futebol e cinema no brasil - um enredo 06032015.pdf

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191 Revista de História, São Paulo, n. 163, p. 191-206, jul./dez. 2010 FUTEBOL E CINEMA NO BRASIL: UM ENREDO Mauricio Murad Doutor em Sociologia, professor aposentado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e professor titular da Universidade Salgado de Oliveira. Resumo São fecundas e infinitas as possibilidades relacionais entre futebol e cinema, dois dos maiores espetáculos do mundo contemporâneo. No Brasil, os esforços para fundar e desenvolver um futebol e um cinema brasileiros começaram cedo, já nas primeiras décadas do século XX, e prosseguem enfrentando contradições e conflitos internos e externos. Futebol e cinema chegaram ao Brasil na mesma conjuntura histórica e participam de espaços sociais, tempos históricos, origem de classe e popularização semelhantes e são elementos constitutivos de nosso ethos e identidades coletivas. É preciso discutir essas realidades e relações, pois há no Brasil muito mais filmes sobre o futebol do que se imagina e muito menos do que deveria. Este artigo pretende justa- mente discutir alguns dos aspectos presentes nessas relações e refletir sobre a produção cinematográfica destinada ao futebol. Palavras-chave futebol história cinema documentário ficção. Correspondência UNIVERSO – Universidade Salgado de Oliveira – Depto. de Mestrado Rua Marechal Deodoro, 263 24030060 – Centro – Niterói/RJ E-mail: [email protected]

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  • 191Revista de Histria, So Paulo, n. 163, p. 191-206, jul./dez. 2010

    Mauricio MURAD. Futebol e cinema no Brasil: um enredo

    FUTEBOL E CINEMA NO BRASIL: UM ENREDO

    Mauricio MuradDoutor em Sociologia, professor aposentado da Universidade Estadual do Rio de

    Janeiro e professor titular da Universidade Salgado de Oliveira.

    ResumoSo fecundas e infinitas as possibilidades relacionais entre futebol e cinema, dois dos maiores espetculos do mundo contemporneo. No Brasil, os esforos para fundar e desenvolver um futebol e um cinema brasileiros comearam cedo, j nas primeiras dcadas do sculo XX, e prosseguem enfrentando contradies e conflitos internos e externos. Futebol e cinema chegaram ao Brasil na mesma conjuntura histrica e participam de espaos sociais, tempos histricos, origem de classe e popularizao semelhantes e so elementos constitutivos de nosso ethos e identidades coletivas. preciso discutir essas realidades e relaes, pois h no Brasil muito mais filmes sobre o futebol do que se imagina e muito menos do que deveria. Este artigo pretende justa-mente discutir alguns dos aspectos presentes nessas relaes e refletir sobre a produo cinematogrfica destinada ao futebol.

    Palavras-chavefutebol histria cinema documentrio fico.

    CorrespondnciaUNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira Depto. de MestradoRua Marechal Deodoro, 26324030060 Centro Niteri/RJE-mail: [email protected]

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    FOOTBALL AND CINEMA IN BRAzIL: AN ENTANgLEMENT

    Mauricio MuradDoctor in Sociology, retired Professor of the Universidade do Estado do Rio de Ja-

    neiro and Professor at Universidade Salgado de Oliveira.

    AbstractFertile and infinite are the relational possibilities between football and film, two of the greatest spectacles of the contemporary world. In Brazil, efforts to establish and develop a Brazilian football and cinema began in the early decades of the twentieth century, and continue to face contradictions and conflicts, both internal and external. Football and cinema arrived in Brazil at the same historical juncture and were also part of the same social spaces, historical times, class origin and similar popularisa-tions, and are also component parts of our ethos and collective identities. One must discuss these realities and relationships, because in Brazil there are many more films about football than one might think, yet much fewer than there should be. This article intends to discuss some of the issues involved in these relationships and to reflect on the production of films about football.

    Keywordsfootball history cinema documentary fiction.

    ContactUNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira Depto. de MestradoRua Marechal Deodoro, 26324030060 Centro Niteri/RJE-mail: [email protected]

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    IntroduoFutebol e cinema chegaram ao Brasil na mesma conjuntura histrica, nos

    instantes finais do sculo XIX, e logo aps a liquidao formal do estatuto da escravido, com a Lei urea, em 1888, e a Proclamao da Repblica, em 1889. O primeiro, o futebol, oriundo da Inglaterra, chegou em So Paulo trazido por Charles Miller, em 1894. J o cinema, vindo da Frana, chegou ao Rio de Ja-neiro em 1895. Exportados dos dois pases hegemnicos da Europa industrial, capitalista e imperialista e num momento histrico paradoxal: da consolidao do capitalismo e da gnese de sua primeira grande crise estrutural, a Guerra de 1914. Dos dois polos hegemnicos internacionais para os dois polos hegem-nicos nacionais, nossos principais centros urbanos, protagonistas polticos da implantao da modernidade no Brasil.

    Remetentes e destinatrios, espaos sociais e tempos histricos, origem de classe e popularizao mais ou menos assemelhados aproximam, do ponto de vista historiogrfico, futebol e cinema como fatores da cultura brasileira para, do ponto de vista sociolgico, integr-los como dimenses constitutivas e interpre-tativas de nosso ethos, de nossas identidades coletivas. Os contextos histricos e sociais de nossa rica e fecunda diversidade cultural ajudam a entender porque esses produtos de importao se deram to bem por aqui, assumiram formatos particulares e so fontes de referncia em criatividade. Se combinados com a msica brasileira, ento, edificam um tringulo de cultura e inventiva de alta respeitabilidade internacional, alm de se constiturem como elementos funda-mentais para a compreenso de nossos dilemas e possibilidades.

    A partir das primeiras dcadas do sculo XX, tanto o cinema quanto o fu-tebol, cada um com suas especificidades e propriedades, vo se consolidando como culturas na realidade brasileira e adquirindo, pari passu, o formato de atividades de entretenimento de massas, a partir dos parmetros da indstria cultural (Marcuse, 1979). Pode-se dizer, ainda, que alcanaram o formato social do lazer, do cio, do cio criativo (Masi, 2000), em sntese, do skolen, no ex-traordinrio sentido filosfico dado ao termo na Grcia clssica e difundido por Nietzsche em suas reflexes sobre as possibilidades da arte e do teatro atenienses.

    Pouco mais de um sculo de histria ali pelos fins do sculo XX, na curva para o terceiro milnio foi o tempo suficiente para transform-los em dois dos mais expressivos eventos da vida das multides em nosso pas. Levantamento do IBGE (Pnad, 1996 e 2000) indica que futebol e cinema, nesta ordem, so as preferncias nacionais em matria de diverso fora de casa, nos nossos centros urbanos e suburbanos, grandes e mdios, onde esto concentradas mais de 75% de

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    nossa gente. Brasil o pas do futebol e cinema a maior diverso so expres-ses emblemticas da importncia dessas duas instituies de cultura entre ns.

    bom notar que, alm de expresses internas, esses fenmenos socioculturais tm um impacto simblico enorme, no nvel mundial. Tanto o futebol quanto o cinema so espetculos internacionais apaixonantes e tm cada um deles a sua mitologia. Suas estrelas e seus astros (observem os termos) constroem mitos e sedues em culturas e sociedades to diversificadas, em imaginrios coletivos to distintos, de uma forma quase universal. E, o que talvez seja mais interes-sante, determinadas grades interpretativas do fenmeno cinematogrfico (Morin, 1989) podem servir como instrumentos de observao e investigao do fen-meno futebolstico. Ambos so eventos culturais tpicos da modernidade e que expressam as mudanas histricas globais ocorridas em fins do sculo XVIII e no transcorrer do sculo XIX (Melo e Drumond, 2009, p. 82).

    Ento, mais de cem anos depois de seu instante inaugural, conseguimos construir no Brasil (a exemplo de vrios outros lugares do mundo) um grande, consistente, renovado e conceituado cinema, um grande, consistente, renovado e conceituado futebol, ambos acumulando conquistas internacionais significativas e contribuindo para o desenvolvimento das respectivas linguagens estticas e desportivas. Futebol e cinema no Brasil parece que quase ningum mais tem dvida so formas de entretenimento e utilizao do tempo livre consolidadas entre ns, no cotidiano de nossas populaes urbanas. So fatos sociais totais (Mauss, 1974) caractersticos de nossas sociedades contemporneas marcadas pela imagem, pelo consumo e pela informao globalizados.

    Futebol e cinema: interlocuesE a inter-relao entre futebol e cinema? O futebol, como um dos patrimnios

    da nossa cultura popular, mereceria mais intervenes das artes cinematogr-ficas brasileiras, como tambm de outras manifestaes de nossas artes, como o romance. Em outros estilos literrios, como o conto, a crnica e a poesia, o futebol foi e bastante abordado e pelos nomes de proa da literatura brasileira. Na Espanha a fiesta brava (tourada) sempre foi tematizada pelo cinema e tambm pela literatura, constituindo quase uma escola de filmes e textos, podemos dizer, do mesmo modo como o pugilismo e o futebol americano nos EUA ou as lutas marciais no Japo. O cinema brasileiro deu uma boa ateno ao universo do futebol, embora este merecesse bem mais, devido sua simbologia e repre-sentao para o nosso cenrio cultural, para o nosso ethos.

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    Como foi (e ) a histria de sua aproximao, de sua sintonia interpretativa, tanto temtica quanto estilstica? Historicamente, o cinema brasileiro teve (e tem) no futebol um enredo bissexto, pelo menos no longa metragem de fico. No do-cumentrio e no curta metragem, o quadro diferente. Contudo, na ltima dcada, essa relao melhorou significativamente em quantidade e qualidade. Penso eu que isto est inserido num contexto maior: a valorizao da importncia antropolgica da imagem e da imagem em movimento. Vivemos uma poca histrica referen-ciada pela imagem e que valoriza os estudos sociolgicos, histricos, antropol-gicos e at filosficos da imagem, enquanto documento e documento primrio.

    As imagens so fontes de consulta fundamentais para as cincias da cultura e a cada dia esto sendo mais valorizadas. Na perspectiva de uma antropologia visual e/ou sociologia imagtica, h sempre muitas imagens de poca a serem lidas e interpretadas, contributos necessrios densidade da anlise. Por toda parte h uma conscincia crescente no que respeita ao valor gnosiolgico da imagem, como categoria diferencial e explicativa para as cincias sociais. A fotografia tem para a histria o valor de um documento primrio (Barthes, 1970, p. 87; 2001, p. 108). Desde os primeiros desenhos das cavernas pr-histricas, feitos nos tetos, at as tcnicas de alta definio, digitalizadas no cinema, no DVD e na televiso, passando pela arte pictrica, as imagens constituem um panorama cada dia mais valorizado.

    No so muitas as obras flmicas que abordaram o tema futebol (mas tambm no so to poucas, assim, como se costuma dizer, mesmo entre os especialistas das duas reas), o que lamentvel, uma vez que a paisagem imagtica e o cenrio dramtico de nossa maior paixo alcanam uma estatura simblica fundamental para o entendimento das razes culturais brasileiras, para o entendimento de nossas identidades. A fotografia tem para a histria o valor de um documento primrio, preconizou Barthes. A produo de imagens, genericamente, a condio bsica para uma sociologia compreensiva das realidades, amplificamos ns. E o cinema, especialmente, tem sido, na histria das cincias sociais, tcnica e mtodo de produo de conhecimentos, em particular para a antropologia, contemporneos que foram na origem e no desenvolvimento de seus instrumentais de trabalho, no derradeiro lustro do sculo XIX.

    O filme etnogrfico e o documentrio esto no nascedouro do cinema e tm relevante contribuio para a sua histria, como tambm para a histria das cincias da cultura. Ritos e mitos, festas e funerais, smbolos e arqutipos eram mostrados em imagens e movimentos, possibilitados pelo cinematgrafo Lumire, a fim de revelar suas estruturas distintivas e diferenciais. Il cinema uninvenzione senza futuro, disse Antoine Lumire, em 28 de dezembro de 1895, como pode ser visto hoje, no Museo Nazionale del Cinema, na cidade de

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    Turim, Itlia. Esta tida como a data oficial da fundao do cinema, quando Auguste e Antoine Lumire exibiram seu primeiro filme, A sada dos operrios das fbricas Lumire, no Grand Caf de Paris. Instigante, para o que estamos pensando nos limites do presente artigo, que h um curta documentrio, datado de 1897, que mostra os irmos Lumire jogando uma partida de futebol. A lata original desta raridade encontra-se no Instituto Lumire, em Lyon, na Frana. Podemos ento arriscar e dizer que futebol e cinema tm uma histria bem mais antiga do que habitualmente se imagina.

    A partir do estabelecimento do cinema, enquanto tcnica e arte, as temticas multissignificativas do cotidiano passaram a ser (re)vistas em sua pluralidade polissmica e polifnica, sob uma nova tica, tornada possvel pela cincia e pela tecnologia da sociedade industrial: a cmera de cinema. Esta, no sculo XX, tem contribudo e muito para o processo necessrio e irreversvel de valorizao da chamada cultura popular, reforando uma tendncia crescente em nossa poca, to bem defendida e sintetizada por Umberto Eco (1989, p. 31): Aps tantos livros que nos contavam tudo sobre a crise dos universais, sobre a organicidade das instituies, sobre os meandros da poltica internacional e da diplomacia e nada, nada mesmo, sobre a concepo do amor, sobre as festas ou os funerais, era exatamente isso o que deveria ser feito.

    O caso brasileiro: cena 1Cinema e futebol chegaram ao Brasil pelas mos (e ps) da elite endinheirada

    e com a ajuda de imigrantes, os quais j marcavam sua presena em nossa his-tria e, na conjuntura referida, constituam poltica de governo, como incentivo ao ingresso de mo-de-obra especializada, para fazer frente s novas necessi-dades do pas. Isto nas primeiras pocas. Logo depois, tanto o futebol como o cinema passaram por um processo de popularizao, cada um a seu jeito e a seu modo, mas ambos atingindo, em cheio, o gosto do brasileiro. Duas estatsticas cinematogrfico-futebolsticas comprovam a veracidade da afirmao anterior que nem sempre reconhecida e aceita por todos.

    No incio do sculo, mais especificamente entre 1907 e 1911, o cinema bra-sileiro produziu cerca de 200 filmes por ano, com um pblico sempre crescente, de tal modo que, at o incio dos anos oitenta, detinha 55% do nosso mercado interno, percentual admirvel que nenhum outro cinema do mundo alcanou.1 Em

    1 O desmonte causado pela poltica do governo Collor atingiu em cheio o cinema brasileiro, ocasionando um retrocesso em todos os nveis, tanto na produo como na comercializao. Na

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    relao ao futebol, na segunda metade dos anos dez, j estava espalhado de norte a sul, praticamente em todas as cidades grandes, mdias e at pequenas. A partir dos anos 1920, essa tendncia se aprofunda de forma avassaladora e irresistvel, chegando, na contemporaneidade dos anos noventa, a um patamar mpar: mais de 70% da preferncia nacional (Ibope, 1996). E, de l pra c, com certeza, esse significativo percentual se manteve e at foi ampliado. Esta noo parece ser indiscutvel.

    A popularizao de ambos cumpriu trajetrias distintas. O cinema expandiu suas razes junto populao brasileira porque transformou em tema elementos de forte significao para a nossa cultura, em quatro pocas diferentes e, em algum sentido, complementares. Dentre outros instantes expressivos, podemos destacar a filmografia do Ciclo de Cataguases, da Chanchada, do Filme de Can-gao e do Cinema Novo. Diferentes projetos estticos e ideolgicos, convergen-tes, entretanto, no que diz respeito construo de um panorama imagtico da realidade brasileira, de alto valor para uma sociologia de nossa interpretao. Talvez ainda no se tenha dado a essas obras a devida importncia etnogrfica, enquanto fatores constitutivos da formatao de uma identidade cultural, de um ethos civilizatrio, reflexo recorrente entre ns, em particular nas dcadas de 20 a 60 do sculo XX, ou seja, no mesmo perodo histrico, no mesmo zeitgeist em que essa filmografia era produzida.

    O cinema brasileiro dessas dcadas , pois, um importante fato social na com-posio dos debates acerca de uma identidade nacional, realizando uma leitura de nossa realidade pelo vis da chamada cultura popular. Revalorizando as temticas do cotidiano da coletividade e apontando suas contradies, contribua e com xito para se enxergar as razes de nossa formao social. Os trabalhadores de Humberto Mauro, o carnaval e a msica popular das chanchadas, os conflitos do cangao, a politizao cinemanovista so cones centrais para um entendimento brasileiro do Brasil, por assim dizer. Nossa cinematografia conseguiu realizar essa proposta ideolgica, por intermdio de uma esttica instigante em matria de imagens e de linguagem. Muitas vezes revolucionria, outras nem tanto, mas carnavalizadora sempre. O Banco Nacional, da famlia Magalhes Pinto, por exemplo, financiou o Cinema Novo, movimento de forte influncia de esquerda. Os prprios conceitos de nao e nacionalidade eram dialeticamente incorporados e combatidos, enquanto categorias polticas do discurso. Terra em transe, de Glauber Rocha, alegrico e metafrico, talvez seja uma eloquente exemplificao.

    segunda metade dos anos 1990, assistimos a uma recuperao em nveis crescentes e satisfatrios, representados pela lei de incentivo criao audiovisual no pas.

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    O futebol foi introduzido oficialmente no Brasil pelas elites racistas e exclu-dentes. Aristocrtico, branco, elegante, rico, educado, falando ingls do goleiro ao ponta-esquerda. A riqueza era exigida e, tambm, a tradio. Uma certa tradio pelo menos expressa no sobrenome duplo ou na linhagem familiar. A exemplo da Cavalaria medieval guardadas as devidas diferenas que exigia a comprovao de nobreza por trs ou quatro geraes, os primeiros clubes de futebol no Brasil impuseram critrio de cor e classe. Barreiras sociais rgidas, verdadeira violncia contra negros, mulatos e brancos pobres.

    Mas todo lado tem dois lados e, paralelamente a esta histria oficial, elitista e racista, vinha sendo gestado, no seio das camadas populares, um processo sub-terrneo, clandestino, de paixo, divulgao e prticas futebolsticas. Driblando com engenho e arte todas as interdies, por meio da vrzea, das peladas e da periferia, pretos, mulatos e brancos pobres engendraram uma posio firme e marcante historicamente: a da apropriao e inverso do cdigo vigente, isto , a da popularizao e democratizao do futebol. Este processo, entranhado na realidade brasileira, atravessar os anos da belle poque, mais ou menos no anonimato (destaque para a fundao do Corinthians, em 1910, de origem real-mente popular) e ver instalada e reconhecida a sua vigncia, a partir da dcada de 1920, mais precisamente 1923, quando o Vasco da Gama foi campeo cario-ca campanha extraordinria, quase invicta; perdeu somente uma partida para o Flamengo, por 3 x 2, no chamado jogo das ps de remo, onde os robustos remadores rubro-negros agrediam com as ps de remo os torcedores vascanos. E foi bicampeo em 1924 (agora invicto) com um timao de pretos e pobres, formado por Nelson, Mingote e Leito; Nicolino (substitudo por Brilhante, em 1924), Bolo e Arthur; Pascoal, Torterolli, Arlindo (Russinho, em 1924), Ceci (Fernandes, em 1924) e Negrito.

    Esse processo no ocorreu sob a gide da cordialidade e da conciliao; foi resultante de um contexto poltico de confrontos e conflitos entre diferentes in-teresses de grupos sociais antagnicos. A partir dos anos 1920, a tradio elitista do futebol brasileiro, sustentada por uma ideologia de excluso, vai pari passu sendo transformada e perdendo consistncia no interior da histria que realiza a implantao da ps-modernidade entre ns e prope a emergncia de uma nova identidade cultural brasileira. Um novo ethos de incluso dos elementos da cultura popular e do cotidiano, presente nos projetos revolucionrios do incio dos anos 1920 tenentismo, comunismo, modernismo que so definidores de uma conjuntura de reviso tica, esttica e ideolgica das propostas da tradio brasileira. Em sintonia com as ocorrncias da estrutura global, a partir da dcada de 1920, notadamente do ano de 1922, a histria do futebol brasileiro vai forjar

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    os antecedentes de uma nova fase. A fase mais original, produtiva e espetacular de sua trajetria, ou seja, a sua popularizao e democratizao, obtidas atravs da entrada em cena de pretos, mulatos e brancos pobres.

    So linhas paralelas, as trajetrias de futebol e cinema no Brasil? Nem tanto, como j apontamos neste artigo, j que o nosso cinema produziu uma razovel quantidade de filmes sobre futebol, ao contrrio daquilo que se pensa, se escre-ve e se diz. bvio que nossa produo flmico-futebolstica (como tambm, j dissemos, em outras expresses artsticas) est muito aqum do esperado e, principalmente, em virtude da dimenso simblica que o futebol tem para o bra-sileiro. Entretanto, se filmou futebol muito mais do que aquilo que normalmente se afirma, mesmo entre especialistas das duas reas. Excluindo os cinejornais, o filme etnogrfico e os curta-metragens (documentrio e/ou fico), o que aumentaria e muito esta contabilidade, h bem mais de uma centena de filmes do cinema brasileiro tratando do futebol, entre documentrios de mdia e longa metragem e fico, este sim bem raro entre ns. Nossa pesquisa (Uerj/Universo, 2008) cobriu somente a produo dos primeiros cem anos do cinema brasileiro, de 1908 o primeiro filme at o final de 2008. Ainda pouco, insuficiente, porque precisamos tornar o tema constante; criar uma tradio de filmes sobre futebol no Brasil, quase uma escola, um estilo, como no cinema americano em relao ao boxe, outro timo exemplo, alm dos j referidos aqui. Contudo, necessrio colocar a questo em seus devidos termos e verdadeiros limites. O cinema brasileiro abriu bem mais espao na tela para o futebol do que o nosso teatro abriu no palco, ou a nossa literatura abriu nas pginas do romance, por exemplo. Romance, note bem, porque no conto, na poesia e, principalmente, na crnica, a realidade bem distinta. J dissemos, mas estamos reiterando.

    Ento, eis a questo: h muito mais filmes brasileiros sobre futebol do que imagina a nossa v filosofia, mas ainda muito pouco, considerando-se a im-portncia sociolgica e esttica de nosso futebol e de nosso cinema. Assim, a grande questo, a questo de fundo, est colocada: mesmo com esta produo de resultado razoavelmente satisfatrio, o futebol no se consolidou ainda como argumento para o cinema brasileiro. Generalizadamente, podemos amplificar esta concluso para todas as nossas expresses artsticas. Tal esporte, qual pas! Esta reveladora frase de Schiller ainda no foi plenamente levada em conta pelas artes no Brasil, como em outras realidades. Mais exemplos: o beisebol pelo ci-nema japons e norte-americano, alm do basquetebol, tambm por este ltimo.

    Do ponto de vista simblico, o futebol uma metalinguagem que revela as relaes sociais substantivas de uma determinada realidade. Metfora notvel e extraordinria das caractersticas existenciais bsicas da vida humana e de nossa

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    formao social, o futebol um ritual de forte expressividade antropolgica, histrica, psicolgica, poltica, lingustica, esttica... tica da cultura brasileira. Neste sentido, um objeto polissmico e polifnico, que articula mltiplos sa-beres e diferentes linguagens e se inscreve como objeto de estudo no universo das cincias da cultura. Por todos esses motivos, no resta dvida em relao grandeza temtica e necessria do futebol enquanto objeto da esttica nacional, em particular do cinema, uma vez que sua linguagem, tal como a do futebol, est fundada na imagem e no movimento articulados. H em todo o pas uma conscincia crescente no que diz respeito ao valor sociolgico da imagem, como categoria diferencial e explicativa para as cincias sociais. A leitura do mundo precede a leitura do texto, postulou Paulo Freire. E essa leitura do mundo iconogrfica, imagtica, sobretudo em nossa era ps-moderna fotogrfica, flmica, televisiva e informatizada.

    O caso brasileiro: cena 2O sculo XX o sculo do futebol. O sculo XX o sculo do cinema. Os

    autores destas frases? Respectivamente, Pel e Glauber Rocha, dois cones fun-damentais do futebol e do cinema, respectivamente. So fecundas e infinitas as possibilidades relacionais entre futebol e cinema, dois dos maiores espetculos do mundo contemporneo, do Brasil contemporneo. Em nosso pas, os esforos para fundar e desenvolver um futebol e um cinema brasileiros tpicos comearam cedo, nas primeiras conjunturas do sculo XX, e prosseguem enfrentando contradies e conflitos internos e externos at os dias atuais, na primeira dcada do sculo XXI. A luta tem sido rdua sempre, mas os resultados compensadores de um modo geral. Em verdade, somente a partir dos anos 1930 que ambos iniciam seus processos de consolidao entre ns, inclusive com as primeiras leis federais regu-lamentadoras das atividades e isto ps-revoluo de 1930, com Vargas j no poder e aproximadamente quatro dcadas depois de seus respectivos ingressos no pas.

    A criao da Liga Carioca de Futebol, em 23 de janeiro de 1933, implantando o profissionalismo e provocando uma ruptura com a Associao Metropolitana de Esportes Amadores, processo que s vai se completar em 1937 com a unifi-cao das entidades e o incio de nossa legislao esportiva, em 14 de abril de 1941 Decreto-Lei n 3.199, promulgado em pleno Estado Novo , so medidas institucionalizadoras e regulamentares de nosso futebol. A lei referida para o conjunto dos desportos brasileiros e no especificamente para o futebol. Entre-tanto, contribuiu para a sua regulamentao, difuso e consolidao, na medida em que foi o ponto alto da legislao esportiva naquele momento histrico, orga-nizando os esportes em todo o territrio nacional e criando o Conselho Nacional

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    de Desportos no Ministrio da Educao e Cultura. Foram iniciativas avanadas para a poca, em que pese o patrocnio e o respaldo da ditadura interna de Getlio Vargas e a inspirao na ditadura externa da Itlia fascista de Benito Mussolini.

    No que concerne ao cinema, tambm somente a partir da Revoluo de 1930 que so dados os primeiros passos oficiais, enquanto poltica de governo, no sentido de lanar as bases de uma indstria cinematogrfica nacional. O primeiro captulo deste processo o Decreto-Lei n 21.240, de 4 de maio de 1932, que nacionalizou o Servio de Censura Cinematogrfica para Educao Popular, e o Decreto-Lei n 4.064, de 29 de janeiro de 1942, em pleno Estado Novo, que criou, no Departamento de Imprensa e Propaganda DIP, o Conselho Nacional de Cinematografia. So medidas provenientes de governos autoritrios, cuja re-ferncia ideolgica o regime ditatorial, porm foram importantes contribuies para o incio de uma cinematografia brasileira. Abriram um primeiro caminho necessrio e significativo que, uma dcada aps, j sob uma nova conjuntura e agora democrtica, desdobrou-se e avanou mais pela poltica de governo do mesmo Getlio Dornelles Vargas.

    Em 1952, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional um ante-projeto de lei, o qual propunha a criao de uma autarquia para fomentar a arte, a indstria e o comrcio cinematogrficos. Nesta mesma poca, outras iniciativas institucionalizadoras, fundantes de um projeto de cinema brasileiro, so uma esp-cie de reserva de mercado com a obrigatoriedade da exibio de um complemento nacional em todos os cinemas do pas, alm de um mnimo de trs filmes de longa metragem por ano, no circuito comercial, inicialmente, e mais tarde na propor-o de um longa brasileiro para cada grupo de oito estrangeiros. Essas medidas mercadolgicas da dcada de 1950 sero acompanhadas por medidas acadmicas como a criao de cursos de Histria e Esttica cinematogrficas, alm do indica-tivo da fundao de uma Escola Nacional de Cinema na Universidade do Brasil.

    So expressivos atos de governo, embora insuficientes se compararmos com a realidade de outros pases concorrentes como os Estados Unidos, por exemplo, onde o escritrio da Motion Pictures Association, entidade representativa das grandes companhias americanas de cinema, fica situado dentro da Casa Bran-ca. Cinema nos Estados Unidos historicamente prioridade e poltica de governo. Construiu-se e consolidou-se por l uma conscincia nacional em relao importncia sociolgica da imagem como elemento constitutivo da identidade cultural interna, bem como produto de exportao, com valor tanto econmico quanto ideolgico.2

    2 o segundo produto na pauta de exportaes do pas, perdendo apenas para a indstria aeronutica,

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    A declarao irnica de Oswald de Andrade aquilo que no soubermos o cinema americano informar exemplarmente simblica e sbia metfora.

    Se as histrias do futebol e do cinema no Brasil so parecidas no que tange conjuntura e origem europeia, capitalista, imperialista e elitista, so diferentes no que concerne trajetria de suas respectivas popularizaes. Embora a poca histrica e os espaos sociais sejam os mesmos, a natureza do processo distinta. As camadas populares se apropriaram do futebol ingls, elitista e de linhas retas, que lhes era proibido, transformando-o numa espcie particular de arte, sinuosa, criativa, plstica, de acentuada retrica corporal, o estilo brasileiro de jogar futebol, em ltima instncia. Uma semiologia do corpo, que na sociedade brasileira era to vilipendiado pelo trabalho e represso e que encontrava no futebol uma possibilidade poltica de redeno, de libertao. Em sntese, o futebol passou a ser jogado por gente do povo, tornou-se democrtico e popular, criou um estilo prprio, enraizado em nossa identidade cultural, passando, desse modo, a ser mais do que um dos fenmenos de nosso ethos, uma eloquente metfora de nossa coletividade.

    Com o cinema, o processo foi diferente. Seus realizadores sempre foram oriundos, fundamentalmente, das classes mdia e alta intelectualizadas. No entanto, e em que pese a origem de classe, vrios so os projetos na histria do cinema brasileiro interessados em tematizar o cotidiano de nossa sociedade, as razes de nossa formao. Cada um desses quatro projetos que destacamos - Ciclo de Cataguases, Chanchada, Cangao e Cinema Novo - cada um a seu jeito, cada um a seu modo, foi responsvel pela conquista de uma determinada fatia do mer-cado filmogrfico, o que resultou, no somatrio, na invejvel marca de 55% do pblico consumidor de cinema no Brasil, alcanada no incio da dcada de oitenta.

    a partir dos anos 1920 e, principalmente, dos anos 1930, que futebol e cinema comeam a se popularizar no Brasil at chegarem ao extraordinrio patamar das preferncias nacionais em matria de diverso fora de casa. At a dcada de 1920, eram os estilos e os produtos estrangeiros que dominavam tanto o futebol quanto o cinema brasileiros. A partir desta conjuntura de questio-namentos e polmicas acerca de nossa identidade e construo nacionais cuja referncia estrutural era a interpretao do pas que provinha dos movimentos tenentista, comunista e, particularmente, modernista , um novo projeto de Brasil passa a ser pensado, discutido e construdo. Um projeto de um novo ethos de incluso dos elementos da cultura popular e do cotidiano. Este zeitgeist influencia

    civil e militar, e totalizando quase 3 bilhes de dlares em volume global de negcios. Ocupa, aproximadamente, 10% do mercado mundial que somou, em 1997, mais de 30 bilhes de dlares.

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    todos os setores da vida cultural e institucional do pas e uma batalha, de natu-reza poltica, travada entre as foras progressistas e as foras conservadoras.

    Futebol e cinema, em sintonia com as tendncias da poca, se popularizam a partir deste momento histrico. O futebol, que at os anos 1920 era extrema-mente elitista, racista e excludente, passa por um processo de transformao democrtica e popular que assiste a proliferao da vrzea paulista e da pelada carioca para todo o Brasil e organiza a construo do nosso estilo de jogar futebol.

    O cinema, em que pese a farta produo dos realizadores nacionais entre 1907 e 1911, era um fenmeno concentrado no eixo Rio-So Paulo, e seu circuito de exibio estava dominado pelos filmes estrangeiros. A partir da dcada de 1920, o cinema brasileiro inicia uma trajetria de difuso por todo o territrio nacional. Alm de Rio e So Paulo, a nossa produo cinematogrfica se expande pelo pas, com o surgimento de ncleos de reflexo e pesquisa e centros de criao flmica em Cataguases (MG), Juiz de Fora (MG), Curitiba (PR), Florianpolis (SC), Recife (PE), So Luiz (MA), Salvador (BA), Manaus (AM) e Porto Alegre (RS), para citarmos apenas alguns.

    No bojo deste processo renovador de pensar e de fazer cinema no Brasil, uma nova perspectiva comea a se organizar para a produo nacional, a de sua popularizao, por intermdio da aproximao com o gosto do grande pblico. A comdia carnavalesca dos anos 1930 e, logo depois, a Chanchada concretizam esse projeto e inauguram uma nova qualidade na relao econmica, esttica e ideolgica entre realizadores e mercado. E mais: o nosso cinema passa a se interessar, de forma sistemtica, pelos elementos representativos da cultura das multides no Brasil, como o carnaval, a msica popular, o teatro de revista, a seresta, o rdio, a literatura de cordel, o cangaceirismo, a religiosidade, o ethos caipira, o circo, e last but not least, o futebol.

    O caso brasileiro: cena 3O primeiro filme brasileiro sobre futebol de 1908, realizado pela Foto Ci-

    nematografia Brasileira, do Rio de Janeiro, com fotografia e direo de Antonio Leal, imigrante portugus, um pioneiro e incentivador do cinema no Brasil. Aps este filme sobre o match internacional Argentina 3 x Brasil 2, realizado em 11 de julho de 1908, nas Laranjeiras, campo do Fluminense no Rio de Janeiro, mais de vinte anos se passaram para que o futebol voltasse nossa filmografia.3 Nos

    3 Excluindo-se, obviamente, os cinejornais do Path Jornal, Cinejornal Brasil, Cine Atualidade, Atualidades Atlntida e, acima de tudo, o Canal 100 de Carlinhos Niemeyer que consagrou o

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    decnios de 1930 e 1940, foi feita uma dezena de filmes brasileiros sobre o futebol, concentrados ainda no eixo So Paulo-Rio de Janeiro, com predominncia para este ltimo que foi responsvel por 70% da produo global do pas. O primeiro deste perodo, O campeo de futebol, de 1931, da Victor Film de So Paulo, direo de Gensio Arruda, que tambm ator do elenco, junto a jogadores como Arthur Friedenrich o primeiro grande mito do futebol brasileiro , Ministrinho e Tufi Curi, e tem o argumento assinado por Menotti Del Picchia, proeminente intelectual do Movimento Modernista de 1922 e um dos mais respeitados escri-tores da literatura ptria. Deliciosa comdia que trata do futebol pela tica da popularizao do jogo que ocorria naquela poca, abordando a vrzea, a pelada, a periferia, prticas futebolsticas j espalhadas por todo o pas nesta ocasio, de acordo com o mapeamento do eminente socilogo Fernando de Azevedo. Primeira pelcula do perodo e marcante pela importncia da equipe tcnica que reuniu, pela angulagem que deu temtica e por iniciar, efetivamente, um encontro da maior riqueza para uma leitura compreensiva da cultura brasileira entre futebol e cinema, dois (insisto!) dos mais representativos cones populares de nossa coletividade.

    Estabelecido este encontro inaugural, e num contexto facilitador do debate em torno de nossas razes, poder-se-ia esperar que as dcadas seguintes confir-massem essa tendncia, consolidando uma tradio de filmes de futebol em nossa cinematografia, o que, afinal, no aconteceu. O decnio dos 1950, por exemplo, lana um olhar em direo ao passado, em busca de nossos fundamentos histricos e sociais, de nossa brasilidade rural e urbana rurbana, para se empregar uma expresso de Gilberto Freyre e lana tambm seu olhar para frente, em busca de possibilidades futuras. A partir de 1955 e at 1958, o pas inteiro comea a tomar conhecimento de iniciativas culturais que, valorizando as razes populares de nosso cotidiano, de nossas redes de identidades, espraiam suas criaes e marcantes influncias para os momentos subsequentes.

    O Cinema Novo, a Bossa Nova e a Seleo de 1958 so destaques, mas um oceano inventivo marca esta poca brasileira do repensar. Lima Barreto , afinal, reconhecido como escritor brilhante das temticas suburbanas. Jorge Amado faz uma saborosa interpretao literrio-etnogrfica de nossa populao. Villa-Lobos declara, em 1958, hoje eu sei que o chorinho (criado por ele e popularizado por Pixinguinha) nasceu dos seresteiros, dos bomios e do jeito de ser do homem simples brasileiro. A capoeira baiana de mestre Pastinha ganha proporo

    cinejornal enquanto gnero e produziu o maior e mais importante acervo de imagens e reportagens cinematogrfico-futebolsticas.

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    nacional. O frevo pernambucano, Joo Cabral, Guimares Rosa, Oswald de An-drade, Adoniran Barbosa, Jos Lins do Rego, Nelson Rodrigues, Lus Gonzaga, Ansio Teixeira, Carlos Drummond, enfim, um timao de craques que realiza um verdadeiro redescobrimento do Brasil.

    Nesta linha de entendimento do contexto que a Seleo de 1958, na Sucia, representa, mais do que nunca, o pas. Campe do mundo pela primeira vez e jogando de modo explcito, publicamente assumido, aquilo que convencionou-se chamar de estilo brasileiro do nosso mais genuno futebol. Repleto de cultura popular, de samba, de lundu, de capoeira, de frevo, da sinuosidade amerndia e negra (apesar das resistncias gigantescas Didi era o nico negro titular do escrete, no incio), encantou o planeta, orgulhou o pas e contribuiu para conso-lidar aquele pedao popular e democrtico da nossa histria.

    Entretanto, apesar de todo esse projeto de repensar o Brasil pelo vis da chamada cultura popular e da importncia alcanada no perodo pelo futebol e pelo cinema brasileiros, o encontro dos dois, marcado desde a dcada de 1920 do nosso sculo, afinal no ocorreu. No ocorreu, que fique bem claro, o grande encontro, isto , aquele que poderia fazer emergir um estilo, uma escola do filme de futebol no cinema brasileiro, como a Chanchada ou o Cangao. Neste perodo, anos 1950, sete so os filmes de futebol, tendo-se como destaque inequvoco e consensual Rio 40 graus, da produtora Equipe Moacyr Fenelon, Rio de Janeiro, 1955, direo e roteiro de Nelson Pereira dos Santos e msica do maestro Rada-ms Gnatalli. Esta, inclusive, a pelcula considerada como aquela que d incio ao movimento cinemanovista. O filme constri um painel da vida carioca, em episdios distintos, mas complementares. O futebol abordado em sequncias e imagens que dramatizam personagens clssicos de seu universo como o torcedor apaixonado e o jogador esquecido. Bela e fundamental obra, marcante para o cinema brasileiro como um todo e para a histria de sua relao com o futebol.

    Nesta mesma perspectiva, de uma filmografia de qualidade plena, de sofisti-cadas imagens, podemos listar os seguintes e referenciais trabalhos feitos naquele momento histrico: Garrincha, alegria do povo, RJ, 1963, direo de Joaquim Pedro de Andrade; o Rei Pel, RJ, 1963, direo de Carlos Hugo Christensen, argumento e dilogos de Nelson Rodrigues; Subterrneos do futebol, SP, 1965, direo de Maurice Capovilla; Tosto, a fera de ouro, MG, 1970, direo de Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite, roteiro de Roberto Drummond; Isto Pel, RJ, 1974, direo de Lus Carlos Barreto, texto de Paulo Mendes Campos; Passe livre, RJ, 1974, direo de Oswaldo Caldeira, msica de Gilberto Gil.

    Eis, ento, o real tamanho dessa relao entre futebol e cinema no Brasil: h muito mais filme do que se imagina e muito menos do que deveria. A segun-

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    da metade do decnio de 1990 tem demonstrado uma fora produtiva bastante animadora, a qual no para de gerar seus efeitos, ainda hoje, at o ano de 2008. O reconhecimento crescente do valor do futebol para a compreenso de nosso sistema simblico, o tetra e o penta campeonatos mundiais e a comemorao dos centenrios do futebol e do cinema em 1994 e 1995, contriburam decisivamente para o que est parecendo ser um boom do filme futebolstico brasileiro. Aproxi-madamente 15 realizaes, s no binio 1997/98, excluindo-se os cinejornais e curta-metragens, conforme a delimitao do objeto nesta fase da pesquisa. Com a eleio do Brasil como sede da Copa de 2014 e dos Jogos Olmpicos de 2016, possvel (e j se pode notar algum sinal nessa direo) que essa tendncia se multiplique quantitativa e qualitativamente. Que as perspectivas atuais se con-firmem e consolidem uma tradio no Brasil, para que possamos construir uma escola brasileira de filmes de futebol. Assim esperamos. Nosso futebol e nosso cinema merecem e s tm a ganhar com isso. O tempo dir.

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    Recebido: 21/12/2009 Aprovado: 24/05/2010

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