fragmentos de reflexões fenomenológicas 1-16

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1 Fragmentos de reflexões fenomenológicas 1 Cada vez que for possível será feita uma espécie de relatório das reuniões do nosso seminário sobre fenomenologia. Relatório que não é nenhum relatório, nenhum protocolo, resumo que de alguma forma reproduza o que vivamente foi tratado no encontro, mas apenas alguns arrazoados avulsos mal feitos, ocasionados pelos pensamentos que surgiram e circularam entre nós, graças à colaboração e participação de todos. Todos nós viemos para o seminário, cada qual com uma determinada expectativa em relação à fenomenologia. As expectativas que a gente tem da fenomenologia são boas quando se afinam à boa audição do que vai surgindo do/no círculo do seminário; menos boas, se na sua exigência e excelência são mais altas do que “o quê” a fenomenologia na sua finitude consegue dar. Finitude aqui significa o modo de ser do que é finito. Representamos o finito como delimitado, o que está cercado, não totalmente livre ab-soluto, i. é, não solto como in-finito sem limites, sem limitação. Se não for bem entendida, essa representação introduz na compreensão do finito a “idéia” de privação, de carência. Assim, “finito” é o que é imperfeito, porque ainda não chegou a ser infinito. Nessa concepção de finito- infinito estão atuando nossas expectativas usuais de excelência na ciência e na vida. De tudo, esperamos, na ciência e na vida, o melhor, a excelência. A qualidade total, a melhor, sem limites, sem fim, infinito. E deslocamos o ponto de chegada da perfeição absoluta dessa excelência infinita para além, para a utopia assintótica. Olhamos, pois, para além com ânsia do infinito transcendental e passamos “por sobre, acima do finito”, que acaba caindo no esquecimento, se retrai como ausência, carência, falta da excelência do tipo in-finito. A fenomenologia, pois, não se sente em casa na atmosfera da expectativa dessa excelência infinita da busca para além. Pois não se dá o ar de excelente, de infinito, porque respira na atmosfera do finito, do sempre e cada vez consumado, terminado, bom, naquele sentido que expressamos, quando, tocando de cheio mas de leve o lóbulo da orelha, ao degustar a primeira porção de uma pamonha, dizemos: está no ponto, é bom, demais. Esse demais não é para além, transcendental nem transcendente, não é falta do infinito, não sabe à inchação, inflação, não tona grandioso nem gigantesco, mas como plenitude, simples e imediata; está ali no con-creto e sóbrio como a “coisa ela mesma” que a fenomenologia chama de mundo. Em vez de mundo, na fenomenologia se diz também ser-no-mundo. Em geral, quem não se familiarizou com a fenomenologia entende essa “coisa ela mesma”, esse “estar ali concreto e sóbrio, pleno, simples e imediato”, esse mundo ou ser-no-mundo, equivocadamente. Interpreta tudo isso dentro do horizonte do usualmente conhecido, como se todas essas “realidades” fossem objetos: objeto-subjetivo aqui e objetos objetivos de vários tipos, diante e ao redor de mim. Uma das inúmeras tentativas do trabalho da fenomenologia é reconduzir a nossa compreensão prefixada da “realidade” padronizada dentro do esquema sujeito-objeto à compreensão da “realidade” como mundo ou ser-no-mundo. Como preparação para essa redução ou recondução, embora ainda permanecendo no esquema sujeito-objeto, tentemos ver a nós (objetos-subjetivos) e os entes ao nosso

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As expectativas que a gente tem da fenomenologia são boas quando se afinam à boa audição do que vai surgindo do/no círculo do seminário...

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    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 1

    Cada vez que for possvel ser feita uma espcie de relatrio das reunies do nosso seminrio sobre fenomenologia. Relatrio que no nenhum relatrio, nenhum protocolo, resumo que de alguma forma reproduza o que vivamente foi tratado no encontro, mas apenas alguns arrazoados avulsos mal feitos, ocasionados pelos pensamentos que surgiram e circularam entre ns, graas colaborao e participao de todos.

    Todos ns viemos para o seminrio, cada qual com uma determinada expectativa em relao fenomenologia.

    As expectativas que a gente tem da fenomenologia so boas quando se afinam boa audio do que vai surgindo do/no crculo do seminrio; menos boas, se na sua exigncia e excelncia so mais altas do que o qu a fenomenologia na sua finitude consegue dar. Finitude aqui significa o modo de ser do que finito. Representamos o finito como delimitado, o que est cercado, no totalmente livre ab-soluto, i. , no solto como in-finito sem limites, sem limitao. Se no for bem entendida, essa representao introduz na compreenso do finito a idia de privao, de carncia. Assim, finito o que imperfeito, porque ainda no chegou a ser infinito. Nessa concepo de finito-infinito esto atuando nossas expectativas usuais de excelncia na cincia e na vida. De tudo, esperamos, na cincia e na vida, o melhor, a excelncia. A qualidade total, a melhor, sem limites, sem fim, infinito. E deslocamos o ponto de chegada da perfeio absoluta dessa excelncia infinita para alm, para a utopia assinttica. Olhamos, pois, para alm com nsia do infinito transcendental e passamos por sobre, acima do finito, que acaba caindo no esquecimento, se retrai como ausncia, carncia, falta da excelncia do tipo in-finito.

    A fenomenologia, pois, no se sente em casa na atmosfera da expectativa dessa excelncia infinita da busca para alm. Pois no se d o ar de excelente, de infinito, porque respira na atmosfera do finito, do sempre e cada vez consumado, terminado, bom, naquele sentido que expressamos, quando, tocando de cheio mas de leve o lbulo da orelha, ao degustar a primeira poro de uma pamonha, dizemos: est no ponto, bom, demais. Esse demais no para alm, transcendental nem transcendente, no falta do infinito, no sabe inchao, inflao, no tona grandioso nem gigantesco, mas como plenitude, simples e imediata; est ali no con-creto e sbrio como a coisa ela mesma que a fenomenologia chama de mundo. Em vez de mundo, na fenomenologia se diz tambm ser-no-mundo. Em geral, quem no se familiarizou com a fenomenologia entende essa coisa ela mesma, esse estar ali concreto e sbrio, pleno, simples e imediato, esse mundo ou ser-no-mundo, equivocadamente. Interpreta tudo isso dentro do horizonte do usualmente conhecido, como se todas essas realidades fossem objetos: objeto-subjetivo aqui e objetos objetivos de vrios tipos, diante e ao redor de mim.

    Uma das inmeras tentativas do trabalho da fenomenologia reconduzir a nossa compreenso prefixada da realidade padronizada dentro do esquema sujeito-objeto compreenso da realidade como mundo ou ser-no-mundo.

    Como preparao para essa reduo ou reconduo, embora ainda permanecendo no esquema sujeito-objeto, tentemos ver a ns (objetos-subjetivos) e os entes ao nosso

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    redor que no so sujeitos (objetos-objetivos) como mundo. Para isso uma comparao (embora ainda muito objetiva).

    Sobre a mesa esto espalhadas gotas de gua da chuva que pingaram de uma goteira do meu quarto. So 21 pingos dgua, uns menores, outros maiores, formando duas pequenas poas dgua. A superfcie da mesa chata, uniforme, lisa, sem muita diferena. As gotas e poas dgua tambm no se diferenciam muito entre si, a no ser pela quantidade e formas geomtricas. Quanto mais me distancio da mesa e tenho uma viso longnquo-panormica, tanto mais neutra e indiferenciada se torna a paisagem: s alguns pontos sobre uma mesa de superfcie lisa e homognea.

    Mas seria bem diferente a paisagem que se descortinaria se, por exemplo, atravs de um possante microscpio eu conseguisse entrar para dentro da paisagem interior de uma gota dgua. Ali se abriria todo um mundo habitado por diferentes tipos de seres estranhos, riqussimos em detalhes de formas e constituies fisiolgicas movimentando-se, relacionando-se, reproduzindo-se e devorando-se mutuamente, no meio de uma floresta de seres parecidos com plantas e fungos. Assim, em cada gota encontraramos todo um mundo, e neste mundo, mundos e mundos; e em cada ente que os povoaria, por sua vez, toda uma estrutura que perfaria de novo todo um mundo de realidades.

    E ainda, se focalizssemos uma pequena parcela da superfcie da mesa, sobre a qual se espalham as gotas como se fossem pontos isolados entre si, descobriramos com surpresa que tambm essa superfcie, aparentemente to lisa e homognea, apresenta acidentes geogrficos variados, vales e montanhas, sulcos profundos e abismos, tambm povoados por micrbios e bacilos de variados tipos e constituies.

    A quem se abrem cada vez de modos diferentes e diferenciados a realidade como mundos e mundos e mundo no mundo o homem. Mas o homem, enquanto visto como objeto, se abre tambm a si como mundo. O que , quem e como a quem tanto o homem como os entes no-homem se abrem como mundo? Na fenomenologia essa pergunta a aguilho que sempre de novo e cada vez estimula o nosso saber a se perguntar e em assim se perguntando ver.

    Por enquanto, deixemos no ar a suspeita e pergunta: esse a quem se abrem os mundos, cada vez no seu modo, esse quem, que no objeto subjetivo ou sujeito, portanto nem sujeito nem objeto, o homem, que em no sendo nenhum objeto (nem objeto subjetivo nem objeto objetivo) exatamente esse modo de ser de cada ente aparecer como mundo? Se assim for, o homem apareceria entre outros entes no-humanos como objeto, mas ao mesmo tempo como modo de ser do aparecer de cada objeto, inclusive ele mesmo, como mundo. Ou melhor, ele propriamente no apareceria, mas haveria de se retrair como a aberta que ao fazer aparecer o mundo cada vez no seu modo de ser prprio, se oculta como a interioridade a mais ntima do mundo? Ele seria assim ser-no-mundo. No dentro do mundo de objetos tanto subjetivos como objetivos, qual um sapo dentro da lagoa, mas como o ponto de salto da ecloso do mundo, como olho dgua, como a aberta do mundo. Quando o objeto-sujeito reconduzido assim para o prprio de si mesmo como ser-no-mundo, ento ele deixa de ser a nsia assinttica da carncia do infinito, e volta a ser bem no ponto, bom demais na sua finitude. ento que o mundo finalmente se tornaria redondo, simples, concreto, a coisa ela mesma da fenomenologia.

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    As infindas discusses, troca de idias, vai e vem das discusses do seminrio acerca da fenomenologia nos podem enervar e impacientar na nossa nsia do infinito da excelncia objetiva. Elas so, porm, movimento circular, uma espcie de rodopios que pedem de cada um de ns muita pacincia, plena ateno e principalmente muita cordialidade na valentia de pensar. Eles podem sovar o nosso saber e gastar seus cantos, transformando-o de quadrado para redondo, conduzindo-o cincia cordial, que para Nietzsche tem o modo de ser da arte.

    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 2

    Nesse segundo encontro tentamos girar ao redor da proposta de entender a fenomenologia como possibilidade, segundo um texto de Martin Heidegger que diz: A fenomenologia a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos se transforma e que s por isso, permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se h de pensar. Se a fenomenologia for experienciada e considerada assim, ento ela pode desaparecer, enquanto ttulo, em favor da coisa do pensar, cuja manifestao permanece um mistrio.

    A esse texto de 1963, Heidegger acrescenta em 1969: No sentido da ltima frase se diz j em Ser e tempo (1927) p. 38: o essencial da fenomenologia no reside nisso de ela ser real como corrente filosfica. Mais alta do que a realidade est a possibilidade. A compreenso da fenomenologia repousa unicamente nisso, em capt-la como possibilidade.

    Compreender uma coisa significa prender algo. Prender se refere ao de ligar e unir o que est espalhado, ajuntando-o no uno. O movimento de ajuntar-se no uno est dito no com que no grego se diz syn (= uno; synthese = sntese). Algo assim com-preendido no fica encarcerado, mas aderente e coerente, consistente e firme em si mesmo. Firme aqui no deve ser confundido com fixo, esttico, imvel num encaixe. Pois a firmeza significa a prpria dinmica que se assenta em si mesma como movimento. como o movimento de um dnamo que gira com tamanha velocidade e energia em si a ponto de parecer parado.

    Queremos com-preender a fenomenologia. Nessa tentativa de compreender a fenomenologia, ns a colocamos diante de ns, como uma realidade, portanto como algo para o qual nos dirigimos: em linha reta, como a uma meta . Ns ainda no sabemos o que e como a meta chamada fenomenologia. por isso que a buscamos. Cada um de ns, pois, mais e/ou menos essa flecha. Esse modo de ser e esse modo de caminhar para a meta, esquematizado o modo de busca do saber objetivo. E o assim chamado saber subjetivo em geral, de imediato e na maioria dos casos, tambm objetivo , s que virado para trs . Esse modo de saber, de abordar, de buscar e progredir na busca, pode ter os mais diversificados objetos, como, p. ex., arte, histria, cincia, religio, tempo, espao, ser-humano, entes vegetais, entes animais, entes fsico-corpreos, entes ideais como nmeros, equaes matemticas, quimeras etc. No entanto, apesar das diferenas considerveis nos objetos, o modo de dirigir-se ao objeto sempre uma seta assim ou ; ns, seres do saber objetivo em modalidades objetivo () e subjetivo (), embora nos apercebamos das diferenas dos entes, por submet-los na sua abordagem ao ocular objetivo e objetivante (e isto vale tambm quando falamos das nossas coisas subjetivas como vivncias, sentimentos etc.) deixamos escapar o modo de ser prprio do ente em questo, que sob a dominncia desse ocular objetivo-objetivante se retrai e da nossa mira. Damos um

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    exemplo. Lemos no jornal uma notcia, em que se relata o herosmo de uma menina de 10 anos que para defender o seu irmozinho de 5 anos da investida de um cachorro pitt-bull, se atracou com ele, gritando para o irmozinho que fuja. Para ajudar a irm, em vez de fugir, este se atraca tambm com o cachorro. Ao ler esse relato, surge na minha vivncia um turbilho de mil e mil colocaes acerca dessa situao e acontecimentos. Sinto, porm, no fundo desse turbilho, um forte sentimento de admirao por essas crianas, e me surpreendo exclamando alto dentro de mim: Grande! Um amigo meu ao ouvir a minha exclamao me pergunta: Grande como? O que que grande? Tem quantos metros? pesado? Quantos quilos? E lhe respondo atnito: Mas de que voc est falando. E ele: No do pitt-bull? Aqui houve um equvoco acerca do objeto. De um lado, o objeto era o pitt-bull. Da minha parte, a grandeza e nobreza da coragem das crianas. Nesse instante do arrazoado, de grande importncia que se perceba o seguinte: o problema no a troca, o qiproqu acerca do objeto. Portanto, nesse exemplo a questo de ver que se trata uma vez da realidade no caso da pergunta; e outra vez da possibilidade, no caso da exclamao. Mas vamos passo a passo:

    A primeira vista, o exemplo fcil de entender, pois todo mundo, principalmente ns, que de alguma forma estamos acostumados com a objetividade das cincias, quer naturais quer humanas, percebemos logo que houve troca de objeto, ou melhor, engano acerca do objeto. O meu interlocutor estava pensando que eu estava falando de pitt-bull e queria saber qual o tamanho do cachorro que se pode medir em metros e peso. Eu estava, porm, em admirao, que nasceu da grandeza herica da coragem das crianas. Na nossa maneira exata de pensar cientfico, dizemos: ouve um equvoco. Mas no houve extrapolao. Extrapolao cientfica haveria se o meu amigo soubesse que a minha exclamao se referia grandeza da coragem das crianas. Aqui perguntar quantos quilos pesa a coragem das crianas ou quantos metros mede a grandeza do ato herico das crianas reduzir um gnero de objetos a um outro gnero de objetos, sair da impostao ou do enfoque prprio a um gnero de objetos e entrar na impostao ou no enfoque prprios de um outro gnero de objetos, bem diferentes, continuando ingenuamente a pensar que est ainda na antiga impostao dentro do igual modo de ser e pensar do antigo gnero de objetos. Quanto maior so a acribia e o cuidado de uma cincia, sejam cincias naturais ou humanas, em relao sua cientificidade, de manter-se limpa e sem mistura na preciso, a partir e dentro da lgica operante no gnero prprio da rea dos seus objetos, evitando constantemente as extrapolaes, tanto mais as cincias so aptas a clarear os objetos que pertencem ao gnero da sua rea. Por isso, acribia e cuidado pela limpidez da cientificidade fazem que numa cincia se examinem sempre de novo e constantemente as pressuposies e as pr-compreenses a partir e sobre as quais a cincia avana, progride e constri o seu sistema.

    Ns, aqui presentes, vivemos dentro da busca de excelncia cientfica do saber positivo objetivante e objetivo. Por isso, mais e/ou menos, em diferentes graus, exercemos esse modo de ser da busca do saber objetivo e adquirimos qualidades e competncias nesse modo de ser da existncia humana chamada existncia cientfico-acadmica. Mesmo as pessoas que no esto no ambiente dessa existncia cientfico-acadmica, hoje de algum modo, mais e/ou menos participam dela, pois vivem no mundo funcional da civilizao cientfica tecnolgica, criado e sustentado na sua dinmica por esse modo de ser objetivante-objetivo. Isto significa: dominante em todos ns, estudados ou no, a impostao da abordagem do saber objetivante-objetivo, configurado no logotipo acima mencionado () () (=saber de objetivao objetiva e subjetiva). At aqui, at certo ponto conseguimos nos conscientizar e ficar vigilantes em nossas abordagens da realidade. O primeiro passo para nos introduzirmos na fenomenologia comearmos

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    a desconfiar que esse modo de ser do saber objetivante-objetivo ()(), portanto, a impostao retilneo-flecha, espanta e espanca1 a fenomenologia, que no pode e no quer vestir a camisa de fora do modo de ser da flecha retilnea objetivante. Pois, ela no em primeiro lugar e antes de tudo produtora, agenciadora, guarda e vigia da consistncia e fixao das realidades que se formam na ponta da flecha retilnea e objetivante da dinmica do inter-esse do saber objetivante-objetivo.

    Certamente a fenomenologia aparece tambm dentro do mundo da existncia cientfico-acadmico como saber objetivante-objetivo; e qui em vrios estilos como escolas, movimentos. Como tal, sob esse aspecto exotrico (virado para fora) a fenomenologia buscada e ensinada nas academias e universidades como sistema de saber ao lado da psicologia, sociologia, antropologia etc. Nesse uso da fenomenologia, ela embora tenha muito gabarito e competncia, em vrios casos mais recursos de anlise e descrio e sofisticao do que outras cincias positivas, ela permanece, na sua impostao, no mesmo modo de ser do saber de objetivao, portanto () () ( ). So pois diversas realizaes da fenomenologia, fenomenologia como realidades. Temos assim fenomenologia como antropologia, como psicologia, como existencialismo, como fenomenologia descritiva, fenomenologia de Merleau Ponty, de Husserl, de Heidegger, Rombach, Pfnder, Fink, Gabriel Marcel, Sartre, Gadamer. Mas todas essas realizaes da fenomenologia, portanto as fenomenologias como realidades na media em que vem fala e muitas vezes se sistematizam como teses e doutrinas, vivem de alguma forma operativamente a partir e dentro de uma evidncia de que na raiz, na gnese do movimento do surgir, estruturar-se e consumar-se como todo um mundo de compreenso, portanto tambm na raiz, na gnese de toda e qualquer cincia, de toda e qualquer manifestao da arte, da religio, h uma presena, bem no seio de cada existncia, como possibilidade de ser. Presena silenciosa qual retraimento do abismo insondvel e inesgotvel de ser, como que um hlito de suave leveza do toque da possibilidade livre de ser, na preciso de tnue vibrao da doao de um sentido do ser, contido com pudor na espera da recepo. o aspecto esotrico, a dimenso de fundo, a inclinao virada para dentro da fenomenologia, a sua possibilidade. Essa disposio de fundo, a interioridade profunda do homem como animal rationale2 (leia-se: nimo cordial atinente ao logos) o que na fenomenologia de Heidegger se chamou de clareira do sentido do ser, a aberta, no como a abertura escancarada de uma passividade neutra enrijecida, mas lmpida espera no tinir de disponibilidade da

    1 Espanca aqui no significa dar uma surra, mas faz sumir, no sentido de a luz espanca a escurido. Se eu entendo, porm, a luz como triunfadora sobre a escurido, de tal modo que a escurido o que um dia deve acabar, e entendo o saber como a luz que espanca a escurido do no-saber, tanto a escurido como o no-saber se retraem na sua essncia, e so transformados em objetos a serem eliminados como nada. Com isso, a luz se torna algo semelhante luz non que na exacerbao da brancura destilada tudo esvazia numa claridade escancarada, onde todo e qualquer sombreamento das nuanas diferenciais somem, matando a possibilidade do surgir, crescer e consumar-se de toda a espcie de vida. Como uma msica onde no ressoa no fundo de cada nota que se entoa um silncio profundo? Talvez no ouvssemos nenhum som, pois tudo se transforma no mutismo exacerbado em gritarias.

    2 Se no o lemos a partir da impostao psicolgica e biolgica, o termo latino animal rationale no significa bicho, bruto mas o vivente, e no vivente o nimo: a vitalidade e disposio anmica. A ratio, razo no se refere faculdade mental chamada razo ao lado da vontade e do sentimento, mas vigncia de uma presena que tudo ajunta, recolhe e reconduz ao uno da origem, compreenso como foi insinuada no incio desse fragmento. Ratio, a razo, aqui traduo do grego logos. Animal rationale simplesmente a traduo da expresso grega: t zon lgon chon: vitalidade do nimo atinente ao lgos. Dito de outro modo, fenomenologicamente, a aberta do e ao sentido do ser.

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    generosa pura recepo para o suave toque do sentido do abismo da possibilidade de ser, o ser-a, o Dasein (Da-sein). Esse a, o Da, o ex- da existncia clareira e ao mesmo tempo algo como profundo silncio no in-stante do salto da ecloso do mundo, a entoao do mundo sob o toque da possibilidade de ser. Desse modo de ser da clareira-ponto-de-salto da ecloso do mundo se diz no texto de Heidegger:

    a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos, se transforma e que s por isso permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se h de pensar.

    Para entender de alguma forma de que se trata quando falamos da fenomenologia como possibilidade e em que sentido a possibilidade mais alta do que realidade favor ler e refletir o seguinte trecho da conferncia pronunciada por Paul Klee aos 26.01.1924 sob o ttulo: Superviso e orientao na rea dos meios pictricos e sua ordenao espacial.

    Gostaria, agora, considerar a dimenso do objeto num novo sentido para si e ali tentar mostrar como o artista vem muitas vezes a uma tal deformao aparentemente arbitrria da forma natural do aparecer.

    Por sua vez, ela no d a essas formas naturais do aparecer a importncia obrigatria como o fazem os muitos realistas que exercem crtica. Ele no se sente to ligado a essas realidades, porque ele no v nessas formas terminais a essncia do processo natural da criao. Pois para ele h mais interesse nas foras que formam do que nas formas terminais. Sem o querer seja ele talvez justamente, filsofo. E se no faz como os otimistas que explicam este mundo como de todos os mundos, o melhor e se tambm no quer dizer que esse nosso mundo circundante seja ruim demais para tom-lo como exemplo, diz ele, no entanto assim:

    Nessa sua configurao formada, o mundo no o nico de todos os mundos!

    Assim, o artista olha as coisas que a natureza formou e lhe faz desfilar diante dos seus olhos com mirada penetrante.

    Quanto mais profundamente mira, tanto mais facilmente ele consegue distender os pontos de vista, de hoje para ontem. Tanto mais o impregna no lugar de uma figura pronta da natureza, a figura somente ela essencial da criao como o gnese.

    Ento, se permite tambm o pensamento de que a criao hoje mal poderia estar concluda, e com isso, estende aquela ao criativa do mundo, de trs para frente, dando durao gnese.

    Ele avana ainda mais.

    Diz para si, ficando desse lado: Esse mundo apareceu diferente e ele h de aparecer diferente.

    Tendendo para alm, porm, pensa: Nas outras estrelas se pode ter vindo, de novo, a formas de todo diferentes.

    Tal mobilidade nos caminhos naturais da criao uma boa escola de formas.

    Ela consegue mover a quem cria, do seu fundo, e ele mesmo, j mvel, h de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seus prprios caminhos de configurao.

    A partir dessa impostao, a gente deve ter como a seu favor, quando o artista esclarece o presente estgio do mundo do fenmeno que lhe diz respeito, como casualmente bloqueado, bloqueado temporal e localmente. Como demasiadamente delimitado em contraposio ao intudo profundamente e sentido vivamente por ele.

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    E no verdade que, j o relativamente pequeno passo do olhar atravs do microscpio faz desfilar diante dos olhos figuras, que ns todos haveramos de declarar como fantsticas e exacerbadas, se, sem pegar o piv da coisa, as vssemos de todo por acaso em algum lugar?

    Senhor X, porm, ao dar de cara com uma cpia de tal figura numa revista sensacionalista, haveria de clamar indignado: isto seriam formas naturais? Isto , sim, o pior dos comrcios de arte!

    Portanto, o artista, pois, se ocupa com microscpio? Histria? Paleontologia?

    Apenas a modo de comparao, apenas no sentido da mobilidade. E no no sentido da possibilidade de um domnio do controle cientfico da fidelidade natureza (wissenschaftliche Kontrollierbarkeit)!

    Apenas no sentido da liberdade!

    No sentido de uma liberdade, que no conduz a determinadas fases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assim exatamente ou ho de ser ou que em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatveis) poderiam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim mvel, como o a grande natureza.

    Do exemplar para o arqutipo!

    Arrogante seria o artista que, aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porm, so os artistas que hoje penetram at certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originria alimenta os desenvolvimentos.

    L, onde o rgo central de toda a mobilidade espao-temporal, chame-se ele crebro ou corao da criao, ocasiona todas as funes. Quem como artista no gostaria de morar, l?

    No seio da natureza, no fundo da origem da criao, onde a chave do mistrio para tudo jaz guardada?

    Mas no todos devem para l! Cada qual deve se mover para ali, aonde a batida do seu corao acena.

    Assim, no seu tempo, nossos antpodas de ontem, os impressionistas, tinham plena razo em morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-cho dos fenmenos cotidianos. O pulsar do nosso corao, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo abissal.

    O que ento cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idia, fantasia de todo para se tomar a srio, se ele se liga sem reservas configurao com os meios pictricos adequados.

    Ento, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas no reproduzem s o visto, mais ou menos de modo bem temperamental, mas fazem visvel o intudo na intimidade oculta (geheim).

    Quando se fala de possibilidade, ns consideramos a possibilidade como sendo de densidade de ser inferior realidade. Havia uma viva que tinha 10 galinhas. Um dia ela se achega de um curandeiro e pede um remdio eficaz para suas galinhas, pois ficaram doentes. Recebeu remdio eficaz: um gro de milho trs vezes por dia. Morrem 3 galinhas. A viva volta ao curandeiro. Pede um outro remdio para galinhas. Novo remdio: um gro de milho, duas vezes por dia. Morrem mais 2 galinhas. A viva volta de novo ao curandeiro. Este prescreve novo remdio: um gro de milho uma vez por dia. Morrem mais 4 galinhas. Revoltada, a viva volta ao curandeiro e lhe pergunta: At quando fica prescrevendo gro de milho? O curandeiro lhe respondeu: At enquanto a

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    senhora tiver galinhas. Heidegger diz no que se refere ao pensar: O essencial da fenomenologia no reside nisso de ela ser real como corrente filosfica. Mais alta do que a realidade a possibilidade. A compreenso da fenomenologia repousa unicamente nisso, em capt-la como possibilidade, e continua: A fenomenologia

    a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos, se transforma e que s por isso, permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se h de pensar. Se a fenomenologia for experienciada e considerada assim, ento ela pode desaparecer, enquanto ttulo, em favor da coisa do pensar, cuja manifestao permanece um mistrio.

    Em que consiste a moral da estria zen das galinhas da viva, no para moralizar nossos atos em relao fenomenologia, mas em relao compreenso da utilidade da fenomenologia como possibilidade?

    Quando dizemos: Acabou! Estou no fim das minhas possibilidades, entendemos possibilidade como realidade ou como possibilidade?

    O que pode vir (possibilidade) depois do fim das minhas possibilidades, i. , a potencialidade, a potncia que mantinha a minha realidade? Se nada, se vazio, se baixa depresso como representa essa nihilidade? Como realidade no estado 0? Como fim da possibilidade? Como entender a possibilidade no sentido de Heidegger que diz ser mais alta do que realidade? H aqui um aceno para uma possibilidade que anterior, aqum da possibilidade e realidade no nosso sentido usual?

    H experincias nas quais estou no fim da picada. No paredo. Estou na baixa, na fossa. De tal modo no fundo da possibilidade da minha realidade que nem sequer me resta mais gosto, vontade, nimo de querer fazer alguma coisa para sair dessa. De repente, no sei como, inesperadamente estou noutra. Numa outra possibilidade. Essa nova realidade seria no fundo continuao, portanto uma possibilidade at agora escondida da realidade anterior ou uma inteiramente nova possibilidade de ecloso de todo um novo mundo da realidade? possvel saber dessa possibilidade? Se no, h possibilidade de ser assim possibilidade? Ser-assim = ser-a = Da-sein? Mas ento j sempre no o fomos? Voltar a ser o que j sempre fui possvel? Possibilidade mais alta do que a realidade: entrar para dentro da re-cordao, ser recolhimento, repouso em-casa (Ge-heim), ser o que somos, a cada instante, sempre de novo, de tempo em tempo na transformao.

    Em alemo, possibilidade se diz Mglichkeit. (Mglich = possvel; -keit = sufixo designativo da abstrao essencializada: -dade). Mglich vem do verbo mgen. Mgen significa poder mas no sentido de gostar. Mas de que se trata, quando gostar diz mgen? Quando uma veste cai to bem no corpo que veste e corpo so uma coisa s, que a veste e o corpo esto satisfeitos, ento temos o mgen. Se um caldo bem quente (mas no fervente e causticante) num dia de inverso rigoroso no sul do pas me cai bem no estmago, e a barriga se me assenta de cheio numa satisfao gostosa, aparece, nessa gostosura da identificao do todo, o meu ser no/com/por caldo, o verbo, a ao bem feita em obra: mgen. a nossa dita alta possibilidade.

    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 3

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    Fenomenologia como mtodo:

    Caminho

    Por mtodo, entende-se, aqui, no um procedimento tcnico, mas a atitude fundamental do modo de indagar aquilo que se d, vindo ao nosso encontro ao longo do caminho de nossa investigao. Com mtodo, queremos dizer o princpio que norteia todo modo de interrogar no mbito da reflexo ou investigao, o como do colocar questes e a forma de abordar problemas.

    Mtodo: methodos = meta + hodos.

    Meta sentido original: no meio de, no elemento de, na ambincia de (au milieu de); em meio a, entre (parmi); > da: com (= syn, com); > posteriormente: rumo a, em busca de; > por fim: em seguida a, depois de. Em composies: situar-se em meio a, no entremeio de > participar de > suceder. s vezes conota transformao, mudana.

    Hodos : caminho, via, viagem, andamento marcha, curso, percurso, incurso, rota, procedimento.

    Onde homens esto, ali esto caminhos.

    Caminho uma outra coisa do que senda ou estrada. Senda insere-se na natureza. Estrada passa ao largo da natureza. Caminho, isto abre a natureza, mostra sua configurao, seu esprito. No caminho, homem e mundo encontram-se no meio, perfilam-se mutuamente! O homem se deixa guiar pela natureza e, no entanto, inclui a a sua vontade. Caminho acordo, ajuste de afirmao e desempenho, graa e gesta, necessidade e liberdade. Talvez nada exista de mais sublime do que este acordo. A experincia fundamental caminho diz que, atravs do favor do conseguimento, o homem pode ser conduzido para fora de um poder estranho, mas pura e simplesmente na liberdade de si mesmo. No esprito do caminho, o homem produz o que cresce, deixa vir a ser o que cheio de dedicao e forte, penoso e decidido (HEINRICH ROMBACH, Leben des Geistes - Vida do esprito).

    No obras, caminhos (Wege, nicht Werke, M. HEIDEGGER Mote das suas obras completas).

    Weg und Waage / Steg und Sage / finden sich in einen Gang. // Geh und trage / Fehl und Frage / deinen Pfad entlang. (M. HEIDEGGER, Da experincia do pensar).

    Caminho e Balana / Senda e Saga / acham-se num passo // anda e suporta / Falta e Pergunta / ao longo da tua senda.

    1. Na medida em que no nosso crculo fenomenolgico comeamos a circular, comeamos tambm a ficar confusos acerca da fenomenologia. Quem nada sabe ou pouco ouviu da fenomenologia provavelmente fica boiando, perguntando-se: esto falando de que? Quem sabe bastante ou muito, quem lida com fenomenologia, quem j estudou fenomenologia dentro das suas especialidades, principalmente dentro da psicologia, pode tambm estranhar o mtodo circular do nosso encontro e ter a sensao de que ali no se est falando de fenomenologia, mas miscelnea emaranhada de opinies filosficas eclticas, misturando tudo, anedotas zen, textos de autores da fenomenologia, principalmente muitos textos de Heidegger, e experincias pessoais etc. Quem est enjoado e aborrecido com certas exposies acadmicas lineares do tipo >> montonas, sem vida, padronizadas, politicamente corretas, pode achar

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    interessante esse mtodo que balana, vai e vem, d saltos, empaca, avoa, diz besteiras etc. Mas se somos metdicos, sistemticos, trabalhamos com exatido nas cincias, nas quais somos especialistas, consideramos o mtodo circular insuficiente, para no dizer brincadeira ou como dizem os estudiosos e especialistas da corrente filosfica neopositivista lgica denominada filosofia analtica, delrios dos fenomenlogos.

    2. Talvez seja til aqui, para ns que somos acadmicos, atinentes excelncia e exatido do saber do ensino superior, conhecer o uso de duas palavras que aconselhvel no adotar no meio acadmico alheio fenomenologia, para no sermos taxados de seitas secretas. As palavras em questo so exotrico e esotrico (cfr. Aurlio). Vem do grego exoteriks (exteros) e esoteriks (esteros). Exotricos significa virado para fora, o que vem de fora. Esoteriks, virado para dentro, o que vem de dentro. Desse significado simples se derivaram outros significados como dirigido ao pblico e dirigido aos particulares especiais j iniciados; aberto a todos e secreto e fechado; seita secreta, especializao, iniciao etc.

    A fenomenologia pode aparecer como exotrica. Virada para fora. Fora aqui um termo ocasional ou circunstancial, cuja significao pede que digamos em que ocasio, em que circunstncias estamos usando o termo. Quando usamos o binmio exotrico-esotrico, geralmente entendemos o binmio no sentido de virado para fora como dirigido ao pblico, no iniciado numa determinada compreenso. Semelhantemente, virado para dentro entendido como dirigido ao crculo de pessoas j iniciadas numa determinada compreenso. Um variante desse modo de entender o exotrico-esotrico a diferena colocada entre graduao e ps-graduao; leigo no assunto e especialista etc. Se tomarmos exotrico-esotrico nesse sentido e falarmos de curso de fenomenologia, a fenomenologia aparece como uma especializao de um saber cultural acadmico como outras cincias. Ali existem modos didticos de ensino, onde para quem ainda est p. ex. na graduao da filosofia, se deve dar informaes etc. etc. E dentro dessa perspectiva, quanto mais se sobe na graduao do saber para ps-graduao mestrado e ps-graduao doutorado etc etc. aumenta o volume de informaes e de competncia tcnico-objetiva. Esse modo de ser do saber cientfico-acadmico cultural uma conquista humana e possui o seu valor prprio. Fenomenologia que assim aparece no seu vir fala a modo do saber cientfico-acadmico cultural, tanto para iniciantes como para iniciados, tanto para quem est na graduao como quem j est na ps-gaduao, tanto para leigos como para especialistas o exotrico da fenomenologia. Mas ento a fenomenologia como esotrico, como , o que ? Muitas pessoas que s conhecem a fenomenologia enquanto modo de saber cientfico-acadmico cultural podem aqui cometer um qiproqu e achar que o esotrico na fenomenologia algo como saber mstico espiritual a modo de esoterismo ou mundividncia religiosa que critica a exacerbao racionalista das cincias e reivindica uma sabedoria mais humana, profunda, antropolgica. Entender a fenomenologia assim como, digamos uma filosofia de vida, um saber existencialista etc. pode trazer muita utilidade. Mas todas essas manifestaes da fenomenologia so exotricas. Aqui fosse talvez til recordar o que refletimos nos Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 2 acerca do estilo flecha e do estilo crculo na compreenso da fenomenologia e da compreenso toda prpria que a fenomenologia tem da realidade e possibilidade, e principalmente no texto de Paul Klee quando ele explica o que criativo e o que a forma-terminal na criao artstica. Nas reflexes do encontro 2, as aparies exotricas da fenomenologia acima apresentadas so todas elas realidades. E a dimenso chamada possibilidade no parte, no possibilidade ou potencialidade de possveis realizaes ou realidades por vir, mas possibilidade no

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    sentido da circularidade do mtodo, a qual se quiser, pode se chamar de virado para dentro da fenomenologia, o seu esotrico. O estranhamento diante do modo de vira e revira do caminhar em crculos do nosso encontro no fundo estranhamento que sentimos diante da fenomenologia como possibilidade. Foi sobre isso que comeamos a refletir no nosso encontro n. 3, ao comearmos falar do mtodo fenomenolgico.

    3. Tentemos recordar o que no encontro 3 foi exposto j no incio acerca da palavra mtodo ao examinarmos o sentido grego dos termos que entram na composio meth-hods. Foi dito que a palavra mtodo vem do grego methods que se compe de met e hods. Hods : caminho, via viagem, andamento, marcha, curso, percurso, incurso, rota, procedimento. Em geral quando dizemos caminho pensamos ir para frente, progredir em direo a uma meta, deixando atrs um caminho. o modo de entender o caminho como uma flecha e suas variaes. Para entender bem o que originariamente caminho, porm, necessrio entender bem as implicaes que jazem na palavra meta que compe methodos. Antecipando, para poder ver as conexes existentes nas conotaes da palavra met entre si, seja talvez til ter presente o modo como uma fonte abre numa paisagem um caminho. A fonte brota atravs do olho dgua, insondvel e inesgotavelmente do abismo, formando uma poa, que tateando, pouco a pouco vai seguindo as conformaes dos acidentes da paisagem e aos poucos vai tomando a forma do sulco e depois de um rio em direo ao mar. (Um pensamento para mais tarde aprofundar: na realidade a fonte que superabundante vai se avolumando na presena, e forma um fio dgua que serpenteia como trilha no meio da vegetao rasa de um cerrado e aos poucos se torna um rio caudaloso, no faz o movimento de uma flecha, mas da fonte que como fio dgua vai fazendo aparecer as cercanias como quem em passando no meio das vegetaes vai inundando invisivelmente todas as cercanias e regies, para que venham luz como paisagem).

    Meta significa no meio de: como entender aqui no meio de? Se formos bem precisos, no meio de no deve ser entendido como dentro de a modo de um sapo na lagoa. Deve ser antes entendido como: o entre-meio, o permeio, o mdium que est entre as coisas, fazendo cada coisa ser uma com as outras mutuamente. nesse sentido que dizemos p. ex. de uma pessoa que no se acha mais ali, aqui ou acol diante de ns, porque faleceu, que ele est no meio de ns, ora como elo invisvel onipresente de unio ou de desunio etc. Meta portanto o modo de ser presena do que na filosofia denominamos de condio da possibilidade de. o que est junto de, junto com no a modo real disto ou daquilo ou parte deles, no como isto e aquilo, digamos algo a modo de coisa, ao lado, em cima, em baixo ou no fundo das coisas, mas como permeio, entre-meio, mdium, elemento: como a unidade que congrega as coisas num todo, como mundo. Por isso met significa tambm com, syn em grego que significa unidade de co-pertena mtua no todo. Da significa ambincia. Afastando-nos agora da explicao etimolgica da palavra met, podemos dizer agora que com met estamos nos referindo ao que queremos dizer, ao usarmos expresses e palavras como essas: hoje os participantes do curso esto inteiramente alheios. H um qu no ar!; o ambiente da assemblia no est legal; atmosfera, tonncia, humor, horizonte, sentido do ser.

    Vamos agora apertar mais um pouco a preciso da nossa compreenso a respeito do sentido do met, fazendo a seguinte observao. Provavelmente, ao compreendermos o sentido do met como acima tentamos explicar, a maioria de ns, entendeu todas essas expresses e palavras usadas, como p. ex. elemento, tonncia, humor, ambincia, atmosfera no sentido do que a antropologia cultural denomina de participation

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    mystique3, a saber, imerso num estado de ser tomado e ser possudo por uma fora sentida como irracional que por assim dizer engole a nossa conscincia; ou no sentido de reao instintiva que o animal possui por ele estar naturalmente adaptado ao seu habitat ou ambincia. No caso do meta do methodos h uma grande diferena, digamos qualitativa entre estar no ambincia e no elemento ao modo do methodo humano e o que foi dito da participation mystique e do instinto animal ou mesmo vegetal. Essa diferena ento aparece na palavra hods que est intimamente ligada com o que na fenomenologia chamamos de sentido do ser4.

    Hods, segundo fillogos, cuja raiz sed, que significa ir, andar, dar passos e est no verbo latino cedo, cessi, cessum, cedere (*ce-sedo), sugere um modo de ir para frente no a modo de uma marcha, de um movimento retilneo, onde a distncia mais curta e mais rpida entre dois pontos a reta , mas de um fio dgua, que serpenteia, vai tateando a configurao dos acidentes da paisagem por onde passa, hesita, avana, recua, cede, tenta de novo, numa ginga, num balano, do requebro serpentina de uma senda, de uma trilha. a maneira de uma fonte, cujo modo de ser circular, pleno e cada vez todo, num crescente aumentar em crculos concntricos, ao encontrar resistncias, cede para avanar, e comea a tomar forma de fios dgua que serpenteiam em diferentes curvas e retas, abeirado, abordando, identificando-se com a paisagem e a irrigando. Esse modo de caminhar, de ir, em vez de rasgar a paisagem, fazendo a desaparecer ou dominando-a e a forando a alinhar suas curvas ao poder da reta do mais rpido e do mais curto movimento do progresso, fazendo aparecer a seta da fora como highway automotora, se retrai para o sub-solo, para a profundidade da paisagem, como que unida ambincia, tonncia, ao elemento da fonte e do seu abismo inesgotvel e insondvel que a condio da possibilidade ou melhor a possibilidade de mil e mil modalidades de ir, de caminhos e suas paisagens, a parecendo, se que aparece, como o modo de ir do fio dgua, das trilhas e sendas de um cerrado.

    Esse modo de caminhar, em tateando cada vez o modo do caminhar e do seu constituir-se caminho, o que est dito na conotao do seguir, segundo ou seguindo, indo atrs de, depois de, tomando rumo a, em busca de. Assim, resumindo tudo o que dissemos, o mtodo fenomenolgico o caminhar e se encaminhar, enquanto possibilidade, de toda e qualquer caminho como realidade, inclusive tambm da auto-estrada. Assim, se no encontro 2, dissemos que os saberes com que estamos familializados seguindo as cincias e os estudos que cultivamos, ou como amadores, iniciantes ou j especializados, so caminhos, mtodos a modo de flechas, objetivos (jectados, lanados para frente) e progressivos, ento, em todos esses caminhos da flecha de excelncia e competncia retilnea pode estar pulsando ainda a recordao, embora sofrendo ao mesmo tempo de alta e baixa presso cardaca, do modo de ser da sua origem enquanto cincia. Uma vez tornadas estradas largas, eficientes, excelentes e poderosas no empuxo progressivo de tudo reduzir mais veloz, mais imediata e mais econmica e facilitada eficincia retilnea e unidimensional da produo e sua produtividade, as cincias do saber retilneo, esquecidas inteiramente da sua origem, 3 Em certas psicologias, identifica-se o ser possudo por inspirao na arte ou xtase na experincia religiosa simplesmente com essa participation mystique (talvez por causa da palavra mystique). Na fenomenologia tenta-se distinguir esta e aquela como fenmenos bem distintos.

    4 No confundir sentido do ser da fenomenologia com significado da palavra ou do conceito ser. que, na lngua alem sentido Sinn. Sinn vem do verbo sinnen. Uma das formas antigas do sinnen sinnan e significa viajar, aviar-se, portanto, caminhar, caminho, hods.

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    desprezem talvez o methods dela como estradas cheias de curvas e desvios inteis, retrgrados, dispersivos e subjetivos (contrrios do objetivos). Mas talvez sintamos hoje ns, cincias retilneas, inclusive as fenomenologias reais exotricas, que estamos perdendo a irrigao de fundo, que estamos ficando cada vez mais formais e claros e distintos na logicidade do sistema retilneo de exatido matemtica, mas vagos, simplistas, corretos e retos, bitolados em infindas classificaes padronizadas, no mtodo do andar, como de quem engoliu um cabo de vassoura do sistema de limpeza urbana da realizao da objetividade cientfico-cultural, na qual tudo que no se alinha a highway da objetivao, ou subjetivismo racionalista ou racionalizaes e irracionalidades subjetivas. Se highway se olhasse com detalhes no seu traado-flecha, potente e geral, percebesse talvez que a sua largura se compe de milhes e milhes de finrrimas linhas esticadas, formando uma superfcie hirsuta repuxada para frente, sem rugas, lisas. No dia em que se afrouxar o poder da reta do repuxo da interpelao produtiva todos esses sulcos repuxados se enrolaro em pequenos espirais e serpentinas, recordando-nos que todo o caminho da existncia no reta de pro-gresso infinito, portanto no o crculo assinttico, infinito, indeterminado, sem limites esticado como linha reta, mas cada vez o circulo espirado no surgir, crescer e consumar na finitude concreta, grata e cordial de um caminhar nas sendas perdidas. mais ou menos nesse sentido que ao falar do mtodo na fenomenologia se citou o texto de Heidegger:

    4. Caminho e balana: Caminho como caminhar acima explicitado balana, embalo, a partir e dentro do aconchego do bero, donde se ergue uma senda, tateante, no cuidado e na disposio cordial de abrir-se como caminho do destinar-se de uma existncia. O serpentear da senda como a fala da origem, a primeira fala criativa, na qual vem a si e luz a possibilidade de ser como o mundo em ecloso: Senda e saga. Esse modo de balanar-se e se esgueirar pelos sulcos dos trilhos, o aviar-se como sendeiro a fala do incio, a saga, o abrir-se criativo da existncia humana como linguagem, que antes de ser meio de comunicao e expresso do sujeito, a aberta e o ponto de salto da ecloso e florao do mundo. Todo esse surgir, encetar, principiar e destinar-se, essa dinmica do movimento da fonte, passo, o encontro, o achar-se no balouo do caminho, o andar (Gang). Esse andar, o passo imperativo, vai e porta, o apangio humano de ter que ser como mundo na jovialidade da responsabilidade de ser, de ser sempre de novo a possibilidade, disposta, cordial, grata de ser, prenhe, na gestao (trage = porta, carrega) do conceber, guardar e cuidar, gerar, crescer e consumar-se. Falha e pergunta: esse passo, o se encaminhar na gestao do mundo deve se tornar prenhe, gestante de falha e pergunta, a saber, um esgueirar-se ao longo do movimento serpentina da senda da existncia na busca errante, na investigao operosa atravs das trilhas do cerrado que em alemo se diga talvez Feldsweg, caminho do campo.

    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 4

    1. Estamos tentando compreender da melhor maneira possvel o que devemos entender por mtodo na fenomenologia. Para isso estamos tentando circundar o fenmeno caminho. Depois de examinar diferentes modos de ser do caminho, depois de distinguir caminho na senda, na trilha, e o modo deficiente do caminho no modo de ser da estrada e do highway, comeamos a ler um texto de Heidegger que nos mostra de que se trata quando falamos ontologicamente de mtodo como caminho na fenomenologia.

    Acima foi usada a palavra ontologicamente, para considerarmos de alguma forma uma discusso, que fruto de uma equivocao bsica na compreenso da fenomenologia.

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    Formulemos a questo da seguinte maneira: Esse texto, O caminho do campo e outros que, supostamente, tm o carter literrio de poesia, considerados como obras da segunda etapa na evoluo do pensamento de Heidegger, no so mais tidos como filosficas. Nessas obras literrias poticas, Heidegger teria abandonado o rigor filosfico para adentrar a rea da poesia e da mstica etc. No vamos agora examinar essa questo. S a mencionamos para que na nossa leitura de O caminho do campo desperte em ns um questionamento acerca de como devemos entender tudo quanto at agora falamos de mtodo na fenomenologia. De que questo se trata?

    2. Em vez de dizer diretamente de que questo se trata, perguntamos a ns mesmos o que nos estranha ao lermos os primeiros pargrafos do texto. De modo geral estranhamos que o texto est impregnado de atribuies antropomrficas nas coisas que no tem o modo de ser humano, mesmo nas coisas inteiramente inanimadas, sem vida, coisas totalmente materiais: as velhas tlias o acompanham; o caminho deixa o porto; sada um alto carvalho; o prprio carvalho afirmava: s este crescer pode fundar o que dura

    E justificamos esse antropomorfismo como sendo metforas, gnero literrio etc. Esse modo de considerar um texto como o nosso, que fenomenolgico, no que esteja ele errado. possvel e usualmente assim que o interpretamos. Com outras palavras, a fenomenologia aquilo com a qual ou sem a qual tudo fica como antes tal e qual. Poder ver nesse modo de dizer e falar do caminho do campo e o prprio caminho do campo vindo fala assim como aqui no texto de Heidegger o puro ver fenomenolgico, o seu modo de caminhar: o methods. O ser aqui, o ser assim, se chama fenomenolgico, ou melhor, ontolgico.

    3. Como tudo isso comeou a ficar inteiramente incompreensvel, vamos comear de novo e se possvel, melhor. Mas antes, para que possamos sentir numa densidade maior esse modo de aparecer fenomenolgico que se d no Caminho do campo vamos ver uma fala semelhante do Caminho do campo, numa outra obra que ao falar do quadro Sapato da camponesa de Vincent van Gogh, abre-nos uma paisagem do campo por dentro. O trecho aqui citado encontra-se na Origem da obra de arte de Heidegger. Diz o texto:

    Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato est sedimentada a tenacidade do andar lento atravs dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do cho. Debaixo das solas se arrasta a solido do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doao de si do gro maduro e o inexplicvel fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Atravs desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurana do po cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigncia premente, a vibrao na chegada do nascimento, o frmito na iminncia da morte. terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa est ele protegido. dessa pertena protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistncia. Mas, tudo isso talvez, ns possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente cala sapatos. Oxal, que esse simplesmente calar sapatos fosse to simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansao, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa ento sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato est qui na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Ns o denominamos de confiabilidade. graas vigncia da confiabilidade que a camponesa iniciada no apelo silencioso da terra, graas vigncia da confiabilidade do artefato que ela est segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra esto assim ali camponesa e aos que com ela

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    esto no seu modo: apenas no artefato. Dizemos apenas e nisso erramos, pois somente a confiabilidade do artefato que d, em princpio, ao mundo simples a proteo segura e assegura terra a liberdade da impulso permanente.

    O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantm recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, apenas a conseqncia essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, tambm o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificao, decai apenas artefato-coisa. Tal desertificao do artefato o sumio da confiabilidade. O sumio, ao qual a coisa do uso deve ento cada vez a sua montona e persistente rotina vazia, , porm, um testemunho a mais que acena essncia originria do artefato. A desgastada rotina usual do artefato ento se impe como o nico e exclusivo modo de ser a ele prprio.

    Diante dessa exposio, quais seriam as qualificaes que daramos a ela? Que potica, romntica, sociolgica, existencialista, psicolgica? No assim que todas essas qualificaes soam estranhas, alienadas diante do que ali aparece na exposio de Heidegger como existncia camponesa? real? Impresses ou invenes subjetivas?

    4. A palavra existncia aqui em uso na expresso existncia camponesa do uso na fenomenologia. O seu adjetivo existencial. O que entendemos, quando dizermos e ouvimos o adjetivo existencial? Se o entendemos ou ouvimos ontolgico ou fenomenolgico (fenomenologia como sinnimo de ontologia fundamental), ento talvez estejamos mais perto de uma compreenso quem sabe mais adequada da fenomenologia. Mas usualmente entendemos o existencial como existencialista. Existencialista vem do existencialismo. Existencialismo uma denominao de moda que no diz respeito prpria e primeiramente filosofia mas antes literatura da poca ps-segunda guerra mundial. Onde se retrata a derrocada e se questiona o sistema dominante e dominador do humanismo ocidente-europeu da humanidade, alicerado no ideal da cultura da razo do iluminismo que culminou na exploso da barbrie do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Isso que apareceu de modo dolorido, aterrador, no entanto era o vir a fala do que estava acontecendo h longo tempo no subterrneo da nossa epocalidade, a saber, a dominao planetrio de um determinado sentido do ser do ente na sua totalidade e o seu modo de ser que continua atuando, agora no mais na forma exacerbada e visvel de um hecatombe, mas digamos pacificamente, criando um sistema que mais e mais se institucionaliza como globalizao da racionalizao do poder jurdico, cientfico tecnolgico, de processamento do ente na sua totalidade, onde a vida, o humano, a dimenso pessoal e subjetiva comeam a entrar em desolao de uma desertificao universal. Dentro dessa perspectiva o adjetivo existencial de novo entendido talvez num mbito mais vasto e talvez mais profundo, mas sempre referido de modo existencialista ao humanismo, ao antropolgico, ao psicolgico, de sorte que estranhamos que a fenomenologia use o termo existencial (e a existncia) como ontolgico. E perguntamos: Ontolgico no se refere ao ente, ao mundo real, existente em si, fora do sujeito, ao objeto? Ontolgico no o oposto do antropolgico, do subjetivo? Essa objeo que fazemos diante da afirmao de que o existencial o mesmo que o ontolgico (p. ex. a fenomenologia de Heidegger classificada por certos autores como filosofia da existncia e designada por prprio Heidegger de ontologia fundamental) trai na pressuposio oculta atrs dela que entendemos por ente e ser o objeto-coisa diante e fora do sujeito, mas sem perceber ou sem desconfiar que esse o sentido do ser que se tornou h muito tempo o sentido do ser dominante e totalitrio, fixado como medida e critrio da realidade. Aquilo que no ltimo encontro foi exposto como o dogmatismo dominante de um determinado sentido do ser que aparece no que Husserl denominou de naturalismo, contra o qual ele dirigiu a mais

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    intensa e aguda crtica no incio da fenomenologia, e que sucessivamente recebeu o nome de psicologismo, biologismo e fisicismo, est impregnado desse acima mencionado sentido do ser, cuja dominao traz como ltima conseqncia a reduo da realidade pura quantificao extencional fsico-matemtica. Esse sentido do ser e o seu modo impregnam de tal modo o ente na sua totalidade que o prprio homem que no naturalismo propaga e fomenta uma tal explicao e compreenso da realidade reduzido tambm pura quantificao extencional fsico-matemtico como apenas uma determinada composio da quanta da energia material. Aqui o sujeito desaparece e se torna igual ao modo de ser do objeto. Ou melhor, aqui o ente na sua totalidade no outra coisa do que essa coisa-mundo quantitativo. Mas no poderamos antes aperceber que aqui o que denominamos o ente no seu todo, o mundo totalmente quantitativo o sentido do ser constitutivo desse mundo, atuando e nesse atuar se ocultando, enquanto subiectum desse mencionado mundo? Subiectum aqui no o sujeito-eu localizado como oposto do objeto, nem como algo do modo de ser de um ente constitudo como isso ou aquilo, nem como plataforma ou fundamento que est debaixo do surgir do correlato sujeito-objeto, mas a aberta atravs, a partir e dentro da qual salta, vem fala uma possibilidade de ser como eclodir, crescer e consumar-se do mundo, no caso de nosso exemplo, do mundo de desertificao do sentido do ser como mundo apenas quantitativo extensional: esse movimento, essa ao na sua estruturao dinmica o que se diz com ser-no-mundo, cujo fundo nomeado como ex sistncia, a saber, sistir no ex: a aberta do ser. Ser a aberta do e para o sentido do ser como a passagem da possibilidade de ser para a realidade de ser a essncia do homem, portanto a essncia do homem existncia. Nesse sentido, existencial significa ontolgico ou fenomenolgico, a saber, referido ao vir luz, ao phainmenon.

    5. Ao lermos o caminho do campo fosse til lembrarmo-nos sempre de novo que a paisagem que ali se descortina existencial, i. , fenomenloga ou ontolgica e no existencialista, potico-literria ou psicolgica ou ecolgica.

    6. O que segue pode no ter muito a ver com o que debatemos no ltimo encontro do nosso crculo fenomenolgico, mas pode ser til para nos ajudar a exercitarmo-nos em revisar continuamente as nossas pressuposies escondidas na nossa pr-compreenso da filosofia e da fenomenologia e das cincias. O texto tirado de uma preleo do fenomenlogo Heinrich Rombach, citado no texto examinado quando se falou do caminho. Trata-se de uma reportata de aulas ainda inditas. Por ser reportata, pode haver certa impreciso na formulao que deve ser atribuda a quem fez a reportata.

    O que se entende por filosofia? Perguntado com mais adequao e mais apropriadamente para a nossa finalidade: O que no entendemos por filosofia, o que no devemos esperar como se fosse filosofia, para onde no devemos ficar olhando na nossa reflexo? Tentarei caracterizar o que filosofia por meio de uma rejeio, uma negao de dois qiproqus. O equvoco o mais geral que se encontra no somente entre os principiantes e estudantes mas tambm entre os especialistas e professores consiste em pensar que esta cincia chamada filosofia caracterizada por uma rea objetiva de problemas, portanto, como se um certo nmero ou um catlogo de questes constitusse o que a gente chama de filosofia. Assim, a gente qui fala de teoria de conhecimento como uma rea dos problemas da filosofia, da lgica, da tica, da metafsica etc. Tudo isso seria ento determinados problemas, pelos quais cada um que lida com esses problemas, pode dizer que faz filosofia. Os problemas filosficos nesse teor so como temas biolgicos, pelos quais a biologia definida como cincia e o bilogo como cientista. Mas no assim com a filosofia. Questes como liberdade, conhecimento,

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    verdade, imortalidade, mesmo tais questes e temas a gente os pode tratar de todo sem filosofar. Pode trata-los pensando que filosofa e no entanto, no o faz. As questes no entanto tambm no contradizem o filosofar. Lidando com todos eles tambm possvel que a gente filosofe. Mas essas questes e esses temas no bastam como critrios do processo da ao do filosofar. Assim, portanto, como determinadas matrias, tarefas, temas no caracterizam o filosofar, assim o filosofar no exige nenhum tema determinado a partir de si, e possvel por princpio filosofar com todos os objetos. Portanto, a gente no pode determinar a filosofia a partir da coisa, mas deve-se compreende-la a partir dela mesma, a partir do processo da sua ao.

    Mas como isso? O que a determina ento? Quando podemos dizer que o filosofar acontece, em lida com o que? Tentemos uma primeira insinuao de uma resposta pela continuao do pensamento negativo. Portanto, no este ou aquele objeto, no um determinado catlogo de problemas perfazem o filosofar, pois todos esses objetos, problemas, tudo quanto podemos descrever e abordar, j esto de antemo colonizados, localizados num determinado cho da acessibilidade, da tematizabilidade, pr-compreensibilidade, pois se ento eu quero comear a filosofar, pelo fato de eu remexer o problema da liberdade, devo j saber, o que isso, a liberdade. Seno no poderia sequer me mover na direo coisa no propsito de filosofar. Portanto, j o propsito de filosofar pressupe uma situao de fundo, que atou a mim e o meu objeto numa comunidade. Quem, porm, funda essa comunidade, donde ela vem? O que a justifica? Como ela parece? Como est ele constitudo, esse cho, sobre o qual eu j devo me achar com esses problemas que deveriam presumivelmente constituir a filosofia?

    Essas perguntas todas, no so tambm elas uma pergunta e no seria esta pergunta mais radical, anterior e fundamental do que a outra que se dirige a um determinado problema, justamente a este problema preestabelecido? Quem coloca esta pergunta? Como e caracterizada essa pergunta? Vamos dar um exemplo: Ns temos um determinado grupo de objetos, caracterizados de tal modo que se destacam do outro grupo de outros objetos. Assim podemos aqui falar de filosofia, ali talvez de Psicologia, acol de pedagogia e historiografia etc. Para que pudssemos estabelecer diferenciao, necessitamos de uma base, um fundo de referncia para comparao, que me abarca a mim e os objetos, para que eu possa me decidir na escolha. E agora a pergunta: e o que isto? No seria isto propriamente o tema ordenado filosofia e a ela reservado? Se isto o tema da filosofia, ento se torna claro que no nenhum tema que a gente pode trazer diante de si ou que possa ter diante de si; pois, ter diante de si significa justamente que est estabelecido: em contraposio a mim, i. , portanto, colocado sobre esse fundo que justamente tema propriamente da filosofia. Mas, se assim que este fundo deve ser visto como o tema propriamente considerado filosfico, e ao mesmo tempo e isto que no vem diante de ns, que de modo algum ocorre diante de mim como simplesmente dado, no deveramos ali suspeitar que se trata do cho que deve ser criado? Portanto, eu no o acho de antemo. Como ento? Como o encontro ento? No poderamos supor, sim experimentar uma vez, experimentar em pensamento, se isto no algo que ao mesmo tempo criado; pois este cho no propriamente algo, sobre o qual eu estou, mas este cho o que me caracteriza o ntimo de mim mesmo. Se, porm, eu sou isto, que se coloca, pois, eu sempre colocao de si mesmo, e este cho que o mais ntimo, ento ele ao mesmo tempo o criado por mim.

    No estou seguro que tudo isso pode ter ficado evidente nessa srie de argumentaes, como elas se deram no momento. Eu parto disso que o eu constitudo por uma colocao de si mesmo. Isto bem claro: o que captamos em cada experincia de si

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    mesmo sem mais. Isto no significa que a gente se criou em fim primeiro a si mesmo no sentido ntico, mas se trata de uma colocao de si mesmo no sentido ontolgico na forma de que, eu assim como eu me acho, posso existir de modo que eu me acho diante do outro, isto quer dizer exatamente, me contraponho de encontro ao outro. O ato da colocao bem simplesmente isto que no entendimento usual chamamos de ateno. Postura de ateno, no simplesmente apenas boiar num acontecer, mas notar o que ali acontece, pressupe um a-tender, e esse a no outra coisa do que o momento de colocao de si mesmo. O exemplo, o mais ntido disso tudo ouvir msica: eu ouo msica de lazer ou algo semelhante, sem que eu dela me aperceba realmente, embora eu escute todos os sons. Eu deles no me apercebo, mas eu deixo-me levar simplesmente como que boiando nesse suceder musical e p. ex somente me apercebo dela quando a msica interrompida, abruptamente. Durante a vivncia musical eu posso ligar e desligar. Enquanto estou desligado escuto qui tudo, mas dele no me apercebo, ele no atua em mim, embora esteja ali dentro perfeitamente e ele em mim.

    Justamente essa identidade dissolve (auflsen = Pode significar tambm desatar, libertar) a colocao do eu mesmo.

    Vem ento o ligar, que consiste nisso, que eu me coloco e somente ento atravs desse colocar vou de encontro ao que ali est e a partir desse ir de encontro, eu me recolho para fora do acontecer, me coloco e desse colocar-me surge o de-encontro-contraposto, que ento me permite aperceber a coisa como o que ela . Esse colocar-se um desempenho, uma efetivao do empenho. interessante se observar quanto tempo consigo manter-me na ateno.

    Jaz assim ao eu, no seu fundo, uma colocao de si, um posicionar-se, i. , um criar. O que propriamente criado, se eu me coloco? O que isto que eu coloco? Eu no coloco um determinado contedo ntico, mas sim, o que eu propriamente coloco uma base de compreenso, i. , ali-contra (Dawider), por-sobre-para-alm algo pode me en-contrar, eu me coloco como o ali-contra de objeto e sujeito. Eu no sou o sujeito, que ento se senta em contraposio de encontro a algo, mas eu sou o aberto estar-ali-contra-posto ele mesmo; e em me colocando como tal eu me torno sujeito. Portanto, este cho jamais objeto, nem to pouco algo que possa ser assinalado simplesmente como Sujeito, mas o aberto que lana o um-com-outro-mutuamente , um lance que se cria, se faz, que tem o carter do colocar-se do eu. Fichte diz: agenciao efetiva (Tathandlung), ao operativa, a mais originante, que mais originria do que um fato (Tatsache), pois todos os fatos pressupem esta agenciao efetiva originria-originante, que faz saltar e ao mesmo tempo cria o cho, sobre o qual este e aquele fato pode achar o seu lugar.

    Se, agora, a filosofia isso que dissemos, se ela se ocupa com essa ao efetiva, ento ela tem a ver e muito com a ao criativa, com o criar. Ela no contemplao, teoria, mas poiesis: e-fectivar, trazer para fora, fazer surgir e qui fazer surgir um compreender. Essa compreenso de filosofia como ao criadora seria provisoriamente a primeira caracterstica do conceito da filosofia, de cujas conseqncias no podemos agora ter superviso, a saber, ela fazer surgir o lance de fundo da base do compreender. Usualmente colocamos um cho, o qual no lanamos propriamente nem o temos lanado, pois por assim dizer, ele j estava ai por si. Por isso, a compreenso sobre a qual nos repousamos normalmente a obviedade, a compreenso bvia, ao passo que a compreenso da filosofia absolutamente no-bvia, isto que o criar, que est tambm na obviedade, prpria e primeiramente deve efetuar, portanto criar o criar do criar, portanto criar realmente efectuado.

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    Esses pensamentos um tanto complicados foram expostos para justificar o que pretendemos nessa preleo de filosofia, a saber recorrer a dados e fatos, provenientes da arte, e da histria da arte. Pois, se a filosofia originariamente to potica, de tal sorte que ela mais caracterizada por esse comportamento originariamente potico, criativo e ponente do que pelo puro contemplar, puro receber o que vem de encontro, ento deve haver no que chamamos de obras de arte contedos filosficos. Mas no contedos acrescentados de alguma maneira a ela ou nela projetados, mas sim assim de tal maneira que precisamente perfazem a essncia dessa obra e da arte. Assim, deve ser possvel lidar com obras de arte e da histria da arte como lidar com os textos da histria da filosofia. algo deprimente, observar que geraes inteiras de historiadores da filosofia, juntamente com bibliotecrios, tenham deixado se prescrever a que eles devem se ater suas pesquisas. Tudo que est no setor da filosofia vale como texto da histria da filosofia e o que ali no est, no pertence filosofia. Isso acontece ento, quando a gente determina a filosofia a partir de uma moldura temtica, da qual so determinadas todas as cincias. No momento em que a gente observar que a filosofia no pode ser determinada a partir de padres temticos, mas a partir da dinmica da criatividade, torna-se impossvel distinguir e falar a modo de rubricas de objetos e fontes filosficos, prescritos de antemo de modo bem determinado, mas pode-se incluir ali tudo, ao menos tudo isso que caracterizado, no por uma compreenso preestabelecida, portanto pela obviedade, mas pela agenciao efectiva criativa da compreenso. Assim, portanto, pode-se entender por uma obra de arte, no o que veste simplesmente com certa configurao, de uma certa visibilidade, uma coisa j interpretada, mas que atravs do modo de configurar cria um modo de ver, que ao mesmo tempo um modo do compreender. Assim considerada, a obra de arte no se diferencia do pensamento filosfico; deixa-se con-verter sem mais de um domnio para outro, o de filosofia, e vice-versa.

    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 5

    (1) Continuamos na leitura do texto caminho do campo. A dificuldade que nas sesses anteriores estava presente, embora no a tenhamos tematizado especialmente, persistia, a saber, o que tem a ver todas essas descries do caminho do campo com a fenomenologia e mtodo fenomenolgico. Assim, poderamos perguntar: o que tem a ver as cenas da terra natal de Heidegger com as questes fundamentais da filosofia? Ou talvez nesse caminho do campo Heidegger no mais estaria interessado nessas questes objetivas e universais da filosofia e das cincias, mas sim com vivncias e recordaes da sua infncia, ele que est numa idade em que a maioria das pessoas pensa na sua velhice e no seu fim vindouro Usando jargo filosfico, poderamos formular a nossa dvida dizendo: De que se trata no caminho do campo, trata-se de uma dimenso ontolgica ou apenas subjetivo-pessoal, privativa? Heidegger chamou a fenomenologia de ontologia fundamental no Ser e tempo. Em vrios lugares de suas obras Heidegger nos mostra como entre os gregos antigos a palavra fenmeno (phainmenon; phainesthai) dizia a mesma coisa que n, on-tos, a saber o ente, o em sendo. (Da phainomeno-logia = onto-logia!). Acontece que usualmente, i. , no uso da tradicional ontologia e metafsica moderna, ente e ser so termos cujo significado lgico. O que quer dizer, de que se trata quando aqui dizemos que o significado usual dos termos ente e ser lgico? Significa que o ente foi reduzido a ob-jecto (o que vem de encontro a partir e dentro da posio como projeto). O ser, ou melhor, o modo de ser de um tal ente ob-jecto pura posio. Esse modo de ser da pura posio aparece no da cpula do juzo, cujo esquema pode ser assinalado como S P e corresponde ao esquema do ser do objeto, a objetividade (S O) O conceito do ser da ontologia tradicional se

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    refere ao sentido do ser desse da objetividade. Aqui ser, ao significar pura posio no possui nenhum contedo, no significa nada a no ser que pura posio. Aqui necessrio perceber-se com preciso toda prpria que esse puro movimento de se pr, a pura posio no tematizada quando dizemos , ente, em sendo, ser, e j interpretada como ente posto, como contedo formalizado como ocorrncia, como o simplesmente dado, como objetividade. De tal modo que pode surgir uma exclamao: Por que h simplesmente o ente e no antes o nada?5 O que denominamos de reduo fenomenolgica no outra coisa do que suspender, pr entre parnteses essa hipostatizao que se d na e da pura posio para a entidade formal sem contedo da pura ocorrncia do simplesmente dado, em todas as realizaes da realidade de tal modo que a realidade s vem fala, vem luz no puro mdium (Grundstimmung = tonncia, afinao do fundo) do nada a no ser a pura disposio da espera, recepo, cuidado no encaminhar se, seguindo os fios de meada (sentido do ser = Sinn vom Sein = sinnan = viajar) que quais trilhas e sendas abrem cada vez novas paisagens, mundos de realizaes da realidade como mundos, sob o toque do destinar-se da insondvel possibilidade de ser. Esse puro mdium o caminho do campo, o ontolgico do fundo das constituies das paisagens que no jargo da fenomenologia se chama: exsistncia, a saber: ser-no-mundo: Da-sein = ser-ai = pr-sena. (2) Isto tudo significa que todos os nossos encaminhamentos, abordagens e interpelaes objetivas e objetivantes, quer na vida, quer nas cincias, so posicionamentos que esto fundados na hipostatizao entificante-objectiva da pura ocorrncia do simplesmente dado. Essa plataforma formal entificada ou objetivada da compreenso lgica do sentido do ser6, se nela atuar a fora de-construtiva da Reduo fenomenolgica, h de perceber que a positividade dos nossos saberes e das nossas cincias repousa num abismo, donde e em cuja possibilidade reside o fundo das suas fundamentaes e coerncias lgicas cada vez prprias. (3) Tomemos um exemplo. O olhar da me que protege e cuida o mundo dos sonhos dos jogos das crianas. No olhar da me est implicado: o olhar ocorrente, existe. O olhar existente da me (me ocorrente, existe) (nesse ocorrer, nesse existir h diferena de prioridade ou densidade da entificao: me ocorrente mais densamente do que olhar de tal sorte que o olhar pertence me, da me). Esse processo de adensamento e rarefao da medida de realidade enquanto quantificao da ocorrncia o posicionamento, o fundamento, a plataforma sobre a qual se do as conexes das diferenas de cada objeto, assegurando-se assim a unidade, o conjunto. Mas nesse asseguramento, o que d o tom fundamental j um primeiro produto geral de uma determinada pura posio, de tal modo que a dinmica da ao originariamente criativa no se pe, no se coloca em questo, i. , no est no ponto de salto da ecloso do mundo, mas se transforma em primeira camada fixa de uma construo que no se percebe enquanto a pura disponibilidade do ponto de salto, esquece-se que pura posio e se interpreta como fundamento, causa, como o sentido do ser da ocorrncia, da neutralidade geral da objetividade que empresta o carter de realidade aos entes; dos entes (os em sendos) que se transformam em objetos dessa fundamentao e uniformizao objetivante e objetiva. Os entes nas suas diferenas so como que encaixotados dentro da quadratura formal do sentido do ser como ocorrncia factual, reprimidos nas suas diferenas, se retraem e no aparecem em sendo cada vez salto do vir luz da estruturao do ente no seu todo como ser-no-mundo. Husserl chama essa impostao objetivante de impostao natural ou crena na realidade. A reduo 5 HEIDEGGER, Martin. Introduo metafsica. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1987, p. 33.

    6 Essa plataforma da compreenso, portanto, somos ns mesmos.

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    fenomenolgica suspende, pe entre parnteses a vigncia, a validez dessa hipostatizao do como ser da objetividade, mostrando que ela, a hipostatizao, j pro-ducto de uma presena anterior e originria, a saber da pura posio que na fenomenologia de Husserl se chamou inicialmente de intencionalidade e mais tarde de Vontade da evidncia apo-dctica e em Heidegger Da-sein, a saber a aberta (das Offene) como pura espera do inesperado, a clareira do ser, a pura dinmica criativa e ab-soluta do velar-se e desvelar-se (=verdade) do abismo da possibilidade de ser em multifrias ecloses da concreo dos mundos, i. , ente na sua totalidade. A fenomenologia assim entendida desfaz o feitio da dominao das estradas que rasgam paisagens, fazendo-as desaparecer na sua identidade diferencial, transmutando tudo em objetos concomitantes e componentes do seu traado retilneo e libertando cada ente como sendas e paisagens de um mundo cada vez seu, na variedade e riqueza de suas diferenas, todos eles unidos no mesmo mdium, na mesma toada de repercusso do modo de ser, do methodos, a saber do caminho que no texto que estamos lendo caminho e ao mesmo tempo o desvelar-se da paisagem e seu modo de vir fala: o caminho do campo. E assim, podemos dizer por fim que o caminho do campo ele pura e limpiedamente ontolgico ou fenomenolgico. Ns que formamos um crculo e uma andana serpentina circular, mas marchamos valentemente na grande high way, na estrada poderosa das cincias e filosofias, no poderamos ficar mais claros e ntidos na inquietao de uma questo ou da busca, do sentido do ser dos fundamentos das nossas posies de incio, l onde, se cavarmos um pouco mais para o fundo, pressentimos de sbito e de todo que essa pretensa superfcie segura e firme das pressuposies fundamentais da nossa positividade cientfico-filosfica est por um fio no nada abissal da insondvel e inesgotvel possibilidade do sentido do ser que sempre nova e de novo nos envia acenos para o acordo e o despertar espera do inesperado. Assim estamos no methodos, no elemento, no mdium da coisa, i. , causa ela mesma da fenomenologia.

    Fragmentos de reflexes fenomenolgicas 6

    1. Diz Heidegger: O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e grande.

    () O perigo iminente o homem de hoje ficar surdo linguagem do caminho, cabendo-lhe nos ouvidos apenas o rudo das mquinas que se lhe afiguram, ento, como a voz de Deus. E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado, o simples parece uniforme. O uniforme causa tdio e nusea. Os entediados pela nusea s acham monotonia sua volta. O simples j se retirou. Sua fora silenciosa sucumbiu (versiegt).

    Nesse trecho onde no caminho do campo se fala do simples, para nos prepararmos a falar mais diretamente do Simples que guarda na verdade o enigma do que permanece e grande, conversamos longamente sobre a situao do que na fenomenologia poderamos denominar de desolao da desertificao do nihilismo europeu e ao terminarmos o encontro, foi proposto pelo coordenador do nosso crculo fenomenolgico, frei Marcos Aurlio que nos preparssemos para o seguinte encontro, cada qual de ns, tentando responder a pergunta: haveria uma ligao mais ntima entre a compreenso mais prpria do simples e essa desolao? E, se houver, em que sentido?

    Essa proposta foi feita para que a nossa compreenso do que seja simples no se incline e decaia na compreenso antropolgica, psicolgica, mas permanea com rigor: ver simples e imediato o surgir do fenmeno.

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    Usualmente, achamos tudo isso um tanto ridculo ou exagerado. Para que essa acribia sofisticada da fenomenologia, a qual nem sequer os prprios fenomenlogos conseguem manter assim nesse modo purista. O nosso bom senso nos diz: por que no pode ser psicolgico? Antropolgico? No tenho as coisas imediatamente diante de mim, no to simples admitir a coisa ela mesma ali como ela me aparece? Por que tanto medo sofisticado do realismo simples, aqui e agora, concreto?

    Essa macia evidncia da captao da realidade em si, anterior a toda e qualquer captao nossa, essa crena na realidade no para ser negada. para ser admitida. A questo no consiste em admitir ou negar, ter certeza ou duvidar da existncia da realidade. Trata-se simplesmente de examinar se o que vejo evidente ou no. Se aparece ou se oculta. E trata-se de ver suas implicaes. Trata-se de ver simples e imediato ou deixar ser o ente no seu ser: E-videri (voz medial, indica a dinmica da presena, da vigncia de e para si nela mesma). O que aqui foi dito terrivelmente insuficiente e mal dito para dizer de que se trata. A tentativa de mostrar na e-vidncia deve ser repetida sempre de novo. Tentemos pois dizer a questo de um outro modo. E isso repetindo o que j foi dito muitas vezes, a saber, indicando o que nos bloqueia de ver simples e imediatamente. Um dos itens que nos bloqueia e impede de ver simples e imediatamente isso que ns pensamos ser simples e imediato, mas que de fato, longe de ser simples e imediato, altamente complexo e mediado em vrias camadas. Com outras palavras, confundimos facilmente o grosso modo e o em geral com simples e imediato.

    2. Suponhamos que os entes sejam como que novelos de linhas to infinitesimalmente finas que esto enroladas em si e ento, vistos de fora parecem este rolo, aquele rolo, indefinidamente. Cada qual diferente no sentido de um est duro como uma pedra, outro cheio de fiapos pontudos como um ourio, outro achatado como figo esmagado, outro fofinho etc. Algum que quer esses novelos todos como fios enrolados e quer os desenrolar e recuperar os fios para faz-los feixes e fios mais grossos e resistentes e assim tecer tecidos etc., pega a ponta do fio que aparece num lugar do novelo e ento seguindo esse fio condutor vai desenrolando todo o novelo. Nesse trabalho paciente vai ter que desembaraar ns, cruzamentos de fios, fios rompidos que se enrolam com outros fios de uma camada mais funda etc. etc.

    Esse trabalho de desenrolar o novelo cada vez enrolado, compactado e emaranhado de modos diferentes, seguindo a conduo que est sugerida na ponta do fio da meada o movimento de de-construo, para se chegar ao simples elementar de toda e qualquer coisa j constituda. Se compararmos os entes que nos cercam e inclusive a ns mesmos com os novelos enrolados de acima, os entes no aparecem neles mesmos a partir deles mesmos, mas j de alguma forma defasados, emaranhados por extrapolaes, hipostatizaes indevidas, entulhados sob categorizaes de outras dimenses etc. e principalmente j fixados e congelados num determinado sentido do ser que no deixa ser o ente no prprio do seu ser como mundo. Isto significa que supostamente, no realismo usual, o que pensamos que se d de imediato, direta e simplesmente no se d de modo algum direta e imediatamente, mas necessita de um cuidadoso e paciente trabalho de desconstruo para que a coisa ela mesma se apresente evidncia no seu prprio. A maior parte do trabalho da fenomenologia essa desconstruo que prepara o evidenciar-se do fenmeno. Mas aqui para poder trabalhar na desconstruo se necessrio que todo esse processo de decostruo se d no mdium do ver simples e imediato que a pura disponibilidade de receber, que Husserl chama de transparncia.

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    3. A seguir, tentemos dar um exemplo de desconstruo, no diretamente, mas como que assim de tabela, falando da coisa ela mesma, que uma expresso que entra no slogan que caracterizou a fenomenologia, a saber, Zur Sache selbst, coisa ela mesma. Examinemos pois rapidamente o que entendemos por coisa, pois para entender o que coisa temos que lidar com o processo de deconstruo.

    Se perguntarmos: O que a coisa, ela mesma, de imediato, no cotidiano, respondemos: coisa isto e aquilo que est ali diante de ns, dado de antemo como objeto, disposio da ao de visualizao e de manipulao. Nessa ao, lidamos com uma poro de coisas. Os termos afins ao termo coisa que tambm indicam uma poro de coisas so ente, objeto, algo. Quando dizemos uma poro de coisas, queremos dizer uma infinidade de coisas. Coisa, portanto, indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrs do outro, cada algo, sem exceo, na sua totalidade. Portanto, coisa tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, disposio da sua atuao, inclusive o sujeito humano ele mesmo. E at ao nada podemos chamar de coisa, enquanto ele passvel de ser nomeado como coisa. Assim, dizemos: aquela coisa chamada nada no est com nada. Assim, coisa, objeto e ente so usados ordinariamente como sinnimos. Enquanto tais, indicam, ao mesmo temo, o conjunto todo do que e pode ser, na sua generalidade abstrata e formal e ao mesmo tempo cada ente real e possvel, em concreto, aqui e agora. Nesse sentido, coisa, embora indique tambm a generalidade abstrata e formal, se inclina para a direo de cada coisa, em concreto aqui e agora. Assim, nessa inclinao coisa ela mesma parece dizer: esta realidade concreta e real e nada de abstrao, fantasia ou imaginao de coisa que longe do que de fato. Em portugus, na gria do uso popular, p. ex. em vez de coisa, temos os termos troo e trem. Neste, aparece de modo mais palpvel a ambigidade acima conotada pela palavra coisa. Mas, quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto perplexo, pois nos soam to concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensao de ter a coisa ela mesma diante da gente. No entanto, quando se pergunta de que se trata, nada dizem a no ser um indeterminado algo, indefinido, mas a modo todo e bem concreto, vagamente! Na fenomenologia, usualmente os termos acima mencionados como similares ou iguais coisa, todos eles de alguma forma, embora cada qual a seu modo, dizem o que na filosofia se costuma denominar o ser e o ente, e a questo do sentido do ser e suas implicncias. Na fenomenologia, pode ser que o slogan Zur Sache selbst se refira de alguma forma ao retorno a essa questo, como coisa ou causa da filosofia.

    3.1. Coisalidade

    Entrementes, como dissemos acima, h coisas e coisas, em diferentes modos. A expresso h coisas e coisas, no entanto, quer nos dizer que a coisa possui sua coisalidade. Para compreender de que se trata nesse negcio de coisa e sua coisalidade, vamos mo de dois textos, digamos banais, tentar ordenar e fixar melhor que coisas e quantas coisas nos vm mente quando falamos de coisa, usualmente.

    3.1.1: O primeiro exemplo uma descrio acerca da pesca, escrita por Tokaishige Sadao, um chargista japons, hoje bastante conhecido na mdia do seu pas. No pequeno livro Viso nipnica do Sr. Jooji, na primeira estria, intitulada Modinha pesqueira do Pacfico implica ele:

    Antigamente, era s sair um tantinho fora do subrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma poro de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar bem barato, anzis e

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    varas de pescar e chapu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um, dois, trs!, se abancava beira do riacho, e, pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, no vai assim to facilmente. No d para ir pescar, assim, sem mais nem menos. domingo. Voc dormiu bem, acorda tarde. O sol est j h tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, d-lhe a vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os ps num par de velhas sandlias, e l vai voc loja de materiais de caa e pesca, comprar anzis, vara e chapu de palha e pedir conselho do vendedor. E, ento, ali que voc sente na carne a vergonha de ter sido to descuidado, frvolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatrio: O que o Sr. quer pescar? Ora, quero pescar peixes! A pesca no para pescar peixes? Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcao grande, ou na canoa, ou simplesmente margem do lago e do rio? E que espcie de peixes, o Sr. quer pescar, salmo, atum, pescado, enguia?, lambari?. Voc um tanto deprimido sob a presso de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: Pois, eu quero s pegar peixes..., pode ser bem pequeninos, pensei s pescar assim, assim ... e comprar anzol e vara de pescar...! O vendedor competente, com rigor e preciso, no me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: H anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que o sujeito e agente da pesca, se no determinar com maior preciso e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e no me disser o que, como e onde quer pescar, no lhe posso ajudar em nada, nem sequer vender-lhe os materiais de pesca e seus acessrios. Hoje, no mais possvel, nem permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim to facilitados, numa postura vaga de quero pescar apenas peixes!.

    Nessa descrio da pesca temos o peixe, o anzol, a vara de pescar, o chapu de palha. Portanto uma poro de coisas. Mas essas coisas para o pescador amador esto diante dele assim de modo geral, embora de modo concreto e vivo, no seu cotidiano como dentro da sua perspectiva, assim mais ou menos, na medida do uso, segundo o escritor, dentro da existncia amadora japonesa de antigamente, de tal sorte que perguntado acerca de todas essas coisas, o amador, pescador do fim de semana, no sabe responder com exatido, o que, como, onde pescar. Pois na paisagem da existncia amadora de antigamente, no pescar peixes, com anzol, linha, vara de pescar e com chapu de palha, todas essas coisas, recebem seu significado bvio, cada coisa no seu lugar, nesse modo de ser solto, meio espontneo, mas muito bem adaptado realidade. O que, porm, no haveria de acontecer, se mesmo na existncia japonesa de antigamente, se tratasse de uma pesca profissional, embora por sua vez o carter profissional de antigamente tivesse o seu modo de ser todo prprio artesanal, cunhado pela existncia japonesa de antigamente e bem diferente da existncia cunhada pelo profissionalismo tcnico cientfico, insinuado pela estria de Tadao. Alis, profissionalismo tcnico cientfico no permite ser solto e descuidado mesmo no amadorismo.

    Assim, dizer, por exemplo, como na caracterizao da coisa acima, que coisa isto que est ali diante de ns, dado de antemo como objeto, disposio da ao de visualizao e de manipulao, parece se tornar insuficiente, parece no dizer muita coisa, e ao mesmo tempo dizer tudo, mas de um modo assim e assim. O mesmo se pode dizer da outra caracterizao acima mencionada da coisa. Coisa indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrs do outro, cada algo, sem exceo, na sua totalidade. Portanto, coisa tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, disposio da sua atuao, inclusive o sujeito humano ele mesmo. Se observarmos a diferena da impostao diante da coisa chamada pesca e acessrios, entre a mirada do vendedor especializado de hoje e do pescador amador que brinca de pescador, como antigamente, descrita na estria acima, as caractersticas dadas por ns acima acerca da coisa parecem muito semelhantes captao vaga e indeterminada do pescador amador de antigamente. Para que a captao do que seja coisa tenha a preciso e determinao

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    da maneira de captar a pesca e seus acessrios, conforme a do vendedor especialista e competente da estria, necessrio mirar a coisa, enquanto esta coisa e aquela coisa, a partir do ponto de vista, da sua finalidade, da sua utilidade, e a distinguir dentro de determinados padres de classificao que so derivados segundo o ponto de vista da sua finalidade e utilidade. Entrementes, aqui no que se refere preciso e determinao a partir da finalidade e utilidade, se necessita de uma especificao mais acurada. Pois o que foi dito da determinao da coisa a partir da finalidade e da utilidade, segundo a descrio feita da pesca por chargista japons, vale sem dvida para os materiais de pesca como anzol, linha, vara, isca etc., portanto para as coisas co