fórum - edição 107

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A operação de desocupação de um terreno e a demolição de 1,5 mil casas em São José dos Campos mostra o quanto a nossa democracia é seletiva n o 107 R$ 8,90 ISSN 1519-8952 Pinheirinho, retrato de um Brasil injusto Fórum Social Temático 2012 Confira a cobertura do evento que mobilizou Porto Alegre fevereiro 2012 107 ano11

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Fórum - Edição 107

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A operação de desocupação de um terreno e a demolição de

1,5 mil casas em São José dos Campos mostra o quanto a

nossa democracia é seletiva

no 107 R$ 8,90

issn

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Pinheirinho, retrato de um Brasil injusto

Fórum Social Temático 2012Confi ra a cobertura do evento que

mobilizou Porto Alegre

fevereiro 2012107 ano11

2 fevereiro de 2012

3fevereiro de 2012

As histórias mal contadas do Pinheirinho

O velho e o novo no FSM

Boaventura: ameaças do capitalismo

Meio ambiente e o Fórum

Clacso

EUA: democracia à venda

Direito ao voto direto

Crack, problema nacional

Jornalismo em Quadrinhos

Chesnais e as dívidas ilegítimas

Pré-sal e indústria naval

Um país chamado Inezita Barroso

Cartas 4

Espaço Solidário 5

Diversidade 15

Mundo do trabalho 21

Direito 22

Nossa Estante 48

Toques Musicais 49

Penúltimas Palavras 50

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Alexandre de Maio, Antonio Martins, Carlos Carlos,Idelber Avelar, Igor Carvalho, Julinho Bittencourt, Matthew Cardinale, Moriti Neto, Mouzar Benedito, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Venceslau, Túlio Vianna, Sâmia Gabriela Teixeira, Sucena Shkrada Resk e Vange Leonel. Foto de capa: Roosevelt Cássio. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: [email protected]. Para assinar Fórum: [email protected], http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autori-zada. Agrade cemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/02/2012 a 9/3/2012

Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenado-ra do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fon-seca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Coope ração Internacional).

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Desde sua primeira edição, em 2001, o Fórum Social Mundial (FSM) e também suas edi-

ções temáticas têm servido como ponto de articulação dos mais diversos movimentos em

todo o mundo. Desses encontros, surgiram campanhas internacionais como as movidas

contra as ocupações no Afeganistão e no Iraque, além de terem sido consolidados pontos

em comum de diversas lutas, como as dos indígenas no continente americano e a dos cam-

poneses. Mas talvez o seu legado mais duradouro e efetivo tenha sido mostrar ao mundo

que o dito pensamento único, que reinava soberano no fim do século XX, não sobreviveria

à passagem do novo milênio. O sopro de esperança de então contribuiu para que mudan-

ças de fato ocorressem em muitos países, em especial na América Latina, onde os avanços

no campo social são mais perceptíveis.

Hoje, 11 anos depois, o mundo ainda sofre os efeitos de uma crise provocada pelo capital

financeiro e, em um período relativamente curto, novas formas de luta surgiram e outras,

antigas, retornaram sob outras formas. Maciças manifestações de rua eclodiram em muitas

partes, auxiliadas pelas novas tecnologias que permitem não apenas a circulação da informa-

ção, mas também um enfrentamento contra a censura e o autoritarismo das ditaduras ainda

vigentes e de supostas democracias que atentam contra direitos da população.

Os movimentos de ocupação e o ciberativismo de múltiplas faces começam a fazer parte da

vivência de muitos jovens, que passam a ter uma visão de mundo que precisa ser conside-

rada no processo do Fórum Social Mundial. Não é apenas uma questão de se adotar novas

estratégias, mas sim de priorizar a mensagem e a principal reivindicação desses novos

movimentos: a busca pela democracia ampla, radical, é não se contentar com o modelo que

permite que se dê voz a poucos. É compreender que essa busca está relacionada a todas as

outras lutas que sempre estiverem presentes nos Fóruns, desde a questão da justiça social,

passando pela preservação do meio ambiente e chegando à defesa dos direitos humanos.

As lutas, por mais diferentes que se apresentem, tanto em forma como em conteúdo, estão

entrelaçadas. E isso só pode torná-las ainda mais fortes.

Selo FSC

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O FSM e as novas formas de luta

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4 fevereiro de 2012

Você pode:

Sob as seguintes condições:

copiar, distribuir, exibir e executar a obra criar obras derivadas

Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original, da forma especifi cada pelo autor ou licenciante

Compartilhamento pela mesma Licença. Se você alterar, transfor-mar ou criar outra obra com base nesta, você somente poderá distribuir a obra resultante sob uma licença idêntica a esta

Atribuição e Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil

Essas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com

assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos

independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate

para colocar seu nome aqui, entre os que apoiam a Fórum. Fone: (11) 3813-1836 ou

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Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada

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SERVIÇO AO ASSINANTE(11) 3813.1836 | [email protected] | www.publisherbrasil.com.br/revistaforum

Entre em contato. A Fórum é feita com sua colaboração. Dê sua sugestão, critique, opi-ne, faça a revista conosco. Nosso e-mail é [email protected] e o endereço é Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. A Fórum reserva-se o direito de editar as cartas e e-mails por falta de espaço ou para facilitar a compreensão.

Arapongagem na USP (edição 106)Por favor, continuem a investigação na USP, principalmente a questão das empresas terceirizadas que operam na faculdade. Porém, a grande mídia se omite totalmente, e os estudantes/professores/funcionários têm muito medo de investigar por conta das vio-lentas retaliações que a reitoria impõe sobre aqueles que a questionam... Dá pra fazer uma edição especial só so-bre as maracutaias da USP.

Caio

Pra que biofobia? (edição 104)E que tragédia os fundamentalistas não perceberem isso. Jesus, há 2 mil anos já se antecipava à derrocada da lei do mais forte e sua substituição pela lei da cooperação. “Amai-vos uns aos outros”. Darwin foi maravilho-so e deixou um caminho a ser segui-do, e eis que Hrdy o percebe e de-monstra. São esses eventos que me dão alegria de viver. E quando leio um artigo desses fi co mais alegre ainda. Apesar dos fundamentalistas.

Benjamin Bee

Legalizar as casas de prostituição (edição 104)As mulheres (e os homens também, existem garotos de programa) que não têm dinheiro para alugar um quartinho próprio são as que não têm um am-biente minimamente seguro para exer-cer sua profi ssão. Quanto ao sonho de uma mãe para a profi ssão do fi lho/fi lha... Realmente eu acho muito difícil uma mãe querer essa profi ssão (difícil) para seus fi lhos. O que ocorre é que os garotos e as garotas de programa já existem! E aos montes! E de todas as classes sociais (só que as ricas são normalmente chamadas de “acompa-nhantes de executivo”). O necessário é dar a esses profi ssionais um local decente para exercerem seu trabalho. Parabéns, professor, pelo belo texto. Mesmo para quem não concorda, ele pode provocar uma refl exão (a não ser que a pessoa não tenha interesse em refl etir) muito desejável.

Joanna

Piratas e tubarões (página eletrônica)Muito interessante este ponto de vista que um mundo novo, com uma nova maneira de lidar com a produção cul-tural, está abrindo espaço apesar de o mundo velho ainda tentar se impor. Concordo que não temos que fi car lutando para enterrar o mundo ve-lho para só depois nos dedicarmos ao novo modo ou ao novo mundo. Melhor é esquecer o mundo velho e deixá-lo espernear livremente, pois não vai adiantar nada. Vamos fazer e espalhar cultura livremente.

Paulo Brescia

Três anos de crise global (edição 103)Eu entendo que o estado da arte em que se encontram os setores de produção em larga escala (indústria automobilística, por exemplo), nos quais o custo do investimento e a consequente amortização exigem não só a manutenção, mas o cresci-mento da demanda pelos seus pro-dutos, deverá ser a gota d’água para a recessão que vem aí. Gostaria de ler alguma opinião sobre essa pos-sibilidade.

Edmundo

Terceirização do trabalho (edição 104) A terceirização é uma forma de pre-carizar a relação de trabalho, não há outra forma de dizer isso – apesar de entender que, hoje, uma empresa muito difi cilmente conseguiria realizar todo o processo produtivo, sem ter-ceirização. O que encontramos é um bando de empresários querendo la-var as mãos para os direitos trabalhis-tas que nós conseguimos conquistar com o esforço da luta sindical pelo mundo – ver as convenções da OIT.Também há o fenômeno da PJ, pes-soa jurídica de fachada que presta o serviço tal como o funcionário co-mum. Essa não tem de fato direito nem a férias! Boa matéria a do Po-chmann.

Michele

5fevereiro de 2012

divulgação solidária – A Fórum dedica este espaço à divulgação de iniciativas ligadas à economia solidária. Se você participa ou promove algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio justo e solidário, entre em contato conosco para divulgá-lo.

No FST, sociólogo propõe economia solidária e agricultura

familiar como alternativas ao “capitalismo verde”

Os debates do Fórum Social Temático (FST) de 2012

apontam a economia soli-dária e a agricultura familiar

como ferramentas funda-mentais para a solução do momento crítico no modelo

atual do sistema econômico planetário. E, entre as perso-nalidades que debateram a

situação, estavam o sociólo-go português Boaventura de Sousa Santos, presente em todos os encontros realizados pelo Fórum Social Mundial desde sua criação, em 2001. Embora tenha elogiado a iniciativa de debater as questões coloca-

das como assuntos centrais do FST, ele afi rmou que é necessário superar o “capitalismo verde”.

O sociólogo explica que o sistema capitalista volta a uma fase extrativista dos recursos naturais, principal-mente na América Latina e na África. “O Fórum é um

espaço para se mostrar soluções não capitalistas para a sociedade, como a economia solidária e a agricul-tura familiar e agroecológica, que criticam os atuais

níveis de consumo mundiais”, observou.

Questionador do termo “desenvolvimento”, Boaventura destacou a necessidade de superação

dessa ideia, ainda que venha acompanhada de palavras atenuantes, como “humano” e “sustentável”.

Contundente, o sociólogo explicou que essas polí-ticas acabam implicando o desrespeito aos direitos humanos e o objetivo desenfreado por crescimento

econômico a qualquer custo.

Para o pensador português, o capitalismo da atualida-de nasceu do neoliberalismo, nos anos 1990, defen-

dendo ferozmente a liberdade dos mercados. “Nesse modelo, as commodities (produtos de origem primária, como os alimentos) viram objetos de especulação em

um capitalismo fi nanceiro, hoje em crise”, salientou.

Boaventura apontou que as lutas por distribuição de terras e em defesa da água – bens comuns da

humanidade – continuam sendo essenciais para os movimentos sociais. Nesse sentido, ele acre-

dita que a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) que será reali-

zada em junho, no Rio de Janeiro (ver matéria na pág. 18), será “dominada por ideias que não resolvem os problemas das justiças ambiental e social, até por-

que estará controlada pelo capitalismo verde”.

Para a ocasião, o sociólogo considera fundamentais as jornadas e lutas populares, por exemplo, a Cúpula dos Povos, evento paralelo ao organizado pela ONU e que

foi lançado em Porto Alegre durante o FST.

Em Santa Maria (RS), proposta divide produtores sobre parceria com iniciativa privada Nascido na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o Projeto Esperança surgiu em 1987, por meio de uma iniciativa da diocese local, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Cáritas Regional (RS). O objetivo era incentivar ações de economia solidária na região. Para tanto, foi criado um braço auxiliar da proposta: a Cooesperança. Em 2004, associado à Teia Esperança e à Rede dos Empreendimentos Solidários, o projeto ampliou sua capacidade de articulação entre propostas de economia solidária.

Atualmente, com o crescimento do projeto, a entidade se situa numa perspec-tiva que traz debates importantes. Em janeiro, a discussão sobre a transfor-mação do Centro de Economia Solidária Dom Ivo Lorsheiter (bispo brasileiro e um dos inspiradores do projeto) num mercado público, incluindo a iniciativa privada como parceira, despertou dúvidas nos grupos que formam o Projeto Esperança/Cooesperança.

A ideia foi apresentada por dois empresários de Santa Maria: Dioni Lovato e Adriana Arruda. As primeiras abordagens sobre o assunto apareceram no próprio Centro de Economia, durante a 6ª reunião do Grupo de Trabalhadores de Economia Solidária, da Agência de Desenvolvimento de Santa Maria (ADESM). Na oportunidade, foi exposto um anteprojeto arquitetônico, que inclui restaurantes, petiscarias, cafeteria, espaço de conveniência, banheiros e depósito de materiais.

Sem unanimidade, a proposta suscitou polêmicas. Pequenos produtores que participam das feiras de economia so-lidária estavam presentes na reunião, e parte deles enxergou na proposta uma oportunidade para melhorar as vendas. Outros, questionaram a pre-sença da iniciativa privada, que tem como objetivo central a geração de lucros individuais em contraposição à essência da economia solidária, que investe no trabalho coletivo e no compartilhamento dos rendimentos de forma cooperada e igualitária.

O conceito do mercado público – partido do setor privado – defende o modelo de desenvolvimento

local integrado e sustentável. Para tanto, prevê a parceria entre o Projeto Esperança/Cooesperança, Universidade Federal de Santa Maria e iniciativa privada, sendo que a última seria responsável por investimentos, gestão e promoção de cursos de qualifi cação, numa ação conjunta com a UFSM.

O mercado público abriria de domingo a domingo, com horário de atendimen-to proposto, em primeiro momento, 7 horas à zero hora, o que, de acordo com o discurso dos empresários, seria uma novidade, num movimento diverso das feiras de economia solidária que ocorrem em datas específi cas e do tradicio-nal feirão, realizado no local nas manhãs de sábado.

Dessa forma, a questão ideológica está no centro da discussão. A parcela dos produtores que não concorda com a ideia preocupa-se com o que seria comercializado no mercado público. De início, Coca-Cola e cigarros estariam totalmente fora da proposta, já que o Projeto Esperança/Cooesperança não trabalha com produtos de multinacionais.

Mais um aspecto relevante é que, historicamente, muitos dos recursos obtidos pelo projeto foram adquiridos com recursos públicos por repasses dos governos federal, estadual e municipal. Esse é mais um elemento que traz um grande dile-ma: como conciliar o interesse privado com a economia solidária?

A coordenadora do Projeto Esperança/Cooesperança, Lourdes Dill, afi rma que a proposta passará por debates em diversas reuniões, até 25 de abril, quando ocorrerá uma grande assembleia. “Nesse dia, daremos uma resposta sobre levar adiante, ou não, a ideia do mercado público”, diz.

Sem unanimidade, a proposta suscitou polêmicas. Pequenos produtores que participam das feiras de economia so-lidária estavam presentes na reunião, e parte deles enxergou na proposta uma oportunidade para melhorar as vendas. Outros, questionaram a pre-sença da iniciativa privada, que tem como objetivo central a geração de lucros individuais em contraposição à essência da economia solidária, que investe no trabalho coletivo e no compartilhamento dos rendimentos de forma cooperada e igualitária.

O conceito do mercado público

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6 fevereiro de 2012

teXto e Fotos por iGor cArvAlho, de sÃo JosÉ dos cAMpos (sp)

Um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados. De um lado, 6 mil pes-soas. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, deficientes. Do outro, 2 mil homens da Polí-

cia Militar, com tropa de choque, helicópte-ro, cavalaria e a Guarda Civil Metropolitana da prefeitura de São José dos Campos. Uma ação que foi contestada e condenada por representantes do poder público, da socie-dade civil e de alguns órgãos da imprensa, alcançando repercussão no mundo todo e denúncias a organismos internacionais. As imagens de pessoas feridas, chorando suas perdas materiais e correndo com seus fi-lhos no colo contrastam com as declarações dos responsáveis pela operação, que teria sido um “sucesso”: a juíza Márcia Loureiro, responsável pela ordem de reintegração de posse da área; o coronel Manoel Messias Mello, que comandou a operação; o governa-dor do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury (PSDB).

Todos os caminhos para se compreender o que foi a ação levam à especulação imobi-liária, entremeada por interesses políticos, confessos ou não. Há, nesse imbróglio, uma figura conhecida, Naji Nahas. O libanês natu-ralizado brasileiro, outrora megaespeculador,

A violenta desocupação ocorrida em São José dos Campos esconde interesses imobiliários, políticos e o problema crônico da falta de moradia

foi preso em 2008, como resultado da Opera-ção Satiagraha, da Polícia Federal. Sua empre-sa, a Selecta Comércio e Indústria S.A., é pro-prietária do terreno que as famílias ocuparam em 2004. Em 22 de janeiro de 2012, a juíza Márcia Loureiro autorizou a reintegração de posse do Pinheirinho. Ao fazê-lo, descumpriu um acordo costurado pelo senador Eduardo Suplicy (PT) com o presidente do Tribunal de

bem-vindo bem-vindo minha famÍlia, minha vida

Reginaldo Santos Miguel, junto com sua família, após a saída do Pinheirinho. Seu futuro continua incerto

Justiça de São Paulo (TJ-SP), Ivan Sartori, e o juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, da 18ª Vara Cível de São Paulo, responsável pelo pro-cesso falimentar da Selecta. O acordo previa um período de 15 dias de negociações, evitan-do o confronto e o uso da força.

7fevereiro de 2012

A gênese da desocupação“Quero a casa do parquinho”, pedia o me-

nino Pablo, de 4 anos de idade. Muito abati-do, roupas sujas, conversou com a reporta-gem quando estava na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo do Socorro, sentado no colo de sua mãe. Mascando um pedaço de madeira, observava a irmã dormindo em um berço improvisado, dentro do carro de puxar en-tulhos, do pai. Reginaldo Santos Miguel, 34 anos, é o pai das duas crianças. O parquinho a que Pablo se refere foi construído pelo pai, no quintal de sua casa, que ficava em um lote de 250 m² no terreno ocupado. Tentando en-tender o que tinha acontecido havia menos de 24 horas, o carroceiro desabafa: “Olha, pra mim tá acontecendo algo muito grande aí, coisa de grana, né? Tem interesse grande e muito dinheiro, moço. Estão tirando minha casa para devolver o terreno para um ladrão. Comprando um monte de gente para maltra-tar e dar tiro em senhora, criança, pobre e gente que é deficiente. Muito sangue, pra quê? Tinha que ver o terror que foi aquilo lá, moço. Tudo isso pra fazer favor para esse corrupto.”

Reginaldo se refere a Naji Nahas, cuja empresa foi a última dona de um vasto terre-no com uma história conturbada. A primeira versão que circulou na mídia sobre a origem da área do Pinheirinho revelou-se um gran-de boato. Dizia-se que as terras eram pro-priedade de quatro irmãos alemães, assas-sinados em 1969. Por não haver herdeiros e nem testamento, essas terras teriam sido incorporadas pela prefeitura de São José dos Campos. Depois, tornaram-se alvo de grila-gem, até chegar, misteriosamente, às mãos de Naji Nahas. A reportagem de Fórum in-vestigou o histórico de propriedade da terra e teve acesso a documentos e certidões dos últimos cem anos da área, que comprovam que essa versão é falsa.

Em 1912, Manoel Antonio Teixeira, mo-rador de Jacareí (cidade próxima a São José dos Campos), comprou o terreno de Fran-cisco Truyts. Muitos foram os proprietários até 1959, quando Bechara Lahud comprou as terras, na época conhecida como Bair-ro do Rio Comprido. Durante os 16 anos seguintes, esse terreno continuaria sendo patrimônio da família Lahud e, somente em 27 de junho de 1978, os Lahud o venderam para Benedito Bento Filho, empresário do ramo hoteleiro de São José dos Campos. Após cinco anos com o terreno, o “comen-dador Bento”, como é conhecido na cidade, o vendeu para a Selecta Comércio e Indús-tria S.A., empresa de Naji Nahas.

Em 1978, quando adquiriu o terreno, Bento protocolou na prefeitura de São José um pedido de loteamento para a construção de 5.140 moradias. No ano de 1983, justa-mente o ano da aquisição das terras pela Se-lecta, a prefeitura cancelou esse loteamento e modificou o zoneamento da área, que pas-sou de residencial para industrial, o que va-lorizou o terreno à época.

Mas a Selecta teve vida curta e faliu em 1989. Justamente quando o especulador Naji Nahas aplicou um golpe na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Ele foi acusado de tomar empréstimos e negociar, por meio de “laran-jas”, ações em benefício próprio. Seus movi-mentos fizeram alavancar os valores de suas ações e, nesse momento de pico, ele as vendia e embolsava uma diferença suficiente para pagar os bancos e lucrar. Com a falência, a Se-lecta, que nunca teve funcionários, passou a ter que saldar algumas dívidas com empresas parceiras em investimentos e, com a União e o município, já que nunca pagou impostos refe-rentes ao terreno. A dívida com o município, hoje, é de R$ 15 milhões, só em IPTU, motivo da penhora do terreno, efetivada em 1992.

Satiagraha e o Pinheirinho Em 31 de dezembro de 2003, tocou o

celular de Waldir Martins, conhecido como Marrom. Do outro lado da linha, um mora-dor que ocupava parte de um conjunto habi-tacional da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Pau-

lo (CDHU) junto com outras 70 pessoas, no Parque Dom Pedro, bairro da zona sul de São José dos Campos. Os moradores tinham so-frido uma baixa no movimento com a saída de Santos Neves, um dos principais líderes, e careciam de uma nova referência. Marrom, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, conhecia a causa dos mo-radores, mas ainda não tinha atuação efetiva entre eles. Assim que percebeu as condições em que estavam as famílias e sabendo da possível remoção, juntou-se à luta e pensou em uma nova possibilidade para os sem- -teto. “O Pinheirinho era uma área conhecida pelos Movimentos de Sem Terra, uma área

Marrom assumiu a liderança do movimento dos moradores e foi um dos comandantes da ocupação do Pinheirinho

Entre as pessoas que estavam na área ocupada havia deficientes, que também não tiveram tempo de retirar seus pertences pessoais

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8 fevereiro de 2012

enorme, completamente improdutiva, e de-cidimos ocupar.” Em 26 de fevereiro de 2004, Marrom e mais 340 famílias entraram pela primeira vez no Pinheirinho, para ficar.

A reação foi rápida. Ainda em 2004, a massa falida da Selecta entrou com um pe-dido de reintegração de posse. O juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, da 18ª Vara Cí-vel de São Paulo, responsável pelo processo falimentar da empresa, concedeu a liminar, que foi imediatamente contestada pelos ad-vogados do movimento. Em 2006, a RS Ad-ministração e Construção Ltda. comprou toda a dívida da Selecta, estimada no valor total de R$ 48 milhões, segundo os advoga-dos dos moradores do Pinheirinho. Antonio Donizeti, advogado do movimento, explica o que significa essa operação. “É uma falcatrua. A RS é uma empresa fantasma, com sede no Panamá. O que está acontecendo aí é que a RS passou a negociar a dívida com o município. Toda vez que há uma negociação e um parce-lamento zera-se o processo, então, protela-se o processo falimentar. Em algum momento, a prefeitura pode tomar o terreno, por meio de um acordo, e a RS não vai ter desembolsado dinheiro algum. O que piora esse cenário é que uma terceira empresa não pode negociar as dívidas da Selecta com o município, os ad-

rural, onde as famílias cultivavam alimentos para sua subsistência. Cada família tinha um lote de 250 m² para construir sua casa.

Em 2006, havia uma determinação das lideranças de que não seria permitida a en-trada de mais famílias. “Nós já estávamos com mais de mil famílias, sempre tivemos a ideia de oferecer um lote digno às pessoas, não poderíamos permitir que entrasse mais gente, já estávamos no limite.” Mesmo assim, mais pessoas foram chegando ao local, o que demonstrava o grave problema de déficit ha-bitacional da região.

Naquele mesmo ano, os moradores rece-beram a visita de uma comissão criada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa

vogados são os mesmos, da Selecta e da RS, posso dizer porque participo das audiências.”

Um dos sócios da RS é Teófilo Guiral Ro-cha, um advogado ligado diretamente a Naji Nahas. Em um dos relatórios da Polícia Fede-ral que fundamentava o pedido de mandados de busca e apreensão referentes à Operação Satiagraha, diversas escutas telefônicas des-crevem a relação entre os dois, sendo que o nome do advogado de Nahas aparece 84 vezes no documento. Ali, consta que “TEÓ-FILO GUIRAL ROCHA é advogado e respon-sável pela ‘legalização’ dos negócios de NAJI NAHAS”. O que se vê, no documento, são lon-gas conversas entre os dois, sempre em tom de confiança mútua, e muitas vezes conduzi-das por meio de códigos. Em um dos trechos, a RS Administração e Construção Ltda. é cita-da pelo próprio Teófilo.

“Em 24/03/08, às 15:18:16h, MARIO con-versa com TEÓFILO e este diz que é diretor e sócio da firma RS (RS-ADMINISTRAÇÃO E CONSTRUÇÃO LTDA), juntamente com outra empresa do exterior denominada SOCIEDA-DE IMOBILIÁRIA DE INVESTIMENTOS. Per-guntado sobre a SELECTA, TEÓFILO diz que há duas SELECTAS: uma denominada SELEC-TA PARTICIPAÇÕES E SERVIÇOS é o NAHAS e a esposa SULA, e outra, SELECTA COMÉRCIO E INDÚSTRIA, sendo procurador juntamente com o CANAÃ, tendo o NAHAS como seu di-retor. MARIO diz que o início é a partir do dia 02/mai/08 (aparentemente deve estar falan-do de outra sociedade empresarial que esta-ria sendo montada por NAHAS).”

O que as conversas transcritas deixam transparecer é que Teófilo é um “laranja” de Nahas, e a operação teria como objetivo fazer de Nahas um “credor de si próprio”. O docu-mento de quitação da dívida foi assinado em 1° de dezembro de 2006 pelo então advogado da Selecta Comércio e Indústria S.A., Wadih Helú, mais conhecido por ter sido presidente do Corinthians. Helú faleceu em 2011.

As tentativas de solução“Desde o princípio, houve uma preocupa-

ção em estruturar nossa ocupação, torná-la o mais organizada possível para que fosse viável a nossa regulamentação”, relembra Marrom. Assim foi feito. O Pinheirinho era dividido em quadras, cada rua era nomeada com uma letra, cada casa possuía sua fossa e o acam-pamento mantinha uma área urbana e outra

José Carlos Ferreira ainda tinha os olhos vermelhos por conta da ação policial, dias depois da desocupação

Morador mostra projétil disparado contra moradores durante a operação no Pinheirinho

9fevereiro de 2012

Humana (CDDPH), órgão ligado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo federal, para intermediar um acordo entre a prefeitura e os moradores do Pinheirinho. A equipe era chefiada pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Ela Wiecko Castilho. Além dela, integraram a comitiva a procura-dora Ivana Farina, o procurador da Repúbli-ca em São José, Angelo Augusto Costa, e dois defensores públicos. A urbanista, arquiteta e professora de Urbanismo da PUC de Goiás, Lúcia Moraes, integrava a comissão e se re-corda do que viu. “Eles já eram bem organi-zados, normalmente essas ocupações, com o passar do tempo, vão se tornando soberanas em suas necessidades.”

A comissão recomendou que fosse altera-do, na região, o zoneamento, e que a área se tornasse de interesse social. Isso não acon-teceu. “O zoneamento é de responsabilidade da prefeitura, eles não tiveram interesse em acatar nossa recomendação”, explica a urba-nista, para em seguida salientar o descaso do poder municipal. “Depois dessa visita, fiz mais três ao Pinheirinho, mas nunca conse-guimos nos comunicar com o prefeito nem fomos recebidos por representantes da pre-feitura.” Em uma das missões integradas por Lúcia Moraes – que foi relatora nacional de Direito Humano à Moradia Adequada, no pe-ríodo de 2005 a 2009 –, realizada em julho de 2006, já era evidente a falta de disposição da prefeitura para estabelecer um diálogo com os moradores. “Encontra-se no Ministé-rio das Cidades uma solicitação para que a comunidade possa comprar a área ocupada para construção das unidades habitacionais pelo Programa Crédito Solidário, tendo sido acenada concordância pelo proprietário da área. No entanto, o processo encontra-se pa-rado, já que a prefeitura recusa qualquer ne-gociação e alega que as famílias fazem parte do cadastro da Secretaria Municipal de Ha-bitação e devem aguardar o momento para serem atendidas pelos programas de habita-ção do Município, entre estes o Programa de Desfavelização em implantação na cidade”, dizia o relatório da missão.

Como parte das promessas feitas pelo governo municipal à população do Pinheiri-nho – e não cumpridas – está um ofício enca-minhado aos moradores, pela secretária de governo da prefeitura de São José dos Cam-pos, Claude Mary, em 1º de junho de 2010. Diz o documento oficial: “Em resposta ao Ofício solicitando agendamento de reunião para tratarmos da regularização da ocupa-ção do Pinheirinho, informamos: A prefeitu-ra reafirma que oferecerá apoio técnico para

realização de projeto a ser encaminhado ao Ministério das Cidades e Secretaria Estadual da Habitação com o objetivo de obterem-se recursos para a regularização da ocupação do Pinheirinho.” Em nenhum momento a promessa se concretizou.

A remoçãoUma reunião realizada em 10 de novem-

bro de 2011, entre a juíza Márcia Loureiro, o comando da Policial Militar, representantes da prefeitura de São José e da massa falida da Selecta, começou a determinar como seria a operação de remoção. Pouco tempo depois da reunião, nasceu, no Pinheirinho, a filha mais nova de Reginaldo Santos Miguel, o car-roceiro que já era pai de Pablo; foi chamada de Pamela Eduarda de Oliveira Miguel. “Ah, foi bonito demais. Coisa de Deus na minha vida, essa menina. Era um sinal pra eu ficar mais tranquilo”, acreditava o ex-morador do Pinheirinho.

Em 12 de janeiro de 2012, um oficial de justiça entregou para o comando da Polícia Militar a decisão da Justiça Estadual, deter-minando a reintegração de posse. E os mo-radores impressionaram o País com imagens fortes. Alguns portam armas improvisadas com bambus, ferros e pedaços de pau. Tra-jam capacetes e escudos. Dão sua resposta, ao menos visual, ao forte aparato militar, que se montava para expulsá-los, no dia 14.

A juíza federal substituta, Roberta Monza Chiari, acatando uma ação cautelar da Asso-ciação Democrática por Moradia e Direitos Sociais, concedeu uma liminar que suspen-dia a reintegração de posse, quando todos os acessos à área já se encontravam fechados e 2 mil homens da Polícia Militar se dirigiam para lá, no dia 17. No mesmo dia, o juiz fede-ral Carlos Alberto Antônio Júnior, substituto da 3ª Vara Federal em São José dos Campos/SP, cassou a liminar que suspendia a reinte-

gração de posse, explicando em seu ofício que “uma vez acionado o plantão judicial, o juiz plantonista analisa o caso em regime de urgência e, logo que aberto o Fórum pela ma-nhã, há regular distribuição do feito a uma das varas. No caso, este feito foi distribuído a este Juízo Federal”.

No mesmo dia o Ministério Público Fede-ral (MPF), por meio do procurador da Repúbli-ca, Ângelo Augusto da Costa, moveu uma ação acusando a prefeitura de São José de omissão na questão do Pinheirinho. O título do docu-mento diz, em letras garrafais: “DISTRIBUI-ÇÃO URGENTE – RISCO GRAVE E IMINENTE DE PERECIMENTO DO DIREITO”. No texto, o procurador justifica a defesa de sua tese. “Afi-nal, mesmo que em situação, em tese, irregu-lar, as famílias ali assentadas têm direitos in-dividuais e sociais previstos na Constituição.”

Na tarde do dia 21, uma assembleia ge-ral, feita dentro do Pinheirinho, contou com a presença do senador Eduardo Suplicy (PT). Ele foi avisar que havia firmado um acordo com o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori, e com o juiz Luiz Be-ethoven Giffoni Ferreira, responsável pelo processo de falência, e estava previsto um período de 15 dias sem qualquer ação de desocupação para que houvesse negociação entre as partes envolvidas. Uma grande festa foi feita pela comunidade, que começou no sábado e se estendeu por boa parte da ma-drugada do domingo.

Sem considerar o acordo firmado, a juíza Márcia Loureiro determinou que a reintegra-ção fosse efetuada. Com o conflito de compe-tências estabelecido entre Justiça estadual e Justiça federal, foi determinado o início ime-diato da operação de remoção das famílias, ação que foi acompanhada pelo juiz assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Rodrigo Capez. O advogado do movimento, Aristeu César Pinto Neto, ressal-

ta que, sob sua ótica, a Justiça estadual não seria competente para dirimir a ques-tão. “A Justiça federal é competente, e há o interesse da União no caso. Primeiro, inte-ressa a regulamenta-ção da área por parte

Em entrevista coletiva, o coronel Messias Mello e o juiz Rodrigo Capez tentam justificar a desocupação

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do Ministério das Cidades; depois, temos a questão dos direitos humanos. O Brasil assi-nou e se comprometeu com tratados inter-nacionais”, argumenta. “Outra questão: pela Constituição, quando há perigo de violação dos direitos humanos, o caso deve ser julgado pela Justiça Federal. O que vimos aqui (Pinhei-rinho) foi uma brutal afronta à Constituição brasileira.” Para Antonio Donizete Ferreira, um dos quatro advogados do movimento, “a própria Constituição prevê que toda proprie-dade tenha função social, ela (juíza Márcia Loureiro) nem está lembrando disso. Acima de tudo, ela tem de considerar o direito à vida, que vem antes do direito à propriedade”.

A desocupação e um cenário de pós-guerra

“A primeira coisa de que me lembro fo-ram os barulhos de bomba e a gritaria”, conta Carlos de Fátima Moreira, de 53 anos, que foi acordado com os sons da invasão. A reintegração começou às 6 horas, enquanto a maioria dos moradores dormia e o “exér-cito” de resistência local havia se dissipado por acreditar no acordo firmado no dia an-terior. “Nessa operação, ficou claro que cria-ram, aqui, um ‘estado de exceção’. Isolaram a área e expulsaram todos. Não há registros da imprensa, que não pôde acompanhar o tra-balho, é tudo na mão do poder público. Nem eu, que sou advogado dos moradores, pude entrar”, disse Aristeu Neto.

Maria Dirce da Silva Ferreira, moradora desde o começo da ocupação, relembra os primeiros momentos da operação policial na área. “Amanheceu o dia com a polícia lá no Pi-nheirinho. Rasgaram a roupa do meu filho, de tanto que puxaram ele. Não me deixaram pe-gar nada em casa, só a bolsa, os outros docu-mentos eu perdi.” José Carlos Ferreira, mora-dor, ainda tinha os olhos vermelhos por conta da ação policial, dias depois da desocupação. “Isso foi na hora da correria, eu tava na frente, aí os caras (polícia) vieram e jogaram spray de pimenta, não deu nem tempo de sair. Não fiz nada para eles, estava correndo só pra sair de lá. Moro lá há oito anos, estava dormindo. Quando começou o barulho, saí correndo.”

No dia 22, à noite, o bairro do Campo dos Alemães parecia um cenário de pós-guerra. Ruas vazias, carros incendiados pelas vias, poucas pessoas caminhavam. Por todo lado, podia-se ouvir sirenes e viaturas que derra-pavam, sinais desnecessários de força, com suas armas expostas para fora dos veículos. Um grupo de aproximadamente 2 mil pes-soas seguiu para a Igreja Nossa Senhora do Perpétuo do Socorro, a 500 metros da entra-da do Pinheirinho. Por medo da intervenção dos policiais e por desconfiança do governo municipal, preferiram não seguir para os abrigos àquela altura. Um homem, que pre-feriu não se identificar, questionava: “Como vou aceitar ser acolhido por quem acaba de me expulsar de minha própria casa? Sobrou algumas camisetas e os documentos dos meus filhos, foi o que deu pra pegar, agora querem que eu vá para aquele albergue, vou fazer o que, lá? O que mais vão tirar de mim?”

Janaína Aparecida, moradora removida, era uma das mais exaltadas. “Eu vi pessoas lá dentro serem agredidas, com cassetetes e spray de pimenta na cara. Se o prefeito quer

pegar aquela bosta de terreno, ele pode pe-gar, mas olha o tanto de gente que tem aqui, dormindo no chão”, explicou, enraivecida, para em seguida atacar o prefeito Eduardo Cury. “Teve muita gente que gastou ali den-tro pra levantar suas casas, isso é desumano. Esse prefeito é nazista, ele odeia pobre.” A violência policial não poupou nem o advoga-do Antonio Donizete Ferreira. “Tomei quatro tiros de borracha em três momentos diferen-tes. Um, na perna; um, na virilha e dois nas costas. Quando fui acompanhar uma oficial de justiça, eles abriram fogo. Gritei que era advogado e estava com o oficial, eles me pe-diram para sair andando e, quando virei de costas, tomei um tiro, pelas costas.”

Reginaldo Santos Miguel foi acordado com o choro da filha. Com 1 mês de idade, Pâmela ainda dorme no quarto com os pais. Ao per-ceber do que se tratava, Reginaldo a colocou no colo e correu com a mulher e o filho. Notou que havia esquecido os documentos e voltou para a casa. Na frente, dois policiais vigiavam a rua. Quando estava saindo, com a filha no colo e os documentos, foi atacado. “Eles não quiseram nem saber, viram minha filha, mas tiraram o cassetete e vieram pra cima de mim. Eu protegi o lado da criança e dei o outro para baterem. Foram várias cacetadas em mim.” Reginaldo teve uma fratura no ombro, que foi imobilizado. A filha nada sofreu.

Pela internet, vídeos e fotos mostravam a truculência da ação. Dentro da igreja, as con-dições sanitárias eram terríveis, apenas um banheiro para os dois mil abrigados, o chão e os bancos do local eram os suportes para noi-tes de sono, roupas eram armazenadas tam-bém no chão da igreja e das suas dependên-cias. O banho era tomado na casa de parentes, a água era retirada na rua, em torneiras de vizinhas e armazenada, a comida escassa e servida em péssimas condições. A igreja se tornou um polo de articulação dos moradores no embate entre eles e a prefeitura.

Ao desprezar o alojamento oferecido pelo governo municipal, os moradores se isola-ram, já que o Eduardo Cury (PSDB), prefeito de São José, não lhes enviou nenhum tipo de ajuda. Viveram aqueles dias somente com doações. O almoço do dia 23 foi um pão com manteiga e um copo de achocolatado, para cada pessoa. Um médico e uma veterinária visitaram os moradores, no templo, e recei-taram remédios para problemas básicos, os medicamentos foram doados e eram forneci-dos no meio do estacionamento. em 25 de ja-neiro, após o padre Ronildo de Rosa receber a visita de Claude Mary, secretária de gover-no do prefeito Eduardo Cury (PSDB), o pá-

Abaixo, moradores tentam se adaptar às condições do pátio da igreja depois da saída do Pinheirinho

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roco pediu que os desabrigados saíssem da igreja. “Estou sendo pressionado, agora vo-cês devem sair ou saio eu”, disse, na ocasião. No mesmo dia, caminhando por quatro qui-lômetros, mais de 400 pessoas seguiram até o alojamento da prefeitura, debaixo de um calor de 35°C aproximadamente, de acordo com serviços de meteorologia. Os outros 1,6 mil moradores que estavam na igreja foram para lares de parentes e a maioria foi para abrigos da prefeitura.

Um acordo entre a polícia, a Justiça e a prefeitura determinou que os moradores se-riam retirados, mas que um cadastro acom-panhado de uma numeração garantiria o re-torno destes ao Pinheirinho para recuperar seus pertences e documentos. Isso não acon-teceu. Muitas casas foram demolidas com móveis, roupas, brinquedos, eletrodomés-ticos e documentos dentro das moradias. “Não tenho mais nada. Televisão, sofá, fogão, geladeira, cama, roupas, foi tudo destruído por eles. Nem consegui voltar para pegar, cheguei lá e já tinham derrubado”, revela Re-ginaldo Santos Miguel.

Especulação imobiliária“É muito evidente que em tudo isso há

uma forte ligação com a especulação imobili-ária”, afirma Ermínia Maricato, uma das mais respeitadas urbanistas do Brasil. Esse tem sido o cerne da discussão pós-invasão militar. Para Ermínia, “há, ainda, muito desconheci-mento sobre a Constituição brasileira e um desrespeito aos tratados internacionais que o país assinou. Além de tudo, o custo social des-sa operação é muito alto, me pareceu um ab-surdo não haver uma medida preventiva para essa gente. A mudança de valor desse terreno

sem os pobres em cima vai ser um absurdo.” Para Lúcia Moraes, que fez parte da co-

missão enviada pelo governo federal em 2006 ao Pinheirinho, “esse despejo é igual ao despejo do ano passado, em Goiás, no Par-que Oeste Industrial, com a mesma violência e o mesmo desrespeito à vida humana. No centro das duas reintegrações está a especu-lação imobiliária.” Segundo ela, “a prefeitura não quer ter uma população de baixa renda, morando em um local tão valioso”.

Pós-doutora em Planejamento Urbano e Regional, a professora Sandra Costa, da Uni-versidade do Vale do Paraíba (Univap), reforça a tese. “Naquela região há muita gente graúda. Quando as terras foram ocupadas, o vice-pre-feito (Riugi Kojima, falecido em 2008) foi um dos grandes opositores da ocupação, porque a intenção deles era construir um grande par-que industrial, lá.” Antonio Donizeti estabe-lece a mesma relação. “A família Kojima tem propriedades lá, ele tinha um interesse óbvio em tirar essas pessoas do Pinheirinho e valo-rizar a região.” Estivemos no 1º Cartório de Registros de São José dos Campos e puxamos as certidões de imóveis em nome do ex-vice-prefeito. Encontramos um imóvel no Jardim Apolo, que não fica na região do Pinheirinho. De acordo com o Tribunal Superior Elei-toral (TSE), o comitê de campanha do PSDB de São José dos Campos, recebeu, em 2008, R$ 427 mil de doações declara-das de 22 empresas do ramo imobiliário, o que representa 20% do total arrecada-do. No mesmo ano, Eduardo Cury se ele-geu prefeito, mandato que cumpre até hoje. Em entrevista ao jornal O Vale, a juíza Márcia Loureiro declarou seu orgulho pela operação. “Me surpreendeu positivamente a atuação da

Polícia Militar, eu tinha essa expectativa, mas havia um receio porque as lideranças motivaram e incentivaram uma reação, uma carnificina, um banho de sangue, então eu tinha esse receio”, pon-derou a juíza, elogiando, em seguida, a atuação militar: “A polícia exerceu e desempe-nhou um serviço admirável que é motivo de orgulho para todos nós.”

Enquanto autoridades se orgulhavam do “grande fei-

to”, Reginaldo, sentado no chão do estaciona-mento da igreja, reflete sobre o futuro. “Faz tempo que eu percebi que vale muito mais puxar meu carrinho, conseguir minhas coisas do que pegar a dos outros, o problema é que os homi vêm aqui e pega o que é meu, nunca mais fiz um furto e nunca mais vou fazer; olha essas crianças, não posso ser mau exemplo para elas. O que é meu é meu, o que é deles é deles, moço. Minha família já sofreu demais por esse cabeça dura aqui, não posso mais fazer besteiras.” Ao lembrar, emocionado do Pinheirinho, descreve sua antiga morada. “Eu tinha meu sítio, lá. Coisa mais linda. Se você visse, tinha um jardim, uma hortinha, um campinho cheio de brinquedo para a criança-da vir brincar com o Pablo. Tinha macaxeira, feijão, milho, fruta do conde e até cebola. Ti-nha um letreiro escrito ‘Bem-Vindo – Minha Família, Minha Vida’.” F

A família de Reginaldo, ao relento, sem perspectivas de voltar a ter uma moradia digna

Dentro da igreja, ex-moradores do Pinheirinho tentavam ajeitar colchões e roupas de cama para descansar entre bancos e genuflexórios

12 fevereiro de 2012

por AdriAnA delorenzo

A pauta ambiental, a crise euro-peia, o novo ativismo hacker e as históricas lutas dos trabalha-dores e das mulheres permea-ram os debates do Fórum Social

Temático, realizado em Porto Alegre e em mais quatro cidades da região metropolita-na (Gravataí, Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo), de 24 a 29 de janeiro. Apesar de essa ter sido uma edição menor, 670 ati-vidades foram realizadas, todas de forma autogestionária e descentralizada. Segun-do o Comitê Organizador Local do Fórum,

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O encontro de velhas e novas lutas Evento em Porto Alegre reúne ativistas do mundo inteiro para debater a questão ambiental e os novos movimentos de ocupação, que questionam a democracia, entre outras reivindicações presentes desde o primeiro FSM

aproximadamente 40 mil pessoas parti-ciparam do evento, no qual a diversidade mais uma vez se fez presente.

Os maiores quóruns ficaram por conta das atividades com personalidades polí-ticas, como Marina Silva e Tarso Genro, e intelectuais carimbados de edições ante-riores do Fórum, como Ignácio Ramonet, Leonardo Boff e Boaventura de Sousa San-tos. Já o evento paralelo Conexões Globais 2.0 trouxe um ar de renovação à 12ª edição do Fórum, que mantém o antigo e atual de-safio de encontrar alternativas ao modelo de desenvolvimento que está sendo discu-tido ao mesmo tempo em Davos, na Suíça.

Com o Brasil crescendo, enquanto a Eu-ropa e EUA estão em crise, o tema “desenvol-vimento” chegou ao país, e ao FSM. Em Porto Alegre, a palavra vinha sempre acompanha-da de outro termo, “sustentável”. A ques-tão ambiental parece ter entrado de vez na agenda dos movimentos sociais e governos (ver matéria na pág. 18), até por conta da proximidade da Conferência das Nações Uni-das, Rio+20, que será realizada de 20 a 22 de junho no Rio de Janeiro. No FST, a presidenta Dilma Rousseff, em seu discurso no ginásio Gigantinho, também destacou a sustentabi-lidade, com a defesa de um modelo de de-senvolvimento “focado em três dimensões: econômica, social e ambiental”. E se despe-diu com um chamado aos ativistas: “Conto com o engajamento e mobilização de vocês, tenho certeza que outro mundo é possível, até a Rio+20.”

Mas não foi apenas na programação oficial que a pauta ambiental apareceu. No Giganti-nho, cartazes pediam o veto às mudanças no Código Florestal, e não faltou quem lembrasse da Usina de Belo Monte. A ministra da Secre-taria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, participava do debate “Direitos Humanos, Jus-tiça, Lutas e Memórias”, um dos promovidos pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), quando vieram as vaias, de-pois de alguns gritos de “Belo Monte, Belo Monte”. A ministra, por sua vez, afirmou que o Brasil é capaz de executar grandes projetos de desenvolvimento com respeito aos direitos humanos. “Se não tiver vaias e aplausos no Fórum Social Mundial, não será Fórum Social Mundial”, disse ela.

Em seguida, o sociólogo português Boa-ventura de Sousa Santos, figura quase oni-presente na história do FSM, provocou: “O capitalismo só é verde nas notas do dólar.” Boaventura defendeu a paralisação de Belo Monte. Criticou, ainda, a construção, por uma empresa brasileira, financiada pelo BNDES, da estrada boliviana que cortaria ao meio o Território Indígena e Parque Nacio-nal Isiboro Sécure (Tipnis). Vale lembrar que

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Evo Morales interrompeu as obras após pro-testos dos indígenas, que acabaram sofrendo forte repressão policial.

Para quem pensava que o Fórum só atraia “chapas-brancas”, as críticas mos-traram que o evento tem muito espaço e muitas pautas para serem discutidas, prin-cipalmente em relação ao que parece ser antagônico: desenvolvimento e conserva-ção da natureza com respeito aos povos e culturas tradicionais. Como disse Boa-ventura, “a esquerda é a única garantia da democracia. Porque a direita não pensa, o sistema pensa por ela”. E alfinetou: “Só que a esquerda também se esquece de pensar”.

No mesmo debate em que surgiram as vaias, a questão das tropas brasileiras no Haiti veio à tona. Aí, sim, Rosário foi aplau-dida. Ela defendeu que a missão de caráter militar se transforme imediatamente numa missão de cooperação. Isso foi antes da visita da presidenta àquele país, onde foi anunciado que a estada dos militares vai se estender por cinco anos. Sobre os imigran-tes haitianos, mais aplausos: “Os haitianos são bem-vindos ao Brasil.” No debate ante-rior, que também fez parte do ciclo de de-bates da Flacso “Direitos Humanos, Justiça e Memória”, o tema se repetiu. “O caso do Haiti é o espelho onde devemos olhar a nossa memória”, afirmou Pablo Gentili, di-retor da Flacso. O advogado haitiano Patri-ce Florivus, que estava na plateia, foi cha-mado à mesa. Segundo ele, com o dinheiro gasto para manter as tropas, poderiam ser construídas 61 mil casas por ano. Gentili lembrou que o país foi o primeiro do con-tinente a conquistar sua independência e recordou também o nome que os militares deram a uma escola apadrinhada pelas tro-pas brasileiras: Duque de Caxias.

Movimentos“As elites são as mais interessadas em

que não haja a memória”, afirmou o sociólo-go Emir Sader. “É preciso se perguntar onde estava cada um em 1º de abril de 1964.” Sinal de tal desmemória é o fato de grande parte dos nomes dos principais monumentos, vias e avenidas não serem dedicados aos líde-res populares. E como em todos os Fóruns, as lutas populares não poderiam estar au-sentes. Nesse campo, os destaques foram os movimentos de ocupação de praças, que pipocaram em várias cidades do mundo, e o violento despejo das 1,6 mil famílias do Pi-nheirinho, em São José dos Campos (SP).

Enquanto muitos participantes levanta-ram a questão Belo Monte, outros protesta-vam contra o que ocorreu no Pinheirinho. “Pinheirinho é o presente e queremos que não seja o futuro”, disse Sader. Sobrou para a presidenta Dilma, que no evento do Gi-gantinho viu um grupo de manifestantes com faixas contra a violência em São José dos Campos, cidade governada por um tu-cano, num estado também com o PSDB no poder há 18 anos. Em reunião fechada com representantes do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial, Dilma classificou a operação de “barbárie”.

Na Assembleia dos Movimentos Sociais, os 1,5 mil ativistas de 30 países reunidos na Usina do Gasômetro aprovaram a realiza-ção de um ato no terreno do Pinheirinho, na quinta-feira, 2 de fevereiro, que reuniu cer-ca de 3 mil pessoas. Os militantes também rechaçaram outra operação policial, coman-dada pelo governo do estado de São Paulo e pela prefeitura no centro da capital paulis-ta, na Cracolândia. A assembleia aprovou al-guns atos de protesto, além do pró-Pinhei-rinho. Para 5 de junho, Dia Internacional do Meio Ambiente, os movimentos preparam uma grande mobilização mundial, contra o capitalismo e em defesa da justiça ambien-tal e social. “Nós temos o desafio de sermos mais criativos na nossa organização e nas nossas formas de luta para poder envolver as amplas massas”, disse João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalha-dores Sem Terra (MST) e da Via Campesi-na Internacional. “Sem envolver as massas, não teremos força suficiente para enfrentar o poder do capital.”

Ocupar as ruas, conectadasCerca de 10 mil pessoas passaram pelo

evento Conexões Globais 2.0, que trouxe, além de convidados presenciais, web con-ferencistas via Skype. Na internet, aproxi-madamente 100 mil assistiram às 32 horas de transmissão ao vivo dos debates sobre os novos movimentos que estão colocando milhares nas ruas e nas praças pelo mundo. Realizado na Casa de Cultura Mario Quin-tana, pela Associação Software Livre e as Secretarias de Cultura e de Comunicação e Inclusão Digital do estado do Rio Grande do Sul, o evento debateu desde a internet como um direito humano até como ela pode ser um importante instrumento de ativismo político. Diferente de outras atividades, o Co-nexões encantou o público por seu formato descontraído e democrático, sem mesas tra-dicionais de debate com um palco num plano superior ao dos espectadores. Representan-tes do Occupy Wall Street, do Movimento 15-M da Espanha e ciberativistas do mundo inteiro compartilharam experiências e pen-samentos para a construção da democracia 2.0. Em 2011, os movimentos cresceram questionando a democracia representativa e cobrando uma democracia direta.

Como defendeu o ex-ministro – e hacker assumido – Gilberto Gil, no Conexões, a in-ternet é uma ferramenta fundamental para os movimentos sociais. “A internet chegou para bagunçar o coreto”, disse. E foi na inter-net que, em 18 e 19 de janeiro, foi organizada

Cerca de 10 mil pessoas passaram pelo evento Conexões Globais 2.0, que trouxe, além de convidados presenciais, web conferencistas via Skype

“Nós temos o desafio de sermos mais criativos na nossa organiza-ção e nas nossas formas de luta para poder envolver as amplas massas”, disse João Pedro Stédi-le, coordenador do MST

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uma ação em resposta ao pedido de prisão dos fundadores do site de compartilhamento MegaUpload, solicitado pelo FBI. Em seguida, diversos sites foram retirados do ar, como o da Warner Music e o do próprio FBI, Departa-mento de Justiça norte-americano, entre ou-tros. “Isso é um ataque? Não, é um protesto”, explicou o ciberativista Sérgio Amadeu.

Milhares de ativistas-hackers, articulados pelo grupo Anonymous, se mobilizaram para defender a liberdade na rede. De acordo com Amadeu, esse novo tipo de protesto junta a ação da inteligência coletiva dos hackers com o ativismo. “Precisamos trazer os mo-vimentos sociais e sindicais para essa luta”, defendeu. “O software livre é o maior exem-plo de ciberativismo.” Como disse Amadeu, a rede é a intermediação desse novo ativismo, que ganhou a força da tecnologia. Para Pablo Capilé, do movimento Fora do Eixo, hoje, o desafio é criar redes das redes, conectando todos os ativistas, ocupando os espaços, mul-tiplicando-os, criando um lastro.

Nesse sentido, o Conexões Globais tam-bém discutiu como o Estado pode se trans-formar num espaço de gestão compartilhada. Conforme explicou o ativista Marcelo Bran-co, organizador do evento, os dados abertos vão além da transparência, pois permitem que sejam feitos novos cruzamentos a partir desses dados. No painel, que debateu essa questão, os participantes apontaram a ne-

Tecnologias sociais rumo à Rio+20

Num dos eventos do FST 2012, promovido pela Fundação Banco do Brasil, foram apresentadas contribuições de entidades civis e movimentos sociais para uma plataforma da Tecnologia Social como estratégia para superar a pobreza. Muitas experiências no Brasil vêm demonstrando que, com o envolvimento da comunidade, soluções simples são capazes de mudar a realidade local. É o caso da construção de cisternas no semiárido brasileiro. Segundo Jorge Streit, presidente da FBB, a tecnologia social tem uma lógica diferente da tecnologia convencional. Esta, segundo ele, busca gerar mercados, enquanto a social envolve a comunidade e cria soluções, como a geração de renda e segurança alimentar. No caso das cister-nas, o foco é acabar com o problema da falta de água, que ainda hoje, afeta milhares de famílias.

Nesse sentido, durante o evento a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tere-

za Campello, assinou um convênio com a funda-ção para construção de 60 mil cisternas, seguindo o modelo da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). Tereza afirmou que até 2013, serão cons-truídas 750 mil cisternas na região, seguindo o modelo da ASA, que inclui a mobilização das famílias. De acordo com Tereza, “não é possível discutir a questão ambiental sem o fator humano, sem falar de inclusão social”. E essa abordagem que não separa o ambiental do social, deve ser levada à Rio+20, segundo a ministra. Na opinião de Streit, as tecnologias sociais conseguem isso. “As TS precisam fazer parte das políticas públicas e dos financiamentos bancários”, afirmou.

cessidade de que os poderes Executivo, Le-gislativo e, inclusive, o Judiciário disponibili-zem os dados abertos para esse cruzamento.

Essas são algumas das lutas travadas pela internet, reafirmadas em outro evento paralelo ao FST, realizado também na Casa Mario Quintana: o III Fórum de Mídia Livre. Lá, os ativistas destacaram “a comunicação como papel central nas lutas ao redor do mundo”. A Primavera Árabe, as ocupações e o movimento dos indignados, com seu slo-gan dos 99% contra 1%, são a prova de que hoje a defesa pelo direito à comunicação e à

internet de qualidade não está separada de outros movimentos. O FML aprovou ainda a defesa pelo marco regulatório da comuni-cação, a neutralidade da rede e o respeito à privacidade dos usuários como direitos ga-rantidos por um marco civil da internet e a reforma da Lei de Direitos Autorais. Tudo isso vai contra os projetos de leis que trami-tam nos Estados Unidos, que foram alvo dos ataques de janeiro: o Protect IP Act (Pipa) e Stop Online Piracy Act (Sopa). As propostas, assim como o Projeto de Lei no 84, de 1999, do então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), conhecida como Lei Azeredo ou AI-5 Digital, criminalizam práticas comuns, como o compartilhamento de música.

O Fórum de Mídia Livre também apon-tou para uma grande mobilização das redes para as ruas. A data escolhida é o dia 12 de maio, um sábado, quando diversos paí-ses vão comemorar um ano do Movimento 15-M, que levou milhares à Praça do Sol em Madri, em 15 de maio, com a bandeira “De-mocracia Real Já”. Além disso, os midialivris-tas saíram de Porto Alegre incumbidos com a tarefa de organizar o II Fórum Mundial de Mídia Livre, que ocorrerá no período de 16 a 18 de junho, como parte das atividades da Cúpula dos Povos da Rio+20 por Justiça So-cial e Ambiental, evento da sociedade civil paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável.

O FST de 2012 foi só o início de uma agen-da intensa para os movimentos sociais do Brasil e do mundo. O calendário continua até 2014, quando o Fórum Social Mundial retor-nará a Porto Alegre. Um dia após o encerra-mento do FST, o Comitê Organizador do Fó-rum aprovou o evento na cidade e sua região metropolitana em todos os anos pares. F

Em reunião fechada com representantes do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial, a presidenta Dilma Rousseff classificou a operação no Pinheirinho de “barbárie”

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Twitter: @vleonelE-mail: [email protected]

L ogo que a internet surgiu aqui no Bra-sil, antes mesmo da web, as interações entre computadores ocorriam sem in-

terface gráfica, estampadas em letras verdes contra o fundo preto da tela. Mesmo sem os recursos de hoje, as BBSs (mal comparando, uma espécie de provedor discado) abriam salas e mais salas de bate-papo para namo-ro virtual, porque a demanda já era enorme. Afinal, a tecnologia, desde Graham Bell e seu telefone, funciona também para aproximar as pessoas ou aliviar a sensação de solidão (às vezes, o efeito é contrário, mas isso fica pra outro texto).

Eu me lembro de uma anedota que circu-lava bastante naquele início de era dos na-moros virtuais pela rede de computadores. Numa sala de bate-papo para lésbicas, de-pois de meses de “xaveco”, sexo virtual, de-clarações de amor etc., as duas meninas mar-caram um encontro “na vida real”. Quando finalmente se conheceram no bar... Surpresa! As duas supostas “sapatas” eram homens he-terossexuais que se passavam por lésbicas para “pegar mulher” na internet.

Não sei se o caso é real ou não, mas é verossímil. Muitos homens heterossexuais já me contaram que frequentam salas de bate-papo com esse fim. Não me admiraria que dois deles se envolvessem num episódio como o que descrevi acima.

Mais que o estelionato moral de se fingir o que não se é, a anedota me chama aten-ção para o quanto nossa sexualidade pode ser plástica e fluida. Ou, explicando de ou-

çõezinhos começaram a surgir na tela, indi-cando que os dois “sims” estavam apaixo-nados. Essa experiência deixou meu amigo maravilhado. Não homofóbico, ele adorou poder viver uma relação homossexual num jogo para computador.

Meu ponto aqui é que essa virtualização das experiências sexuais nos proporciona uma libertação das definições de gêneros e orientações sexuais. No fundo, na tela, na etérea e impalpável web, somos todos cibor-gues pós-gênero. Em seu ensaio “Posgen-derism: Beyond the Gender Binary”, George Dvorski e James Hughes escreveram: “Hoje, as tecnologias informacionais, biológicas e neurológicas tornam possível o projeto de nos libertar das amarras do patriarcado e da divisão binária dos gêneros. As tecnologias pós-gênero colocarão um fim às autoiden-tidades estáticas (biológicas e sexuais), dei-xando que os indivíduos decidam, eles mes-mos, quais traços psicológicos e biológicos querem manter ou descartar”. É, sem dúvida, um admirável mundo novo. F

tro modo: fingir ser o que não se é pode ser uma maneira de exercer seu desejo de ser aquilo que você jura que não quer ser. Obviamente, há situações onde a falsidade ideológica é usada para cometer crimes, e isso é abominável. Mas o que vou abordar aqui são as ocasiões nas quais essa fantasia é consentida como parte do jogo, como num baile de máscaras.

Um amigo meu, heterossexual, jogava The Sims (um jogo de simulação da vida real) e se surpreendeu, certo dia, quando seu “sim” (avatar) se apaixonou por outro homem no jogo (essa, aliás, foi uma das grandes inovações do game, cujos algorit-mos permitiam que avatares do mesmo sexo pudessem se envolver sexual e emocio-nalmente e até assinar contratos de união homoafetiva). Meu amigo havia criado um “sim” homem e hetero, à sua imagem e se-melhança, e começou uma amizade com ou-tro “sim” do sexo masculino. Mas depois de algum tempo saindo juntos, bebendo juntos e lavando a louça juntos, gráficos de cora-

15fevereiro de 2012

Twitter: @vleonelE-mail: [email protected]

Não sei se o caso é real ou não, mas é verossímil. Muitos homens heterossexuais já me contaram que frequentam salas de bate-papo com esse fim. Não me admiraria que dois deles se envolvessem num episódio como o que descrevi acima.

Mais que o estelionato moral de se fingir o que não se é, a anedota me chama aten-ção para o quanto nossa sexualidade pode ser plástica e fluida. Ou, explicando de ou-

Nós, ciborgues

tHiago BalBi

16 fevereiro de 2012

por Antonio MArtins, do outrAs pAlAvrAs

“Por cinco séculos, a Euro-pa procurou ensinar ao mundo sua forma de en-frentar as crises e vencê-las. Fez isso com ideias e

guerras, com missionários e genocídios. Mas se esqueceu que detinha apenas uma parte do conhecimento. Fechada em si mesma, não pode mais aprender. Por isso, está à beira de um abismo, do qual dificilmente escapará.”

No meio da manhã de uma quarta-feira (25/4), o sociólogo português Boaventura Sousa Santos está abrindo uma conferência para cerca de 300 pessoas, que participam do Fórum Social Temático (FST), em Porto Ale-gre e municípios de sua região metropolita-na. O FST é um desdobramento, em pequena escala, dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs), lançados na mesma capital em 2001. Deba-te um assunto específico (“Crise capitalista, justiça social e ambiental”). Reúne cerca de 10 mil pessoas. Mas mantém, como todas as edições do FSM, a mesma aposta num futuro de democracia radical, relações sociais base-adas na garantia dos direitos humanos e fim das hierarquias internacionais que dividem o planeta entre “centro” e “periferia”.

Outra cidade brasileira, o Rio de Janeiro, sediará, em junho, a Conferência Rio+20, da ONU. Por isso, a crise ambiental é um tema-chave em Porto Alegre. Boaventura discorda do modo como tradicionalmente aborda-se a crise. “Um primeiro problema é a disputa pela definição da natureza da crise”, diz ele. “Vê-la como mera mudança climática é mui-

Boaventura e as ameaças do capitalismoPara sociólogo, só é possível enfrentar crise ambiental atacando também a desigualdade e o declínio da democracia

to reducionista. A crise é econômica, finan-ceira, energética, ambiental, civilizacional.” O sociólogo chega, então, ao primeiro ponto central de sua análise. “Como disse Marx, as microirracionalidades do capitalismo con-duziam à macroirracionalidade da vida.”

Nos próximos 50 minutos, a fala densa de Boaventura tentará destrinchar as “sete ameaças” em que se desdobra esta macroir-racionalidade. Na plateia, dezenas de pesso-as registram seus argumentos em cadernos, fotografam o sociólogo com câmeras ou celu-lares ou simplesmente acompanham a expo-sição de suas ideias.

Das ameaças elencadas por este profes-sor das universidades de Coimbra (Portugal) e Madison (Estados Unidos), quatro estão diretamente relacionadas à crise da demo-cracia; as outras três, à desigualdade e, em particular, ao poder que as grandes corpora-ções alcançaram para contornar os poderes tradicionais e se apropriar da riqueza cole-tiva por meio de mecanismos sobre os quais as sociedades não conseguem ainda incidir.

A primeira ameaça é, para Boaventura, a desorganização do Estado. “O capitalismo, em sua forma atual, já não precisa da demo-cracia”, diz ele. Por isso, dois países da Euro-pa (Itália e Grécia), além do Banco Central Europeu, são governados por “vice-reis”, an-tigos executivos do banco de investimentos Goldman Sachs. E os Estados, que durante séculos basearam seu poder na arrecadação de impostos, agora eliminam tributos e orgu-lham-se de manter suas funções apoiando-se nos mercados financeiros.

“Mas as dívidas que eles fazem precisam ser pagas um dia, e os cidadãos estão sendo chamados a contribuir pesadamente para este pagamento”, argumenta o sociólogo. O pior, no caso europeu, é um desenvolvimento particular da “síndrome de Estocolmo”, fenô-meno que leva as vítimas de um sequestro a se identificarem com seus algozes. “Para vo-cês, na América Latina, o que estamos viven-do é um déjà vu. Para sair da crise, América Latina, Ásia e África aprenderam a desobede-

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cer. A Europa não quer fazê-lo porque sempre se viu como parte dos que comandam…”

Em paralelo à desorganização do Estado, caminha a desconstrução da democracia, segunda identificada por Boaventura. “O re-gime democrático costumava ser mais que o direito elementar de depositar um voto numa urna. Significava ter acesso a saúde, educação, bem-estar. Essa parte da demo-cracia foi sequestrada pelo neoliberalismo. E já nem precisam de ditaduras, porque a própria democracia tornou-se uma ditadu-ra, neste aspecto. Está emergindo um tota-litarismo gradual, diferente do fascismo. Os direitos mais elementares são cortados. As sociedades conservam-se formalmente de-mocráticas, mas socialmente fascistas.”

Os dois outros riscos relacionados ao sis-tema político são a criminalização da dissi-dência e a recolonização da diferença. Para abordá-los, Boaventura refere-se a um caso conhecido dos que o escutam. A cerca de mil quilômetros de Porto Alegre, o Brasil viveu, no domingo 22 de janeiro, um ataque brutal do Estado a um direito social. Dois mil solda-dos da Polícia Militar desalojaram, em nome do direito à propriedade, 6 mil pessoas que haviam ocupado e transformado em bairro o Pinheirinho – uma área abandonada, perten-cente a um grande especulador nos merca-dos financeiros.

“O que ocorreu no Pinheirinho”, diz o sociólogo, “é uma pequena mostra do que se passa num continente onde os mapuches chilenos são aprisionados por resistirem ao desmatamento e às mineradoras, onde os in-dígenas são mortos no Peru quando querem defender suas terras das transnacionais que cobiçam o subsolo.” Ele prossegue: “Além de criminalizar os dissidentes, o sistema quer reenquadrar os diferentes. Ao contrário do que podíamos pensar, o racismo está de vol-ta e com força. Não há sinal de que o sexismo tenha terminado nem de que as diferenças sexuais sejam respeitadas.” Essas manifes-tações são resquícios da dominação colonial, que agora derivou em preconceito.

Para Boaventura, esse reaprisionamen-to do Estado e o ataque à democracia estão relacionados a três movimentos do capital para apropriar-se da riqueza produzida coletivamente. O primeiro, é a devastação acelerada da natureza, tema da Rio+20. “Ela é real e importantíssima, mas não exis-te sozinha. Nos últimos 20 anos, grandes transnacionais – principalmente as que atu-am com transgênicos, agronegócio, medica-mentos – conquistaram um poder inédito. Nos Estados Unidos, por exemplo, elas são

capazes de manter três lobistas para cada membro do Congresso.”

Boaventura não crê no chamado “capita-lismo verde”. Ele apoia esforços como o de buscar fontes limpas de energia, mas pensa que eles serão em vão caso as sociedades não evoluam para novas formas de produção e consumo. “E aqui as metrópoles terão um papel fundamental, porque é onde viverá, em breve, a maioria dos habitantes do planeta. O consumo responsável precisa ir além de guardar convenientemente o lixo. Ele preci-sa identificar os componentes dos produtos onde há sangue – meu celular, por exemplo, produzido com componentes extraídos dos territórios de antigas comunidades africa-nas. E pode empregar a força coletiva das metrópoles para distinguir o que não merece ser consumido ou produzido.”

A segunda ameaça relacionada ao ataque a direitos sociais é a desvalorização do traba-lho, ou o empobrecimento generalizado dos povos. “Falamos do precariado (os trabalha-dores que não têm direitos sociais) e do cibe-riado (os que são obrigados a se manter todo o tempo ligados à internet, para produzir). O problema é que esta confusão entre tempo de trabalho e tempo livre está produzindo dividendos para o capital. Trabalha-se no es-critório, no ônibus, em casa. Os tempos livres, quando existem, estão todos colonizados pelo consumo. Passa-se o tempo em shopping cen-ters – e depois, trabalhando novamente, para pagar as contas do consumismo…

“Em paralelo, há um regresso às formas de exploração que foram, no passado, ca-racterizadas como ‘acumulação primitiva’ de capital. Expulsam trabalhadores de suas terras. Eliminam-se direitos, como salários, subsídios, pensões. Isso é um terrorismo de Estado, promovido pelos Estados em tempos chamados de… ‘democráticos’!”

A sétima ameaça é, para Boaventura, a comercialização do conhecimento. “Tenta-se fazer o que não se conseguiu até agora: destruir o pensamento crítico. As universi-dades – inclusive parte das que são públicas – valorizam o conhecimento segundo seu valor de mercado. Não se considera mais a curiosidade científica. Nos Estados Unidos, em certos departamentos de Biologia, há professores que só se promovem se ao seu lado houver uma empresa financiadora. Eu pergunto: Qual o valor das humanidades, da poesia ou da literatura, neste sistema?”

Boaventura vê novos desafios para os movimentos que se articulam em torno do Fórum Social Mundial, nesta nova fase. “Estou em Porto Alegre para relançar, num

conjunto de seminários, a Universidade Po-pular dos Movimentos Sociais. As oficinas que começamos a realizar mostram clara-mente que movimentos precisam se arti-cular como nunca fizeram antes. Mulheres com operários, lésbicas com os que cons-troem a economia solidária, camponeses e pequenos empreendedores, muitas outras combinações. Se as ameaças estão bem ar-ticuladas, os movimentos também precisam preparar-se para isso.”

Segundo o sociólogo português, três desa-fios podem inspirar essas articulações: os de democratizar, descolonizar, desmercantilizar.

“Democratizar exige radicalidade”, diz ele. E explica: “Defino socialismo como sinô-nimo de democracia sem-fim, em todos os espaços. Não apenas nas instituições – mas no trabalho, em casa, na cama, Os partidos têm de entender que não têm o monopólio de representação política. Nem os movimen-tos, aliás, o têm. Estamos caminhando para um tempo de presenças. Presenças coletivas na rua, ocupando espaços que o capital rei-vindica, não ligadas necessariamente a um movimento instituído.”

“Já no esforço por desmercantilizar a vida, as cidades têm papel enorme. É preci-so retirar da esfera do comércio mercantil dimensões como as a cultura, a mobilidade urbana, as vivências, a sociabilidade. Os re-sultados são imediatos. Por exemplo: a cul-tura, que está sendo banalizada, ressurge imediatamente como espaço de resistência, quando tratada como um direito e uma ins-piração humana.”

Ao abordar a descolonização, Boaventura – que apoia os governos de Dilma Rousseff na Presidência do Brasil e do governador Tarso Genro, no estado do Rio Grande do Sul, lança algumas alfinetadas. “O Brasil, que tem cria-do tantos bons paradigmas, não pode estar ao lado do neoliberalismo nem orgulhar-se do ‘novo’ Código Florestal ou de abreviar os processos de licenciamento ambiental para apressar algumas grandes obras.”

O sociólogo confessa, ao final: “Sou um otimista trágico. Acredito nas mudanças do mundo, mas sei que elas custarão enorme esforço, mobilização, às vezes dores.” Ele faz previsões para os anos 2010: “Esta década vai exigir líderes mais esclarecidos, mais imagi-nativos; e movimentos sociais mais aguerri-dos. A luta contra o fascismo social faz-se nas instituições, mas também na defesa, nas ruas, de uma democracia sem-fim.” F

Publicado no Outras Palavras (http://www.outraspalavras.net )

18 fevereiro de 2012

por sucenA shkrAdA resk

O Fórum Social Temático 2012 – Crise Capitalista, Justiça Social e Ambiental – teve um papel mobi-lizador na articulação dos movi-mentos sociais para a preparação

da Cúpula dos Povos na Rio+20 Por Justiça Social e Ambiental. O Comitê Facilitador da Sociedade Civil, responsável pelo evento, que será promovido no Rio de Janeiro, de 15 a 23 de junho deste ano, escolheu estrategi-camente a ocasião para o anúncio oficial do encontro, apresentado a um público estima-do de 1,5 mil pessoas, ativistas brasileiros e de outros países, principalmente da América Latina. De acordo com a organização, a partir de agora, o xis da questão é como sensibili-zar a sociedade e buscar apoio para imple-mentar as atividades.

A programação será dividida entre gran-des mobilizações nas ruas, atividades auto-gestionadas e assembleia permanente dos povos. A ideia é que não fique circunscrita somente à região do Aterro do Flamengo, onde devem ser promovidas as principais atividades e que abrigará a Aldeia da Paz, onde os participantes tenham a opção de montar barracas e alojamentos. Para isso, a agenda recebe um reforço em escala glo-bal. O FST 2012 incorporou propostas de movimentos que hoje têm maior visibilida-de mundial e estiveram representados no encontro, como os Indignados, o Occupy Wall Street, ativistas da Primavera Árabe e estudantes chilenos. A convocação em rede é para que a sociedade mundial vá às ruas manifestar-se pacificamente contra o capi-talismo e em defesa da justiça socioambien-tal, em 5 de junho – Dia Mundial do Meio Ambiente. No dia 20, também está prevista uma grande marcha na capital fluminense e em outras localidades do país.

Mobilização pelo meio ambienteFórum marca início das mobilizações pela Cúpula dos Povos; ideia é que a sociedade vá às ruas em defesa da justiça socioambiental

No Comitê Facilitador da Cúpula dos Po-vos, participam atualmente mais de 30 or-ganizações e redes de caráter internacional, segundo Carmen Foro, secretária de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhado-res (CUT) e do Grupo de Articulação do Comi-tê Facilitador. “Existe a proposta de se incor-porar novas organizações. Em momento de crise mundial e do capitalismo, é um grande desafio se construir a unidade na diversidade. Pensamentos diferentes devem ser respeita-

dos, mas é possível ter uma pauta comum. Lu-tas anticapitalistas, contra homofobia e o pa-triarcado, além da luta socioambiental, pela justiça climática e soberania alimentar.”

Rio+20: processo oficialPedro Ivo de Souza Batista, representante

do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvi-mento (FBOMS) no Comitê Facilitador, ex-plicou que a meta é que a Cúpula dos Povos

19fevereiro de 2012

não se resuma a uma “grande festa popular”, mas que possa influenciar na decisão dos governantes durante as negociações oficiais da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, que reunirá chefes de Estado e representantes de cerca de 200 países, de 20 a 22 de junho, no Riocentro, no Rio de Janeiro. Esse encontro terá como temas centrais a economia verde no contexto do combate à pobreza e a gover-nança da sustentabilidade.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente lançou o documento Green Economy, abordando o conceito de econo-mia verde, e mais recentemente a ONU publi-cou o relatório “Trabalhando por uma Eco-nomia Verde, Equilibrada e Inclusiva”. Para a Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais, no FST 2012, o termo “economia ver-de” gera desconfiança e poderia resultar em mercantilização, privatização e financeiriza-ção da vida. Em relação a isso, um consenso está longe de ser alcançado.

Segundo a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, antes desse encontro da agenda oficial da Organização das Nações Unidas (ONU), representantes da sociedade

civil cadastrados oficialmente no órgão têm oportunidade de se manifestar. “Participarão de mesas de diálogo pela sustentabilidade, no período de 16 a 19 de junho, com os go-vernos, e entre os dias 13 e 15 acontecerá a fase preparatória da conferência”. Ela ainda adiantou que a economia verde será discuti-da com a União Internacional dos Trabalha-dores, durante o evento.

Mas enquanto as organizações civis tentam encontrar maneiras de pressionar os governantes para a busca da sustenta-bilidade do planeta, em Nova Iorque, par-ticipantes do processo oficial da Rio+20 (representantes de nações e de ONGs) ana-

lisaram, dos dias 25 a 27, o chamado draft zero (primeiro rascunho) do documento oficial “O futuro que queremos” a ser apre-sentado no encontro, do qual consta, atual-mente, um número superior a cem tópicos, que já causa controvérsias entre especialis-tas. Deverá haver mais rodadas até a reda-ção do texto final.

O documento propõe dez grandes eixos temáticos, sem se aprofundar em seus con-teúdos: acesso à água, agricultura, cidades sustentáveis, empregos verdes, energia, in-clusão social, oceanos, segurança alimentar, trabalho decente e redução de riscos de de-sastres naturais. Estão sendo considerados como Objetivos do Desenvolvimento Sus-tentável, que deveriam nortear as políticas dos países a partir de 2015, quando expira o prazo das ações previstas nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs).

Para a ex-ministra do Meio Ambiente, Ma-rina Silva, o draft zero é um documento insufi-ciente porque não se aprofunda nas questões do tratamento da desigualdade social. “Quan-to à governança, não se debruça em alternati-vas na área ambiental equivalentes ao papel da Organização Mundial do Comércio [OMC], nesse segmento”. Em sua opinião, a Cúpula dos Povos terá um papel importante de atu-ar “pelas bordas” do processo oficial. “É uma parte que está se deslocando do núcleo do po-der pelo poder. Vimos o exemplo dos estudan-tes no Chile, dos jovens na Espanha, nos EUA e no Brasil, por exemplo, contra a corrupção. É uma sustentação para as utopias.”

O teólogo e pensador Leonardo Boff con-sidera que a redação do documento do jeito que está não leva a nenhuma conclusão. “Não enfrenta ou assume a crítica ao modelo vigen-te. Esse conteúdo já nasceu velho, do século XIX, atendendo interesses das corporações.

De acordo com Oded Grajew, criador e membro do Comitê organizador do Fórum Social Mundial (FSM), mesmo que acordos durante a Rio+20 sejam difíceis de ser cum-pridos, por dependerem de consensos, é possível que haja um papel importante da sociedade civil. “Temos condições de levar ao Rio de Janeiro referências que possam servir de exemplo a outros países.”

Reflexões sobre movimentos e governança global

Durante a assembleia internacional dos movimentos sociais, João Pedro Stédile, do Movimento dos Sem Terra (MST), que in-tegra a organização do Fórum, traçou o pa-norama e os desafios diagnosticados pelo FST 2012. “Ainda não conseguimos tirar as massas da apatia. Os que se destacam ainda são parcela da juventude, desvinculada da produção... Temos de ser mais criativos nas formas de organização e luta para envolver as massas. Sem isso, não haverá força para enfrentar o poder do capital.”

“Bancos e mais de 500 empresas interna-cionais controlam o mundo hoje. Essa situa-ção está apenas começando e causará muitas alterações na vida dos povos.” Segundo ele,

Para saber mais a respeito da Cúpula dos Povos, o site é: http://www.cupuladospovos.org.br.

Rio+20 oficial (em português): www.rio20.info/2012

Para a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o draft zero é um documento insuficiente porque não se aprofunda nas questões do tratamento da desi-gualdade social

Entidades da sociedade civil se preparam para a Rio+20; mas, de acordo com Marina Silva, “quanto à governança, não se debruça em alternativas na área ambiental equivalentes ao papel da Organização Mundial do Comércio [OMC], nesse segmento”

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nesse contexto, o centro de poder econômico nos EUA estaria tomando medida para sair da crise, com a emissão sem controle do dó-lar. “Com isso, pensam transferir o peso da crise a quem usar a moeda. Ainda estimulam guerras locais. Não podem estimular guerra mundial, porque há sete países que detêm a bomba atômica.”

Stédile teceu mais críticas ao modelo de poder de acumulação norte-americano, que, em sua opinião, também se repete no Brasil. “Recolhe-se no orçamento, para que grande parte seja destinada ao pagamento de juros aos bancos. E mesmo com essas medidas, não estão conseguindo sair da crise”, avaliou.

Segundo ele, o capitalismo enfrenta os seus próprios desafios e o aumento das con-tradições. “Existe a dicotomia entre poder econômico e político, diferentemente do pe-ríodo da Segunda Guerra Mundial. A Rio+20 será um teatro. Poderá trazer os chefes de Estado, mas não trará o capital. Os bancos mudam os presidentes. Os governos não têm poder político para controlar a crise. Como vai ser resolvida a contradição?”

Reivindicações da sociedadeUma das principais pautas na Cúpula dos

Povos é a da promoção da visibilidade aos po-vos tradicionais. Ronaldo dos Santos, da Coor-denação Nacional de Articulação Quilombola (Conaq), lembrou que atualmente existem mais de 5 mil quilombos no País e muitos em condição de extrema dificuldade. Segundo ele, o Brasil só pode conquistar posicionamento de liderança internacional se tiver políticas e ações em benefício do povo.

Sônia Guajajara, vice-coordenadora da Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), informou que os povos indígenas irão fazer uma discussão política sobre a questão dos territórios, dos impactos dos grandes empreendimentos em terras indígenas e da necessidade do cum-primento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de direitos indígenas. “Vamos desenvolver nosso posicionamento sobre economia verde, lem-brando que nós já mantemos práticas naturais não destrutivas, com coleta e extrativismo.”

Para a Via Campesina, as bandeiras de luta

são em defesa da agroecologia e se somam aos indígenas e aos quilombolas, na reivindi-cação do respeito aos povos tradicionais. Luiz Gonzaga da Silva – conhecido por Gegê –, da Central de Movimentos Populares, reforçou a questão das lutas urbanas estarem na pauta do encontro. A luta contra a mercantilização ou privatização da natureza e dos chamados serviços ambientais é mais um tema a ser tratado pelos movimentos sociais, de acordo com o ambientalista boliviano, Pablo Solon.

Andrea Cristianne da Silva Mendes, repre-sentante do Fórum Brasileiro e da Rede Inter-continental de Economia Social e Solidária, afirmou que o movimento se preocupa com a integridade física dos trabalhadores e que a economia solidária não pode ser confundida com economia verde. “Na EcoSol, trabalhamos por outra ordem de consumo, pela agroecolo-gia e pela soberania da segurança alimentar, que convergem com as metas de sustentabi-lidade.” Para a chilena Mafalda Galdames, da Marcha Mundial de Mulheres, é momento de renovar compromissos pela soberania alimen-tar, de defender a água como bem alienável. F

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L A N Ç A M E N T O S P U B L I S H E R B R A S I L

21fevereiro de 2012

MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos

Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Educação para uma nova sociedadeD a implantação da República, em 1889,

até a Constituição Federal, em 1988, o avanço da escola pública no Brasil não

foi contínuo, pois esteve marcado pelo fardo da escravidão e pelos traços de uma socie-dade patrimonialista. Assim, em quase cem anos de República, a educação permaneceu prisioneira das condições de produção e re-produção do subdesenvolvimento nacional.

Até a década de 1940, por exemplo, as pos-sibilidades de inclusão dos filhos de negros na escola pública eram quase nulas, tanto assim que a parcela significativa dos analfabetos do País do início do século XXI possui mais de 55 anos de idade e não são brancos. Ao mesmo tempo, a apropriação patrimonialista do Es-tado por estritos segmentos sociais transfor-mou a boa escola pública em quase exclusivi-dade de reprodução de uma elite branca, sem conceder possibilidades para a universaliza-ção do acesso a toda população.

Com a aprovação da Constituição Federal após a transição da ditadura militar (1964 – 1985) para o atual regime democrático, a educação pública ganhou relevância. Mas isso se deu associado à necessária garantia de recursos orçamentários, o que permitiu rapidamente ao País alcançar a universaliza-ção do acesso ao ensino fundamental.

Nesse novo contexto constitucional de estruturação do Estado de bem-estar social no Brasil, assistiu-se ao avanço da cobertura social para praticamente todos os segmentos vulneráveis da população, como crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e Adoles-cente – ECA), idosos e portadores de neces-sidades especiais (reconfiguração do sistema de aposentarias e pensão), pobres (progra-mas de transferências de renda, como o Bolsa Família), desempregados (seguro desempre-go), entre outros. Com isso, os indicadores so-

ciais passaram a apontar melhoras inegáveis, não obstante os enormes constrangimentos impostos pelo predomínio das políticas neoli-berais desde o final da década de 1980.

Os avanços sociais não foram, contudo, plenos. O segmento juvenil, por exemplo, permaneceu à margem, sendo somente mais tardiamente objeto de maior intervenção de políticas públicas. Mesmo assim, de forma parcial e incompleta, a começar pelo pro-grama Agente Jovem do final dos anos 1990, passando pelo fracasso do programa Primei-ro Emprego do início da década de 2000, até chegar ao mais estruturado programa gover-namental Pró-Jovem.

Tendo em vista o enorme desafio atual de conceder maior atenção à problemática da inclusão juvenil no Brasil, torna-se funda-mental a temática educacional, especialmen-te aquela atinente às condicionalidades que afetam a trajetória das condições de vida do segmento social de 16 aos 24 anos de idade. Inicialmente, percebe-se que, dos 29,3 mi-lhões de jovens na faixa de 16 a 24 anos de idade, somente 32,4% mantinham-se afasta-dos do mercado de trabalho em 2008. Deste universo de 9,5 milhões de jovens inativos, 59% somente estudavam, enquanto 41% não estudavam, não trabalhavam e nem pro-curavam trabalho (3,9 milhões).

A maior parte dos jovens de 16 a 24 anos encontrava-se ativa no interior do mercado de trabalho (19,7 milhões), sendo 16,7 mi-lhões ocupados e 3 milhões na condição de-sempregados (15,2%). Dos que trabalhavam, somente 31,7% estudavam (5,3 milhões), indicando que a maior parte que se encon-trava ocupado não consegue estudar (11,4 milhões). No caso dos desempregados, 40% frequentavam escola (1,2 milhão) e 60% não estudavam (1,8 milhão).

Resumidamente, constata-se que, da po-pulação de 16 a 24 anos de idade, somente 11,8 milhões (40,2%) estudavam em 2008. Desse universo, 47,5% (5,6 milhões) não tra-balhavam nem procuravam trabalho (inati-vos), 44,9% (5,3 milhões) estavam ocupados e 10,2% (1,2 milhão), desempregados. Em relação aos jovens que não frequentavam escola (17,5 milhões), 65,1% trabalhavam (11,4 milhões), 22,2% não trabalhavam e nem procuravam trabalho (3,9 milhões) e 10,3% estavam desempregados (1,8 milhão). Para os 29,3 milhões de jovens na faixa de 16 a 24 anos de idade, a renda média familiar per capita era de R$ 512,70 ao mês em 2008.

Mas para os jovens inativos que só es-tudavam, a renda média familiar per capita era de R$ 633,20 ao mês (23,5% superior à renda média). Já para os jovens inativos que não estudavam, a renda média familiar per capita era de somente R$ 309,60 ao mês em 2008 (39,6% inferior à renda média). No caso dos jovens ocupados que estudavam, a renda média familiar per capita era de R$ 648,70 ao mês em 2008 (26,5% superior à renda média). Os jovens ocupados que não estudavam registraram renda média familiar per capita era de R$ 492,20 ao mês em 2008 (4% inferior à renda média).

Por fim, entre os jovens desempregados que estudavam, a renda média familiar per capita era de R$ 486,80 ao mês em 2008 (5,1% inferior à renda média), enquanto para os jovens desempregados que não estudavam a renda média familiar per capita era de R$ 320,20 ao mês em 2008 (37,6% inferior à renda média). Nesse quadro, parece não ha-ver dúvidas que a trajetória educacional do segmento de 16 a 24 anos de idade encontra-se diretamente vinculada ao nível de renda.

Quanto menor a renda per capita fami-liar, maior a dificuldade de continuar ativo na educação. Não obstante, os avanços ne-cessários em termos de universalização do acesso educacional relativo ao ensino médio e superior, bem como a elevação da quali-dade do ensino, há o tema estruturante da desigualdade de renda. Sem resolver isso, os discursos em favor da educação podem con-tinuar sendo apenas retórica, sem efetivida-de para a totalidade dos jovens brasileiros. F

Fonte: IBGE – Pnad (elaboração própria)

Brasil – renda média familiar per capita e a quantidade de pessoas de 16 aos 24 anos por condição de atividade em 2008

800

790

680

500

400

300

200

100

R$ 633,20

R$ 309,60

R$ 648,70

R$ 492,20 R$ 486,80

R$ 320,20

1,81,2

11,4

5,3

3,9

5,6

Inativo que estuda

Inativo que não estuda

Desocupado que estuda

Desocupado que não estuda

Desempregado que estuda

Desempregado que não estuda

Renda média familiar per capita

Número de jovens em milhões

0

14

12

10

8

6

4

2

0

22 fevereiro de 2012

A necessária Lei de

Empresas comercializam livremente cadastros

de seus consumidores, e mesmo os bancos de dados estatais não possuem regras claras

que garantam a privacidade do cidadão. E esse quadro só tende a piorar se o Estado não impuser seus limites

“Q uem não deve não teme”. Poucas frases expressam tão bem a toli-ce do senso comum quanto esta.

Todo reacionário que se preze já bradou esse axioma ao menos uma vez na vida para jus-tificar alguma barbaridade jurídica. Dito, es-crito e repetido uma infinidade de vezes com ares de verdade universal que dispensa qual-quer demonstração, esse dito popular foi e é usado para justificar inúmeras violações a direitos fundamentais.

Quando o Papa Nicolau V publicou, em 1452, sua bula “Dum Diversas”, é possível que a maioria dos africanos ainda não temesse os europeus. Mas deveriam, pois o tráfico negrei-ro, que a partir do século XVI assolou a África, dispensou qualquer tipo de culpa para ser temido. Quando Cristóvão Colombo chegou à América em 1492, os índios também não de-viam nada aos europeus, mas tinham motivos reais para temê-los. A história mostra que as

agressões nem sempre são motivadas por al-gum senso de justiça e que é sensato temer, mesmo quando não se deve nada a ninguém.

Quem não deve teme. E teme porque nem toda agressão é justa. A polícia não prende somente criminosos e os juízes não conde-nam apenas culpados. Para um morador de uma favela brasileira que não deva nada a ninguém é bastante sensato temer as ope-rações policiais, que podem invadir seu do-micílio em nome da “segurança pública”, ou as desapropriações “por interesse social”, que podem derrubar sua casa para receber a Copa do Mundo.

O temor não é fruto de culpa, mas de ameaças potenciais a direitos que podem ser lícitas ou ilícitas, justas ou injustas. Afirmar que “quem não deve não teme” é legitimar, a priori, a violação desse direito, normalmente em nome de um suposto bem maior como a “segurança pública” ou o “interesse coletivo”.

Falácias usuais de quem costuma colocar a “lei e a ordem” à frente dos direitos funda-mentais do indivíduo.

A ameaça dos cadastros

Das muitas ameaças a direitos funda-mentais legitimadas pelo “quem não deve não teme”, a mais comum delas é o cadastro de dados pessoais, seja por parte do Estado, seja por parte da iniciativa privada. A maio-ria da população não vê qualquer risco em responder às perguntas de um censo ou em preencher informações pessoais em uma rede social da internet. Qualquer advertên-cia nesse sentido, aliás, normalmente é refu-tada como paranoica.

Quando, em 1933, o regime de Adolf Hi-tler anunciou o recenseamento de todos os alemães, é possível que a maioria dos judeus do país não tenha temido a iniciativa. Mas quando, em 1939, um novo censo foi feito na Alemanha, ninguém tinha mais qualquer dú-vida da sua natureza racial.

Os censos foram uma importante arma de Hitler em seu genocídio praticado contra os judeus. Recenseamentos foram utilizados logo após a invasão da Polônia, da Holanda e da França. Na França, que não tinha tradição em recenseamentos e que, desde o censo de 1872, não perguntava mais sobre a religião dos indivíduos, a taxa de mortalidade dos judeus foi de 25%. Na Holanda, onde o re-censeamento já estava automatizado, 73% dos judeus foram mortos. Claro que há ou-tros fatores que devem ser levados em conta, mas certamente a dificuldade de cadastrar e processar os dados pessoais dos franceses contribuiu para essa disparidade.

A memória dos censos nazistas demons-tra como o mau uso de cadastros de dados pessoais pode ser devastador. É angustiante imaginar o estrago que Hitler causaria se ti-vesse tido acesso a bancos de dados pes soais informatizados como os que detêm hoje os governos e as redes sociais da internet. Po-deria identificar e localizar com extrema facilidade milhões de judeus, homossexuais e comunistas, dentre tantas minorias perse-guidas pelo nazismo, reduzindo em muito o tempo e o esforço para discriminá-las.

Hitler precisou fazer recenseamentos

A necessária Lei de

Empresas comercializam livremente cadastros

de seus consumidores, e mesmo os bancos de dados estatais não possuem regras claras

23fevereiro de 2012

Proteção a Dados Pessoaisdificuldades para trocar informações entre si, devido à falta de um indexador em comum confiável. O nome completo não é um inde-xador seguro, pois os casos de homônimos são frequentes. Por outro lado, as carteiras de identidade são emitidas pelos estados e o CPF, apesar de ser um número nacional, não é um documento obrigatório para todas as pes-soas. Com a implantação do Registro de Iden-tidade Civil (RIC) pelo Ministério da Justiça, já regulamentada pelo Decreto nº 7.166, de 5 de maio de 2010, e que deve acontecer nos pró-ximos anos, os bancos de dados brasileiros terão finalmente um indexador em comum, possibilitando às autoridades fácil acesso a um mapa detalhado da vida de cada cidadão.

Evidentemente, não só o Estado se be-neficiará do número único, mas também as empresas privadas que mantêm cadastros informatizados e que poderão trocar dados entre si com muita facilidade, bastando in-dexar seus registros com base no RIC. Certa-mente, as empresas usarão esse imenso ban-co de dados para direcionar seu marketing discriminando seus consumidores de acordo com seu perfil, o que talvez não incomode a maioria das pessoas.

Muito mais incômodo, porém, é lembrar que os dados não serão acessados por “O Es-tado” ou “A Empresa”, mas por uma infinidade de servidores públicos e empregados da ini-ciativa privada que terão acesso a eles. O po-licial que anotou sua placa de trânsito poderá ter acesso ao resultado de seu último exame de sangue. A atendente do telemarketing po-derá saber em qual restaurante você comeu ontem. Um intercâmbio de informações que poderá ser utilizado para discriminar e sele-cionar tanto um candidato a um novo empre-go quanto uma nova vítima de sequestro.

É preciso, portanto, aperfeiçoar a legisla-ção brasileira para dar conta desta nova rea-lidade e limitar o acesso e o intercâmbio de informações nessa infinidade de bancos de dados atualmente disponível. Há uma infini-dade de normas dispersas que tratam cada uma de um cadastro específico. Alguns ban-cos de dados, como os da Receita Federal, são sigilosos por lei; outros, são protegidos ape-nas por regulamentos; e os cadastros das em-presas privadas são regulados no máximo por

para discriminar. Qualquer neonazista hoje em dia precisaria apenas criar um aplicativo de Facebook e passar a coletar dados como religião, orientação sexual e preferência po-lítica para seu banco de dados pessoal. Os dados já estão lá fornecidos, sem maiores cuidados, por todos aqueles que consideram que “essas informações já são públicas”.

Cadastrar para discriminar

Cadastros são a principal ferramenta da discriminação em massa. Eles podem ser uti-lizados tanto para discriminar positivamente quanto negativamente. Depende – é claro – do ponto de vista. Um banco dará a seus clientes tratamento diferenciado de acordo com a ren-da mensal cadastrada de cada um deles. As re-des sociais da internet oferecerão a seus usuá-rios produtos diferentes em seus anúncios de acordo com seus dados cadastrados e hábitos de navegação. E o Estado cobrará mais ou me-nos imposto de renda de acordo com a decla-ração cadastrada pelo contribuinte.

Muitas discriminações são socialmente toleradas, e algumas podem ter um papel social bastante positivo. O uso de cadastros para cobrar mais imposto de quem pode pagar mais, por exemplo, parece inquestio-nável. A questão é que esse mesmo banco de dados pode ser utilizado com finalidades totalmente diferentes, seja em investigações criminais judicialmente não autorizadas ou por simples curiosidade de um servidor pú-blico que deseje saber a renda do cunhado para pedir-lhe um empréstimo.

Atualmente, praticamente todas as infor-mações relevantes da vida de um indivíduo podem ser encontradas nos bancos de dados do Estado ou de empresas privadas. A Re-ceita Federal sabe o que você tem e quanto você ganha; o Detran sabe como você anda dirigindo; o SUS ou seu plano de saúde sabe as especialidades dos médicos que você tem consultado e os exames de saúde que você tem feito; as administradoras de cartão de crédito sabem os restaurantes que você fre-quenta e as lojas onde você compra; as ope-radoras de telefonia sabem com quem você conversa e o Google sabe os assuntos que você tem pesquisado na internet.

Até hoje, esses bancos de dados tinham

um “código de ética” criado pelas próprias empresas. Na prática, a maioria desses cadas-tros sequer é protegida por criptografia, e não são raros os casos de empresas que comer-cializam esses bancos de dados com informa-ções pessoais de seus clientes. Basta ver o nú-mero de telefonemas indesejados oferecendo produtos e serviços por empresas nas quais o cidadão nunca se cadastrou, mas que conhece não só seus dados de contato como também seus hábitos de consumo.

É preciso que se crie, portanto, uma Lei de Proteção a Dados Pessoais para dar um tratamento unificado aos cadastros de dados pessoais no Brasil. A questão é tão importan-te que a União Europeia possui, desde 1995, a Diretiva 95/46/CE, que regula o tratamen-to de dados pessoais e sua livre circulação.

Atualmente, no Brasil, o cidadão não tem acesso sequer aos seus dados na maio-ria desses cadastros e muito menos pode alterá-los ou apagá-los. É necessário que a lei garanta ao cidadão o acesso a esses dados por meio da internet, com a possibilidade de retificá-los ou mesmo, em muitos casos, de apagá-los. É preciso ainda que se responsa-bilize civil e criminalmente os donos desses cadastros pelo mau uso que deles possa ser feito, seja por falhas na segurança de um banco de dados que não é criptografado, seja pelo comércio indevido desses dados.

Não se pode deixar que o livre merca-do defina suas próprias “políticas de priva-cidade” de acordo com sua conveniência, pois discriminação é uma questão de ordem pública que precisa ser regulada pelo Esta-do. A ausência de regulamentação favorece inúmeros usos indesejados desses bancos de dados, que variam desde um simples te-lefonema de telemarketing até um sequestro.

A maioria das pessoas que preenche um cadastro de boa-fé não vê qualquer risco em informar seus dados pessoais. Cabe, então, ao legislador regular e restringir esses ris-cos, garantindo ao cidadão uma proteção contra a discriminação em massa por parte de empresas e do próprio Estado, que esses cadastros podem viabilizar. F

TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.

24 fevereiro de 2012

Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

AleX cAllinicos*

A especificidade do imperialismo norte-americanoRobert Wade sugeriu o seguinte experimento mental:Imagine que você é um aspirante a imperador romano no mundo

de hoje, de Estados soberanos, mercados internacionais e economias capitalistas. Para não ter que utilizar frequentemente sua força mili-tar, precisará agir mediante a hegemonia em vez da coerção, e todos deverão pensar que seu predomínio é o resultado natural de acor-dos institucionais, fundados no sentido comum, os quais são justos e equitativos. Se você – um ator unitário – pudesse criar resolutamen-te um contexto internacional de normas de mercado para promover seus interesses, que tipo de sistema criaria? (2003, p. 77).

Wade imagina uma “arquitetura financeira internacional” na qual não se aplica o padrão-ouro, mas, em seu lugar, atua a moeda da po-tência hegemônica como a principal moeda de reserva internacional, em que seus mercados financeiros são “dominantes nas finanças in-ternacionais” e há “somente um capital privado integrado ao merca-do mundial”, sem barreiras de entrada ou de saída, tudo isso sob a su-pervisão de “uma esquadrilha de organizações internacionais que se assemelham às cooperativas dos Estados-membros e que outorgam a legitimidade do multilateralismo, mas as quais você (isto é, a po-tência hegemônica) pode controlar mediante o estabelecimento de normas e o bloqueio dos efeitos dos quais não goste”, e defendido por “um grande exército, com a finalidade de respaldar sua hegemonia com coerção”. A arquitetura financeira mundial lhe permite financiar uma força militar assombrosa e barata. O resultado é o seguinte:

Essa arquitetura econômica internacional permite ao seu povo consumir muito mais do que produz, além de permitir que suas em-presas e seus capitais possam entrar e sair rapidamente de outros mercados, maximizando os rendimentos em curto prazo; ela obstrui os fluxos líquidos das rendas de tecnologia do restante do mundo por décadas e, portanto, aumenta os incentivos de suas empresas para inovar e, por meio das forças de mercado aparentemente livres de poder político, reforça seu domínio geopolítico em outros Estados. Será melhor ainda se seus cientistas sociais explicarem ao público que um processo de globalização desestruturado e sem agentes – a implacável transformação tecnológica que reduz o tempo e as dis-tâncias – está por trás de tudo isto, fazendo com que todos os Estados, incluindo o seu, percam poder ante os mercados. Você não quer que os outros pensem que a globalização, dentro do contexto construído por você, aumenta a sua capacidade de ter tanto um grande exército quanto um próspero setor civil, ao mesmo tempo em que diminui a capacidade de todos os outros (Wade, 2003, p. 78, 80-82).Evidentemente, este experimento mental serve como uma luva

para a hegemonia americana contemporânea. O ponto fraco do esbo-ço um tanto quanto irônico de Wade é que talvez fundamente excessi-vamente a “arquitetura econômica atual” no concreto da necessidade histórica. Portanto, durante a era de Bretton Woods nos anos 1950 e 1960, quando se poderia dizer que a preeminência econômica e geo-política dos Estados Unidos no mundo capitalista avançado era maior do que é atualmente, o dólar ainda estava respaldado pelo ouro. E a

O imperialismo e a economia

hegemonia britânica do século XIX também implicou a generalização do padrão-ouro. Por outro lado, como reconhece Wade, o papel do dólar como principal moeda de reserva internacional é uma espada de dois gumes2. Entretanto, tem razão ao insistir que as estruturas e as instituições contemporâneas transacionais trabalham para dar vantagem especificamente ao capitalismo norte-americano. Lembre-mo-nos da pergunta de Brenner:

Por que, comparada ao mundo capitalista avançado, a expansão imperialista que prevaleceu antes de 1945 e foi responsável pela ri-validade interimperialista que levou à guerra não conseguiu fazer isso depois? Por que, com relação à Europa, ao Japão e, de fato, à grande parte da Ásia Oriental, a hegemonia norte-americana não pôde ter uma forma imperialista durante grande parte do período de pós-guerra – no sentido dado por Harvey à palavra – isto é, a apli-cação do poder político para consolidar, exacerbar e tornar perma-nente a vantagem econômica já existente? (2006b, p. 90).Responder a essas perguntas implica considerar os interesses dos

Estados Unidos e dos demais países capitalistas avançados. No caso dos Estados Unidos, a resposta, em um sentido geral, é que a estrutura específica e o peso mundial do capitalismo norte-americano lhe deram a capacidade de dominar e conduzir os principais Estados capitalis-tas sem construir um império territorial tradicional: o imperialismo não territorial de Porta Aberta foi mais adequado aos interesses dos Estados Unidos. Mas a maneira como Brenner coloca a questão dá a entender que a hegemonia norte-americana não funcionou para os in-teresses dos capitais dos Estados Unidos em oposição àqueles capitais baseados em economias avançadas. Em um artigo inédito, o autor sus-tenta que a hegemonia dos Estados Unidos serviu para institucionali-zar as condições gerais favoráveis para todos os capitais, norte-ame-ricanos e estrangeiros (Brenner, 2007b). Simon Bromley argumenta sobre a relação entre a invasão do Iraque e a estratégia petroleira dos Estados Unidos, sustentando a mesma linha de raciocínio:

A forma de controle que os Estados Unidos estão procurando esquematizar agora [no Iraque] é aquela que está aberta ao capital, às commodities e ao intercâmbio entre muitos Estados e empresas. Não pode ser vista (ainda?) como uma estratégia economicamente exclusiva, como parte de uma forma depredadora da hegemonia. Pelo contrário, os Estados Unidos utilizaram seu poder militar para

25fevereiro de 2012

projetar uma ordem geopolítica que sirva como fundamento político para seu modelo preferido de economia mundial, a saber: uma ordem internacional liberal cada vez mais aberta. A política dos Estados Uni-dos apontou para a criação de uma indústria do petróleo internacio-nal aberta, na qual os mercados, dominados pelas grandes empre-sas multinacionais, designam capital e matérias-primas. O poder de Estado dos Estados Unidos se manifesta não somente para proteger os interesses particulares das necessidades de consumo e de empre-sas dos Estados Unidos, mas para criar as précondições gerais de um mercado mundial petroleiro, confiante na expectativa de que, como economia líder, será capaz de satisfazer todas as suas necessidades por meio do intercâmbio comercial (Bromley, 2005, p. 253-254).

Neste momento, é importante distinguir três pontos diferentes. Em primeiro lugar, como já argumentei, os Estados Unidos praticam uma forma de imperialismo não territorial, fundamentado na regra básica de que uma ordem liberal internacional aberta beneficiará, de modo geral, os capitais que estão baseados nos Estados Unidos. Em segundo lugar, para que essa hegemonia funcione de uma forma – pode-se di-zer – estável, teria que assegurar benefícios significativos para outros Estados capitalistas. Mas, em terceiro lugar, não há sequer a mínima evidência de que as instituições que os Estados Unidos constroem e as políticas que desenvolvem sejam neutras com respeito aos interesses dos capitais baseados tanto em seu próprio território quanto em ou-tros Estados. Com base em uma perspectiva liberal internacionalista, John Ikenberry sustenta que nos dois momentos históricos em que o poder relativo dos Estados Unidos foi maior, depois de 1945 e no final da Guerra Fria, o país renunciou temporariamente às vantagens e fez importantes concessões a outros Estados com o intuito de institucio-nalizar uma “ordem constitucional” internacional que maximizaria os lucros em longo prazo de todos os Estados. Ikenberry aponta: “Ordens estáveis são aquelas nas quais o reembolso para o poder é relativa-mente baixo, e para as instituições é relativamente alto. Essas são, jus-tamente, as circunstâncias que caracterizam as ordens constitucionais mais desenvolvidas” (2001, p. 255).

Mas esse argumento não explica de modo suficiente a questão de como são distribuídos “os reembolsos para as instituições”, conside-remos dois casos que acabaram saindo caros para os Estados Unidos se comparados a outros Estados. O primeiro, se refere à arquitetura financeira internacional, a qual Wade alega que age em favor do ca-pitalismo norte-americano. Peter Gowan sustenta, também, que os Estados Unidos aproveitaram a falta de estabilidade financeira dos anos 1970 e 1980, particularmente depois do “Choque Volcker” de

outubro de 1979, quando Paul Volcker, presidente do Banco Central dos Estados Unidos, elevou sensivelmente as taxas de juros, impondo uma dura disciplina monetária às economias dos Estados Unidos e do mundo. O objetivo de Volcker era construir o que ele chama de regime do dólar de “Wall Street”, em torno de um dólar que, apesar de ser agora uma moeda puramente fiduciária e sem respaldo do padrão-ouro, permaneceu como o eixo central do sistema financei-ro internacional, vantagem essa que Washington soube utilizar para promover em todo o mundo as políticas neoliberais favoráveis aos interesses dos bancos de investimento norte-americanos e coope-rações transnacionais (Gowan, 1999)3. Desse modo, o governo de Clinton provocou profundas tensões com a Grã Bretanha e a Alema-nha, em particular quando respondeu à crise financeira mexicana de 1994-1995 pressionando o Grupo dos Sete para que liderasse os pa-íses industriais na criação de um pacote de resgate, que beneficiou principalmente os investidores norte-americanos. Durante a crise de 1997-1998 da Ásia do Leste, a própria administração bloqueou noto-riamente a proposta japonesa de um Fundo Monetário Asiático, que teria limitado a capacidade do Fundo Monetário Internacional (FMI) para gerenciar a crise e, em conjunto com o FMI, impulsionou nos go-vernos da Ásia políticas de liberalização econômica planejadas tanto para debilitar o denominado “capitalismo de amigos” (com estreitos vínculos entre o Estado, os bancos e as corporações privadas, dife-rentes do modelo econômico da Ásia do Leste) quanto para tornar as economias afetadas mais permeáveis ao capital norte-americano. Em sua análise dessa crise, Robert Wade e Frank Veneroso (1998) des-crevem o complexo “Wall Street-Tesouro dos Estados Unidos-FMI” com o fim de ressaltar o elo que une as instituições financeiras inter-nacionais aos interesses especificamente norte-americanos.

Um segundo exemplo importante e que também data da adminis-tração Clinton consiste na expansão, em primeiro lugar, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, logo em seguida, da União Eu-ropeia (UE) na Europa Oriental e Central. Essa política representa uma violação do acordo feito entre Mikhail Gorbatchev, o último presidente soviético, o chanceler alemão Helmut Kohl e James Baker, o secretário de Estado dos Estados Unidos, durante as negociações em 1990-1991, as quais permitiram que a Alemanha unificada permanecesse na Otan em troca da promessa de que, nas palavras de Baker, “não haverá ex-tensão da jurisdição atual da Otan em direção ao Leste”4. A ideia por trás da violação dessa promessa pelo governo de Clinton foi expressa muito claramente por Zbigniew Brzezinski, o principal pensador geo-estratégico do Partido Democrata. Brzezinski argumenta que a UE é “a ponte eurasiática do poder norte-americano e um possível trampolim para a expansão do sistema democrático mundial na Eurásia”.

A ampliação da Otan e da UE em direção à Europa Central e Oriental estenderia, consequentemente, o poder norte-americano: “Se a União Europeia se tornar uma comunidade geograficamente maior [...] e se a Europa basear sua segurança em uma aliança contínua com os Estados Unidos, então se deduz que a Europa Central, seu setor mais exposto geopoliticamente, não poderá ser excluída de compartilhar da sensa-

política mundial hoje1

1 Este texto é um excerto do publicado na quinta edição da revista Crítica y Emancipación. Buenos Aires, CLACSO, 2011, também disponível emwww.biblioteca.clacso.edu.ar. Originalmente publicado em Callinicos, Alex. Imperialism and global political economy (Cambridge, UK: Polity Press, 2009).

2 Ver “Una redistribución del poder económico mundial”, p. 137.3 Ver também Parboni (1981: Cap. 1).4 Houve um considerável debate entre os participantes, que questionavam se essa promessa foi parte do

acordo fi nal na unifi cação alemã; ver Gordon (1997). Mas a história norte-americana semi-ofi cial das negociações esclarece que foi um gole amargo para Gorbachov e sua equipe o fato de que até os mem-bros da República Federal incorporassem a Alemanha do Leste à OTAN. Ver Zelikow e Rice (1997).

26 fevereiro de 2012

Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.

CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org).FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados Latino-Americanos (www.flacso.org.br).

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ção de segurança da qual goza o restante da Europa mediante a ‘aliança transatlântica’” (Brzezinski, 1998, p. 74-79). Stephen Cohen descreveu a “verdadeira política dos Estados Unidos” com relação à Rússia “como a exploração implacável, ao estilo de quem ganhar leva tudo, da debi-lidade russa pós 1991” que inclui o “cerco militar crescente das bases dos Estados Unidos e a Otan à Rússia, dentro e próximo de suas fron-teiras – que já estão instaladas ou em vias de –, em pelo menos a me-tade das outras 14 repúblicas da ex-União Soviética, desde o Báltico e a Ucrânia até a Geórgia, Azerbaijão e os novos Estados da Ásia Central. O resultado é uma cortina de ferro inversa construída pelos Estados Unidos e a remilitarização das relações russo-americanas”, que, por sua vez provocou uma política exterior de Moscou mais assertiva com Vladimir Putin (Cohen, 2006). Os perigos da estratégia de Washington foram amplamente demonstrados pela guerra originada entre a Rússia e a Geórgia em agosto de 2008, após a tentativa do exército georgiano, equipado e treinado pelos Estados Unidos e Israel, de tomar o territó-rio da Ossétia do Sul, protegido por Moscou. [...]

Capitalismo mundial nos pilares de Hércules?Ao debater a tendência decrescente da taxa de lucro e suas con-

tratendências, Gramsci pergunta: “Quando podemos imaginar que a contradição chegará a seu nó górdio, um momento normalmente in-solúvel que requer a intervenção de Alexandre e sua espada? Quando toda a economia mundial se tornar capitalista e chegar a certo nível de desenvolvimento, isto é, quando a ‘fronteira móvel’ da economia capi-talista mundial chegar aos pilares de Hércules” (1995, p. 429-430)”. A ideia de que o capitalismo, de fato, chegou aos pilares de Hércules é um lugar--comum hoje em dia. É o que vemos, por exemplo, na afirmação muito mais otimista de Thomas Friedman de que a globalização “está nivelando e diminuindo o mundo” e, “portanto, será impulsionada, cada vez mais, não apenas pelos indivíduos, mas também por um gru-po muito mais diverso de indivíduos (nem ocidentais, nem brancos). Indivíduos de todas as partes do mundo plano estão tomando o po-der” (2005, p. 12). Além disso, o fato de um jornal sério como o Finan-cial Times conceder a esse supercrescimento sua premiação Business Book de 2005 somente pode ser explicado pela euforia que rodeia os “mercados emergentes” – e especialmente o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) – durante a bolha do crédito de meados do ano 2000.

Compreender hoje os contornos reais da economia mundial é im-portante se quisermos obter uma medida exata da evolução futura do imperialismo. A teoria principal das Relações Internacionais tentou re-solver o problema do formato geopolítico desde o fim da Guerra Fria. Os realistas estruturais se apressaram em afirmar que a forma apa-rentemente unipolar assumida pelo sistema estatal após o colapso da União Soviética seria meramente uma fase de transição, na qual a su-premacia dos Estados Unidos provocou a formação de uma coligação que procura equilibrar-se contra ela. Como Kenneth Waltz escreveu em 1993, “a resposta de outros países a qualquer um deles que busque ou ganhe preponderância é tentar se equilibrar contra ele. A hegemonia conduz ao equilíbrio [...]. Isso está acontecendo agora, mas de forma titubeante” (1993, p. 77). Questionado sobre o não surgimento de tal coligação, nosso autor sustenta que sua previsão foi correta, mas que não é possível determinar o momento em que virá: “A teoria realista prevê que os equilíbrios interrompidos serão restaurados algum dia. Uma limitação da teoria, comum às teorias das Ciências Sociais, é que não se pode dizer quando” (Waltz, 2000: 27). Fiel às premissas estru-turais realistas, William Wolforth afirma que a unipolaridade posterior a 1991 representa um ponto de descanso estável e não um momento passageiro, pois os limites dos Estados Unidos, tanto fixos quanto ma-

leáveis, são muito maiores que os de qualquer um dos outros pode-res, e porque a fragmentação geopolítica da Europa e da Ásia do Leste dificulta que qualquer outro Estado consiga a centralização política e a concentração de recursos necessários para desafiar a hegemonia norte-americana (Wolforth, 1999).

As relações econômicas aparecem em tais explicações somente na medida em que afetam a capacidade material e, portanto, o poder relativo dos Estados. Por outro lado, os internacionalistas liberais ar-gumentam que o desenvolvimento da moderna economia capitalista mundial transformou o comércio internacional em um jogo de soma positiva que dá um incentivo aos Estados cujas estruturas sociopo-líticas internas são liberais e capitalistas para cooperar e para insti-tucionalizar esta cooperação e, consequentemente, reduz bastante a probabilidade de guerra entre eles. Como Andrew Moravcsik defende, em uma reafirmação sofisticada da teoria liberal das Relações Interna-cionais, “o desenvolvimento econômico mundial nos últimos 500 anos esteve estreitamente relacionado com uma maior riqueza per capita, com a democratização, com os sistemas educacionais que reforçam novas identidades coletivas e com os maiores incentivos para tran-sações econômicas transfronteiriças. A teoria realista não dá a essas mudanças nenhuma importância teórica” (1997, p. 535). Aqui há uma superposição entre o internacionalismo liberal e o marxismo clássico, que também não faz referencia à economia mundial capitalista como um jogo de soma zero: o desenvolvimento dinâmico das forças produ-tivas sob o capitalismo pode, em condições adequadas, aumentar tanto os benefícios quanto os salários reais. Essas condições foram obtidas em grande parte durante o grande boom dos anos 1950 e 1960 nas economias avançadas. Por outro lado, é uma implicação da concepção da hegemonia capitalista mundial o fato de que a potência hegemônica forneça bens públicos (por exemplo, um sistema monetário interna-cional estável) que forneça a outros Estados um incentivo para obede-cer e cooperar. Mas a convergência entre o marxismo e o liberalismo é somente parcial. A economia política marxista conceitua o capitalismo como um processo inerentemente contraditório e instável, constituído pela exploração do trabalho assalariado e responsável por periódicas e destrutivas crises, além de um gerador sistêmico do desenvolvimento desigual. Qualquer avaliação honesta da economia mundial contempo-rânea teria de admitir que a economia política marxista tem muito a oferecer ao afirmar este ponto de vista sobre o capitalismo. F

*Doutor pela Universidade de Oxford. Professor de Ciências Políticas na Universidade de York e diretor do Centro de

Estudos Europeus do King’s College de Londres.

27fevereiro de 2012

28 fevereiro de 2012

por idelber AvelAr

A cada temporada eleitoral nos EUA, vários colunistas da mídia brasilei-ra tecem comentários deslumbra-dos sobre as prévias partidárias e o espetáculo democrático. Mesmo

daqueles que criticam a política externa ou a arrogância autocentrada dos EUA, é comum escutar elogios ao funcionamento interno da democracia estadunidense. Nas últimas elei-ções presidenciais, contei pelo menos dez ocorrências da expressão “uma democracia em funcionamento” nos grandes jornais, revis-tas ou portais brasileiros. Na verdade, se estu-darmos o sistema político dos EUA, especial-mente sua história em décadas recentes, à luz de todos os atributos que poderíamos associar ao termo “democracia”, veremos que a defini-ção não se sustenta. O movimento Ocupar Wall Street sabe disso, e essa é, inclusive, a raiz principal da mobilização. Mas o mesmo jorna-lismo que alude ao caráter “vago” das reivindi-cações do OWS não tem, da democracia, uma compreensão menos vaga que “sistema em que os cidadãos comparecem às urnas e esco-lhem seus representantes” – o que pode pare-cer uma definição perfeitamente concreta, até que você comece a se perguntar quem quali-fica as pessoas como cidadãos, o que significa exatamente escolher e quais são as condições de possibilidade desse ato de escolha. Que seja feito esse tipo de pergunta, convenhamos, é esperar demais do nosso jornalismo.

Uma das indagações mais frequentes de quem acompanha de longe o sistema político dos EUA e nota a quase inexistência de dife-renças significativas entre a política exter-na de democratas e republicanos é sobre o porquê de não existirem outras alternativas. Certamente, isso não se deve ao fato de que os eleitores estejam satisfeitos com as duas opções. Pesquisa recente revelou que 86% dos estadunidenses reprovam o Congresso do país em sua totalidade, ou seja, se mani-festam insatisfeitos tanto com democratas como com republicanos. Se apenas míseros

Democracia à venda nos EUA O sistema de fi nanciamento de campanhas e as imensas

difi culdades impostas aos “terceiros partidos” fazem com que o eleitor estadunidense, mesmo insatisfeito com democratas e

republicanos, tenha suas escolhas restritas

14% aprovam a atividade legislativa de am-bos os partidos representados no Congresso, por que não emerge um terceiro? (Há uma infinidade de “terceiros partidos” nos EUA, claro, mas nenhum com representação real no Legislativo e chances reais de acesso ao Executivo.) Digamos que há, para isso, uma resposta longa e uma curta. A curta é a se-guinte: porque é impossível. Não difícil, não improvável, mas impossível, a não ser que se destrua completamente o sistema político existente para a construção de outro. Vamos à resposta longa, que fundamenta a curta.

Dois pilares prin-cipais sustentam o atual bipartidaris-mo dos EUA – que é tentador chamar de unipartidaris-mo, posto que as políticas aplicadas por democratas e republicanos não se diferenciam significativamente, por mais que Obama seja uma pessoa dife-rente de Romney, e Clinton bastante diverso de Bush. Esses pilares são, por um lado, o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais – sustentado por uma ju-risprudência recente, que ba-sicamente concede estatuto de cidadania ao capital – e, por outro, uma legislação eleitoral que impossibi-lita a emergência de candidatos que não tenham se com-

prometido até os ossos com esse mesmo capital. Na prática, ambos os pilares tornam letra morta qualquer definição minimamente completa de demo-cracia, ou seja, governo do povo, governo da plebe, governo dos pobres, da maioria. Passemos a esses detalhes.

Entender o financiamento das campa-nhas eleitorais nos EUA exige, em primeiro lugar, entender a diferença entre soft money e hard money. Este último é o dinheiro doa-do diretamente a candidatos. Ele é regulado pela Comissão Federal das Eleições, limitado a pessoas físicas e a um máximo de US$ 2.5 mil por candidato, e aproximadamente US$ 46 mil para o total de candidatos com os quais o indivíduo deseje contribuir. No uni-verso milionário das campanhas eleitorais de hoje, pode até parecer um limite razoável – até que você entenda o que é o soft money, o dinheiro doado, tanto por pessoas físicas como jurídicas, a partidos políticos, organi-zações e grupos que não sejam o comitê de

campanha do candidato. Dentre esses grupos, os mais decisivos são os Comi-

tês de Ação Política (PACs, na sigla em inglês) e os 527s. Em agosto do ano

Dois pilares prin-cipais sustentam o atual bipartidaris-mo dos EUA – que é tentador chamar de unipartidaris-mo, posto que as políticas aplicadas por democratas e republicanos não se diferenciam significativamente, por mais que Obama seja uma pessoa dife-rente de Romney, e Clinton bastante diverso de Bush. Esses pilares são, por um lado, o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais – sustentado por uma ju-risprudência recente, que ba-sicamente concede estatuto de cidadania ao capital – e, por outro, uma legislação eleitoral que impossibi-lita a emergência de candidatos que não tenham se com-

mil por candidato, e aproximadamente US$ 46 mil para o total de candidatos com os quais o indivíduo deseje contribuir. No uni-verso milionário das campanhas eleitorais de hoje, pode até parecer um limite razoável – até que você entenda o que é o soft money, o dinheiro doado, tanto por pessoas físicas como jurídicas, a partidos políticos, organi-zações e grupos que não sejam o comitê de

campanha do candidato. Dentre esses grupos, os mais decisivos são os Comi-

tês de Ação Política (PACs, na sigla em inglês) e os 527s. Em agosto do ano

luCia

no tass

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29fevereiro de 2012

passado, o jornalista brasileiro Elio Gaspari afirmou que “no atual sistema [brasileiro], os diretores das empresas privadas tiram dinheiro do cofre dos acionistas e jogam-no nas campanhas de seus candidatos. Esse tipo de financiamento poderia ser limitado, ou mesmo proibido, como sucede nos Esta-dos Unidos”. A afirmação é completamente absurda e se baseia no fato de que empresas não podem, nos EUA, contribuir diretamente com o comitê de campanha de um candida-to. Mas isso não quer dizer que elas não fa-çam campanha. A afirmação de Gaspari só é possível graças à total omissão do papel dos PACs e dos 527s nas eleições.

Um Comitê de Ação Política é o nome dado a um grupo de qualquer natureza que se forma para fazer campanha para um candidato ou para defender uma pauta, em geral no Legislativo. O dinheiro doado aos PACs também é limitado, mas, como sempre é o caso dos limites ao capital nas campa-nhas eleitorais dos EUA, trata-se de uma limitação formal, muito mais que real. As contribuições das pessoas físicas aos PACs de um determinado candidato não podem exceder US$ 5 mil ao ano, o que ainda pode parecer um limite razoável – até que você se dê conta de que a legislação permite do-ações ilimitadas a PACs que façam “gastos independentes”, ou seja, que advoguem con-tra ou a favor de um candidato sem coorde-nar suas ações com o comitê de campanha do candidato beneficiado. Num mundo em que a informação trafega na velocidade da internet e no qual só existem dois partidos políticos e no máximo dois candidatos com-petitivos a qualquer cargo, no Executivo ou no Legislativo, essa cláusula basicamente elimina qualquer limitação aos PACs. Tam-bém sobre a ação dos próprios Comitês de Ação Política aplica-se a mesma regra: eles só podem contribuir com US$ 5mil à campa-

nha de cada candidato, mas sempre que o gasto for “independen-te” (ou seja, não coordenado com o comitê do candidato),

eles são ilimitados. As pes-soas jurídicas (empresas ou sindicatos, por exemplo) não podem contribuir com

os PACs, mas podem fi-nanciar seus custos

administrativos e levantar di-

nheiro com execut ivos ,

lobistas e acio-nistas. Não é

preciso muita ima-

ginação para perceber como também essa limitação é formal, muito mais que real. Para que se tenha uma ideia, nas eleições de 2008, o PAC Federal da AT&T gastou mais de US$ 3,1 milhões. Mas, mesmo assim, es-ses limites ainda são “modestos”, até o mo-mento em que introduzimos a figura dos 527s, de papel decisivo nas eleições presi-denciais de 2004.

Não há qualquer limite para doações aos 527s. A contrapartida é que eles não podem pedir votos explicitamente para um candi-dato, mas, num sistema bipartidarista, isso simplesmente não é necessário. Tomemos um exemplo, a Swift Boat Veterans for Truth, uma organização 527 que investiu dezenas de milhões de dólares em comerciais de te-levisão que caluniavam o candidato demo-crata à Presidência em 2004, John Kerry, dizendo que ele havia colaborado com o inimigo na Guerra do Vietnã. Os comerciais manipulavam as posições antiguerra abra-çadas, depois da volta ao país, por um mi-litar condecorado, em favor, evidentemente, do seu único adversário, George W. Bush (que, aliás, escapou da guerra por um estra-tagema montado por seu pai, que interveio nas Forças Armadas para que ele ficasse pi-lotando aviõezinhos no Alabama). O efeito dos comerciais foi devastador, decisivo para o resultado da eleição. Os Swift Boaters não precisavam pedir votos para Bush para que soubéssemos que trabalhavam para ele. Nas últimas eleições presidenciais, alguns dos maiores 527s gastaram as seguintes quan-tias: a Associação dos Governadores Repu-blicanos gastou US$ 131 milhões. A Associa-ção dos Governadores Democratas gastou pouco menos da metade, US$ 64 milhões. A Citizens for Strength and Security [“Cida-dãos pela Força e Segurança”, não é um lindo nome?], financiada pelo lobby das armas, le-vantou quase US$ 7,2 milhões. Etc. Lembre-se: toda essa grana pode vir de contribui-ções de empresas, sem qualquer limitação.

Mas a brincadeira não termina aí. Uma decisão recente e já histórica da Corte Su-prema, no caso Citizens United vs. Federal Election Commission, acaba de sepultar qual-quer veleidade democrática que possa ter o sistema eleitoral dos EUA ante o poder do di-nheiro. A espantosa decisão, tomada por 5 a 4, estabeleceu que seria uma violação da Pri-meira Emenda (a famosa, que proíbe a pro-mulgação de leis contra a liberdade de ex-pressão) limitar os gastos de corporações de qualquer tipo em campanhas eleitorais. Suas contribuições a comitês de campanha e PACs ainda estão reguladas pelas regras descritas acima. Mas, em nome próprio, as empresas

já podem (de certa forma, sempre puderam, mas agora o fazem sancionadas explicita-mente por uma decisão da Suprema Corte) gastar o quanto quiserem para promover ou atacar quaisquer candidatos. A decisão, co-nhecida nos EUA como a que sacramentou o status de personhood para as corporações (ou seja, deu a elas a condição de pessoa hu-mana), trata o poder do dinheiro de comprar uma eleição como uma questão de liberdade de expressão. O ministro John Paul Stevens, não exatamente um juiz de esquerda, redigiu a opinião da minoria em termos eloquentes: “A opinião desta Corte é uma rejeição do sen-so comum do povo americano, que desde a fundação reconheceu a necessidade de im-pedir que as corporações sabotem a autogo-vernança, e que desde os dias de Theodore Roosevelt tem lutado contra o claríssimo potencial corruptor da politicagem eleitoral corporativa. É uma estranha hora para se repudiar esse senso comum. A democracia americana é imperfeita, mas pouquíssimos além da maioria desta Corte pensariam que um de seus defeitos é a escassez de dinheiro de empresas na política.” O New York Times, não exatamente um jornal comunista, afir-mou em editorial: “A Suprema Corte acaba de entregar aos lobistas mais uma arma. Um lobista pode agora dizer a qualquer político eleito: ‘Se você votar errado, minha empre-sa, meu sindicato ou meu grupo de interesse gastará quantias ilimitadas de dinheiro fa-zendo campanha explícita contra a sua ree-leição’.” A decisão da Suprema Corte no caso Citizens United vs. FEC confere ao capital um enorme poder de chantagem, já que qual-quer político sabe que uma barragem de co-merciais negativos na televisão, financiados com dinheiro ilimitado, pode sepultar uma candidatura, mesmo a de um deputado ou senador favorito à reeleição.

Considerando-se a combinação entre to-dos os elementos já descritos, o quadro é, na prática, aquele que descreve Michael Barone, ex-editor do Yale Law Journal e do Harvard Crimson: “Uma viagem a qualquer capital estadual – por exemplo, Harrisburg, Pennsyl-vania, ou Springfield, Illinois – permite desco-brir que tal ou qual pessoa na Califórnia doou US$ 1mil. Mas permanecerá escondido aqui-lo que os proprietários do fundo nacional de soft money dos partidos sabem muito bem, ou seja, que esse doador da Califórnia também lhes deu um cheque de US$ 100 mil. Em ou-tras palavras, aqueles que se beneficiam do dinheiro sabem de onde ele veio, mas o pú-blico está efetivamente barrado de sabê-lo.” Limites estritos para a cidadania, liberdade completa de ação para o capital.

exceder US$ 5 mil ao ano, o que ainda pode parecer um limite razoável – até que você se dê conta de que a legislação permite do-ações ilimitadas a PACs que façam “gastos independentes”, ou seja, que advoguem con-tra ou a favor de um candidato sem coorde-nar suas ações com o comitê de campanha do candidato beneficiado. Num mundo em que a informação trafega na velocidade da internet e no qual só existem dois partidos políticos e no máximo dois candidatos com-petitivos a qualquer cargo, no Executivo ou no Legislativo, essa cláusula basicamente elimina qualquer limitação aos PACs. Tam-bém sobre a ação dos próprios Comitês de Ação Política aplica-se a mesma regra: eles só podem contribuir com US$ 5mil à campa-

nha de cada candidato, mas sempre que o gasto for “independen-te” (ou seja, não coordenado com o comitê do candidato),

eles são ilimitados. As pes-soas jurídicas (empresas ou sindicatos, por exemplo) não podem contribuir com

os PACs, mas podem fi-nanciar seus custos

administrativos e levantar di-

lobistas e acio-nistas. Não é

preciso muita ima-

30 fevereiro de 2012

Acesso à cédulaNão surpreende, portanto, que democra-

tas e republicanos se diferenciem tão pouco. O próprio poder do dinheiro já é um enorme impedimento à emergência de outras alterna-tivas, mas a homogeneidade é ainda mais re-forçada quando se consideram os obstáculos impostos pela legislação eleitoral, especial-mente o acesso à cédula. Toda a regulamen-tação do acesso dos candidatos à cédula, mes-mo nas eleições federais, é prerrogativa dos estados. Um passeio pelas legislações estadu-ais mostra por que é praticamente impossível que um terceiro partido ameace a hegemonia da plutocracia democrata e republicana. Na Geórgia, qualquer terceiro partido ou candi-dato independente só poderá aceder à cédula caso apresente uma petição com as assinatu-ras de 5% dos eleitores aptos a votar no es-tado. Quando nos lembramos de que George W. Bush se elegeu presidente dos EUA com os votos de menos de 20% dos eleitores aptos a votar (quase metade deles ficou em casa), formamos uma ideia do que é esse requisito.

Desde 1943, não há candidatos indepen-dentes ou de terceiros partidos nas eleições

para a Câmara dos Deputados na Geórgia. Na Flórida, a taxa de registro de uma candida-tura independente é de 7% do salário anual do cargo (uma soma considerável de dinhei-ro) e o número de assinaturas exigidas é de 196 mil. Na draconiana legislação da Virgínia Ocidental, além de a coleta de assinaturas para candidatos independentes ou de tercei-ros partidos ter de ser feita antes das primá-rias republicanas e democratas, o eleitor que assinar uma dessas petições está proibido de votar em qualquer uma delas. É um crime eleitoral coletar assinaturas sem informar ao eleitor “se você assinar minha petição, não poderá votar nas primárias”. O resultado é que o candidato independente ou de terceiro partido não tem certeza se cumpriu o requi-sito, pois não sabe quantas assinaturas serão invalidadas pela participação dos respecti-vos eleitores nas primárias. Desde 1920, não há um terceiro partido que consiga colocar candidatos nas cédulas de sequer metade dos distritos do país. Democracia?

Quando se analisam essas limitações à emergência de qualquer alternativa à pluto-cracia democrata e republicana no contexto

da gigantesca força do dinheiro que descre-vemos, fica claro por que os estadunidenses, apesar de reprovarem em níveis recordes os dois partidos, não têm como mudar o sistema dominado por eles, a não ser por meio de mo-vimentos completamente externos a essas es-truturas. Torna-se mais compreensível o fato de que, mesmo quando há terceiros candida-tos minimamente viáveis (como, mais recen-temente, Ross Perot em 1992), eles tendem a ser multimilionários que arcam quase so-zinhos com os enormes custos da campanha, e, portanto, tendem a representar os mesmos setores sociais já representados no sistema plutocrático bipartidarista. Fica mais clara a revolta do Ocupar Wall Street.

Considerando tudo o aqui dito, como é possível ter qualquer ideia do que significa a palavra grega dêmos e continuar falando em democracia para se referir ao sistema polí-tico dos EUA? Em que planeta vivem nove de cada dez jornalistas da grande mídia bra-sileira, que apresentam esse sistema como uma espécie de modelo ao qual o Brasil deveria aspirar? “Democracia em funciona-mento” para quem, cara-pálida? F

31fevereiro de 2012

por MAttheW cArdinAle, dA ips

Ao contrário de muitas democra-cias jovens no mundo, a popula-ção dos Estados Unidos não elege seu presidente pelo voto direto. Contudo, lentamente, vai ganhan-

do força uma iniciativa para mudar esse sis-tema. Há anos acontecem diversos esforços para eliminar o sistema de Colégio Eleitoral, mas eles se chocam com o grande obstáculo de reformar a Constituição.

A Carta Magna estabelece um sistema que dá a cada Estado certo número de delegados no Colégio Eleitoral, que, no final, é que elege o presidente dos Estados Unidos. Cada estado também decide o método para escolher os de-legados que elegerão um candidato.

Pelo artigo 2, parágrafo um da Consti-tuição, “cada estado designará, do modo que seu parlamento estabelecer, um núme-ro de eleitores igual à quantidade de sena-dores e representantes que esse distrito tiver no Congresso”. Na maioria dos esta-dos, todos os delegados vão para o candi-dato ganhador em nível estadual, enquanto em outros, os delegados são distribuídos de forma proporcional aos votos que cada partido recebeu.

Isso faz com que a soma dos votos nas ur-nas muitas vezes não tenha reflexo do mesmo modo nos resultados finais da eleição presi-dencial. Por exemplo, uma maioria de elei-

EUA: Plano pelo voto direto avança lentamenteOrganização Voto Popular Nacional (NPV) faz campanha para que os cidadãos possam eleger diretamente seu presidente, ainda que sem eliminar o Colégio Eleitoral

tores elegeu Al Gore, do Partido Democrata, como presidente em 2000, mas o complexo sistema declarou vencedor seu adversário, George W. Bush, do Partido Republicano.

Nos últimos anos, porém, a organização Voto Popular Nacional (NPV) faz campanha para que os cidadãos possam eleger dire-tamente seu presidente, embora sem eli-minar o Colégio Eleitoral. O presidente do NPV, John Koza, explicou que o objetivo é convencer um número suficiente de legisla-tivos estatuais para mudarem a forma como escolhem seus delegados.

A ideia é que cedam todos seus postos no Colégio Eleitoral ao candidato que rece-ber mais votos dos cidadãos em nível nacio-nal, isto é, o que ganhar a votação popular. O NPV diz que se um número suficiente de estados que formam uma maioria do Co-légio Eleitoral aceitarem isso, o candidato que receber a maioria dos votos populares se converterá em presidente.

Nos últimos anos, várias legislaturas es-taduais mudaram seu sistema, e o NPV vai lentamente se aproximando de sua meta. O plano foi adotado nos seguintes estados, que reúnem no total 132 votos no Colégio

Eleitoral, ou 49% dos 270 necessários para que seja ativado: Califórnia (55 delega-

dos), Havaí (4), Illinois (20), Maryland (10), Massachusetts (11), Nova Jérsei

(14), Vermont (3), Washington (12) e o Distrito de Colúmbia (3).

No atual sistema, a maioria dos estados outorga seus delegados ao ganhador no próprio estado. Alguns, estão historicamente do-minados pelo hoje governante Partido Democrata e outros, pelo

Partido Republicano, mas há esta-dos mais disputados, os chamados

“oscilantes” (swing states), onde se concentra a atenção dos candidatos.

Laura Brod, ex-líder da maioria na Câ-mara de Representantes, é forte partidária do novo sistema. “É um tema extremamente im-portante para o povo. Quando vejo os estados que aprovaram o plano, são territórios de pas-sagem. Há muitos vermelhos (republicanos) estudando este assunto”, disse Laura à IPS.

“Na verdade, não é um tema partidário. Quando os democratas e os republicanos o analisam por diferentes razões, chegam à mesma conclusão: 35 estados não deveriam ser ignorados nas campanhas presidenciais”, acrescentou Laura. Os críticos afirmam que esse plano subverte o objetivo do Colégio Eleitoral, mas, segundo ela, a Constituição estabelece claramente que os estados devem agir por seus interesses, e, portanto, têm a possibilidade de escolher.

Koza afirmou estar satisfeito com o avan-ço do plano. “Quando começamos, não tí-nhamos ideia se seria apoiado ou aprovado. [O estado de] Maryland o aprovou em 2007. A cada ano, um ou dois estados o adotam”, ressaltou. Tanto Koza quanto Laura preveem que o plano poderá estar em vigor para as eleições presidenciais de 2016. F

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações

Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press

Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

por MAttheW cArdinAle, dA ips

o contrário de muitas democra-cias jovens no mundo, a popula-ção dos Estados Unidos não elege

Organização Voto Popular Nacional (NPV) faz campanha

possam eleger diretamente

Eleitoral, ou 49% dos 270 necessários para que seja ativado: Califórnia (55 delega-

dos), Havaí (4), Illinois (20), Maryland (10), Massachusetts (11), Nova Jérsei

(14), Vermont (3), Washington (12) e o Distrito de Colúmbia (3).

No atual sistema, a maioria dos estados outorga seus delegados ao ganhador no próprio estado. Alguns, estão historicamente do-minados pelo hoje governante Partido Democrata e outros, pelo

Partido Republicano, mas há esta-dos mais disputados, os chamados

“oscilantes” (concentra a atenção dos candidatos.

Laura Brod, ex-líder da maioria na Câ-mara de Representantes, é forte partidária do novo sistema. “É um tema extremamente im-portante para o povo. Quando vejo os estados

32 fevereiro de 2012

por GlAuco FAriA e sâMiA GAbrielA teiXeirA

Há um ano, esta Fórum deu como capa de sua edição de fevereiro o crack. O objetivo era colocar em evidência um problema que já dava sinais de ser uma questão

nacional, que exigia a elaboração de estraté-gias em diferentes áreas como Saúde, Segu-rança Pública e Assistência Social. Mas que também tinha como desafio superar precon-ceitos e mitos que foram construídos duran-te anos, estigmatizando os dependentes que se multiplicam nas ruas do País.

Em janeiro deste ano, a prefeitura de São Paulo, em operação conjunta com o governo do estado, promoveu uma ação que, ao que tudo indica, não só não logrou êxito como co-laborou para que os estigmas que pesavam

Crack: realidade cada vez mais comum

Operação malsucedida em uma das cracolândias paulistanas chama a atenção para o problema que já começa a dominar o cenário nacional

sobre as pessoas que fazem uso da droga fossem reforçados. As pesquisas de opinião feitas sobre a Operação Centro Legal ou “Su-foco”, como ficou conhecida, mostram dados contraditórios. O levantamento feito pelo Instituto Informa, para o jornal O Estado de S. Paulo, ouviu mil pessoas entre 27 e 30 de ja-neiro e destacou que 84,7% da população da capital apoiam a ação, mas, ao mesmo tem-po, 67,9% dos pesquisados não acreditam que a operação basta para resolver o proble-ma do tráfico no local. Ou seja, os paulistanos acham que alguma medida deveria ter sido tomada em relação à cracolândia, mas duvi-dam da eficácia daquilo que foi feito.

“Essa questão da cracolândia é higienis-ta. Não atacaram outras cracolândias porque não dá mídia”, sustenta Marcelo Niel, psi-quiatra da Universidade Federal de São Pau-lo (Unifesp). Ele alerta que a região que foi

alvo da operação policial, que está incluída no âmbito do projeto Nova Luz, é somente um dos locais onde se consome crack de for-ma pública na cidade de São Paulo. “Em São Paulo, em primeiro lugar, não são cracolân-dias tão invisíveis, existe uma, na favela do Heliópolis; outra, em uma favela da região do Cambuci, muito parecida com a do centro, com gente andando e consumindo. Na favela de Águas Espraiadas, as pessoas alugam bar-racos, assim como em outros lugares, e tam-bém há consumo na rua”, aponta.

Além dessa “diversidade” de locais em que usuários de crack se concentram, São Paulo também conta, tanto em bairros de classe média como na periferia, com as “cra-colândias invisíveis”, imóveis onde os usu-ários podem utilizar a droga de forma pri-vativa. “Alugar imóveis para o uso de crack é o melhor negócio imobiliário. As pessoas ficam em dez, 12, naqueles barraquinhos, e tem até cabines para uso individual. Fazem por uma questão de segurança e discrição, já que não é todo usuário que está nessa situa-ção de utilizar a droga na rua”, explica Niel.

Mas a ineficácia da ação não se resume apenas ao fato de a repressão se dar em um único lugar. O coordenador de Políticas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, explicou aquela que seria a estraté-gia utilizada na região da Luz. “A falta da droga e a dificuldade de fixação vão fazer com que as pessoas busquem o tratamento. Como é que você consegue levar o usuário a se tratar? Não é pela razão, é pelo sofrimento. Quem busca ajuda não suporta mais aquela situação. Dor

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33fevereiro de 2012

e o sofrimento fazem a pessoa pedir ajuda”, defendia, durante a operação.

“É uma grande falácia, os indivíduos que circulam no local, se não acharem a droga ali, vão em outro lugar, as pessoas sabem onde as drogas estão. Ele não vai entrar em crise de abstinência porque estourou uma cracolân-dia, ele vai pra outra”, argumenta Niel. “Do ponto de vista da repressão, faz sentido des-truir, mas não tem nada a ver com a saúde. E a solução da internação compulsória, em geral, não vai adiantar, porque ela não tem aspecto curativo, serve pra tirar a pessoa daquela fase pior. Mas sem indicação e estrutura adequa-da, bate a fissura no usuário e ele volta para o uso.” No fim de janeiro, a própria Polícia Mi-litar admitia que os usuários haviam se espa-lhado por 27 bairros da cidade.

Cenário paulistaAinda que o seu consumo chame mais

atenção nas concentrações do centro da ca-pital paulista, o problema do crack vai mui-to além. No estado, a Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas da Assembleia Legislativa fez um levantamento para mapear o problema no primeiro semes-tre de 2011. Foram enviados questionários com dez perguntas para 325 municípios, onde se concentra 76% da população do es-tado. O crack aparece em 31% das respostas, figurando como a droga ilícita mais utilizada nos municípios do estado, ficando atrás do álcool, que aparece em 49% das respostas. A maior parte dos municípios, 79%, não conta com leitos públicos para tratamento de de-pendentes químicos.

“O levantamento realizado pela Frente Parlamentar apontou que o crack está hoje em todos os 645 municípios paulistas e atin-ge todas as classes sociais. É uma verdadeira epidemia e um grande desafio para nossos gestores. Conforme verificamos no levanta-mento, essa droga avançou ainda mais em cidades com população entre 50 mil e 100 mil habitantes, que totalizam 50 no estado”, pondera o deputado estadual Antonio Men-tor (PT), membro da Frente. “As prefeituras destas e das demais cidades estão ainda en-gatinhando na rede de serviços de Saúde e Assistência Social para atender os dependen-tes, além de receberem pouca orientação e quase nenhum recurso do governo estadual, que até hoje não apresentou um plano para enfrentar esse gravíssimo problema. Veja que não chegam a 400 os leitos públicos dis-poníveis para tratamento de dependentes”, pontua. “Outro dado preocupante do nosso levantamento é a presença do crack entre

crianças e adolescentes, de 9 a 15 anos, em cidades das regiões de Registro, Araçatuba, Campinas e Ribeirão Preto, principalmen-te.” Em municípios da região de Barretos, o crack já é tido como a droga mais presente. Ali, 33,3% das respostas se referem à droga como uma das mais encontradas, enquanto que 25% apontam o álcool.

Outra constatação da Frente Parlamen-tar diz respeito a categorias específicas de profissionais que estariam sofrendo mais com o problema de dependência da droga, utilizada para suportar uma excessiva car-ga de trabalho. É o caso de trabalhadores das usinas de cana e na indústria cerâmica. Em 2003, a pesquisadora Arlete Fonseca de Andrade já observava em sua tese de mes-trado em Psicologia Social na PUC-SP, Cana e crack: sintoma ou problema? Um estudo sobre os trabalhadores no corte de cana e o consumo do crack, como a disseminação da droga entre os trabalhadores dos canaviais do interior paulista (mais especificamen-te na região de Jaú) vinha se tornando uma questão de saúde pública. “O uso de drogas abarca vários contextos, como: a história in-dividual, grupal, cultural e social regida em cada sociedade. Em relação às comunidades rurais, as razões podem ser diversas, como

a falta de perspectivas nos âmbitos profis-sional e pessoal, ausência de assistência da rede pública para atender suas necessidades básicas, o trabalho que exercem ser muito exaustivo (ganham por produtividade/dia de cana cortada) ruptura dos vínculos fami-liares, religiosos e culturais etc.”, analisa, em sua pesquisa. “O crack é um sintoma de vá-rios problemas sociais que surgiram entre as populações rurais, e o estágio em que se en-contra atualmente já se caracterizou numa doença crônica, que é a dependência física e psicológica dessa droga.”

Mas tal problema não está circunscrito apenas a São Paulo. Em Alagoas, no ano pas-sado, o Fórum Estadual de Combate às Dro-gas identificou que muitos trabalhadores do estado já faziam uso da droga, segundo seus próprios depoimentos, como forma de au-mentar sua produtividade nas usinas de cana-de-açúcar. “O crack é hoje uma droga de fácil acesso. Seu poder mercadológico é grande e, infelizmente, no Brasil, a coisa piora a cada dia. Não existe uma política eficiente sobre o crack, então, isso facilita muito a entrada dele em qualquer profissão. No caso dos cortado-res de cana, houve uma grande mentira co-locada aos trabalhadores, que seria produzir mais quando estivesse sobre o efeito do crack. Fiz um trabalho na usina em Boca da Mata, e lá soube que essa ilusão foi passada pelos traficantes, que fazem de tudo para vender a droga”, relata Noélia Costa, coordenadora do Fórum de Combate às Drogas de Alagoas.

No fim de janeiro, depois da Operação Centro Legal, a própria Polícia Militar admitia que os usuários haviam se espalhado por 27 bairros da cidade

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Nas cidades, em todas as classes sociais

Levantamento feito pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgado no início do ano mostrou que, dos 4.430 municí-pios brasileiros que responderam aos ques-tionários da pesquisa, problemas relacio-nados ao crack, que atingem áreas distintas como Saúde, Segurança Pública, Assistência Social e outras, são comuns em 93,9% das cidades. Em maior ou menor grau, espaços onde se concentram usuários da droga, como a cracolândia da região da Luz, em São Paulo, estão presentes em outras 16 capitais brasi-leiras, segundo dados de um mapeamento realizado pela Secretaria Nacional de Políti-cas sobre Drogas, em parceria com a Funda-ção Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Há variações entre um lugar e outro. Em Salvador, há concentrações de alta densidade como nas capitais do Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e também existe o consumo do chamado “virado”, uma mistu-ra de cocaína com pedras de crack. O mesmo ocorre no Distrito Federal, no Plano Piloto e em cidades próximas. Já em Manaus, na região Norte, predominam polos de menor concentração, enquanto Florianópolis e Por-to Alegre, na região Sul, apresentam locais de tamanho médio. Em nove dos 17 municípios, ruas em áreas degradadas das regiões cen-trais são utilizadas pelos usuários. Em Cuia-bá, por exemplo, há alguns bairros com “mi-nicracolândias”, onde o uso também se faz de forma pública. Ana Elisa Limeira, coordena-dora do Conselho Estadual de Políticas so-bre Drogas (Conen), reconhece que uma das principais dificuldades para a abordagem da situação é a falta de dados mais precisos so-bre o uso do crack no estado e também no Brasil. Segundo ela, a realização de fóruns regionais em 2011 servirá para construir

uma política estadual sobre o tema, graças a informações fornecidas por especialistas na área e pela sociedade civil. “Também foi desenvolvida uma grande pesquisa sobre a realidade mato-grossense do atendimento, assistência e rede de prevenção às drogas em nosso estado, que será divulgada pela Uni-versidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em março”, informa.

Luciane Marques Raupp, em tese de dou-torado em Saúde Pública apresentada no ano passado na Universidade de São Paulo, anali-sou os circuitos de uso de crack nas cidades de São Paulo e Porto Alegre. Citando o livro de Marisa Feffermann, Vidas Arriscadas, ela relembra como a introdução do crack mudou a própria lógica do tráfico na capital paulis-ta. “Primeiramente, porque incentivou a im-portação de pasta-base em vez de cocaína e, também, por seu comércio baseado principal-mente no microtráfico [forma de comércio no qual usuários vendem drogas para sustentar seu consumo].” Conforme Raupp, as concen-trações de usuários analisadas nos centros das duas capitais são “resultado tanto dos processos de crescimento das cidades e de-gradação de alguns de seus espaços centrais quanto dos rumos das políticas públicas, as quais, por omissão ou ênfase em estratégias equivocadas, não conseguiram lidar adequa-damente com a emergência e a propagação do uso de crack.” Com base no estudo, há tam-bém sutis diferenças entre as cracolândias; em São Paulo, há agrupamentos heterogêneos com crianças, adolescentes e adultos compar-tilhando cachimbos, enquanto na capital gaú-cha os grupos têm maioria masculina, somen-te com adultos e jovens, sem crianças, além de se constatar a presença de idosos migrando do álcool para o crack.

Embora a propagação da droga tenha se dado primeiro entre a população de renda mais baixa e pessoas em situação de rua, o

que fica evidente analisando-se os locais onde o consumo se dá de forma mais visível nos centros urbanos, o problema da depen-dência do crack já atinge também outros seg-mentos socioeconômicos. “O crack começou como ‘droga de pobre’, chegando primeiro ao indivíduo em uma situação social menos favorecida. Hoje em dia, é muito raro ver os meninos em situação de rua cheirando cola, porque migraram para o crack. O morador de rua que antes só bebia, também está usando crack”, destaca Marcelo Niel. “No entanto, o que vemos acontecer hoje em dia é que a droga tem atingido outro tipo de usuário, são pessoas mais velhas, alguns com dinhei-ro, que acabam se tornando dependentes do crack. A diferença para os outros usuários é

Cotidiano de violência

Um estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com 170 pessoas na cra-colândia da região da Luz, no centro de São Paulo, mostra que mais de metade dos usuários do local usam o crack há mais de dez anos, ou seja, em-bora tenha um potencial destrutivo muito alto, os dependentes podem viver muitos anos utilizando a droga. O risco maior de morte está, na prática, no envolvimento com a criminalidade e com um coti-diano marcado pela violência. A mesma pesquisa constata que 13% afirmaram praticar assaltos para sustentar o vício, enquanto outros 13% admitiam prestar serviços a traficantes. Outros 53% afirma-ram ter testemunhado mortes na cracolândia.

“A pessoa rapidamente caminha para uma de-terioração, ela não necessariamente parte para o delito, mas, se está na fissura, se envolve com delitos”, explica Marcelo Niel. “Mas a população de rua está em situação de risco para o uso de drogas, e está sujeita ao crack também”, completa.

O grande delito no circuito comercial do tráfico, que pode levar à morte do usuário, é o consumo de drogas com outros traficantes. O meio dos tra-ficantes de garantir a lucratividade é administrar as dívidas dos dependentes, que passam a prestar serviços para sustentar o vício. Em uma das ma-térias de capa de Fórum, de fevereiro de 2011, Luiz Flávio Sapori, coordenador do Centro de Pes-quisas em Segurança Pública da PUC-MG, alertava para essa peculiaridade. “Estou convencido de que a realidade de BH é replicável para as demais ca-pitais brasileiras. Acredito que o crack tem relação com o grande crescimento de homicídios nas ca-pitais nordestinas ao longo dessa década, as que mais tiveram crescimento da violência urbana”, afirmava, fundamentando sua argumentação em estudo que mostrava a linha tênue que existia en-tre consumo e tráfico no comércio da droga.

Cena que se torna cada vez mais comum nas cidades brasileiras

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que a pessoa usa o crack, mas tem a família, vai e volta, fica em determinada situação precária por alguns dias, mas consegue de alguma forma retornar para o seu cotidia-no”, explica. O uso e a aquisição do crack em grupo pode significar para os excluídos uma forma de pertencimento, justificando também a convivência com outros estratos sociais. “Quando um grupo está consumindo qualquer tipo de droga, por mais diferente que seja, existe uma integração, e os diver-sos tipos de preconceitos são deixados de lado, pois a droga age com efeito de intera-ção entre as pessoas, fazendo com que elas deixem de lado seus valores morais, sociais e culturais, unificando-as num só corpo agin-do para uma determinada função, qual seja, consumir a droga. A única coisa que importa naquele momento na vida dessas pessoas é a própria droga”, sustenta Arlete Fonseca de Andrade, em sua dissertação de mestrado.

Ainda que possam eventualmente buscar a droga nas mesmas fontes ou até mesmo utilizá-las em conjunto, seja nas ruas ou mes-mo em lugares privados, a diferença entre

usuários de segmentos sociais distintos se faz presente na possibilidade de ter acesso à rede de atendimento à saúde. De acordo com o levantamento da CNM, 91,5% das cidades não têm programas para combate ao crack e somente 14,78% destas afirmaram possuir unidades do Centro de Atenção Psicosso-cial (Caps), que, entre outras atribuições, oferece atendimento clínico a usuários de drogas. Ou seja, o poder público, em todas as suas instâncias, ainda não está preparado para enfrentar a questão e oferecer atendi-mento universal às classes mais baixas, em especial, aos moradores de rua.

O próprio ministro da Saúde, Alexandre Padilha, admitiu que o País vive uma “epide-

mia de crack”, em dezembro do ano passado, quando lançou um programa de ações inte-gradas com o mote Crack, é possível vencer. Segundo dados do Ministério, entre 2003 e 2011, o atendimento a usuários de crack na rede de Saúde aumentou dez vezes. O gover-no federal promete investir R$ 4 bilhões até 2014, em ações executadas de forma conjun-ta com municípios, estados e sociedade civil. Ainda que seja tardia, a atenção do poder pú-blico para o problema do crack é bem-vinda, mas com um esforço que envolva iniciativas que possam ir além da simples criminaliza-ção do usuário, superando as emblemáticas ações higienistas que colaboram para estig-matizar mais os dependentes. F

Brasília - Morador de rua, garota de programa e adolescente bem vestido se reúnem para fumar pedras de crack na região central da cidade. Dedos queimados e calos são cicatrizes comuns deixadas pelo crack nas mãos de quem fuma

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por douGlAs estevAM, de pAris

Em março de 2011, vimos nova-mente greves e manifestações em Atenas. Dessa vez, os gregos pro-testaram contra o governo e os no-vos planos de austeridade e libe-

ralização que acabavam de ser anunciados. Essa era no mínimo a décima vez que eles desciam às ruas, mas a primeira vez em que uma das principais faixas dos manifestantes exigia a anulação da dívida.

É nesse contexto que François Chesnais, economista reconhecido pela profundidade de suas análises sobre o capitalismo finan-ceiro mundial, situa seu novo livro As dívidas ilegítimas: quando os bancos dominam as po-líticas públicas. “Nós não somos responsáveis pelo que fizeram os governos anteriores”, de-clarava um dos manifestantes, afirmação que não é válida somente para os gregos, como ressalta Chesnais. Ele afirma que “a denúncia da dívida é uma questão política maior que se coloca para muitos países”, inclusive para seu país de origem, a França. Uma questão que interessa àqueles que combatem a re-gressão social e a injustiça e lutam por uma democracia que não seja uma simples más-cara da dominação da oligarquia financeira. Chesnais aborda a problemática da anulação da dívida, não somente de um ponto de vista econômico, mas como uma questão política de fundamento ético.

A reconstituição do poder das fi nanças

Para uma reestruturação ou anulação das dívidas, assim como sua auditoria, um dos primeiros pontos seria tornar transparente o seu passado. A crise das dívidas soberanas, dos bancos europeus e do euro, apareceu no contexto de crise econômica e financeira in-ternacional, mas a situação atual tem origem em um longo processo de constituição do ca-pital de aplicação financeira do qual os bancos

Quando os bancos ganhamcom as dívidas públicasEm seu novo livro, ainda sem tradução no Brasil, o economista François Chesnais acredita que está sendo inaugurada uma nova fase da vida política, na qual as atenções se focalizam sobre o binômio governos-bancos

e os governos foram os atores (Chesnais faz uma diferença entre investimento produtivo e aplicação financeira – place-ment financier). O economista analisa o histórico da evolução do poder das finanças, seus fundamentos estruturais e formas organizacionais atuais, a função dos Bancos Centrais, do Banco Central Europeu, do crédito e da moeda (principal-mente o dólar e o euro).

Partindo dos conceitos de Marx e Keynes, ele traça uma definição da diferença entre finança e financiamento da economia. A reto-mada do poder social e político das finanças começou no final dos anos 1960, depois de um período de controle que se estendeu da crise de 1929 até o início dos anos 1970.

A nova fase das finanças inicia-se em Lon-dres, onde foram criados os primeiros merca-dos financeiros desregulados que se tornariam o núcleo de uma das melhores redes organiza-das de paraísos fiscais do mundo. Foi a base para a acumulação de capital financeiro por meio dos eurodólares e dos petrodólares, que fortaleceu novos credores, abrindo a via para o “poder das finanças”, entendido como o po-der “dos investidores institucionais e dos mer-cados acionários”. Movimento que não seria possível sem o apoio dos governos dos gran-des países. Esse capital financeiro também foi alimentado pelos lucros não reinvestidos das firmas multinacionais americanas, que come-çaram a direcionar seus excedentes para o mercado financeiro, contornando as restrições fiscais que ainda existiam nos EUA, e obtendo lucros maiores do que os proporcionados pelo investimento produtivo do capital.

Nos anos 1980, ganharia força a teoria da governança de empresas e do valor por acioná-rio, cujas principais características eram a pro-cura de lucro por meio das ações, e não mais

da produção, acompanhada de uma redução de salários. Os salários seriam ainda mais limitados com a globalização, a “deslocalização” das empre-sas e a concorrência do valor do trabalho em âmbito inter-nacional, gerando uma dimi-nuição da parte dos salários na formação do PIB.

Outro ator importante no processo de reestrutu-ração do capital financeiro foram os fundos de pensão ou aposentadorias por capi-talização. A liberalização dos

movimentos de capitais, o aumento das taxas de juros dos EUA nos anos 1980 e o desenvolvimento do mercado de bônus do tesouro “coincidiram com o momento em que era imperativo para os fundos de pensão encontrar ocasiões de investimento em grande escala”. Os bancos também pas-saram por um processo de transformação com sua atividade principal, deixando para trás sua função clássica de intermediário entre os poupadores e os emprestadores. Beneficiando-se da liberalização, essas instituições se transformaram em grupos financeiros diversificados e em conglome-rados cujos lucros provêm principalmente da criação de crédito, que se converteu no principal meio de criação de moeda. Pro-cesso sobre o qual os Bancos Centrais per-deram completamente o controle. A função de empréstimo às empresas (ao setor pro-dutivo) foi substituída “pela comercializa-ção de títulos nos mercados obrigatórios” e pela criação de uma série de instrumen-tos financeiros. Os valores das transações mundiais citados por Chesnais ilustram a dimensão do setor financeiro: em 2002, o PIB mundial era de 32,3 trilhões de dólares, enquanto as transações financeiras soma-vam 1.140,6 trilhões de dólares. No início

da produção, acompanhada de uma redução de salários. Os salários seriam ainda mais limitados com a globalização, a “deslocalização” das empre-sas e a concorrência do valor do trabalho em âmbito inter-nacional, gerando uma dimi-nuição da parte dos salários na formação do PIB.

no processo de reestrutu-ração do capital financeiro foram os fundos de pensão ou aposentadorias por capi-talização. A liberalização dos

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da crise, em 2008, enquanto o PIB mundial era de 60,1 trilhões, as movimentações finan-ceiras atingiam 3.628 trilhões de dólares.

Endividamento dos Estados e limites do sistema de acumulação financeiro

A partir dos anos 1980, a participação dos salários na constituição do PIB diminui e aumenta a isenção fiscal sobre os setores mais ricos. As reduções da taxa de impostos sobre os rendimentos mais altos entre 1986 e 2007 nos dão uma noção dessas medidas: na França, reduziu-se de 65% para 40%; na Inglaterra, de 60% para 40%; na Itália, de 62% para 43%; nos Países Baixos, de 72% para 52%; na Bélgica, de 72% para 52%. O acesso “a empréstimos através da emissão de títulos em mercados especializados tornou-se o instrumento principal de financiamento orçamentário” dos Estados. Os títulos das dí-vidas públicas tornaram-se parte dos ativos negociados por bancos e fundos de aplicação especulativos (inclusive empresas). Os ban-cos e fundos de aplicação, servindo-se de um procedimento conhecido como efeito de ala-vancagem, passaram a realizar empréstimos com valores muito superiores aos seus capi-tais próprios, aumentando a debilidade do sistema e os riscos de pagamento.

O ciclo de expansão e acumulação do ca-pitalismo financeiro esbarrou em dois limi-tes. Primeiro, a insaciabilidade das finanças confrontou-se com uma diminuição da taxa de crescimento da produção, resultado da re-

dução dos investimentos e do poder de com-pra dos salários. Outro limite se deu por ra-zões políticas e sociais, com a necessidade de manter um nível de emprego razoavelmente satisfatório. Esses limites ao processo de acu-mulação financeira foram temporariamente contornados, a partir de 2000, pela acelera-ção da globalização (assegurada pela entrada da China na OMC) e pelo endividamento das famílias. Os empréstimos hipotecários e ao consumo sustentaram o emprego, a demanda, a criação ou a extensão da capacidade de pro-dução em alguns setores, principalmente da construção e do automotivo, e foram uma das principais fontes de lucros dos bancos, junto com o financiamento dos déficits orçamen-tários. Mas as contradições não puderam ser eliminadas, e a crise atual atingiu o centro da configuração capitalista mundial, do modelo de crescimento centrado no endividamento, engendrado pelo regime de acumulação do-minado pela finança, além da relação entre a economia e a política mundial.

Rumo a um movimento europeu de anulação das dívidas?

Chesnais acredita que está sendo inau-gurada uma fase da vida política na qual as atenções se focalizam sobre o binômio go-vernos-bancos. A natureza econômica exata dos empréstimos, cujo pagamento de juros e o reembolso agravam as finanças públicas, é uma primeira dimensão da ilegitimidade das dívidas. As dívidas geraram uma grande

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transferência de riquezas provenientes da contribuição dos trabalhadores em benefícios dos investidores. As operações de alavanca-gem geram interrogações sobre qual parte das dívidas públicas corresponde a um inves-timento real e qual parte corresponde a meca-nismos de créditos interbancários, cujo obje-tivo é de aumentar os lucros. As condições em que foram criadas também são questionadas, abrangendo as despesas elevadas feitas com presentes aos capitais, o nível baixo de fiscali-dade direta (impostos sobre a renda, o capital e o lucro das empresas) e a evasão fiscal.

Baseando-se nos comitês gregos e nas po-sições de economistas e movimentos sociais europeus, Chesnais acredita que, em torno da auditoria e da anulação da dívida, existe a possibilidade de que seja criada uma con-vergência das lutas sociais e políticas, feitas hoje de forma dispersa. Ele propõe medidas, sendo a primeira delas a “apropriação social dos bancos e sua reconfiguração”, e também “uma reconfiguração da fiscalização”. Mais amplamente, a questão se relaciona eviden-temente a uma transformação da política e da economia social. Também é proposta a anulação das dívidas do Sul, pois estas são controladas por bancos e fundos de investi-mento europeus. Os gregos afirmam, em seu manifesto, que os partidários das auditorias invocam duas necessidades fundamentais da sociedade: a transparência e o controle de-mocrático do Estado e dos governantes pelos cidadãos. Os caminhos parecem traçados. F

Movimento Occupy em Londres, onde foram criados os primeiros mercados financeiros desregulados que se tornariam o núcleo de uma das melhores redes organizadas de paraísos fiscais do mundo

42 fevereiro de 2012

por pedro venceslAu

A perfuração da camada pré-sal exige equipamentos e navios de última geração. Chamados de “sondas”, eles representam a joia da coroa do mercado de petróleo.

A construção de cada unidade exige mão de obra de 3 mil profissionais, demora em mé-dia quatro anos para ficar pronta e seu preço pode variar entre US$ 650 milhões e US$ 750 milhões. Quando concluído, o navio-sonda de 20 mil toneladas de aço tem capacidade para perfurar em lâminas d’água que vão até 10 mil metros de profundidade. Como o pe-tróleo um dia acaba, o modelo mais comum de negócio é o aluguel destes equipamentos.

Segundo especialistas do mercado ouvi-dos pela Fórum, empresas pagam em média US$ 570 mil por dia e, quando constatam que o serviço acabou, encerram o contrato. O na-vio, então, levanta âncora e parte para outro

No rastro do pré-salDecisão do governo de nacionalizar toda a linha produtiva do pré-sal abriu horizontes além do petróleo para o Brasil. Mas os riscos existem

lugar do mundo, levando consigo uma cidade ambulante. Existem poucas empresas que ofe-recem esse serviço. Trata-se de um mercado que exige altíssimos investimentos, mas com garantia de retorno. Enquanto houver petró-leo no mundo, as sondas estarão trabalhando. Com a descoberta de que há (muito) petróleo na camada do pré-sal em águas brasileiras, o país transformou-se imediatamente na meni-na dos olhos dos fabricantes de sondas.

Só até o fim de 2014, o governo preten-de gastar US$ 224 bilhões para explorar as reservas que descobriu. A má notícia para os estaleiros e locatários é que o Brasil op-tou por construir aqui suas próprias sondas. Mas será que temos mão de obra capacitada para isso? Esse processo não vai encarecer e retardar a exploração? A opção não é mera-mente ideológica? Essas e outras perguntas estão sendo feitas dia após dia por especia-

listas, técnicos e políticos. “O Estaleiro Atlân-tico Sul, que assinou os primeiros contratos, vive uma situação peculiar. Ele atraiu muitos clientes, entre eles a Transpetro, mas está pagando caro pelo pioneirismo. Existe pouca mão de obra qualificada”, explica Alexandre Gaspari, especialista no tema e editor execu-tivo da revista Brasil Energia.

Até 2000, essa indústria era muito restri-ta e só fazia reparos e barcos-apoio, de pe-queno porte. Com o advento do pré-sal e a decisão política de que toda a sua produção (inclusive as sondas) seriam 100% brasi-leiras, houve uma explosão de demanda. “A política da Petrobras de estímulo à indústria nacional está colocando o Brasil em outro mercado, o de fabricantes de sondas. Isso é inédito. A questão é saber se teremos tecno-logia e capacidade de construí-las com um preço competitivo”, diz Gaspari.

Navio-sonda Stena Drillmax IagpretropBras

43fevereiro de 2012

Brasil, polo navalEm uma das peças publicitárias mais

bem-sucedidas da campanha presidencial de 2002, o então candidato Lula foi até Santos, no litoral paulista, gravar entre navios petro-leiros da Petrobras. A ideia era mostrar que a estatal brasileira estava gerando empregos em Cingapura. De maneira didática, o petista criticou a opção por contratar estaleiros de outros países e defendeu que o Brasil criasse o seu próprio parque naval.

O debate que veio a seguir foi acirrado. Tucanos, técnicos e “especialistas” acusavam a ideia de “estatizante”, “nacionalista” e “po-pulista”. Em artigos e debates, o argumento era estritamente “técnico”: a empresa petro-lífera brasileira perderia competividade no mercado internacional, já que não havia no país mão de obra especializada. Mais: o custo seria muito grande e o processo, demorado. Uma década mais tarde, o maior fabricante de embarcações petrolíferas do mundo, o es-taleiro Jurong Shipyard, de Cingapura, anun-ciaria a construção de sua primeira planta no Brasil. Com a decisão de construir uma planta em Aracruz, no interior do Espírito Santo, o grupo de Cingapura foi ousado. In-vestiu milhões em um projeto sem antes ter assinado nenhum contrato de longo prazo. “Nosso negócio é estaleiro. A decisão de vir para cá foi tomada porque temos confiança na economia brasileira. Queremos muito nos estabelecer aqui”, disse à Fórum Martin Cheak Choon, presidente da Jurong Brasil, depois da solenidade em Aracruz, em que foi colocada a pedra fundamental do estaleiro.

A Petrobras criou uma holding para com-prar e operar sondas de perfuração do pré- -sal. Batizada de “Sete Brasil”, a empresa tem o controle diluído entre fundos de investi-mentos. Na prática, a Sete vai comprar as son-das para depois alugá-las para a Petrobras. O primeiro pacote de 28 sondas foi encomen-dado ao Estaleiro Atlântico Sul. Ao estaleiro Jurong, a Sete encomendou, por ora, apenas uma sonda. Os dois estaleiros disputam um feito: quem vai fabricar a primeira sonda 100% brasileira. A “disputa” acabou conta-giando os governos de Pernambuco, onde fica a EAS; e do Espírito Santo, onde está a Jurong. “Estamos tendo a oportunidade de receber o primeiro contrato da Sete com a Jurong. Isso pode viabilizar que o primeiro navio-sonda do Brasil seja fabricado no Es-pírito Santo. Ele pode começar a funcionar já em setembro. Essa atividade não existia no nosso estado. Estamos virando um polo na-val”, diz o governador capixaba, Renato Ca-sagrande. “Serão necessárias muitas sondas

no Brasil, todas elas com conteúdo nacional elevado. Esse é o primeiro passo”, pondera Fábio Rezende Cunha, gerente de engenha-ria e implantação de projetos da Sete Brasil.

Por trás das boas intenções, existe um grande dilema. O Brasil não dispõe da mão de obra necessária para acompanhar o ritmo vertiginoso desse mercado. Desde que Lula começou a implantar um parque naval no país, a profissão de engenheiro naval tornou- -se uma das mais requisitadas. A Universida-de de São Paulo (USP) criou o curso de Enge-nharia Mecânica em seu campus em Santos. No Rio de Janeiro, a previsão é de que, nos próximos cinco anos, sejam criadas pelo me-nos 19,3 mil vagas nos estaleiros do estado. O governo criou, por meio do Ministério de Minas e Energia, um programa para treinar trabalhadores a atuarem no setor de petróleo e gás, o Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás (Prominp). Segun-do o órgão, serão abertas pelo menos 212 mil vagas de empregos nos próximos anos.

Para se ter uma ideia, cada plataforma precisa de pelo menos 300 profissionais. O grande problema é que não se forma um es-pecialista em pré-sal da noite para o dia. E os estaleiros têm pressa. Apesar de prometer en-tregar “a primeira sonda da América Latina” em tempo recorde – 42 meses – Mark Cheak Choon, da Jurong Brasil, promete que não importará mão de obra. “Não vamos trazer, a princípio, mão de obra de Cingapura. A ideia é treinarmos mão de obra local.” Dirigentes da própria companhia reconhecem reservada-mente que a decisão de nacionalizar as etapas da produção custa, pelo menos no curto prazo, mais caro à Petrobras. No médio prazo, contu-do, a tendência é que os preços se aproximem do mercado internacional. Conforme especia-listas, vale a pena esperar. Como o aluguel de navios-sondas é caríssimo, a construção de uma embarcação se paga em três anos. “A van-tagem para o Brasil é acrescentar as sondas de perfuração à lista de equipamentos offshore que os estaleiros brasileiros já produzem”, ex-plica Ariovaldo Rocha, presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Construção e Repa-ração Naval Offshore (Sinaval). Em 2012, ao menos 12 novas sondas entrarão em operação

para perfurar 66 poços exploratórios no mar. Destes, 18 serão na Bacia de Santos; 16, na Ba-cia de Campos; 11, na Bacia do Espírito Santo; 9, em Sergipe e 5, na margem leste.

Dilema ambientalOs riscos ambientais embutidos na perfu-

ração em águas profundas são o maior obstá-culo da exploração. A camada do pré-sal tem peculiariedades geológicas que desafiam o conhecimento dos especialistas. No trajeto até o “ouro negro”, existem rochas raras e pelo menos 2 quilômetros de sal, o que dificulta e torna delicada a operação. Se o sal prender-se à coluna de perfuração, o poço se fecha e cau-sa prejuízos bilionários. Isso sem falar no alto risco de um vazamento nas águas do Atlântico. Segundo um relatório feito pela FGV e a Ernst & Young sobre os pontos críticos desse tipo de exploração, ainda não se sabe se as instala-ções existentes para o tratamento de resíduos e efluentes comportarão o volume adicional das operações do pré-sal. Além dos riscos ine-rentes ao negócio, que não são pequenos, os ambientalistas apontam para o que seria um erro histórico: a produção no pré-sal tenderia a sujar a matriz energética no momento em que o mundo discute alternativas renováveis.

“O planejamento que faltou na implan-tação da Bacia de Campos não pode faltar no pré-sal. Tem a questão grave da pesca, a atividade mais impactada pela produção offshore de petróleo e gás. É preciso repensar o descarte de resíduos orgânicos pelas plata-formas e embarcações em alto mar”, clamou o ambientalista Fernando Marcelo Tavares, em artigo publicado em diversos sítios na internet. O que se vê hoje no discurso oficial sobre o pré-sal é entusiasmo e ufanismo. Essa euforia também está presente nos seto-ristas da área, nos colunistas e no discurso dos técnicos. É como se o Brasil precisasse de um desastre para enxergar além da espes-sa e sedutora camada negra do petróleo. F

Chevron na miraEnquanto estados brigam pelos royalties do

pré-sal e estaleiros disputam quem construirá a primeira sonda de perfuração 100% brasilei-ra, o noticiário vai aos poucos esquecendo do vazamento de óleo no Campo de Frade, no Rio de Janeiro, onde a Chevron é a operadora. O de-putado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP), relator da comissão externa da Câmara que apura o de-sastre, pedirá a suspensão de todos os contratos da empresa americana com o governo brasileiro.

Por trás das boas intenções, exis-te um grande dilema. O Brasil não dispõe da mão de obra necessária para acompanhar o ritmo vertigi-noso desse mercado

44 fevereiro de 2012

Os Brasis de Inezita BarrosoEmbora seu repertório seja rotulado como “caipira”, a modernidade e a vanguarda foram alguns dos princípios motores da cantora desde a sua juventude

por pedro AleXAndre sAnches

Era uma vez uma artista brasileira que queria cantar o seu país. Embo-ra o fizesse com amplitude ímpar, ficou mais conhecida como cantora “caipira”. Inezita Barroso era filha

de família de posses com raízes no interior paulista, e a conexão íntima com essa origem colaborou para que fosse percebida como uma intérprete e pesquisadora de feições “regionais”, ou “regionalistas”, mesmo tendo nascido paulistana da Barra Funda, bem no coração da cidade que se considera o sistema nervoso central de seu País.

Com 86 anos e ainda ativa e altiva, foi recentemente homenageada pela gravadora multinacional EMI com a edição da caixa O Brasil de Inezita Barroso. Seis CDs reúnem cinco de seus LPs inaugurais e uma porção de canções avulsas, todos lançados original-mente entre 1955 e 1962. Além de propor-cionar uma orgia de músicas brasileiras das mais populares, dão oportunidade aos inte-ressados de perceber como temos sido injus-tos e imprecisos com o legado dessa artista.

“Lá vem o Brasil, Brasil de verdade/ me-tido no corpo daquela mulata/ Brasil dos ta-moio, Brasil do pai João/ Brasil da mãe preta, Brasil das violas e de Lampião”, ela cantava na faixa-título do álbum Lá vem o Brasil, de 1956, já puxando a linguagem para um modo coloquial, “caipira”, de pronunciar pa-lavras, conjugar frases e expressar brasilida-des. Composta pelo pernambucano Nelson Ferreira, a canção optava por galantear não um, mas vários Brasis. “Brasil dos moleque, Brasil da Bahia/ que tem vatapá e que faz candomblé/ Brasil que no Rio se dana pro morro/ ao pé das violas se esquece da vida metido no samba”, cruzava regiões geográfi-cas, credos, estilos musicais.

É curioso que a tenhamos rotulado de

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45fevereiro de 2012

“caipira” ou “sertaneja”, já que modernidade e vanguarda foram alguns de seus princípios motores, desde a juventude. Mulher, Inezita teve de se contrapor a uma família tradicio-nalista para poder se lançar como artista de disco, rádio, televisão e cinema (era atriz, além de cantora). Casada com um cearense, obteve dele o apoio para seguir nos palcos, em tempos nos quais pais e maridos costu-mavam esperar tudo das filhas, menos aquilo.

Discípula do escritor e pesquisador mu-sical modernista Mário de Andrade, ainda naqueles princípios de carreira percorreu de jipe regiões então longínquas do País, em busca das musicalidades ditas folclóricas de cada uma delas. Ainda na década de 1940, cantou na Rádio Clube do Recife, apadrinha-da pelo compositor Capiba, pernambucano de Surubim, que em 1958 musicaria para ela os versos suicidas de “Ismália”, do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), mineiro de Ouro Preto.

Na prosa, Inezita refere-se constante-mente à dificuldade de conciliar, naqueles tempos, sexo feminino e desejo de fazer arte. A célebre “Moda da Pinga” (1953), composta pelo paulista de Sorocaba Ochelsis Laureano, lançou-a ao sucesso não só por soar marota e humorística, mas também, ou principalmen-te, por embevecer um tipo feminino incomu-mente transgressor: a moça debochada que se jogava de cabeça na “marvada” cachaça e apreciava terminar a noitada “de braço dado com dois sordado”.

Seus primeiros discos de vinil são reple-tos de composições de mulheres – várias das quais depois abandonaram a carreira por conta do casamento, segundo ela narra nos depoimentos que acompanham os encartes dos CDs, tomados pelo idealizador do pro-jeto, Rodrigo Faour. A mais conhecida des-sas canções é a nostálgica e paulistaníssima “Lampião de Gás” (1958), composta pela interiorana de Ibitinga Zica Bergami, outra integrante da alta sociedade local da época: “Lampião de gás, lampião de gás/ quanta saudade você me traz.”

A voz de Inezita também gravou, naque-les anos, criações de Lina Pesce (paulistana), Dilu Melo (maranhense de Viena), Leyde Olivé (mineira de Uberaba), Babi de Oliveira (baiana de Salvador), Juracy Silveira (minei-ra de Guaxupé) e Edvina de Andrade (pau-lista de São João da Boa Vista), entre outras. As quatro últimas e Zica Bergami foram as fornecedoras do álbum exclusivamente femi-nino Inezita apresenta (1958), que agrupava gêneros musicais diversificados como con-gada, cateretê, batuque, umbigada, currupio,

moda de viola, seresta, toada, samba, choro, canto de trabalho.

“Carinhoso, às vez bate, mas com jeito/ e num imprica com os neguinho/ dois tiqui-nho que me deu Nosso Senhor”, cantava a mãe-esposa narradora de “Recado”, de Leyde Olivé, quando o combate possível à misogi-nia ainda não ousava desnaturalizar a vio-lência doméstica contra a mulher.

Inezita conta, com orgulho, que em suas veias corre sangue de índios paraenses, tan-to pelo lado materno como pelo paterno. O Pará foi outro de seus primeiros destinos, e de lá trouxe preciosidades mestiças recolhi-das da sabedoria popular e/ou compostas pelo belenense Waldemar Henrique, como “Tamba-Tajá” (que gravou em 1961) e “Uira-puru” (1962).

A afinidade com o Norte era a afinida-de com o Sul. A caixa de CDs termina com o álbum Danças Gaúchas, de 1961, dedicado aos ritmos do Rio Grande do Sul, que ela já privilegiava desde 1955. As faixas eram te-mas tradicionais recolhidos e adaptados por Barbosa Lessa (paulista de Piratini) e Paixão Côrtes (gaúcho de Santana do Livramento). “Prenda Minha” é o mais conhecido, aloca-do numa fruteira onde se saboreia também rancheira, tirana, maçanico, quero-mana, chimarrita e xote.

Racismo, candomblé e cantos de escravos

Há mais de meio século, o Brasil da jo-vem Inezita provavelmente não compreen-dia a contiguidade existente entre tipos dis-tintos de minorias sociais. Mas ela, mulher de origem social elevada, formada em Bi-blioteconomia, ostentava evidente empatia pelos estratos menos favorecidos, em par-ticular os afrodescendentes e suas questões mais prementes.

Menos de sete décadas após a proibição institucional da escravidão, a mesma Leyde Olivé de “Recado” abordava o racismo à me-dida do possível, em “Rede de Sinhá” (1956): “Quando os branco me truxeram/ minha alma ficou presa/ (…) sinhazinha, pru que é que a noite é preta?/ inté parece que um bi-cho feio tá me oiando devagar.”

O candomblé é presença marcante em Inezita Barroso (1955) e Lá vem o Brasil. “Banzo”, de Hekel Tavares (alagoano de Satu-ba), aborda a nostalgia dos africanos no Bra-sil, cita Xangô e Exu e encadeia termos afri-canos como “marafo”, “muamba”, “macumba” e “umbanda”. Olorum é o deus evocado em “Funeral de um Rei Nagô”, do mesmo autor. Embora até hoje Inezita seja compreendida

como uma intérprete interiorana, “Berceuse da Onda”, do carioca Oscar Lorenzo Fernan-dez, é uma canção praieira, para Iemanjá.

Também “no colo de Iemanjá” repousa “Temporal”, retirada do folclore pelo gaúcho Paulo Ruschel, mas bastante assemelhada às canções praianas do baiano Dorival Caymmi. Ampla como um arco-íris Bahia-Rio Grande do Sul, foi lançada no LP de 1955 e repro-duzida no antológico Vamos falar de Brasil (1958), que emaranhava jongo mineiro, aboio nordestino, tema de cangaço do cea-rense Catulo de Paula (“Lua Luá”). Entre es-sas, estava a canção favorita do mineiríssimo presidente Juscelino Kubitschek, “Peixe vivo”, em arranjo grandiloquente, que caberia num desenho animado de Walt Disney. “Nonô é o timoneiro”, ela cantava, remetendo a um dos apelidos de JK.

Sincrética, a cantora inicia o LP de estreia com uma “Prece a São Benedito”, composta por Hervé Cordovil, mineiro de Viçosa. “Meu São Benedito, ajude os fiinho da preta nascê (e) crescê”, roga a narradora negra confor-mada na superfície, mas rebelde nas reen-trâncias. “Meu São Benedito, ajude os fiinho da preta entendê/ que o preto da pele só gar-ra nas arma dos fio que num qué sabê que é preciso sofrê/ (…) ajude os fiinho da preta rezá pra Nosso Senhor que foi Cristo levá/ os fiinho da preta pra lá quando o dia chegá.”

No encarte do CD, ela revela que a “Prece a São Benedito” ia além do aparente catoli-cismo: “O Hervé era espírita e fez essa mú-sica com inspiração espiritual.” O disco que começava com um canto católico-espírita-umbandista de escrava, terminava com uma ária das “Bachianas Brasileiras”, do carioca Heitor Villa-Lobos, pioneiro construtor da ponte entre a música brasileira erudita e a popular, mais tarde dinamitada pela MPB de extração universitária.

A escravidão africana no Brasil é o mote de “Leilão” (1960), de Hekel Tavares com o carioca Joracy Camargo. “De manhã cedo, num lugar todo enfeitado,/ nóis ficava amuntuado pra esperá os compradô”, canta o narrador, um preto forro. “Minha véia foi comprada numa leva separada prum sinhô mocinho ainda/ minha véinha, que era a frô dos cativero, foi inté mãe do terrero da famia dos Cambira”, pranteiam os versos definidos pela intérprete, no encarte, como “a coisa mais linda do mundo”.

Cantos de escravos se contam à dezena na obra inaugural de Inezita, como no can-to baiano de vaqueiro “Tirana de Vila Nova” (de Waldemar Henrique), de 1955, em “Za-bumba de Nego” (Hervé Cordovil), “Rainha

46 fevereiro de 2012

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Ginga” e “Batuque” (Leyde Olivé), “Festa do Congado”, “Lamento” e “Sodade da Loanda” (Juracy Silveira, “gorda de pele mestiça”, nas palavras da cantora) e “Maria Macambira” (Babi de Oliveira), todas lançadas em 1958.

Da escravidão ao operariado, os cantos de trabalho são outra constante em seu re-licário musical. A essa estirpe pertencem vários dos cantos de escravos e também “O Carreteiro”, “Sertão de Areia Seca” (1956), “O Carro Tombou”, “Caboclo de Rio”, o aboio “Retiradas” (1958), “Oi, Calango, Ê” (1959), “Moda do Boi Amarelinho” (1960). A plan-gente “O Batateiro” (1958), de Zica Bergami, remonta às origens europeias de São Paulo, ecoando o pregão de um vendedor napo-litano nas ruas da capital. “E eu corria com toda a meninada/ para comprar batata-doce assada/ e o velhote sempre dizia/ que es-tava muito boa a batata que vendia/ ai, que saudade do velho napolitano/ que pelas ruas passava pregoando: ‘Patana assada o furno/ ê, eri o furno’”, o vozeirão grave troveja, em grau máximo de ternura.

Se o trabalho é exacerbadamente valori-zado pela ética “inezitiana”, o ócio também o é, embora em escala bem mais recatada. É o caso de “De papo pro á” (1959), de Joubert de Carvalho (mineiro de Uberaba) e Olegário Ma-riano (pernambucano de Recife), destinada a se tornar coluna sustentadora do imaginário caipira: “Num quero outra vida/ pescando no rio de Jereré/ tenho peixe bão, tem siri patola de dá com pé/ quando no terreiro faz noite de luar/ e vem a saudade me atormentá/ eu me vingo dela/ tocando viola de papo pro á.”

“A troco de quê? (1960), de Luiz Viei-ra (pernambucano de Caruaru), poderia se adequar ao paradigma elitista-higienista do Jeca Tatu, propagandeado pelo paulista de Taubaté Monteiro Lobato. Mas era antes uma loa de malandragem, de exaltação ao matu-to que faz de tudo para escapar do trabalho:

“Difruxo me pega e eu dou de espirrá/ (…) o meu pai trabaiô tanto que eu nasci cansada.” “Oxente, sou besta?!”, exclama Inezita antes de a canção terminar.

“De papo pro á” estava em Canto da Sau-dade (1959), o LP que começaria a consoli-dar a identidade propriamente interiorana

de Inezita, entre gravações de “Fiz a cama na varanda”, “Na Serra da Mantiqueira”, “Luar do Sertão”, “Maringá” (canção de retirantes mais tarde tornada nome de cidade parana-ense) e “Meu limão, meu limoeiro”. “A troco de quê?” consta de Eu me agarro na viola... (1960), o álbum que lançou Inezita de vez ao imaginário “caipira”.

Rebatizado com o título do LP, o aboio de vaqueiro “Tirana de Vila Nova” abre o disco ancorado nos versos “eu me agarro na viola/ e a viola em mim”. Na capa, Inezita agarra-se de fato à viola – e ao chapéu de palha e ao lenço caipira xadrez presos à cabeça. A identidade interiorana paulista se fixa em composições como “Moda da mula preta” e “Moda do boi amarelinho” (ambas de Raul Torres, natural de Botucatu), “Moda do Bon-de Camarão” (Cornélio Pires, de Tietê, e Ma-riano da Silva, de Piracicaba), “Canção da guitarra” (Marcelo Tupinambá, de Tietê).

Décadas à frente, a São Paulo “que car-rega o Brasil nas costas”, como descreve a paulistana (não) caipira Rita Lee, forçaria a mão no próprio cosmopolitismo, erguido às custas dos braços de brasileiros de todas as regiões, estados, municípios e roças do país. Para ostentar suposta vocação universalista, marginalizaria atrás do rótulo “caipira”, em bloco, Inezita Barroso, os autores de que ela gostava e a própria identidade integral do es-tado. Inezita, por sua vez, seguiria resisten-te sempre, cantando sua São Paulo, seu São Paulo, seu Brasil, seus Brasis.

Este texto sublinha as cidades de origem dos muitos autores d’O Brasil de Inezita Bar-roso, na tentativa de ressaltar que a origem profunda e interiorana dessa música, mais que meramente cosmopolita ou litorânea, é a matéria-prima que cimenta os muitos, hete-rogêneos e plurais interiores do Brasil. Pelo fio da voz de uma cantora-autora classificada como “caipira”. F

47fevereiro de 2012

48 fevereiro de 2012

A Semana de Arte Moderna, 90 anos depois

Um ambiente artístico chocante para o dis-tinto público do Theatro Municipal de São Paulo, de “cavalheiros de fraque e cartola, acompanhados por damas elegantemente vestidas”, que iniciou uma grande vaia depois das primeiras impressões sobre “quadros sem perspectiva, cores berrantes, fi guras de-formadas, manchas indecifráveis e paisagens sombrias” – tudo o oposto do que prescrevia a escola europeia e os reconhecidos liceus de artes e ofícios. Semana de 22, entre vaias e aplausos, de Marcia Camargos, lançado há 10 anos, época em que se comemoravam os 80 anos da legendária Semana de Arte Mo-derna, faz uma viagem no tempo e reconsti-tui a visão geral do hall do teatro na abertura da semana, que neste mês comemora seus 90 anos.

Inicialmente anunciada como “Festival de Arte Moderna”, a Sema-na, realizada no período de 13 a 17 de fevereiro do ano do centenário da independência, é contemporânea de importantes mudanças no cenário sociopolítico brasileiro, principalmente paulistano, com o forte movimento de industrialização acompanhado da consolidação de uma nova classe trabalhadora, operária.

Contemporânea, mas não diretamente relacionada aos anseios populares – se, no cenário social, uma série de novas questões se colocavam, no cenário artístico nada era tão diferente dos atuais eventos do Municipal. A Semana e os artistas eram mantidos e incentivados por grandes mecenas diretamente ligados ao poder: “Protegidos dentro das mansões oligárquicas de mecenas como Freitas Valle, que antecedeu os salões de Paulo Prado e de Dona Olívia Guedes Penteado, sem grandes preocupações materiais pela sobrevivência, os modernistas estavam inseridos no arcabouço ins-titucional da sociedade burguesa. A maioria deles, como Cândido Mota Filho, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mantinha liga-ções estreitas com o PRP – Partido Republicano Paulista. Menotti Del Picchia era repórter do Correio Paulistano, órgão do partido, ao qual se fi liou juntamente com Cassiano Ricardo e Plínio Salgado”. Mais tarde, muitos dos modernistas, como Oswald de Andrade, vi-riam a mudar de rumos e participar de iniciativas mais populares, mas, naquele momento, as preocupações eram estéticas.

Dentro do mundo cultural, sem dúvida iniciou-se uma mudança importante, acompanhada de contradições e antagonismos próprios, como o dilema entre a admiração pela vanguarda parisiense e o repú-dio, um tanto nacionalista, aos preceitos francófi los que delineavam o tradicionalismo e academicismo nas artes. Os refl exos dessa Semana, que, apesar de pequena, faz barulho até 90 anos depois, não só têm grande relevância como um lugar garantido no imaginário brasileiro. A autora do livro se propõe, com vasta documentação e interessantís-simas imagens cuidadosamente levantadas em arquivos históricos, a explicar por que a Semana tem esse lugar. (Cristina Uchôa)

Semana de 22, entre vaias e aplausosMarcia Camargos

Boitempo Editorial, 184 págs

O socialismo e o direito Escrita por Engels e Kautsky no fi nal do século XIX, O socialismo jurídico é uma das obras mais importantes a respeito do papel do Direito na superação do capitalismo. A crítica marxista ao Direito é exposta, aqui, em suas bases mais profundas.

À época da escrita desse livro, os reformistas, em combate às ideias revolucio- n á r i a s de Marx, apontavam para uma transição controlada, objetivando ganhos por meio do aumento de direitos, sem transformar ple-namente as contradições da exploração capitalista. Alguns movi-mentos de trabalhadores se encantaram por essa visão meramente reformista, empreendendo a petição de seus interesses dentro do campo das instituições políticas e jurídicas postas.

Engels e Kautsky dedicam essa obra justamente a combater tal visão reformista, que naquele tempo tomava relativo vulto por meio das ideias do jurista Anton Menger. Contra o socialismo dos juristas – ou o socialismo por meio do direito – o pensamento de Engels e Kautsky afi rma a necessidade de superação das estruturas e formas da sociedade burguesa. O Direito é, irremediavelmente, uma forma do capitalismo. Assim sendo, a revolução – e não a reforma por meio de instituições jurídicas – é a única opção real-mente transformadora das condições das classes trabalhadoras.

Uma das obras clássicas do marxismo sobre a relação entre o Direito e o capitalismo, O so-

cialismo jurídico é um dos pontos altos da junção entre a teoria e a inter-

venção política revolucionária. A publicação em língua portugue-sa, prevista para março, pela Editora Boitempo, é acrescida de algumas cartas de Engels a Laura Lafargue, que também tratam do tema do socialismo jurídico e do reformismo. Essa

edição contra ainda com um importante texto de apresentação

de Márcio Bilharinho Naves, ilustre fi lósofo do direito brasileiro. (Alysson

Leandro Mascaro)

O livro O socialismo jurídico será lançado em março pela Boitempo Editorial

49fevereiro de 2012

MICHEL TELÓ É UM LIXO. UM LIXO COM O QUAL NOS HABITUAMOS HÁ MUITOS E MUITOS ANOS. Antes dele havia outros e, depois, provavel-mente, muitos mais virão. Um lixo inócuo, desprovido de qualquer sen-so de inteligência. Aí, é claro, sempre vai aparecer alguém a perguntar: por que um lixo vende tanto e faz tanto sucesso? E é exatamente aí, na complicada e intrincada resposta a essa simples pergunta, que mora todo o problema.

Desde os anos 1980, quando fomos devastados pelo Xou da Xuxa e congêneres, a coisa saiu do controle. Se, antes disso, nossos pais recla-mavam da Jovem Guarda, em contraponto à música mais culta, o que dizer hoje? Roberto Carlos e seus parceiros eram um luxo. A música que produziam partia e voltava para um meio ingênuo e alienado; no entanto, era repleta de engenharia e criatividade, beleza e talento.

De uma hora para a outra nos deparamos com a total falta de parâ-metros. Do tatibitate da Xuxa para o sexismo desembestado de Michel Teló, tudo apela para os sentidos primitivos sem nenhuma conexão com a história e herança do indivíduo e sua coletividade. Acompanhado de versos canhestros, melodias primárias, essas músicas trazem também as suas coreografi as. Feito um autômato, o ouvinte imita peixinhos e posições sexuais e congrega com seus pares através de mera repetição mecânica que nunca questiona ou propõe nada.

Não se trata aqui de negar a cultura de massas. Desde Elvis, Beatles, Michael Jackson e, mais aqui para nós, o próprio Roberto Carlos, Da-niela Mercury, Zezé de Camargo e Luciano e, ainda mais perto, a banda Charlie Brown Jr., temos inúmeros exemplos de artistas populares ta-lentosos e conectados com o seu tempo, feitos por ele e para ele. Estru-turaram a sua obra com base na própria história e na formação cultural do meio de onde vieram, e mudaram a música da sua era.

Michel Teló não muda nada. Tudo fi ca como sempre foi antes ou depois de sua música e dancinhas. Para não ser tão injusto, a bem da verdade, muda, sim. Expõe nossos jovens a um comportamento ignóbil e medío-cre, que, feito curto-circuito, deixa queimaduras e interrompe a sinapse, a corrente de energia que os faria pensar, propor e construir alternativas.

A indústria cultural, assim como todas as outras, trabalha pelo lucro. A diferença dela para as outras é que não há regulamentação de espécie alguma sobre os seus produtos. Num maço de cigarros, por exemplo, o usuário é obrigado a conviver com fotos horríveis das mais variadas mazelas que o produto causa, como câncer, impotência etc. Na capa do famigerado disco AI SE EU TE PEGO, por sua vez, não há nenhuma indicação de que aquilo vai expor o ouvinte à desinteligência, falta de qualquer conexão plausível com a sua formação cultural e que isso é prejudicial à formação e educação, sobretudo dos jovens.

O comportamento passivo, que nos leva a ouvir e repetir coisas sem questionar nada, é cômodo. Essa talvez seja a chave para tanta recepti-vidade: “Não penso, logo inexisto enquanto indivíduo, fator este que não

me exige nenhum esforço nem físico, nem moral e muito menos intelectual”.

Esse processo, que não é nada novo, é tão devastador para o indiví-duo quanto os males do tabaco, do álcool, das altas taxas de colesterol e de glicose.

A pequena particularidade é que mata deixando vivo.

NO FINAL DE 1995, GRAVEI PELO SELO CAIPIRAPIRA, DO CANTOR E COMPOSITOR RENATO TEIXEIRA, O DISCO CAIÇARA, produzido pelo multi-instrumentista e compositor Natan Marques. Sem me dar con-ta, estava dentro de um estúdio cercado de amigos da ELIS REGI-NA por todos os lados.

Natan fez parte da banda da can-tora durante dez anos e Renato, além de amigo, teve o seu maior sucesso e, consequentemente, a

sua entrada no grupo dos grandes da nossa música, graças à anto-lógica gravação dela para “Romaria”. Já fazia mais de dez anos que Elis havia partido, mas os dois falavam dela com a desenvoltura de ontem. Tanta personalidade e talento serviam aos meus dois colegas de então como um claro paradigma: “Elis diria isto, Elis faria aquilo, gostaria desta canção, não deixaria isto assim etc.”, quase como se a cantora fosse entrar a qualquer momento por ali.

Nunca entrou, é claro, mas a sensação nítida é que também não saiu. E essa é a mesma impressão que temos em todas as rodas nas quais pessoas obstinadas façam música. Muito além de ser uma das maiores cantoras brasileiras de seu tempo e, talvez, de qualquer outro, Elis tinha uma postura, um jeito de dizer e fazer que não deixava dúvidas. Estava sempre alerta e detestava mediocrida-des e mau-caratismo.

A maneira como ela gravava seus discos formaram uma lenda à parte. Normalmente um cantor faz, no começo da gravação, uma voz guia para os músicos. A partir daquela voz, todos os outros ins-trumentos são executados e gravados. No fi nal de tudo, com a base instrumental pronta, o cantor volta, descansado, e num ambiente tranquilo coloca a voz defi nitiva. Elis, segundo contam, colocava a sua guia e não gravava mais nada. De cara, fi cava tudo perfeito. Entre várias outras lendas, diz-se que gravou o antológico Falso Brilhante em dois dias. Ela e toda a banda.

Hoje, 30 anos depois de sua tão precoce partida, é inevitável pensar no que virou o mercado fonográfi co pós-Elis. A despeito de seus pró-prios fi lhos estarem por aí conferindo ainda alguma dignidade ao que nos restou, o comportamento irrequieto e inconformado da cantora talvez nos faça tanta falta quanto a sua voz maravilhosa.

Ela não era de comer enrolado e também não se furtava a dizer, de-nunciar e cobrar o que quer que visse ou, principalmente, ouvisse de errado. Era crítica ferrenha da malfadada Ordem dos Músicos do Bra-sil, esculhambava sem medo nem perdão a chamada música ruim. E é sempre bom lembrar que o que era considerado ruim há 30 anos, hoje, é pinto perto do lodaçal que virou o nosso mercado fonográfi co.

E ela tinha moral pra dizer o que quer que fosse. Seus discos a avali-zavam. Fazia em dois dias gravações históricas, ouvidas e discutidas até hoje, enquanto hoje discos medíocres consomem meses e mi-lhões na sua feitura e não duram dois dias.

Elis Regina sempre nos respeitou, entregando o seu melhor e mais visceral enquanto artista e ser humano. Por isso é lembrada até hoje com tanto carinho e respeito, 30 anos depois de sua par-tida, como se ainda estivesse por aqui, nos palcos e estúdios, a nos apontar caminhos.

NO FINAL DE 1995, GRAVEI PELO SELO CAIPIRAPIRA, DO CANTOR E COMPOSITOR RENATO TEIXEIRA,

A coluna adverte: ouvir esse CD é prejudicial à formação e educa-

ção, sobretudo dos jovens

me exige nenhum esforço nem físico, nem moral e muito menos intelectual”.

Esse processo, que não é nada novo, é tão devastador para o indiví-duo quanto os males do tabaco, do álcool, das altas taxas de colesterol e de glicose.

50 fevereiro de 2012

MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).

N o final de 2011, liguei a televi-são algumas vezes em progra-mas rotulados como telejornais

e me enchi de lembranças de outros tempos, que a juventude atual poderia até rotular como “de vidas passadas”, porque parecem muito antigas. Mas não são tão antigas assim.

O que me provocou umas lem-branças divertidas foi uma matéria so-bre a Mega-Sena de fim de ano, com a clássica pergunta dessa época de falta de assunto: “Se você ganhasse sozinho, o que faria com a grana?”.

A resposta era sempre um festival de mesmice: comprar uma casa era a mais comum, por pessoas que tentavam pare-cer “responsáveis” e merecedoras. Outra resposta era aquilo de “ajudar todo mun-do”, uma falsidade. E uma resposta mui-to besta, natural do nosso tempo de culto ao automóvel, em que se gasta mais tempo para ir de carro a alguns lugares do que a pé: “Comprar um carro para cada filho”.

Pois é. Primeiro, lembrei-me de um órgão público em que fiz uns trabalhos. Tinha um sujeito que era semianalfabeto, mas com um alto cargo, muitíssimo bem remunerado. Ar-riscaria a dizer que o salário seria equivalente a uns R$ 10 mil de hoje. Sua única função real era fazer o bolão da loteria esportiva entre os colegas. Como era possível alguém ganhar do Estado para isso? Bom, era amigo dos milita-res. Fiquei pensando nas pessoas que ficam falando que os funcionários públicos de hoje não trabalham e esbravejando que no tempo dos militares não tinha corrupção.

A loteria esportiva foi a primeira depois das tradicionais loterias federal e estaduais, em que se comprava (existem ainda, mas sem charme) bilhete com valores fixos de premia-ção. E durante um bom tempo era a única desse estilo, de preencher um volante e jogar na casa lotérica.

Então, lembrei-me também que no iní-cio da loteria esportiva – na época, uma no-vidade –, durante várias semanas, ganhava uma pessoa, às vezes duas, sempre uma boa bolada. Interessante era que quem ganhava geralmente não entendia nada de futebol, pois quem entendia jogava sempre preven-do vitórias dos grandes times, mas sempre

ocorriam zebras. Quem não entendia nada, achava bonito o nome de um time e jogava nele... Daí houve uma série de ganhadores surpreendentes, como uma lavadeira, um vaqueiro....

E as pessoas sonhavam com o que fariam se ganhassem. Uma vez, depois de uma sé-rie de edições em que ganhavam no máxi-mo três apostadores, soube de um cara que odiava o chefe autoritário e, quando viu no final da noite de domingo, tinha ganhado. Planejou uma coisa que muita gente sonha, e cumpriu na segunda-feira de manhã: che-gou ao trabalho, entrou na sala do chefe, su-biu na mesa e “defecou”, para usar um termo menos chocante.

Aí teve uma surpresa: veio a notícia de que mais de três mil pessoas ganharam na lo-teria esportiva. Foi a primeira vez que aconte-ceu isso. E o prêmio, dividido por esse bando, foi uma mixaria para cada ganhador. Ficou sem dinheiro e sem emprego. Outros fizeram coisas semelhantes e dançaram também.

Uma noite, tomando cerveja num bar da entrada da Cidade Universitária, surgiu o as-sunto besta e recorrente: o que você faria se ganhasse sozinho na loteria esportiva?

Uns faziam elucubrações mirabolantes; outros falavam de projetos grandiosos, afinal todos nós éramos estudantes universitários. Aí chegou a vez do Heitor contar o que faria com o prêmio. Casado com a Teresa, todo certinho, ele começou:

– Primeira coisa: compraria um aparta-mento em Perdizes.

Provocou indignação:– Ô, classe média! – Segunda coisa: compraria um Corcel

zero quilômetro.Levou vaia. De novo, os velhos sonhos de

gente da classe média.– Terceira coisa: compraria uma butique

numa galeria da Rua Augusta, que desse ren-da líquida de uns 2 mil dólares por mês.

Aí, já tinha gente querendo vontade de bater nele, que respirou fundo e falou:

– Então dava tudo isso pra Teresa e me mandava pra cair na gandaia.

– Eeeebaaaa! – enfim, foi aplaudido com entusiasmo. F

O prêmio da loteriamas rotulados como telejornais

e me enchi de lembranças de outros tempos, que a juventude atual poderia

clássica pergunta dessa época de falta de assunto: “Se você ganhasse sozinho,

A resposta era sempre um festival de mesmice: comprar uma casa era a mais comum, por pessoas que tentavam pare-cer “responsáveis” e merecedoras. Outra resposta era aquilo de “ajudar todo mun-do”, uma falsidade. E uma resposta mui-to besta, natural do nosso tempo de culto ao automóvel, em que se gasta mais tempo para ir de carro a alguns lugares do que a pé:

e me enchi de lembranças de outros

de assunto: “Se você ganhasse sozinho,

A resposta era sempre um festival de mesmice: comprar uma casa era a mais comum, por pessoas que tentavam pare-cer “responsáveis” e merecedoras. Outra resposta era aquilo de “ajudar todo mun-do”, uma falsidade. E uma resposta mui-to besta, natural do nosso tempo de culto ao automóvel, em que se gasta mais tempo para ir de carro a alguns lugares do que a pé:

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