gramática - nilson lage

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GRAMÁTICA DO TEXTO JORNALÍSTICO Por Nilson Lage [AULA 1] O jornalismo é uma forma de conhecimento e, como tal, incumbe-se de atualizar o nível de informação da população com velocidade impossível de alcançar por outro meio. Sua necessidade social ampliou-se na medida em que as transformações políticas, sociais, científicas e tecnológicas se aceleraram, tornando inviável a atualização por outros processos, como contatos pessoais, demonstrações em auditórios etc. O jornalismo seria, assim, responsável tanto pela amplitude quanto pela superficialidade do conhecimento que as pessoas têm, fora de suas áreas específicas de atuação. No entanto, a influência da atividade jornalística penetra mesmo em setores que dispõem de estruturas próprias de coleta de dados. Uma pesquisa (SCHUCH, 1997), realizada no universo das principais empresas de Santa Catarina, revela que seus executivos baseiam-se em jornais (particularmente na Gazeta Mercantil) para formular decisões estratégicas. O mesmo se observa, por exemplo, na indústria norte-americana de espetáculos, com relação à crítica especializada, ou nos mercados de capitais, em que corriqueiramente informações da imprensa sobre desempenho de setores produtivos provocam reações antes de serem divulgadas oficialmente – por exemplo, nos balanços. É óbvia a influência do jornalismo em processos políticos como as eleições. No entanto, a aferição dessa influência costuma ser destorcida por uma tendência genérica dos grupos de poder: eles consideram ótimo o jornalismo quando é a favor e péssimo quando é contra, independente da verdade ou falsidade dos conteúdos. Da perspectiva profissional, os critérios são outros: uma boa notícia não é a mais bem escrita ou a mais construtiva, mas, principalmente, a verdadeira. Parece óbvio que toda notícia apaixonante beneficia ou agrada a uns e prejudica ou desagrada a outros. Neste aspecto, o jornalismo tem uma confiança tal em seu discurso que se aproxima da ciência: define verdade, à maneira de Isaac Israeli (Século IX), como adequação desse discurso à realidade. Não passou certamente pela cabeça de Isaac Newton, ao enunciar a Lei da Gravitação Universal, discutir se seria ou não conveniente para a humanidade continuar ignorando os princípios da gravidade, que sempre existiu. Da mesma forma, seria insensato imaginar que Alan Turing destruísse os originais de sua pesquisa sobre a máquina universal de processamento de informações, na década de 30, por antever que os computadores poderiam causar desemprego. Excluídas algumas situações chamadas de éticas, em que o prejuízo é imediato e evidente (como pode ser o caso de negociações no curso de seqüestros ou do envolvimento de menores em crimes), a tendência dos jornalistas é considerar adequada a divulgação de informação de interesse público sobre que têm certeza. A dificuldade de distinguir o que é público e o que é privado ou de confrontar o que se supõe que as pessoas precisam ouvir e o que elas querem realmente ouvir não é problema só do jornalismo, mas, no geral, das sociedades em que é praticado.

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livro gramatica do texto jornalistico, de nilson lage, grande jornalista

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  • GRAMTICA DO TEXTO JORNALSTICO

    Por Nilson Lage

    [AULA 1]

    O jornalismo uma forma de conhecimento e, como tal, incumbe-se de atualizar o nvel de informao da populao com velocidade impossvel de alcanar por outro meio. Sua necessidade social ampliou-se na medida em que as transformaes polticas, sociais, cientficas e tecnolgicas se aceleraram, tornando invivel a atualizao por outros processos, como contatos pessoais, demonstraes em auditrios etc.

    O jornalismo seria, assim, responsvel tanto pela amplitude quanto pela superficialidade do conhecimento que as pessoas tm, fora de suas reas especficas de atuao. No entanto, a influncia da atividade jornalstica penetra mesmo em setores que dispem de estruturas prprias de coleta de dados.

    Uma pesquisa (SCHUCH, 1997), realizada no universo das principais empresas de Santa Catarina, revela que seus executivos baseiam-se em jornais (particularmente na Gazeta Mercantil) para formular decises estratgicas. O mesmo se observa, por exemplo, na indstria norte-americana de espetculos, com relao crtica especializada, ou nos mercados de capitais, em que corriqueiramente informaes da imprensa sobre desempenho de setores produtivos provocam reaes antes de serem divulgadas oficialmente por exemplo, nos balanos.

    bvia a influncia do jornalismo em processos polticos como as eleies. No entanto, a aferio dessa influncia costuma ser destorcida por uma tendncia genrica dos grupos de poder: eles consideram timo o jornalismo quando a favor e pssimo quando contra, independente da verdade ou falsidade dos contedos. Da perspectiva profissional, os critrios so outros: uma boa notcia no a mais bem escrita ou a mais construtiva, mas, principalmente, a verdadeira. Parece bvio que toda notcia apaixonante beneficia ou agrada a uns e prejudica ou desagrada a outros.

    Neste aspecto, o jornalismo tem uma confiana tal em seu discurso que se aproxima da cincia: define verdade, maneira de Isaac Israeli (Sculo IX), como adequao desse discurso realidade. No passou certamente pela cabea de Isaac Newton, ao enunciar a Lei da Gravitao Universal, discutir se seria ou no conveniente para a humanidade continuar ignorando os princpios da gravidade, que sempre existiu. Da mesma forma, seria insensato imaginar que Alan Turing destrusse os originais de sua pesquisa sobre a mquina universal de processamento de informaes, na dcada de 30, por antever que os computadores poderiam causar desemprego.

    Excludas algumas situaes chamadas de ticas, em que o prejuzo imediato e evidente (como pode ser o caso de negociaes no curso de seqestros ou do envolvimento de menores em crimes), a tendncia dos jornalistas considerar adequada a divulgao de informao de interesse pblico sobre que tm certeza. A dificuldade de distinguir o que pblico e o que privado ou de confrontar o que se supe que as pessoas precisam ouvir e o que elas querem realmente ouvir no problema s do jornalismo, mas, no geral, das sociedades em que praticado.

  • No entanto, h diferenas importantes entre o discurso jornalstico e o discurso cientfico: uma delas que o primeiro um discurso de aparncias. Qualquer que sejam as verses difundidas numa matria de jornal ou revista, no importando a linha editorial, o mais importante so sempre os fatos. So estes o que os reprteres apuram e que valorizam. J na cincia, o que se investiga so essncias: leis, princpios e postulados que devem reger conjuntos de fatos; teorias que se sustentam enquanto no se consegue comprovar sua falsidade.

    Quando o jornalismo tenta abordar essncias da realidade, geralmente foge a suas caractersticas informativas, perde a novidade, recorre ao lugar comum e torna-se subliteratura. A literatura, a partir da forma da lngua e da vaguidade dos conceitos, cuida de revelar verdades essenciais. O mtodo no a inferncia dedutiva, como se pretende numa demonstrao cientfica, mas o insight, a experincia, a induo. Assim se pode dizer que uma obra de fico encerra realidade vises pessoais, parciais e essenciais; esse percurso no vivel nas condies industriais em que se produz normalmente o jornalismo. O insight, a experincia e a induo tambm existem na cincia quando ela formula hipteses e idealiza modelos, que so falseamentos geralmente baseados na abstrao de algum ou alguns aspectos da realidade; a questo que hiptese e modelos tm ser verificados e comprovados, o que no se exige da obra literria.

    Em sntese, o jornalismo, como a cincia, pretende que a verdade objetiva existe e que possvel discorrer sobre ela; no investiga essncias e assume as verses impostas pela ideologia, procurando preservar, no entanto, a inteireza dos fatos. No trabalha, ao menos conscientemente, sobre a forma da lngua para aprofundar ou desvelar algo que relata, nem se baseia na intuio, experincia ou capacidade indutiva do autor.

    Pelo jornalismo passam discursos ideolgicos que provm, em maior escala, dos setores dominantes das sociedades. O mesmo ocorre com outros mdia, como a universidade, as escolas de ensino mdio e primrio, produtos artsticos e de recreao. No entanto, a visibilidade da presena desse discurso no jornalismo maior, uma vez que suas mensagens so mais explcitas e se reportam a assuntos de interesse imediato.

    No ensino, as turmas so relativamente homogneas, h obrigatoriedade de freqncia e avaliaes peridicas. A informao jornalstica, pelo contrrio, destina-se a pblico diversificado, disperso e pode ser ignorada ou omitida basta no comprar o jornal, p-lo de lado, desligar ou mudar a estao de rdio, de televiso, a pgina da Internet. Isso obriga o jornalismo a ser atraente, o que significa ser facilmente compreensvel e conformar-se a pelo menos alguns dos valores, aspiraes e fantasias de um pblico.

    Enunciados jornalsticos esto sendo tomados, modernamente, como padro da lngua culta, tanto escrita quanto oral embora, neste caso, haja apenas simulao de oralidade. Falas jornalsticas, no rdio ou na televiso, correspondem leitura de textos feitos para serem lidos em voz alta ou, no caso da narrativa simultnea de eventos (como jogos desportivos ou desfiles de carnaval), repetio de poucas estruturas modulares, com eventual recurso a suportes escritos e comentaristas especializados.

  • A pr-histria do jornalismo

    Os sistemas sociais de difuso de informao envolviam, nos estados clssicos, dois circuitos:

    1. o oficial, constitudo por mensageiros ou arautos que levavam populao decises e conclamaes do poder leigo; sacerdotes, incumbidos da tarefa de convencimento e da mobilizao comunitria; e artistas (poetas e atores, em forma lingstica, mas tambm pintores, escultores e arquitetos), empenhados na exaltao do estado ou da f;

    2. o privado, constitudo por trovadores que receberam, em pocas e pases diferentes, diversas denominaes (na Grcia, aedos); por eles transitavam histrias centradas em enredos fantsticos ou envolventes, geralmente com localizao e temporalidade imprecisas. Pode-se acompanhar, ao longo dos anos, o trajeto de alguns desses contos, como As aventuras de Cid, ao longo de dcadas, pela Europa medieval.

    Sempre que o nvel de alfabetizao permitia, utilizavam-se suportes escritos. o caso das Actae Durnae do Senado romano, ou dos Avvisi, mandados redigir por banqueiros e comerciantes nas cidades litorneas da Itlia do Sculo XIV. Em ambos os casos, os manuscritos eram colados nas paredes.

    Passaram-se 150 anos entre a descoberta, na Europa, do tipos mveis, e o surgimento da imprensa peridica, que s ocorreu no incio do Sculo XVII. Dois processos dessa poca so considerados essenciais: a difuso da alfabetizao e a expanso dos servios de correios, que permitiam o trfego mais rpido de informaes. Um terceiro processo foi fundamental para a rpida difuso dos jornais: a luta da burguesia pelo poder.

    Formas clssicas dos discursos no artsticos

    Os discursos no-artsticos (isto , no construdos com preocupao dominantemente esttica) sempre compuseram a maior parte dos enunciados sociais. A preocupao de quem redige uma lei, um documento oficial ou cientfico distribui-se por igual entre fatores que podem ser considerados equivalentes s leis estabelecidas por Grice para a conversao.

    A cada uma das mximas de Grice corresponde uma regra da estilstica tradicional. Assim, a informao deve ser a necessria para os fins do documento e no excedente; ser verdadeira ou, no mnimo, verossmil (admitindo-se que alguns documentos, como algumas falas, so realmente maliciosos); ser relevante, no-ambgua, concisa, estruturar-se segundo preceitos lgicos e com a clareza necessria para ser compreendida pelo(s) destinatrio(s).

    Mximas de Grice

    1. Mximas da quantidade a. Faa sua contribuio to informativa quanto necessrio (para os propsitos reais da troca de informaes); b. No faa sua contribuio mais informativa do que o necessrio.

  • 2. Mximas da qualidade Tente fazer sua contribuio verdadeira a. No diga o que acredita ser falso; b. No diga algo de que voc no tem adequada evidncia.

    3. Mxima da relao Seja relevante

    4. Mximas da maneira Seja claro a. Evite a obscuridade; b. Evite expresses vagas e ambguas; c. Seja breve (evite a prolixidade); d. Seja ordenado

    Ao lado de textos construdos com esses cuidados, existem outros, com estrutura particular: os retricos, preocupados com o convencimento. A oratria desenvolveu-se notavelmente nas cidades gregas em que as assemblias enfeixavam todo ou quase todo o poder. Prosperou em Roma, quer na forma de discursos polticos, dirigidos elite, quer como conclamao s massas (j se chamavam assim, naquele tempo), quer como parte da deciso jurdica, em que se arbitra o que , a partir de ento, imposto como verdadeiro.

    At que ponto a retrica encerra verdade no sentido jornalstico ou cientfico? A pergunta no cabvel, uma vez que, no discurso retrico, o que est em jogo no a verdade como adequao do enunciado coisa, mas outras instncias do conceito: uma verdade relativa, ou convico, que expressa interesses, como na publicidade; ou ento a verdade como revelao ou deslumbramento, como nos sermes religiosos. De fato, o que importa, no discurso de convencimento, transferir essa convico ou impor esse deslumbramento. Em um mundo mergulhado em enunciados retricos, a realidade tende a conformar-se ao discurso, de modo que ele se consolida nas crenas das pessoas, transfere-se aos objetos de cultura - e se materializa, ento.

    O discurso retrico voltado para as verses ou interpretaes da realidade; o discurso informativo, essencialmente, para os fatos. Assim, no se pode dizer que haja m f quando o Padre Antnio Vieira calcula em 20 milhes o nmero de ndios existente no Maranho, no sculo XVII; o que importa a utilizao desse dado, em que h evidente exagero, para a defesa da causa do no-extermnio, da no-escravido e da evangelizao dos ndios. Da mesma forma, os promotores de causas modernas costumam ampliar a relevncia de fenmenos como a prostituio infantil, a incidncia da crie dentria ou a destruio ecolgica. As boas intenes, nessa linha de raciocnio, inocentariam a mentira.

    O exagero um recurso retrico entre outros - por exemplo, a repetio, o uso de efeitos fonticos atraentes ou de associaes analgicas (entre medo e escurido, entre seqncia e conseqncia, entre revelao e claridade etc.). Discursos retricos sempre foram esteticamente mais cuidados do que os informativos: a beleza e o ritmo fazem parte de seu poder de atrair. No entanto, os padres da esttica variam conforme a natureza dos pblicos destinatrios.

  • Pode-se admitir, como parece bvio, que o jornalismo contemporneo descende dos discursos informativos clssicos; e que a publicidade, da mesma forma, decorre dos discursos retricos. No entanto, a relao no to simples: na verdade, o universo poltico e social retrico, e o jornalismo est imerso nele; a forma de convivncia , a, o discurso indireto, em que opinies, interpretaes ou verses so dadas como manifestas e, assim, citadas.

    "O discurso citado", escreve Mikhail Bakhtin (BAKHTIN,1992, pp. 144 fls), " o discurso no discurso, a enunciao na enunciao, mas , ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciao sobre a enunciao". O discurso citado " visto pelo falante como a enunciao de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de construo completa e situada fora do contexto narrativo". A partir dessa existncia autnoma, o discurso de outrem "passa para o contexto narrativo, conservando o seu contedo e ao menos rudimentos de sua integridade lingstica e de sua autonomia estrutural primitivas".

    Bakhtin observa que quem apreende a enunciao de outrem "no um ser mudo, privado de palavra, mas, ao contrrio, um ser cheio de palavras interiores". No discurso jornalstico, pelo menos em suas formas cannicas (a notcia e a reportagem), as formas de citao usuais so o discurso direto e o indireto; outros processos, como o discurso indireto livre (em que o narrador assume a subjetividade do indivduo citado) no so considerados legtimos. A nica responsabilidade que o jornalista se impe diante de uma citao (embora no seja sempre esse o entendimento legal) que ela esteja conforme a essncia (ou a forma, se entre aspas) do discurso citado. Ainda assim, quem cita escolhe o que cita e, de muitas maneiras, assume posies em face da citao.

    O narrador pode interferir pela escolha do verbo dicendi ou proposicional, pela definio de circunstncias para o trecho citado, pela seleo de trechos entre aspas etc. Pode suprimir o contexto da enunciao (extrair o texto do contexto) ou, pelo contrrio, explicit-lo - isto conforme suas intenes, ou quantas inferncias adicionais imagine possibilitar ao leitor. Compare-se:

    1. Em discurso direto:

    a."Vamos recorrer no Judicirio at a ltima instncia", disse o advogado.

    b."Vamos recorrer no Judicirio at a ltima instncia", advertiu o advogado.

    c."Vamos recorrer no Judicirio at a ltima instncia", ameaou o advogado.

    2. Em discurso indireto:

    a.Marta Suplici disse que, em carter pessoal, votar em Mrio Covas.

    b. Marta Suplici anunciou seu voto em Mrio Covas, "em carter pessoal".

    c.Discordando da orientao do Diretrio Nacional do PT, que recomendou no apoiar nenhum candidato ligado a Fernando Henrique Cardoso, Marta Suplici tornou pblica sua "deciso pessoal" de votar em Mrio Covas.

  • Os stile books (livros de normas) de alguns veculos preocupam-se com alguns desses recursos, vedando a utilizao de verbos que encerram ntido juzo de valor, como ameaar, vociferar ou disparar. No entanto, a preocupao manifesta com a exatido da citao, a reiterao de seu contedo podem ser tambm recursos para desqualific-la ou fornecer elementos para sua crtica:

    1.O Ministro da Fazenda disse, ao longo da entrevista, que a prorrogao da CPMF " indispensvel", "mais do que necessria", "essencial" e que o aumento de 50 por cento da alquota "no pode ser descartado", " provvel", "est quase decidido".

    Combinada com um antecedente circunstancial - e a partir do princpio retrico de que "se a vem antes de b, a a causa de b", ou post hoc ergo propter hoc - uma citao pode assumir o valor de discurso opinativo:

    2. O parlamentar governista, cujo salrio aumentar com a elevao do teto de vencimentos do funcionalismo, manifestou-se "plenamente favorvel" medida.

    A citao tomada, no discurso cientfico ou jurdico, tal como na retrica clssica, como base para o argumento de autoridade; o que se passa, neste texto, com as citaes de Bakhtin. Mas no o caso do jornalismo contemporneo, inserido no que o autor sovitico chama de individualismo relativista. Adverte ele que " importante determinar o peso especfico dos discursos retrico, poltico ou jurdico na conscincia de um dado grupo social em determinada poca", bem como "a posio que um discurso citado ocupa na hierarquia social de valores".

    A histria moderna dos discursos no-artsticos

    Na Idade Mdia, os discursos no-artsticos constituem documentos fundamentais para o estudo da evoluo do latim vulgar e de sua diluio em dialetos comunitrios e regionais por toda a Europa. Anais, atas, decretos, relatrios, proclamaes, crnicas (episdios listados em ordem cronolgica) constituem parte substancial da bibliografia dos dicionrios etimolgicos.

    Com o renascimento e a formao dos estados nacionais modernos, as lnguas nacionais foram impostas a reas territoriais extensas atravs de mecanismos compulsrios e sistemas escolares que partiram da estruturao dessas lnguas em documentos literrios cannicos, como Os Lusadas, de Cames, Dom Quixote, de Cervantes, peas de Shakespeare e poemas de Mlton, o teatro de Racine e Molire.

    A literatura - pelo menos, essa literatura - passou a ser o padro ao qual deveriam conformar-se os discursos institucionais. por esse tempo que nasce o jornalismo, caracterizado, inicialmente, como publicismo e com a tarefa histrica de confrontar a aristocracia a servio da ideologia burguesa. Os grandes jornalistas do Sculo XVIII foram escritores, nem sempre brilhantes, e crticos do poder aristocrtico; consideravam-se e eram considerados portadores da verdade iluminista. O jornalismo era, ao mesmo tempo, retrico e literrio.

    O pblico era restrito, porque a alfabetizao ainda no se difundira o bastante; os enunciados dirigiam-se a formadores de opinio, pessoas que, por definio, dispunham de alguma liderana na sociedade. Opinio, interpretao e fatos se misturavam, a ponto de ser difcil distingui-los. A prpria diviso das matrias por assuntos - que daria origem s modernas editorias - demorou a acontecer.

  • As mudanas aceleraram-se no Sculo XIX, em parte por causa da mecanizao da indstria grfica e do surgimento da publicidade, que baixou o custo de produo dos jornais e reduziu de maneira radical o espao para a opinio divergente, isto , daquela contrria ao poder econmico; data dessa poca o fim da censura de estado por toda a Europa. O principal fator para a mudana, no entanto, ter sido a generalizao do ensino bsico, por conta da revoluo industrial.

    O pblico multiplicou-se, alterando a demanda de informao. Dentre os vrios caminhos tentados - novelas contadas no rodap das pginas, desenhos e gravuras que dariam origem s charges e s histrias em quadrinhos, campanhas de opinio contundentes etc. - o que mais se mostrou frutfero foi a explorao do noticirio. Os novos leitores apreciavam histrias fantsticas e sentimentais, acontecimentos emocionantes e portentosos, relatos de pases distantes, selvagens ou misteriosos e a ampliao de dramas do cotidiano.

    Da ao sensacionalismo foi um passo. A m qualidade literria - herdada da poca da publicismo - somou-se, a, ao exagero retrico para produzir relatos da realidade muito destorcidos e eventualmente mentirosos. Isso se tornaria mais evidente, no entanto, nos Estados Unidos que viveram, no fim do sculo passado, uma revoluo industrial rpida e intensa, com a insero na sociedade de levas e levas de imigrantes.

    Foi na Amrica que o sensacionalismo atingiu sua mxima ampliao. Tratava-se, a, de integrar recm-chegados de vrias procedncias, muitos deles mal dominando o ingls. O modelo capitalista conduziu concentrao da indstria da informao, produzindo distores tais que um dos magnatas da imprensa da poca, Hearst, foi acusado de ter promovido a guerra contra a Espanha pelo domnio sobre Cuba em troca de privilgios de cobertura jornalstica.

    Foi tambm na Amrica que o sensacionalismo foi contestado de maneira mais conseqente. Para enfrent-lo, criaram-se cursos de jornalismo nas universidades (o primeiro deles resultante de uma doao milionria de outro magnata da informao, Pulitzer) e procuraram-se formas de regulamentar a produo de matrias jornalsticas com alguns objetivos essenciais: (a) fixar procedimentos confiveis de apurao de informaes; (b) estabelecer padres consensuais de qualidade; (c) restringir o cdigo lingstico de forma a permitir que notcias e reportagens possam ser produzidas rapidamente, com alta legibilidade e o mnimo de interferncia das modas artsticas e literrias.

    As estratgias empregadas para o atingimento dessas metas refletiram tendncias tpicas da poca: influncia dos mtodos e critrios das cincias exatas, com traos que refletem posturas positivistas e funcionalistas; preocupao industrial e segmentao de tarefas, maneira da organizao do trabalho taylorista; pragmatismo quanto s linhas editoriais, temperado por uma tarefa de vigilncia tica, transferida, geralmente, s corporaes profissionais, e s escolas especializadas.

    A despeito dessa origem datada, os procedimentos desenvolvidos ento difundiram-se rapidamente por todos os pases industrializados, com adaptaes s culturas locais. Mesmo os crticos mais veementes do positivismo ou do funcionalismo - como o caso dos sistemas de informao da Igreja catlica ou da Unio Sovitica, enquanto ela existiu - terminaram adotando as normas bsicas da escola americana para a produo de notcias e reportagens jornalsticas. Elas so versteis o bastante para conviver com diferentes ideologias; pode suportar linhas editoriais fundadas em hard news - como as

  • notcias sobre poltica, cincias ou economia - ou em temas de recreao, como esportes e espetculos. Tornadas signo da modernidade, chegaram ao Brasil meio sculo depois e levaram mais duas dcadas para se implantarem aqui.

    Na verdade, esse estilo que valoriza a objetividade no alcana por igual todos os gneros do jornalismo. Magazines, por exemplo, continuam inserindo mais adjetivos e advrbios do que seria canonicamente desejvel; o estilo Time combina um vocabulrio bsico restrito com vocbulos tcnicos, palavras de gria e adjetivao erudita. Editoriais e artigos aproximam-se mais da retrica clssica; sees especializadas assumem freqentemente discursos intimistas ou excessivamente tcnicos; a crnica e a crtica so gneros que se aproximam da literatura.

    No entanto, a linguagem bsica do jornalismo tem ampla penetrao social e influencia bastante outros discursos. Mantm relao constante com a linguagem coloquial e se tornou o padro genrico dos enunciados impessoais e conteudsticos que predominam na cultura contempornea - diante dos quais surgem como rebarbativos os discursos jurdicos tradicionais, a escrita oficial e cartorria e certas falas corporativas, como o economs.

    O texto jornalstico no Brasil

    Os primeiros veculos de informao peridica produzidos no Brasil antecedem de pouco a Independncia. No primeiro imprio e no perodo das regncias, o jornalismo era uma atividade publicista de alto risco, exercida em veculos geralmente de vida efmera. S no Segundo Imprio, em ambiente de mecenato, surgem algumas caractersticas peculiares de estilo. Jornalistas, na poca, eram escritores, alguns notveis, como Machado de Assis ou Raul Pompia; adotavam, em geral, um texto literrio simplificado, que se manifesta, por exemplo, nas Crnicas do Senado, de Machado.

    Qualidade realmente literria rara. Ela aparece, por exemplo, em Os sertes, de Euclides da Cunha. No entanto, esse extenso livro-reportagem levou dois anos para ser escrito, enquanto o autor, que era engenheiro, construa uma ponte, em So Jos do Rio Pardo, So Paulo, e teve dois pr-textos: os telegramas que enviou ao Estado de So Paulo, acompanhando a guerra em Canudos, e o manuscrito Dirio de uma expedio, que s seria publicado em 1935.

    O divrcio entre a lngua escrita e a falada - entre o vocabulrio e os usos gramaticais de uma e outra - agravaram-se no incio do Sculo XX. Sob influncia do parnasianismo francs, exaltava-se o estilo empolado dos discursos de Rui Barbosa, cujo contedo jurdico, no entanto, parece hoje modesto. Essa mesma presuno de qualidade artstica se reflete nos artigos mdicos relacionados com a campanha contra as doenas tropicais liderada por Osvaldo Cruz, nas crnicas e romances de Coelho Neto ou Humberto de Campos, nas reportagens - importantes como documento - de Joo do Rio (Paulo Barreto), notvel jornalista do Rio de Janeiro da Repblica velha.

    Com a profissionalizao incipiente e a presena de corretores de anncios nas redaes - as agncias de publicidade s comeariam a aparecer na dcada de 20 - o nvel sociocultural dos jornalistas sofreu, na mdia, queda acentuada. A cobertura de fatos urbanos e policiais, particularmente, evidencia esse fato: tende a incorporar a gria dos rbulas e policiais, chamando os acusados de indigitados, as pessoas pobres (s estas) de indivduos, os carros oficiais de viaturas. Ao mesmo tempo, a presuno

  • literria nomeava ruas e avenidas como artrias, vereadores como edis, motoristas como chauffeurs etc. A hierarquia social rgida aparecia no tratamento de Sua Excelncia dado s autoridades e de doutor a qualquer pessoa influente.

    Os poucos escritores dessa poca lidos ainda hoje eram acusados por seus contemporneos de praticar um estilo pobre e vulgar. o caso de Lima Barreto, de Monteiro Lobato e de Oswald de Andrade (este, desde muito antes de se tornar conhecido, com a Semana de Arte Moderna de 1922).

    O modernismo literrio demorou a se transplantar para o discurso jornalstico; a maioria das propostas da Semana, que pretendia justamente aproximar os enunciados artsticos da fala comum, s chegou efetivamente aos jornais somadas importao estilstica do modelo americano, a partir da dcada de 50 - embora houvesse tentativas anteriores, principalmente grficas e em publicaes de circulao restrita.

    Uma das razes do abandono dos paradigmas literrios no jornalismo, com a industrializao, uma nova compreenso dos objetivos do ensino e da prtica da lngua nacional. A questo central que dificilmente algum ser chamado, na prtica, a exercer a competncia compatvel com um Cames, um Machado, ou para citar autor mais recente, de um Graciliano Ramos, ele mesmo revisor de originas do Correio da Manh, do Rio, na dcada de 40. Pessoas em geral no escrevem ou falam literatura, isto , lngua em forma de poesia ou narrativa artstica; o que se exige delas que se expressem com clareza, conciso, correo e, subsidiariamente, elegncia, em discursos e textos voltados para a comunicao de contedos referenciais.

    O estudo da "lngua culta"

    Presentemente, os estudos literrios ampliam-se, associando-se anlise de discursos e semiologia na tentativa de construir um conhecimento que d conta de atividades artsticas envolvendo lnguas e imagens dinmicas, como o teatro, o cinema ou os quadrinhos. J a Lingstica contempornea valoriza extraordinariamente o estudo das formas orais e dialetais das lnguas. Isso se deve a uma srie de fatores:

    a. lnguas grafas ocuparam o espao acadmico antes dedicado s letras clssicas e Lingstica comparada, principalmente a partir da tarefa de descrever idiomas indgenas, a que se obrigaram os lingistas desde a contratao de Franz Boas pelo governo americano, com essa finalidade, no sculo passado e, depois, com os investimentos feitos na rea de antropologia;

    b. algumas tendncias modernas, como a Gramtica Gerativa de Noam Chomsky, buscam uma gramtica universal (UG), fundada na correspondncia de uma forma lgica (LF) e uma forma fontica (PF) e cujo fundamento a aquisio de linguagem (oral) pelas crianas, atribuda a uma faculdade mental inata. Isto chamou a ateno para o fato bvio de que as lnguas so primariamente eventos sonoros;

    c. a fontica teve desenvolvimento extraordinrio e se tornou a nica rea da especialidade que parece a ponto de se completar como cincia, produzindo conhecimento que se transfere medicina e informtica.

    Ter sentido, dentro desse contexto, estudar uma forma de lngua escrita, que no sentido clssico se chamaria de "culta" e, ainda mais, no literria? H duas respostas possveis. Uma refere-se a questes essencialmente tcnicas - facilidades operacionais

  • que o estudo da lngua escrita simplificada em que os jornalistas se expressam oferece para uma compreenso formal documentada do idioma. Esmiuaremos isso na prxima aula.

    Outra resposta tem que ver com um raciocnio de outra natureza. Ele nos remete a um anncio de banco que a televiso veicula; nele, um ator declara que seu apoio globalizao e comenta: "um s mundo, falando a mesma lngua". Como aconteceu sobre o Imprio romano, o ingls, novo latim, tende a ser lngua universal e, assim sendo, substituir os idiomas nacionais como lngua de cultura.

    Dentre as lnguas nacionais, o portugus uma das mais vulnerveis: falado por um grupo de pases pobres, est sendo varrido da sia e, no entanto, materializa uma bela tradio cultural. A sobrevivncia da lngua, em sua forma escrita e "culta", relaciona-se com a sobrevivncia do estado nacional, dentro do qual construmos nossa identidade, validamos nossos poucos direitos civis, as habilitaes profissionais e acadmicas.

    Preservar o portugus em suas formas escritas , assim, como observa o Prmio Nobel de Literatura Jos Saramago, uma atitude poltica de sentido, a essa altura, fortemente contestador.

    Disponvel em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica1.html em 27.11.2002

    [Aula 2] A reforma do estilo da imprensa brasileira comeou na dcada de 1950 num pequeno jornal do Rio de Janeiro, o Dirio Carioca, de forte tradio poltica e orientao conservadora. L, dois professores do curso pioneiro de jornalismo que funcionava na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade do Brasil - Danton Jobim, o catedrtico, e Pompeu de Souza, seu assistente - arregimentaram um grupo de jovens, vindos quase todos de diferentes cursos universitrios, para introduzir no Brasil as tcnicas de redao originalmente desenvolvidas nos Estados Unidos e que j se haviam generalizado nos pases desenvolvidos. A aspirao de modernidade adequava-se ao esprito desenvolvimentista da dcada e correspondia influncia do estilo das agncias de notcias internacionais (France Press, United Press, Associated Press, principalmente), cujos telegramas traduzidos os jornais transcreviam. Com a Segunda Guerra Mundial e, em seguida, a guerra fria, esses telegramas ocupavam espaos privilegiados, em conflito estilstico claro com as matrias locais. Por outro lado, as tcnicas modernas de redao eram conhecidas de nmero restrito de jornalistas com experincia no exterior, como Joel Silveira e Rubem Braga, correspondentes de guerra junto Fora Expedicionria Brasileira, na Itlia, ou o prprio Pompeu de Souza, que trabalhou como redator de um noticirio da Columbia Broadcasting System (CBS) dirigido ao Brasil, entre 1941 e 1943. Do Dirio Carioca a nova maneira de redigir migrou - na verdade, foram os redatores que migraram -, para o Jornal do Brasil, veculo tradicional (fundado em 1891, com orientao monarquista) que se decidiu a fazer uma reforma editorial. L, no final da dcada de 50 e nos primeiros anos da de 60, o estilo de texto se fixou, associando-se

  • a uma nova esttica grfica. A primeira pgina, antes ocupada por anncios classificados, ganhou formas inspiradas no construtivismo; o mesmo formato prosseguia pelas pginas internas e suplementos. Um deles, o Suplemento Literrio, com diagramao experimental surpreendente, veiculava idias estruturalistas e publicava poemas concretos. A prpria diagramao das pginas - projeo em prancheta - era novidade, introduzida na imprensa diria, anos antes, pela ltima Hora, de Samuel Weiner, que, no entanto, importou da Argentina esttica popular e mais conservadora. O Dirio Carioca, como os outros jornais da poca, no era diagramado. O efeito da reforma do Jornal do Brasil foi notvel, no tanto pelo aumento da tiragem (que se elevou bastante, mas no a ponto de torn-lo o lder em vendas na cidade), mas, principalmente, pelo prestgio que o jornal assumiu como porta-voz das aspiraes da nova classe mdia que ocupava postos de deciso nas empresas estatais e multinacionais. Como conseqncia, a reao dos concorrentes foi intensa. A maneira encontrada pelo Jornal do Brasil para modificar, do dia para a noite, o estilo de todo texto do jornal foi a institucionalizao de um procedimento j adotado no Dirio, de maneira informal: reescrever as matrias, ampliando as atribuies do copy desk, seo da redao existente na imprensa americana com a incumbncia de revisar originais. Foi exatamente contra o copy desk do JB que se concentrou a campanha movida tanto por jornais do Rio de Janeiro, principalmente O Globo, quanto, em carter preventivo, pelos de So Paulo. A razo principal que o copy desk era um corpo de profissionais com viso tcnica do jornalismo, excludo do sistema de injunes que tradicionalmente se institura na imprensa. Naquela poca, as empresas jornalsticas, com raras excees, remuneravam oficialmente todos os redatores e reprteres com o salrio mnimo permitido por lei. Muitos eram funcionrios pblicos ou de empresas prestadoras de servios pblicos; para esses, o jornalismo era um segundo emprego, relacionado com o primeiro - no jornal, defendiam os interesses do principal empregador. Para outros, o prprio dono do jornal conseguia, com seu prestigio, a incluso em folhas de pagamento de reparties do governo. Nos casos (como os dos jovens redatores) em que havia necessidade de pagar alm do mnimo, o dinheiro saa por fora, isto , sem o recolhimento de encargos previdencirios, sem a obrigao de remunerar as frias e indenizar por ocasio da dispensa. A luta contra essa caixa dois, pela profissionalizao e moralizao do jornalismo empolgou naturalmente os jovens redatores do copydesk do Jornal do Brasil, que estiveram na linha de frente de uma greve que paralisou os jornais cariocas, em 1962, exatamente com essas palavras de ordem. No clima poltico agitado da poca que precedeu e se seguiu imediatamente ao golpe de 1964, eles foram, ento, sucessivamente acusados de comunistas, comparados a censores e, finalmente, apelidados de idiotas da objetividade por Nlson Rodrigues, o teatrlogo que escrevia uma coluna em O Globo expressando geralmente o pensamento de Roberto Marinho. Nessa mesma coluna, anos depois, ele conduziria uma campanha de desmoralizao contra D. Hlder Cmara, Arcebispo de Olinda e Recife, numa poca em que o nome do clrigo, opositor do regime militar, no podia sequer ser mencionado nos outros jornais. S no incio da dcada de 70 os grandes jornais do Rio e de So Paulo - logo seguidos pela imprensa de todo o Pas - adotariam algumas das normas de redao lanadas pelo Dirio Carioca (que deixou de circular em 1965) e fixadas no Jornal do Brasil. O

  • Globo, inicialmente, contratou um profissional oriundo do Dirio Carioca para reformar seu texto noticioso, organizando um copy desk; cerca de um ano depois, quando vagou o cargo de diretor de redao, trouxe outro jornalista do Dirio para ocupar o cargo. Em So Paulo, a mudana dos mtodos e critrios do jornalismo havia comeado, na dcada de 60, com uma revista mensal ambiciosa e muito bem editada, Realidade. Para a mudana nos jornais, foram feitas algumas experincias, a comear pelo vespertino de O Estado de So Paulo, Jornal da Tarde, que dava s matrias noticiosas estilo inspirado no dos magazines. A incorporao do novo modo de escrever ao noticirio tradicional fez-se aos poucos, com a preocupao de copiar rigorosamente modelos americanos, de modo que algumas das criaes mais originais do Dirio Carioca no chegaram ou demoraram a chegar imprensa paulista. Foram caractersticas da reforma do Dirio Carioca: 1. a adaptao do lead - primeiro pargrafo da matria impressa, onde consta o fato principal ou mais importante de uma srie, tomado por seu aspecto principal - lngua portuguesa evitando, por exemplo, o estilo uma proposio por perodo, que ainda hoje norma imposta na Folha de So Paulo, e d aos textos aspecto telegrfico, de leitura cansativa. Para isso, foram consultados outros modelos de adaptao, principalmente dos jornais ingleses e franceses; 2.a incorporao progressiva de usos propostos, na literatura, pelos modernistas de 1922, para aproximar a escrita da fala corrente brasileira. Nessa linha, as pessoas deixaram de morar Rua X para morar na Rua X. Os tratamentos tornaram-se menos cerimoniosos; passou-se, aos poucos, a escrever o nome das pessoas sem a precedncia de um ttulo - senhor, senhora, doutor, excelncia, dona e, para os desqualificados, o estranho indivduo. Os redatores do Dirio eram leitores constantes de autores modernos, particularmente de Graciliano Ramos, cujo estilo enxuto tomava-se como modelo. interessante comparar os style books - manuais de redao - do Dirio e dos jornais atuais. O manual escrito em 1950 por Pompeu de Souza, um documento sinttico, at porque produzido por quem iria gerir sua aplicao. Contm algumas concesses ao esprito da poca: no se admitia chamar uma mulher casada, pelo menos as da classe dominante, pelo nome; era necessrio preced-lo de d. Da mesma forma, o pronome para o Papa no era ele, mas Sua Santidade, e temia-se que fosse impossvel suprimir inteiramente o Exa do nome de alguns figures. Esses preceitos tiveram que ser modificados ao longo do tempo, medida que as experincias ou (falsos) esquecimentos esbarravam ou no em reaes negativas - das madamas, da hierarquia da Igreja, daqueles a quem se negava a excelncia. J os manuais de redao atuais costumam ser detalhistas, abrangentes e presunosos. Misturam discursos sobre o que o dono do jornal pensa do mundo (na RBS, instrues internas informam aos jornalistas que o jornal apia decididamente a privatizao e a globalizao) - e nisto se parecem com o manual da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda que, na dcada de 50, imitando o Dirio Carioca, lanou tambm seu style book - com critrios editoriais genricos, manifestaes de princpios e argumentos de marketing institucional. Em alguns casos, pretendem legislar sobre temas lingsticos: o manual do Estado de So Paulo, inspirado em uma tradio que descende da Gramtica de Port Royal, do

  • Sculo XVII, afirma que a ordem sujeito-verbo-objeto a "normal" nas sentenas, alinhando, em seguida, dezenas de exemplos em contrrio, ou excees. Consideremos, mais longamente esse caso, em particular: A - Caracterstica geral da percepo humana - portanto, da gramtica universal - que a natureza nos prope aes e relaes entre objetos, mas ns as representamos como objetos em relao ou ao. Na natureza, o que notamos, portanto, a queda do cometa, o soco de um pugilista no outro, o pssaro no cu; o notvel, para ns, a descontinuidade, a relao entre dois estados simultneos (uma forma contraposta a outra) ou entre dois estados sucessivos (os de algo que se desloca, se revela ou se transforma). A maneira humana de representar isso atribui papis temticos (de agente, paciente, instrumento etc.) a objetos ou coisas, que so os argumentos da funo, e concentra a transformao em verbos, adjetivos, advrbios e preposies. Assim, dizemos que o cometa cai (o cometa o paciente da queda), que um pugilista (agente) socou o outro (paciente), o pssaro (paciente) est, perceptvel no cu (funo). Neste ltimo caso, no (em) estabelece a relao entre pssaro e cu; transforma cu em no cu; o verbo estar afirma a relao, transforma-a em sentena, alm de agregar os elementos tempo, modo e aspecto. B - Isso, no entanto, no justifica a generalizao da precedncia do sujeito na sentena. Na verdade, a ordem S-V-O tpica de lnguas no declinadas e no pro-drop, como o francs ou o ingls. Nas lnguas declinadas (como o latim, o alemo ou o russo), a ordem pode no ser relevante ou essencial para o sentido. Nas lnguas pro-drop, como o portugus, em que as pessoas verbais so identificadas na fala por desinncias distintas, o sujeito genrico freqentemente omitido (fica subentendido pela desinncia do verbo), o sujeito pode aparecer posposto e desaparecem pronomes expletivos (de valor meramente gramatical) antecedendo as formas verbais. H lnguas em que a ordem usual no S-V-O, mas outra: em irlands, a sentena usual tem a forma V-S-O. 1 - a - Passaram todos. b - *Have passed (they) all c - *Ont pass ( ils) tous 2 - a - Chove. b - *Raine c - *Pleut 3 - a - Sevdnia utrom vam zvonl Smov (russo) Hoje de manh para vocs telefonou Somov 4 - a - Chonaic Sen an madra (irlands) Viu Joo o cachorro C - Da se pode presumir que o etnocentrismo, no efetivamente hipteses relacionadas com universais lingsticos, determinam a indicao da ordem S-V-O como normal, intuitiva ou "prpria da estrutura profunda da linguagem", tanto no manual de O Estado de So Paulo quanto na gramtica francesa do Sculo XVII (em

  • que se apresentava o francs como lngua lgica, em oposio ao alemo, que falava por inverses) e em textos da gramtica gerativa americana. D - Note-se que a descrio gramatical, no caso dessas duas gramticas, parte dos conceitos de sujeito e predicado em Aristteles. Este sustentava o ponto de vista de Parmnides, sobre a unidade do ser, para o qual as sentenas apenas podiam predicar estados. No entanto, na viso dialtica de Herclito, a primazia no pertence ao sujeito, mas aos estados, j que no h dois sujeitos iguais em estados ou tempos distintos: "no se pode tomar banho duas vezes na mesma gua de um rio". O mundo dado em fluxo e, portanto, todos os seres esto tambm em fluxo. E - A notao lgico-matemtica que prevalece hoje na lingstica formal est mais para Herclito do que para Parmnides. A predicao , a, assimilada ao conceito de funo; sujeitos e demais complementos do verbo so considerados argumentos. Assim, em "Joo viu o cachorro", viu a funo; Joo e o cachorro os argumentos. A funo designada por letra maiscula (F) e os argumentos pelas letras iniciais minsculas da palavra principal do sujeito ou complementos do verbo. Se pretendermos uma interpretao filosfica, as relaes presidem as entidades nomeadas no discurso. Assim: 5 - Joo viu o cachorro j F c F(j,c) E - Observe-se que a precedncia dada funo, no ao argumento, seja ele sujeito ou objeto do verbo. Esse modelo funcional domina praticamente todas as gramticas contemporneas, desde a semntica de Montague e as representaes da lingstica computacional at o gerativismo de Chomsky a partir da Teoria dos Princpios e Parmetros(onde os argumentos so chamados de externo, o sujeito, e internos, os objetos), embora possa conviver, a, mesmo no minimalismo, com a precedncia atribuda ao sujeito nas sentenas nas primeiras verses da Teoria Gerativa. Caractersticas da linguagem jornalstica Com as inovaes introduzidas pelas reformas do perodo 1950-1970, a linguagem jornalstica tem, hoje, as seguintes caractersticas: aos discursos retricos, explicitamente, pelo mecanismo da citao e, implicitamente, atravs dos mtodos de seleo do que informado e ordenao das informaes - que so os aspectos ideolgicos desse tipo de discurso. A - quanto escolha de itens lxicos 1. utilizao, sempre que possvel de palavras admissveis no registro formal e no registro coloquial da linguagem, isto , daquelas palavras que pertencem, ao mesmo tempo, ao conjunto dos itens lxicos aceitos na linguagem formal e na linguagem coloquial. Sempre que os sentidos sejam permutveis, entre perfunctrio e superficial, o prefervel, portanto, superficial; entre prximo a e perto de, perto de; entre recinto e sala, sala; entre pretrito e passado, passado; entre sintagma e locuo, locuo. A regra se aplica, no geral, tanto ao texto escrito quanto ao coloquial simulado.

  • 2. criao de neologismos e atualizaes necessrias (malufista, petista), formas condensadas que se originam da circunstncia de os ttulos terem letras contadas (FHC por Fernando Henrique Cardoso, desarme por desarmamento), bem como a incorporao de expresses populares e de gria que se generalizam (bumbum, cheque voador). 3. eliminao, sempre que possvel, de preciosismos, palavras estrangeiras, de gria local e jargo profissional. Palavras tcnicas, quando necessrias - e elas se tornam necessrias em perodos de intensa transformao tecnolgica como o atual - devem ser usadas com parcimnia (na linguagem jornalstica, seria prefervel com moderao) e definidas pragmaticamente, isto , com a explicao necessria apenas a seu entendimento imediato. Assim, por exemplo, na descrio de uma cirurgia: O corte feito na artria femural, a principal da coxa, quatro dedos acima do joelho... e no: O corte feito, seis centmetros acima da borda da rtula, na artria femural, ramo primrio da aorta descedente que se nomeia como artria ilaca at o ponto em que, ao sair da regio nguino-crural, assume esse nome ... 1. a teoria geral por detrs dessas escolhas de que a preciso sempre relativa, dependendo do contexto da enunciao. Se um poltico sofre de cncer, isto basta numa notcia destinada ao pblico em geral, mas no bastar certamente a seu mdico assistente, que precisar averiguar a natureza, tamanho e localizao do tumor, no mnimo. A informao de que uma nave experimental movida a jatos de partculas subatmicas ou ons adequada e bastante para um pblico com formao bsica escolar completa, mas nitidamente insuficiente para umfsico, que gostaria de dispor de detalhes sobre o funcionamento desse motor inico; a mesma informao , por outro lado, inacessvel a pessoas sem formao bsica completa ou que no prestaram a ateno merecida s aulas de cincias - da o bom senso de se acrescentar no jornal uma explicao suplementar tal como "este um tipo de motor que s existia em filmes de fico e histrias em quadrinhos". 2. eliminao (com exceo das citaes), de adjetivos e categorias testemunhais, isto , daqueles e daquelas cuja aplicao depende da subjetividade de quem produz a mensagem. Assim, evita-se dizer que algum rico, ou que bonito, ou que notvel; prefere-se alinhar os bens, reproduzir depoimentos de entendidos sobre a beleza ou contar episdios em que se comprova a notatabilidade. A preferncia pela adjetivao fatual ou comprovvel (nmeros, evidncias) atende circunstncia de o jornalismo ser um discurso impessoal, da perspectiva do consumidor. No conhecendo o autor do enunciado, ele geralmente no capaz de avaliar os padres de referncia da aferio: em relao a que mdia se rico, a que padro tnico ou esttico se reporta a beleza, qual a natureza ou intensidade da notabilidade atribuda. 3. eliminao, na medida do possvel e com exceo de citaes, de advrbios que expressam juzos de valor ou modulam predicaes e sentenas, situando-as em mundos possveis ou desejveis - em suma dos advrbios de modo, intensidade e afirmao. Essa caracterstica importante para uma descrio formal, porque esses advrbios oferecem dificuldades suplementares para a anlise, por serem elementos lgicos de segunda ordem, ou seja, que predicam o que j est predicado, atuando como funes de funes. O jornalismo reporta-se ao mundo real ( fundamento

  • filosfico do ofcio que ele existe), no ao que ao mundo que seria possivelmente, provavelmente, supostamente, desejavelmente, preferivelmente etc. 4. na mesma linha, restrio genrica e entendimento particular de verbos de atitude proposicional, isto , que expressam esperanas, temores, desejos etc. quanto proposio que os sucede, precedida de que (o que em ingls se chama de that-verbs). o caso de considerar, esperar, ameaar, parecer etc. - verbos cujo sentido pleno reporta-se pessoa do falante. Quando se l em um veculo de informao que "X considera que P", tcita a leitura "X disse que considera que P". B - quanto aos procedimentos gramaticais 1. de maneira paralela ao que ocorre quanto aos itens lxicos, utilizam-se as formas sancionadas no registro formal e aceitas no registro coloquial da linguagem. Construes em desuso, como as mesclises, so definitivamente suprimidas; h forte tendncia em favor da prclise em lugar da nclise, por ser este o uso coloquial corrente no Brasil; pela mesma razo, mais comum a forma analtica do que a sinttica do pretrito mais que perfeito etc. 2. de modo geral, os jornalistas esto comprometidos com a normalizao da lngua, embora priorizem a necessidade de informar; assim, o verbo assistir, quando tem regncia indireta (assistir ao espetculo), no deveria admitir voz passiva (o espetculo foi assistido por...), que, no entanto, tornou-se usual pela inexistncia de qualquer outro verbo que permitisse apassivar a construo (o espetculo foi presenciado por... no o mesmo que o espetculo foi assistido por...). 3. a linguagem do jornalismo mais dinmica do que a linguagem formal. Reflete, apesar da preocupao com a norma, os usos que se tornam correntes na lngua coloquial, como, por exemplo, a tendncia de violar a concordncia verbo-nominal quando verbos pronominais vm antes dos elementos descritos tradicionalmente como sujeitos: Vende-se casas, amplia-se as possibilidades... 4. os perodos costumam ser mais curtos do que no uso formal. Perodos muito longos (com mais de 20 palavras, em mdia, dependendo, naturalmente, do grau de coeso) so de leitura difcil e seletiva quanto ao nvel cultural do leitor. A brevidade evidentemente maior nos enunciados destinados a serem lidos, no rdio ou televiso, e nos que se destinam veiculao noticiosa pela Internet. 5. As sentenas so construdas, quase sempre, na terceira pessoa, com exceo das citaes em discurso direto. Os tempos preferenciais, nas notcias, so o passado perfeito, o futuro e o presente pelo futuro, reservando-se o presente concomitante ou freqentativo para as interpretaes e as formas imperfeitas para descries que caracterizam os actantes - personagens e entidades em geral que interferem no enunciado. O subjuntivo de uso restrito e h ntida preferncia pelo infinitivo impessoal. Em suma: o texto jornalstico utiliza um lxico simplificado, sistema verbal restrito terceira pessoa e a alguns tempos verbais, constri perodos mais curtos e evita ou delimita o sentido de construes problemticas, como as proposicionais. Isto lhe permite produo rpida e eficiente para fins informativos, obedecendo s normas gerais da lngua. No entanto, confina a abrangncia dos enunciados: a informao em jornalismo axiomtica, geralmente no dedutiva, dispensa a argumentao e as estratgias de convencimento. Reporta-se.

  • Disponvel em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica2.html em 6 fev 2004 [Aula 3] Suponhamos que um observador humano contempla a realidade. Coloca-se no vrtice de um campo de viso e; a partir dos estmulos luminosos que chegam retina, fabrica uma realidade virtual que corresponde realidade real considerando a sensibilidade a certas radiaes (do vermelho ao azul) e no a outras; integra-a com outras percepes, tteis, sonoras, olfativas e de equilbrio; e compensa variaes de luz e foco, movimentos dos olhos e do corpo. O input que a representao mental do mundo recebe corresponde a descontinuidades no espao e fluxo no tempo, definindo relaes (no primeiro caso) e aes (no segundo). Contrapostas memria, essas descontinuidades permitem o reconhecimento de padres pelos quais se estabelecem identidades e semelhanas. Redes neurais artificiais, construdas semelhana das biolgicas, tm sido capazes de demonstrar essa competncia, aprendendo a reconhecer formas com grande acuidade. O trabalho mental dissocia objetos e relaes, que iro corresponder a entidades e predicaes do discurso. Recorrendo memria, organiza os objetos em categorias, com base em semelhanas; distingue as relaes entre as em presena (localizaes) e em seqncia (aes); atribui causas e antecipa conseqncias. Prev e desenvolve raciocnios probabilsticos. A confuso das categorias de identidade e semelhana resulta essencial para a construo da conscincia humana da realidade. Admitamos que revejo uma pessoa alguns meses ou anos depois de t-la visto: concluo que a mesma pessoa, embora tenha tais e tais mudanas. Admitamos que vejo uma palmeira, e que a reconheo com base na memria da viso de outra palmeira: no so iguais, mas concluo que so da mesma espcie. Os conceitos de identidade do ser e de agrupamento em espcies so possveis exatamente pelo abandono de algumas caractersticas julgadas acessrias e considerao de outras, julgadas fundamentais. por efeito da memria que me considero idntico ao que era nos diferentes estados por que passei na vida, embora tenha mudado radicalmente, em forma, atitudes, comportamentos e valores; reconheo a criana no homem, os traos do pai no filho e o Coliseu nas runas do Coliseu. evidente que, do ponto de vista lgico, uma coisa s pode ser idntica a si mesma e, como todas as coisas existentes esto situadas no espao e em fluxo no tempo, essa identidade s subsiste no mesmo espao e no mesmo tempo. Um afresco medieval no teto de uma igreja distinto da imagem do mesmo afresco medieval na tela do computador ou na gravura exposta em um museu, por mais exata que seja a reproduo. No havendo como separar a percepo de um objeto das relaes que o cercam, nem de igualar a representao desse objeto por observadores inseridos em circunstncias diferentes, cada fruio do objeto, em espao e tempo distintos, uma experincia nica. Dois produtos industriais de uma linha de montagem no so logicamente idnticos: se fossem, submetidos s mesmas condies, se deteriorariam de modo exatamente igual

  • e no mesmo instante, o que no acontece. A prpria idia de semelhana recobre critrios distintos: duas coisas podem ser semelhantes porque se parecem na forma (como as prolas), porque tm desempenho similar (como os computadores) ou porque despertam os mesmos sentimentos (como as feras). A definio de categorias depende da pragmtica da relao: a denominao pinheiro, em portugus, recobre vrios tipos diferentes de rvores em russo; a cultura aimara reconhecia dezenas de sementes distintas para o que chamamos de amendoim. A teoria moderna mais consistente que aborda a questo da percepo a dos modelos. Segundo ela, a representao da realidade decomposta e modelada numa etapa pr-lingstica da percepo. Desenvolvida no contexto da Teoria da Cognio, sua formulao deve-se, principalmente, a Johnson Phillip-Laird (PHILLIP-LAIRD, 1983). Segundo essa hiptese, as sentenas das lnguas naturais remeteriam a modelos mentais, que so anlogos estruturais do mundo: do conta de relaes estticas e dinmicas entre objetos, aes e estados; descartam aspectos no relevantes da realidade para captar os relevantes e contm aspectos proposicionais, tais como relaes sintticas . Os modelos mentais so incompletos, mais ou menos imprecisos, eventualmente inconsistentes, porm funcionais. No tm fronteiras definidas: superpem-se e confundem-se. So tomados como hipteses mais ou menos confiveis e no suprimem necessariamente comportamentos relacionados a modelos concorrentes. Modelos mentais refletem crenas da pessoa, adquiridas por observao, informao ou inferncia; devem ter parmetros e estados correspondentes a parmetros e estados cuja negao a pessoa no possa observar ou inferir. Permitem tambm certo nvel de predio: quem est com o guarda-chuva aberto e tem que passar portal de casa modela previamente o evento de modo a perceber que precisa fechar o guarda-chuva e coloc-lo na vertical. As pessoas fazem modelos mentais das situaes espao-temporais descritas nas proposies que recebem; estabelecem, assim, relaes que excedem as possibilidades de inferncia a partir das proposies recebidas; podem ter modelos diferentes ou contraditrios para o mesmo estado de coisas, em diferentes instncias ou situaes. Esquecem detalhes do sistema modelado, refazem e revisam seus modelos com a experincia. A operao dinmica dos modelos possibilita a reduo de riscos objetivos (antecipao de desastres) e a economia de esforos fsicos na apreenso do conhecimento (dispensa de experimentaes), embora haja nisso custo mental e limitaes operacionais variveis. a gesto do modelo que vai definir sua amplitude, isto , o conjunto de coisas a que ele se aplica. Modelos mentais representam objetos e relaes, a que vo corresponder, nas proposies, argumentos (nomes) e funes (verbos, adjetivos, advrbios); estruturam-se conforme os estados de coisas do mundo mas, por terem estrutura dimensional, podem ser manipulados mais livremente do que as representaes proposicionais, aprisionadas a regras sintticas. As estruturas dos modelos mentais eqivalem s estruturas atribudas pela percepo ou concepo aos estados de coisas que os modelos representam. Cada elemento de um modelo mental, incluindo suas relaes estruturais, deve representar algo, nada havendo nele sem significado ou funo.

  • Uma pessoa que anda, noite, no escuro, em sua casa, tem um modelo mental (espacial) da casa. Uma pessoa que reza durante uma tempestade tem um modelo mental (causal) que relaciona a reza e algum controle sobre a tempestade. Uma pessoa que aperta repetidamente o boto + da calculadora tem um modelo mental de procedimento recursivo ou confirmatrio. No mbito da Teoria da Cognio, modelos mentais so concebidos como entidades computveis e finitas, construdas a partir de elementos (ou tokens) e relaes, que podem ser revisadas recursivamente, de modo a corresponder a nmero infinito de possveis estados de coisas. A possibilidade de representar diretamente indeterminaes limitada pela operacionalidade do modelo. Modelos mentais constituem conjuntos finitos de campos semnticos e de operadores, entre esses os conceitos de tempo, espao, possibilidade, permissibilidade, causa e inteno. Campos semnticos correspondem, nas lnguas, a palavras que compartilham um conceito comum no ncleo de seus significados. Quanto a esses operadores, tempo e espao, por exemplo, podem ser entendidos como grandezas vetoriais; a noo de causa relaciona-se com a implicao lgica (a causa b se pertence a um conjunto de eventos A tal que A antecede b e, se ocorrer A, ento ocorre b); os demais (o possvel, o permitido, o pretendido) pertencem ao universo da Lgica Modal. Ao atualizar um modelo, remeto a primitivos conceituais que devem ser inatos - por exemplo, a noo de fluxo. Suponhamos que tenho o modelo mental de "avio" como algo estrutural equivalente a "artefato + que voa". Se ouo dizerem "o avio que passa", atualizo o modelo no tempo-espao (seria diferente a dimenso espao-temporal se dissesse "a nave interplanetria"). Mas se me reporto ao "avio em que viajo", atualizo o modelo para "eu-dentro-avio"; naturalmente, o modelo ser diferente se sei como um avio por dentro ou no, se j viajei ou no em avio. No entanto, se imagino "o avio que piloto", atualizo o modelo "eu-dentro-avio" para "eu-comando-avio", com o grau de discernimento de que disponha sobre a tarefa da pilotagem. A Teoria distingue entre modelos fsicos (estticos, espaciais, temporais, cinemticos, dinmicos e imagens, que so vistas ou projees do objeto ou evento representado) e modelos conceituais, construdos, em geral, a partir dos discursos. Dentre esses: (a) o mondico, que representa afirmaes sobre individualidades; (b) o relacional, que agrega nmero finito de relaes, possivelmente abstratas, entre entidades individuais; (c) o metalingstico, que contm tokens correspondentes a expresses que relacionam um item do cdigo lingstico a outros (como chama-se, significa); e (d) o conjunto terico, que contem nmero finito de tokens que representam qualidades abstratas dos conjuntos e um nmero finito de relaes entre os elementos desses conjuntos. A tese dos modelos mentais sintetiza concepes freqentes na segunda metade do Sculo XX em diferentes campos do conhecimento. Ela compatvel, por exemplo, com a proposta de Charles Fillmore (FILLMORE, 1971), para quem o significado est ligado a cenas e perspectivas: sempre que o falante escolhe uma palavra em um enunciado, automaticamente a insere numa cena na qual adquire interpretao. A noo de perspectiva tal que, quando se diz "quebrei o vaso", o que est sendo posto em primeiro plano o que foi quebrado, colocando-se em desprezvel segundo plano o onde, o quando e o como.

  • Os nomes Ao distinguir entidades e relaes, o pensamento humano nomeia as primeiros, isto , estabelece correspondncias entre os traos do modelo que representa as entidades e alguma cadeia de smbolos sonoros. Os nomes podem ser grupados em trs categorias: 1.Nomes prprios - do ponto de vista semntico, nome prprio ou individual aquele que designa de maneira nica uma entidade em um universo de discurso considerado. O universo de discurso corresponde a espao e tempo delimitados, de modo que Mrcia o nome prprio de uma pessoa numa sala de aula de poucos alunos, mas no o para o conjunto de uma escola, muito menos para o Registro Civil, onde ser necessrio no apenas o nome completo mas outros ndices (como a filiao e o CPF) para compor uma designao nica; no se pode afirmar que essa mesma designao completa corresponda entidade Mrcia em algum tempo futuro ou passado ou num outro planeta. Nomes prprios (ou designaes prprias) so unvocos no universo considerado. No entanto, um mesmo objeto pode ter vrios nomes prprios. Assim, o presidente da repblica e Fernando Henrique Cardoso designam a mesma entidade, hoje, no Brasil; Euclides da Cunha, o autor de Os Sertes e o reprter de O Estado de So Paulo enviado a Canudos para cobertura da campanha designam a mesma pessoa. As equatividades (Fernando Henrique o presidente, Euclides o autor de Os Sertes e o reprter enviado a Canudos) reduzem-se, do ponto de vista da extenso ou da referncia, isto , do mundo real, a tautologias, j que uma coisa igual a si mesma; no conteriam, assim, informao. No entanto, do ponto de vista da intenso ou do sentido, isto , da linguagem, capaz de encerrar informao, porque algum pode conhecer Fernando Henrique Cardoso e no saber que ele Presidente da Repblica, ou conhecer Euclides da Cunha, saber que ele o autor de Os Sertes mas no que foi enviado como reprter de O Estado de So Paulo para a cobertura da campanha de Canudos. A questo da intenso tem que ver com o princpio de Leibnitz (Eadem sunt quorum unum potest substitui alteri salva veritate), segundo o qual, se duas coisas so a mesma, ento uma pode substituir a outra sem afetar o valor de verdade. Isso no ocorre em contextos proposicionais, ditos opacos. Num exemplo clssico, ( i) Electra tem diante dela um homem. ( ii) Esse homem Orestes. (iii) Electra sabe que Orestes seu irmo, mas no sabe que o homem diante dela Orestes. ( iv) No h, pois, do ponto de vista de Electra, como substituir "um homem", na sentena ( i), por "Orestes". A intenso um princpio de determinao extensional. Da mesma forma que diferentes intenses correspondem mesma extenso, a intenso pode permanecer a mesma, enquanto a extenso se modifica ( o caso de seres humanos da Terra em pocas diferentes).

  • A existncia de informao intensional nas relaes equativas explica porque, nas locues, duas ou mais denominaes da mesma coisa podem aparecer justapostas (1 a-b), sem que se constate redundncia, que , no entanto, evidente em (1 c): 1 a - O Presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso, ... Fernando Henrique Cardoso, Presidente da Repblica, ... 1 b - Euclides da Cunha, o autor de Os Sertes, ... O autor de Os Sertes, Euclides da Cunha, ... 1 c - *Mrcia, Mrcia, ... *Mrcia, Mrcia de Freitas, ... Do ponto de vista de uma gramtica categrica, bem como da gramtica de Montague, nomes prprios so designados pela letra e. Observe-se que a palavra "o/a", no contexto de (1 a-b) incorpora os sentidos de unicidade ( nico), singularidade (em oposio a os/as) e determinao ( este, no outro). Mais ou menos com as mesmas interpretaes aparece antes de designativos genricos que precedem nomes prprios (a Rua X, o Sr. Y, o General Z), mas no se usa com esses sentidos antes do nome de registro de pessoa; passaria, a, a indicar intimidade ou notoriedade do personagem. Antes de nomes prprios geogrficos, a admisso de o/a idiossincrtica (venho de Pernambuco, venho da Paraba). 2.Nomes genricos. Os nomes genricos do incio ao processo de abstrao que permite a linguagem e o discurso. Trata-se de uma predicao, em que se afirma que uma entidade pertence a um conjunto ou categoria existente (a que se denomina). Uma mesma entidade admite n denominaes genricas, conforme a categoria em que seja includa: uma mesma entidade pode ser "um muro", "uma divisa", "um obstculo" etc. Observe-se que a palavra "um", nesse contexto, incorpora os sentidos de numeral (em oposio a dois, trs ... uns), de indeterminador (um qualquer) e de partitivo (um dentre aqueles da categoria ...). H relao necessria entre nome genrico e pertinncia a conjunto ou categoria. Quando digo que determinada entidade x " uma rvore", estou dizendo que ela "pertence ao conjunto das rvores". A remisso a um modelo, isto , a algo de que disponho, na memria, de traos aplicveis entidade em causa. Como em todo modelo, h um prottipo, ou imagem ideal, que incorpora muitos desses traos, e possibilidades mais distantes do prottipo, em que alguns traos so afirmados e outros no, criando uma zona difusa (fuzzy). A entidade, a, pode ser, por exemplo, rvore ou arbusto - caso em que poderia recorrer a outro conjunto mais abrangente - por exemplo, planta, com o nus de tornar mais abrangente (e portanto menos especfica) a denominao. A nomeao genrica, de certa maneira, desintegra o objeto denominado, ao consider-lo por uma caracterstica ou utilidade. Quando chamo determinada mangueira de rvore, atento para sua configurao geral (que corresponde aos traos do modelo de rvore - tronco, copa), mas desprezo a circunstncia, por exemplo, de que d mangas; se a chamasse mais especificamente de mangueira, atentaria para esse fato, mas no para o tipo de manga, nem para a localizao da rvore. De toda

  • sorte, nenhuma denominao genrica define (especifica de maneira nica) a entidade que predica. Isto significa que a denominao genericamente no corresponde a um elemento, mas uma varivel. Sendo varivel do discurso, a designao genrica pode sempre ser especificada por uma atribuio. Se tenho a designao genrica rvore, ao acrescentar o atributo florida, restrinjo o sentido; se acrescento do meu jardim, restrinjo ainda mais e, por a, posso especificar a denominao de modo que ela termine se aplicando a uma s entidade e se torne, ento, nome prprio, o da nica rvore florida do meu jardim. O mecanismo, a, o de interseo de conjuntos conceituais, isto , das colees de objetos a que se reportam funcionalmente os nomes: o conjunto das entidades que so rvores, primeiro, porque rvore o ncleo semntico da locuo: depois, dentre as rvores, as floridas e, dentre essas, a (as) que est (esto) no meu jardim. Nomeado os conjuntos pelas iniciais maisculas: x = A F J Numa gramtica categrica, a representao para nome genrico t/e. Nesse tipo de lgebra, o denominador indica com que elemento o nome genrico deve combinar-se e o numerador o resultado da combinao: nomes genricos devem combinar-se com um nome prprio para formar uma predicao completa. Assim: 2. e - Maria (entidade) t/e - jornalista (nome genrico) t - A Jornalista Maria; Maria, jornalista; ou Maria jornalista. (predicao completa) Sendo t/e uma frao, o produto algbrico de t/e por e , obviamente, t . Note-se que t/e no mais especfico do que e, porque este, por definio, o nome prprio da entidade nomeada; no entanto, permite acrescentar um predicado a e, gerando a proposio predicativa t. Numa representao lgica tradicional, a sentena Maria jornalista ficaria assim: 3 - - $ x| M(x) J(x), existe um x tal que x Maria e x jornalista. A notao (3 b) contempla a possibilidade de no se saber previamente que x Maria, isto , de se desconhecer o nome prprio de x. No entanto, iguala a condio nica de ser Maria no universo considerado condio predicada (no necessariamente exclusiva) de ser jornalista- ou seja, no distingue entre a definio, ou designao nica de x (que ser Maria) e seu atributo (que ser jornalista). O verbo ser () afirma a relao entre e e t, transformando uma locuo (a Jornalista Maria, ou Maria, jornalista) em sentena, qual agrega as noes de tempo, modo e aspecto (Maria foi/era/ tem sido/pode ser... jornalista). A partir de Alfred Tarski (TARSKI, 1974), considera-se que uma sentena tem valor de verdade ( verdadeira ou falsa), enquanto uma locuo pode designar uma entidade ou conjunto de entidades, mas no tem valor de verdade, isto , no pode ser dita verdadeira ou falsa. A notao lgica (seja da lgica categrica, em (2), seja na lgica convencional, em que pressupe a existncia ($ ) de Maria, em (3)) no contempla a diferena

  • lingstica entre a forma cannica Maria jornalista e a forma inversa jornalista Maria, nem a nuana de sentido que se obtm agregando categoria a palavra "o/a" (Maria a jornalista, a jornalista Maria). No caso da inverso, a distino decorre de estratgias de discurso, isto , da gramtica do texto, no da gramtica da sentena. Digo que Maria a jornalista se o foco discursivo recai sobre Maria e que a jornalista Maria se o foco discursivo recai sobre a professora. A palavra "o/a", antes de um nome genrico, pode atuar como o operador lgico iota (i ), individualizando a entidade (como quando digo "o jornalista apurou a notcia", referindo-me a determinado jornalista e a determinada notcia) ou particularizar a categoria designada pelo nome genrico em relao a qualquer outra (como quando digo "o jornalista um questionador", querendo dizer que todo/qualquer jornalista questionador, ou que ser questionador predicado da categoria/conjunto/espcie dos jornalistas). Em determinados contextos, diferencia a relao equativa da relao predicativa: 4 - a - Joo da Mata, o guia da expedio ao Alto Purus, ... b - Joo da Mata, guia da expedio ao Alto Purus, ... c - Joo da Mata, um guia da expedio ao Alto Purus, ... Em (4 a), Joo da Mata o nico guia da expedio ao Alto Purus e, portanto, guia da expedio ao Alto Purus designao prpria de Joo da Mata; em (4 b) e (4 c), no se afirma essa unicidade e, portanto, guia da expedio ao Alto Purus apenas um nome genrico predicado a Joo da Mata. Note-se que, embora os significados de "o/a" paream relevantes, a exigncia dessas formas (e a complicada regulagem de seu uso) peculiar de algumas lnguas (na Gramtica Gerativa se poderia dizer que paramtrica dessas lnguas), de vez que muitas outros idiomas dispensam o artigo. o caso do russo, do latim ou do hebraico. III - Nomes relacionais - Entidades no so designadas apenas por nomes prprios ou nomes genricos, isto , pelas categorias a que se afirma pertencerem. Podem ser designados tambm a partir de relaes que mantm com outras entidades no consideradas similares. Por exemplo, irmo (de Pedro), causador (da briga), vencedor (da corrida). Nomes relacionais correspondem a predicaes, designando a entidade a partir de funes (ser irmo de x, causar y, vencer z). Essas designaes, que Luria chama de genitivas (LURIA, 1987) e os nomes genricos diferem a. do ponto de vista semntico, porque nomes genricos reportam-se a conjuntos de entidades (rvores, carros, pessoas, mares, rios, avies etc.), enquanto nomes relacionais (irmo, marido, causador, matador, vtima etc.), no se reportam a qualquer entidade salvo quando acompanhados da designao da entidade com que se estabelece a relao (irmo, marido, matador de algum; causador de algo; vtima de algum ou de algo); b.do ponto de vista sinttico, porque, quando um nome genrico acompanhado de um atributo, pode-se afirmar a relao predicativa (4 a-b-c); isso no ocorre em um nome relacional, exatamente porque ele j expressa, em si, uma relao (5 a-b-c). Pode-se, no entanto, predicar a relao entidade (6 a-b-c): 4 - a - O carro de So Paulo > o carro de So Paulo

  • b - A rvore frondosa > a rvore frondosa c - O avio da presidncia > o avio da presidncia 5 - a - O irmo de Pedro > *o irmo de Pedro b - O causador da tragdia > *o causador da tragdia c - A vtima do chantagista > *a vtima do chantagista 6 - a - X, irmo de Pedro, ... > X irmo de Pedro b - Y, causador da tragdia, ... > Y causador da tragdia c - Z, dono da casa, ... > Z dono da casa Nomes relacionais rotulam no apenas entidades que mantm relaes com outras, isto , argumentos de funes, mas as prprias funes, constituindo, portanto, elementos de uma lgica de segunda ordem, isto , uma lgica que permite predicar funes. Assim, consideremos funes e designaes relacionais a elas referidas: 7 - a - A mulher bela > a beleza da mulher b - Peter caa antlopes > o caador de antlopes > a caada de antlopes > a caa de Peter c - Mrio comprou o carro > a compra do carro por Mrio Em (7 a), a beleza rotula a predicao "ser bela". Em (7 b), o caador o agente de "caar", isto , Peter; a caa o paciente da "caar", isto , os antlopes; e caada a funo "caar". Em (7 c), a compra rotula a funo "comprar", A nomeao relacional pode ter ou no correspondncia morfolgica derivacional. Assim, se o assaltante matou o caseiro, podemos chamar o assaltante de matador ou assassino, a morte de assassinato ou crime, que uma designao mais abrangente, e o caseiro de morto ou vtima; em todos esses casos teremos designaes relacionais, referidas funo descrita na sentena. Fato de interesse sinttico, no entanto, que as nomeaes relacionais transportam para a locuo de que participam a estrutura argumental originria. Tomemos, por exemplo, um verbo de movimento, que preside ou admite o agrupamento de uma srie de papis temticos: paciente, origem, destino, sentido, direo etc.: 8 - a - Carlos viajou de Londres a Paris, semana passada, pelo tnel sob o Canal da Mancha. b - A viagem de Carlos, de Londres a Paris, semana passada, pelo tnel sob o Canal da Mancha, foi uma aventura fascinante. No parece adequado considerar que todas relaes e circunstncias agrupadas em torno da denominao relacional viagem sejam meros atributos; na verdade, elas preservam sua natureza de argumentos funcionais, permitindo a coeso da sentena em (8 b). Compare-se com a acumulao de atribuies em torno de uma nomeao genrica, em (9) : 9 - A porta de ferro da casa de campo do dono da firma de construo civil foi arrombada. A dificuldade de entendimento de (9) certamente maior do que a (8 b).

  • A possibilidade de se nomear relacionalmente no universal: no existe, em portugus - e, provavelmente, em lngua alguma -, nomeao adequada para todas as funes e papis temticos. No caso de Maria comeu um sanduche, poderamos nomear sanduche como "comida", a funo comeu, com alguma impropriedade, como "refeio", mas no teramos como nomear relacionalmente Maria. Em Joo deu um livro a Mrcia, o livro poderia ser "presente"; Maria, em alguns contextos, "a presenteada"; no teramos, porm, como designar o benefactor, Joo. Nomeao relacional e estrutura da notcia A nomeao relacional tem extraordinria importncia na gramtica dos textos expositivos, onde atua como elemento de coeso, capaz de desdobrar por vrios perodos uma nica proposio. Consideremos uma notcia tpica, com seu lead (10 a) organizado no modelo clssico, em que se responde s perguntas quem? fez o qu? a quem? quando? onde? por que? e como? 10 - a - X matou Y, no tempo t, no lugar l, com a arma A, pelo motivo M. b - O assassino .... c - A vtima ... d - O crime ... e - A causa ... f - A arma... Na srie (10 a-f), os pargrafos indicados por (10 b-f) esto integrados ao lead pelo instrumento de coeso que so as nomeaes relacionais. De forma menos esquemtica (variando a ordenao, intercalando outras informaes etc.), este o molde bsico de notcias produzidas industrialmente. Acontece, a, que exatamente a denominao relacional que permite estruturar como exposio, isto , como ordenao lgica (no caso, situando o todo no primeiro pargrafo lgico e as partes, uma a uma, nos pargrafos subsequentes) um evento seqencial. No precisamos explicitar tudo que sabemos sobre o assassino para depois falar de tudo que sabemos sobre o crime, tudo sobre a vtima etc. Disponvel em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica3.html em 06 fev 2004. [Aula 4] O mundo externo, percebido pelos rgos dos sentidos, reconstrudo na mente como realidade virtual. Essa representao se faz por modelos compostos de traos. Modelos so, portanto, representaes constitudas de conjuntos de traos que se especificam ou particularizam a cada proposio. As operaes proposicionais realizadas com modelos/traos permitem reconhecer relaes: a. espao-temporais (em presena e em fluxo), b. de inferncia lgica (negao, conjuno, disjuno, implicao, equivalncia), c.de semelhana (causa/conseqncia, essncia/aparncia). Operando (suprimindo, compondo, abstraindo) com modelos/traos analgicos, podem-se antecipar eventos com alto grau de probabilidade e modelar objetos inexistentes no mundo real, mas atribudos a mundos possveis: (a) ficcionais

  • (unicrnios, centauros); (b) de desejo (deuses, fadas) ou temor (demnios, vampiros); (c) de conhecimento (seres extra-terrestres, buracos negros) etc. Pode-se tambm inferir a existncia de abstraes necessrias (nmeros, equaes) e modelar metaforicamente entidades inefveis (sensaes e estados subjetivos, como angstia ou ansiedade). A cada modelo corresponde uma entidade ou conjunto de entidades virtuais ou mentais; modelos mantm relaes funcionais com esses entidades. Dessa maneira, o universo dos modelos o co-domnio ou universo dos valores do universo das entidades mentais, tenham ou no existncia no mundo real. Toda predicao uma funo na qual se relacionam argumentos um-um ou vrios-um. Modelar um mundo real ou possvel implica construir cenrios onde entes desse mundo desempenham papis temticos (agente, paciente, tema etc.) determinados pelo funtor da predicao. Um mesmo episdio real ou possvel pode ser modelado de maneira distinta por diferentes funtores, que criam cenrios prprios. Criar um cenrio implica no apenas distribuir papis temticos mas tambm priorizar algum(ns) aspecto(s) em detrimento de outros. Assim, posso considerar a construo da casa de (1 a-c) como investimento (1-a), dimencion-la pelo espao que ocupa(1-b) ou sugerir seu valor como criao artstica (1-c) em distintos cenrios proposicionais, onde ela ocupa o papel temtico de tema e, por hiptese, designa o mesmo objeto: 1 - a - A casa custou quinhentos mil dlares b - A casa ocupa oitocentos metros quadrados. c - A casa foi projetada por Niemeier. Diante da morte de algum conhecido, posso destacar o paciente, Mrio, tornando a causa irrelevante (2-a), co-relevante ou secundria (2-b) ou relevante (2-c) para o discurso, conforme a estratgia assumida (parte-se de uma das mximas de Grice: dizer apenas o que relevante): 2 - a - O Mrio morreu b - O Mrio morreu de aids c - A aids matou o Mrio Os papis temticos realizam-se na lngua como casos sintticos determinados pelo funtor da predicao. O funtor ou o predicado desenham o cenrio da predicao, de modo que no h homologia entre papis temticos e casos sintticos. Por exemplo, embora intuitivamente se atribua o papel de agente ao sujeito, verbos ditos inacusativos ou ergativos (por exemplo, "Mrio morreu", "Maria chegou") destinam o lugar de sujeito ao paciente ou tema, no ao agente. Nas lnguas em geral, todas as relaes que constituem dimenses de um modelo devem ser expressas por sons linearmente organizados. Por um princpio de economia lingstica, tanto relaes necessrias (tempo, aspecto e modo das sentenas; lugar, pertinncia, propriedade, posse: agente/paciente, modo, instrumento, causa/conseqncia, origem, destino, sentido, direo etc) quanto condies semnticas (sexo expresso pelo gnero, singularidade e pluralidade etc.) podem ser

  • gramaticalizadas. O elenco de relaes e condies selecionadas para gramaticalizao varia de lngua para lngua, embora haja um conjunto de relaes e condies que tende a ser gramaticalizada na maioria das lnguas. Os processos de gramaticalizao obedecem com freqncia a uma hierarquia: a. adio unidade semntica mnima de afixos; b. adio locuo de afixos; c. ordenao das palavras. Em um sistema de afixao, a ausncia de afixo (ou afixo ) costuma ser significativa. Assim, na oposio singular/plural, em portugus, o s marca de pluralidade e, em decorrncia, sua ausncia marca de singularidade. Os afixos de palavras so freqentemente sufixos, embora possam ocorrer prefixos (o redobro dos verbos gregos, por exemplo) e encaixes internos. Os afixos de locues so freqentemente prefixos, embora possam ocorrer formas sufixais, partculas encaixadas ou livres. A ordenao de palavras tende a torna-se significativa de relaes de caso (portanto, dos papis temticos, dentro do cenrio desenhado pelo modelo proposicional) medida que se desprezam os recursos da afixao de palavras e locues. No entanto, a ordenao pode conter significados semnticos no relacionais ou sistmicos da lngua (paradigmticos, em regra, no sintagmticos), como ocorre na colocao de muitos adjetivos em portugus: eles so mais referenciais ou concretos aps o nome, mais fracos ou abstratos antes do nome (grande casa, casa grande, homem pobre, pobre homem). Diz-se em teoria da gramtica que os predicados ou seus funtores selecionam os papis temticos, atribuindo-lhes casos e sistemas de concordncia que variam de lngua para lngua. Pode-se afirmar que para qualquer papel temtico existe um caso, embora seja comum mais de um caso terem a mesma forma (por exemplo, as palavras femininas gregas da primeira declinao com o tema em a precedido de e , i ou r tm nominativo, vocativo e dativo com a terminao ), o que gera eventualmente ambigidade fora do contexto. Isto , no entanto, irrelevante porque o que importa na lngua a ambigidade contextualizada, isto , as situaes de enunciao em que a ambigidade no pode ser eliminada imediatamente por inferncia ou pressuposto. A noo de predicao tem sido aplicada ora sentena, onde o funtor seria em geral o verbo (discute-se este papel no caso das sentenas copulares e de sentenas sem verbos ou small clauses, como "Joo considera a prova difcil" ) , ora a locues, onde (a) adjetivos atuariam como predicados (3-a) e (b) preposies (3-b) ou, mesmo, em portugus, o artigo indefinido (3-c) atuariam como funtores, estabelecendo relaes funcionais entre dois termos. Sob certas condies, a simples justaposio de um termo genrico a um nome prprio j capaz de indicar a predicao (3-d): 3 - a - casa confortvel - C(c) = a casa [] confortvel b - casa de pedra - F(c, p) = casa [] feita de pedra c - Armstrong, um astronauta - A(a) = Armstrong [] [um dos da categoria de ou pertence categoria de] astronauta d - O Marechal Rondon - i M(r ) = [determinado] Rondon [] [um dos da categoria de ou pertence categoria de] Marechal

  • Tomemos o caso de uma sentena que admite vrios papis temticos, como o caso daquelas nucleadas por verbos de movimento, que mapeam cenrios de deslocamento no espao-tempo: 4 - Joo foi de Ponta Grossa a Foz do Iguau de automvel em cinco horas. Uma abordagem no nvel da sentena atribuiria a Joo o papel temtico de paciente do deslocamento, a Ponta Grossa o papel de origem do deslocamento, a Foz do Iguau o de destino do deslocamento, a de automvel o de instrumento do deslocamento e a cinco horas o de tempo decorrido no deslocamento. Poderamos admitir tambm que o verbo ir (foi) atribui ou admite esses papis temticos, mas sua realizao, em cada caso, decorreria de funtores particulares: de para origem, para para destino, de para instrumento e em para tempo decorrido. O uso de de com mais de uma significao funcional (ele tem mais de uma dezena) na mesma sentena no implica ambigidade uma vez que os argumentos internos regidos em cada caso (Ponta Grossa e automvel) no a admitem. A relao funcional em de Ponta Grossa seria entre a funo verbal rotulada, isto , o termo que designa a frmula funcional (a ida), e um designativo de lugar (Ponta Grossa); em para Foz do Iguau seria entre esse termo (ida) e um designativo de lugar (Foz do Iguau); em de automvel, seria entre o termo (ida) e um designativo de instrumento ou meio do transporte (automvel). Como a funo verbal no est efetivamente rotulada na sentena (onde a palavra ida no aparece), cada um dos papis temticos referidos a ela teriam o carter de elementos de uma lgica de segundo grau (a lgica de primeiro grau no permite predicar funes como se fossem argumentos), o que explica o entendimento tradicional desses complementos como advrbios. Pode-se admitir a continuidade da noo de caso, ainda sem os sufixos que consagraram essa figura nas lnguas clssicas, como o latim ou o grego, e se preservam em lnguas modernas, como o alemo ou o russo. A, cada caso seria designado pela ausncia/presena de alguma preposio em algum contexto. Parodiando designaes clssicas, teramos algo como um "genitivo de origem" em de Ponta Grossa, um "acusativo de movimento" em para Foz do Iguau e um "instrumental" em de automvel. Para o verbo de ao matar, numa sentena indicativa afirmativa, em portugus, o sujeito ou argumento externo (agente) marcado pela desinncia , preposio e a posio pr-verbal; o objeto ou argumento interno (paciente) pela desinncia , preposio e posio ps-verbal; o instrumento pela preposio com; o tempo por uma palavra prpria para significaes semnticas freqentes (hoje, ontem, amanh etc.) ou por locuo ou sentena com a preposio a; o lugar por uma palavra prpria para significaes semnticas freqentes (aqui, l, adiante etc.) ou por locuo ou sentena com a preposio em. Dessas predicaes, sujeito (agente) e objeto (paciente) so argumentos exigidos pelo verbo; o instrumento argumento admitido; tempo e lugar so argumentos exigidos em toda predicao existencial. As preposies com, a e em seriam funtores dos papis temticos de instrumento, tempo e lugar, isto , prefixos de locuo ou sentena capazes de torn-las argumentos internos de predicaes de instrumento, tempo e lugar.

  • As nuanas sintticas admitidas na construo das sentenas e na organizao das sentenas em textos nas lnguas naturais so de tal maneira complexas que sugere mais do que automatismo, inteligncia, no seu mecanismo de formulao. Uma dessas hipteses, explorada recentemente, admite que os predicados e os funtores poderiam associar-se ao conceito de agentes inteligentes. Agentes inteligentes so, em sentido amplo, sistemas computacionais, geralmente baseados em software, dotados de: - autonomia, isto , que agem sem interveno humana direta ou indireta, e tm algum controle sobre suas aes e estados internos; - habilidade social, isto , que interagem com outros agentes por via de alguma espcie de linguagem; - reatividade, isto , que tm alguma percepo do meio em que agem e respondem a tempo a mudanas que ocorrem nele; - pr-atividade, isto , no apenas agem em resposta ao meio, mas so capazes de tomar a iniciativa e exibir comportamento dirigido a um objetivo. Em sentido mais estrito, agentes inteligentes so dispositivos projetados ou implementados com conceitos aplicados em geral a seres humanos, tais como conhecimento, crena, inteno, obrigao e, mesmo, emoo. Atribuem-se a agentes inteligentes, em diferentes contextos, mobilidade (capacidade de deslocar-se em algum contexto), racionalidade (ao perseguir um objetivo, no agem de modo a impedir sua consecuo) e benevolncia (no tendo objetivos conflitantes, cada qual sempre tenta fazer o que lhe destinado). A teoria dos agentes inteligentes est vinculada viso intuitiva que atribui atos objetivos a atitudes, tais como crenas, vontade, esperana, medo ou desejos. Essa abordagem, dita intencional, admite uma primeira ordem, qual seja a das atitudes (crenas, vontades etc.), uma segunda ordem, qual seja a das atitudes motivadas por atitudes (crenas de crenas, temor de crenas etc.), uma terceira ordem e assim por diante. A atribuio de tais intenes a agentes no humanos pode ser acusada de antropomrfica; no entanto, vrios autores contemporneos a defendem, na medida em que permite a melhor compreenso da operao de um dispositivo, seja ele uma mquina ou item de um sistema simblico, tal qual o lingstico. A operao com atitudes proposicionais constri contextos opacos e envolve, no entanto, dois problemas lgicos. O primeiro semntico: a impossibilidade de substituio de termos sinnimos, salva veritate, isto , da aplicao da Lei de Leibnitiz: se Janine cr que Cronos o pai de Zeus e Zeus o outro nome de Jpiter, no posso dizer que Janine cr ser Cronos o pai de Jpiter, uma vez que ela pode ignorar que Zeus Jpiter. A segunda situa-se no universo da lgica proposicional ou de primeira ordem: no posso tomar como argumento da funo cr a unidade Cronos o pai de Jpiter, j que esta no um termo e sim uma frmula. A questo central que, nos contextos opacos, a verdade dos componentes no assegura a verdade do conjunto (eles no so thruth functional), de modo que o formalismo lgico a ser adotado ter que ser outro. Qualquer formalismo alternativo deve dar conta de um modelo semntico (j que a Lei de Leibnitz descumprida) e de uma linguagem de formulao, isto , de uma sintaxe. As abordagens existentes so as da lgica modal, que introduz operadores modais sem funo de verdade - como necessrio ou certo (N) e provvel (M) - e a da metalinguagem, isto , uma linguagem que inclui termos ou rtulos denotando frmulas de outra linguagem, dita linguagem-objeto.

  • Quanto ao problema semntico, a soluo pode vir da semntica dos mundos possveis, onde as crenas, conhecimento ou objetos dos agentes podem ser situados em mundos irreais, inexistentes, admitindo-se a relao de acessibilidade entre eles. A tese da correspondncia entre esses mundos torna essa semntica atraente como ferramenta terica; no entanto, ela suscita alguns problemas, particularmente o da oniscincia lgica: teramos que admitir, para aplic-la, que os agentes raciocinam de maneira perfeita. Assim, numa abordagem epistmica, um agente no poderia saber de ou crer em algo que no fosse verdadeiro. Uma abordagem bem mais simples trabalhar com estruturas simblicas interpretadas: crenas ou conhecimentos so vistos como funes simblicas representadas numa estrutura de dados associada ao agente. Um agente acredita em f se f est presente em sua estrutura de dados. Sob certas circunstncias, isso funciona. De toda sorte, atribuir ao pr