gestao democratic a participativa gpm miolo online 09-09-10

Upload: fabriziofurtado

Post on 20-Jul-2015

197 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Ministrio da Educao MEC Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES Diretoria de Educao a Distncia DED Universidade Aberta do Brasil UAB Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica PNAP Especializao em Gesto Pblica Municipal

GESTO DEMOCRTICA E PARTICIPATIVA

Helena da Motta Salles

2010

2010. Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Todos os direitos reservados. A responsabilidade pelo contedo e imagens desta obra do(s) respectivo(s) autor(es). O contedo desta obra foi licenciado temporria e gratuitamente para utilizao no mbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, atravs da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o contedo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reproduo e distribuio ficaro limitadas ao mbito interno dos cursos. A citao desta obra em trabalhos acadmicos e/ou profissionais poder ser feita com indicao da fonte. A cpia desta obra sem autorizao expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanes previstas no Cdigo Penal, artigo 184, Pargrafos 1 ao 3, sem prejuzo das sanes cveis cabveis espcie.

S168g

Salles, Helena da Motta Gesto democrtica e participativa / Helena da Motta Salles. Florianpolis : Departamento de Cincias da Administrao / UFSC; [Braslia] : CAPES : UAB, 2010. 110p. : il. Inclui bibliografia Especializao em Gesto Pblica Municipal ISBN: 978-85-7988-067-4 1. Administrao Pblica. 2. Gesto democrtica. 3. Planejamento Participativo. 4. Participao Poltica. 5. Educao a distncia. I. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Ttulo. CDU: 35

Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14/071

PRESIDENTE DA REPBLICA Luiz Incio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAO Fernando Haddad PRESIDENTE DA CAPES Jorge Almeida Guimares UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA REITOR lvaro Toubes Prata VICE-REITOR Carlos Alberto Justo da Silva CENTRO SCIO-ECONMICO DIRETOR Ricardo Jos de Arajo Oliveira VICE-DIRETOR Alexandre Marino Costa DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA ADMINISTRAO CHEFE DO DEPARTAMENTO Gilberto de Oliveira Moritz SUBCHEFE DO DEPARTAMENTO Marcos Baptista Lopez Dalmau SECRETARIA DE EDUCAO A DISTNCIA SECRETRIO DE EDUCAO A DISTNCIA Carlos Eduardo Bielschowsky DIRETORIA DE EDUCAO A DISTNCIA DIRETOR DE EDUCAO A DISTNCIA Celso Jos da Costa COORDENAO GERAL DE ARTICULAO ACADMICA Liliane Carneiro dos Santos Ferreira COORDENAO GERAL DE SUPERVISO E FOMENTO Grace Tavares Vieira COORDENAO GERAL DE INFRAESTRUTURA DE POLOS Joselino Goulart Junior COORDENAO GERAL DE POLTICAS DE INFORMAO Adi Balbinot Junior

COMISSO DE AVALIAO E ACOMPANHAMENTO PNAP Alexandre Marino Costa Claudin Jordo de Carvalho Eliane Moreira S de Souza Marcos Tanure Sanabio Maria Aparecida da Silva Marina Isabel de Almeida Oreste Preti Tatiane Michelon Teresa Cristina Janes Carneiro METODOLOGIA PARA EDUCAO A DISTNCIA Universidade Federal de Mato Grosso COORDENAO TCNICA DED Soraya Matos de Vasconcelos Tatiane Michelon Tatiane Pacanaro Trinca AUTORA DO CONTEDO Helena da Motta Salles EQUIPE DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDTICOS CAD/UFSC Coordenao do Projeto Alexandre Marino Costa Coordenao de Produo de Recursos Didticos Denise Aparecida Bunn Superviso de Produo de Recursos Didticos rika Alessandra Salmeron Silva Designer Instrucional Andreza Regina Lopes da Silva Denise Aparecida Bunn Auxiliar Administrativo Stephany Kaori Yoshida Capa Alexandre Noronha Ilustrao Lvia Remor Pereira Adriano S. Reibnitz Projeto Grfico e Editorao Annye Cristiny Tessaro Reviso Textual Barbara da Silveira Vieira Claudia Leal Estevo Brites Ramos

Crditos da imagem da capa: extrada do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.

PREFCIOOs dois principais desafios da atualidade na rea educacional do Pas so a qualificao dos professores que atuam nas escolas de educao bsica e a qualificao do quadro funcional atuante na gesto do Estado brasileiro, nas vrias instncias administrativas. O Ministrio da Educao (MEC) est enfrentando o primeiro desafio com o Plano Nacional de Formao de Professores, que tem como objetivo qualificar mais de 300.000 professores em exerccio nas escolas de Ensino Fundamental e Mdio, sendo metade desse esforo realizado pelo Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Em relao ao segundo desafio, o MEC, por meio da UAB/CAPES, lana o Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica (PNAP). Esse programa engloba um curso de bacharelado e trs especializaes (Gesto Pblica, Gesto Pblica Municipal e Gesto em Sade) e visa colaborar com o esforo de qualificao dos gestores pblicos brasileiros, com especial ateno no atendimento ao interior do Pas, por meio de polos da UAB. O PNAP um programa com caractersticas especiais. Em primeiro lugar, tal programa surgiu do esforo e da reflexo de uma rede composta pela Escola Nacional de Administrao Pblica (ENAP), pelo Ministrio do Planejamento, pelo Ministrio da Sade, pelo Conselho Federal de Administrao, pela Secretaria de Educao a Distncia (SEED) e por mais de 20 instituies pblicas de Ensino Superior (IPES), vinculadas UAB, que colaboraram na elaborao do Projeto Poltico Pedaggico (PPP) dos cursos. Em segundo lugar, este projeto ser aplicado por todas as IPES e pretende manter um padro de qualidade em todo o Pas, mas

abrindo margem para que cada IPES, que ofertar os cursos, possa incluir assuntos em atendimento s diversidades econmicas e culturais de sua regio. Outro elemento importante a construo coletiva do material didtico. A UAB colocar disposio das IPES um material didtico mnimo de referncia para todas as disciplinas obrigatrias e para algumas optativas. Esse material est sendo elaborado por profissionais experientes da rea da Administrao Pblica de mais de 30 diferentes instituies, com apoio de equipe multidisciplinar. Por ltimo, a produo coletiva antecipada dos materiais didticos libera o corpo docente das IPES para uma dedicao maior ao processo de gesto acadmica dos cursos; uniformiza um elevado patamar de qualidade para o material didtico e garante o desenvolvimento ininterrupto dos cursos, sem as paralisaes que sempre comprometem o entusiasmo dos alunos. Por tudo isso, estamos seguros de que mais um importante passo em direo democratizao do Ensino Superior pblico e de qualidade est sendo dado, desta vez contribuindo tambm para a melhoria da gesto pblica brasileira.

Celso Jos da Costa Diretor de Educao a Distncia Coordenador Nacional da UAB CAPES-MEC

SUMRIOApresentao.................................................................................................... 9 Unidade 1 O Municpio e a Democracia ParticipativaIntroduo.......................................................................................................13 O Municpio: local do exerccio da Democracia......................................................25 O que gera descrdito em relao ao Legislativo Municipal?.....................................26 A judicializao da poltica.........................................................................29 A importncia da reabilitao da Poltica.........................................................31 A Democracia Participativa: complemento da Democracia Representativa........36 A Constituio de 1988 e a Democracia semidireta..............................................42 Instrumentos da Democracia direta criados pela Constituio de 1988............42 Os Conselhos Municipais..............................................................................44

Unidade 2 O Planejamento como instrumento da Democracia/Os Controles OficiaisIntroduo.......................................................................................................63 O Planejamento como antdoto contra oscilaes populistas/voluntaristas..........65 A importncia da participao social no planejamento.....................................69 O que distingue o planejamento democrtico do tecnocrtico..........................76 A participao no planejamento do Oramento..............................................82 Os instrumentos de gesto oramentria: PPA, LDO, LOA...................83

Gesto Democrtica e Participativa

O Oramento Participativo (OP)......................................................................89 Os rgos oficiais e a transferncia na gesto.....................................94 O Ministrio Pblico, defensor da sociedade..........................................94 O Tribunal de Contas: transparncia na gesto financeira.......................97

Consideraes Finais ...............................................................................103 Referncias Bibliogrficas................................................................................105 Minicurrculo........................................................................................................110

8

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Apresentao

APRESENTAOCaro estudante, Seja bem-vindo disciplina Gesto Democrtica e Participativa! Em um curso cujo objetivo a formao de gestores pblicos municipais, indispensvel discutirmos os fundamentos e os princpios, assim como os instrumentos de uma gesto democrtica e participativa. O aprimoramento da Democracia em nosso pas supe a boa prtica, tanto dos procedimentos como das relaes democrticas no mbito do municpio, lugar de nosso cotidiano, e, portanto, do efetivo exerccio da cidadania por todos ns. A Democracia est ainda em processo de consolidao no Pas, desafiando nosso passado autoritrio e mazelas como o mandonismo local, o clientelismo, o populismo. A reflexo que desenvolveremos nesta disciplina permitir que voc exera melhor sua funo, seja ela a de servidor municipal ou no, e que compreenda como deve ser a prtica dos que atuam de uma maneira ou de outra na gesto municipal, se voc quiser que nossas cidades sejam um lugar para todos os que nelas vivem, sem exceo. Para tanto, nosso primeiro passo ser, na Unidade 1, compreender a importncia da participao social na gesto do municpio, pois a representao dos cidados, por meio da Cmara de Vereadores, muito importante, mas no suficiente para que de fato se concretize a Democracia no mbito local. E, na Unidade 2, analisar como essa participao pode e deve ser articulada com o planejamento, sobretudo do oramento, e com os organismos de controle oficial, o Ministrio Pblico e o Tribunal de Contas.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

9

Gesto Democrtica e Participativa

Com o estudo desses temas, esperamos que voc identifique os instrumentos e as prticas democrticas criados no Pas a partir da Constituio de 1988 e que compreenda como realizada a Democracia no seu municpio. Para que os conhecimentos desenvolvidos nesta disciplina sejam compreendidos, vamos relacion-los com fatos e experincias de nossa histria poltica e provocar voc a observar o que ocorre no seu municpio. Alm disso, vamos chamar sua ateno para os elos entre esta disciplina e os contedos de outras disciplinas deste curso, como Gesto do Plano Diretor Municipal e Gesto Tributria, visando a obter uma integrao dos conhecimentos. Ao final de cada Unidade, voc dever realizar uma atividade de aprendizagem, mas ao longo do texto solicitaremos que preste ateno ao que acontece no seu municpio para relacionar os fatos com o contedo da disciplina. Por exemplo: quantos conselhos municipais existem na sua cidade? Voc sabe se eles esto realmente funcionando? Ao final deste livro-texto, voc encontrar uma lista com referncias bibliogrficas que contribuiro para voc aprofundar seus conhecimentos, pois no temos a inteno de esgotar o assunto com o que foi exposto. Na internet, voc pode tambm obter importantes informaes, por exemplo, no site do Ministrio das Cidades, disponvel em , entre outras coisas, voc encontra dados do Conselho das Cidades, o Concidades; e o do Instituto Polis, disponvel em , alm de outros que oportunamente sero citados. Por fim, o mais importante que voc desenvolva uma postura participativa e, com base nas orientaes aqui adquiridas, lance-se na pesquisa de como se constri uma Gesto Democrtica e Participativa. Bom estudo! Professora Helena da Motta Salles

10

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa Apresentao

UNIDADE 1O MUNICPIO E A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

OBJETIVOS ESPECFICOS DE APRENDIZAGEMAo finalizar esta Unidade, voc dever ser capaz de:

Compreender o papel fundamental do municpio na Federao brasileira, tal como ela foi estruturada a partir da Constituio de 1988; Entender como a participao poltica dos cidados crucial na Democracia e complementa o sistema representativo; e Verificar que os novos instrumentos criados em 1988 permitem a participao dos cidados na poltica do municpio e do Pas, com destaque para o Conselhos Municipais.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

11

Gesto Democrtica e Participativa

12

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

INTRODUOCaro estudante, Estamos iniciando a primeira Unidade de estudo, na qual discutiremos as grandes mudanas que o Brasil passou nas ltimas dcadas, a partir da redemocratizao. Voc j parou para analisar como h a preocupao crescente com a maneira como as decises so tomadas? Se elas caem como pacotes sobre os cidados ou se foram amplamente debatidas? Isso tem a ver com o novo Brasil que rejeita enfaticamente os procedimentos autoritrios. Vamos ampliar essa discusso?

Em uma cidade da regio Sudeste, com cerca de 500 mil habitantes, em abril de 2008 uma notcia caiu sobre toda a populao como uma bomba: o prefeito havia sido preso pela Polcia Federal, cujas investigaes o apontavam como responsvel por fraude, desvio de recursos pblicos, conluio* com empresrios ao estabelecer contratos da prefeitura, entre outras irregularidades. Logo a notcia se espalhou, inclusive pela mdia de alcance nacional; as fotos do prefeito preso estavam estampadas nos jornais, na tev e na internet. O que chamou a ateno nessa histria que as pessoas da cidade ficaram surpresas com o fato de a Polcia Federal ter agido, mas no com as acusaes em si. A reao mais comum dessas pessoas era a de questionarem o porqu de isso ter demorado tanto a acontecer ou de se admirarem da interveno da Polcia Federal, como se ningum mais esperasse por isso. Ou seja, havia nos comentrios, nas piadas, nas conversas nos bares, nas filas etc. o sentimento de que finalmente algo havia sido feito, j que era considerado bvio que o prefeito vinha agindo de modo corrupto.

*Conluio cumplicidade para prejudicar terceiro(s). Fonte: Houaiss (2009).

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

13

Gesto Democrtica e Participativa

Mas a iniciativa de ao foi da Polcia Federal, sem a mobilizao da sociedade. Algumas perguntas so suscitadas pela situao: se era claro para todos que o prefeito era corrupto, por que a cidade se calou? Por que os Conselhos Municipais se calaram? No papel dos Conselhos Municipais acompanhar a utilizao dos recursos oriundos do Fundo de Participao dos Municpios (FPM)? E o desvio de tais recursos no era uma das acusaes feitas contra o prefeito? Por que a Cmara Municipal se calou? Por que os movimentos sociais se calaram? Por que o Ministrio Pblico se calou? O Tribunal de Contas? Calcula-se que o desvio dos recursos pblicos foi da ordem de R$ 200 milhes. O monitoramento cuidadoso da populao em relao Administrao Municipal poderia ter evitado tal descalabro? No apenas por meio da improbidade administrativa que o interesse pblico pode ser lesado, embora essa seja a forma mais grave, sem dvida. As prioridades da prefeitura podem no coincidir com as da populao, as escolhas feitas pela equipe de governo podem no ser as melhores aos olhos da maioria da populao da cidade. Por isso, o acompanhamento por parte de todos fundamental, afinal aquelas pessoas somente esto ocupando cargos na prefeitura porque o mandatrio que as nomeou foi sufragado pelos eleitores. Diante desse contexto, muitos se perguntam: adianta mesmo a mobilizao popular? Alm de permitir que os cidados expressem sua indignao, ela tem resultados prticos? E como exercer tal vigilncia? Que instrumentos a viabilizam? Que caminhos o cidado comum deve percorrer para entender o que se passa na Administrao Municipal e, principalmente, para nela interferir? Todas essas questes envolvem a temtica de nossa primeira Unidade, e, de certa forma, respond-las um de nossos propsitos. Afinal, a gesto democrtica e participativa agrega valores mesmo j conhecida Democracia Representativa? Alm do aspecto simblico, os Conselhos Municipais tm efetividade?

14

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

O MUNICPIO: LOCAL DO EXERCCIO DA DEMOCRACIAPara falar sobre municpio, inevitvel comearmos fazendo referncia a um marco da histria recente do Pas: o movimento pela redemocratizao na dcada de 1980, que resultou na Assembleia Constituinte e na elaborao da Constituio Federal, de 5 de outubro de 1988. poca, o Pas se ressentia do perodo de um quarto de sculo sob o regime autoritrio inaugurado no ano de 1964. Se somarmos esses anos aos oito do Estado Novo (19371945) e aos 41 da Repblica Velha, a Repblica dos Coronis (1889-1930), concluiremos que no sculo XX tivemos parcos resultados quanto efetivao da Democracia no Brasil. Talvez voc j tenha observado como no Brasil foi criada uma cultura de valorizao do Poder Executivo como aquele que resolve mesmo, do qual devemos esperar solues e h algum tempo at mesmo a ideia de que um governo autoritrio aquele que iria tirar o Pas do abismo. Essa fragilidade da Democracia e as sequelas da ditadura aumentaram os desafios a serem enfrentados no processo de reconstruo institucional iniciado na dcada de milagre econmico brasileiro Saiba mais 1980, durante a redemocratizao. A confluncia entre, de um lado, o esgotamento do modelo de crescimento econmico adotado durante o perodo conhecido como milagre econmico brasileiro, que havia funcionado como fonte dePerodo de acelerao do crescimento econmico brasileiro entre os anos de 1968 e de 1973, tido como resultado tardio das reformas realizadas pelo Governo de Castello Branco (1964-1967) e em grande medida associado ao Programa de Ao Econmica do Governo. Fonte: . Acesso em: 2 ago. 2010.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

15

Gesto Democrtica e Participativa

legitimao para o projeto militar e, de outro lado, a nsia da sociedade pelo retorno normalidade democrtica, fizeram dos anos de 1980 um perodo frtil em avanos polticos. A distenso lenta, gradual e segura do perodo do presidente Geisel (19741978) foi intensificada por fora das presses da sociedade, que obrigaram o processo de abertura a avanar alm das intenes iniciais dos militares. Desde a segunda metade da dcada de 1970 avolumara-se a vida associativa e a formulao de reivindicaes dos setores sociais, das mais variadas naturezas e amplitudes. Um alvo comum unia a todos: o retorno institucionalidade democrtica, e tal movimentao resultou na Assembleia Constituinte de 1987.Saiba maisUm dos maiores polticos brasileiros, formou-se em advocacia pela Universidade de So Paulo (USP), em 1940. Antes de ingressar na poltica, foi secretrio da Federao Paulista de Futebol. Elegeu-se deputado estadual em 1947, pelo Partido Social Democrtico (PSD). Trs anos depois, passou a ser deputado federal, funo que exerceu durante 11 mandatos consecutivos. Foi presidente do MDB e PMDB durante vrios anos e seu presidente de honra. Em 1987, o parlamentar comandou a Assembleia Constituinte. Candidato presidncia em 1989, no obteve sucesso, mas marcou a histria do Pas. Fonte: . Acesso em: 2 ago. 2010.

Por tanto, rompendo com uma tradio oriunda do Perodo Colonial, a Constituio de 1988 fez dos municpios entes autnomos, equiparando-os Unio e aos Estados. Ao mesmo

16

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

tempo, instituiu nova repartio tributria, que acarretou ganhos significativos para os municpios. Somadas as receitas tributrias prprias dos municpios s transferncias constitucionais, a participao desses no bolo tributrio cresceu de 10,8%, em 1988, para 16,9% em 2000 (ANDRADE, 2007). Naquela conjuntura, alm da mobilizao da sociedade pela redemocratizao, o Pas estava s voltas com a crise fiscal, tendo o ciclo virtuoso de desenvolvimento sido interrompido desde o final da dcada de 1970. O tema da distribuio das competncias tributrias (quais impostos ficariam a cargo de cada unidade da Federao) e da participao dos entes federativos no bolo tributrio entraram na pauta poltica tambm em razo da crise. O que impulsionou a descentralizao na conjuntura da constituinte foram, sobretudo, razes polticas promover a Democracia. Mas no final da dcada de 1990 o aprofundamento da municipalizao resultou de iniciativas do Governo Federal no sentido de transformar os governos locais nos principais responsveis pelos servios universais de sade e de educao fundamental e pelos seus gastos correspondentes. A esse respeito encontramos com frequncia duas confuses: a ideia de que descentralizao poltico-administrativa e federalismo so indissociveis e a ideia de que descentralizao e Democracia tambm so inseparveis. No primeiro equvoco, o exemplo norte-americano desmente tal afirmativa, porque o federalismo nos EUA surgiu com a finalidade de centralizar um poder antes disperso; o texto constitucional americano enunciou os poderes do governo central necessrios ao atendimento das demandas da Federao, e aos Estados-Membros restaram os poderes ditos residuais. A conveno de 1787 procurou concentrar o poder em um novo governo central, mas tambm buscou manter os poderes dos Estados-membros, e o poder residual passou a ser visto como sinnimo de fora poltica. Quanto ao segundo equvoco, o principal argumento em favor da descentralizao como promotora da Democracia consistia no seguinte: mais fcil controlar o prefeito e a Cmara de

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

17

Gesto Democrtica e Participativa

Saiba mais

Accountability

Termo com origem na Cincia Poltica norteamericana que comporta distintos significados e nfases. Um de seus significados est relacionado determinao de que as decises tomadas pelos Executivos Municipais devam ser compreendidas pela populao. Por exemplo: como calculada a tarifa dos nibus urbanos? Como so justificados os seus aumentos? essa prestao de contas populao que denominamos de accountability. De acordo com Schedler (1999), existem pelo menos duas conotaes bsicas para o termo, uma a capacidade de resposta dos governos, isto , a obrigao dos funcionrios pblicos de informarem e expli-

Vereadores do que autoridades mais distantes da esfera local; no municpio mais fcil garantir a accountability. Schedler (1999) identifica trs formas bsicas de prevenir o abuso do poder:

sujeitar o poder ao exerccio das sanes;

obrigar que esse poder seja exercidode forma transparente; e

forar que os atos dos governantessejam justificados.

Alm disso, os cidados se interessam mais pelos problemas que lhes carem seus atos, outra a capacidade de impor sanes e perda de poder para os que indizem respeito mais de per to. A fringiram os deveres pblicos. Fonte: Elaboindissociabilidade entre descentralizao rado pela autora. e Democracia tem sido questionada na literatura, em razo de fenmenos observveis em nossa realidade. Podemos lembrar alguns exemplos: se a descentralizao de competncias ocorre sem distino para todos os municpios e entre esses h muitas disparidades de recursos materiais e humanos, tal procedimento aumentar ainda mais tais desnveis, inclusive entre as respectivas populaes. Se h a descentralizao de recursos, mas o poder decisrio continua concentrado no nvel federal, pouco ou nada ter avanado na democratizao. Se o clientelismo permanece em algumas localidades, assim como a baixa renovao de sua elite poltica, a Democracia no municpio ficar comprometida, ainda que haja a descentralizao. Ou seja, a descentralizao por si s no garante a Democracia. Melo (1996) analisa a confluncia de fatores que levaram ao enaltecimento do princpio da descentralizao no contexto da redemocratizao no Brasil. Em seguida revela alguns efeitos perversos observveis aps uma dcada de experimentos

18

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

descentralizantes. Por ironia da histria, houve uma convergncia entre o pensamento dos setores de esquerda e o pensamento liberal de oposio ao regime militar quanto defesa da descentralizao na dcada de 1980. Oposio centralizao prpria do autoritarismo burocrtico de um lado e influncia da voga neoliberal de outro. Com isso, a descentralizao passou a ser vista como elemento eficiente da engenharia poltico-institucional da Democracia emergente, o que contribuiu para a cultura poltica fortemente municipalista da dcada de 1980.

Saiba mais

Thomas Hobbes (1588-1679)

Filsofo ingls que em sua obra Leviat teorizou sobre a necessidade de um Estado forte para impedir que os homens permanecessem na situao de guerra de todos contra todos, de competio desmedida, prpria do estado de natureza. A expresso hobbesianismo municipal refere-se a essa competio por recursos, ou por investimentos industriais, que os municpios estabelecem entre si. Fonte: Elaborado pela autora.

O tempo revelou, no entanto, alguns efeitos perversos da descentralizao, como o hobbesianismo municipal, expresso entre outras coisas, na disputa das localidades por investimentos industriais, deslegitimando as prioridades sociais em favor dos benefcios fiscais e isenes tributrias. Diante desse cenrio, houve grande proliferao de municpios, pois a Constituio de 1988 transferiu a responsabilidade legal pela definio dos critrios de criao de novos municpios, que era prerrogativa federal, para o mbito estadual. Entre 1988 e 1996, quando afinal foi aprovada a lei que dificulta a criao de novos municpios, surgiram mais de 1.300 municpios, a maioria com menos de 10.000 habitantes (COSTA, 2007).

A

multiplicao

de

municpios

suscitou

diversos

questionamentos, dentre os quais podemos destacar o seu impacto fiscal (multiplicao de estruturas administrativas e instncias poltico-institucionais) e maior dificuldade de coordenao federativa no Pas. Mas qual a justificativa para essas questes?

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

19

Gesto Democrtica e Participativa

Tal crtica justificada mais nos casos de emancipao de distritos muito pobres e de dimenses muito reduzidas, porm [...] esse ponto exige minucioso levantamento emprico para que generalizaes mais amplas possam ser feitas (MELO, 1996, p. 16). Enfim, enquanto na dcada de 1980 a descentralizao apresenta-se como ideia importante, na dcada de 1990 ela passa a ser vista com mais cautela, j sendo conhecidos seus resultados, dentre os quais destacamos a guerra fiscal. Nessa nova conjuntura houve at um movimento no sentido da reconcentrao por parte do Governo central. No entanto, a experincia descentralizante trouxe consigo um aprendizado social ainda no de todo compreendido e analisado. As consequncias das tendncias descentralizantes derivam tambm de dois aspectos importantes: as dimenses continentais e as profundas disparidades territoriais, funcionais, econmicas e sociais constitutivas da sociedade brasileira. H enorme heterogeneidade socioeconmica e demogrfica entre os cerca de 5.561 municpios brasileiros, o que acarretou impactos diferenciados das sucessivas polticas de descentralizao. Alm das grandes diferenas entre as cinco regies, h tambm disparidades dentro de cada regio e de cada Estado federado, o que implica a necessidade de considerar a importncia dessa varivel no ordenamento jurdico poltico do Estado brasileiro. Por outro lado, apesar da alternncia ao longo da histria do Pas entre perodos de maior e menor centralizao poltica, a cultura poltica brasileira predominantemente centralizadora. Esse trao foi exacerbado nos perodos autoritrios e, assim, o municpio no ocupou ao longo da histria brasileira lugar de destaque na partilha do poder na Federao brasileira. Por esse motivo, a valorizao do poder e do governo local nesse final de milnio propiciado pelos avanos da Constituio de 1988, embora contenha efeitos indesejveis, concorreu para o fortalecimento do municpio. Isso porque ele foi reconhecido como parte constitutiva do Estado federado e detentor de parcela da competncia nacional, ao mesmo tempo em que a forma federal do Estado foi includa entre os dispositivos que no podem ser modificados por emendas constitucionais (NEVES, 2000).

20

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

Dessa forma, a Carta Magna de 1988 ampliou a sua autonomia ao atribuir ao municpio a condio de [...] entidade estatal, poltico-administrativa, com personalidade jurdica, governo prprio e competncia normativa (MEIRELLES, 1993, p. 116). Nos termos dos artigos 29 a 31 da Constituio, essa autonomia se expressa pelo menos quatro dimenses: poltica, administrativa, financeira e legislativa (NEVES, 2000). No mbito da autonomia poltica, est a capacidade de autogoverno, por meio da eleio direta de seu prefeito, vice-prefeito e vereadores; e de auto-organizao, por meio da elaborao da prpria Lei Orgnica Municipal. No que concerne autonomia administrativa est prevista a capacidade de organizar suas atividades, criar seus quadros de servidores, gerir e prestar os servios de sua competncia, podendo executar os servios diretamente ou indiretamente por intermdio de terceiros. A autonomia financeira refere-se capacidade para instituir e arrecadar seus prprios tributos, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o Imposto sobre Servios (ISS) e tambm outras fontes de rendimentos (aluguel de imveis, venda de bens etc.), alm da autonomia para definir suas formas de aplicao (embora exista alguma restrio constitucional, como as vinculaes relativas ao ensino e as limitaes referentes aos gastos com pessoal e com o Legislativo). Est includa nesse mbito a autoridade para elaborar, aprovar e executar seu prprio oramento. Para alm desses aspectos, o grande reforo dado pela Constituio de 1988 ao municpio foi atribuir-lhe um volume de recursos financeiros mais expressivo por meio das transferncias constitucionais, tanto da Unio como dos Estados-membros. No caso da Unio, por meio do Fundo de Participao dos Municpios (FPM) e no caso dos Estados-membros, por meio da cota-parte do Imposto sobre Circulao de Mercadorias (ICM). Alm dessas transferncias constitucionais, os governos locais recebem tambm recursos para o desenvolvimento de polticas sociais universais. Com essa redefinio fiscal, os municpios

v

Composto de recursos do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos

Industrializados (IPI).

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

21

Gesto Democrtica e Participativa

passaram a contar com recursos financeiros como nunca havia acontecido antes. Por seu turno, a autonomia Legislativa est fundada tanto na capacidade para [...] legislar sobre assuntos de interesse local [...] como na de [...] suplementar as legislaes federal e estadual no que couber [...] (BRASIL, 1988, Art. 30, Incisos I e II). Sobre esse passagem relativa autonomia legislativa vale ressaltar a pouca clareza quanto ao exato significado, limite das duas expresses: assuntos de interesse local e atribuio suplementar da construo no que couber, o que amplia a margem de ambiguidade e de indefinio entre os entes federados no que concerne dimenso legislativa (NEVES, 2000). Em suma, retornando ao tema da descentralizao, importante frisarmos que o fortalecimento do municpio em razo da redefinio da distribuio dos recursos tributrios promovido pela Constituio de 1988 resultou em maior municipalizao da receita, ainda que de forma no adequadamente planejada. Como consequncias desse processo esto as apontadas anteriormente por Melo (1996) e, sobretudo, o fato de a Constituio de 1988 ter produzido um processo desordenado de descentralizao de encargos, com claro desequilbrio entre as responsabilidades e os nus, por um lado, e os recursos transferidos para suport-los, por outro (AFONSO; ARAUJO, 2000).

Voc pode estar se perguntando: como a questo das finanas pblicas locais incide sobre o tema gesto democrtica e participativa?

A questo das finanas pblicas locais incide de vrias maneiras sobre o tema. Por exemplo, a distribuio muito desigual de recursos entre os entes da Federao comprometeria e muito a Democracia dentro das localidades mais depauperadas e, no plano nacional, pelo desequilbrio entre as unidades da Federao. A guerra fiscal, quando estabelecida entre Estados e/ou entre municpios, tem o mesmo efeito.

22

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

De forma sinttica podemos dizer que a descentralizao de recursos sem a descentralizao do poder decisrio no garante a Democracia no nvel local; a descentralizao de recursos sem o poder de deciso pouco adianta. Um aspecto importante relacionado a isso e que precisamos destacar quanto o formato das relaes entre o Governo Federal e os nveis subnacionais qualifica a Democracia. Nesse sentido, ns como cidados temos questes fundamentais a refletir, quais sejam: o prefeito tem de implorar, com pires na mo, os recursos federais e estaduais? Para a liberao de recursos por parte da Unio e do Estado-membro, so exigidas contrapartidas dos governos locais sob a forma de apresentao de resultados? Tal liberao ocorre segundo regras claras e universais? Essas questes revelam a importncia da poltica nesses aspectos, sob a forma da regulao institucional envolvida nas relaes estabelecidas entre os entes da Federao. Afinal, quando falamos em Democracia estamos falando em distribuio de recursos, materiais ou simblicos, o que implica a diviso do poder. Tanto no que diz respeito aos cidados como no que tange aos entes da Federao, importa saber quanto o poder est ou no concentrado ou distribudo e de que maneira. A estruturao do poder no plano federativo repercutir nas possibilidades maiores ou menores de participao dos cidados no plano local. O que significa dizer que o mundo da vida e das relaes humanas e, por conseguinte, das relaes sociopolticas se do fundamentalmente no municpio. Nesse sentido, os poderes locais possuem um papel de interface do cidado com as esferas estadual e federal de governo. Porm, para a maioria dos brasileiros, a forma como os governos municipais, estaduais e a Unio estabelecem relaes entre si pouco clara. O formato dessas relaes intergovernamentais denominado de pacto federativo. Trs princpios bsicos regem as relaes entre governos, quais sejam:

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

23

Gesto Democrtica e Participativa

o princpio da subsidiariedade; o princpio do federalismo; e o princpio da autonomia.O primeiro princpio diz respeito proteo da autonomia da pessoa humana e das comunidades intermedirias (famlias, associaes, sindicatos etc.), tendo como ponto de partida a liberdade e a responsabilidade dos sujeitos tanto no plano individual como no coletivo. Em relao s instituies pblicas, essa proteo se consubstancia no preceito de que elas devem atuar quando, e somente quando, so chamadas para tanto. Da decorre que, em um contexto federativo e democrtico, a sociedade pode convocar os poderes pblicos diante de sua incapacidade de responder adequadamente s questes de interesse comum. Assim, quando solicitados, os poderes pblicos devem corresponder vontade pblica oferecendo subsdios, em primeiro lugar, por meio do municpio, em segundo, por meio dos Estados-membros e, esgotadas as possibilidades de ambos, em terceiro lugar entra em cena a Unio. Desse princpio resulta que as tarefas polticoadministrativas devem estar simultaneamente articuladas entre si para que possam resultar em um modelo federativo de tipo cooperativo (CARNEIRO, 2000). Exemplos disso seriam os convnios firmados entre prefeituras e governos de Estado ou Governo Federal para a aquisio de equipamentos como ambulncias, a instalao de creches etc.; os programas que visam a suplementar os recursos do municpio na rea de educao (Fundeb ou alimentao escolar) ou na rea social (Bolsa Famlia); enfim, as iniciativas em que essa cooperao no constitucionalmente determinada. Ademais, vale ressaltar que no p r i n c p i o d a subsidiariedade que est ancorada, nas sociedades democrticas, a base para a convocao de representantes do povo para ocupar os cargos eletivos institudos nas distintas esferas de governo, por meio de eleies diretas e universais. No caso do Brasil, a Constituio de 1988 definiu tambm a possibilidade de

24

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

participao direta do cidado nos poderes constitudos (CARNEIRO, 2000). Exemplo dessa possibilidade de participao do cidado so os Conselhos Municipais, um assunto a ser retomado adiante. Os Conselhos Municipais foram criados pela Constituio de 1988 e sua existncia (alguns so obrigatrios, outros no) afeta diretamente o exerccio da participao no municpio ao mesmo tempo que cria espaos de legitimao e responsabilizao direta do cidado nos mbitos governamental e fiscalizador. O princpio federativo estabelece a forma de distribuio do poder e das competncias entre a Unio e as unidades Estados e municpios que compem a nao. Por sua vez, o princpio da autonomia est claramente articulado com o princpio federativo e exercido na dinmica perene das relaes entre as esferas governamentais. Ou seja, est ancorado em estruturas de proteo e integrao razoavelmente estveis, definidas constitucionalmente, as quais dizem respeito distribuio de competncias polticas, legislativas, administrativas e tributrias. Quanto mais claras so essas definies, mais fcil se torna o exerccio da autonomia. No Brasil, no entanto, percebemos que no foram traados limites claros entre as esferas de governo sob o ponto de vista de suas responsabilidades. Alm disso, no h regulamentaes especficas sobre como devem ser processadas as relaes entre as esferas de governo (CARNEIRO, 2000). Como o foco do nosso curso o municpio, o tema da gesto democrtica e participativa est sendo tratado no mbito municipal, sobretudo porque nossa participao como cidados acontece a, mesmo quando voltada para temas nacionais. Por exemplo, voc se lembra da campanha das Diretas j ou da mobilizao pelo impeachment do presidente Fernando Collor? Ou soube que as passeatas e os comcios sucederam Brasil afora, nas cidades mais variadas, mesmo que a repercusso na mdia tenha sido apenas a das manifestaes nos grandes centros?

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

25

Gesto Democrtica e Participativa

O QUE GERA DESCRDITO EM RELAO AO LEGISLATIVO MUNICIPAL?A ideia da Democracia na contemporaneidade est associada imediatamente ideia de representao, e, por tanto, no plano municipal, Cmara de Vereadores. Isso porque nas sociedades modernas, complexas, no simples a consulta direta aos cidados como algo rotineiro. Mas voc j observou como so frequentes as crticas ao Poder Legislativo, em todos os seus nveis? Assim como acontece em relao aos deputados, comum as pessoas dizerem que os vereadores recebem muito para trabalhar pouco, que apenas tm olhos para seus prprios interesses e no para as questes pblicas, que trocam favores por votos com seus eleitores, que apenas se interessam por seu reduto eleitoral de olho na reeleio, mas no pensam na cidade em sua totalidade e por a vai. Essa viso negativa a respeito da atividade legislativa decorre de diferentes causas, a saber:

Da nossa tradio autoritria que criou no imaginriopopular a ideia de que o Poder que importa o Executivo. Ficou famosa e entrou para nosso folclore poltico a frase de um antigo poltico mineiro, segundo a qual o poder que vale o que nomeia, demite e transfere, prende e manda soltar. Obra-prima de conciso, um raciocnio irrepreensvel do ponto de vista de nossa cultura poltica, pelo menos at recentemente.

26

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa *Lista aberta o que temos atualmente nas

De algumas distores existentes em nosso sistema derepresentao proporcional. A reforma poltica, que inclui vrios itens entre os quais esto o financiamento de campanha, a substituio de listas abertas* de candidatos por listas fechadas* elaboradas pelos partidos. O fim das coligaes nas eleies proporcionais uma questo que vem sendo adiada entre outras razes, porque deve ser votada por aqueles que tm seus interesses diretamente afetados por ela, os deputados. Quanto a um dos aspectos considerados responsveis pelos problemas em nosso sistema eleitoral as regras das coligaes proporcionais a distoro apontada que partidos inexpressivos elegem seus candidatos por meio de coligaes com partidos mais fortes eleitoralmente, j que para efeito de uma determinada eleio o quociente eleitoral* calculado para a coligao efetuada e no para cada partido em separado. Assim, o voto de um cidado pode beneficiar um candidato que no de seu agrado por ele estar na coligao que incluiu o partido e/ou os candidatos de sua preferncia. Em consequncia, h os que defendem a supresso das coligaes nas eleies proporcionais e os que defendem que cada partido coligado receba as cadeiras proporcionalmente sua contribuio para a votao final da coligao. Esse apenas um exemplo das muitas questes envolvidas na representao; imperativo resolv-las para que haja correspondncia entre a vontade dos eleitores expressa nas urnas e a configurao assumida pelo Poder Legislativo.

eleies proporcionais (mandatos legislativos com exceo do senado, em que a eleio majoritria) no Brasil: o eleitor escolhe o candidato de sua preferncia entre todos os postulantes, de todos os partidos. Depois de apurados os votos temos a lista dos mais votados aos menos votados, em geral, e dentro de cada partido. Fonte: Elaborado pela autora. *Lista fechada uma das propostas da reforma poltica. Cada partido ordena sua lista de candidatos; o eleitor vota no partido e os votos vo sendo distribudos segundo essa lista prvia: assim que forem completados os votos necessrios para eleger, o primeiro da lista comea a contagem para o segundo da lista e assim sucessivamente. Fonte: Elaborado pela autora. *Quociente eleitoral nmero que resulta da diviso do nmero total de votos (eleies proporcionais) dados aos partidos e candidatos em uma eleio pelo nmero de cadeiras a serem autora. preenchidas. Fonte: Elaborado pela

Da falta de compreenso por parte dos cidados a respeitoda funo legislativa. Cabe ao legislador criar normas universais que balizaro as aes do Poder Executivo,

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

27

Gesto Democrtica e Participativa

assim como exercer o controle/acompanhamento das atividades executivas, mas a natureza mais abstrata desse trabalho, aliada ao desconhecimento de boa par te da populao, no permite que a funo legislativa seja compreendida.

Da corrupo de muitos polticos, que fazem de seucargo uma oportunidade para enriquecimento pessoal ao apropriarem-se do bem pblico em prejuzo de milhares (ou Nepotismo Saiba mais milhes) de cidados, contribuindo Exerccio de cargo em comisso de cnjuge, compaevidentemente para tal viso nheiro ou parente de poltico em linha reta, colateral negativa. Quando os vereadores ou por afinidade at o terceiro grau, inclusive dos aumentam seus salrios, de forma vereadores ou servidor em cargo de direo, chefia e desproporcional em relao mdia assessoramento. Em 21 de agosto de 2008, o Supremo de vencimentos da populao, isso Tribunal Federal aprovou a Smula Vinculante n. 13 tambm causa revolta. O nepotismo sntese dos casos parecidos, decididos da mesma maneira e que refora o entendimento do artigo 37 outro motivo para o descrdito da Constituio Federal que restringe, quando no dos polticos.veda, a contratao de parentes sem concurso pblico. Muitos municpios esto criando suas leis para

Alm dessas causas, se existe incompreenso do papel do Poder proibir o nepotismo. Fonte: Elaborado pela autora. Legislativo por parte da populao, o mesmo acontece por parte dos prprios legisladores que, com frequncia, agem como despachantes ou quebra-galhos de seus eleitores. So os que apenas sabem atuar no varejo, nessa troca mida de favores, garantindo no cotidiano a sua reeleio. Eles no esto comprometidos com uma viso abrangente dos problemas da cidade e com o carter pblico de suas atividades, de modo a elaborarem projetos relevantes ao desenvolvimento ou resoluo dos problemas que afetam o municpio em sua totalidade. Assim, se as pessoas no acreditam na funo do vereador, no h porque acompanhar seus trabalhos, comparecer Cmara nas audincias pblicas ou mesmo em suas sesses ordinrias. Os que cercam os vereadores com muita frequncia o fazem para solicitar algum favor, para si ou para seu bairro ou rua. Ou seja, forma-se um elo esprio entre representante e representado,

28

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

assentado na incompreenso de ambas as partes sobre o papel do legislador e nos resultados pragmticos dessa relao, convenientes para as duas partes.

A JUDICIALIZAO DA POLTICAProvavelmente voc j ouviu a expresso judicializao da poltica, difundida nos ltimos tempos no Brasil no apenas no ambiente acadmico, mas tambm sob ampla circulao pblica. Tal expresso invadiu a literatura da Cincia Social a partir do projeto de pesquisa de Tate e Vallinder (1995) de comparao emprica do Poder Judicirio em diferentes pases. O significado atribudo expresso no sempre o mesmo; ela pode ser utilizada de modo normativo, o que tem sido mais frequente, pelo menos na mdia, ou de modo analtico, em textos acadmicos. Para Tate e Vallinder (1995), a judicializao da poltica significa a adoo de procedimentos prprios da deciso judicial na resoluo de conflitos polticos. Isso pode ser feito por meio da ampliao das reas de atuao dos tribunais atribuindo-lhes o poder de reviso judicial de aes executivas e legislativas, com apoio na constitucionalizao de direitos e de mecanismos de freios e contrapesos* entre os Poderes. Outro caminho mais difuso seria pela introduo ou expanso de staff judicial ou de procedimentos judiciais no Executivo (caso de tribunais e/ou juzes administrativos) e no Legislativo (caso das Comisses Parlamentares de Inqurito) (MACIEL; KOERNER, 2002). Contudo, como o propsito deste livro no explorar profundamente os muitos sentidos atribudos expresso, vamos nos referir de modo geral s principais distines. Quanto ao primeiro sentido atribudo ao termo judiciao, quando ele adota conotaes normativas, encontramos os que veem o fenmeno da

*Freios e contrapesos (checks and balances) expresso que se refere ao equilbrio que deve haver entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Para que cada poder no exceda suas atribuies, ele deve ser controlado pelos outros e vice-versa. Esse tema ocupou Montesquieu em sua obra Do Esprito das Leis, no sculo XVIII e foi retomado pelos Federalistas autores da Constituio americana, com grande nfase. Fonte: Elaborado pela autora.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

29

Gesto Democrtica e Participativa

judicializao da poltica como sinal negativo, e os que o veem como sinal positivo.

Voc pode estar se perguntando: como assim sinais negativo e positivo?

Negativo, nesse contexto, refere-se ao fato de que a transferncia do poder de deciso dos Poderes Legislativo e/ou Executivo para o Judicirio seria o resultado de uma insuficincia de desempenho dos dois primeiros: dado que no cumprem suas funes de modo satisfatrio, o Judicirio entraria em cena compensando ou remediando essa situao. Alm do mais, h os que entendem que tais consideraes podem ser aplicadas no apenas aos juzes, mas ao Ministrio Pblico. Nessa tica, o Ministrio Pblico estaria se excedendo em relao s suas atribuies ao levar os conflitos justia ou resolvendo-os extrajudicialmente, tendo a lei e sua posio a seu favor. Quanto aos que enxergam no fenmeno um sinal positivo, a ideia que a utilizao dos canais da justia pelos cidados significa mais uma arena pblica que propicia a formao da opinio pblica e o acesso a direitos. Experimentando a predominncia do Executivo sobre o Legislativo e o isolamento parlamentar em relao sociedade civil, o cidado estaria tomando a iniciativa de buscar a efetivao de seus direitos constitucionais, individualmente ou por intermdio de aes coletivas. O Ministrio Pblico visto, nessa tica, como tendo um papel fundamental de retaguarda para a mobilizao da sociedade. A judicializao da poltica parece ter se avolumado mais nos planos estadual e federal, mas no caso dos municpios maiores, ela com certeza tambm um fenmeno em curso. No podemos perder de vista que a maioria dos municpios brasileiros constituda de unidades com menos de 10.000 habitantes, o que significa dizer que nem todos dispem de recursos institucionais para viabilizar aes individuais ou coletivas no sentido de fazer valer seus direitos.

30

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

A

IMPORTNCIA DA REABILITAO DA

POLTICA

O pior analfabeto o analfabeto poltico. Ele no ouve, no fala, nem participa dos acontecimentos polticos. Ele no sabe que o custo de vida, os preos do feijo, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remdio dependem das decises polticas. O analfabeto poltico to burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a poltica. No sabe o imbecil que da sua ignorncia poltica nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que o poltico vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo. Bertolt Brecht

Voc j observou que as pessoas frequentemente afirmam que no se interessam por poltica ou, mais do que isso, que detestam a poltica? Outras gostam tambm de se denominarem apolticas. A expresso mar de lama, amplamente utilizada na crise dos anos de 1950 que culminou com o suicdio de Getlio Vargas, em 1954, passou a ser associada com as atividades polticas. Como se uma barreira de assepsia separasse o mundo dos cidados dignos, aqueles que no se envolvem com a poltica, do mundo da vilania e da corrupo do lado de l. Isto , dos cidados versus os polticos que atuam nas prefeituras, cmaras, assembleias, nos palcios de governo ou no Congresso. Essa m reputao da poltica com certeza tem base na realidade.

Mas pense bem: quem vota nos polticos que tanto condenamos? Quem fecha os olhos, para no ter de se incomodar, quando circulam rumores sobre falcatruas com o dinheiro pblico? Quem acompanha atentamente o que se

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

31

Gesto Democrtica e Participativa

passa nas cmaras e nas secretarias? Ser que o descalabro da poltica responsabilidade apenas dos profissionais dessa atividade?

Como dissemos no incio deste livro-texto, o Brasil tem uma vasta experincia poltica autoritria. Para justific-la, uma das alegaes sempre foi a incapacidade (em linguagem jurdica, hipossuficincia) do povo brasileiro. Sem cultura, ignorante, despreparado, o povo precisaria andar com rdeas curtas sob o olhar vigilante de seus guias. O pensamento do alemo Bertold Brecht (1898-1956) retrata bem essa incapacidade Nessa mesma linha de raciocnio, foi criada a ideia do salvador da ptria, do lder clarividente que viria trazer as solues para esse povo subdesenvolvido. Felizmente isso vem mudando, mas qualquer resqucio dessa cultura precisa ser severamente combatido porque a sequncia desastrosa: povo ignorante necessidade de tutela eliminao da participao poltica eliminao da prpria poltica ameaa Democracia. A desqualificao da Poltica tem o efeito de estimular as pessoas a voltarem as costas para a esfera pblica, desinteressandoas dos temas da cidade, o que facilita enormemente a atuao dos polticos que costumam se locupletar da coisa pblica. Vale ressaltar o indiscutvel papel da mdia na formao da opinio pblica, a inclusa a viso a respeito da poltica. No caso do municpio, os jornais e os rdios locais disseminam diariamente avaliaes a respeito do Legislativo e do Executivo, que contm premissas, valores, inclusive uma viso acerca da atividade poltica e/ou da moralidade poltica. Destacar temas ou minimiz-los, ou mesmo ocult-los, so formas de ir modelando com o cuidado do arteso o perfil

32

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

de cidado desejado. J se tornou lugar comum a afirmao de que vivemos em uma sociedade miditica, da qual decorrem os benefcios do acesso informao, mas tambm os males da manipulao que a maioria no percebe, sobretudo em um pas com uma populao de baixa escolaridade. O cidado bem informado vital para a Democracia; a informao que qualifica as pessoas para suas escolhas, e no apenas as eleitorais. O controle insidioso da opinio pblica, no entanto, uma ameaa real, dados os interesses econmicos que movem os proprietrios dos meios de comunicao, muitas vezes em conluio com o prprio Poder Pblico.

A Poltica, por sua prpria natureza, um dos elementos constitutivos das sociedades humanas. Voc sabe por qu?

Por causa das diferenas individuais, quanto aos mais variados aspectos, inclusive as relacionadas aos interesses prprios, pois os homens sempre entram em conflito entre si. Imaginar uma harmonia permanente e a convivncia baseada apenas em consensos implicaria que todos fossem iguais, que tivessem os mesmos gostos, preferncias e interesses, o que no corresponde realidade. O conflito algo inevitvel nos agrupamentos humanos e precisa ser administrado para que a ordem seja mantida e o grupo no venha a ser desagregado. Ou os mais fortes vo impor sempre sua vontade aos mais fracos ou a negociao entre as partes, quando emerge o conflito, a condio de possibilidade da vida social. Quanto mais primitiva a sociedade, mais o recurso fora utilizado; a poltica emerge quando j h algum grau de desenvolvimento econmico e social. Os gregos, na Antiguidade Clssica (sculo V a.C.), foram os responsveis pela inveno da Poltica. As questes relacionadas aos habitantes da Polis, a cidade, deveriam ser debatidas e as melhores solues encontradas a partir da busca de sadas mais adequadas coletividade. Os gregos se orgulhavam

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

33

Gesto Democrtica e Participativa

*Despotismo qualquer manifestao de autoridade tendendo tirania e opresso. Fonte: Houaiss (2009).

de dar esse tratamento aos assuntos coletivos, bem diferente do que fazia a Prsia, onde grassava o despotismo*. Distinguir-se do primitivismo dos persas era um dos temas dos gregos, responsveis tambm pela descoberta da Razo e da Filosofia. Assim, temos o surgimento da noo de Poltica como uma marca da cultura grega, que faz parte do legado greco-romano recebido pelo Ocidente, nossa referncia sempre retomada, ainda no sculo XXI. Essa noo representa um marco do ponto de vista civilizatrio e dessa maneira que o tema sempre apareceu na histria, na literatura, nas artes. Abrir mo da Poltica , portanto, um retrocesso civilizatrio, alm das consequncias pragmticas mais imediatas.

O conflito inevitvel em qualquer sociedade. O papel da Poltica precisamente possibilitar a vida em sociedade, apesar dos conflitos. Em outras palavras, transformar o conflito em cooperao.

Como a sobrevivncia da sociedade depende da cooperao, o grande papel da Poltica consiste em levar os indivduos a isso, sem anular, contudo, a suas diferenas. Por isso, a ideia de negociao sempre esteve intimamente associada da Poltica. No a negociao no sentido rasteiro que algumas vezes assumiu entre ns, do toma l, d c ou do dando que se recebe, mas em um sentido mais nobre, isto , cvico: cada ator poltico distingue os interesses que lhe so prprios, seja como indivduo seja como membro de um grupo (portanto no necessariamente partilhveis pelo conjunto da sociedade), dos interesses que guardam com aquele conjunto, no obstante as divergncias em relao s outras partes. Nesse ponto, readquire atualidade a ideia grega de que o todo tem supremacia sobre as partes. Mas na Antiguidade, no contexto de maior homogeneidade e simplicidade das cidades-estados, conciliar as partes era algo muito menos complexo, se comparado aos desafios postos hoje a um gestor pblico.

34

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

A teia intrincada das relaes sociais na sociedade moderna exige dos polticos uma habilidade sem limites para que as foras centrpetas ou de agregao se sobreponham s centrfugas ou de desagregao. Apesar de todas as foras que conduzem desagregao, ao conflito, a tarefa da Poltica produzir a coeso, por meio de denominadores comuns extrados da dimenso pblica que cada indivduo ou grupo conseguiu constituir. Jean-Jacques Rousseau, no sculo XVIII, ao escrever o Contrato Social, afirmou que Quando algum disser dos negcios do Estado: Que me importa? pode-se estar certo de que o Estado est perdido. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) Saiba mais Se essa era uma preocupao do filsofo Escritor, pensador e filsofo iluminista suo nash dois sculos , imagine hoje, quando o cido em Genebra, naturalizado francs, cujas individualismo est bem mais ideias polticas situavam-se contra as injustias exacerbado!da poca, defendeu a pequena burguesia e inspirou os ideais da Revoluo Francesa (1789) Fonte: . Acesso em: 4 ago. 2010.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

35

Gesto Democrtica e Participativa

A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: COMPLEMENTO DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVAOs gregos na Antiguidade foram mencionados anteriormente como os que esto na origem da noo de Poltica. Deles derivou tambm a noo de Democracia. Dadas as condies em que viviam, a Democracia por eles inventada foi a direta, em que os cidados se reuniam na gora, a praa do mercado, para deliberarem sobre os assuntos da cidade. A ideia de Democracia avanou para os sculos seguintes associada a essa forma direta, e, j no sculo XVIII, Rousseau ainda a tomava como referncia em seu Contrato Social. A Democracia Representativa ganhou fora nos tempos modernos, com a criao dos Estados nacionais, cujas dimenses e maior complexidade exigiam a intermediao de representantes entre o povo e o poder central. Montesquieu, filsofo francs do sculo XVIII, analisa em sua obra O Esprito das Leis a diviso dos poderes bem como os federalistas, autores da Constituio americana, os quais, apoiando-se em seu pensamento, teorizaram sobre a Repblica moderna, representativa, e os desafios do equilbrio

Saiba mais Charles-Louis de Secondat (1689-1755)Conhecido como Baro de Montesquieu, foi um dos grandes filsofos polticos do Iluminismo. Definiu trs tipos de governo: republicano, monrquico e desptico, e organizou um sistema de governo que evitaria o absolutismo, isso , a autoridade tirnica de um s governante. Foi ele quem idealizou o Estado regido por trs poderes separados: o Legislativo, o Executivo e o Judicirio, o que teve grande impacto na poltica, influenciando a organizao das naes modernas. Fonte: . Acesso em: 4 ago. 2010.

36

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

entre os poderes para superar as ameaas das faces ou da desagregao da Repblica. At a Revoluo Francesa, em 1789, vigorou o chamado mandato imperativo, pelo qual o representante somente podia se manifestar e votar nas questes para as quais tinha autorizao expressa dos representados. Ele no tinha autonomia, agia apenas como enviado, como porta-voz. Essa forma de mandato (que antecede o mandato representativo) assemelha-se ao que vigora no Direito Privado: quando constitumos um advogado ou procurador, ele deve dizer, em nosso nome, exatamente o que nos convm ou o que o autorizamos a falar. No entanto, houve uma mudana importante na noo da representao a par tir da Revoluo Francesa. Como os revolucionrios estavam empenhados em afirmar o valor universal da cidadania, ou seja, todos sem exceo deveriam ser considerados cidados; o representante, o deputado tambm deveria exercer sua funo em nome de todos, igualmente. Um dos resultados da Revoluo Francesa foi a afirmao dos direitos iguais dos cidados e do acesso igual de todos ao poder, por intermdio da figura do representante. O Brasil, cujo passado autoritrio e centralizador, como mencionamos, evoluiu no final do sculo XX para se transformar em um dos pases com maior nmero de prticas participativas; algumas das quais sero tratadas na sequncia do texto. Tais prticas no substituem a representao, mas vm complement-la. Voc j deve ter observado como comum as pessoas reclamarem dos representantes, sejam eles vereadores, deputados estaduais ou federais. Mas so esses os representantes dos cidados nos trs nveis de governo, uma vez que os senadores representam diante do Poder Executivo os interesses dos Estados pelos quais foram eleitos para o Poder Executivo. Existe um desgaste ou uma crise da representao que comum aos vrios pases e que decorre das enormes transformaes em curso. A globalizao, por exemplo, ocasionou certa relativizao do poder das autoridades nacionais, j que muitas decises so

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

37

Gesto Democrtica e Participativa

tomadas em instncias supranacionais. A quebra das fronteiras nacionais foi impulsionada pela velocidade das comunicaes; os contatos entre as maiores distncias, inclusive as transaes financeiras, levam o tempo de um sinal eletrnico. Alm disso, a complexidade da intricada rede de relaes sociais fez com que a representao que tem como base o territrio se tornasse insuficiente. As interaes construdas com base em afinidades perpassadas por temticas diversas, tais como: questes ambientais, tnicas, de gnero, entre outras, renem, por intermdio dos meios de comunicao, sobretudo a internet, pessoas de regies distantes ou mesmo de pases diferentes em torno do debate e da articulao dessas temticas. No caso do Brasil, a representao um dos temas da agenda das reformas polticas que esto h muito tempo para serem votadas por meio de propostas como o fim das coligaes nas eleies proporcionais e da representao desigual dos cidados dos Estados da federao. A Constituio de 1988 definiu para os Estados o nmero mnimo de 8 e mximo de 70 deputados para a Cmara Federal e, assim, as distores permanecem. A discusso tem como base a representao populacional e a representao territorial: os Estados menos populosos insistem na representao territorial e os Estados mais populosos preferem a representao proporcional populao. A distribuio das cadeiras na Cmara dos Deputados, que segue o critrio vigente, beneficia, segundo o argumento da sobrerrepresentao, pelo nmero mnimo os Estados menos populosos. Contudo, se o clculo fosse realizado unicamente em relao populao, haveria apenas um representante para esses Estados. Assim, os Estados mais populosos acabam "penalizados" pelo teto. Trata-se, com efeito, de debate to antigo quanto o debate sobre o prprio federalismo.

E quanto aos municpios? Como ocorre sua representao?

38

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

Embora no ocorra da mesma maneira, o problema mais geral da representao tambm atinge os municpios, dada a heterogeneidade entre eles. O fenmeno da insuficincia da representao territorial, antes mencionado, tambm ocorre nos municpios. A demarcao da cidade em loteamentos eleitorais, que no legal, mas uma prtica ainda costumeira, est em desacordo com o avano da organizao da sociedade civil, sobretudo em municpios maiores. O vereador do bairro no tem estatura para enfrentar os temas que emergem com a complexidade das relaes sociais. A luta das mulheres contra a violncia domstica, por exemplo, no obedece geografia eleitoral (ou eleitoreira) da cidade. Como pensar o trnsito e o transporte coletivo na cidade sem uma viso sistmica do problema, com todas as suas implicaes? claro que alguns problemas afligem mais alguns bairros ou regies: os desabamentos de encostas na poca das chuvas, a falta de saneamento ou de calamento etc. Esses continuaro a ser disputados pelos vereadores que gostam de cultivar clientelas por meio de seus favores. A representao relacionada com temas que agregam os cidados ser retomada adiante ao tratarmos dos Conselhos Municipais. Assim como ocorre com os deputados, a questo do nmero adequado de vereadores em relao ao tamanho do eleitorado tambm tem sido abordada no Pas.

Voc sabe qual deve ser a dimenso da Cmara Municipal para a boa prtica da Democracia?

A Constituio Federal, em seu artigo 29, inciso VI, fixa diretrizes para que seja mantida a proporcionalidade entre a populao do municpio e o nmero de vereadores, mas dentro dos limites estabelecidos, o nmero exato fixado pela Lei Orgnica do Municpio.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

39

Gesto Democrtica e Participativa

Essa no uma questo apenas aritmtica, mas poltica. Se os cidados veem com bons olhos o papel dos vereadores, tero simpatia pela ideia de aumentar o seu nmero. Afinal, sero mais pessoas empenhadas no equacionamento dos problemas da cidade. Se, ao contrrio, os vereadores so vistos como sanguessugas em relao aos recursos pblicos, para muitos a prpria Cmara seria at dispensvel! Mas mesmo que o vereador no chegue a esse ponto da corrupo, Lei da Fidelidade Partidria Saiba mais muitas vezes os eleitores se sentem trados Em 14 de agosto de 2007 foi aprovado na Cmaporque as promessas de campanha ficam ra Federal o projeto de Lei Complementar n. 35/ esquecidas depois das eleies ou o 07 que prev punio com inelegibilidade por vereador altera suas posies polticas em quatro anos para os detentores de mandato relao s antes defendidas. At que trocarem de partido fora do perodo deterrecentemente, antes de surgir a Lei da minado para tal mudana: depois de eleito, Fidelidade Par tidria, os polticos ele ter de esperar 2 anos e 11 meses por uma migravam livremente de um partido para janela de 30 dias, quando poder mudar de partido. Fonte: Elaborado pela autora. outro, o que tambm desorientava os eleitores. Mas ateno para um aspecto muito relevante! Embora as distores e os problemas da representao precisem ser conhecidos e debatidos para o aprimoramento da Democracia, no apenas porque eles existem que a participao da sociedade torna-se importante. A participao das organizaes da sociedade importa porque ela complementa a representao, ainda que ela funcione satisfatoriamente. E por qu? Por algumas razes:

Nunca ocorre perfeita coincidncia entre os pontos devista do representante e os de todos os representados. A realidade dinmica, e os representados no formam um todo coeso, baseado no consenso. Sobre temas candentes, sobretudo, h sempre algum desencontro entre os dois polos da representao, em razo da autonomia do representante.

As experincias histricas da Democracia direta, comona Antiguidade Clssica, mostraram seu mrito e, embora essa forma sozinha no seja suficiente

40

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

contemporaneamente, com certeza seus mecanismos contribuem para lanar pontes entre a esfera pblica e a sociedade civil.

A existncia de mecanismos de participao mantmos cidados ativos, atentos, mobilizados nos interstcios eleitorais. A representao, com frequncia, faz com que os cidados deleguem completamente aos representantes o cuidado com a cidade.

H sempre ngulos de viso novos a respeito dos problemasda cidade que surgem dos debates pblicos seja nas audincias pblicas, ou nos conselhos, nas assembleias etc. A pluralidade da participao enriquece o debate poltico e isso se perde se os interlocutores ficam restritos aos representantes eleitos.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

41

Gesto Democrtica e Participativa

A CONSTITUIO DE 1988 E A DEMOCRACIA SEMIDIRETAA cientista poltica Maria Victria Benevides definiu nossa Democracia como semidireta porque nossa Constituio inclui mecanismos da Democracia direta, alm de estabelecer o sistema representativo. Como no possvel reunir o povo na gora como nas antigas cidadesestados, a participao direta se d por outros mecanismos, contemporaneamente. Benevides (1991) se debrua sobre a complementaridade entre as formas de representao e de participao; a forma de participao permite o aperfeioamento da Democracia pelo ingresso direto do povo no exerccio da funo legislativa e na produo de polticas governamentais.

INSTRUMENTOS DA DEMOCRACIA DIRETA CRIADOS CONSTITUIO DE 1988

PELA

Alguns instrumentos que foram criados em 1988 garantem a participao direta do cidado nas deliberaes, nos trs nveis de governo: federal, estadual e municipal. So eles: o plebiscito, o referendo e as leis de iniciativa popular. O plebiscito e o referendo no so sinnimos: o artigo 49 da Constituio estabelece que, quanto ao referendo, cabe ao Congresso autorizar e, quanto ao plebiscito, convocar. Alm

42

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

disso, por meio do referendo a populao aprova ou rejeita um projeto que j tenha sido aprovado pelo Legislativo; no plebiscito, a populao decide pelo voto uma determinada questo. O plebiscito adequado para casos excepcionais e o referendo para ratificar ou no atos prvios dos poderes constitudos. O plebiscito costuma suscitar questionamentos em razo de precedentes histricos de sua utilizao por regimes totalitrios ou autoritrios, como os de Hitler, de Franco, de Ferdinando Marcos, de Pinochet e outros. No meio jurdico e poltico francs, o plebiscito visto como deturpao do referendo, provavelmente em consequncia de experincias passadas. Contudo, muitas vezes o que est em causa no o mecanismo de consulta popular em si, mas sua utilizao e regulamentao.

Para Benevides (1991), o que distingue plebiscito de referendo a natureza da questo que levou consulta popular se normas jurdicas ou qualquer outro tipo de medida poltica e o momento da convocao. Em relao natureza da causa, o referendo concerne unicamente a normas legais ou constitucionais, enquanto o plebiscito concerne qualquer questo de interesse pblico, no necessariamente normativa inclusive polticas governamentais. Quanto ao momento da convocao,[...] o referendo convocado sempre aps a edio de atos normativos para confirmar ou rejeitar normais legais ou constitucionais em vigor; o plebiscito consiste em uma manifestao popular sobre medidas futuras, relacionadas ou no edio de normas jurdicas. (BENEVIDES, 1991, p. 133, grifo nosso).

v

Plebiscitos napolenicos e referendos De Gaulle. plebiscitrios de

Decidir que matrias podem ou devem ser objeto de consulta uma importante questo poltica. Benevides (1991) enfatiza dois pontos, um de ordem prtica e outro de princpio. O primeiro diz respeito discusso sobre temas que podem ser objeto de referendo ou de plebiscito, dependendo do mbito territorial da consulta (nacional, regional ou local), o que vai interferir na exigncia quanto coleta de assinaturas, ao nmero exigido etc. No plano municipal,

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

43

Gesto Democrtica e Participativa

por exemplo, no teria sentido a realizao de referendo/ plebiscito sobre temas da grande poltica nacional, assim como questes de direitos humanos; enquanto no plano nacional no caberiam consultas sobre temas como trnsito urbano, obras pblicas municipais etc. O artigo 18, 4 da Constituio estabelece que as regras para A criao, a incorporao, a fuso e o desmembramento de Municpios [...] sero objeto de lei estadual [...] e dependero de consulta, mediante plebiscito [...] s populaes diretamente interessadas. Esse um caso, portanto, de plebiscito a ser realizado no nvel municipal. O princpio da soberania popular pressupe a capacidade de deciso do povo, assim como a possibilidade de conhecimento da questo em causa. Nesse caso, a distino entre consultas nacionais e locais importante, sobretudo em pases de grandes dimenses territoriais como o Brasil: no plano local o eleitorado ter melhores condies para conhecer, participar e julgar a questo. E o segundo ponto est relacionado soberania popular: teoricamente, nenhum tema pode ser excludo da consulta popular. H casos em que os constituintes consideraram que o povo no pode votar, como nas questes tributrias, o que significa que uma parcela do poder passou dos mandantes para os mandatrios, do soberano para o representante. Isso pode ocorrer legitimamente, mas preciso que a deciso prvia sobre essa delegao de poderes seja aceita e reconhecida pelo povo. Nesse sentido, a iniciativa popular legislativa est tambm prevista na Constituio de 1988, nos trs nveis de governo: municipal, estadual e federal. O artigo 29, inciso XIII, institui a iniciativa popular de projetos de lei de interesse especfico do municpio, da cidade ou de bairros, atravs da manifestao de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado.

44

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

OS CONSELHOS MUNICIPAISA criao dos Conselhos Municipais inscreve-se no mesmo esforo pela consolidao da Democracia no pas que gerou o movimento pela descentralizao e os instrumentos tratados no item anterior. Como vimos, a forma federativa possibilita a autonomia administrativa e poltica do municpio e que a Administrao Direta e Indireta local sejam constitudas de forma mais independente. Ela abriu espao para inovaes institucionais, caso dos conselhos, que so incumbidos das competncias designadas pela legislao constitucional e infraconstitucional. No caso dos conselhos gestores de polticas pblicas, tambm chamados de setoriais, a instituio da gesto local de fundos federais foi um fator fundamental para sua implementao, pois foram considerados obrigatrios para o repasse de recursos federais para Estados e municpios e peas centrais no processo de descentralizao e democratizao das polticas sociais. A crena no papel relevante dos conselhos quanto aos dois processos descentralizao e democratizao deriva de duas de suas caractersticas: o fato de estarem vinculados ao Poder Executivo (o que retira desse Poder a exclusividade da deciso, portanto descentraliza) e o fato de neles estarem representados os setores organizados da sociedade. Mas como se d essa representao?

Nova forma de RepresentaoConforme abordamos, o sistema representativo contm vrios problemas que caracterizam sua crise. Diante disso, e institucionalizando diversas sugestes de medidas surgidas no processo de redemocratizao, emergiram no Pas formas de representao no eleitoral, ou representao por afinidade, segundo Avritzer (2007), categoria na qual se incluem os Conselhos Municipais.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

45

Gesto Democrtica e Participativa

A questo candente hoje como reconstruir a representao de modo a integrar seu elemento eleitoral com as diversas formas de advocacia e participao que tm origem extraeleitoral. necessrio pensarmos o contexto no qual convivero a representao eleitoral e a representao da sociedade civil, assim como entendermos o papel da autorizao na criao de legitimidade nesse novo contexto. Avritzer (2007) destaca a existncia de diversos tipos de autorizao relacionados a trs papis polticos diferentes: o de agente, o de advogado e o de partcipe. Nos trs tipos h o elemento do agir no lugar de.

O primeiro caso, o de agente escolhido no processo eleitoral, foi anteriormente abordado.

Quanto ao segundo caso, emergiu nas ltimas dcadasum conceito de advocacia de causas pblicas que prescinde da escolha do advogado pelas prprias pessoas e de suas instrues precisas: organizaes no governamentais defendem atores que no as indicaram para tal funo, como no exemplo da Anistia Internacional ou do Greenpeace.

O terceiro caso o da representao da sociedade civil. Essa tem se tornado muito forte nas reas de polticas pblicas no mundo em desenvolvimento em geral e no Brasil em particular e se d a partir da especializao temtica e da experincia. Organizaes que emergem da sociedade civil, habituadas a tratar de um determinado tema, tendem a se apresentar como representantes da sociedade civil em conselhos ou outros organismos encarregados de polticas pblicas. Quando o ator que age por sua prpria conta fala em nome de outros atores, no deixa de haver representao, que nesse caso se d por identificao ou afinidade. O grande desafio da representao, em quaisquer de suas modalidades o da legitimidade.

46

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

A diferena entre a representao por afinidade e a eleitoral que a primeira se legitima em uma identidade ou solidariedade exercida anteriormente, por uma organizao, por exemplo; enquanto na eleitoral, o exerccio do mandato que vai conferir ou no legitimidade ao eleito, como lembra Avritzer (2007). A representatividade dos conselhos uma garantia de que as decises por eles tomadas sero legitimadas e, no sentido inverso, a legitimidade reassegurar a representatividade, em um processo de retroalimentao. A construo da representatividade est fortemente associada forma de escolha das entidades no vinculadas ao governo municipal. As quatro formas mais comuns de escolha so:

pela lei; pelas plenrias das entidades; pela escolha do prefeito; e pela conjugao de mais de uma forma de escolha.No primeiro caso, a lei fixa quais sero as entidades integrantes do conselho, o que enrijece muito a sua formao, j que qualquer alterao passa a depender de um decreto. Nesse caso, a ampliao da representao no poder ocorrer por escolha do prprio conselho e h o risco de apropriao das cadeiras por parte das entidades pertencentes ao Conselho Municipal, que podem se ater mais aos prprios interesses. No segundo caso, o das plenrias, uma via mais democrtica, que possibilita o debate, a argumentao, o processo de convencimento prprio da atividade poltica. A escolha dos representantes depender da efetiva participao de todos os interessados. O terceiro caso, a indicao pelo prefeito, traz, como claro, o risco de aparelhamento dos conselhos. Na escolha mista, h a possibilidade de o prefeito indicar entidades excludas e h a vantagem de se trabalhar caso a caso.

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

47

Gesto Democrtica e Participativa

Mas quantos so os Conselhos Municipais? Voc sabe?

O nmero varia de cidade para cidade; alm dos obrigatrios, h os que so criados a partir de demandas locais. De acordo com a pesquisa Conselhos Municipais e Polticas Sociais (IBAM, IPEA, COMUNIDADE SOLIDRIA, 1997 apud TATAGIBA, 2002) existem trs tipos principais de conselhos:

Conselhos de Programas: vinculados a programasgovernamentais concretos e em geral associados a aes emergenciais bem delimitadas quanto ao seu escopo e sua clientela, que articulam ou acumulam, em geral, funes executivas no mbito do respectivo programa. Trabalham mais com a noo de clientelas especficas, supostamente beneficirias dos programas. Dizem respeito no extenso de direitos ou de garantias sociais, mas a metas incrementais em geral vinculadas ao provimento concreto de acesso a bens e servios elementares ou a metas de natureza econmica. A participao aqui, alm de acolher a clientela-alvo ou beneficiria, contempla tambm as parcerias e sua potncia econmica ou poltica. Por exemplo, os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, de Alimentao Escolar, de Habitao, de Emprego, de Distribuio de Alimentos.

Conselhos de Polticas: ligados s polticas pblicasmais estruturadas ou concretizadas em sistemas nacionais. So em geral previstos em legislao nacional, tendo ou no carter obrigatrio, e so considerados parte integrante do sistema nacional, com atribuies legalmente estabelecidas no plano da formulao e implementao das polticas na respectiva esfera governamental, compondo as prticas de planejamento e de fiscalizao das aes. So tambm conhecidos como fruns pblicos de captao de demandas e de negociao de interesses especficos

48

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

dos diferentes grupos sociais e como uma forma de ampliar a participao dos segmentos com menos acesso ao aparelho de Estado. Nesse grupo esto situados os Conselhos de Sade, de Assistncia Social, de Educao, de Direitos da Criana e do Adolescente. Dizem respeito dimenso da cidadania, universalizao de direitos sociais e garantia ao exerccio desses direitos, zelando pela vigncia desses direitos, garantindo sua inscrio ou inspirao na formulao das polticas e seu respeito na sua execuo.

Conselhos Temticos: sem vinculao imediata aum sistema ou legislao nacional, existem na esfera municipal por iniciativa local ou mesmo por estmulo estadual. Em geral, esto associados a grandes movimentos de ideias ou temas gerais que, naquele municpio, por fora de alguma peculiaridade de perfil poltico ou social, acolhem ou enfatizam o referido tema em sua agenda. Aqui, mais do que nos outros dois tipos, os formatos so muito variveis, embora, em geral, tendam a seguir as caractersticas principais dos Conselhos de Polticas, ou seja, a participao de representaes da sociedade e a assuno de responsabilidades pblicas. Fazem parte desse grupo os Conselhos Municipais de Direitos da Mulher, de Cultura, de Esportes, de Transportes, de Patrimnio Cultural, de Urbanismo etc. Os conselhos responsveis pela democratizao das polticas sociais contriburam para o resgate da dvida social, um dos compromissos da redemocratizao. Entre elas destacamos: a da sade (Lei Orgnica da Sade), a da Assistncia Social (Lei Orgnica da Assistncia Social), a da proteo criana e ao adolescente (Estatuto da Criana e do Adolescente) e, mais recentemente, a da poltica urbana (Estatuto da Cidade). Em todas essas polticas estava prevista a participao popular, e o modelo

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

49

Gesto Democrtica e Participativa

dos conselhos originais, alguns obrigatrios, foi o adotado no subsequente processo de criao de outros, sobre as mais variadas temticas. Os Conselhos de Sade e de Assistncia Social so os mais difundidos pelo Pas. Segundo a Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais do IBGE de 2001, existem Conselhos de Sade em 98% dos municpios, de Assistncia Social em 93%, dos Direitos da Criana e do Adolescente em 77% e da Educao em 73%. Mesmo que em alguns casos os conselhos sejam mera formalidade, as porcentagens indicam que houve a sua proliferao no Brasil democrtico (AVRITZER, 2006).

Conceitualmente, os Conselhos Municipais so rgos pblicos do Poder Executivo local; como consequncia, suas deliberaes, que expressam as demandas produzidas por seus integrantes, passariam a ser a vontade do prprio Estado. So rgos pblicos dotados de natureza peculiar, sobretudo os que tm funo deliberativa, pois no esto sujeitos hierarquicamente ao governo local; caso contrrio, a ao autnoma dos representantes da sociedade civil ficaria comprometida.

Diante desse cenrio surgiu um novo formato de interao entre Estado e sociedade, no que se refere definio e implementao de polticas pblicas. Setores antes excludos do espao pblico e da possibilidade de fazer valer suas reivindicaes passaram a reivindicar cada vez mais sua presena no mbito das aes do Poder Pblico. Tal viabilidade se efetivou por meio do processo de associativismo desencadeado a partir da dcada de 1980. Todavia, apesar dos conselhos terem sido criados sob inspirao democratizante, estudos em todo o Brasil mostram que os conselhos enfrentam problemas para se firmarem como espaos de efetivo dilogo entre sociedade civil e governo. Pesa contra esses

50

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

mecanismos inovadores principalmente a tradio centralista e paternalista do Estado brasileiro, que por meio de arraigadas prticas de insulamento burocrtico acaba por esvaziar de autoridade tais espaos. Desse ponto de vista, Azevedo e Prates (1991) estabelecem uma distino entre dois tipos de participao:

a que no conduz efetiva partilha do poder no sentidode viabilizar maior protagonismo dos setores sociais envolvidos; e

a que, ao contrrio, possibilita tal protagonismo,podendo ser restrita ou instrumental e a ampliada ou neocorporativa. No primeiro caso, esto as situaes em que a populao de baixa renda, organizada em associaes de bairros ou outras, entra em negociao com o poder estatal, visando ao atendimento de demandas pontuais de bens coletivos. O Estado incentiva essa organizao, estabelece uma parceria, que consiste no fornecimento de mo de obra gratuita ou sub-remunerada pela populao, enquanto ao Poder Pblico cabem os recursos, em geral abaixo do necessrio. Os mutires foram muito utilizados na dcada de 1980. Esse seria um exemplo de como essas novas instituies podem esconder velhas prticas, no caso, a do clientelismo. O Estado se desobriga de cumprir suas funes bsicas utilizandose perversamente da organizao popular. No segundo caso, a par ticipao ampliada ou neocorporativa, na qual esto includos os conselhos, faz referncia capacidade dos grupos de interesse e de movimentos sociais de:[...] influenciar, direta ou indiretamente, a formulao, reestruturao ou implementao de programas e polticas pblicas. Trata-se aqui, semelhana do que ocorre no cenrio dos pases capitalistas centrais, de um efetivo envolvimento direto de setores organizados da sociedade na arena decisria do Estado. (AZEVEDO; PRATES, 1991, p. 136).

Mdulo Especfico em Gesto Pblica Municipal

51

Gesto Democrtica e Participativa

Um dos efeitos da atuao dos conselhos a reivindicao pela incluso de novos atores no processo de participao e na demanda pela insero de novos temas na agenda pblica. Em geral, a participao ampliada tem esse efeito de trazer baila temas at ento ignorados pelo sistema poltico. O novo vnculo entre Estado e sociedade, a que nos referimos no tpico O Municpio: local do exerccio da Democracia, fica mais claro diante dessa caracterstica dos conselhos: eles se empenham em interferir no direcionamento das polticas pblicas e em seguida precisam pressionar o Poder Executivo a ceder-lhes o poder de deciso, de deliberao. Ou seja, os conselhos fazem a interface entre a democracia participativa e a representativa. Contudo, no sejamos ingnuos, embora a cultura democrtica esteja avanando no Pas desde os anos de 1980 e tenham ocorrido avanos considerveis no tocante participao, muitas vezes a nova institucionalidade oculta velhas prticas. No caso dos conselhos, muitas vezes seu papel o de ratificar as decises emanadas do Poder Executivo Municipal, que coopta seus membros fazendo-os perder os vnculos de representao com a sociedade. Quando as entidades do Conselho Municipal so indicadas pelo prefeito, como lembrado anteriormente, essa possibilidade aumenta. Por essas razes, a composio dos conselhos muito importante e precisa ser observada. A natureza hbrida dos conselhos o aspecto que suscita mais problemas e controvrsias. A legislao impe a paridade entre os representantes do Estado e da sociedade, como forma de garantir o equilbrio das decises. No entanto, a anlise do funcionamento dos conselhos em vrias cidades revelou que na prtica, [...] tem sido muito difcil reverter a centralidade e o protagonismo do Estado na definio das polticas e das prioridades sociais (TATAGIBA, 2002, p. 55). A igualdade numrica no tem resultado equilbrio no processo decisrio.

Voc pode estar se perguntando: quais seriam as razes para isso?

52

Especializao em Gesto Pblica Municipal

Unidade 1 O Municpio e a Democracia Participativa

Tatagiba (2002) analisa vrias razes para essa falta de equilbrio: nossa cultura poltica, que valoriza o argumento tcnico em detrimento de outros saberes; o despreparo dos conselheiros representantes da sociedade; o descaso do Estado em relao aos conselhos, pois constatamos o fato de ele destacar para representlo nas reunies pessoas tambm despreparadas e/ou com baixo poder de deciso. Ainda tomando como base esse estudo, no caso do despreparo dos representantes da sociedade, ele se revela tanto quanto ao grau de conhecimento sobre questes em debate como tambm sua compreenso do papel dos conselhos no espao pblico:[...] para muitos representantes da sociedade civil, estar nos conselhos uma forma de conseguir mais recursos para suas entidades e no uma forma de construir coletivamente o que seria o interesse pblico em cada rea especfica. (TATAGIBA, 2002, p. 58).

Alm disso, muitas vezes so frgeis os vnculos entre os conselheiros e suas entidades. Quanto ao governo, em geral participa dos conselhos apenas ritualmente, sem consider-los, de fato, corresponsveis:[...] falta de vontade poltica por parte dos governos, que se expressa geralmente na nomeao de representantes governamentais que no tm