haack negativismo logico lihs 2014

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Diga “Não” ao Negativismo Lógico Éris, deusa da discórdia, da contenda e do caos. 575-525 AEC. Antikensammlung Berlin. Publicações da LiHS Liga Humanista Secular do Brasil maio de 2014 Susan Haack Uma crítica à filosofia negativista lógica da ciência de Karl Popper e seu critério de demarcação.

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Susan Haack

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  • Diga No ao Negativismo Lgico

    ris, deusa da discrdia, da contenda e do caos. 575-525 AEC. Antikensammlung Berlin.

    P u b l i c a e s d a L i H S

    L i g a H u m a n i s t a S e c u l a r d o B r a s i l

    m a i o d e 2 0 1 4

    Susan Haack

    Uma crtica filosofia negativista lgica da cincia de

    Karl Popper e seu critrio de demarcao.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    1

    Diga No ao Negativismo Lgico1

    Susan Haack

    University of Miami, Estados Unidos da Amrica

    Traduo de Eli Vieira Araujo-Jnr

    University of Cambridge, Reino Unido

    1. Sir Karl Popper, o homem e o mito ..................................................................................................................... 2

    2. Negativismo lgico: a grande ideia de Popper .................................................................................................... 3

    3. As partes em que Popper retira o que disse ........................................................................................................ 6

    4. Mal-entendidos do Negativista Lgico Popper .................................................................................................. 9

    5. Antecipaes do Popper nas sombras ............................................................................................................... 11

    6. A soluo do Senso Comum Crtico .................................................................................................................. 12

    1 Original: 2013 Susan Haack, Just Say No to Logical Negativism, in Putting Philosophy to Work: Inquiry and Its Place in Culture Essays on Science, Religion, Law, Literature, and Life (Amherst, NY: Prometheus Books). Todos os direitos reservados. Esta traduo est sob uma licena Creative Commons 3.0.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    2

    1. Sir Karl Popper, o homem e o mito

    A primeira edio de Logik der Forschung de Popper foi publicada em 1934, e a traduo em ingls

    sob o ttulo muito enganoso The Logic of Scientific Discovery em 1959.2 Laureado com numerosos prmios

    e honrarias,3 Popper foi no apenas enormemente influente na filosofia da cincia, mas tambm ganhou

    apoio entusistico entre os prprios cientistas. [S]e voc topar com um cientista de meia idade ou mais

    velho, voc quase certamente encontrar uma filosofia da cincia que consiste em vestgios de popperismo

    lembrados pela metade, escreveu David Stove em 1991. Isso fama de verdade, continuou, e outros

    filsofos da cincia podem apenas pesarosamente invej-la.4 Somente alguns anos depois, em 1993, as

    ideias de Popper comearam a ter um significativo papel legal, ao menos nos EUA, depois que ele foi citado

    no Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals,5 o primeiro caso no qual a Suprema Corte decidiu sobre os padres

    de admissibilidade de testemunhos de especialistas cientficos e outros.

    Evidentemente, mesmo no pice da popularidade de Popper havia numerosos rivais de sua

    abordagem falseacionista. As dcadas de 1930, 1940 e 1950 viram o desenvolvimento das teorias indutivistas

    dos positivistas lgicos como Hans Reichenbach,6 Rudolf Carnap7 e Carl Hempel.8 Em 1962 Thomas Kuhn

    props uma concepo muito diferente e mais sociologicamente acentuada, de acordo com a qual a cincia

    normal, rotineira, conduzida sob um paradigma dominante, at que quando anomalias demais se

    acumulam, e um paradigma rival promissor emerge h uma revoluo cientfica na qual o paradigma

    antigo derrubado e substitudo pelo novo.9 Em meados dos anos 1960, Imre Lakatos desenvolveu uma

    descrio ps-kuhniana e quase-popperiana, distinguindo programas de pesquisa progressivos de

    degenerados.10 Por 1978 Paul Feyerabend estava anunciando que o nico princpio metodolgico que no

    impediria o progresso seria o vale tudo.11 Mais recentemente, houve muitos e vrios estilos de Science

    Studies,12 s vezes dinstintamente irracionalistas em tendncia, e um renascimento do probabilismo,

    geralmente de orientao bayesiana, em algumas correntes do mainstream da filosofia da cincia.

    Popper ainda tem seus devotados seguidores, embora sejam menos numerosos do que j foram.

    Mas agora h tambm aqueles que o dispensam como um criador de slogans filosficos,13 ou o acusam

    de trafegar entre frases de efeito filosficas superficialmente atraentes mas em ltima anlise

    decepcionantes.14 Alguns crticos observaram que, por todo o seu racionalismo ostensivo, a filosofia da

    2 Karl R. Popper, The Logic of Scientific Discovery (1934: Londres, Hutchinson, 1959). O ttulo em alemo, Logik der Forschung, significa aproximadamente lgica da pesquisa; ento o ttulo em ingls uma traduo incorreta e incompatvel com a tese de Popper de que no h uma lgica da descoberta cientfica. N. do T.: Em portugus encontram-se os ttulos A Lgica da Descoberta Cientfica (cognato ao ttulo aqui citado por Haack) e A Lgica da Pesquisa Cientfica. A edio da Editora Cultrix, por exemplo, de 2004, utiliza o segundo ttulo, no entanto cita o primeiro (em ingls) como ttulo original. Cf. http://books.google.co.uk/books?id=MbGLmeMU3pMC 3 Karl Raimund Popper (1902-1994) primeiro lecionou na Nova Zelndia, e depois, de 1946 a 1969, na London School of Economics. Ele foi um fellow da British Academy e da Royal Society; nomeado cavaleiro [sir] pela Rainha Elizabeth II em 1965, e condecorado com a insgnia da Ordem dos Companheiros de Honra em 1982; laureado com a Grande Condecorao de Honra por sua nativa ustria; e recebeu o Prmio Lippincott da American Political Science Association e o Prmio Sonning. http://en.wikipedia.org/wiki/Karl_popper 4 David Stove, Cole Porter and Karl Popper: The Jazz Age in the Philosophy of Science (1991), in Stove, Against the Idols of the Age (New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1999), Roger Kimball, ed., 3-32, p. 8. 5 Daubert v. Merrell Dow Pharm., Inc., 509 U.S. 579 (1993). 6 Hans Reichenbach, Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of Knowledge (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1938). 7 Rudolf Carnap, The Logical Foundations of Probability (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1950). 8 Carl Hempel, Studies in the Logic of Confirmation, Mind 54 (1945): 1-26, 97-121. 9 Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1962). 10 Imre Lakatos, Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes, in Criticism and the Growth of Knowledge, eds. Imre Lakatos and Alan Musgrave (Cambridge: Cambridge University Press, 1970), 91-195. 11 Paul K. Feyerabend, Against Method: Outlines of an Anarchistic Theory of Knowledge (Londres: New Left Books, 1978). 12 N. do T.: Em traduo livre, Estudos Sociais da Cincia. O termo quase tcnico e designa uma rea da sociologia. Mais informaes: http://en.wikipedia.org/wiki/Science_studies 13 Noretta Koertge, Popper and the Science Wars (palestra Summer School in Theory of Knowledge, Varsvia, Madralin, 16-31 de agosto de 1997). http://www.indiana.edu/~koertge/PopLectI.html. 14 Rebecca Goldstein, The Popperian Soundbite, in What Have You Changed Your Mind About? John Brockman, ed. (New York: Harper Perennial, 2009), 8-10, p. 8.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    3

    cincia de Popper pavimentou o caminho para as ideias loucamente irracionalistas que depois se tornaram

    quase de rigeur entre socilogos da cincia.15 E o resenhista de uma biografia de Popper para o New York

    Times Book Review chegou a escrever que Popper que era notrio por insistir que os crticos o haviam

    entendido mal, e por se recusar a modificar suas opinies tinha condenado a si mesmo a uma vida a

    servio de uma ideia ruim.16

    Temo que os crticos estejam certos; mas a histria bem mais complicada do que eles geralmente

    reconhecem. A maioria das alegaes verdadeiramente originais e distintas de Popper na filosofia da cincia

    so, como argumentarei, indefensveis; e, enquanto ele tambm teve algumas ideias verdadeiras e

    esclarecedoras, a maioria dessas, como mostrarei, j estavam disponveis em outras obras. Aqui, entretanto,

    meu propsito ulterior no crtico, mas construtivo; e a seo conclusiva deste artigo ser dedicada a

    mostrar que a descrio de senso comum crtico desenvolvida em meu livro Defending Science Within Reason

    no apenas resolve os problemas que afligem a abordagem de Popper, mas tambm fornece uma concepo

    muito mais plausvel do que o empreendimento cientfico e faz. Mas por ter sido to frequentemente mal

    entendido, o primeiro passo deve ser documentar e esclarecer o que Popper de fato disse.

    2. Negativismo lgico: a grande ideia de Popper

    Deve-se reconhecer de incio, entretanto, que a obra de Popper impe dificuldades considerveis

    a um expositor, no menos porque para adaptar a palavra exata de J. L. Austin alm das partes em que

    Popper diz17, h tambm as partes em que ele retira o que disse.18 Alm do Popper (que considero ser)

    autntico, intransigente, genuinamente falseacionista falseacionista em seu sentido distinto, quero dizer

    h tambm uma espcie de Popper nas sombras. Esse Popper nas sombras no nos oferece tanto uma

    filosofia da cincia totalmente articulada quanto um agregado de comentrios perceptivos e algumas

    metforas muito atraentes: que, no entanto, no so realmente falseacionistas no sentido distintamente

    popperiano, nem suficientes para constituir um quadro alternativo melhor. Chegarei a esse Popper nas

    sombras depois; mas deixe-me comear com o que considero os temas centrais da tese oficial de Popper.

    Sua Grande Ideia lhe ocorreu, conta-nos Popper, por volta de 1919 (quando, percebo, ele tinha 17

    anos). Muitos anos depois, ele explicou que foi seu desencantamento com o socialismo cientfico

    marxista, pelo qual havia se apaixonado aos 16, que primeiro o fez perceber o quo crucial a diferena

    entre pensamento dogmtico (ruim) e uma atitude crtica (bom). Essa percepo, continua, foi reforada

    por seus encontros com as teorias psicanalticas de Freud e Adler, e intensificada mais ainda quando as

    previses de Einstein sobre eclipses foram testadas com sucesso.19

    A forma particular que a Grande Ideia de Popper tomou melhor entendida por contraste com a

    Grande Ideia rival promulgada pelos positivistas lgicos do Crculo de Viena.20 Tentando distinguir trabalho

    15 Ver Stove, Cole Porter and Karl Popper (n. 4); Koertge, Popper and the Science Wars (n. 11). 16 David Papineau, The Proof Is in the Disproof, resenha de Malachi Haim Hacohen, Karl Popper: The Formative Years, New York Times Book Review, 12 de novembro de 2000, disponvel em http://www.nytimes.com/2000/11/12/books/the-proof-is-in-the-disproof.html. Outro resenhista da mesma biografia, tambm comentando sobre a personalidade notoriamente difcil de Popper, conjetura que ele adotou o jeito de falar de um homem muito maior para compesar por ser to baixo em estatura. Ivor Grattan-Guinness, Truths and Contradictions about Karl Popper, Annals of Science 59(2002): 89-96, p. 93. 17 N. do T. No original, says it ... takes it back. 18 J. L. Austin, Performative Utterances (1956), in Philosophical Papers, J. O. Urmson and G. J. Warnock, eds. (Oxford: Clarendon Press, 1961), 220-39, p. 228 (perguntando, agora que ns sentimos o firme cho de preconceitos deslizar para longe por sob nossos ps, ... que faremos a seguir? e respondendo [v]ocs esperaro pela parte em que retiramos tudo o que dissemos); e Sense and Sensibilia (Oxford: Clarendon Press, 1962), p. 2 (comentando, sobre pessoas que professam a crena de que os objetos da percepo no so objetos fsicos mas dados sensoriais, que eles s vezes dizem que realmente isso exatamente o que acreditvamos desde o princpio: [h] a parte em que voc diz e a parte em que voc retira o que disse). 19 Karl R. Popper, Unended Quest (La Salle, IL: Open Court, 1979), 34-38 (publicado originalmente em Paul A. Schilpp, ed., The Philosophy of Karl Popper (La Salle, IL: Open Court, 1974), 3-181). (A ambiguidade da expresso testadas com sucesso digna de nota. Como veremos, Popper no est habilitado a qualquer significado mais forte que os testes foram conduzidos de acordo com o plano e a explicao de Einstein no foi falseada; mas o que a expresso inevitavelmente sugere que os testes foram conduzidos, as previses de Einstein foram confirmadas, e sua explicao foi bem-sucedida.) 20 Popper no era um membro do Crculo, mas apresentou artigos no que o Prof. Singer chamou de epiciclos do grupo. Peter Singer, Discovering Karl Popper, New York Review of Books 21, no. 7 (2 de maio, 1974): 22.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    cientfico bom e limpo de especulao metafsica sem sentido, os positivistas propuseram a verificabilidade

    como o critrio de demarcao entre enunciados cognitivamente significantes e cognitivamente sem sentido. Alm

    disso, eles contemplaram teorias cientficas sendo confirmadas indutivamente. Mas Popper veio a considerar

    a assimetria entre verificao e falseamento como crucial: exemplos positivos, no importa quantos, no

    podem mostrar que uma alegao irrestritamente universal verdadeira; mas um nico contra-exemplo

    suficiente para mostrar que falsa. Alm disso, argumentou ele, a induo no necessria nem justificvel:

    os cientistas no chegam a hipteses pelo raciocnio indutivo a partir de exemplos particulares, nem so as

    hipteses jamais apoiadas indutivamente por evidncias positivas.

    Ento, virando o positivismo lgico de ponta-cabea,21 Popper props a falseabilidade como um

    critrio de demarcao entre cincia e no-cincia, e uma descrio puramente dedutiva do mtodo cientfico.

    As ideias principais dessa posio negativista lgica22 so, em resumo:

    A falseabilidade um critrio para demarcar a cincia, a de verdade, tanto de

    pseudocincias como o socialismo cientfico de Karl Marx e a psicanlise, quanto de

    histria, metafsica, mitologia, religio, pr-cincia etc.23

    Um enunciado falsevel e, portanto, cientfico apenas se for incompatvel com algum

    enunciado bsico24 (isto , com um enunciado relatando a ocorrncia de um evento

    observvel num tempo e espao especficos).25

    Um enunciado falseado quando um enunciado bsico com o qual incompatvel

    aceito.26

    A aceitao de enunciados bsicos uma questo a ser decidida por parte da comunidade

    cientfica relevante. O que um cientista observa pode motivar um cientista a aceitar um

    enunciado bsico; mas nenhuma observao pode constituir evidncia que justifique ou

    garanta a aceitao de tal enunciado.27

    As nicas relaes lgicas so as dedutivas; no existe lgica indutiva, nem a cincia usa a

    induo que, como Hume mostrou muito tempo atrs, injustificvel.28

    A cincia progride por conjetura e refutao: um cientista faz um palpite informado

    sobre a explicao de algum fenmeno intrigante; deduz as consequncias desse palpite; e

    essa a parte metodolgica distintamente popperiana tenta refut-lo submetendo essas

    consequncias aos testes mais severos possveis.29

    21 David Stove provavelmente o crtico mais severo de Popper, e certamente o mais engraado observa que a ideia da reverso . . . a chave da filosofia da cincia de Popper, e que [um] freudiano poderia ver, ou imaginar que v, algo mais que revolta adolescente, algo na verdade obsessivo, na compulso de Popper por reverter coisas. Stove, Cole Porter and Karl Popper (n. 3), pp. 5, 7. 22 Se me lembro bem, aprendi a expresso negativismo lgico do meu antigo colega David Miller (que foi uma vez assistente de pesquisa de Popper). Este rtulo, embora muito apropriado, no o mais comum; a posio de Popper mais frequentemente chamada de racionalismo crtico, falseacionismo, ou dedutivismo. 23 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 1), p. 40 (a falseabilidade de um sistema deve ser tomada como um critrio de demarcao). Em Unended Quest (n. 16), p. 41, Popper conta-nos que o critrio de demarcao foi originalmente pensado com a inteno de excluir o marxismo e a psicanlise, e apenas mais tarde estendido para excluir a metafsica. 24 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 1), p. 86 (explicando que uma teoria falsevel se divide a classe de todos os enunciados bsicos possveis entre aqueles com as quais inconsistente . . . [e] a classe de todos os enunciados bsicos possveis que no contradiz. Em outras palavras, como Popper tambm diz, a classe de seus potenciais falseadores no vazia). 25 Ibid., p. 103 (Enunciados bsicos so . . . enunciados que afirmam que um evento observvel est ocorrendo em uma certa regio individual do espao e tempo). 26 Ibid., p. 86 (Dizemos que uma teoria falseada apenas se aceitamos enunciados bsicos que a contradizem). Popper acrescenta que [n]s tomaremos [uma alegao] como falseada apenas se descobrirmos um efeito reprodutvel que refute a teoria. Noto que esse adendo pe juntos enunciados bsicos e os eventos que eles descrevem. 27 Ibid., p. 105 (As experincias podem motivar uma deciso, e da uma aceitao ou rejeio de um enunciado, mas um enunciado bsico no pode ser justificado por elas no mais que pelo ato de bater na mesa). 28 Ibid., pp. 27-32 (as vrias dificuldades da lgica indutiva so insuperveis, p. 29); Unended Quest (n. 16), p. 80 (De acordo com minha teoria [em The Logic of Scientific Discovery], a cincia no era indutiva; a induo era um mito que havia sido explodido por Hume). 29 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), pp. 32-33; Science: Conjectures and Refutations (1957), em Conjectures and Refutations (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963), 33-65, p. 51 (argumentando que no h proceder mais racional que o mtodo de tentativa e

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    Esse mtodo usa apenas a lgica dedutiva mais importantemente, a regra dedutiva do

    modus tollens, que autoriza a inferncia de se p ento q e no-q para no-p, usada na

    fase da refutao.30

    Os cientistas deveria fazer conjeturas ousadas e altamente falseveis; test-las to

    severamente quanto possvel; e, se falseadas quando testadas, abandon-las e comear de

    novo em vez de fazer ajustes ad hoc para salv-las.31 Essa disposio a aceitar o falseamento

    outro critrio do que genuinamente cientfico.32

    A probabilidade de uma alegao inversamente relacionada ao seu contedo; ou seja,

    quanto mais um enunciado diz e portanto, quanto mais falsevel ele mais improvvel

    ele .33

    As teorias que foram testadas mas no (ainda) falseadas foram corroboradas a um grau

    que depende da severidade dos testes pelos quais passaram.34

    Dizer que uma teoria corroborada dizer que ela foi submetida a este ou quele teste e

    no foi, ainda, falseada. Esse estritamente um relato sobre o passado. Que uma teoria

    tenha sido corroborada, a qualquer que seja o grau de corroborao, no mostra que ela

    seja verdadeira, que seja provvel, que haja uma razo para acreditar nela ou que seja

    confivel.35

    A alegao assombrosa de que a observao irrelevante para a justificao dos enunciados bsicos

    parece repousar sobre dois argumentos distinguveis.36 O primeiro, o argumento da irrelevncia da

    causao, para o efeito de que a justificao uma relao lgica; que relaes lgicas mantm-se apenas

    entre enunciados; e, por isso, que as observaes que so eventos, no enunciados no podem justificar

    os enunciados bsicos. Esse argumento no distintamente popperiano, mas tambm tem um papel na

    defesa do coerentismo por Donald Davidson e na crtica de Richard Rorty epistemologia projetos com

    os quais Popper no gostaria de ter qualquer relao.37 O segundo argumento, entretanto, bem

    especificamente popperiano, chegando bem perto do cerne da Grande Ideia: que mesmo um enunciado

    como eis aqui um copo dgua impregnado de teoria; de forma que, se houvesse relaes lgicas entre

    erro de conjetura e refutao: de propor teorias audaciosamente; de tentar o nosso melhor para mostrar que elas so errneas; e de aceit-las provisoriamente se nossos esforos crticos no tiverem sucesso). 30 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), p. 76 (explicando que [o] modo de inferncia do falseamento o modus tollens da lgica clssica). 31 Ibid., p. 82 (insistindo que decidimos que, no caso de uma ameaa ao nosso sistema, no o salvaremos por qualquer tipo de estratagema convencionalista). 32 Ibid., p. 82 (explicando que meu critrio de demarcao no pode ser aplicado imediatamente a um sistema de enunciados, mas que [a]penas com referncia ao mtodo aplicado possvel perguntar se estamos lidando com uma teoria convencionalista ou uma teoria emprica). 33 Ibid. na p. 269; ver tambm Karl R. Popper, Conjectural Knowledge (1971), in Karl R. Popper, Objective Knowledge: An Evolutionary Approach (Oxford: Clarendon Press, 1972), 1-31, p. 18 (argumentando que o grau de testabilidade de uma teoria inversamente relacionado sua probabilidade). 34 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), pp. 265-69. (A traduo do ttulo dessa seo do livro para o ingls fala de Como uma Hiptese Pode Provar o seu Valor; mas na nota de p-de-pgina *1, p. 53, adicionada edio inglesa, Popper reconhece que essa frase potencialmente enganosa.) 35 A corroborao (ou o grau de corroborao) . . . um relato avaliador de performance passada. . . . [N]o diz nada em absoluto sobre a performance futura, ou sobre a confiabilidade de uma teoria. Popper, Conjectural Knowledge (n. 30), p. 18. Na p. 20 ele retorna ao mesmo tema: Dou nfase em argumentos negativos, tais como casos negativos ou contra-exemplos, refutaes e tentativas de refutao em suma, crticas enquanto o indutivista d nfase a casos positivos dos quais extrai inferncias no-dedutivas e que ele espera que garantiro a confiabilidade dessas inferncias. 36 Meu diagnstico envolve alguma reconstruo racional do texto de Popper; detalhes podem ser encontrados em Susan Haack, Evidence and Inquiry: A Pragmatist Reconstruction of Epistemology (1993; 2 ed., Amherst, NY: Prometheus Books, 2009), pp. 144-49. 37 Donald Davidson, A Coherence Theory of Truth and Knowledge, in Kant oder Hegel? ed. Dieter Heinrich (Stuttgard: Klett-Cotta, 1983), 423-38; reimpresso em Alan Malachowski, ed., Reading Rorty (Oxford: Blackwell, 1990), 120-34 (defendendo uma teoria de coerncia da justificao epistmica). Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1979), por ex., p. 152 (argumentando que a confuso de Locke de causao com justificao debilita toda a ideia de uma teoria do conhecimento, e insistindo que projetos epistemolgicos so equivocados e devem ser abandonados). [Introduzi a expresso argumento da irrelevncia da causao em Evidence and Inquiry (n. 35), pp. 68-69 na 2 edio.]

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    observaes e enunciados bsicos, essas relaes teriam de ser ampliativas isto , Popper presume,

    indutivas; e, assim, que observaes no podem justificar enunciados bsicos porque (de acordo com

    Popper) no existem relaes lgicas indutivas.

    Ento, o cerne da filosofia popperiana evitar a verificabilidade, a lgica indutiva, a confirmao,

    o apoio em evidncias e a confiabilidade, e incitar os cientistas a fazer conjeturas ousadas, altamente

    falseveis e portanto improvveis profundamente negativo. Na verdade, a imagem Negativista Lgica

    oficial ainda mais negativa do que Popper reconhece, ou do que j vimos at aqui. Pois se, como Popper

    sustenta, a induo inteiramente injustificvel, no pode haver razo para crer que uma teoria que passou

    em um certo teste hoje passaria no mesmo teste amanh. Alm disso, se, como ele sustenta, a aceitao dos

    enunciados bsicos no justificada pelas observaes dos cientistas, mas uma questo decidida pela

    comunidade cientfica, [ento] no h nenhuma garantia de que um enunciado cientfico que foi falseado,

    no sentido de Popper, seja de fato falso; e isso implica que no se pode mostrar que alegaes cientficas

    so falsas mais do que se pode mostrar que so verdadeiras. Por tudo com o que Popper se apresenta como

    um defensor da cincia, sua filosofia prejudica-lhe a credibilidade: ele tenciona fornecer uma imagem do

    empreendimento cientfico que seja meticulosamente falibilista porm ainda completamente cognitivista;

    mas o que ele de fato nos d um tipo de ceticismo dissimulado.

    Diga-se francamente: apesar da retrica racionalista de Popper, a sua imagem do conhecimento

    cientfico objetivo assustadoramente irracionalista, como um emaranhado de conjeturas injustificadas e

    injustificveis ancoradas em nada mais que decises sem garantia da parte da comunidade cientfica. Por que os

    popperianos no admitiro [que eles acreditam que podemos ter razes para antever uma experincia futura

    em vez de outra], o que eles revelam toda vez que acendem a luz ou usam o telefone?, pergunta D. H.

    Mellor;38 e, de fato, como essa pergunta retrica e queixosa sugere, a enredo popperiano oficial quase

    literalmente inacreditvel.

    3. As partes em que Popper retira o que disse

    De qualquer maneira, como diz Kierkegaard, [e]m relao a seus sistemas a maioria dos

    sistematizadores so como um homem que constri um enorme castelo e vive numa cabana nas

    cercanias;39 e Popper no nenhuma exceo. Quando ele acha seu desconfortvel castelo Negativista

    Lgico inabitvel, ele se refugia em alojamentos mais humildes, mas mais confortavelmente falibilistas. Esse

    Popper-de-contrapartida mais modesto atenua, emenda, amplifica e reapresenta seu Negativismo Lgico

    de formas que ofuscam a questo consideravelmente, obscurecendo tanto o carter quanto a motivao

    para o critrio Negativista Lgico de demarcao. As analogias sedutoras que Popper oferece em apoio ao

    Negativismo Lgico estrito sugerem em vez dele um falibilismo muito mais modesto e defensvel. Os

    novos elementos tericos que ele acrescenta parecem primeira vista moderar a doutrina Negativista Lgica

    de modos promissores, mas sob um olhar mais atento v-se logo que a deixam intocada. E, o tempo todo,

    Popper continua a usar palavras familiares e reconfortantes enquanto, o tempo todo, as despe do

    significado essencial.

    (i) Atenuaes e Emendas Minando a Motivao para a Demarcao: Apesar de sua nfase na importncia de

    distinguir a cincia genuna dos fingimentos, e do suposto sucesso de seu critrio de falseabilidade em expor

    o que h de errado com o marxismo, com a teoria psicanaltica freudiana etc.,40 Popper nos diz que o

    38 D. H. Mellor, The Popper Phenomenon, Philosophy 57(1977): 195-202, p. 196. 39 Sren Kierkegaard, Journals (1846), in A Selection from the Journals of Sren Kierkegaard, Alexander Dru, ed. (Londres & Nova York: Oxford University Press, 1938), p. 156. 40 Ver por ex. Popper, Science: Conjectures and Refutations (n. 28), p. 34 (lembrando que sua pergunta inicial, quando tudo comeou em 1919, foi [o] que h de errado com o marxismo, a psicanlise e a psicologia individual?); Unended Quest (n. 18), p. 38 (lembrando que por volta do fim daquele ano ele havia chegado concluso de que a atitude cientfica . . . no procurava por verificaes mas por testes crticos: testes que poderiam refutar a teoria testada, embora nunca pudessem estabelec-la).

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    conhecimento cientfico contnuo com o conhecimento emprico cotidiano;41 e no corpo de The Logic of

    Scientific Discovery ele descreve seu critrio de demarcao como uma conveno42 - deixando que se pergunte

    por que, exatamente, precisvamos de um critrio de demarcao afinal. Alm disso, ele reconhece que a

    deduo de enunciados bsicos de uma teoria cientfica precisar de pressupostos auxiliares, e que ao

    modificar esses pressupostos poderamos proteger uma teoria do falseamento.43 Ento seu critrio de

    demarcao no , afinal de contas, puramente lgico, mas parcialmente metodolgico; e seu conselho

    metodolgico no , afinal de contas, categrico (abandone uma teoria quando ela falseada), mas

    condicional (abandone uma teoria se no puder encontrar um jeito no ad hoc de driblar evidncias em

    contrrio).44 A esta altura voc se pergunta em que, exatamente, consiste o critrio; o que, exatamente, ele

    exclui;45 e o que, exatamente, pretende-se que ele demarque. Ele se aplica a teorias, e, se assim, pretende-

    se que demarque as cientficas das no-cientficas, ou as empricas das no-empricas? Ou pretende-se, em

    vez disso, que demarque procedimentos cientficos de no-cientficos ou o qu?

    Em The Open Society and Its Enemies (1945), Popper conta-nos que o problema do marxismo

    ortodoxo no era, afinal, que era infalsevel; na verdade, ele foi falseado pelos eventos da Revoluo Russa.

    O problema foi, ao invs disso, que os marxistas se esquivaram dessa refutao pela reinterpretao da teoria.46

    Mas quando veio Conjectural Knowledge (1971), encontramos Popper reconhecendo que modificar uma

    teoria frente a evidncias em contrrio no sempre m prtica; e mesmo reconhecendo o valor de uma

    atitude dogmtica, escrevendo que algum [tem] que defender uma teoria contra crticas ou ela sucumbiria

    muito facilmente.47 A esta altura voc se pergunta se Popper est realmente nos dando o programa

    metodolgico rgido que sua retrica sugere ou apenas as mais gastas das frases feitas metodolgicas.

    (ii) Analogias Sedutoras Incompatveis com o Negativismo Lgico: Em The Logic of Scientific Discovery,48 e mais uma

    vez em Conjectures and Refutations,49 Popper descreve a relao da cincia com sua base emprica como

    estacas fincadas num atoladeiro: uma boa analogia que, entretanto, sugere uma imagem falibilista dos

    enunciados bsicos como parcialmente mas no completamente justificados pelas observaes dos

    cientistas, em vez da imagem Negativista Lgica do empreendimento cientfico como repousando, no

    fundo, sobre decises infundadas. E num artigo publicado em 1968, Popper descreve o trabalho cientfico

    como similar a construir uma catedral:50 uma analogia deveras esplndida que, entretanto, sugere uma

    41 Karl R. Popper, Preface to the English edition, 1958, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), p. 18 (argumentando que o conhecimento cientfico s pode ser uma extenso do conhecimento do senso comum). Presumivelmente essa ideia lhe ocorreu em algum tempo entre 1934 e 1958. 42 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), p. 37 (explicando que [m]eu critrio de demarcao . . . ter de ser considerado uma conveno). 43 Ibid., seo 9. 44 Ibid., p. 82 (sugerindo que a disposio a aceitar o falseamento, em vez da simples falseabilidade, que faz uma teoria ser cientfica). Mas em Conjectural Knowledge (n. 32), p. 12, n. 9, Popper retorna ao entendimento lgico antigo: O problema da demarcao como eu chamo o problema de encontrar um critrio pelo qual podemos distinguir os enunciados da cincia emprica dos enunciados no-empricos. 45 Uma vez o prprio Popper sugeriu que a teoria da evoluo no uma teoria cientfica, mas um programa de pesquisa metafsico. Ver Darwinism as a Metaphysical Research Programme, Unended Quest (n. 18), p. 167. Depois ele mudou de ideia: a teoria da seleo natural testvel, e portanto cincia, afinal. Karl R. Popper, Natural Selection and Its Scientific Status (1977), in A Pocket Popper, David Miller, ed. (Londres: Fontana, 1983). 46 K. R. Popper, The Open Society and Its Enemies (1945; ed. Revista, Princeton, NJ: Princeton University Press, 1950), p. 374 (argumentando que [a] experincia mostra que as profecias de Marx eram falsas. Mas se pode sempre botar a experincia de lado com explicaes. E, de fato, o prprio Marx, e Engels, comearam a elaborao de hipteses auxiliares [para se esquivarem do falseamento]). Ver tambm Unended Quest (n. 18), p. 43. 47 K. R. Popper, Conjectural Knowledge (n. 32), p. 30. 48 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), p. 111. 49 Popper, Humanism and Reason (1952), Conjectures and Refutations (n. 28), 377-999, p. 387. Ver tambm A. J. Ayer, Truth, Verification and Verisimilitude, The Philosophy of Karl Popper (n. 18), 684-92, e a resposta de Popper, Ayer on Empiricism and Against Verisimilitude, Ibid., 1100-1114. 50 Karl R. Popper, On the Theory of the Objective Mind (1968), Objective Knowledge (n. 32), 153-90, p. 185: A cincia . . . um ramo da literatura; e trabalhar na cincia uma atividade humana como construir uma catedral. Popper acrescenta que o mtodo da resoluo de problemas, o mtodo de conjetura e refutao, praticado por ambas [cincia e as humanidades], e vai adiante para comparar a construo de uma teoria da radioatividade com a reconstruo de um texto danificado. Ibid. Mas uma vez que o

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    8

    imagem mais ou menos cumulativa de progresso cientfico. Mas essa imagem no pode ser plausivelmente

    encaixada na concepo falseacionista, de acordo com a qual a cincia seria mais como um canteiro de obras

    kafkaesco onde, a cada dia, os trabalhadores tentam demolir o trabalho do dia anterior e, quando

    conseguem, comeam a construir de novo at o prximo dia. Fica-se com a marcada impresso de que

    Popper quer ter as duas vias: afoito para levar o crdito por uma ideia grande e radical; mas no quer

    engolir suas consequncias grandes e radicais.

    (iii) Prestidigitao: Numa nota apensada edio inglesa de The Logic of Scientific Discovery, Popper nos conta

    que a teoria da verdade de Alfred Tarski51 (que ele, ao contrrio do prprio Tarski, viu como uma verso

    da teoria da correspondncia),52 curou-o de sua relutncia anterior de falar da verdade das teorias

    cientficas.53 Subsequentemente, ele desenvolveu sua teoria da verossimilhana (ou, como ele tambm

    chama, semelhana verdade ou proximidade verdade).54 Poder-se-ia ter a expectativa de que o grau

    de corroborao seria uma medida do grau de verossimilhana. Mas no: Popper diz-nos que o grau de

    corroborao de uma teoria . . . apenas um indicador . . . da verossimilhana, tal qual aparenta no tempo t;55

    e acrescenta que o grau de corroborao apenas nos diz que uma das teorias oferecidas parece luz da

    discusso [em t] a que est mais prxima da verdade.56

    Mais uma vez, em Unended Quest, Popper nos diz que racional agir com base em uma teoria bem

    corroborada; mas j que ele insiste que o fato de que uma teoria corroborada, a qualquer que seja o grau,

    no absolutamente razo para para acreditar que ela verdadeira, que provvel ou que confivel a

    nica racionlia que ele pode oferecer que aes . . . so racionais . . . se so executadas de acordo com

    o estado . . . da discusso cientfica crtica. Talvez, primeira vista, isso soe encorajador. Mas as aspas

    envolvendo racional devem nos alertar que algo est em falta; e a frase seguinte revela que, no entender

    de Popper, que seja racional agir com base em teorias corroboradas nada mais que uma tautologia: [n]o

    h melhor sinnimo para racional do que crtico.57 Ento, afinal de contas, Popper no deu nenhuma

    razo substancial para pensar que mais razovel, no sentido comum da palavra, agir com base em teorias

    bem testadas do que agir com base em pura especulao.

    J em 1972, a teoria de Popper sobre o conhecimento cientfico objetivo toma uma virada

    metafsica. H trs mundos, ele nos diz o fsico; o mental; e o reino abstrato dos enunciados, teorias,

    problemas etc.;58 e ele enfatiza a independncia das entidades abstratas do mundo 3 em relao mente,

    mtodo de conjetura e refutao fora simplificado para resoluo de problemas, e aplicado s humanidades e at literatura, no claro que razo resta para se preocupar com a demarcao. 51 Alfred Tarski, The Concept of Truth in Formalised Languages, Logic, Semantics, Metamathematics, ed. & trad. J. H. Woodger (1956), 152-278 (originalmente publicado em polons em 1933); e The Semantic Concept of Truth (1944), Readings in Philosophical Analysis, Herbert Feigl e Wilfrid Sellars, eds. (Nova York: Appleton Century Crofts, 1949), 52-84. 52 Alfred Tarski, The Semantic Concept of Truth (n. 50), p. 54 (alegando que muitas explicaes sobre a verdade, entre elas a teoria da correspondncia, podem levar a vrios mal-entendidos, e que nenhuma delas pode ser considerada uma definio satisfatria). Compare a Popper, Unended Quest (n. 18), p. 98 (relatando que, em 1935, depois que Tarski explicou sua teoria da verdade para ele, ele percebeu que [Tarski] tinha finalmente reabilitado a muito difamada teoria correspondentista da verdade). 53 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), p. 274 (argumentando que [n]s no precisamos falar que a teoria falsa, mas podemos dizer em vez disso que ela contradita por um certo conjunto de enunciados bsicos. Nem precisamos dizer, sobre os enunciados bsicos, que eles so verdadeiros ou falsos, pois podemos interpret-los como o resultado de uma deciso convencional . . .); e n. *1 (adicionada na edio inglesa) (explicando que [d]evido lio de Tarski, eu no hesito mais em falar de verdade e falsidade). 54 Karl R. Popper, Truth, Rationality, and the Growth of Scientific Knowledge (1963), Conjectures and Refutations (n. 28), 215-52. (Como Popper define, a verossimilhana de uma teoria a proporo de seu contedo da verdade em relao a seu contedo da falsidade; ento por trs da aparncia sua proximidade verdade parece ser algo enganadora.) 55 Popper, Two Faces of Common Sense (1972), in Objective Knowledge (n. 32), 33-105, p. 103 (segundo itlico meu). 56 Ibid. 57 Popper, Unended Quest (n. 18), p. 87. Ver tambm Popper, Conjectural Knowledge (n. 32), p. 22 (reconhecendo que escolher a teoria melhor testada como base de ao . . . no racional no sentido de que baseada em boas razes para esperar que na prtica ser uma escolha de sucesso; no pode haver boas razes nesse sentido). 58 O conhecimento objetivo ao qual ele se refere, diz-nos Popper, consiste em teorias publicadas em livros e peridicos . . . ; discusses sobre tais teorias; dificuldades ou problemas . . . com tais teorias, e at o contedo lgico do nosso cdigo gentico; e ele pertence no ao mundo 1 (o reino dos objetos fsicos) ou ao mundo 2 (o mundo dos estados mentais), mas ao mundo 3 (o reino dos objetos abstratos tais como os nmeros). Karl R. Popper, Two Faces of Common Sense (n. 54), 32-105, p. 73.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    que, como diz, so criadas por nossas atividades mentais mas, uma vez criadas, so independentes de ns.

    Mas se Popper imagina que isso estabelece a objetividade do conhecimento cientfico, s pode ser porque

    ele confundiu a existncia objetiva dos enunciados que fazem uma teoria cientfica (o que a teoria dos trs

    mundos, se verdadeira, garantiria) com a garantia objetiva das alegaes feitas por esses enunciados (para a

    qual a teoria dos trs mundos completamente irrelevante). Nada em seu panorama metafsico leva Popper

    sequer a um passo de distncia do ceticismo dissimulado da sua concepo do conhecimento cientfico

    objetivo, que demandaria uma reformulao epistemolgica radical.

    (iv) Neutralizando Termos Indicadores de Sucesso: Antes que Popper percebesse o quo enganoso isso era, e

    adotasse a palavra corroborao em seu lugar, ele acompanhou a traduo de Rudolf Carnap de sua

    palavra Bewhrung como confirmao; e por um tempo ele prprio at usou a palavra confirmao.

    Mas numa nota de p-de-pgina acrescentada na traduo inglesa de The Logic of Scientific Discovery ele escreve:

    Carnap traduziu meu termo grau de corroborao . . . como grau de confirmao. . . . Eu aderi a seu uso,

    pensando que as palavras no importam. . . . Eu mesmo usei a palavra confirmao por um tempo. . . .

    Todavia constatou-se que eu estava enganado: a associao da palavra confirmao fez diferena. . . . [G]rau

    de confirmao foi logo usado como um sinnimo . . . de probabilidade. Portanto, eu agora o abandonei.

    . . .59

    Um dos artigos nos quais Popper usou a palavra confirmao foi Science: Conjectures and Refutations

    (1957); mas quando esse artigo foi reimpresso em Conjectures and Refutations (1963) ele permitiu que a palavra

    confirmao parmanecesse, sem comentrio o que, claro, levou os leitores a erronamente supor que

    h, afinal, um elemento positivo em sua epistemologia.

    Alm disso, como vimos, Popper usa palavras como conhecimento e descoberta num sentido

    quase-tcnico que os despe de sua conotao usual de verdade.60 Como vimos, ele tambm, embora menos

    abertamente, usa falseado sem sua conotao usual de falsidade. E nos diz que o que ele chama de

    conhecimento cientfico objetivo todo conjetural,61 significando que nada dele acreditado, e nada

    dele jamais garantido por boas evidncias na verdade, no passa de uma rede tecida de palpites.62 Suas

    referncias repetidas ao conhecimento cientfico objetivo podem tranquilizar os ingnuos; mas o fato

    que nada disso faz qualquer coisa para aliviar seu ceticismo dissimulado.

    Enquanto a verso oficial de Popper da Grande Ideia quase to completamente negativa quanto

    possvel, as partes em que ele retira o que disse tornam muito fcil a m interpretao dessa tese oficial

    para imaginar que ela oferece alguma concepo positiva da epistemologia da cincia, quando, na verdade,

    como vimos, ela manifestamente se afasta de todo possvel elemento positivo.

    4. Mal-entendidos do Negativista Lgico Popper

    Ento no deveria haver grande surpresa em descobrir que alguns dos mais famosos admiradores

    de Popper pareciam no ter compreendido inteiramente a filosofia da cincia que endossaram to

    entusiasticamente. Os mais impressionantes desses entusiastas, os assim chamados cavaleiros

    popperianos,63 incluram vrios cientistas britnicos da gerao de Popper de alta distino: Sir Herman

    59 Popper, The Logic of Scientific Discovery (n. 2), pp. 251-52, n. *1. 60 Ver David Stove, Popper and After: Four Modern Irrationalists (1982; reimpresso sob o ttulo Anything Goes: Origins of the Cult of Scientific Irrationalism [Paddington, Australia: Macleay Press, 1999]) (criticando a inclinao de Popper a neutralizar termos de sucesso). Stove, entretanto, no nota que Popper tambm neutraliza termos de fracasso especificamente, falseado. 61 Ver por ex. Popper, Conjectural Knowledge (n. 32), p. 31. 62 Karl R. Popper, Toleration and Intellectual Responsibility (palestra ministrada Universidade de Tbingen, 1981), in Popper, In Search of a Better World (Londres: Routledge, 1992), 188-203, p. 195. (A expresso vem de Xenfanes, mas Popper a usa aqui em proveito prprio.) Popper acrescenta: o conhecimento cientfico . . . consiste em . . . apenas conjeturas. . . . O contedo dessas . . . conjeturas pode ser chamado de conhecimento no sentido objetivo. Ibid., pp. 197, 198. 63 N. do T.: A expresso original, Popperian knights, um trocadilho com Arabian nights (Noites rabes), um ttulo alternativo para Mil e Uma Noites.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    Bondi, Sir Peter Medawar e Sir John Eccles. O que acharam de mais atrativo a respeito das ideias de Popper

    foi, eu suspeito, sua imagem romntica do cientista como um dedicado buscador da verdade, fazendo

    conjeturas ousadas e imaginativas, corajosamente as testando, francamente reconhecendo quando so

    falseadas, e heroicamente comeando de novo. Sem dvida tambm foram encorajados por suas

    declaraes repetidas e enfticas sobre a racionalidade da cincia e a objetividade do conhecimento

    cientfico.

    John Eccles parece ter tido o entendimento mais claro das ideias que estava endossando; mas ele

    deixa bem claro que seu real apelo era que a filosofia de Popper o persuadiu de que no era algo vergonhoso,

    mas uma coisa boa de fato, se sua hiptese fosse refutada o que, relata ele, ajudou-o a superar um episdio

    severo de depresso depois que uma hiptese que havia desenvolvido fora falseada.64 Peter Medawar

    escreve que [a] metodologia cientfica tem a ver com . . . validao e justificao; e embora mais tarde no

    mesmo artigo ele soe algo mais Popperiano, acrescenta que a parte crtica do raciocnio cientfico visa a

    descobrir se as teses imaginativas dos cientistas so teses sobre o mundo real.65 E posso testemunhar da

    minha experincia pessoal que Herman Bondi no entendia o quo radicais de fato eram as ideias que ele

    endossava to entusiasticamente. Comeando uma palestra em 1998 na Universidade de Miami declarando

    que ele era um popperiano empedernido, Bondi explicou que a cosmologia se tornou uma cincia em

    1826, quando Wilhelm Olbers fez a primeira conjetura cosmolgica falsevel; que essa conjetura foi no

    devido tempo falseada; e que uma nova conjetura foi no devido tempo desenvolvida (at aqui, popperiano)

    uma nova conjetura que era agora bem confirmada pela observao (oh-oh!).

    O mesmo mal-entendido tambm encontrado em sentenas ps-Daubert de tribunais federais

    sobre a [in]admissibilidade das provas cientficas: onde, quase sem exceo, os juzes que seguem a sugesto

    da Suprema Corte de que perguntem se depoimentos supostamente cientficos podem ser (e foram)

    testados simplesmente do por certo o que Popper repetida e enfaticamente negava que uma teoria

    que foi testada mas no falseada foi assim mostrada bem garantida, e ento provavelmente confivel.66 No

    caso Bradley v. Brown (1994), o juiz Moody escreve que a corte deve separar hiptese especulativa de teoria

    testada,67 aparentemente inconsciente de que de acordo com Popper todas as teorias cientficas so

    hipteses especulativas. No caso U.S. v. Starzecpyzel (1995) o juiz observa que [o] teste de Daubert . . .

    direciona o juiz a avaliar a qualidade dos teses apoiando a concluso cientfica.68 Em Haggerty v. Upjohn Co. (1996)

    o juiz exclui o especialista da parte queixosa, Dr. Mash, com a justificativa de que tudo o que ele oferece

    uma hiptese que ele ainda precisaria tentar verificar ou refutar submetendo-a a . . . testes.69 Em Tobin v.

    Smithkline Beecham Pharmaceuticals (2001) o juiz admite o depoimento do especialista para a parte queixosa,

    argumentando que havia sido testado numa medida suficiente para demonstrar . . . confiabilidade.70 E meu

    caso favorito! em Fuesting v. Zimmer (2005), supostamente aplicando a clusula popperiana de Daubert, a

    corte escreve que o especialista em questo no conduziu nenhum teste cientfico ou experimento para

    reforar sua teoria, . . . nem . . . se apoiou em quaisquer estudos para verificar suas concluses.71

    Alm disso, embora claramente parte do propsito de Popper seja excluir teorias psicanalticas

    como cincia genuna, eu pude encontrar apenas um exemplo em que um juiz excluiu o depoimento de um

    psiquiatra com a justificativa de que era infalsevel.72 Muito mais comumente, os tribunais admitiam tais

    depoimentos e liam mal Popper do modo agora familiar. O caso Isely v. Capuchin Province (1995), onde o juiz

    64 John C. Eccles, The World of Objective Knowledge, The Philosophy of Karl Popper, (n. 16), vol. 1, 349-70, p. 350. 65 Peter Medawar, Science and Literature, Encounter 32, no. 1 (1969): 15-23, pp. 17,20. 66 digno de nota que o artigo de Popper que o juiz [Harry] Blackmun citou no [caso] Daubert (n. 5) Science: Conjectures and Refutations (n. 28) um dos lugares onde Popper usa a palavra muito enganosa confirmar. Fao uma trajetria dos mal-entendidos sobre Popper das cortes federais detalhadamente em Federal Philosophy of Science: A Deconstruction And a Reconstruction, NYU Journal of Law & Liberty 5, no. 2 (2010): 395-435. 67 Bradley v. Brown, 852 F. Supp. 690, 700 (N. D. Ind. 1994). 68 U.S. v. Starzecpyzel, 880 F. Supp. 1027, 1040 (S.D.N.Y. 1995) (meu itlico). 69 Haggerty v. Upjohn Co., 950 F. Supp. 1160, 1163-4 (S.D. Fla. 1996) (itlico meu). 70 Tobin v. Smithkline Beecham Pharms., 2001 WL 36102161 (D. Wyo. 2001), *9 (itlico meu). 71 Fuesting v. Zimmer, 421 F.3d 528, 536 (7th Cir. 2005) (itlico meu). 72 U.S. v. Carucci, 33 F. Supp. 2d 302, 303 e 303 n. 3 (S.D.N.Y. 1999).

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    escreveu que ele espera que testemunhas especialistas mostrem se [sua] teoria foi provada ou no provada sob

    testes clnicos ou algum outro procedimento aceito para corrobor-la, tpico.73

    5. Antecipaes do Popper nas sombras

    De fato, a imagem (parcial) que o Popper nas sombras apresenta, at certo ponto, muito mais

    plausvel que sua tese oficial Negativista Lgica. Mas a maior parte dos elementos-chave dessa imagem mais

    plausvel a continuidade da cincia com a investigao emprica cotidiana, a importncia do teste e das

    evidncias negativas, a falibilidade de enunciados observacionais, e mesmo analogias proximamente

    aparentadas das analogias do atoleiro e da catedral podem ser encontrados exprimidos por outros,

    muitos deles bem antes de Popper.

    Por exemplo, a ideia de que a cincia contnua com o conhecimento emprico cotidiano, que

    emerge nos escritos de Popper em 1959,74 encontrada numa forma mais sofisticada e metodologicamente

    orientada em Thomas Huxley, que observa que a cincia nada alm de senso comum treinado e organizado, e

    que [o] homem da cincia . . . simplesmente usa com exatido escrupulosa os metodos que todos ns, por

    hbito e a cada minuto, usamos descuidadamente (1874);75 em Einstein, que escreve que a totalidade da

    cincia nada mais que um refinamento do pensamento do dia-a-dia (1936);76 em John Dewey, que

    argumenta que [a] matria de discusso e os procedimentos cientficos crescem dos problemas diretos e

    dos mtodos do senso comum (1938);77 e em Gustav Bergmann, que descreve a cincia, numa metfora

    maravilhosamente vvida, como o brao longo do senso comum (1957).78

    A ideia de que tomar seriamente as evidncias negativas especialmente importante pode ser

    encontrada em Charles Darwin, que nos diz em sua autobiografia que mantinha um caderno especialmente

    para coisas que ele no conseguia explicar porque, continuou, ele sabia que ele era mais propenso a

    esquecer as evidncias negativas do que as positivas.79 Tambm pode se encontrada, de uma forma mais

    terica, em William Whewell, que escreve em seu Philosophy of the Inductive Sciences (1847) que:

    [a] verdade das hipteses tentativas deve ser testada por sua aplicao a fatos. O pesquisador deve estar

    cuidadosamente pronto para tentar suas hipteses dessa maneira, e para rejeit-las se no suportarem o teste,

    a despeito da indolncia e da vaidade.80

    A mesma nfase na importncia do teste encontrada em C. S. Peirce, que escreve que uma hiptese deve

    ser dinstintamente posta como uma pergunta, antes de fazer as observaes que visam a testar sua

    verdade,81 e que [t]oda hiptese deveria ser posta a teste atravs de for-la a fazer previses

    verificveis.82 encontrada at mesmo em William James, quando ele escreve que ser frtil em hipteses

    73 Isely v. Capuchin Province, 877 F. Supp. 1055, 1064 (E.D. Mich. 1995) (itlico meu). 74 Grosso modo, poderamos distinguir trs estgios no pensamento de Popper: a antiga Grande Ideia do Popper precoce de 17 anos; o delineamento completo e articulao linha-dura dessa ideia em 1934; e, ao longo de muitas dcadas depois do prefcio edio em ingls de The Logic of Scientific Discovery, a emergncia gradual do Popper nas sombras. 75 Thomas Huxley, On the Educational Value of the Natural History Sciences (1854), in Huxley, Collected Essays (Londres: MacMillan, 1893), vol. III, 38-65, pp. 45, 46. 76 Albert Einstein, Physics and Reality, Journal of the Franklin Institute 221, no. 3 (1963), reimpresso em Ideas and Opinions, trad. Sonja Bargman (Nova York: Crown Publishers, 1954), 290-323, p. 290. 77 John Dewey, Logic: The Theory of Inquiry (Nova York: Henry Holt & Co., 1938), p. 66. 78 Gustav Bergmann, Philosophy of Science (Madison: WI: University of Wisconsin Press, 1957), p. 20. 79 Charles Darwin, Autobiography and Letters, ed. Francis Darwin (1893; reimpresso, Nova York: Dover, 1952), p. 45. 80 William Whewell, Philosophy of the Inductive Sciences (1847), in Selected Writings on the History of Science, ed. Yehuda Elkana (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1984), 121-259, p. 256 (Aforismo IX). 81 Peirce, Collected Papers, eds. Charles Hartshorne, Paul Weiss e (volumes 7 e 8) Arthur Burks (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-58), 2.634 (1878). [Referncias por volume e nmero do pargrafo.] 82 Ibid., 5.599 (1903). Na mesma passagem, Peirce observa que no devemos prestar muita ateno probabilidade da hiptese, que (ele ento acreditava) era um assunto subjetivo.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    12

    o primeiro requisito, e estar disposto a jog-las fora no momento em que a experincia as contradiz o

    prximo.83

    Diferente de Popper, entretanto, ambos Peirce e Whewell tomam a sobrevivncia bem-sucedida a

    testes como um indicativo da verdade de uma hiptese. Exceto por aquele confirma no final, Whewell pode

    soar um pouco popperiano quando ele escreve que:

    O processo da descoberta cientfica cauteloso e rigoroso, no por se abster de hipteses, mas por comparar

    rigorosamente as hipteses com os fatos, e por rejeitar resolutamente tudo o que a comparao no

    confirmar.84

    Mas no , certamente, nenhum Negativista Lgico, como esta passagem deixa claro:

    A Consilincia de Indues ocorre quando uma Induo, obtida de uma classe de fatos, coincide com uma

    Induo obtida de uma diferente classe. Essa Consilincia um teste da verdade da Teoria na qual ela

    ocorre.85

    E Peirce oferece uma ilustrao vvida do modo como as hipteses se tornam melhor garantidas quando

    elas se engajam em outras que se engajam em outras, . . . , e assim por diante:

    As tradues das inscries cuneiformes . . . comearam como meros palpites, nos quais seus autores no

    poderiam ter nenhuma real confiana. Todavia, ao acumular novas conjeturas sobre conjeturas anteriores

    aparentemente verificadas, essa cincia persistiu para produzir sob nossos prprios olhos um resultado to

    integrado pelas leituras entre si, com a outra histria, e com os fatos conhecidos da lingustica, que no mais

    estamos dispostos a aplicar a palavra teoria para ela.86

    Alm disso, na mesma passagem encontramos Peirce no apenas sugerindo um entendimento

    falibilista dos enunciados observacionais, mas at oferecendo algo muito similar analogia de estacas no

    atoleiro do Popper nas sombras: nosso conhecimento no est de p sobre o leito ptreo dos fatos,

    escreve, [e]st andando sobre um pntano, e pode apenas dizer, esse cho parece seguro para o

    momento.87 E em James encontramos um anlogo prximo da analogia da catedral, quando ele escreve,

    numa passagem raramente notada de The Will to Believe, sobre o magnfico edifcio das cincias fsicas

    e as milhares de vidas morais desinteressadas de homens . . . enterradas em suas . . . fundaes.88

    6. A soluo do Senso Comum Crtico

    O Negativismo Lgico, a tese popperiana oficial, indefensvel. A imagem do Popper nas

    sombras, embora mal seja original, mais plausvel; mas no de forma alguma completa ou bem trabalhada

    ela no de fato uma teoria. A teoria do Senso Comum Crtico que desenvolvi em Defending Science Within

    Reason89 profundamente dissimilar ao popperismo linha-dura, mas acomoda o melhor do Popper nas

    sombras. No ctica, mas falibilista; foca-se menos na demarcao que nas continuidades entre a

    investigao cientfica e outros tipos de investigao emprica; e no puramente lgica, mas do mundo

    no confinada exclusivamente a enunciados e suas relaes lgicas, mas tambm dando um papel ao mundo

    e s interaes dos cientistas com ele.

    83 William James, Great Men and Their Environment (1880), in The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy (1897; reimpresso em Nova York: Dover, 1956), 216-54, p. 249. 84 Whewell, Philosophy of the Inductive Sciences (n. 78), p. 256, Aforismo X. 85 Ibid., p. 257, Aforismo XIV. 86 Peirce, Collected Papers (n. 79), 87 Ibid. 88 William James, The Will to Believe (1896) in The Will to Believe and Other Essays (n. 79), 1-31, p. 7. 89 Susan Haack, Defending Science Within Reason: Between Scientism and Cynicism (Amherst, NY: Prometheus Books, 2003). A expresso Critical Common-sensim adotada e adaptada de Peirce. [N. do T.: Aqui traduzirei o termo nas formas Sensismo-Comum Crtico e teoria do Senso Comum Crtico.]

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

    13

    O primeiro passo superar a preocupao popperiana com a demarcao:

    Embora (sem dvidas por causa dos sucessos notveis das cincias naturais) as palavras

    cincia, cientfico, e seus cognatos sejam frequentemente usadas como termos

    genricos de elogio epistmico, esse uso honorfico enganoso: h trabalho cientfico ruim

    tanto quanto h bom. Em vez de dispensar trabalho cientfico ruim com a acusao

    genrica, pseudocincia, sempre melhor dizer o que, especificamente, h de errado

    com ele.

    Que uma pretensa explicao exclua algumas concluses possveis no um sinal de que

    ela cientfica em particular, mas um sinal de que ela de fato explicativa.

    A disposio a tomar seriamente as evidncias negativas uma marca no do cientista em

    particular, mas do investigador honesto em geral, seja ele um cientista, um historiador, um

    jurista ou acadmico das letras, ou o que quer que seja.

    A palavra cincia (ou, melhor ainda, a expresso as cincias) melhor interpretada

    como se referindo a uma federao frouxa de tipos de investigao de fenmenos naturais

    e sociais; e como distinta de outros tipos legtimos de investigao tais como a investigao

    legal ou literria, a histria, a metafsica, a matemtica etc., por seu objeto de estudo.90

    O prximo passo repensar totalmente a ideia do Mtodo Cientfico, comeando por distinguir entre (i)

    os procedimentos seguidos por todos os investigadores empricos srios e (ii) os instrumentos, tcnicas etc.,

    especializados gradualmente desenvolvidos pelas vrias cincias.

    Qualquer investigador emprico srio proceder por fazer uma conjetura informada sobre

    a explicao para um fenmeno ou evento intrigante, descobrindo as consequncias de a

    conjetura ser verdadeira, checando o quo adequadamente essas consequncias resistem

    s evidncias que ele tem e quaisquer outras evidncias adicionais que possa obter, e ento

    usando seu julgamento sobre se deve manter a conjetura, modific-la, abandon-la e

    recomear, ou esperar por mais evidncias.

    Ao longo do tempo, as vrias cincias gradualmente desenvolveram instrumentos de

    observao, tcnicas de extrao, purificao, titulao etc., ferramentas matemticas

    como o clculo, tcnicas estatsticas, programas de computador, incentivos honestidade

    e ao compartilhamento de evidncias . . . etc. etc., para amplificar e refinar os

    procedimentos de toda investigao emprica sria.

    Os procedimentos de toda investigao emprica sria no so usados apenas pelos cientistas; e as

    ferramentas, tcnicas etc. especializadas que evoluem gradualmente, muitas vezes locais a um campo

    especfico da cincia, no so usadas por todos os cientistas. Ento, nenhum pode ser identificado como o

    Mtodo Cientfico; e ainda assim, juntos, comeam a explicar como as cincias foram to bem-sucedidas

    quanto foram.

    A seguir, devemos substituir o convencionalismo de Popper sobre a base emprica da cincia por uma teoria

    filosfica mais razovel sobre o papel da observao ou, de forma mais geral, das evidncias sensoriais. O que necessrio

    uma explicao que distinga as observaes dos enunciados observacionais; que substitua uma distino

    ntida de enunciados tericos de observacionais por um continuum do que mais ou menos observacional;

    e que reconhea que o que um cientista observa pode dar-lhe fundamentos, embora fundamentos falveis,

    para acreditar que (digamos) o ponteiro no mostrador indica sete, ou que h um cisne negro no lago, e que

    consequentemente possa contribuir para a garantia das teorias cientficas.

    90 Ver tambm Susan Haack, Seis Sinais de Cientificismo (Publicaes da Liga Humanista Secular do Brasil, 2012). Disponvel em http://lihs.org.br/cientificismo.

    http://lihs.org.br/cientificismo

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    So, em parte, as observaes dos cientistas que os justificam em aceitar alegaes como

    Eis aqui um copo dgua; mesmo embora apenas em parte, pois mesmo um enunciado

    to simples como esse carrega alguma bagagem terica.

    A presuno de que a justificao uma questo puramente lgica, e portanto pode envolver

    apenas relaes entre enunciados, que crucial no primeiro argumento de Popper pela irrelevncia da

    observao, falsa. A justificao parcialmente (quase-)lgica, mas tambm parcialmente causal. No

    importa apenas em que uma pessoa acredita, mas tambm por que acredita nisso. As observaes contribuem

    para a justificao das alegaes cientficas em virtude do modo como a linguagem aprendida: como, por

    exemplo, algum ver um cachorro contribui para a justificao de sua crena de que h um cachorro

    presente, em virtude de ter aprendido a palavra cachorro em parte ao ouvi-la sendo usada na presena de

    cachorros claramente visveis. Entretanto, a maioria das palavras no aprendida nem exclusivamente por

    ostenso nem exclusivamente pela explicao dos termos em outras palavras, mas por uma combinao das

    duas coisas; e uma experincia contribui mais para a justificao de uma crena quanto mais seu significado

    depender da primeira, e quanto menos depender mais da ltima.

    Isso significa que devemos virar a epistemologia sem um sujeito cognoscente de Popper de ponta-cabea. Uma

    epistemologia da cincia adequada deve comear com o sujeito cognoscente; pois a cincia em ltima anlise

    depende das evidncias dos sentidos e so sujeitos cognoscentes individuais que tm tais evidncias.

    Porque a cincia, como toda investigao emprica, depende em ltima instncia das

    interaes sensoriais das pessoas com o mundo, o grau ao qual uma alegao garantida

    pelas evidncias possudas por uma pessoa em um certo tempo primrio.

    O grau ao qual uma alegao garantida pelas evidncias compartilhadas por um grupo

    de pessoas em um certo tempo, e o grau ao qual uma alegao garantida pelas evidncias

    disponveis em um certo tempo devem ser entendidos como (legtimos mas) secundrios.

    Ento teremos de embarcar na difcil tarefa de compreender as complexidades das evidncias e dos

    determinantes da qualidade evidencial.

    As evidncias a respeito de qualquer alegao cientfica sria se ramificam em todas as

    direes, similarmente ao que acontece com as entradas num jogo de palavras cruzadas.

    O quo adequadamente as evidncias garantem uma alegao depende do quo

    adequadamente elas a apoiam (apoiamento); do quo seguras so, independentemente da

    alegao em questo (segurana independente); e de quanto incluem das evidncias

    relevantes (abrangncia).91

    Porque os determinantes da qualidade evidencial so multidimensionais, eles no produziro

    necessariamente um ordenamento linear; alm disso, se h evidncias insuficientes para ambos os lados,

    nem p nem no-p podem ser garantidas para qualquer grau. Ento, o prximo passo distinguir probabilidades

    epistmicas de probabilidades matemticas.92

    91 Ver tambm An Epistemologist Among the Epidemiologists, in Putting Philosophy to Work: Inquiry and Its Place in Culture Essays on Science, Religion, Law, Literature, and Life (Amherst, NY: Prometheus Books, 2013), pp. 195-97; e Susan Haack, Proving Causation: The Holism of Warrant and the Atomism of Daubert, Journal of Biomedical and Health Law 4 (2008): 253-89 (argumentando que algumas combinaes de pedaos de evidncia, nenhuma das quais seria suficiente por si s para estabelecer causao geral para o grau de prova exigido, podem faz-lo em conjunto). 92 N. do T. No original, distinguish epistemic likelihoods from mathematical probabilities. A palavra likelihood, aqui traduzida como probabilidade, costuma tambm ser traduzida como verossimilhana. No creio que verossimilhana seja uma boa traduo. Tanto quanto likely corrente no ingls coloquial, no portugus costumamos usar a expresso qual a chance de tal evento acontecer?. Chance poderia ser uma opo melhor para likelihood. Aqui, usaremos probabilidade por causa da distino explcita da frase.

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    Quanto melhor garantida est uma teoria, maior a chance de que seja verdadeira. Mas essas

    so chances epistmicas, e no podem ser interpretadas em termos de clculo matemtico

    de probabilidades.

    Como isso releva, repudiar o probabilismo no nos obriga, como Popper presume, a tambm rejeitar

    a ideia de evidncias de apoio ou de teoria bem garantida.

    Em seguida, precisamos de um entendimento do que faz evidncias apoiarem uma alegao.

    O quo adequadamente evidncias apoiam uma alegao depende do quo precisamente

    as duas se encaixam para formar uma descrio explicativa.

    A explicao dependente de vocabulrio; uma descrio genuinamente explicativa, melhor dizendo, exige

    termos gerais identificando tipos reais de coisas; ento o apoiamento no uma relao puramente formal

    e lgica, mas depende em parte do encaixe do vocabulrio cientfico ao mundo. No h lgica indutiva

    sintaticamente caracterizvel; h, entretanto, evidncias que apoiam mais ou menos. Agora vemos a falha

    no segundo argumento de Popper para a irrelevncia da causao: a premissa de que no pode haver tal

    coisa como evidncia apoiadora mas no conclusiva (como uma das premissas de seu primeiro argumento,

    que a justificao um conceito puramente lgico) falsa.

    O ltimo passo parar de pensar em racionalidade cientfica em termos puramente lgicos, e reconhecer que

    a investigao cientfica de sucesso, como a investigao emprica de qualquer tipo, uma questo em parte

    sobre nossas interaes com o mundo, e ento possvel apenas porque ns, e o mundo, somos de um

    certo jeito.

    Nossos sentidos nos do informaes sobre coisas particulares e eventos no mundo, e

    essas coisas e eventos so de tipos, e so sujeitas a leis.

    E assim, se para haver tal coisa como investigao inteligente sobre o mundo, ento

    mesmo embora haja muito mais falsos comeos que suposies de sucesso, e mesmo

    embora cada passo em frente seja falvel e provisrio fazer palpites informados sobre a

    possvel explicao para fenmenos ou eventos intrigantes, inventar modos de checar

    esses palpites, e ver o quo adequadamente eles resistem s evidncias uma forma

    racional de proceder.

    Talvez um pouco de amplificao esteja prevista, caso algum seja tentado a objetar que eu no

    tomei o argumento de Hume sobre a induo to seriamente quanto Popper faz, ou to seriamente quanto

    merece ser tomado. Distingui a viabilidade da lgica indutiva e a defensabilidade do probabilismo (ambos

    os quais, como Popper, eu rejeito) da legitimidade da ideia de evidncias apoiadoras mas no conclusivas

    (que, diferente de Popper, eu aceito); delineei os bastante modestos pressupostos metafsicos que vejo

    como subjacentes viabilidade do conceito de apoiamento; e fiz apenas a alegao condicional de que, se

    possvel para ns descobrir como o mundo funciona, o Sensimo-Comum Crtico melhor explica como o

    fazemos.93 Creio que isso seja suficiente.

    93 Compare ratificao condicional da minha teoria epistemolgica no captulo 10 de Haack, Evidence and Inquiry (n. 35).

  • Susan Haack - Diga No ao Negativismo Lgico

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    Agora impressiono-me com a ironia extraordinria de Popper ter escolhido, como lema para The

    Open Society and Its Enemies, esta passagem de Erehwon, de Samuel Butler:

    . . . os erehwonianos so um povo manso e sofredor, facilmente manipulveis e ligeiros em oferecer o senso

    comum94 no altar da lgica, quando um filsofo aparece entre eles . . .95

    Ento no posso resistir em ter um pouco de diverso maldosa mostrando possveis subttulos que

    eu poderia ter dado a este artigo: A Mixrdia do Falseacionismo, talvez, ou Abaixo o Dedutivismo?

    Mas, no: em vista do lema de Popper, eu teria de escolher Finalmente, Algum Senso Comum Crtico

    sobre o Racionalismo Crtico.

    94 N. do T. Aqui, common sense tambm poderia ser traduzido como bom senso. 95 Samuel Butler, Erehwon (1872; reimpresso, Londres: J. Cape, 1927). O ttulo diz Lugar nenhum [Nowhere] soletrado ao contrrio [Erehwon].

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    Para citar:

    Haack, S. Diga No ao Negativismo Lgico. Publicaes da Liga Humanista Secular do Brasil, 2014.

    Disponvel em .

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    2014

    http://lihs.org.br/popperhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/deed.pt_BRhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/deed.pt_BRhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/deed.pt_BRhttp://ligahumanista.org.br