fpcm - causa e fim do negócio jurídico

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14.1. DISTINO ENTRE CAUSA E FIM DO NEGCIO JURDICO.Dentre os diversos sentidos da expresso causa do negcio jurdico1 (causa finalis)2, a dogmtica moderna emprega-a em duas acepes principais, ambas de perfil objetivo: funo econmico-social (tpica ou abstrata) e fim individual ou concreto (tambm dito fim prtico3).

VITTORIO SCIALOJA tido como o precursor da doutrina da causa-funo do negcio jurdico.4,5 Deve-se a BETTI, contudo, a difuso da teoria da causa como funo econmico-social prpria do tipo negocial (funo abstrata ou tpica). Para ele, a causa a sntese dos elementos essenciais do tipo de negcio jurdico.6

1

Vide, sobre o tema, na doutrina nacional: ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico: existncia, validade e eficcia, cit., pp. 137 a 159; ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 121 a 129; CLVIS DO COUTO E SILVA, A obrigao como processo, So Paulo: Bushatsky, 1976, pp. 43 a 69; LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO, Doao com encargo e causa contratual, Campinas: Millennium, 2004; PAULO BARBOSA DE CAMPOS FILHO, O problema da causa no Cdigo Civil brasileiro, So Paulo: Max Limonad, [s.d.]; e TORQUATO CASTRO, Da causa no contrato, Recife: Imprensa Universitria, 1966. 2 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO aponta, em bela sntese, ao menos cinco sentidos diversos do termo causa: (i) fato jurdico (causa efficiens); (ii) motivo, podendo ser psicolgico (causa impulsiva) ou objetivo (justa causa); (iii) causa da juridicidade dos atos humanos (causa civilis ou causa naturalis); (iv) causa de atribuio patrimonial (sendo as mais importantes: causa credendi, causa solvendi e causa donandi); e (v) causa finalis, ou causa do negcio jurdico propriamente dita. Pode a ltima ser entendida como causa concreta ou como causa abstrata, isto , causa tpica (Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 128 e 129). Tratamos aqui exclusivamente da causa do negcio jurdico, ou causa finalis. 3 Prefere-se a expresso fim prtico expresso fim econmico ou fim econmico-social, porque o fim prtico no precisa, necessariamente, ser no-jurdico: a aquisio do direito subjetivo de propriedade [no exemplo dado pelo autor, de um contrato de compra e venda] tem, de certo, ndole econmica e social, embora no deixe de ter, tambm, carter jurdico (JOO ALBERTO SCHTZER DEL NERO, Converso substancial do negcio jurdico, cit., p. 64, nota 30). 4 GINO GORLA, El contrato. Problemas fundamentales tratados segn el mtodo comparativo y casustico, tomo I, Barcelona: Bosch, 1959, p. 247, nota 5. 5 preciso, portanto, distinguir a funo, o escopo do negcio jurdico, dos motivos impulsionadores, determinantes da vontade do agente do prprio negcio. O escopo do negcio jurdico deve ser considerado objetivamente: a compra e venda tem por escopo a troca entre mercadoria e dinheiro, e esta troca to socialmente til que deve ser tutelada pelo direito. Quando o nosso olhar se detm neste lado objetivo do negcio jurdico, sobre esta causa (porque esta palavra, que possui muitos significados diversos, nas nossas fontes, serve precisamente para indicar tambm este escopo, esta funo do negcio jurdico), no pode haver confuso entre a causa e os motivos que impelem o agente, motivos que, sendo representaes intelectuais internas, no podem certamente apresentar-se sob aquela forma objetiva (exterior frente ao nimo do agente), sob a qual se apresenta a causa, entendida como escopo, como funo do negcio. (VITTORIO SCIALOJA, Negozi giuridici, Roma: Foro Italiano , 1933, pp. 89 e 90). 6 A causa seria, pois, uniforme e constante em todos os negcios concretos que pertencem ao mesmo tipo (BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., pp. 180 a 183).

A doutrina bettiana da causa-funo tpica foi muito atacada e hoje constitui verdadeiro lugar-comum propugnar a sua substituio pela noo de causa concreta. Tais crticas tiveram, inicialmente, natureza ideolgica. Isso porque a doutrina da causa-funo tpica teria servido aos interesses do regime fascista, na medida em que a causa funcionaria como instrumento de controle da autonomia privada.

Com efeito, para BETTI h, ao lado do negcio jurdico com causa ilcita (negcio fraudulento, contrrio a normas de ordem pblica etc.), o negcio sem causa idnea. Esta ltima figura compreenderia duas hipteses: (i) negcios tpicos que no desempenham, in concreto, a sua funo econmico-social tpica; e (ii) negcios atpicos que no tm por objeto interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurdico.7

Destarte, um negcio jurdico tpico ou atpico cujo escopo prtico mostre-se frvolo, ftil ou improdutivo, do ponto de vista da generalidade das pessoas, ser desprovido de causa idnea, e portanto, na tica bettiana, no merecer tutela jurdica.8

Insurgindo-se contra a teoria da causa-funo tpica, GORLA denuncia o esprito de dirigismo econmico que a animaria, pelo qual o Estado se arrogaria a posio de controlador da iniciativa privada em vista do bem-estar social. Para ele, admitir uma norma de interveno na autonomia privada to genrica quanto a que estipula o controle da utilidade social do contrato equivaleria a destruir o prprio instituto e sua funo essencial.9

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Esta exigncia coaduna-se com o item 2 do art. 1.322 do Cdigo Civil italiano: Art. 1322. Autonomia contratual. [1] As partes podem determinar livremente o contedo do contrato nos limites impostos pela lei. [2] As partes podem tambm concluir contratos que no pertenam aos tipos que tm uma disciplina particular, desde que sejam dirigidos a realizar interesses merecedores de tutela de acordo com o ordenamento jurdico. No original: Art. 1322. Autonomia contrattuale. [1] Le parti possono liberamente determinare il contenuto del contratto nei limiti imposti dalla legge. [2] Le parti possono anche concludere contratti che non appartengono ai tipi aventi una disciplina particolare, purch siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo lordinamento giuridico. 8 BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., pp. 389 e 390. 9 El contrato, cit., pp. 265 e 266. Para a raiz histrica da doutrina da funo econmico-social, vide ainda GIOVANNI B. FERRI, Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., pp. 126 e 127.

Mais recentemente, ROPPO sustenta, a nosso ver com razo, serem merecedores de tutela todos os interesses que o ordenamento jurdico no desaprova como socialmente danosos e, portanto, no qualifica como ilcitos, ainda que socialmente fteis10.

A doutrina da causa-funo foi criticada, ainda, do ponto de vista tcnico. Nesse aspecto, assevera-se que a funo (tpica) termina por confundir-se com o prprio tipo negocial, mostrando-se inapta a resolver as principais questes endereadas causa e empobrecendo a considerao do negcio jurdico in concreto.11

Propende-se, ento, por uma viso concreta da causa, enquanto funo econmico-individual12 ou funo prtica do negcio jurdico.13

Com a elevao da funo concreta ao status de causa do negcio jurdico, surgem trs possibilidades terminolgicas: (a) referir-se a ambas as figuras como causas do negcio (causa abstrata ou tpica e causa concreta ou individual); (b)10 11

Il contratto, cit., pp. 365 e 366. ROPPO sintetiza tais crticas: Conceber a causa de modo assim abstrato e tipificado tem um primeiro inconveniente: se a causa a funo tpica, quando esta seja em geral aprovada pelo legislador que designa e regula o correspondente tipo contratual compra e venda, locao, empreitada etc. , da derivaria a improponvel conseqncia que os contratos legalmente tpicos tm sempre, por definio, causa lcita; e que a possvel ilicitude da causa diz respeito somente aos contratos atpicos. Mas h outro inconveniente: deixar de fora do horizonte da causa tudo aquilo que em relao ao particular contrato de que concretamente se discute excede as linhas standard do tipo, e individualiza a especfica operao perseguida, significa empobrecer e enrijecer a considerao do contrato, esterilizar elementos que, ao contrrio, merecem relevncia, e assim precluir o mais adequado tratamento da fattispecie. Hoje se considera mais aderente s exigncias de uma evoluda teoria e disciplina do contrato conceber a causa como causa concreta: no como razo que abstratamente justifica cada contrato pertencente ao tipo de contrato em exame (troca entre coisa e preo, se se trata de venda); mas como razo que concretamente justifica o particular contrato em exame, luz das especificidades relevantes que o conotam (a troca entre aquela coisa e aquele preo, no particular contexto das circunstncias e finalidades e interesses em que aquelas partes a programaram). (Il contratto, in Trattato di diritto privato Iudica-Zatti, Milano: Giuffr, 2001, p. 364). 12 GIOVANNI B. FERRI, Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, Milano: Giuffr, 1968, pp. 370 e 371. 13 BIANCA sinaliza a transio doutrinria e destaca o papel da causa concreta como critrio de interpretao, qualificao e adequao do contrato: Abandonada a referncia causa tpica, como funo abstrata do negcio, necessrio antes reconhecer na causa a razo concreta do contrato. Em tal sentido, decisivo observar que a noo de causa como funo prtica do contrato pode ter relevncia somente quando se determine a funo que o contrato singular est dirigido para atuar. Ora, com respeito ao contrato concreto, o que importa saber a funo prtica que as partes efetivamente atriburam ao seu acordo. Pesquisar a efetiva funo prtica do contrato quer dizer, precisamente, pesquisar o interesse concretamente perseguido. No basta, isto , verificar se o esquema usado pelas partes compatvel com um dos modelos contratuais, mas preciso pesquisar o significado prtico da operao com relao a todas as finalidades que ainda que tacitamente integraram o contrato. (BIANCA, Diritto civile, volume 3, cit., pp. 452 e 453).

designar a antiga causa-funo como funo tpica e reservar o termo causa causa concreta; ou (c) manter o vocbulo causa em seu sentido tradicional, de causa tpica, substituindo a expresso funo concreta por fim do negcio jurdico. Optamos pela ltima, com o objetivo de evitar a polissemia do termo causa e em homenagem doutrina que dela faz uso.14

A doutrina alude, ainda, aos termos intento e escopo, ora designando elementos subjetivos muito prximos ao motivo, ora representando elementos objetivos que, por vezes, confundem-se com o fim do negcio jurdico.

No campo contratual, MESSINEO observa inexistir consenso doutrinrio quanto ao conceito de intento, apontando os seguintes sentidos: inteno, vontade prtica sem relevncia jurdica, causa em sentido subjetivo, persecuo consciente de um escopo e espcie de vontade, necessria para que surjam os efeitos do contrato. Seja como for, o intento sempre algo subjetivo15, referido aos contratantes. Distinguirse-ia, contudo, do motivo, pois este corresponderia fora impulsiva que determina a vontade e precede a formao do contrato, ao passo que o intento denotaria um sentido de futuro, uma direo da vontade ao resultado almejado. Assim como a causa, o intento teria ndole finalstica ou teleolgica.16

Em certos autores, no entanto, a noo de intento correspondeu a verdadeiro antecessor do fim contratual concreto.17 Assim, ao tratar dos contratos parassociais, GIORGIO OPPO referiu-se ao intento emprico como escopo comum atribudo em concreto pelas partes ao negcio, mesmo alm do esquema causal tpico, a integrar necessariamente, ainda que de forma tcita, o contedo negocial18. Posteriormente, ao analisar o elemento subjetivo da doao remuneratria, aduziu que o intento

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a posio, dentre outros, de ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 128 e 129. 15 BETTI, por exemplo, emprega a expresso intento prtico para designar o reflexo subjetivo da causa negocial (Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 183). 16 Il contratto in genere, in Trattato di diritto civile e commerciale Cicu-Messineo, Milano: Giuffr, 1972, tomo 1, pp. 134 e 135. 17 GIOVANNI B. FERRI, um dos principais defensores da causa concreta, aponta GIORGIO OPPO, PIETRO BONFANTE, ENRICO REDENTI, SALVATORE PUGLIATTI, ROSARIO NICOL e MICHELLE GIORGIANNI como autores que adotaram perspectiva semelhante sua (Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., p. 372, nota 61). 18 GIORGIO OPPO, Contratti parasociali, Milano: Francesco Vallardi, 1942, p. 77.

corresponderia ao escopo negocial concreto, ao escopo perseguido pelas partes com o negcio, funo concreta do negcio.19 Trata-se aqui, como se v, do intento comum e, como tal, objetivado.20

Por ltimo, a noo de escopo, de certo modo paralela de fim, adquire vrios sentidos, conforme o complemento que a acompanha. H escopo da parte ou do negcio, escopo concreto ou escopo tpico (neste ltimo sentido, equivalente a funo tpica21). MESSINEO observa que o escopo, em sentido subjetivo, seria sinnimo de intento; j o escopo, em sentido objetivo, seria a finalidade que o contrato est apto a alcanar, por sua conformao tpica, independentemente das partes.22

Parece prefervel, portanto, dada a polissemia dos termos intento e escopo, fazer uso da noo de fim do negcio juridico, enquanto distinta da funo econmicosocial tpica (causa do negcio, na acepo tradicional).

Vale notar, todavia, que a noo de fim do negcio jurdico no tem o condo de substituir a funo econmico-social tpica, mas, antes, de complement-la. A funo abstrata e o fim concreto reportam-se a objetos distintos (a primeira, ao tipo negocial; a segunda, ao negcio jurdico individual), sendo, como tais, inconfundveis e insubstituveis.

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GIORGIO OPPO, Adempimento e liberalit, Camerino: Edizioni Scientifiche Italiane, 1979, p. 174. Acrescenta o autor: Esta noo de intento, se no est ainda definitivamente estabelecida, nem em si mesma, nem em sua contraposio ao motivo, de um lado, e causa, do outro, , contudo, quase imanente doutrina do negcio jurdico. Desde a Venda de Bechmann [Der Kauf nach gemeinem Recht, II, System des Kauf nach g. R., 1884], autor que cunhou e introduziu na terminologia jurdica a expresso empirische Absicht [intento emprico], at a recentssima Teoria generale del negozio do nosso Betti, por meio das disputas sobre o intento jurdico e o intento emprico, mediante a teoria da construo jurdica e aquela prpria da interpretao, atravs da doutrina dos negcios indiretos e fiducirios, dos negcios atpicos, do negcio fraudulento, da coligao entre negcios, mediante muitos aspectos da teoria da pressuposio, da supervenincia e da simulao, uma noo tcnica de intento posta ou pressuposta, ainda que no sempre, e mesmo quase nunca, nitida e corretamente individualizada em suas relaes com o motivo, a causa e a prpria vontade. (ob. cit., p. 172). 20 O intento por vezes conceituado como a vontade dirigida ao escopo ou aos efeitos do contrato (SCOGNAMIGLIO, Contributo alla teoria del negozio giuridico, cit., pp. 215 e ss.). Este conceito parcialmente distinto do de OPPO, pois acentua o papel da vontade. 21 BETTI refere-se a escopo prtico tpico com o mesmo sentido de funo tpica do negcio jurdico (Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 182). 22 Il contratto in genere, cit., tomo 1, p. 112 e nota 66.

Em outras palavras, o papel do fim negocial integrativo e corretivo da causa (funo tpica), no plano do negcio jurdico in concreto, e no propriamente substitutivo desta.23

A funo tpica continua, portanto, tendo grande importncia, na dogmtica jurdica e na poltica legislativa, para boa compreenso de cada instituto e de cada tipo de negcio.24

O cotejo da funo do tipo negocial com o fim do negcio in concreto releva, no somente na interpretao, mas para a prpria qualificao negocial. Dentre inmeras outras situaes, a importncia do fim do negcio jurdico foi expressamente reconhecida em alguns dispositivos do Cdigo Civil, tais como o art. 170 (relativo converso substancial do negcio jurdico) e o art. 883 (sobre a impossibilidade de repetio de indbito quando o pagamento foi realizado com fim ilcito ou imoral).

14.2. IDENTIFICAOMERO MOTIVO.

DO FIM NEGOCIAL.

DISTINO

ENTRE FIM E

Dentre as inmeras virtualidades da problemtica atinente ao fim negocial, pe-se a tarefa de identific-lo. A misso rdua, pois demanda distinguir entre fim do negcio jurdico e mero motivo25,26, o que muitas vezes bastante delicado, especialmente quando o fim negocial no integra o contedo expresso do negcio jurdico.

23

O prprio BETTI, no entanto, j observava que a causa caracterstica do tipo abstrato a que o negcio pertence comporta e exige, em cada negcio concreto, uma especificao ou colorao concreta, adequada ao intento comum de suas partes. (Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 185). 24 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., p. 128. 25 Como observa BIANCA, a doutrina do fim ou causa concreta do contrato acarreta uma espcie de reproposio da questo dos motivos (Diritto civile, volume 3, cit., pp. 461 e 462).26

Atribui-se a BALDO a introduo do termo motivo (motivum) na linguagem jurdica, referindo-se passagem em que o jurista do sculo XIV afirma no ser a causa impulsiva, propriamente, uma causa, mas sim um motivo. Nesse sentido, FRANCESCO CALASSO (Il negozio giuridico. Lezioni di storia del diritto italiano, 2. edio, Milano: Giuffr, 1959, p. 302) e WERNER FLUME, que aduz: O termo motivo conservou-se at hoje. Com relao ao motivo fala-se tambm de uma causa remota. O motivo uma causa longnqua, enquanto no pertence ao negcio jurdico. No caso concreto, s vezes difcil decidir se um motivo impulsivo da parte tornou-se contedo da regulao jurdico-negocial, ou se permaneceu como causa impulsiva. (El negocio jurdico, cit., p. 200).

Muito embora a questo ainda esteja, em boa medida, em aberto na doutrina27, algumas observaes parecem possveis, sobretudo no mbito contratual, ao qual nos circunscreveremos.

A tradicional contraposio entre causa e motivo remonta importante distino intermdia entre causa impulsiva e causa finalis28, designando, a primeira, os motivos psicolgicos que impeliram cada um dos dois sujeitos e, a segunda, o fim ltimo perseguido pelo sujeito, por exemplo, na compra e venda, respectivamente a obteno do preo ou da coisa.29

A dicotomia medieval funda-se, de um lado, em um critrio temporal, pois a causa impulsiva refere-se a fatos passados e a causa finalis diz respeito a eventos futuros, e, de outro lado, no critrio da manifestao, base da clebre definio de AZO, pela qual a causa impulsiva o motivo no manifestado, in corde retentum, e a causa finalis corresponde a qualquer justificao expressa pelo sujeito.30

A contraposio entre fim e motivo corrente ainda hoje. Em conhecida monografia, GIOMMARIA DEIANA define os motivos como elementos psquicos que precedem e determinam o ato de vontade.31 Para o autor, dois so os requisitos cumulativos para a noo de motivo: (i) a natureza de elemento psicolgico inerente formao da vontade, consistente em representao intelectiva de fatos ou circunstncias; e (ii) a qualificao de elemento que precede e impulsiona ou determina o ato, tal como a fora propulsiva em relao ao movimento.32

27

SACCO/DE NOVA, Il contratto, in Trattato di diritto civile dirigido por Rodolfo Sacco, Torino: UTET, 2004, tomo 1, pp. 842 e 843. 28 Como aponta LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO, a escolstica foi influenciada pela doutrina aristotlica das quatro causas ou princpios, exposta no Livro V da Metafsica, a saber: (a) o material imanente a algo (como o bronze de uma esttua); (b) a forma ou modelo; (c) a origem da mutao ou do repouso de algo; e (d) o fim ou o objetivo da existncia de uma coisa. Da a quadripartio dos sentidos da causa em causa materialis, causa formalis, causa efficiens (ou impulsiva) e causa finalis (Doao com encargo e causa contratual, cit., pp. 8, 9, 26 a 28). 29 MICHELE GIORGIANNI, Causa del negozio giuridico (diritto privato) (verbete), Enciclopedia del diritto, tomo VI, Milano: Giuffr, 1960, p. 559. 30 ENNIO CORTESE, Causa del negozio giuridico (diritto romano) (verbete), Enciclopedia del diritto, tomo VI, Milano: Giuffr, 1960, p. 541. 31 Motivi nel diritto privato, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1980, p. 7. 32 Motivi nel diritto privato, cit., pp. 7 a 9. A definio criticada por ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, que a entende insuficiente por abranger somente os motivos subjetivos, sendo inapta, por exemplo, para

Modernamente, nega-se qualquer distino ontolgica entre motivos e interesses juridicamente relevantes. Motivos so interesses juridicamente irrelevantes33, na medida em que constituem interesses (necessidade, impulsos, fins) da parte que permanecem fora do contrato, pois no fazem parte da sua razo justificativa.34

Retomando, assim, a questo posta no incio, relativa distino entre fim e motivo, isto , entre interesses juridicamente relevantes e interesses juridicamente irrelevantes, usual afirmar que o interesse juridicamente relevante aquele que se objetivou, passando a compor o contedo do negcio jurdico ou, como diz a doutrina contratualista francesa, o champ contractuel (campo contratual).35

Ao contrrio, portanto, do motivo, que seria sempre algo de subjetivo, o fim (concreto) seria objetivo.36 O fato de se tratar de interesses individuais ou concretos no significa que se caia no subjetivismo.37

descrever os motivos do ato de uma pessoa jurdica , sugerindo substituir a expresso elementos psquicos por razes que levam o declarante a proferir sua declarao. Para o autor, h, ento, ao lado dos motivos psicolgicos, os motivos objetivos (razes objetivas que precedem e determinam a declarao negocial), sendo que estes caracterizariam dois tipos de negcios jurdicos: (a) negcios que se fundamentam no exerccio de um direito potestativo (so atos unilaterais com justa causa), tais como: a resoluo dos contratos sinalagmticos por inadimplemento; a revogao da doao por ingratido; a suspenso do comodato, por parte do comodante, antes do trmino do prazo contratual; e os casos de deserdao; e (b) negcios realizados em cumprimento de obrigao, dentre os quais se encontram os negcios jurdicos devidos, cuja funo de pagamento (v.g., outorga de escritura definitiva, realizada em cumprimento de anterior compromisso de compra e venda) (Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 210, 211 e 216 a 219). 33 Os motivos so os interesses que a parte tende a satisfazer mediante o contrato, mas que no integram o contedo deste (BIANCA, Diritto civile, volume 3, cit., p. 461). 34 ROPPO, Il contratto, cit., p. 377. 35 HENRI CAPITANT, De la causa de las obligaciones, Madrid: Gngora, [s.d.], p. 23; GHESTIN, Cause de lengagement et validit du contrat, Paris: LGDJ, 2006, pp. 111 e ss. Parece possvel afirmar que, por meio desta expresso, alude-se ao contedo contratual. 36 Tenha-se em mente, no entanto, a observao de JACQUES GHESTIN, para quem a integrao dos motivos ao contedo contratual, isto , o afastamento dos interesses em relao aos motivos pessoais e internos, mostra-se suscetvel de gradao, o que torna relativas, de certo modo, as prprias noes de subjetivo e objetivo (Cause de lengagement et validit du contrat, cit., pp. 111 a 115). No se deve esquecer, ademais, que alguns negcios jurdicos supem uma justa causa ou motivo objetivo (ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 210, 211 e 216 a 219) 37 PUGLIATTI j afirmara que a dicotomia subjetivo/objetivo nada tem que ver com a dicotomia individual/tpico (Precisazioni in tema di causa del negozio giuridico, Diritto civile. Metodo Teoria Pratica. Saggi, Milano: Giuffr, 1951, p. 112). Na doutrina mais recente, ROPPO afirma, decisivamente: Concreto no se identifica com subjetivo; a concretude pode (e aqui deve) declinar-se em termos de objetividade. Tudo isto remete noo de motivos do contrato, contrapostos sua causa. (Il contratto, cit., p. 364).

Mas em que consiste o critrio da objetivao ou contratualizao do interesse, empregado para diferir o fim dos motivos?

Em primeiro lugar, no basta que determinado interesse de uma das partes seja conhecido da contraparte, seja mediante deduo a partir das circunstncias, seja mesmo mediante declarao expressa por parte daquela. No obstante o referido conhecimento seja um indcio importante e, dependendo do caso, possa ser at mesmo decisivo, no , por si s, suficiente, pois nada diz acerca da valorao do interesse feita pelas partes.38

Assim que, se um indivduo adquire um determinado utenslio com o objetivo de d-lo ao amigo, o estremecimento da amizade no razo bastante para resolver a compra e venda, ainda que o motivo tenha sido revelado ao vendedor no momento da aquisio.

Em segundo lugar, pode haver interesses particulares que, alm de conhecidos da contraparte, tenham sido levados em conta por esta na determinao de algum ou de alguns dos termos do contrato.39 Tal circunstncia, todavia, tambm insuficiente, pois no garante que tenha havido acordo acerca da integrao do interesse ao contedo do contrato.40

No exemplo anterior, se o interesse do comprador em presentear foi levado em conta pelo vendedor, que, por hiptese, realizou uma embalagem especial para presente, ofereceu um cupom de troca e props-se a entregar o objeto na residncia do presenteado, nada disso torna a frustrao do objetivo do comprador passvel de acarretar a resoluo do contrato.

Em terceiro lugar, h interesses cuja satisfao foi prometida, expressa ou tacitamente, pela contraparte. Nesse caso, existir acordo, expresso ou tcito, tendo por

38 39

GHESTIN, Cause de lengagement et validit du contrat, cit., pp. 120 e 138. GHESTIN, Cause de lengagement et validit du contrat, cit., p. 112. O autor observa, com razo, que a frmula segundo a qual o interesse deve ter sido levado em conta pela contraparte muito vaga para permitir uma definio realmente funcional da causa (ob. cit., p. 117). 40 GHESTIN, Cause de lengagement et validit du contrat, cit., p. 127.

objeto a relevncia do interesse da parte. Este interesse ter, ento, sido integrado ao contedo do contrato, tornando-se juridicamente relevante. Nos contratos

sinalagmticos, o interesse ter colaborado para a composio do prprio sinalagma contratual.41

Sintetiza GHESTIN: Na realidade, para que o carter essencialmente contratual da causa seja efetivo, o motivo determinante de uma das partes dever no somente ser conhecido, no somente ter sido levado em conta pela outra parte, mas esta ltima dever ter-se comprometido a dar satisfao primeira pela execuo de seu prprio compromisso. Dito de outro modo, o fim perseguido pela parte que se obriga deve ter sido expresso e a sua satisfao para a concluso do contrato deve ter sido expressa ou tacitamente prometida pela outra parte. Trata-se, pois, de uma definio que no objetiva nem subjetiva, porm contratual. Um tal motivo determinante efetivamente ingressou no campo contratual.42

Retornando uma vez mais hiptese da compra e venda do objeto para presente, o interesse especfico do comprador poder tornar-se juridicamente relevante, por exemplo, se se tratar de coisa adquirida em virtude de casamento, em estabelecimento contratado pelos noivos a fim de organizar a lista dos presentes. O que torna o motivo relevante, no caso, , em ltima anlise, a prpria considerao social do negcio. Com efeito, o negcio de vendas para casamento possui grande difuso e tipicidade social, representando parcela relevante da atividade de determinadas lojas. H, em outras palavras, um mercado especfico para a prestao de servios de organizao de listas de casamento e venda dos respectivos produtos, em que os fornecedores no se limitam a vender, mas tambm (e principalmente) centralizam pedidos e organizam as compras e a entrega dos produtos. Em contrapartida, tais fornecedores incrementam sobremaneira as suas vendas, o que demonstra a presena do interesse concreto especfico na composio do sinalagma contratual.

41

Isso, evidentemente, sem prejuzo dos critrios legais de relevncia do motivo existentes em reas especficas, notadamente com relao ao erro sobre os motivos (motivo determinante expresso, art. 140 do Cdigo Civil) e ao motivo ilcito (motivo comum determinante, art. 166, inciso III do Cdigo Civil). Em ambos os casos, o motivo passa a integrar o contedo do contrato de modo expresso ou tcito. O motivo comum determinante , na verdade, o fim contratual (ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., p. 215). 42 GHESTIN, Cause de lengagement et validit du contrat, cit., p. 127.

A incorporao dos interesses ao contedo do contrato, por meio de um acordo expresso ou tcito , permitiria, assim, distinguir o fim concreto do mero motivo43,44, ou, em outras palavras, o fim do contrato do mero fim de um dos contratantes.45

43

BIANCA, Diritto civile, volume 3, cit., p. 461. Tambm ROPPO nota que o critrio para avaliar se determinado interesse causa ou motivo do contrato no o seu conhecimento pela contraparte, nem a exteriorizao expressa do interesse por uma parte outra, aduzindo: Este dado subjetivo pode ser relevante, mas sozinho no decisivo. Deve s-lo um outro dado qualquer, que d dimenso objetiva ao interesse invocado pela parte, e importncia que este possui para a posio contratual da parte. (Il contratto, cit., p. 378). DE CASTRO Y BRAVO observa, em sentido semelhante, que o resultado ou propsito dever ser matria de consentimento das partes, ou dever dar-se por consentido (responsabilidade). (El negocio jurdico, cit., p. 228). 44 Nesse sentido, acrdo do Tribunal de Apelao de Milo julgado em 03/07/1991, cuja ementa diz: Os motivos so os interesses que a parte pretende satisfazer com o contrato e so irrelevantes se no se exteriorizam em relao esfera psquica do contratante; mas se, ao contrrio, foram objetivados, estes surgem como elementos do contrato, toda vez que constituam a funo prtica que as partes tenham em concreto atribudo ao seu acordo (causa concreta). (citado por ELENA PAOLINI, La causa del contratto, cit., pp. 98 a 102).45

polmica a possibilidade de considerar que o fim concreto, prima facie identificado com uma das partes, venha a se tornar fim comum, por fora de sua incorporao ao contedo contratual. Para LARENZ, a finalidade ulterior de uma das partes pode tornar-se finalidade objetiva do contrato toda vez que a contraparte a tornar sua de algum modo, o que ocorreria especialmente quando tal finalidade seja deduzida da natureza do contrato e quando tenha determinado o contedo da prestao ou a quantia da contraprestao.. Aduz o autor, referindo o pensamento de EUGEN LOCHER (Geschftsgrundlage und Geschftszweck, Archiv fr die Zivilistische Praxis, 121, 1923): LOCHER assinala, com acerto, que a por ele denominada finalidade do negcio , primordialmente, o fim de uma das partes e continua sendo-o ainda quando tenha se convertido em contedo do contrato e, por conseguinte, em finalidade do negcio. Este ltimo caso, contudo, demanda esclarecimento. A finalidade primeira e imediata de cada parte de um contrato bilateral obter a contraprestao. O comprador quer dispor das mercadorias compradas; o locatrio, usar de modo normal ou convencionado a coisa locada; o comitente, que se realize a obra contratada. Esta finalidade desprende-se da natureza do contrato em questo; uma finalidade comum, pois cada parte quer procurar a finalidade da outra para, assim, conseguir a sua; portanto , necessariamente, contedo do contrato. No entanto, esta primeira finalidade enlaa-se ordinariamente, nas representaes das partes, com uma segunda e, s vezes, ainda, com uma terceira finalidade: o comprador desejar empregar a coisa para um determinado fim (por exemplo, consumi-la, fazer com ela um presente de casamento ou alien-la depois de t-la transformado em sua indstria); o locatrio, usar de certo modo os locais locados (por exemplo, explorar neles uma determinada indstria) etc. Estas finalidades ulteriores de uma das partes em nada interessam outra, ainda quando esta as conhea e mesmo se lhe tiverem sido comunicadas expressamente, a menos que as tenha tornado suas de algum modo, por haver influenciado na sua prestao, ou por haver fixado a quantia da contraprestao em ateno a elas. (Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., pp. 155 a 159). FLUME, no entanto, ao criticar a teoria da base do negcio de LARENZ, afirma: Deixando de lado os contratos societrios ou similares, s existem fins autnomos das partes. A finalidade contratual que Larenz v, assim como outros antes dele, , na realidade, o fim de uma das partes. (El negocio jurdico, cit., p. 604). GHESTIN tambm critica a referncia a um fim comum s partes, entendendo que, salvo os casos de contrato com escopo comum, excepcional que o motivo que determina uma parte a se vincular seja partilhado pela outra (Cause de lengagement et validit du contrat, cit., pp. 96 a 98, 126, 127 e 154). Polmica parte, a integrao de um dado interesse ao contedo do contrato parece superar a considerao de sua gnese, por assim dizer. Ainda que determinada regra contratual tenha se originado a partir do interesse especfico de uma das partes, ela se tornou comum aos contratantes no momento em que foi objeto de acordo (expresso ou tcito). Parece possvel, desse modo, falar em fim do contrato (e no em fim de uma das partes tornado relevante).

A existncia de um acordo tcito acerca do fim do contrato depende, como se pode deduzir, da considerao cuidadosa de todas as circunstncias interpretativas relevantes.

Dentre as circunstncias relevantes46, figuram o prprio tipo e subtipo contratual escolhido pelas partes a denotar um determinado plano de distribuio de riscos ; a qualificao das partes; as qualidades da coisa objeto da prestao; o valor da contraprestao; o comportamento posterior das partes; os demais elementos identificadores da operao econmica subjacente ao contrato; e os usos e costumes aplicveis relao in concreto.

A considerao do tipo e subtipo contratual duplamente relevante. Por um lado, o modelo regulativo do tipo pode levar em considerao determinado fim concreto normalmente perseguido por uma das partes (fim tpico, nesse sentido), o que implica a presuno de um acordo das partes quanto a este fim, independentemente de declarao expressa. o que ocorre, v.g., no contrato de locao para temporada (arts. 48 a 50 da Lei n. 8.245/91), em que a funo tpica continua sendo a troca entre a atribuio temporria do uso e gozo de um imvel e o pagamento do aluguel, mas colorida pelo fim de utilizao do imvel durante a temporada47; no transporte por amizade ou cortesia (art. 736 do Cdigo Civil); em alguns subtipos de doao, por vezes qualificados como doaes motivadas (doao propter nuptias e doao remuneratria)48; no contrato de financiamento (mtuo de escopo) em geral; e no contrato de mtuo a risco (arts. 633 e seguintes do Cdigo Comercial), em que o mutuante empresta determinada soma de dinheiro (ou de outros bens, desde que estimveis em dinheiro) ao muturio, com destinao especfica (servir viagem e s inverses do negcio para o qual se faz a viagem49).

46

Dentre os indicadores teis para aferir se o resultado almejado integrou o contedo do contrato, RODRIGO BARRETO COGO aponta os usos e costumes, o preo e o tipo contratual escolhido (A frustrao do fim do contrato, dissertao de mestrado apresentada Faculdade de Direito da USP em 2005, pp. 169 e ss.). 47 Isso no afasta, evidentemente, a possibilidade de, no caso concreto, o fim ltimo da parte, distinto do fim tpico, mostrar-se relevante. Basta imaginar que, alm do fim de utilizao do imvel para a temporada, o locatrio tenha interesse no imvel devido sua proximidade em relao a um determinado evento, peculiaridade devidamente refletida no valor do aluguel. 48 LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO, Doao com encargo e causa contratual, cit., pp. 175 e ss. 49 PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, cit., tomo XLII, p. 90.

Por outro lado, o tipo contratual pode revelar uma permeabilidade maior ou menor integrao do fim ltimo ao contedo do contrato. Em se tratando de tipo contratual mais permevel aos fins ltimos das partes, o acordo tcito exigido para a relevncia do fim configurar-se-ia mais facilmente. Constitui desafio doutrinrio analisar os diversos tipos contratuais em funo dessa permeabilidade, o que poderia contribuir para a prpria compreenso do papel do fim concreto na dinmica contratual.

As qualidades do objeto da prestao tambm podem se mostrar decisivas. Se a coisa objeto da prestao destinada a uma nica e especfica finalidade, esta finalidade integrar o contedo do contrato independentemente de meno expressa. Ao contrrio, se a coisa possui vrias finalidades normais, estas que, salvo disposio em contrrio, tero sido acordadas entre as partes. A especificao de uma dentre as finalidades normais, porventura a nico de interesse da parte que se torna titular de direitos relativos coisa, depender, ento, para integrar o contedo contratual, de um acordo expresso ou tcito nesse sentido, como acima explicitado. O mesmo se diga na hiptese de se atribuir coisa uma finalidade especial, isto , distinta das normais finalidades a que ela se destina.

Ilustrativos, a esse respeito, alguns dos casos tradicionalmente estudados50 no mbito da teoria da frustrao do fim do contrato.51

Hiptese de coisa dotada de finalidade nica tem-se no arrendamento de um posto de gasolina, celebrado pouco antes da ecloso da Primeira Guerra Mundial, cuja utilizao foi impossibilitada em razo do controle sobre os combustveis por parte do governo alemo.52

50

Para uma til exposio dos principais casos, confira-se RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., pp. 137 a 149.51

A esse respeito, vide LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit.; VICENTE ESPERT SANZ, La frustracin del fin del contrato, Madrid: Tecnos, 1968; RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit.; JORGE MOSSET ITURRASPE, La frustracin del contrato, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1991; e ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 219 a 226. 52 LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., p. 146; RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., pp. 142 e 143. Vide, ainda, interessante exemplo dado por CLVIS DO COUTO E SILVA, relativo a contrato tendo por objeto a fabricao e a instalao de anncio luminoso, celebrado entre o fabricante do anncio e um comerciante. Nesse caso, o interesse do

Mais problemticas se mostraro as hipteses de finalidade especial, ou de especificao de uma dentre as possveis finalidade da coisa. Com o objetivo de revelar o acordo tcito acerca de uma finalidade, ser muito importante, ento, considerar o valor da contraprestao, dentre outros possveis indcios da concreta operao econmica subjacente ao contrato.

Tomando emprestados, novamente, exemplos clssicos de frustrao do fim contratual, parece til referir alguns dos clebres casos da coroao (coronation cases53), especialmente os julgados Krell v. Henry e Herne Bay Steam Boat Co. v Hutton.

No primeiro, Krell celebrou com Henry contrato de locao tendo por objeto algumas salas em Pall Mall (Londres), com janelas voltadas para uma das ruas por onde passaria o cortejo da coroao de Eduardo VII, nos dias 26 e 27 de junho de 1902. Cancelado o cortejo, mesmo assim Krell pretendeu receber o aluguel pactuado, o que foi negado pelo tribunal.54

J no segundo caso, a Herne Bay Steam Boat Co. alugou uma embarcao a Hutton, empresrio que pretendia levar os curiosos para assistir revista da frota naval, que ocorreria em 28 de junho de 1902, em razo da coroao de Eduardo VII. Cancelado o evento, a Herne Bay Steam Boat Co. ajuizou ao a fim de haver o valor pactuado, o que lhe foi deferido pelo tribunal.55

O que justifica o distinto e adequado tratamento que estes casos receberam o fato de que as circunstncias da locao do imvel em Pall Mall levaram a concluir por um acordo das partes com relao finalidade especfica de assistir contratante em colocar o anncio em local adequado para fins de propaganda a finalidade normal, portanto, luz das circunstncias integrar o contedo do contrato, em decorrncia de interpretao luz dos usos e a boa-f (A obrigao como processo, cit., pp. 40 e 41). 53 Trata-se de uma srie de casos envolvendo contratos celebrados tendo por fim os eventos de comemorao da coroao de Eduardo VII, planejados para os dias 26 a 28 de junho de 1902, porm no realizados. Sobre eles, vide LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., pp. 117 e ss.; e RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., pp. 139 a 141. 54 LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., pp. 117 e 118; RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., p. 140. 55 LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., p. 118; RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., p. 140.

passagem do desfile de Eduardo VII (Krell havia ofertado o imvel mediante anncio nas janelas do prdio, em que aludia ao desfile; a locao havia sido pactuada somente para o perodo especfico do evento; a contraprestao, ao que tudo indica, excedia o valor de mercado para uma situao normal), ao passo que as circunstncias da locao do barco levaram concluso oposta (a Herne Bay Steam Boat Co. alugava-o com freqncia, independentemente do motivo do locatrio; ao que tudo indica, o aluguel cobrado no diferiu do valor de mercado para a situao normal; Hutton era um empresrio que organizava passeios pela baa, de modo que poderia utilizar o barco para outra finalidade).56

Ainda no tocante finalidade da coisa objeto da prestao, GHESTIN figura a situao de um antiqurio que venha a adquirir uma escrivaninha, imaginando ter esta pertencido a Napoleo, a fim de exp-la em mostra internacional e posteriormente dola a um museu. A eventual descoberta de que o mvel no pertencera ao estadista, aps percia, poder autorizar o antiqurio a resolver o contrato dependendo das circunstncias, sendo que o preo pago pelo bem ser, ento, o principal indcio de que o interesse concreto do comprador ter sido objeto de acordo com o vendedor.57

Por fim, PONTES

DE

MIRANDA exemplifica com indivduo que vai adquirir

pea integrante de produto de determinada marca, e o vendedor, sem possu-la, afirmalhe que a pea de um aparelho anlogo, porm de outro fabricante, pode igualmente ser utilizada em substituio outra, levando o sujeito a adquiri-la.58 Nesse caso, a finalidade especial da coisa (ser utilizada em produto de marca distinta da sua), refletida no prprio interesse do vendedor de realizar o negcio, dada a ausncia da pea original, torna-se comum s partes, incorporando-se ao contedo negocial.

14.3. CASOSNEGCIO JURDICO.

DE DIVERGNCIA ENTRE FUNO TPICA E FIM DO

56

LARENZ, Base del negocio jurdico y cumplimiento de los contratos, cit., pp. 118 e 119; RODRIGO BARRETO COGO, A frustrao do fim do contrato, cit., pp. 140, 141, 163 e 169. 57 Cause de lengagement et validit du contrat, cit., pp. 139 e 140. 58 Tratado de direito privado, cit., tomo XXV, pp. 256 e 257.

J foi dito que o papel do fim concreto do negcio jurdico integrativo e corretivo em relao causa negocial (funo tpica), e no propriamente substitutivo desta. Tal integrao ou correo , por vezes, to intensa, que vai ao ponto de provocar uma verdadeira divergncia entre a funo tpica do negcio e o seu fim concreto. Os casos em que esta divergncia se verifica so to importantes que levaram construo de algumas categorias negociais especficas. Referimo-nos aos negcios jurdicos simulados, indiretos e fiducirios.

Esta a perspectiva de BETTI, que, ao tratar da divergncia consciente entre inteno prtica e causa tpica do negcio jurdico (por ele enquadrada dentre as anormalidades do negcio jurdico), afirma: um fato normal que a inteno prtica da parte corresponda ao tipo de negcio escolhido, mas no um fato constante, nem necessrio. De fato, pode ocorrer que o negcio seja realizado como meio para atingir um fim diverso daquele que a sua causa representa, fim este alcanvel com um negcio de tipo diverso ou mesmo no alcanvel com os meios postos disposio dos indivduos por parte da lei. Tem-se aqui, ainda [...], um abuso da funo instrumental, um desvio do negcio em relao sua destinao, enquanto esse busca atingir um fim que no o seu, ainda que possa ser perfeitamente lcito [...]. A discrepncia entre a causa tpica do negcio escolhido e a inteno prtica perseguida em concreto pode configurar uma verdadeira incompatibilidade: e ento se tem o fenmeno da simulao. Mas pode tambm revestir o carter de uma simples incongruncia ou discordncia (inadequao) entre meios e escopos que so entre si compatveis: e ento se tem o fenmeno do negcio indireto e aquele do negcio fiducirio. A incompatibilidade exclui qualquer verdadeira correspondncia entre a causa tpica do negcio e a determinao causal da parte: podendo aqui parecer que o negcio no seja querido na realidade, mas somente na aparncia; no assim, ao invs, a simples incongruncia.59

Tanto os negcios jurdicos simulados, quanto os negcios indiretos e fiducirios, so, portanto, casos de divergncia entre funo tpica e fim negocial concreto, o que torna imprescindvel a identificao e a considerao do fim negocial, para fins de interpretao, qualificao e tratamento jurdico.

59

Teoria generale del negozio giuridico, cit., pp. 393 e 394 (destacamos).

A simulao, como sabido, pode ser classificada em absoluta ou relativa. Na simulao absoluta, o que h um s negcio jurdico, o qual, por fora do pactum simulationis, aparente ou ilusrio, isto , destina-se a no produzir efeitos.60 H, desse modo, um negcio simulado, sem que exista um correspondente negcio dissimulado. A divergncia entre fim concreto e funo tpica (e, mais do que ela, a incompatibilidade de que fala BETTI) evidente: a causa do negcio absolutamente simulado ser aquela pertinente ao respectivo tipo negocial, ao passo que o fim concreto, dada a ausncia de contedo negocial eficaz, ser precisamente a no produo de efeitos.

Na simulao relativa, a estrutura negocial mais complexa, no entanto a mesma incompatibilidade se verifica. Deixando-se de lado certa polmica61, parece convincente a construo, no mbito contratual, realizada por MESSINEO. Para ele, a simulao relativa corresponde a uma fattispecie ou procedimento complexo, caracterizado pela sucesso lgica de trs atos: acordo simulatrio (pactum simulationis), contrato simulado e contrato dissimulado. O acordo simulatrio possui funo preparatria do procedimento, consistindo em verdadeiro programa de futura simulao. Por meio dele, as partes acordam sobre o contrato que efetivamente desejam realizar, bem como sobre o contrato que o encobrir. Segue-se o contrato simulado (contrato aparente, cujos efeitos no so queridos ao menos no

60 61

MESSINEO, Il contratto in genere, cit., tomo 2, pp. 464 a 468. No h consenso, primeiramente, quanto natureza jurdica do acordo simulatrio ou pactum simulationis. Para alguns, este no consistiria propriamente em um negcio jurdico. a opinio de MESSINA, para quem o acordo simulatrio no entra no quadro dos atos jurdicos, sendo considerado pelo direito simplesmente como um fato (Simulazione assoluta, in Scritti giuridici, volume V, Milano: Giuffr, 1948, p. 92). No mesmo sentido, ALBERTO AURICCHIO qualifica o pactum simulationis como simples preliminar de fato do negcio simulado, privado de uma autonomia de efeitos prpria, que o possa fazer qualificar como negcio jurdico autnomo (A simulao no negcio jurdico, Coimbra: Coimbra Editora, 1964, p. 68). A doutrina majoritria, contudo, admite a natureza negocial do acordo simulatrio (MESSINEO, Il contratto in genere, cit., tomo 2, p. 454; BIANCA, Diritto civile, volume 3, cit., pp. 699 e 700; ROPPO, Il contratto, cit., pp. 696; CARIOTA FERRARA, Il negozio giuridico nel diritto privato italiano, cit., p. 540, nota 5). Na doutrina nacional, CUSTDIO DA PIEDADE UBALDINO MIRANDA entende que o acordo simulatrio no negcio jurdico autnomo, porm possui natureza negocial. Tratar-se-ia de um pacto (A simulao no direito civil brasileiro, So Paulo: Saraiva, 1980, pp. 52 a 57). Ademais, h, em tese, duas qualificaes possveis para a simulao relativa: negcio jurdico nico ou coligao negocial. A doutrina italiana mais recente deixa subentendida a possibilidade de qualificar a simulao, em especial a relativa, como coligao contratual, mas no enfrenta a questo. Nesse sentido, ROPPO afirma que o acordo simulatrio e o contrato simulado so componentes, entre si estreitamente relacionados, de uma nica operao contratual, preferindo, contudo, qualific-los como elementos contratuais (Il contratto, cit., pp. 695 e 702). Tambm BIANCA sustenta que contrato simulado e contrato dissimulado so dois aspectos da mesma operao negocial (Diritto civile, volume 3, cit., p. 704). Mais detalhada e convincente parece-nos a construo de MESSINEO, que reconhece a existncia de uma coligao contratual (Il contratto in genere, cit., tomo 1, p. 729; e tomo 2, pp. 454, 470, 475, 479 e 482).

integralmente pelas partes) e, finalmente, o contrato dissimulado (contrato oculto, porm efetivamente desejado), o qual incide sobre o contrato simulado, substituindo, modificando ou integrando o seu contedo, no todo ou em parte (simulao total ou parcial). Somente mediante esse complexo procedimento que a simulao atinge o fim pretendido pelas partes.62

Tanto o negcio relativamente simulado quanto o negcio dissimulado so, portanto, verdadeiros negcios jurdicos, como, alis, deduz-se do art. 167 do Cdigo Civil, que os distingue claramente. O acordo simulatrio, ao instaurar um vnculo entre os dois negcios, faz com que cada um deles produza os efeitos prprios e, assim, permite que as partes atinjam o fim programado. Este fim, como se v, incompatvel com a causa tpica do negcio relativamente simulado.

No mbito dos negcios jurdicos fiducirios e indiretos63, a divergncia entre causa tpica e fim concreto menos intensa. Trata-se de uma simples incongruncia ou discordncia entre meios e escopos compatveis entre si, como afirma BETTI na passagem acima transcrita.

Com efeito, a denominao negcio fiducirio (fiduziarische Geschft) foi cunhada por FERDINAND REGELSBERGER, em escrito sobre a cesso de direitos datado de 1880. Com ela, o autor pretendeu designar as hipteses em que querida pelas62

Il contratto in genere, cit., tomo 2, pp. 446 a 473.

63

Muito embora as duas figuras sejam, hoje, tratadas separadamente, predominava, nas obras italianas do incio do sculo XX, a idia de que o negcio fiducirio era espcie de negcio indireto. Tais obras, vale notar, tm um tronco comum: a doutrina alem da segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX. JHERING notara que alguns negcios do direito antigo (em especial romano) eram celebrados com escopo distinto do original. Chamou-os negcios aparentes (Scheingeschfte) e concebeu-os como generalizaes de contratos simulados, operadas por fora dos usos e toleradas na prtica (Geist des rmischen Rechts, Leipzig, 1883, II, 46, pp. 554 e ss. e III, 58, pp. 264 e ss.; apud FRANCESCO FERRARA (sr.), Della simulazione dei negozi giuridici, 5. edio, Roma: Athenaeum, 1922, pp. 77 e ss.). A primeira exposio orgnica dos denominados negcios encobertos (verdeckte Geschfte) atribuda a J. KOHLER, em trabalhos sobre reserva mental e simulao (Studien ber Mentalreservation und Simulation, Jherings Jahrbcher fr die Dogmatik des brgerlichen Rechts (antigo Jahrbcher fr die Dogmatik des heutigen rmischen und deutschen Privatrechts), volume XVI, 1878, pp. 140 e ss.; e Noch einmal ber Mentalreservation und Simulation, no mesmo anurio, pp. 331 e ss.; apud RUBINO, Il negozio giuridico indiretto, Milano: Giuffr, 1937, pp. 1 e ss.). Os negcios encobertos caracterizar-seiam pelo fato de serem queridos com todas as respectivas conseqncias jurdicas, mas com escopo que no homogneo com o meio empregado, dito, por vezes, escopo ulterior (MESSINA, Negozi fiduciari, Introduzione e Parte I, in Scriti giuridici, volume I, Milano: Giuffr, 1948, p. 71; RUBINO, Il negozio giuridico indiretto, cit., pp. 2 e 3; MOREIRA ALVES, A retrovenda, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1967, p. 16).

partes, na declarao de uma vontade negocial, a obteno daquelas conseqncias jurdicas s quais a forma exterior se dirige, mas no pressuposto de que aquele para quem, dessa maneira, criado um determinado poder jurdico, aproveitar de sua posio para certo fim, e no para todas as finalidades facultadas por ela [...].64

Pode-se dizer que h negcio jurdico fiducirio sempre que uma parte (o fiduciante) efetua uma atribuio patrimonial65 em benefcio da outra (o fiducirio), com um fim prtico incongruente e mais restrito em relao causa tpica do negcio de atribuio patrimonial utilizado (v.g., fim de garantia, de cobrana de dvida, de administrao, de custdia de bens), estipulando as partes, em virtude dessa incongruncia, a obrigao de o fiducirio exercer, em conformidade com o fim visado, a posio jurdica que lhe cabe em virtude do negcio de atribuio patrimonial. Normalmente, o fiducirio obriga-se ainda a restituir ao fiduciante o bem que lhe foi atribudo (se for esse o caso) ou a atribu-lo a outrem, uma vez desaparecida a razo que determinou a atribuio patrimonial.66

Dois so, portanto, os elementos qualificadores do negcio jurdico fiducirio: (i) desproporo entre o meio jurdico adotado pelas partes e o fim prtico que buscam alcanar, ou, dito de outro modo, o fato de o fim concreto do negcio jurdico fiducirio diferir e ser mais restrito do que a causa tpica do negcio jurdico de atribuio patrimonial empregado; e (ii) a fidcia (confiana), em sentido tcnico, decorrente da possibilidade de o fiducirio exercer sua posio jurdica em desconformidade com o estipulado (o chamado poder de abuso).

No que se refere ao primeiro elemento, j REGELSBERGER havia chamado a ateno para a desproporo entre o fim e o meio que caracterizava o negcio

64

Zwei Beitrage zur Lehre von der Cession, Archiv fr die civilistische Praxis, LXIII, 1880, pp. 157 e ss.; a citao encontra-se p. 172 (apud MOREIRA ALVES, Da alienao fiduciria em garantia, 3. edio, Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 25). 65 Por atribuio patrimonial (Vermgenszuwendung) entende-se todo o enriquecimento do patrimnio alheio (FLUME, El negocio jurdico, cit., p. 174).66

Para este conceito, permitimos remeter a FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO, Notas sobre o negcio jurdico fiducirio, Revista Trimestral de Direito Civil, ano 5, volume 20, out/dez 2004, pp. 35 a 63.

fiducirio.67 O que h, em ltima anlise, justamente uma incongruncia entre a causa tpica do negcio jurdico de atribuio patrimonial e o fim prtico almejado pelas partes.

No que toca ao segundo elemento, trata-se da fidcia em sentido tcnico, presente somente nos negcios jurdicos em que a confiana no fiducirio tida como nico remdio para a heterogeneidade dos meios jurdicos empregados, com relao ao escopo econmico.68

A mesma incongruncia entre causa tpica e fim concreto caracteriza os negcios indiretos.69 ASCARELLI, em clebre estudo70, emprega noo ampla de negcio indireto, em cuja categoria engloba tambm os negcios fiducirios71. Para ele, h negcio indireto quando as partes recorrem, no caso concreto, a um negcio determinado, para alcanar, consciente e consensualmente, por seu intermdio, finalidades diversas das que, em princpio, so-lhe tpicas.72

Do ponto de vista estrutural, ASCARELLI admite a estrutura uni ou plurinegocial dos negcios indiretos, muito embora entenda que somente no caso de negcio nico ser possvel falar em negcio indireto, em sentido rigoroso.73

A seu turno, RUBINO trata, ao lado do negcio indireto nico, da combinao de negcios com escopo indireto74, cujo pressuposto a insuficincia de um negcio nico para servir como meio para o alcance do escopo indireto, seja por67

Zwei Beitrage zur Lehre von der Cession, cit., p. 173 (citado por MOREIRA ALVES, Da alienao fiduciria em garantia, cit., p. 26). 68 MESSINA, Negozi fiduciari, Introduzione e Parte I, cit., p. 1.69

Nota-se aqui certa flutuao terminolgica. Para FERRARA, os negcios oblquos ou indiretos formam uma categoria geral compreendendo negcios fiducirios, aparentes e fraudulentos. MESSINA, ao expor a tese de KOHLER, denomina o segundo tipo por este arrolado (negcios empregados para a obteno de escopo ulterior, embora sem relao de plus ou minus entre o meio e o fim) de negcio jurdico indireto em sentido estrito (Negozi fiduciari, Introduzione e Parte I, cit., p. 71). Haveria, ento, negcio indireto em sentido amplo e em sentido estrito. Referimo-nos adiante ao sentido estrito da expresso. 70 O negcio indireto, in Problemas das sociedades annimas e direito comparado, So Paulo: Saraiva, 1945, pp. 99 a 175. 71 O negcio indireto, cit., p. 105. 72 O negcio indireto, cit., p. 103. 73 O negcio indireto, cit., pp. 109, 110 e 114. 74 Il negozio giuridico indiretto, cit., pp. 83 e ss.

impossibilidade material, seja pela incompatibilidade com as modificaes requeridas. Ademais, o resultado final deve ser estranho a cada negcio analisado por si s, derivando apenas dos seus efeitos combinados.75

Nesta rpida meno a casos de divergncia (sob a forma de incompatibilidade ou de incongruncia) entre causa tpica e fim concreto, deve-se incluir, ainda, o negcio jurdico fraudulento.

Parte da doutrina subsume a fraude na categoria (ampla) dos negcios indiretos.76 Outros autores, a nosso ver com razo, no vem tal relao de continncia, podendo haver negcios indiretos e fiducirios fraudulentos e no fraudulentos, assim como h negcios fraudulentos irredutveis s aludidas figuras.

Seja como for, o que verdadeiramente caracteriza a fraude e a sua particular ilicitude o seu fim concreto. O ilcito, na fraude, justamente o fim concreto do negcio jurdico, como observa ANTONIO JUNQUEIRADE

AZEVEDO: Os

institutos da fraude contra credores e da simulao fraudulenta, no prprio Cdigo Civil, e, ainda, da fraude lei, da fraude execuo e da fraude ao negcio jurdico, em outras leis e na jurisprudncia, somente se explicam convenientemente se identificarmos o defeito do negcio na ilicitude do fim a atingir. O exame da fase de formao, por exemplo, numa venda em fraude a credores, revela uma vontade consciente e livre e nenhuma inferioridade real do declarante; quanto forma, contedo, tempo e lugar, imaginemos, por suposio, que no apresentem defeito; somente, portanto, o fim ltimo, o prejuzo dos credores, que justifica a anulao.77

75 76

Il negozio giuridico indiretto, cit., pp. 83 e 84. FERRARA, Della simulazione dei negozi giuridici, cit., p. 86; CARIOTA FERRARA, I negozi fiduciari, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1978, p. 56. 77 Negcio jurdico e declarao negocial, cit., pp. 107 e 108.

Para vrios autores, esta divergncia entre causa tpica e fim concreto (fraudulento e ilcito), que caracteriza o negcio fraudulento, reflete, sob o prisma estrutural, a existncia de negcios jurdicos coligados.78

PUGLIATTI foi o primeiro79 a sustentar, de modo preciso, a teoria segundo a qual toda e qualquer fraude resulta de uma combinao de negcios, em si mesmo lcitos, porm coligados com escopo de produzir resultado vedado por lei. Aps tratar longamente do elemento teleolgico da fraude lei, cindindo-o em (i) intento negocial em sentido estrito e (ii) intento fraudatrio (elusivo) ou escopo ulterior80, sustenta ele de modo convincente que a existncia de um fim que transcende o negcio jurdico e o degrada a mero instrumento exige um acordo fraudatrio, isto , outro negcio jurdico. A conexo deste negcio fraudatrio com o negcio tornado instrumental corresponde a particular hiptese de coligao negocial, em que o negcio fraudatrio desempenha papel preparatrio e integrativo e o negcio previamente escolhido, em abstrato tido como final, funciona como negcio instrumental. Portanto, a diferena entre a violao lei e a fraude lei diria respeito ao momento estrutural, caracterizando-se a primeira pelo contraste imediato e direto entre o resultado do negcio e o contedo da proibio legal e a segunda por um itinerrio indireto, mediante a degradao do negcio principal a instrumento, por meio da influncia do acordo fraudatrio81.

Aps esta breve referncia, resulta evidente que, em se tratando de negcios jurdicos simulados, fiducirios, indiretos e fraudulentos, a identificao e a considerao do fim negocial absolutamente imprescindvel para que o intrprete possa revelar de modo adequado o respectivo contedo negocial, e, conseqentemente, possa qualificar o negcio jurdico e prescrever-lhe o regime jurdico aplicvel.

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PUGLIATTI, Precisazioni in tema di vendita a scopo di garanzia, in Diritto civile. Metodo Teoria Pratica. Saggi, Milano: Giuffr, 1951, pp. 377 a 389; BIANCA, Il divieto del patto commissorio, Milano: Giuffr, 1957, pp. 254 e ss.; MESSINEO, Il contratto in genere, cit., tomo 2, pp. 281 e 285. 79 o que afirma BIANCA, Il divieto del patto commissorio, cit., p. 255, nota 19. 80 PUGLIATTI, Precisazioni in tema di vendita a scopo di garanzia, cit., pp. 377 a 384. 81 PUGLIATTI, Precisazioni in tema di vendita a scopo di garanzia, cit., pp. 384 a 389.