodinâmica: o universo em

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que vivemos se desenvolve em sistemas complexos ediferenciados.

Segunda lei da termodinâmica: tudo tende àentropia.

O ser humano busca a ordem, ele reage ao processo da entropia.

O caos não se comunica.

Oexcessonãosecomunica.

Háosilêncioactivoeosilênciopassivo.

Aesferaé,essencialmente,quadridimensionalporquenela tudo se move.

Liberdade é resultado de disciplina.

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Aemergênciado tempodestrói todasasdimensõesda música.

No seu Opus 19, Arnold Schoemberg procurava a grande forma.Mas, ela não era possível porque faltavamelementos de ordem.

ArnoldSchoemberg:Atonalismo é a arte de compor com doze notas independentes.

Asérietemafunçãodeunificaracomposição.

Não é necessário repetir a série. Ela se torna maisconscientequandoéinterrompida.Tudooqueéordemsetornamaisconscientequandoéinterrompido.

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Audição:Concerto para Violino e Orquestra, de Alban Berg.

PRIMEIRAESCOLADEVIENA:JosephHaydn,WolfgangAmadeus Mozart, Ludwig von Beethoven.

SEGUNDA ESCOLA DE VIENA: Arnold Schoemberg,AlbanBerg,AntonWebern.

Série:qualquerparâmetropodeserserializado.Serialismo Integral: todos os parâmetros na músicaobedecem a séries.

Audição:Structures nº 1 para piano, de Pierre Boulez.

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Serialismo:caminhandodaideiaparaasérie,enãodasérie para a ideia

Audição: Cinco peças para orquestra, opus 16, de Arnold Schoemberg.

Audição:Grosse Fuge, in B flat for string quartet, opus 133, de Ludwig von Beethoven.

Audição:Sinfonia, opus 21,deAntonWebern.

Impressionismonamúsica:melodia sem intervalospassivograusconjuntos

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cromatismoemmeiotonstimbresconstruídosnoseuconjuntosemânticogrande instrumentação

Expressionismonamúsica:grandes intervalosactivotimbrestomadosindividualmentesintáticoredução no número de instrumentossacrifica todos os ideais em benefício da

expressão

AntonWebern:melodia de timbres, cada nota pode terumtimbrediferente.

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Audição: Oferenda Musical de Johann Sebastian Bach,transcritoporAntonWebern.

Em Arnold Schoemberg e em Alban Berg são trabalhadasduasdimensões:melodiaeharmonia.

AntonWebernincorporapelaprimeiravezaGestalt, transformando a melodia em figuração e obrigando aaudiênciaaouvircomoumtodosistático.

Audição:Variações para piano opus 27,deAntonWebern.

Tendênciasrestaurativasnamúsica:

Paul Hindemith – procura restabelecer as técnicas de

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composição elaboradas por Bach e designar uma “novatonalidade”.Combatiaoatonalismo.

Igor Stravinsky – principalmente na fase entre as sonatas para piano e a Sinfonia dos Salmos. Trêsobras que escapam à tendência restaurativa emStravinsky:

Cantum Sacrum (obra litúrgica serial)Septeto (primeira obra serial, com partes

dodecafónicas)Agon

BélaBartók

HeitorVilla-Lobos

Kodaly

Manuel de Falla – principalmente nas suas obras

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neoclássicas.

Os movimentos restaurativos são essencialmentefolcloristas ou nacionalistas. Pertencem a um nacionalismo substancialquandofazemusodirectodeelementosfolclóricosou de música popular. Pertencem a um nacionalismo essencial, quando os traços folclóricos surgem enquantoespíritodamúsica.

George Gershwin é, muitas vezes, um nacionalistasubstancial.

Outrastendênciasrestaurativas:neoclassicismo

Igor StravinskyProkofievShostakovish

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Audição:Terceiro Quarteto, de Paul Hindemith.

A música psofal, que incorpora o ruído, surgiu comHenryCowell,professordeJohnCage.

Henry Cowell escreveu várias peças para pianopreparado na primeira metade do século XX.

FORMA–Aformaétudooqueresultadadisposiçãoe do relacionamento dos componentes e das partes constituintesdacomposição.Éumacondiçãosobaqualacomposição se manifesta. Os elementos básicos da forma sãoarepetição,ocontrasteeavariação.

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Audição:Quarteto opus 135, de Ludwig van Beethoven.

Audição:Música para Instrumentos de Corda, Percussão e Celesta,deBélaBartók.

Dissonâncias congeladas: dissonâncias que não seresolvem.

Primeiro conceito de tempo – mágico, vital, tempo originário, tal como acontece com o candomblé, por exemplo. Segundo conceito de tempo – psíquico, intuitivo.Músicaderitmoirregular,diversificado,semcompasso,sem

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valoresdeduraçãofixosedeterminados.Músicanãométrica,que toma como base a pulsação natural e os valores deduraçãoqueadisposiçãodoespíritoeaemoçãorequerem.TalcomoacontececomoCantoGregorianooucomoalap na música indiana.

Terceiro conceito de tempo – automático emonométrico. Praticado pela força do hábito. Elementostemporaisquantitativos,talcomootempoestabelecidopelosrelógios.Ritmoracionaldiversificado.Enfatizaoprincípioeofimdaexecução–músicatradicionalocidental.

Quarto conceito de tempo – acrónico. Que transcende amedidaestabelecidapelo relógio. Lembrao conceitodetempoarcaico,prémágico–umconceitoquenãomais éconceito. Não existência de consciência de tempo no serhumano. Desintegração da noção clássica de tempo.

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Breve bibliografia

http://www.sibila.com.br/index.php/sibila-english/395-anthropopha-gic-manifesto

BRITO,TecaAlencarde–KoellreutterEducador,ohumanocomoob-jetivodaeducaçãomusical.Peirópolis,SãoPaulo,2001.

EGG,André.OdebatenocampodonacionalismomusicalnoBrasildosanos1940e1950:ocompositorGuerraPeixe.DissertaçãodeMestradoemHistória,UFPR,2004.

KATER,Carlos.MúsicaVivaeH.J.Koellreutter.Movimentosemdi-reçãoàmodernidade.SãoPaulo:Musa/Atravez,2001.

KOELLREUTTER,Hans-Joachim.Ocaminhodasuperaçãodosopostos.MúsicaHoje-RevistadePesquisaMusical.BeloHorizonte,NúcleodeApoioàPesquisaeCentrodePesquisaemMúsicaContemporâneadaEscoladeMúsicadaUniversidadeFederaldeMinasGerais,n.2,p.7-26, 1995.

KOELLREUTTER,HansJoachim–Estética,áprocuradeummundosemvis-à-vis,NovasMetas,SãoPaulo,1983

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KOELLREUTTER,HansJoachim–HarmoniaFuncional.Ricordi,SãoPaulo, 1980.

KOELLREUTTER,Hans-Joachim.Introduçãoàestéticaeàcomposiçãomusicalcontemporânea.ZAGONEL,B.&CHIAMULERA,S.(orgs.).Porto Alegre, Editora Movimento, 1984.

KOELLREUTTER,Hans-Joachim.Anovaimagemdomundo:estética,estruturalismo e planimetria. Revista Música. São Paulo, Departamen-todeMúsicadaEscoladeComunicaçõeseArtesdaUniversidadedeSão Paulo, v. 2, n. 2, p. 85-90, 1991.

ZAMPRONHA,EdsonS.–Notação,RepresentaçãoeComposição,An-nablume, São Paulo, 2000.

Gravações

H.J.Koellreutter-Tacape,SãoPaulo,Brasil1983(disco)

Koellreutter-Funarte,Brasil,1997(compactdisc)

Ácronon-SérgioVillafranca,SãoPaulo,Brasil,1999(compactdisc)

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Adderley,JulianCannonballAdorno, TheodorAdriano,CarlosAgostinelli,Marcod’Almeida,Arminda–DonaMindinhaAlmeida,JoséCoelhodeAnaximander(Anaximandro)Andrade, Mário deAndrade, Oswald deAquina,St.Thomas(SãoTomásdeAquino)Aristotle(Aristóteles)ÁureaAyres,Nelson

Bach,JohannSebastianBacharach, BurtBanerjee,NikhilBartók,BélaBartoli,CeciliaBataille,GeorgesBeethoven, Ludwig vanBerberian,CathyBerg, AlbanBerger, René

Berio, LucianoBerns-Lee, TimBeuys, JosephBhagwat,NeelaBill,MaxBiraBonaparte,NapoleãoBonner,WilliamBorges, Jorge LuisBorh,NielsBoulanger,NadiaBoulez, PierreBrün, HerbertBracque,GeorgesBratke, MarceloBrito, Teca (Maria Teresa) Alencar deBrown, EarleBurckhardt,JacobChristophBusoni, FerruccioBussotti,Ferruccio

Cabrita,DulceCage,JohnCampos,AugustodeCampos,Haroldode

índice onomástico

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Capra,FritjofCaznok,YaraCelibidache,SergiuCézanne,PaulCharles,DanielChaurasia,HariprasadCoclico,AdrianusPetitColeman,OrnetteColumbus,Christopher(CristóvãoColombo)Copernicus,NicolausCoppola,FrancisFordCorona,EduardoCosta,ValérioFieldaCowell,HenryCozzella,DamianoCunningham,Merce

Dali, SalvadorDallapiccola, LuigiDebussy,ClaudeDebret,JoanBaptisteD’Elboux(família)Dohnányi,ChristophvonDomizio, Lucrezia De, Baronesa DuriniDuchamp, Marcel

Eckhout, AlbertEinstein, AlbertElliot, T. S.Epimenides

Falla, Manuel deFerrier, KathleenFeynmann, RichardFoucault, MichelFrancesca, Piero dellaFrank,César

Galilei,GalileuGalvão,Patrícia(Pagu)Garaudy,RogerGaubert,PhilippeGershwin,GeorgeGiron,LuizAntônioGismonti,EgbertoGlass,PhilipGlucksmann,AndréGödel,KurtGoethe,JohannWolfgangvonGoldelman,SaloméaGomringer,EugenGraça,FernandoLopesGropius,Walter

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Guerra-Peixe,CésarGuarnieri,Camargo

Hawkings, StephenHarvey,WilliamHaydn, Franz JosephHeidegger,MartinHeifetz, JachaHeisenberg,WernerHeraclitoHerrigel, EugenHindemith, PaulHitler, AdolfHofstadter, DouglasHokusai, HatsushikaHollanda,ChicoBuarquedeHomero

Ishii, MakiIves,Charles

Jaeger,WernerJobim, TomJohn, Saint (São João)Jordan, FredJorge,Valdemar(Dema)Juarez, Benito

Kandinsky,WassilyKant, EmanuelKarabtchevsky, IsaacKater,CarlosKatunda, EuniceKaufmann,WalterKepler, JohannesKhan,UstadHafezzAhmedKhan,UstadSabriKhan,UstadVilayatKodaly,ZóltanKokoschka, OscarKontarsky, AlfonsKontarsky, AloysKrasner, LouisKrieger, EdinoKubrusly,Maurício

Lange,FranciscoCurtLanger, SusanneLeibowitz, ReneLeiner, JaimeLeminsky, PauloLeoninLeventhal,SígridoLévi-Strauss,Claude

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Ligeti,GyorgyLima, DemétrioLima,MaurícioNogueiraLiszt, FranzLupasco, StephanneLutoslawski,Witold

Machault,GuillaumedeMahler, AlmaMahler,GustavMahler, ManonMagnani, SérgioMarsicano, AlbertoMartiessen,CarlAdolfMcLuhan, MarshallMedaglia, JúlioMedauar, JorgeMello,ChicoMello, Eduardo Kneese deMendes,GilbertoMenezes, PhiladelphoMerleau-Ponty, MauriceMerz, MarioMilan,CarlosMilhaud, DariusMindlin, JoséMinkowiski, Hermann

Moles, AbrahamMondrian, PietMonet,ClaudeMonk, TheloniousMorin, EdgarMoraes, J. Jota deMoura, PauloMoyse, MarcelMozart,WolfgangAmadeusMussi, MagaliMuszkat, Mauro

Nani,RodolfoNiblock,PhillNicolescu,BasarabNietzsche,FriedrichNobre,MarlosNono,Luigi

Oliveira, Jocy deOliveira,WillyCorrêadeOppenheimer, RobertOstrower, Fayga

Pacheco, DiogoPagano,CaioPaik,NanJune

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Palestrina,GiovanniPierluigidaParmenidesPascoal, HermetoPatzak, JuliusPaz,ManoelVenâncioCamposdaPaz, OctavioPenderecki, KrzystofPeirce,CharlesSandersPeixinho,JorgePenrose,MartinPereira,JoséAntônioPerotinPetrarca, FrancescoPicasso, PabloPignatari, DécioPimenta, LauraPimenta, LucianaPollini, MaurizioPorto, ReginaPound, EzraPrès,JosqindesPrestes,LuizCarlosPrigogine, IlyaProkofiev,Serguei

Rampal, Jean-PierreRameau, Jean-Philippe

Reich, SteveReggio,GodfreyRiegl, AloisRiley, TerryRilke, Rainer MariaRitter,KarlRobinson, PaulaRoman, BeatrizRugendas, Johann Moritz

Santoro,CláudioSatie,EricSchack, MargaritaShankar, RaviShannon,ClaudeScheck,GustavScherchen, HermannScherchen, TonaSchnabel, ArthurSchoemberg, ArnoldSchoppenhauer, Arthur

Shostakovish, Vladimir Fedoseyev Schröndinger, ErwinSchubert, FranzSekeff,MariadeLourdesShuenemann,Georg

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Schwarz,AlfredGerhardSeiffert,MaxSilja,AnjaSilva,ConradoSoleri, PaoloSouza,RodolfoCoelhodeStockhausen, KarlheinzStrauss, RichardStravinsky, IgorSverner,Clara

Tacuchian, RicardoTaffanel,PaulTakemitsu, TohruTanaka, SatochiTarso, Saulo DiTaylor,GeoffreyIngramThomas, KurtTinctoris, JohannesTineti,GilbertoTozzi,CláudioTudor, DavidTurin,RotiNielba

Vargas,GetúlioVerdi,GiuseppeVesalius,Andreas

Villafranca,SérgioVilla-Lobos,HeitorVinci,LeonardodaVorobow,Bernardo

Waechter,EberhardWagner,RichardWalter,BrunoWebern,AntonWehinger,RainerWheeler,JohnArchibaldWigner,EugeneWilheim,JoannaWilheim,JorgeWorringer,Wilhelm

Young, LaMonte

Zarif, FernandoZé, TomZenon (Zenão)

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EmanuelDimasdeMeloPimentatemsidoconsideradoumdosexpoentesdamúsica,arquitectura,fotografiaearteintermediaemtodoomundonoiníciodoterceiromilénio,segundodeclaraçõesescritasporpersonalidadescomoJohnCage,OrnetteColeman,MerceCunningham,JohnArchibaldWheeler,RenéBerger,DoveBradshaw,DanielCharles,PhillNiblockouWilliamAnastasientreoutros.

OsseustrabalhosestãoincluídosemalgumasdasmaisimportantescolecçõesdeartecontemporâneaeeminstituiçõesinternacionalmentereconhecidascomooWhitneyMuseumdeNovaYork,oARSAEVIContemporaryArtMuseumemSarajevo,aBienaldeVeneza,oCyberArtMuseumdeSeattle,oKunsthausdeZurich,aDuriniContemporaryArtCollection,aBibliotèqueNationaledeParisandoMART–MuseudeArteModernaeContemporâneadeRoveretoeTrentoentreoutras.

Eledesenvolvemúsica,arquitecturaeprojectosurbanosutilizandoRealidadeVirtual,tecnologiasdeciberespaçoeneurosciências.

Em2008ele compôsaprimeiraópera sobreaDivinaComédiadeDanteAlighieri na história damúsica, que teve a primeira audiçãomundial no FestivalAbstracta, em Roma, Itália. Em 2009, o seu concerto CANTO6409, em parceriacomodirectordecinemaitalianoDinoViani,quefoiresponsávelpelofilme,teveasuaprimeiraaudiçãomundialnoFestivalInternacionaldeCinemadeCannes,naFrança.

Os seus trabalhosestão incluídosnaEnciclopédiaUniversalis (Britannica)desde 1991, no Sloninsky Baker’s Music Dictionary (Berkeley), no Charles Hall’s Chronology of the Western Classical Music, assim como no All Music Guide – The Expert’s Guide to the Best Cds entre outros.

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LegendáriosmúsicoscomoJohnCage,DavidTudor,TakehisaKosugi, JohnTilbury,ChristianWolff,MarthaMooke,JohnDSAdams,MaurizioBarbetti,MichaelPugliese,UmbertoPetrin,SusieGeorgetis,AudreyRileyeoManhattanQuartettêminterpretadoassuascomposições.

ColaboroucomJohnCage,comocompositorparaMerceCunningham,de1985atéaoseudesaparecimentoem1992.ContinuoucomocompositorparaMerceCunninghamemNovaYorkatéaoseudesaparecimentoem2009.Osseustrabalhosestão incluídos no projecto Legacy da Fundação Cunningham para concertos eperformances entre 2010 e 2013.

Seusconcertostêmsidorealizadosemalgunsdosmaisprestigiososteatrosde todo o mundo, como o Lincoln Center e o The KitchenemNovaYork;aOpera Garnier ou o Theatre de La Ville em Paris; o Shinjuku Bunka Center em Tokyo, o Teatro Municipal deMontpellier, o Festival deAix en Provence, oMASPMuseudeArteModerna de São Paulo, e o La FeniceemVenezaentreoutros.

Artigossobreosseustrabalhostêmaparecidoregularmenteemdiferentesjornais e revistas como oThe Wire, Ear, New York Times, Le Monde, Le Parisien, Liberation, O Estado de São Paulo, O Expresso, and O Globo, Il Sole 24 Ore e o la Reppublica, entre outros.

Commaisdequatrocentascomposiçõesmusicaisgravadas,vintecompactdiscs,quatrocd-roms,escreveuepublicoumaisdetrintalivros,váriosindividuais,váriospapers,artigoselivroselectrónicos.OsseustrabalhostêmsidoregularmentepublicadosnaInglaterra,EstadosUnidos,Japão,Holanda,Portugal,Brasil,Alemanha,

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Canadá,Suíça,Hungria,ItáliaeEspanha.

Temsido,ainda,curadorparadiversas instituições,comoaBienaldeSãoPaulo (arquitectura) no Brasil; a Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal; aTrienaldeMilão,naItália;eoCentroCulturalBelémemLisboa,entreoutros.

Noiníciodosanos1980,EmanuelPimentacunhouoconceito“arquiteturavirtual”,maistardelargamenteusadocomodisciplinaespecíficaemuniversidadesdetodoomundo.Desdeofimdosanos1970eletemdesenvolvidonotaçõesmusicaisgráficasdentrodeambientesvirtuais.

Ele recebeu o prémioDestaque deMarketing em 1977, pela AssociaçãoBrasileira de Marketing; o prémio APCA em 1986, pela Associação Paulista deCríticosdeArtes;eoprémioLagoMaggioreem1994pelaUNESCO,AICAAssociaçãoInternacional de Críticos de Artes, Conselho de Europa e Governo Regional daLombardia,emLocarno,Suíça.Em1993osseustrabalhosforamseleccionadospelaUNESCO,emParis,comoumdospesquisadoresintermediamaisrepresentativosdomundo.

ÉmembrodaSACD – Societè des Autheurs et Compositeurs Dramatiques em Parisdesde1991.ÉmembroactivoemembrodadirecçãodoTribunalEuropeudoAmbiente, em Londres, desde 1995.

É membro activo da Academia de Ciências de Nova York, da SociedadeAmericanaparaoProgressodaCiênciaedaSociedadeAmericanadeFotógrafosdeMedia.ÉmembroconsultordaAIVACAssociaçãoInternacionalparaoVídeonasArtesenaCultura,emLocarno,Suíça.FoimembrofundadordaInternational Society for

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the Interdisciplinary Study of Symmetry – ISIS Symmetry e da International Symmetry Association, ambas em Budapeste.

Éfrequentementeconvidado,comoprofessoreconferencista,pordiversasinstituições,entreelasasuniversidadesdeNovaYork,Georgetown,Lisboa,Florença,Lausanne,Tsukuba,SãoPaulo,Palermo,aFundaçãoCalousteGulbenkian,aFundaçãoMonteVeritanaSuíçaeoInstitutodeTecnologiaTechnionemHaifa,Israel.

ÉfundadoredirectordaHolotopiaAcademy, instituiçãoorientadaparaamúsica,artes,filosofiaeciências,naCostaAmalfitana, Itália.É tambémfundadore director da Fundação para as Artes, Ciências e Tecnologias – Observatório, emTrancoso, Portugal.

EmanuelPimentaviveentreLocarno,Suíça,queéasuaresidênciaprincipal,NovaYorkeLisboa.OseusitenaInternetéwww.emanuelpimenta.net

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Copyrights- capa e páginas, 91, 145, 164, 207, 223, 251, 258, 278, 284, 291, 409, 420, 436, 463, 473, 497, 500, 501, 530, 533, 539, 554 – de Emanuel Dimas de Melo Pimenta

- página160-OcompositorHans-JoachimKoellreuttereopianistaSérgioVillafrancalêemapartituraesféricadeAcronon.EscritoporRobertoDUgoJr.-http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://musicadiscreta.blog.uol.com.br/images/TSP.jpg&imgrefurl=http://musicadiscreta.blog.uol.com.br/&usg=__EP8rchSNJjg7siKH32TLmf4-04k=&h=376&w=502&sz=17&hl=pt-PT&start=2&um=1&itbs=1&tbnid=3yEYLNnT4s79EM:&tbnh=97&tbnw=130&prev=/images%3Fq%3Dacronon%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26lr%3D%26newwindow%3D1%26sa%3DN%26rlz%3D1R2ADSA_pt-PTPT335%26tbs%3Disch:1emhttp://musicadiscreta.blog.uol.com.br/

- página177–ArtikulationdeGirgyLigeti:flickr.com/photos/20661330@NOO/227036970

- página234,JohnCage,Ária–colecçãoprivada

- página238,HansJoachimKoellreutter,TankaII–colecçãoprivada

- página290,HansJoachimKoellreutter,esboçoparapartituraplanimétrica–colecçãoprivada

- página313,HansJoachimKoellreutter,Improviso–colecçãoprivada(cópia)

- página319,FreiburgPanorama1000,DescriptionFreiburgPanorama1000.jpg,English:360°panoramicviewofFreiburg,Germany.Picturestakenonthe,SchlossbergtowerandstitchedusingHu-gin.Deutsch:360°Panorama-AnsichtvonFreiburg.DieFotoswurdenvomSchlossbergturmaufgenom-men, und mit Hugin zusammengefügt. Date 02.08.2008

- página322,HermannScherchen,inMaxenceCaron,http://maxencecaron.canalculture.com/2009/05/21/bach-lart-de-la-fugue-par-hermann-scherchen/

- página330,RiodeJaneiro1938,flickr.com/photos/quadro/256775091/

- página358,Rugendas,inBELUZZO,AnaMariadeMoraes–TheConstructionoftheLand-scape, Metalivros, 1995