hannah arendt e marx

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Griot – Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036 Sobre a condição humana no pensamento de Hannah Arendt e Karl Marx – Leonardo Pellegrinello Camargo Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 190 SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT E KARL MARX Leonardo Pellegrinello Camargo 1 Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR) RESUMO: Neste artigo, abordamos a diferenciação entre trabalho e obra no pensamento de Hannah Arendt, que, embora pareçam para a modernidade conceitos similares ou até idênticos, para a filósofa esta diferenciação é crucial para uma abordagem crítica necessária da condição humana durante e após o século XX. Isto posto, expomos o conceito marxista de trabalho e a posterior crítica feita por Arendt para construir o seu pensamento político acerca da humanidade no pós-guerra. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Obra; Política. ABOUT THE HUMAN CONDITION IN THE THOUGHT OF HANNAH ARENDT AND KARL MARX ABSTRACT: This paper discusses the distinction between labor and work in the thought of Hannah Arendt, who, although they seem to modernity concepts similar or even identical, to the philosopher this differentiation is crucial to a critical need of the human condition during and after the twentieth century . That said, we expose the Marxist concept of work and subsequent critique of Arendt to build his political thought about humanity after the war. KEYWORDS: Labor; Work; Politics. Trabalho, obra e ação no pensamento de Hannah Arendt Em seu livro A Condição Humana, Arendt diferencia três atividades 1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Paraná – Brasil; Professor do Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR), Paraná – Brasil. E-mail: [email protected]

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Hannah Arendt e Marx

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  • Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN 2178-1036

    Sobre a condio humana no pensamento de Hannah Arendt e Karl Marx Leonardo Pellegrinello Camargo

    Griot Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 190

    SOBRE A CONDIO HUMANA NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT E

    KARL MARX

    Leonardo Pellegrinello Camargo1 Centro Universitrio Claretiano (CEUCLAR)

    RESUMO: Neste artigo, abordamos a diferenciao entre trabalho e obra no pensamento de Hannah Arendt, que, embora paream para a modernidade conceitos similares ou at idnticos, para a filsofa esta diferenciao crucial para uma abordagem crtica necessria da condio humana durante e aps o sculo XX. Isto posto, expomos o conceito marxista de trabalho e a posterior crtica feita por Arendt para construir o seu pensamento poltico acerca da humanidade no ps-guerra.

    PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Obra; Poltica.

    ABOUT THE HUMAN CONDITION IN THE THOUGHT OF HANNAH ARENDT AND KARL MARX ABSTRACT: This paper discusses the distinction between labor and work in the thought of Hannah Arendt, who, although they seem to modernity concepts similar or even identical, to the philosopher this differentiation is crucial to a critical need of the human condition during and after the twentieth century . That said, we expose the Marxist concept of work and subsequent critique of Arendt to build his political thought about humanity after the war.

    KEYWORDS: Labor; Work; Politics.

    Trabalho, obra e ao no pensamento de Hannah Arendt

    Em seu livro A Condio Humana, Arendt diferencia trs atividades

    1 Mestre em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUC/PR), Paran

    Brasil; Professor do Centro Universitrio Claretiano (CEUCLAR), Paran Brasil. E-mail: [email protected]

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    do homem: o trabalho (manuteno da vida); a obra (produo de algo novo); e ao (vida pblica, poltica)2. Estas trs atividades fazem parte da vita activa: a vida humana.

    A distino proposta por Hannah Arendt entre trabalho e obra tem um carter de novidade. Ao defender esta distino, ela argumenta que todas as lnguas europeias possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que hoje para ns uma mesma atividade, e curiosamente elas conservam as duas palavras mesmo elas sendo usadas como sinnimas.

    Neste sentido, a palavra trabalho nunca designa o produto final; j a palavra correspondente a obra, ao contrrio, deriva do nome do prprio produto. No mundo ocidental o desprezo pelo trabalho, que resulta da luta do homem contra a necessidade e todo o seu esforo que no deixa qualquer vestgio ou obra que seja digna de ser lembrada pode ser o motivo, segundo a autora, pelo qual esta distino permanea durante bastante tempo ignorada.

    Em sua anlise, Arendt afirma que, na Grcia antiga, eram valorizados tanto o trabalho quanto a obra, pois os gregos achavam necessrio ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupaes que servissem necessidade de manuteno da vida. Neste contexto, os homens s poderiam ser livres subjugando outros que eles, fora, submetiam necessidade. A prpria instituio da escravido, portanto, serviria para tentar excluir o trabalho das condies da vida humana.

    Na antiguidade clssica no havia distino entre trabalho e obra. Como os dois faziam parte da casa privada, estavam o mundo da necessidade, ao contrrio da esfera poltica pblica. Hannah Arendt observa que inclusive a poltica foi colocada na esfera da necessidade, pois os filsofos gregos aboliram as distines entre a contemplao a todos os outros tipos de atividades.

    O conceito marxista de trabalho a crtica de Arendt

    Arendt destaca que a era moderna no tenha produzido nenhuma teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber. Esta era inverteu as tradies, como por exemplo a tradicional hierarquia dentro da vita activa, glorificando o trabalho como fonte de todos os valores. Encontramos neste perodo a distino entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo; e, como havia a glorificao do trabalho por sua produtividade, autores como Karl Marx e Adam Smith menosprezavam o trabalho improdutivo, que seria uma espcie de perverso do trabalho.

    2 Utilizamos a traduo dos termos labor (trabalho), work (obra) e action (ao) baseando-

    se na seguinte obra: ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Traduo de Roberto Raposo; reviso tcnica: Adriano Correia. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010.

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    Como afirma o filsofo (MARX, p. 5- 6).

    A relao entre o fato e o trabalho que o produz tambm no se altera absolutamente em nada pelo facto de a sua confeco constituir uma profisso particular, um elo da diviso social do trabalho. Desde que a necessidade de se vestir a isso o forou, o homem confeccionou vesturio durante milhares de anos, antes que algum se tornasse alfaiate. Mas a existncia do tecido ou fato, ou de qualquer elemento da riqueza material no fornecida pela natureza, sempre pressups um trabalho produtivo especial destinado a adaptar as matrias naturais s necessidades humanas. O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho til, , independentemente das formas de sociedade, condio da existncia do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulao material entre a natureza e o homem [,isto , da vida humana]. Os valores-de-uso tecido, fato, etc. - isto , os corpos das mercadorias - so combinaes de dois elementos, matria e trabalho. Se lhes retirarmos a soma total dos diversos trabalhos teis que contm, sempre resta um resduo material, qualquer coisa fornecida pela natureza e que nada deve ao homem. Ao produzir, o homem s pode agir tal como a prpria natureza; quer dizer, ele apenas pode modificar as formas da matria. Mais: nessa obra de simples transformao, ele ainda constantemente coadjuvado pelas foras naturais. O trabalho no , portanto, a nica fonte dos valores-de-uso que produz, da riqueza material. Ele o pai e a terra a me, como diz William Petty.

    Nesta distino j haveria um sentido parecido distino do trabalho e da obra, como afirma (ARENDT 2010, p. 98).

    Em outras palavras, a distino entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo contm, embora eivada de preconceito, a distino mais fundamental entre obra e trabalho. Realmente, tpico e todo trabalho nada deixa atrs de si: o resultado do seu esforo consumido quase to depressa quanto o esforo despendido. E, no entanto, este esforo, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premncia; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a prpria vida depende dele. A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irressistivelmente a encarar todo o trabalho como obra e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade.

    Arendt considera, tambm, que a prpria atividade da obra, independentemente de estar na esfera privada ou na esfera pblica, possui uma produtividade prpria, mesmo que a durao de seus produtos seja

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    muito menor. Essa produtividade reside na fora de trabalho humana, que explica a produtividade do trabalho. Contudo, ao contrrio da produtividade da obra, que tem como caracterstica acrescentar novos objetos ao artifcio humano, a produtividade do trabalho apenas ocasionalmente produz objetos e sua preocupao fundamental so os meios da prpria reproduo e nunca obtm outro produto do que a vida.

    Caso a teoria de Marx fosse posta em prtica em uma sociedade totalmente socializada, onde a nica finalidade seria a sustentao do processo vital a distino entre trabalho e obra desapareceria completamente e toda obra se tornaria trabalho pois todas as tarefas teriam uma funo apenas no processo vital.

    Hannah Arendt comenta tambm que na era moderna, tal como na teoria de Marx, no h uma distino entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Haveria, nesta poca, mais interesse na produtividade do trabalho includo a a obra. No importaria, tanto para o capitalismo como para os modernos, diferentes tipos de trabalho, mas importaria no caso comprar e vender no mercado de trabalho a fora de trabalho, da qual todo ser humano deve possuir aproximadamente a mesma quantidade.

    Assim, enquanto a teoria antiga desprezava o trabalho, a teoria moderna o glorifica, louvando-lhe a produtividade. Na modernidade, a subjetividade revelada na distino entre trabalho leve e pesado e medida em relao s necessidades do processo vital para fins da prpria reproduo e reside no excedente potencial inerente fora de trabalho humana e no na qualidade ou carter das coisas que produz. Portanto, a distino entre trabalho e obra torna-se uma diferena de grau quando no se leva em conta o carter da coisa produzida, nem sua localizao, sua funo e a durao de sua permanncia no mundo.

    Como vimos sobre a vida activa e as suas diferentes esferas, para Hannah Arendt seriam a linguagem e as experincias humanas que existem por trs dela que nos ensinam sobre as coisas do mundo, e no a teoria, pois (ARENDT, 2010, p. 106).

    Vistos como parte do mundo, os produtos da obra e no os produtos do trabalho garantem a permanncia e a durabilidade sem as quais o mundo simplesmente no seria possvel. dentro desse mundo de coisas durveis que encontramos os bens de consumo com os quais a vida assegura os meios de sua sobrevivncia. Exigidas por nosso corpo e produzidas pelo trabalho deste ltimo, mas sem estabilidade prpria, essas coisas destinadas ao consumo incessante surgem e desaparecem num ambiente de coisas que no so consumidas, mas usadas, e s quais, medida em que as usamos, nos habituamos e acostumamos. Como tais, elas geram a familiaridade do mundo, seus costumes e hbitos de intercmbio entre os homens e as coisas, bem como entre homens e homens. O que os bens de consumo so para a vida humana, os objetos de uso so para o mundo do homem.

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    destes que os bens de consumo derivam o seu carter de objeto; e a linguagem, que no permite que a atividade do trabalho produza algo to slido e no-verbal como um substantivo, sugere a forte probabilidade de que nem mesmo saberamos o que uma coisa se no tivssemos diante de ns 'o trabalho de nossas mos'.

    Deste modo, os produtos da ao e do discurso que, juntos, constituem a textura das relaes e dos negcios humanos so diferentes dos bens de consumo (trabalho) e dos objetos de uso (obra). Estes produtos so ainda menos durveis e mais fteis que o que produzimos para o consumo. Sua existncia depende inteiramente da pluralidade humana e da presena constante de outros que possam ver e ouvir. A ao e o discurso, dependem, ainda, da atividade do pensar, que est relacionada com o mundo mas no se manifesta nele necessariamente. Neste sentido, a sua diferena conceitual com Marx profunda, como afirma (ENEFRN, 1984, P. 76).

    Percebe-se que as perspectivas fundamentais de Marx e Arendt so bem opostas: a natural conciliao do coletivo (a gentica) com o indivduo, Arendt responde com um conceito convencional de poltica, consciente acima de tudo, pois libera o processo vital para glorificar a espontaneidade da ao livre: considera que a identidade que governa a dialtica marxista no tem diferena com um pressuposto patolgico, e se ope viso esttica de limites estritos para preservar a clivagem pblico privado, distino dupla fundamental entre o econmico e o poltico.

    Assim, a ao, o discurso e o pensamento tem muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com o trabalho ou com a obra, pois tem como caracterstica no produzir nada material ou necessrio, e so to fteis quanto a prpria vida. Eles devem ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida coisificados para que se tornem coisas mundanas feitos, fatos, eventos, etc.

    No pensamento de Arendt, o mundo humano depende, para sua existncia contnua, da presena de outros que tenham visto e ouvido e que lembraro do que viram e ouviram. Sem a lembrana e sem a reificao de que a lembrana necessita para sua prpria realizao as atividades vivas da ao, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade no fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido. Esta lembrana necessria pois so de natureza inteiramente extramundana, e assim precisam do auxlio de uma atividade de natureza diferente; dependem, para sua realizao do mesmo artesanato que constri as outras coisas do artifcio humano.

    Portanto, as coisas menos durveis so aquelas necessrias ao prprio processo da vida, e elas retornam ao processo natural que as produziu aps breve permanncia neste mundo. Mesmo sendo feitas pelo

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    homem, vem e vo, so produzidas e consumidas de acordo com o movimento cclico da natureza, pois, para (ARENDT, 2010, p. 108).

    A natureza e o movimento cclico que ela imprime, fora, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e morte tais como os compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos no so ocorrncias simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vem e do qual partem indivduos nicos, entidades singulares, impermutveis e irreptveis. () Uma filosofia que no chegue, como Nietzsche chegou, afirmao da 'eterna recorrncia' (ewige Wiederkehr) como o mais alto princpio de toda a existncia, simplesmente no sabe do que est falando.

    Assim, o outro uso da palavra vida, que especialmente humano, tem o significado de designar o intervalo de tempo entre nascimento e morte, da a possibilidade de escrever biografias; pois somente dentro do mundo humano que o movimento cclico da natureza se manifesta como crescimento e declnio.

    Contudo, a caracterstica comum ao processo biolgico do homem e ao processo de crescimento e declnio do mundo que ambas fazem parte do movimento cclico da natureza; sendo cclico, esse movimento infinitamente repetitivo, e no tem, em si, qualquer comeo ou fim propriamente dito. Portanto, o processo do trabalho move-se sempre no mesmo crculo prescrito pelo processo biolgico do organismo vivo, ao contrrio do processo da obra, que termina quando o objeto est acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo comum das coisas. A obra onde o material da natureza adaptado s necessidades do homem sustentada pelo consumo, e a atividade que prov os meios de consumo o trabalho. O trabalho e o consumo seguem-se to de perto que quase chegam a constituir um nico movimento movimento que, mal termina, deve comear novamente.

    Para Arendt, alm da manuteno da vida, a outra tarefa do trabalho travar uma luta constante e interminvel contra os processos de crescimento e declnio mediante os quais a natureza permanentemente invade o artifcio humano, ameaando a durabilidade do mundo e sua prestabilidade ao uso pelo homem. O que torna este esforo doloroso para o homem nesta tarefa a repetio.

    A autora comenta que, para trs autores da poca moderna, Locke, Adam Smith e Marx o trabalho passa a ser a origem de toda produtividade e a expresso da prpria humanidade do homem. Todos eles afirmavam que o trabalho devia ser visto como a suprema capacidade humana de construir um mundo, mas como o trabalho a mais natural e a menos mundana das atividades do homem, os trs pensadores viram-se diante de algumas contradies. Na crtica da autora aos trs, especialmente a Marx, o principal erro deles seria equacionar a obra com o trabalho, de tal forma que

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    atribuem ao trabalho certas qualidades que somente a obra possui. Do mesmo modo, Marx insistiria que o processo da obra termina

    com o produto final e esquece sua prpria definio deste processo como metabolismo entre o homem e a natureza, durante o qual o produto imediatamente incorporado, consumido e destrudo pelo processo vital do organismo. Sob o equvoco da concepo de trabalho marxista, (ARENDT, 2010, p. 128/129) afirma:

    Mas estes so pontos secundrios quando comparados contradio fundamental que eiva, como um estigma, todo o pensamento de Marx, e que est presente tanto no terceiro volume de O Capital quanto nas obras do jovem Marx. A atitude de Marx em relao ao trabalho, em relao ao prprio foco do seu pensamento, sempre foi equvoca. Embora o trabalho fosse uma 'eterna necessidade imposta pela natureza' e a mais humana e produtiva das atividades do homem, a revoluo, segundo Marx, no se destinava a emancipar as classes trabalhadoras, mas a emancipar o homem do trabalho; somente quando o trabalho abolido pode o 'reino da liberdade' suplantar o 'reino da necessidade'. Pois o 'reino da liberdade comea somente onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela utilidade exterior', onde termina o 'imprio das necessidades fsicas imediatas'. Contradies to fundamentais e flagrantes quanto estas raramente ocorrem em escritores medocres; no caso dos grandes autores, vo ao prprio cerne de sua obra. () O fato que, em todos os estgios de sua obra, ele define o homem como animal laborans para lev-lo depois a uma sociedade na qual este poder, o maior e mais humano de todos, j no necessrio. Resta-nos a angustiosa alternativa entre a escravido produtiva e a liberdade improdutiva.

    Arendt questiona o porqu de o trabalho ser to importante era moderna. Uma resposta seria que o conceito de processo veio a ser a palavra-chave da nova era, bem como das cincias histricas e naturais que ela desenvolveu. Aparece, por exemplo, nas concepes modernas de que dinheiro gera dinheiro e que poder gera poder so refletidas pela metfora fundamental da fertilidade natural da vida. Neste sentido, afirma (DUARTE, 2000, p. 82).

    O aspecto essencial da crtica de Arendt Marx o de que ele, em sua severa crtica ao presente, teria aceitado inmeras pressuposies da modernidade em relao dignidade do trabalho e ao carter subsidirio da poltica em relao economia, sem atentar para suas desastrosas implicaes. O resultado final seria o de que um pensamento que almejava instaurar o reino da liberdade, teria sido enredado nas malhas da prpria necessidade.

    Voltando Marx, ele baseia toda a sua teoria na concepo do

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    trabalho e da procriao como duas modalidades do mesmo processo frtil de vida, indicando a fidelidade de suas descries realidade fenomenolgica. O trabalho para ele era a reproduo da vida do prprio indivduo, que lhe assegurava a sobrevivncia, e essa afirmao a origem da teoria que ele desenvolveu logo aps, chamando de trabalho abstrato a fora de trabalho do organismo vivo e concebendo o excedente de trabalho como aquela quantidade de fora de trabalho remanescente depois que foram produzidos os meios para a reproduo do trabalhador. Para Arendt, ele adaptou sua teoria, da era moderna, aos mais antigos e persistentes conhecimentos da natureza do trabalho, que segundo as tradies hebraica e clssica estava intimamente ligado vida como processo de gerao.

    Trabalho, obra e ao

    A autora chama ateno para o fato de o trabalho de Marx ter coincidido com as teorias da evoluo e do desenvolvimento que floresceram no sculo XIX, como por exemplo a seleo natural. O que tem em comum entre estas teorias nos vrios ramos cientficos a ideia de processo, sendo um pensamento novo na era moderna, como afirma (ARENDT, 2010, p. 129).

    Como a descoberta dos processos pelas cincias naturais coincidira com a descoberta da introspeco na filosofia, nada mais natural que o processo biolgico existente dentro de ns fosse tomado como modelo do novo conceito; dentro da estrutura das experincias ao alcance da introspeco, no conhecemos outro processo seno o processo vital do nosso corpo, e o trabalho a nica atividade que lhe corresponde e na qual podemos traduzi-lo. Assim, era quase inevitvel que o equacionamento da produtividade com a fertilidade na filosofia do trabalho da era moderna desse azo a uma variedade de filosofias baseadas no mesmo equacionamento.

    Como ilustrao, a autora comenta sobre Nietzsche e Bergson que, para eles, a vida e no o trabalho foi proclamada como criadora de todos os valores; esta glorificao da mera dinmica do processo vital aboliu aquele mnimo de iniciativa presente at mesmo em atividades que so impostas ao homem pela necessidade, como o trabalho e a procriao.

    Contudo, nem a substituio do indivduo pela sociedade pode eliminar o carter de privatividade estrita e at mesmo cruel de experincia dos processos do corpo, ou at mesmo da prpria atividade do trabalho. O animal laborans expropriado no se torna menos privado pelo fato da j no possuir um lugar privativo onde possa esconder-se e proteger-se da esfera comum. Arendt cita Marx, quando disse que os homens, uma vez socializados e libertos do trabalho, gozariam essa liberdade em atividades privadas o que chamamos de hobbies.

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    Comparando a obra e o trabalho, a autora afirma que, enquanto no trabalho o animal laborans se mistura com os materiais, na obra o homo faber se faz e literalmente trabalha sobre eles, e assim fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifcio humano. Em sua maioria, essas coisas so objetos destinados ao uso e dotados de durabilidade e, devidamente usadas, no desaparecem, e emprestam ao artifcio humano a estabilidade e a solidez sem as quais no se poderia esperar que ele servisse de abrigo criatura mortal e instvel que o homem. Mesmo que os materiais possam se deteriorar, sinal de que so produtos de um fabricante mortal, no to certo que este seja o destino final do prprio artifcio humano, no qual todas as coisas podem ser constantemente substitudas com o ir e vir de geraes que habitam o mundo construdo pelo homem. Arendt afirma que o que o uso desgasta a durabilidade, porm (ARENDT, 2010, p. 150).

    esta durabilidade que empresta s coisas do mundo sua relativa independncia dos homens que as produziram e as utilizam, a 'objetividade' que as faz resistir, 'obstar' e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usurios. () Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem, e no a sublime indiferena de uma natureza intacta, cuja devastadora fora elementar os foraria a percorrer inexoravelmente o crculo do seu prprio movimento biolgico, em harmonia com o movimento cclico maior do reino da natureza. Somente ns, que erigimos a objetividade de um mundo que nos prprio a partir do que a natureza nos oferece, que o construmos dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele, podemos ver a natureza como algo 'objetivo'.

    Deste modo, mesmo que o uso e o consumo, bem como a obra e o trabalho, no sejam a mesma coisa, eles coincidem em reas importantes, a tal ponto que parece justificar o acordo unnime com que a opinio pblica e opinio dos eruditos identificaram numa s estas duas questes diferentes. Certamente o uso contm algum elemento de consumo, na medida em que o processo de desgaste ocorre atravs do contato do objeto de uso com um organismo vivo cuja natureza consumir. Quanto mais ntimo o contato entre o corpo e a coisa usada, mais plausvel parece o equacionamento dos dois.

    Hannah Arendt afirma que a fabricao, que a obra do homo faber, consiste em reificao. O material, necessrio para fazer as coisas, j um produto das mos humanas que o retiraram de sua natural localizao, seja matando um processo vital, seja interrompendo algum dos processos mais lentos da natureza, como no caso do ferro. Enquanto o homo laborans nutre o processo da vida, o homo faber se porta como amo e senhor de toda terra, e est intrnseco a um elemento de violao e violncia.

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    O que orienta o processo de fabricao est fora do fabricante e precede o processo da obra em si, tal como as exigncias do processo vital dentro do trabalhador precede o processo do trabalho. Portanto, o processo de fabricao orientado por um modelo segundo o qual se constri o objeto.

    Este papel que a fabricao veio desempenhar na vida activa muito importante, pois (ARENDT, 2010, p. 155).

    [...] o fato de que a imagem ou o modelo cuja forma orienta o processo de fabricao no apenas o precede, mas no desaparece depois de terminado o produto; sobrevive-lhe intacto, pronto, por assim dizer, a emprestar-se a uma infinita continuidade de fabricao. Esta multiplicao potencial, prpria do trabalho, difere em princpio da repetio que caracteriza o trabalho. Esta exigida pelo ciclo biolgico e permanece sujeita a ele; as necessidades e carncias do corpo humano vem e vo, e embora tornem a surgir a intervalos regulares jamais perduram muito tempo. A multiplicao, diferentemente da mera repetio, multiplica algo que j possui exigncia relativamente estvel e permanente no mundo.

    Portanto, o processo de fazer da obra inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins. No processo de fabricao o fim indubitvel, pois ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, acrescentado ao artifcio humano e, aps o final da fabricao, quando obtm o produto, o processo no precisa se repetir.

    Este processo no irreversvel: o que foi produzido por mos humanas pode ser refeito e destrudo, e a sua principal caracterstica ter um comeo definido e um fim tambm definido. Ao contrrio da ao que, embora tenha um comeo definido, jamais tem um fim previsvel, e do trabalho que, como j foi dito, est preso engrenagem do movimento cclico do processo vital do corpo, no tem comeo nem fim.

    Consideraes finais

    Uma das crticas feitas por Arendt teoria de Marx a sua defesa da violncia como motor da histria, e nica forma de se alcanar uma sociedade justa e igualitria; enquanto que, para Arendt, quando se utiliza a violncia, acaba-se a autoridade que existe s atravs do respeito e admirao do outro e consequentemente o fim tambm da poltica um espao entre iguais, como afirma (WAGNER, 2002, p. 195).

    Diferentemente de Marx, que acreditava no surgimento do homem novo para a construo de uma nova sociedade, Arendt cr que o homem pode construir a experincia genuna do mundo e do amor pelo mundo com as capacidades que dispe [...].

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    Em seu texto A tradio e a poca moderna, Hannah Arendt afirma que trs pensadores do sculo XIX Nietzsche, Marx e Kierkegaard tentam elaborar novas teorias para explicar a realidade, j que para a viso da autora comea a a crise do mundo ocidental.

    Contudo, os trs caem em uma armadilha: invertem categorias j estabelecidas, no criando novas. No caso de Marx, ele inverte teoria e prxis, colocando a teoria de Hegel de cabea para baixo. O marxismo no consegue inovar em uma nova viso de mundo necessria para compreender um mundo em crise -, fica restrito s categorias j dadas, apenas valorizando uma em detrimento outra.

    Neste caso, ao definir o homem como um ser que trabalha, Marx cai em uma grande contradio em sua obra, que para Arendt um problema fundamental: como atingir o comunismo, uma sociedade igualitria ideal onde busca-se fazer minimamente o trabalho, se o homem s homem se ele trabalha? Neste sentido, a teoria marxista no consegue fundamentar inteiramente a condio humana, pois ao reduzir o homem como apenas um ser que fabrica, deixa uma lacuna importante para compreender como este homem tem relaes polticas, pois apenas com o trabalho no se faz poltica.

    Isto posto, consideramos que a diferenciao que Arendt faz entre trabalho e obra essencial para compreender a condio humana pois no reduz o homem a uma s categoria, mas o define junto com a ao como um ser plural, essencial para pensarmos e fazermos a poltica.

    Referncias bibliogrficas ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Traduo de Roberto Raposo; reviso tcnica: Adriano Correia. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. So Paulo: Perspectiva, 2000. DUARTE, Andr. O pensamento sombra da ruptura: poltica e filosofia em Hannah Arendt. So Paulo: Paz e Terra, 2000. ENEFRN, Andr. La pense politique de Hannah Arendt. Paris: Presses Universitaires de France, 1984. MARX, Karl. O Capital. 1 Tomo. Consulta no endereo: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000086.pdf Acesso em 07/07/2013. WAGNER, Eugnia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho. So Paulo: Ateli editorial, 2002.