fogo morto: uma tragédia em três atos

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS FOGO MORTO: UMA TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS Tese de Doutorado apresentada por Elri Bandeira de Sousa como exigência para o grau de Doutor em Letras ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Arturo Gouveia, em março/2006. CAMPINA GRANDE/PB., MARÇO/2010

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Tese de Doutorado apresentada por ElriBandeira de Sousa como exigência para o grau de Doutor em Letras ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Arturo Gouveia, em março/2006.Na presente tese, estudamos a persistência do trágico no romance Fogo Morto, de José Lins do Rego, não como categoria filosófica, mas como categoria estética que, embora tradicionalmente relacionada ao gênero dramático, não raro aparece em narrativas e obras de outros gêneros.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

FOGO MORTO: UMA TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS

Tese de Doutorado apresentada por Elri Bandeira de Sousa como exigência para o grau de Doutor em Letras ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Arturo Gouveia, em março/2006.

CAMPINA GRANDE/PB., MARÇO/2010

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TÍTULO DA TESE: FOGO MORTO: UMA TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS

AUTOR: PROF. DR. ELRI BANDEIRA DE SOUSA1

INTRODUÇÃO

Na presente tese, estudamos a persistência do trágico no romance Fogo Morto2,

de José Lins do Rego, não como categoria filosófica, mas como categoria estética que,

embora tradicionalmente relacionada ao gênero dramático, não raro aparece em narrativas e

obras de outros gêneros.

Consultando-se a fortuna crítica de José Lins, constatamos um reduzido

número de estudos do trágico em sua obra. Em geral, os críticos recortam a decadência como

tema dominante no ciclo da cana-de-açúcar3, mas ficam na mera constatação ou num

comentário mais geral, sem enveredarem por uma análise de cunho mais precisamente

estético. Ou, quando o fazem, tal análise recai sobre o conjunto da obra, o que inviabiliza seu

aprofundamento.

O trágico, sem o concurso de uma ordem divina, que é dominante na tragédia

grega, incorpora-se a inúmeras obras de diferentes tradições literárias. No romance de José

Lins e, particularmente em FM, parece ser elemento fundamental. Estudá-lo nessa narrativa é,

certamente, proposição exeqüível. Cabe a questão: ele também se manifesta nas demais obras

do ciclo da cana-de-açúcar? Apresenta, nelas, configuração semelhante à de FM? Seria, no

1 Professor da Unidade Acadêmica de Letras do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande. Defendeu Tese no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB em março/2003, sob orientação do Prof. Dr. Arturo Gouveia. 2 A partir de agora, empregaremos as iniciais FM, sempre que quisermos nos referir a Fogo Morto, seja no corpo do texto, nas notas explicativas ou referências bibliográficas. 3 Preferimos manter esta denominação para esse conjunto de obras de Lins do Rego – apesar de ter sido abandonada pelo autor com a publicação de Usina e das polêmicas suscitadas – uma vez que elas giram em torno de um mesmo universo, retomando, com as necessárias mudanças, ambiente, personagens e eventos diversos.

3

conjunto dessas obras, uma representação literária de transformações sociais ou históricas, ou

representação do destino humano num sentido universal, uma posição pessimista diante da

vida? Para responder a essas questões, a análise de FM é antecedida de breve estudo da

pertinência do trágico nessas narrativas do ciclo.

A hipótese de análise que propomos para FM atém-se à ação e aos aspectos

existenciais e sociais dos personagens, considerando a narrativa expressão artística de

conflitos vinculados a um momento histórico internalizado na ficção: os heróis agem nesse

ambiente conflituoso e vivem impasses que os aniquilam ou deixam em aberto seus dramas.

Essa situação ilustra o conflito trágico cerrado, o qual, segundo Albin Lesky4, não apresenta

saída, apenas destruição. É nessa perspectiva conceitual que desenvolvemos esta pesquisa.

A definição de Lesky não aponta para a destruição inexplicável de toda a vida

humana ou de todo um universo. O que se aniquila é parte de um todo que permanece, sendo

que o sentido particular da ruína procede do que decai. O trágico, assim conceituado, e com as

devidas adaptações, elucida a trajetória dos protagonistas de FM no quadro a que a crítica

chama de decadência, processo esse de ordem social, inteligível, não transcendente, mas que

foge ao controle do sujeito isolado, e que serve de leitmotiv para a ação dos personagens. O

que se destrói são formas arcaicas pelo novo que se anuncia num horizonte próximo.

Raymond Williams, em sua Tragédia moderna, faz uma análise dos novos problemas e

temáticas que estão a exigir uma nova forma de tragédia na contemporaneidade. O teórico da

Nova Esquerda inglesa rompe com as concepções tradicionais que sustentam as teses do

desaparecimento da tragédia com o Romantismo. Suas idéias são importantes para o nosso

trabalho na medida em que reafirmam a persistência do trágico como decorrente de ações e

decisões humanas, independentes de um plano metafísico que lhes dê significado. Interessa-

nos, aqui, particularmente, o sentido de complementaridade entre as posições de Raymond

Williams e o conflito trágico cerrado, conceito desenvolvido por Albin Lesky.

4

Esta pesquisa não objetiva comprovar que FM é uma representação da

decadência da economia açucareira, pois tal afirmação já vem sendo feita, reiteradamente,

pela crítica, embora de forma bastante genérica. Pretendemos demonstrar como essa

representação se realiza esteticamente, como o trágico se constrói, como o corpus escolhido

acolhe um momento da chamada decadência, e não toda ela. Há um pressuposto nessa

perspectiva de análise: FM não deve ser lido isoladamente dos romances que compõem o

ciclo da cana-de-açúcar.

No estudo dos personagens e da ação, categorias fundamentais para se

compreender o trágico, os conceitos de dialogismo e polifonia, de Mikhail Bakhtin, é

aproveitado em apoio a nossa hipótese, pois na estrutura da narrativa e na trajetória dos

protagonistas de FM impõe-se o conflito de vozes e a irredutibilidade de posições que conduz,

neste caso, a um desfecho trágico em um romance polifônico. Nessas ações situadas5, os

personagens vão acumulando perdas que repercutem em suas vidas pessoais e, por vezes, nas

de pessoas ou grupos mais próximos. O trágico, conceito mais dinâmico que decadência, se

funda, portanto, na ação. Em FM, o homem, e não a natureza, está no primeiro plano; eis por

que é ele, no seu agir, que elegemos como categoria analítica.

Como base de apoio para a verificação da validade dessa hipótese (romance

dramático, trágico e polifônico), são utilizados os seguintes estudos: O Teatro Épico, de

Anatol Rosenfeld, que examina a transposição de gêneros na tradição dramática ocidental;

Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária, de Antonio Candido, que

desenvolve o fundamento crítico e teórico para a compreensão das relações dialéticas entre a

literatura e a sociedade, especialmente a funcionalidade dos elementos exteriores

4 LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg et al. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 38. 5 Ao afirmar que a ação do homem é situada, aproximamo-nos do conceito sartriano de situação, como conjunto de condições materiais e psicanalíticas nas quais, em determinada época, se insere a livre ação do homem. O ser temporariamente situado está localizado na história e sua ação só se torna satisfatoriamente inteligível quando tomada nessa perspectiva. Assim, descartamos, desde já, qualquer forma de determinismo do trágico nesta tese, seja ele de ordem transcendental, seja de ordem social. Ver SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In. _ Sartre. Trad. Rita Correia Guedes. São Paulo: Victor Civita, 1984. p. 01-32 (Coleção Os Pensadores).

5

interiorizados na narrativa; o ensaio “A personagem do romance”, desse mesmo autor,

constante da obra A personagem de ficção (Antonio Candido et al); e Problemas da poética

de Dostoiévski, de Bakhtin, que constrói os conceitos de dialogismo e de polifonia e sua

verificação crítica. Conceitos como ação, caráter, erro, catástrofe, pathos, catarse e

verossimilhança, imprescindíveis ao estudo de FM, são extraídos da Poética, de Aristóteles, e

servem de referência para a análise do corpus. Sempre que possível e necessário são feitas aproximações comparativas entre

FM e outras obras, sejam romances ou tragédias, mas essas aproximações têm caráter apenas

ilustrativo, limitando-se a ações, personagens e desfechos trágicos.

Antecede a análise do corpus um breve levantamento e um comentário crítico

das abordagens do trágico e da decadência na fortuna crítica de José Lins do Rego, sem a

pretensão de revisar a totalidade de autores que se detêm nessas questões ou que passam por

elas superficialmente.6

6 A redação deste trabalho segue o que preceitua a ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, NBR 6024 e 6027, de agosto de 1989, NBR 6023, 10520 e 14724, de agosto de 2002.

6

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 A Mistura de Gêneros

A teoria dos gêneros remonta ainda a Platão1 que, no Livro III da República,

citando Sócrates, discorre sobre os três tipos de obras poéticas: a imitação dramática (tragédia

e comédia), os relatos poéticos, exemplificados com os ditirambos, e as epopéias.

É Aristóteles, todavia, quem ressalta e define, em sua Poética2, segundo

elementos formais e conteudísticos, a tragédia e a epopéia. O livro sobre a comédia se perdeu,

de modo que não conhecemos o pensamento do filósofo sobre o assunto.

Afirma Aristóteles que a tragédia e a epopéia concordam em imitarem homens

superiores, mas acrescenta que a imitação narrativa em verso deve ter uma estrutura

dramática, como a da Tragédia3 e que, excetuando a melopéia e o espetáculo cênico,

estratégias dramáticas tais como reconhecimentos, peripécias e catástrofes também são

necessárias na poesia épica. Embora seu intuito seja demarcá-las como gêneros distintos,

Aristóteles parece ter consciência de que tragédia e epopéia se interpenetram e coincidem no

objeto de imitação, em alguns recursos estilísticos e elementos estruturais.

Em sua Arte Poética ou Epistula ad Pisones, Horácio4 parece retomar

postulados aristotélicos como unidade, verossimilhança e equilíbrio. Mas o poeta latino,

possivelmente, não teve contacto com as idéias estéticas do pensador grego, uma vez que a

Poética desapareceu na Antiguidade. O decoro, ou seja, a postura condizente com o caráter do

herói trágico, é um garante de verossimilhança. A tragédia latina prima pelo estilo elevado, o

1 PLATÃO. A República. 6. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, p. 118. 2 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. São Paulo: Ars Poética, 1993, p. 17-21. 3 ARISTÓTELES, op. cit., p. 121. 4 HORÁCIO. Arte poética (Epistula ad Pisones). Trad. Jaime Bruma. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 55.

7

que é assegurado pela linguagem nobre e pelo decoro mas, acrescentamos, estes recursos já

eram imprescindíveis na epopéia.5

Com base nos postulados aristotélicos e horacianos, as estéticas renascentista e

neoclássica estabelecem a divisão dos gêneros em três, incluindo o lírico, e ditam as regras de

escritura e composição, que devem ser observadas com rigor e servem, doravante, de critério

para a avaliação das obras literárias. Além das normas que recomendam a não-miscigenação

de assuntos e estilos, essas estéticas advogam o princípio da coerência fabular e

caracterológica e a lei que lhe é mais cara, qual seja, a lei das três unidades (de ação, de tempo

e de lugar), equivocadamente atribuídas a Aristóteles que, na verdade, considerou

imprescindíveis à tragédia as unidades de ação e de tempo.6

A teoria dos três gêneros, que nem sempre foi aceita pacificamente, sofre duros

golpes com o advento do Romantismo, movimento que tem por base o princípio da liberdade

frente aos cânones da composição poética. Para os românticos, o poeta é um ser inspirado,

concepção platônica que se opõe à do poeta artífice, seguidor de normas, conforme às

orientações aristotélicas. O mais forte ataque contra a divisão dos gêneros foi desferido por

Victor Hugo7, que a considerou formal e arbitrária. Para o dramaturgo francês, a mistura dos

gêneros sempre existiu. Já se acha nas epopéias de Homero e nos dramas de Ésquilo, Sófocles

e Eurípides. “Mas é sobretudo na tragédia antiga que a epopéia sobressai por toda a parte. Ela

sobe ao palco grego sem nada perder, de alguma forma, de suas proporções gigantescas e

desmedidas.”8

5 É importante atentar para as diferentes épocas da história grega em que surgem a epopéia e a tragédia. Os poemas homéricos teriam sido compostos no Período Arcaico, por volta do século VIII a. C. e seriam verdadeiras adaptações para a escrita de uma longa tradição oral. Já a tragédia, que retoma, em outras bases, os mitos fixados pela poesia épica, teve seu apogeu no Período Ático, do século V ao IV a. C., especialmente quando Atenas, sob a democracia, tornou-se o centro político e cultural da Grécia. Cf. D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. 2 ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 27-63. 6 ARISTÓTELES, op. cit., p. 35 e 37. 7 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime (Prefácio de Cromwell). Trad. Célia Berrettini. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, . 8 HUGO, op. cit., p. 19.

8

É nos tempos modernos, no entanto, que Victor Hugo identifica a necessidade

histórica de uma literatura que mistura os gêneros, o grotesco e o sublime, a tragédia e a

comédia. Para esse autor, as coisas são distintas mas andam juntas. Estar de acordo com a

natureza e com a verdade é representá-las, sem copiá-las servilmente, mas recriá-las com arte

e inspiração. Separar a matéria que dá forma à poesia é separar o que vive junto no mundo

real. Não cabe ao homem corrigir a natureza, mas seguir o seu exemplo. Todavia, os

elementos não se misturam com peso e medidas iguais. O autor de Os miseráveis ainda

afirma: “há tudo em tudo; só que existe em cada coisa um elemento gerador ao qual se

subordinam todos os outros, e que impõe ao conjunto seu caráter próprio.”9 Se os contrários

se misturam, um há de predominar, dando à obra seu caráter definidor.

Anatol Rosenfeld10 entende que a manutenção da teoria dos três gêneros

decorre da necessidade que tem a ciência de estabelecer ordem na diversidade de fenômenos,

aproximando-os pelas afinidades, distinguindo-os pelas diferenças. Mas em sua obra O Teatro

épico, onde se detém no estudo do teatro medieval e moderno, procura mostrar, a partir da

análise de diversas obras, em especial o drama épico de Brecht, que a pureza dos gêneros não

existe concretamente. Afirma esse estudioso que “a pureza em matéria de literatura não é

necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido

absoluto.”11

Para esse autor, é necessário que se faça distinção entre o significado

substantivo dos gêneros, que corresponde aos gêneros propriamente ditos, à Lírica, à Épica e

à Dramática, com o predomínio de suas respectivas características formais, e o significado

adjetivo dos gêneros, que diz respeito aos traços estilísticos que integram uma obra

individual. Esta pode pertencer à Épica e ter um cunho acentuadamente dramático. Mas cabe

ao estudioso atentar para o que é acidental ou fundamental na obra. Na verdade, nunca houve

9 HUGO, op. cit., p. 43. 10 ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 16.

9

pureza de gêneros. A tragédia surge das epopéias de Homero. Quantos heróis, cobertos de

glória, sucumbem ante os caprichos do destino ou devido a um erro trágico! Só na Ilíada12,

são mais de 200 mortes. Em contrapartida, as rubricas, o coro, o prólogo e o epílogo

assumem, nas tragédias, uma função épica como vestígios de um narrador que não aparece

claramente no texto, mas se esconde por trás da cena. Nas narrativas, a ação, os intensos

conflitos e os diálogos entre personagens são elementos de interseção do gênero épico com o

dramático. Segundo Rosenfeld, em suma, “... toda obra literária de certo gênero conterá, além

dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais

típicos dos outros gêneros.”13

Apresentando um breve resumo do pensamento de Hegel acerca dos gêneros,

Rosenfeld anota que, para o pensador alemão, as esferas da Épica e da Lírica fundem-se para

dar lugar à Dramática. Esta última seria a síntese das duas primeiras, e pressupõe tanto a

objetividade de uma como a subjetividade da outra. Na concepção de Hegel, a Épica e a

Lírica são domínios separados, ocorrendo a mistura apenas na Dramática. Não seria, talvez,

conveniente considerar, ao contrário, que esta não é síntese daquelas, mas que os traços

estilísticos e estruturais de um gênero podem integrar uma obra classificada em outro gênero,

assumindo plena funcionalidade? Assim, poderíamos afirmar (sem a pretensão de apresentar

alguma novidade) que todo romance, via de regra, comporta, em sua estrutura, um drama ou

um conflito, desencadeado pela ação dos personagens, materializada, em grande parte, pelo

entrechoque dos diálogos. Assim, também os estados líricos, exprimindo a subjetividade dos

personagens, integrariam o romance, como o fazem na epopéia e no drama. Do mesmo modo,

o efeito de distanciamento, que leva o espectador a ver com o olhar épico da distância, e os

recursos cênico-literários, entre outros, tomam parte no drama de Brecht.

11 ROSENFELD, op. cit., p. 16. 12 Embora não seja este o propósito ou o fundamento da epopéia homérica, o trágico nela já se acha presente, proporcionando matéria para os grandes tragediógrafos gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípides. 13 ROSENFELD, op. cit., p. 18.

10

Os estudos realizados por Bakhtin acerca da constituição do romance como

gênero híbrido são esclarecedores e nos ajudam a entender as transformações por que

passaram os outros gêneros, sob sua influência, na era moderna. Segundo o teórico russo, o

romance alcança importância tal entre o final do século XVIII e o século XIX, a ponto de

provocar uma romancização dos outros gêneros. Ocorre, então, um aprofundamento da

mistura dos gêneros, tendência que se manteve ao longo dos séculos. Bakhtin observa, por um

lado, que o romance é um gênero por se constituir, que a sua ossatura ainda está longe de se

consolidar, dada a sua capacidade de absorver, como gênero recente, não só elementos de

outros gêneros literários, mas de não literários, parodiando-os, integrando-os à sua construção

particular, reinterpretando-os ou dando-lhes novo tom. Enquanto os outros só fazem se

adaptar aos novos tempos, ele está evoluindo, pois, nascido e alimentado pela era moderna, é

o único capaz de expressar as tendências evolutivas do seu tempo.

Uma vez estabelecido como gênero predominante a partir da segunda metade

do século XVIII, passou a exercer forte influência sobre a dramática e a lírica, que se

romancizaram. Eles se tornaram mais livres, mais soltos e absorveram o plurilingüismo

extraliterário. Assim, esses gêneros

... dialogizam-se e, ainda mais, são largamente penetrados pelo riso, pela ironia, pelo humor, pelos elementos de autoparodização; finalmente – e isto é o mais importante – o romance introduz uma problemática, um inacabamento semântico específico e o contato vivo com o inacabado, com a sua época que está se fazendo (o presente ainda não acabado). Todos esses fenômenos [...] são explicados pela transposição dos gêneros para uma nova área de estruturação das representações literárias (a área de contato com o presente inacabado), área pela primeira vez assimilada pelo romance.14

14 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 4 ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1998. p. 400.

11

1.2 Tragédia, trágico e conceitos afins

Para levar a cabo a presente pesquisa, precisamos antes fazer uma síntese dos

conceitos que lhe dão apoio. Comecemos com a distinção entre tragédia e trágico,

observando, desde já, que aquela implica a presença deste, mas que a recíproca não é

verdadeira. Demorar-nos-emos, sobretudo, no segundo conceito, pois é ele que nos interessa

sobremaneira no estudo do corpus. As aproximações entre FM e a tragédia propriamente dita,

grega ou moderna, serão feitas sempre a título de ilustração, sem perdermos de vista o fato de

que aquele tem estrutura romanesca e esta, dramática.

O trágico extrapola a tragédia, como ocorrência da vida real e conceito da

Filosofia. Está ligado ao destino humano mas importa, aqui, como elemento estético-literário.

Dissociá-lo da tragédia é tarefa difícil, uma vez que os filósofos, para defini-lo, partem dela e

da concepção aristotélica de tragédia. Segundo Aristóteles, a tragédia é

imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.15

Como se vê, essa definição prende-se aos limites artísticos do drama sério, de

sua representação, e inclui o trágico, como elemento que desencadeia o terror e a piedade nos

leitores ou espectadores da cena.

A tragédia é, assim, uma obra literária pertencente ao gênero dramático na

acepção substantiva do termo. Tem sua origem na Grécia antiga, provavelmente por volta do

século VI a.C., no culto aos heróis mortos ou nos rituais de fertilidade ligados a Dionísio, em

15 ARISTÓTELES, op. cit., p. 37.

12

que os ditirambos, cantos corais alegres ou tristes em homenagem ao deus, evoluíram para o

diálogo, dando o primeiro passo na direção do drama. Seu criador teria sido Tespis que,

assumindo pela primeira vez uma função protagonista, começou a dialogar com o coro e o

corifeu. Desse modo, a lenda de Dionísio passou a ser não apenas cantada, mas representada.

Posteriormente, a tragoedia16 foi aperfeiçoada por Ésquilo, que ampliou a parte dialogada,

acrescentou um segundo ator (deuteragonista), instituiu o uso da máscara e do coturno.

Enquanto Sófocles acrescentou um terceiro ator (tritagonista) e o número de coreutas de doze

para quinze, Eurípides inventou o deus ex maquina, mecanismo que, descendo do alto,

representava um deus que entrava em cena para resolver determinados impasses da trama.

Diferentemente da epopéia, a tragédia grega é composta de ações concentradas,

interrompidas apenas pela intervenção do coro. Sua essência é a expressão de conflitos

institucionais, sociais e subjetivos. Enquanto na epopéia o homem vai ao encontro do destino,

na tragédia o homem vai de encontro a ele, questionando-o. O erro do herói é fundamental

como parte da ação que desencadeia o fado trágico. Embora impulsionada pelo culto a

Dionísio, os seus conteúdos são os mitos dos heróis em episódios de sofrimento e dor, que

visam a uma reflexão sobre a condição humana. A nobreza e os heróis eram o status dos

protagonistas da tragédia ática. Da Grécia para a Roma antiga, que tem em Sêneca um

expoente, a tragédia desaparece na Idade Média para ressurgir a partir do Renascimento,

quando se transforma sob o talento de Shakespeare, Calderon De La Barca, Lope de Veja,

entre outros. A despeito da diferença na construção das tragédias antigas e modernas, o

impasse permanece como elemento central do drama sério. Assim, no final do século XVIII e

início do século XIX, o chamado drama burguês já não traz ao palco apenas a vida de heróis,

16 Vejamos o que nos diz Paul Harvey a propósito da origem do termo: “A palavra “tragédia” (tragoidia) parece derivar de tragoidoi, significando provavelmente um coro cujos componentes caracterizavam-se para assemelhar-se a bodes (trágoi), ou dançavam por um bode como prêmio, ou em volta de um bode sacrificado. O sentido posterior das palavras “tragédia” e “trágico” resultaria do caráter triste das lendas em que se baseavam as peças conhecidas como tragédias.” Cf. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 498.

13

reis e rainhas. Misturam-se os gêneros e os personagens trágicos são rebaixados socialmente,

conforme exigências da época. Mas o rebaixamento do status social do herói trágico moderno

não implica rebaixamento de caráter. Do ponto de vista humano, o herói, para ser trágico,

deve manter certo grau de excelência, mesmo que cometa um grande crime, como Medéia e

Macbeth. Há de haver nesse tipo de personagem algo que desperte empatia.

Se na Grécia antiga a tragédia ainda traz ao palco o mito, encenando um

conflito trágico que se molda com ações humanas e intervenções divinas, a tragédia latina,

com Sêneca, volta-se para a culpa, acentuando a criminalidade do herói. A partir do teatro

renascentista, as noções de sujeito, livre-arbítrio e vontade consciente desempenharão papel

cada vez mais decisivo na concepção do drama. A ação humana, independente dos deuses, é o

que define a tragédia moderna. O auge dessa tendência é o século XVIII, com o Iluminismo e

a crença na liberdade humana.

Com o Romantismo, rompem-se de vez as regras clássicas, mas o drama

burguês ainda desenvolve uma vertente trágica. A partir de meados do século XIX, sob o

influxo de novas correntes do pensamento, o gênero mais uma vez se transforma. A filosofia

de Schopenhauer e a de Nietzsche, o pensamento de Marx e a teoria de Freud abalam a crença

na autonomia do sujeito, na vontade consciente e no livre-arbítrio. Já não é a força dos deuses

o que impõe limites ao personagem. O herói íntegro dá lugar ao herói problemático, bem mais

suscetível às forças sociais ou às investidas do inconsciente, embora a ação ainda domine a

cena. Nessa nova sociedade, tendo em vista os novos temas, radicalizam-se as transformações

operadas no gênero, que absorve cada vez mais tanto elementos épicos como líricos. Sobre a

evolução e a crise do drama e da tragédia a partir do século XIX falaremos mais à frente.

Podemos adiantar, de forma simplificada, que o trágico, em geral, se liga a uma

certa concepção ou compreensão pessimista da vida ou de momentos desta. No limite, a vida

humana é trágica, pois o homem tem consciência da inevitabilidade da morte. A palavra

14

trágico sugere, quase sempre, o sentido de uma ocorrência nefasta, que envolve dor e

sofrimento intensos e a idéia de uma contradição inconciliável, resistente à racionalidade ou a

qualquer explicação. Envolve, portanto, fatalismo, embora, no universo grego onde se origina,

o destino seja implacável, e não de todo fechado. Mas o trágico, como categoria estética, só

tem lugar na ação. Aristóteles acrescenta: “a tragédia não é imitação de homens, mas de ações

e de vida [...] e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade”.17

Como todas as ocorrências desta vida, o trágico também reclama explicações.

A filosofia, a religião e a própria tragédia, como gênero, são tentativas de racionalização do

trágico.18 O enquadramento deste em relações de causa e efeito, a investigação da cadeia

lógica dos fatos (na vida ou na arte dramática), a explicação filosófica para a origem e o fim

da existência humana são procedimentos que buscam dar um sentido aos eventos que fogem à

compreensão e ao controle humano e que redundam muitas vezes em desfecho catastrófico.

Descobrir a falha trágica ou o erro, apontar a intervenção de um deus ou investigar as relações

sociais equivale a elucidar a causa ou as causas do trágico, mitigando-lhe, pelo menos em

parte, o aspecto fatalista.

A professora Sandra Luna, apoiando-se na tese de que a dramaturgia trágica

ocidental assenta-se numa estratégia poética de racionalização, afirma:

“Se a racionalidade tem como premissa essa convicção de que todo efeito tem uma causa, à tragédia, arte surgida dessa fermentação de perguntas e respostas racionais ao desconhecido, cumpre apenas rastrear as causas do trágico. Daí a representação de universos conflituosos, a sugerirem participação humana ou social nas desgraças que atingem os homens”.19

17 ARISTÓTELES, op. cit., p. 41. 18 Racionalização do trágico é um dos suportes fundamentais de tese da professora Sandra Luna, que traça valioso percurso da ação trágica ao longo do tempo, desde os gregos até autores contemporâneos como Tenessee Williams. Devemos, portanto, a esse trabalho, o empréstimo dessa expressão. Cf. LUNA, Sandra. Para uma arqueologia da ação trágica: a dramatização do trágico no teatro do tempo. 2002. 660 p. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – UNICAMP, Campinas, 2002. 19 LUNA, op. cit., Tomo I, p. 153.

15

Uma abordagem racionalista não invalidaria, evidentemente, a tradicional

concepção religiosa da peça grega, mesmo sendo esta uma passagem do mythos para o logos.

Uma tragédia como Édipo Rei, de Sófocles, convida-nos a considerar, seja seu encadeamento

racionalista, seja seu aspecto religioso e a confirmar, portanto, o mythos e o logos que a

estruturam. Já em Medéia, de Eurípides, a protagonista parece ter o controle e a

responsabilidade de todas as suas decisões. Em Electra, de Sófocles, Egisto e Clitemnestra

experimentam a morte, como conseqüência de seus atos e da maldição familiar, enquanto

Electra e Orestes, autores do assassinato da própria mãe, saem vitoriosos, embora possam ser

chamados à responsabilidade pelo crime praticado. É o que se dá com Orestes, na última parte

da trilogia de Ésquilo. E peças como Filoctetes, do mesmo Sófocles, apresentam no final uma

conciliação sem a qual, segundo o mito, a vitória dos gregos em Tróia estaria comprometida.

Vê-se que, mesmo na tragédia grega, causas humanas de desfechos trágicos se embaralham a

propósitos divinos.

Entre tantas apreciações realizadas pela tradição crítica e filosófica, vale a pena

destacar a definição de Goethe para o trágico. Como se pode observar, o conceito do poeta

alemão não abrange a diversidade de realizações deixadas pelo teatro ático antigo, conforme

exemplificamos acima: “todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo

aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico” 20. Isso equivaleria a

dizer que as Eumênides, parte final da Oréstia, de Ésquilo, não seria uma tragédia. Uma

leitura adequada dessa peça teria que levar em conta não apenas toda a trilogia, mas a

maldição da casa de Atreu, de que Egisto faz parte. Em linhas gerais, porém, as diversas

concepções teóricas do trágico apontam ora para o nada absurdo, ora para uma ordem

superior, na qual a contradição fundamental é vencida por um sentido transcendente, o que

não invalida o enquadramento como tragédia de peças em que o trágico não aparece no

desfecho, mas no corpo da trama.

16

Numa tentativa de classificar todo o legado de tragédias gregas que chegaram

aos nossos dias e de sistematizar as várias incursões de filósofos e críticos no campo do

trágico, Albin Lesky nos propõe a formulação de três conceitos capazes de orientar o estudo

desse mesmo legado.

O primeiro deles é a visão cerradamente trágica do mundo, definida nas

seguintes palavras: “... é a concepção do mundo como sede da aniquilação absoluta de forças

e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável

por nenhum sentido transcendente.”21 Trata-se da mais pessimista das visões acerca do

trágico, pois resiste a qualquer possibilidade de explicação racional para a sua ocorrência ou

para o desvelamento das causas da aniquilação das forças que se contrapõem. Alude ao nada

absurdo e não responde, portanto, à problemática que levantamos acerca de FM, pois

entendemos que a construção e o desenlace dessa narrativa obedecem a motivações

perfeitamente inteligíveis. Vale ressaltar, ainda, que esse romance de José Lins é a

representação de um universo ligado à tradição cristã, a qual, como é evidente, entra em

choque com a visão de mundo proposta por essa perspectiva filosófica.

Contrariamente a essa visão pessimista da condição humana, pode-se

raciocinar do seguinte modo: se todas as formas de vida são perecíveis mas o universo não,

em última análise afirma-se a impertinência da visão cerradamente trágica do mundo, já que

as formas de vida, mesmo perecíveis, têm a possibilidade de reprodução e, portanto, de

perpetuação, superando-se, por essa via, uma visão totalmente fechada do trágico. As

escatologias religiosas também descartam a visão de um universo sem sentido, ao preverem o

fim dos tempos e a realização da justiça universal, com a aplicação de penas e castigos ultra-

terrenos aos culpados e a superação dos conflitos humanos.22 Mas, a despeito desses

20 GOETHE, apud. LESLY, op. cit., p. 31. 21 LESKY, op. cit., p. 38. 22 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2 ed. São Paulo: Mestre Jou. 1982. p. 325.

17

argumentos, despontam, seja na arte dramática, seja no campo da filosofia, tentativas de

fundamentação de um pantragicismo. Schopenhauer, que interpreta o trágico como

autodestruição e autonegação da vontade, assim exprime sua concepção pessimista do mundo,

que a seu ver, se espelha na arte:

É o antagonismo da vontade consigo mesma que entra em cena aqui [na tragédia], desdobrado da maneira mais completa, com todo o pavor desse conflito, no mais alto grau de sua objetidade [Objektität]. Esse antagonismo torna-se visível no sofrimento da humanidade que é produzido, em parte, pelo acaso e pelo erro, que aparecem como dominadores do mundo, personificados como o destino em sua perfídia, quase com a aparência de uma vontade deliberada. Por outro lado, esse antagonismo também é produzido pela própria humanidade, pelo entrecruzamento dos esforços voluntários dos indivíduos [...] É uma única vontade que vive e aparece em todos eles, mas as suas manifestações lutam entre si e se despedaçam mutuamente...23

O trágico das circunstâncias, sobre o qual se debruçou o filósofo alemão,

encontra seu correspondente estético na obra dramática de Hebbel.24

Na situação trágica, segunda ocorrência anotada por Albin Lesky, não temos

catástrofe. Ante às forças contrárias que lutam, há o homem, que não sabe como escapar à

queda. Mas o impasse não é definitivo e ocorre uma nova acomodação. Várias tragédias áticas

têm essa configuração, como é o caso do Édipo em Colono de Sófocles, e as já citadas

Filoctetes e Eumênides. É importante lembrar que essas tragédias recriam momentos pontuais

ligados a um mito com ramificações extensas. As duas últimas, por exemplo, ligam-se ao mito

de Tróia. A considerarmos o Fausto de Goethe uma tragédia, em cujo epílogo os anjos do

senhor arrebatam de Mefistófeles a alma do protagonista e a conduzem ao céu, temos que

incluí-lo neste grupo. Para Lesky, o que importa é o conteúdo trágico, mesmo que o desenlace

seja uma reconciliação.

23 SCHOPENHAUER, 1938 apud SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 52. 24 LESKY, op. cit., p. 49-50.

18

O que caracteriza a tragédia não seria propriamente o fim doloroso, mas um

acontecimento repleto de sofrimentos, que asseguraria o efeito apontado por Aristóteles – a

catarse – e que poderia ter como desfecho “a reconciliação das forças em luta e a salvação do

indivíduo em perigo.”25 É o que se verifica em Ifigênia em Áulis, de Eurípides. Por ordem da

deusa Ártemis, os ventos não sopram e as naus argivas não podem partir para Tróia. Dividido

entre dois valores justificáveis – o amor pela filha, cujo sacrifício é exigido pela deusa, e a

defesa da pátria ultrajada por Páris – Agamêmenon sofre terrível angústia e se decide pelo

derramamento do sangue de Ifigênia. Mas na hora do sacrifício, Ártemis, não desejando ver o

sangue de uma virgem vertido sobre seu altar, rapta a heroína e coloca em seu lugar uma

corça. É o alívio para todos: a deusa se dá por satisfeita e os gregos, enfim, partem para Tróia,

sedentos por lutar.

O conflito trágico cerrado situa-se num ponto eqüidistante entre os dois

primeiros. Coincide com a definição de Goethe, a contradição inconciliável, questionada por

Lesky apenas enquanto posição exclusiva. Compreende as situações sem saída que marcham

inexoravelmente para a destruição. Mas o que se destrói, ao contrário da visão cerradamente

trágica do mundo, não é a totalidade deste, e sim, uma parte. O sentido da destruição ou da

ruína deriva das leis do todo transcendente. Ao compreender essas leis e esse jogo, o homem

compreende igualmente a solução e o ajuste que se dão no plano superior.

Hegel, em sua Estética, vê, na tragédia, o conflito de forças eternas

individualizadas através de personagens em luta:

O que se encontra assim destruído no desenlace de um conflito trágico é unicamente a particularidade unilateral que, incapaz de se submeter a esta harmonia, se inclina demasiado, até ao abismo, ao trágico da ação, ou vê-se pelo menos forçada, na medida do possível, a renunciar aos seus fins.26

25 LESHY, op. cit., p. 37. 26 HEGEL, G. W. Friedrich. Estética: poesia. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1964. p. 438.

19

Esse terceiro fenômeno, analisado por Lesky, como os demais, em tragédias

gregas antigas, apoia-se, como se vê, na formulação hegeliana, via Goethe. Diz respeito,

portanto, àquele universo mítico, porém conflituoso, habitado por deuses e heróis. O que

propomos aqui é sua adaptação à leitura de um romance, gênero este que é, via de regra,

representação do mundo dos homens na sua condição prosaica e real. Assim, o todo

transcendente pode ser visto, em FM, não como a ordem do universo e suas leis divinas, mas

como a série social e histórica, datada e demarcada geograficamente na representação

ficcional. O próprio Lesky admite sua ocorrência num mundo que não seja o pagão:

Nem mesmo gostaríamos de excluir inteiramente do mundo cristão o conflito trágico fechado. Aquilo que é sofrido até a destruição física pode encontrar, num plano transcendente, seu sentido e, com ele, sua solução.27 Excluímos da nossa análise, no entanto, a própria transcendência cristã, que

não está em questão na trama de FM, enquanto produtora de um sentido para a presença do

trágico na narrativa.

Além de definir os três fenômenos observados na tragédia grega, Lesky ainda

considera alguns requisitos que, a seu ver, são necessários ao aparecimento do efeito trágico:

1 – A dignidade da queda, referida não propriamente à classe social a que pertence o herói,

mas à queda de um mundo supostamente seguro, porém ilusório; 2 – Possibilidade de relação

com o nosso próprio mundo: a trama deve comover, envolver o leitor ou espectador, mesmo

que pareça tão distanciada no tempo, como o destino de Hipólito, na peça de Eurípides; 3 – A

consciência do trágico por parte do herói: não há nenhum impacto, nem o pathos se faz

presente numa situação em que o protagonista desconhece inteiramente o que está prestes a

lhe acontecer; 4 – A culpa trágica: não se trata de culpa moral ou deficiência moral mas,

conforme Aristóteles, de falha intelectual, ou erro sem culpa; 5 – O acontecer trágico é

dotado de sentido? A resposta a esta questão envolve, necessariamente, a visão filosófica que

20

se tem do mundo. Mas, no plano estético, Lesky se pergunta sobre a concretização da visão

cerradamente trágica do mundo na tragédia grega, alternativa esta que aponta para a ausência

de sentido para o universo, o que só se pode confirmar com a análise de cada caso individual.

Alguns desses elementos fundamentais ao trágico parecem bastante evidentes

em romances, dando-lhes a feição de narrativa trágica. Assim como o drama, os romances não

dispensam o mito, apesar da tendência contemporânea para a epopéia negativa.28 O mito,

entendido como fábula ou enredo, é, na maioria das vezes, o seu elemento fundamental,

mesmo sem ter, na narrativa, o rigoroso encadeamento típico do drama.

Pelas ações entendemos não apenas falas, movimentos e deslocamentos físicos,

mas tudo o que, partindo dos personagens, redunda em evolução do enredo e encaminha o

destino dessas mesmas personagens. A ação trágica implica sempre uma escolha moral, um

ethos29 que, equivocado, conduz o herói a um impasse, impede a realização do projeto

principal ou retarda-o. É estrutural no conflito trágico o confronto entre duas vontades ou

projetos antagônicos. Mas afirmar que os conflitos fazem parte da estrutura do trágico não

representa nenhuma distinção em relação a outros gêneros, afinal eles também aparecem em

contos, romances, epopéias e comédias. Na tragédia ou em outra modalidade de conflito

trágico, o confronto gera um impasse ou uma crise que, muitas vezes, como no conflito

trágico cerrado, não conhece solução apaziguadora, mas um desenlace doloroso. O choque de

vontades e as ações transgressoras ultrapassam os limites do consenso. Assim, a crise, os

obstáculos insuperáveis, e não apenas o conflito, engendram a catástrofe. O trágico não é a

experiência da tristeza, mas uma ação com desfecho não raro doloroso.

27 LESKY, op. cit., p. 41. 28 ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In _ Notas de literatura I. Trad. e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 55-63. 29 Segundo Marilena Chauí, “êthos significa: caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém (animal, homem, uma cidade) conforme à sua natureza [...] O êthos é tratado pela ética, que estuda as ações e paixões humanas segundo o caráter ou a índole natural dos seres humanos.” Cf. CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense. 1994. P. 349. Vol. I.

21

Vale ressaltar que, no trágico, não convém reduzir a ação dos personagens a

um julgamento de valores, embora seja ela determinada pelo caráter e pensamento e esteja

nela a boa ou má fortuna dos homens, conforme Aristóteles30. As forças em luta não

representam distintamente o bem e o mal: essa redução inviabilizaria o efeito trágico

pretendido. O equívoco da ação do personagem não implica necessariamente culpa. No

entanto, levado por um erro ou por uma mácula ancestral, ele pode trazer desgraça para a sua

cidade, uma vez que pode mas não sabe, ou sabe mas não pode. Essa situação do herói é

bastante clara em Édipo Rei.

No momento crucial da ação do herói trágico ele, via de regra, está só ou tem

que decidir o que fazer sozinho. O seu gesto máximo está nessa decisão, embora oscile, em

não delegar poderes a outrem. Essa condição é facilmente verificável em Antígona, Prometeu

Acorrentado, Ájax (Sófocles), Medéia e Hipólito de Eurípides, Gota d’água, de Chico

Buarque e Paulo Pontes e em Hamlet. Certos atos do herói, como o assassinato e o suicídio,

se partilhados ou executados às claras, certamente seriam evitados ou inviabilizados por

alguma forma de interdição.

Em todo caso, a ação do herói comporta, via de regra, uma hybris, seguida de

hamartia.

O conceito de hybris é bastante complexo. Grosso modo, é uma disposição de

ânimo que tende a ultrapassar a medida e a sophrosyne (o equilíbrio). Mary de Camargo

Neves Lafer assim comenta a dificuldade de sua tradução:

Hýbris se define por ausência de Díke e traz inúmeros problemas ao tradutor, pois, mais complexa e menos limitada semanticamente, é violência provocada por paixão, ultraje, golpes desferidos por alguém, soberba etc. Assim, fica difícil ao tradutor defini-la como “Desmedida”, seguindo a tradição francesa, ou como “Violência”, conforme outras traduções; considero que além do prefixo des indicar, na maior parte de suas ocorrências, a negação, a carência, “desmedida” não conota necessariamente violência, enfraquecendo e até desvirtuando seu sentido original [...] Assim, optamos

30 ARISTÓTELES, op. cit. p. 39.

22

pelo vocábulo “excesso”, que vem do latim ex + cedere, que significa ultrapassar, extravasar, sair para mais etc.31

A conseqüência da hybris é a falta grave cometida pelo herói, que, na tragédia

grega, desperta a ira dos deuses e desencadeia o fado trágico. Esse erro, quando involuntário,

definido por Aristóteles como hamartia, pode se dar por ignorância, por força das

circunstâncias ou por determinação do destino. Resulta, portanto, da ação do herói e da

intervenção de outras forças, daí a peripécia.

Rachel Gazolla32, que esposa a tese de que os gregos antigos desconhecem a

autonomia individual, detalha bem o erro involuntário. Etimologicamente, hamartia significa

doença do espírito, falta, erro, falha. É enviada pelos deuses e engendra o crime trágico. O

erro não se afirma como culpa, pois o homem é lavado a errar pela Necessidade ou pela

Moira, por ignorância ou ainda em circunstâncias que ele não domina. O herói não pode ser,

portanto, julgado pela premeditação, pela intencionalidade. O que conta são as ações

realmente praticadas, e estas são vistas como motivadas por forças transcendentais.33

Vale a pena ressaltar que só com o desenvolvimento da teologia medieval,

amparada na concepção do livre-arbítrio34, a noção de individualidade, tal como a

conhecemos hoje, começa a ser engendrada.

O erro involuntário faz pairar sobre a queda do herói uma certa aura fatalista,

uma impressão de intangibilidade do destino e, portanto, de desfechos mais trágicos ainda.

Nem toda tragédia, grega ou moderna, funda-se, no entanto, no erro involuntário, tal como

31 NEVES LAFER, Mary de Camargo. Os Mitos: comentários. In _ HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Introdução e Comentários Mary de Carmago Neves Lafer. 3 ed. São Paulo: Biblioteca Pólen/Iluminuras. 1996. p. 82-83. 32 GAZOLLA, Raquel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Edições Loyola. 2001. p. 66-71. 33 Com base em dados históricos, eis a argumentação de Gazolla: “Mas o Direito grego nascente não elabora dessa forma [firmado no princípio da intencionalidade] suas leis contra os delitos. Por quê? Porque o cidadão grego, até o século V a. C., não tem o conhecimento de sua autonomia, de possíveis leis próprias individuais e internalizadas que o tornam livre para agir; não emerge, ainda, a consciência de uma phrónesis compreendida como um saber sobre o agir correto que só a ele mesmo diz respeito, porque nasce de seus próprios argumentos interiores.” Cf. GAZOLLA, op. cit., p. 65. 34 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística).

23

descrito acima. Seria ele determinante em Hamlet, cujo protagonista é um símbolo da

racionalidade, da reflexão para a ação? Estaria em O pagador de promessas, com seu herói de

caráter irredutível? Em Medéia, de Eurípides, que, de certa forma, oscila entre dois valores –

o ódio ao marido e o amor de mãe – antes de agir? Certamente a ação errônea, advinda da

falha ou do erro consciente, pode dar margem para à responsabilização do herói, sem que se

inviabilizem a empatia e o efeito trágico.

É oportuno observar que a falha no caráter também não invalida a ocorrência

do conflito trágico cerrado. Pelo contrário, reafirma a possibilidade de um conflito que não se

estende à totalidade do universo e que se limita à trajetória de um indivíduo.

Voltando mais uma vez a Aristóteles, cabe assinalar que o erro trágico do

personagem não o qualifica como vil ou malvado, o que, segundo o filósofo, dilui o efeito

trágico. Trata-se, como observa o pensador grego, de homem mediano que cai no infortúnio

por força de algum erro e, por essa razão, seu destino desperta-nos terror e piedade.35

Para Aristóteles, as ações e o mito são a finalidade da tragédia e, quanto mais

rigoroso o encadeamento lógico dessas ações, maior é o efeito. A tragédia por excelência,

dotada de ação complexa, é aquela de cuja mudança faz parte o reconhecimento ou a

peripécia, ou ambos conjuntamente.

O reconhecimento ou anagnórisis é a passagem do ignorar ao conhecer, que

resulta em amizade ou inimizade dos personagens. Para Aristóteles36, a mais bela forma de

reconhecimento é a que ocorre junto com a peripécia e deve ser engendrada, de preferência,

como parte da ação e não como algo exterior a ela. O reconhecimento é reconhecimento de

pessoas: uma reconhece outra ou ambas se reconhecem. É muito comum a descoberta de laços

familiares entre personagens, como a que ocorre entre Orestes e Electra, nas Coéforas de

Ésquilo. Os reconhecimentos são também freqüentes nas narrativas em geral e no drama

35 ARISTÓTELES, op. cit., p. 67-69.

24

moderno. Em Frei Luís de Sousa, tragédia de Almeida Garrett, Madalena de Vilhena, esposa

de Manuel de Sousa Coutinho, recebe a visita de um estranho que se diz romeiro. Este é o seu

primeiro marido, que fora dado por morto na África em luta com os mouros. Seu retorno

representa a destruição da nova família.

A peripécia, conseqüência imediata do reconhecimento, consiste na reviravolta

dos eventos. Deve dar-se, ainda segundo Aristóteles, de modo verossímil e necessário,

contanto que proporcione o impacto esperado. O reconhecimento e a peripécia, em Édipo Rei,

revelam uma história oculta, cujo criminoso é o próprio investigador incansável. De imediato

segue-se, em geral, a catástrofe ou acontecimento doloroso, que funciona como desenlace e

que pode ser a morte na forma de suicídio ou assassinato, a loucura ou eventos semelhantes.

Junto com a catástrofe, o pathos atinge o ponto máximo, de que resulta a catarse. Sofrimento

intenso ou situação que provoca a piedade e o terror, o pathos tende, pelo menos na tragédia

em que o herói caminha da dita para a desdita, a ter seu ponto culminante entre a peripécia e a

catarse. Mas, às vezes, ele pode acompanhar toda a ação, como em Hécuba e As Troianas, de

Eurípides, nas quais as protagonistas não saem da dita para a desdita, pois Tróia já se acha

destruída, e vão acumulando perdas irreversíveis até serem conduzidas como escravas para a

Grécia. Em A Moratória, de Jorge Andrade, Joaquim já fora despejado de sua fazenda,

entregue aos credores. Toda a sua luta é para recuperá-la, o que acaba não ocorrendo.

De acordo ainda com Aristóteles, a catarse é o efeito próprio da tragédia, mas

o filósofo não a define. Como esse efeito é algo que se supõe ocorrer no campo da recepção,

em cada espectador, é difícil mensurar sua eficácia Toda uma discussão já se travou ao longo

dos séculos acerca do sentido que o autor da Poética empregou para essa palavra que procede

da medicina.

Para uns, a catarse é uma purificação moral e cumpre com os objetivos

pedagógicos da tragédia; para outros, trata-se de um desafogo das intensas emoções vividas

36 ARISTÓTELES, op. cit., p. 61-62.

25

durante o espetáculo ou a leitura do drama. De fato, a tragédia provoca um acúmulo de

emoções que ao final escoam e fazem surgir uma sensação de alívio e calma. Raquel Gazolla

vê na encenação trágica mistura de valores que se apresentam em conflito nas ações dos

heróis. Assim, a tragédia tem um sentido educativo profundo que escapa à compreensão

moderna:

Os textos trágicos oferecem a necessidade de ponderação antes do agir, sendo exatamente esse o ensinamento principal que o final da situação catártica anuncia: o passar e repassar a questão que apanha o herói (e os cidadãos) na rede dos acontecimentos e que não se apresenta pura, não se dá de modo claro, sem mistura. Bem ao contrário. Assim, podemos dizer que a encenação trágica é, também, uma catarse ético-política que a cidade faz, expandindo a vivência de si mesma e de suas potencialidades ajuizadoras.37 Persiste, conforme argumenta a ensaísta, uma concepção pedagógica da

catarse mesmo que nós, modernos, não a alcancemos plenamente. Entendemos que a

educação pela arte é possível, mas certamente não é essa a sua finalidade primordial.

Preferimos afirmar, com Albin Lesky, que “é mister distinguir entre tendência educativa e

efeito educativo”.38 A grande obra de arte não precisa ser concebida com propósitos

educativos, mas pode se prestar a esse fim, independentemente da vontade de seu autor, como

ocorreu na Grécia antiga com os poemas homéricos. Em todo caso, ainda segundo Albin

Lesky, “nem os espectadores serão purificados das paixões cuja desmedida as personagens

trágicas expiam com a própria destruição, nem se tornarão melhores ao aumentarem sua

filantropia ou ao se verem livres de um excesso de emoções.”39

Não é demais repetir que FM não é uma tragédia. Ainda que o fosse, poderia

ser bem realizada sem a participação de um ou outro elemento estrutural ora discutido. Há

tragédias sem reconhecimentos e sem catástrofes. Nem por isso deixam de ser grandes

tragédias, é o que nos assegura Albin Lesky.

37 GAZOLLA, op. cit., p. 42

26

1.3 A permanência do trágico e as transformações do gênero dramático

Não pretendemos estabelecer, aqui, uma síntese da evolução histórica do drama

na Modernidade. Pretendemos, apenas, conforme o caminho traçado para este estudo,

investigar e comentar, a partir de autores de relevo, as transformações que aproximam o

drama da narrativa e as que impactam na estruturação da tragédia – sem que se abandone a

busca de um efeito trágico – ocorridas com o advento do Romantismo, momento em que

encerramos nossa reflexão sobre o drama.

Alguns marcos do percurso histórico do drama devem ser lembrados, no

entanto, para que possamos entender sua evolução como processo e atribuir sentido às

ocorrências salientadas.

Consoante Peter Szondi40, o drama moderno surge no Renascimento e se

constrói partindo unicamente da reprodução das relações intersubjetivas. O diálogo torna-se o

meio lingüístico por excelência, no Renascimento, após suprimir-se o prólogo, o coro e o

epílogo. O monólogo é episódico.

Na esfera dessas inter-relações, acomodam-se as temáticas mais importantes: a

luta entre passion e devoir (por exemplo, o herói entre o dever para com o pai e o sentimento

pela amada), o paradoxo cômico e a tragédia da individuação, com ênfase no caráter e na

subjetividade dos personagens. Esquematicamente, o drama se apresenta, em linhas gerais,

particularmente o drama elizabetano, sob três modalidades: a comédia, a tragédia e a peça

histórica.

38 LESKY, op. cit., p. 48. 39 Ibid., p. 28. 40 SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify,

2001. p. 29-34.

27

A professora Sandra Luna41, em posição não muito diferente da de Szondi,

considera Modernidade, em dramatologia, o período que vai do início do Renascimento ao

final do século XIX, argumentando que, com relação à dramaturgia trágica, seus fundamentos

modernos já se acham ameaçados nessa fase final, razão por que essa periodização exclui o

século XX, marcado pelos movimentos modernistas e por uma pós-modernidade trágica.

O culto à razão, ao livre-arbítrio, ao sujeito e sua consciência são as noções

basilares da moderna teorização da tragédia e assumem a condição de traços distintivos desta

em relação à tragédia grega. É o que nos diz, em outras palavras, Rosenfeld:

A transcendência cede terreno à imanência, o outro mundo a este, o céu à terra. A perspectiva coloca a consciência humana – e não a divindade – no centro: ela projeta tudo a partir deste foco central.42

Nesse novo contexto, conceitos como herói trágico, ação trágica, erro

trágico e justiça poética são pensados sem se perder de vista a posição do sujeito racional

perante as forças que se fazem trágicas. Mas, não se pode desprezar o peso da tradição

medieval e latina no universo trágico da Modernidade, como é fácil verificar em peças de

Shakespeare, influenciadas pela obra de Sêneca e pela tradição mística e religiosa da Idade

Média.

Shakespeare (1564-1616) combina o conflito trágico cerrado de suas tramas

com importantes rupturas em relação ao modelo aristotélico: mistura de situações trágicas e

cômicas, liberdade na manobra do espaço e do tempo, revezamento entre prosa e verso,

enredo centrado no caráter do herói, introdução de elementos de baixa condição social e fatos

episódicos que não comprometem a unidade de ação. A cena dos coveiros, no Ato V, de

Hamlet, é reveladora do novo tratamento dado por Shakespeare à tragédia: diversidade de

41 LUNA, op. cit., Tomo II, p. 377. 42 ROSENFELD, op. cit., p. 54.

28

espaço, comicidade, ironia e personagens baixos.43 Mas ainda podemos lembrar a importante

função dos solilóquios e dos apartes nesta e em outras tragédias do dramaturgo inglês.

Embora guarde uma consciência cristã, o drama elisabetano é inteiramente

secular e Shakespeare, conforme observa Raymond Williams, não é herdeiro dos gregos, mas

o exemplo maior de um novo tipo de tragédia. O crítico da Nova Esquerda inglesa identifica,

no entanto, na tragédia renascentista, um ponto de contato com o modelo grego:

A mais importante permanência para a subseqüente história do drama foi a de uma ordem pública no centro da qual acontece, não obstante, a tragédia pessoal. O herói é ainda, usualmente, o homem de posição, o príncipe. Uma ordem pode nascer ou cair com ele, ser afirmada ou rompida por meio dele, mesmo quando aquilo que o impulsiona é uma energia pessoal.44

Graças ao valor e à funcionalidade das transgressões formais mencionadas, a

tragédia shakespeariana será valorizada por Lessing, no século XVIII, e se transformará na

grande referência para românticos como Victor Hugo e Alexandre Dumas (pai), que

enveredam pelo melodrama. Mas nem tudo na obra de Shakespeare é ruptura. Ao se apropriar

do legado da tradição latina e ao colocar no centro do drama a ordem pública, o autor de Rei

Lear não abriu mão do estilo elevado, de personagens nobres e de finais catastróficos, o que o

mantém nos quadros do drama sério.

A rebeldia, na França, fica por conta de Moliére (1622-1673), comediante que

pinta um retrato crítico da sociedade do seu tempo em Dom Juan e Tartuffe. Mas, nem tudo é

rebeldia no século XVII. Corneille e Racine reproduzem, em suas tragédias, o rigor clássico

do neo-aristotelismo. A orientação estética vem da Art Poétique (1674) de Boileau, que

vulgariza os conceitos básicos de Aristóteles e Horácio. Em Phedra45, uma de suas mais

43 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 147-158. 44 WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 122-123 45 RACINE, J. Phedra. Tradução Jenny Klabin Segall. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

29

importantes obras, Racine recorre à mitologia grega, ao verso, à rima e à regra das três

unidades. Apesar de submetida às normas do classicismo francês e de apresentar personagens

adequados aos valores da nobreza, a tragédia de Racine, como toda tragédia, não perde seu

caráter transgressor, na medida em que expõe e questiona as ações nobres causadoras de

desgraças.

Em termos de conteúdo, há duas vertentes de investimento no trágico nos

séculos XVI e XVII: obras que se vinculam a uma ordem absoluta e obras que refletem um

pensamento secularizado. Racine, ferrenho seguidor do modelo greco-latino, seria o

paradigma da primeira vertente e Shakespeare, o da segunda. Phedra, objeto da ira de Vênus,

cai em hamartia, sendo atingida pelo amor proibido. O desfecho é o conflito trágico cerrado,

elucidado por uma ordem divina redentora.

Embora em Hamlet, Otelo e Macbeth o homem se ache só, alheio a essa

ordem absoluta, não se podem inserir essas tragédias numa visão cerradamente trágica do

mundo. Por outro lado, apesar de não se poder falar de justiça poética para o desfecho das

ações, estas se explicam, em grande parte, pelos comportamentos faltosos ou criminosos dos

protagonistas. As tramas não se concluem com o absurdo da existência e oferecem, pelo

contrário, uma possibilidade de sentido: ao final de Hamlet, surge Fortimbrás, para recompor

a ordem, como herdeiro do reino; e em Macbeth, Malcolm, por fim, é o novo rei da

Escócia.46 As obras dos grandes dramaturgos espanhóis Lope de Vega (1562-1635) e

Calderón (1600-1681), se não são tragédias genuínas estão, todavia, eivadas de elementos

trágicos. Neste último, o sofrimento dos heróis se transfigura espiritualmente, encontrando-se

para o trágico uma solução que se harmoniza com uma visão católico-cristã. Trata-se de

conflitos que refutam uma visão cerradamente trágica do mundo.

No campo da crítica e da teorização, a famosa querela entre os antigos e os

modernos se inicia ainda no século XVI e se estende até as primeiras décadas do século XIX.

30

A polêmica gira em torno da observância dos preceitos formalistas supostamente oriundos da

Poética de Aristóteles, defendida por uns, e a opção por uma dramaturgia alheia ou

transgressora em relação a esses preceitos, feita por outros. Os enunciados da Poética estão,

assim, no centro dessa polêmica, como divisores de água, em torno da questão do formato

ideal do drama moderno.

A Poética é, então, reinterpretada por comentadores renascentistas e estudiosos

humanistas, sendo o mais importante deles Ludovico Castelvetro, com sua Poetica d’Aristotle

vulgarizzata e esposta (1570), a partir da qual as formulações de Aristóteles serão tratadas

como verdadeiro cânone, estabelecendo-se, doravante, a lei das três unidades, supostamente

atribuída ao filósofo grego. Tal prescrição recebe críticas severas dos que defendem maior

liberdade para a criação artística.

O século XVIII é um século de transição, marcado por avanços e recuos em

direção ao Romantismo e ao drama burguês. Voltaire, ao mesmo tempo revolucionário

político e admirador da Antigüidade clássica, propõe a volta da poesia ao palco, reagindo

contra a vulgarização em curso, impulsionada pela influência do teatro popular. Já para

Diderot, o drama deve mostrar a verdade, o burguês no seu cotidiano, em seu meio social, em

sua profissão e família.

Lessing defende um teatro nacional burguês e afirma que a catarse não pode

vir apenas da dramatização do destino de reis e príncipes: é preciso que os personagens se

pareçam com os espectadores. Mas em sua Dramaturgia de Hamburgo47, assume posições

moderadas, entre as quais a de que nem todas as experiências do passado devem ser

abandonadas. Concentrando seu pensamento teórico nos aspectos mais concretos das

representações dramáticas e sem desprezar de todo as regras do tratado aristotélico, advoga

uma dramaturgia mais comprometida com os efeitos artísticos, na qual razão e criação não se

46 LUNA, op. cit., Tomo II, p. 459-463. 47 LESSING. Hamburg Dramaturgy. Trad. Victor Lange, 1962, apud. LUNA, op. cit. Tomo II, p. 400.

31

dissociem. Que os gêneros então se misturem, o que importa é que se atinjam os intuitos da

arte.

Adepto de Aristóteles, Lessing ataca a tragédia clássica francesa, procurando

demonstrar que o rigor formal dessa vertente do drama não está de acordo com as idéias

essenciais do filósofo grego, nem corresponde às novas realidades sociais. Assim comenta

Rosenfeld o argumento de Lessing:

Sendo a catarse o objetivo último da peça (segundo Aristóteles e Lessing), o que se impõe é usar todos os recursos que a produzam, mesmo ferindo as chamadas regras. Ora, o infortúnio daqueles cujas circunstâncias se aproximam das nossas penetrará, segundo Lessing, com mais profundeza em nossa alma, sendo que “os nomes de príncipes e heróis podem dar a uma peça pompa e majestade, mas nada contribuem para a emoção” (isto é, a catarse). Para um público burguês será muito mais fácil identificar-se e sofrer com o destino de um burguês do que com as vicissitudes de um rei ou de uma princesa.48

A tese de Lessing de que o gênio não precisa se ater à pureza dos gêneros e a

regras fixas exerce grande influência sobre os teóricos e dramaturgos do Pré-Romantismo e

Romantismo.

O Pré-Romantismo, via de regra, opõe-se ao racionalismo dos iluministas e

afirma o idealismo de Rousseau. Proclama o individualismo anárquico e exalta os aspectos

mágicos e metafísicos da obra de Shakespeare. Mas as duas figuras notáveis do drama pré-

romântico alemão, Goethe e Schiller, abandonam, em suas obras fundamentais, a rebeldia da

mocidade, por uma disciplina clássica. É difícil, porém, enquadrar suas peças no drama, na

tragédia ou mesmo na comédia. No entanto, nelas domina o pensamento burguês e o homem é

representado como senhor de suas vontades. O Fausto de Goethe reúne, a um só tempo,

elementos dramáticos, épicos e líricos. Tendo sido concebido em 1770 e só concluído em

1831, reflete as duas fases do poeta alemão – a pré-romântica e a clássica. Emoldurada por

uma visão cósmica e certo mistério religioso, a ação dessa peça configura uma situação

32

trágica – se adotarmos aqui a conceituação de Lesky – em que triunfam a vontade do sujeito,

o individualismo burguês e a busca da libertação, posições típicas do pensamento iluminista e

pré-romântico. Ao fazer um pacto com o Diabo, Fausto tende para a queda, mas sua

vinculação com ideais elevados o levam a ser arrebatado das mãos de Mefistófeles pelos

Anjos do Senhor.

1.3.1 A tragédia burguesa e a crise do drama

A sociedade moderna do século XIX, em cuja composição dominam novos

atores – a burguesia e o proletariado – criando e vivendo uma nova dinâmica, vai aos poucos

produzindo meios artísticos mais adequados à sua representação e expressão, dando

continuidade e aprofundando o processo que se inicia no século anterior. Nela, a classe

hegemônica vive o mito da ascensão pelo trabalho, a crença nas suas próprias forças,

enquanto, no passado, os laços consangüíneos legitimaram a posição do nobre. Nesse novo

ambiente, protagonizado por um pensamento cada vez mais secular e relativista, a tragédia

tradicional dificilmente teria o mesmo acolhimento que outrora. Há que se considerar um

outro fator de ordem social: o novo público de teatro, diferentemente da nobreza letrada,

desprovido de cultura literária e desejoso de consumir tramas patéticas com finais felizes,

condiciona, pelo menos em parte, a produção teatral do período. Mas a primeira tragédia

burguesa, O Mercador de Londres, de George Lillo, foi apresentada ainda em 1731, bem

antes da comédie larmoyante de Diderot.49

Saem de cena o mundo mítico e a linguagem elevada e solene. Os temas têm

um caráter mais privado, tornam-se mais domésticos. O herói deixa de ser símbolo e vive a

sua catástrofe sem que seu destino abale o da cidade. Os personagens da classe burguesa, que

48 ROSENFELD, op. cit., p. 64. 49 ROSENFELD, Anatol. Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 61.

33

apareciam na comédia, passam a protagonistas nesse novo formato de tragédia ou drama. O

novo gênero se distingue pela busca de realismo e de verdade social. Atacando o teatro

neoclássico e inspirados por verdadeiro culto a Shakespeare, grandes escritores como William

Blake, Walter Scott, Byron, Victor Hugo, Musset e Stendhal tentam renovar e revigorar o

gênero. Mas a vitória dos românticos não é fácil pois, por muito tempo, as formas regulares

do drama se mantêm, desafiando as novas realidades e a necessidade de renovações formais.

Em meados do século XIX, os temas históricos, propostos na fase inicial do

Romantismo, vão sendo abandonados progressivamente: o chamado drama de capa e espada

é substituído pelo teatro de atualidade ou drama de casaca, iniciado pela obra A Dama das

Camélias (1852), de Alexandre Dumas, o filho. Mas a primeira tragédia proletária, a peça

Woyzeck (1836-1837), da autoria de Georg Büchner, apresenta um anti-herói ainda mais

distanciado dos tradicionais heróis trágicos.50 O que está em crise, na verdade, é a tragédia

clássica, que já não reflete o novo quadro social consolidado com as revoluções burguesas, e

que dá lugar a uma nova forma de tragédia, que vai se configurando aos poucos.

Elementos formais como diálogo, tempo presente e caráter absoluto da peça (o

drama genuíno não sofre interferências externas), tendem a se tornar insuficientes, com a

crescente incorporação de temáticas como o passado, o isolamento, a solidão do personagem e

a situação da classe operária. Conforme Szondi, à medida em que esses conteúdos se

precipitam51 como forma, o grande desafio do drama tradicional é servir-lhes de fôrma, é

abranger novas realidades, o que começa a ocorrer a partir do Romantismo e se impõe por

volta de 1880.

Mas uma ação não deixa de ser trágica por incorporar novas temáticas, ter seu

enunciado em prosa, abandonar o gesto grandioso ou ser protagonizada por burgueses ou

operários, sobretudo quando se pode manter a excelência e a dignidade de tais personagens. O

50 Ibid., p.. 61. 51 SZONDI, 2001, p. 25.

34

trágico não diz respeito apenas aos heróis míticos, às “colisões inexoráveis, eternas, sem

saída, desde sempre ligadas à posição do homem no universo”, como pretende Rosenfeld.52

As situações trágicas, estudadas por Lesky, embora verificadas em tragédias que se reportam

à Idade Heróica dos gregos, não têm como desfecho colisões inexoráveis, eternas, sem saída,

mas, pelo contrário, escapatória e conciliação. Se a tragédia está em crise ou já não é

dominante, está assumindo novos contornos, em terreno que não é menos fértil. Como afirma

Luna,

De qualquer forma, as tragédias de Goethe e Schiller parecem exemplos importantes para ilustrar não apenas que a tragédia não morreu com o romantismo, mas que o mesmo otimismo romântico, eternizado na redenção de Fausto, acabou sendo um poderoso ingrediente para alimentar a construção da ação dramática nas décadas seguintes. Ao final do século XIX, Ibsen emprestará a essa proposta de radicalização positiva do poder do sujeito uma profundidade trágica digna das mais grandiosas tragédias.53

1.4 O romance moderno, o personagem e a ação.

O drama moderno e o romance, como representações da sociedade burguesa,

são fenômenos literários que se consolidam no mesmo processo histórico. Se, para Bakhtin, as

origens do romance remontam à Antigüidade, para Lukács Dom Quixote é o protótipo dessa

forma da narrativa moderna. Na visão desses dois teóricos, trata-se de uma forma

substancialmente nova, maturada ao longo do tempo, e representativa de um novo período da

história européia. Tratamos, aqui, não do romance em todos os seus aspectos, possibilidades

e da sua constituição histórica, mas de ação, personagem e do romance dramático, categorias

essenciais para a nossa argumentação.

52 Ibid., p. 73. 53 LUNA, op. cit., Tomo II, p. 429.

35

Bakhtin procura as raízes históricas do romance na paródia popular e na cultura

cômica da Antigüidade e da Idade Média: essas manifestações, desenvolvidas à margem do

cânone, caracterizam-se pela presença de vozes simultâneas num mesmo enunciado e pela

representação do presente vulgar. Os chamados gêneros do sério-cômico seriam então os

predecessores do romance: a poesia bucólica, a fábula, a primeira literatura de memórias, os

panfletos, os diálogos socráticos, a sátira menipéia, os diálogos à maneira de Luciano, além de

outros. Em seu ensaio “Epos e romance”54, embora atente para essas origens do romance,

Bakhtin considera-o como o único dos grandes gêneros nascido e alimentado pela era

moderna. Mas, ressalta, trata-se de gênero por se constituir, sendo capaz, por isso mesmo, de

absorver todas as outras formas, literárias ou não. Enquanto os demais gêneros canônicos

chegam à era moderna como formas prontas e a ela se adaptam, romancizam-se, passando por

variados graus de transformação, como é o caso da tragédia convertida em drama burguês, o

romance parodia-os, eliminando-os ou integrando-os a sua construção particular, realizando

ou aprofundando a transposição de gêneros.

Diferentemente da epopéia, o romance está ligado aos elementos do presente

inacabado, enquanto aquela tem por base a memória e se liga ao passado absoluto,

inteiramente afastado do mundo do romancista. Não há, portanto, no mundo épico, lugar para

o inacabado, o não-resolvido, a problemática, no que, aliás, concordam Bakhtin e Lukács. Se

em Homero há lutas, ainda não há uma ruptura da totalidade: a sociedade está relativamente

unida. Para Lukács, isso significa que o indivíduo, nos textos homéricos, exprime a tendência

fundamental da sociedade, e não a contradição típica no interior dela55. Talvez esta

contradição só comece a se manifestar claramente na tragédia.

Comentando a forma como Hegel vê as relações do indivíduo com a sociedade

burguesa e tendo como contraponto o conceito de culturas fechadas para designar a era da

54 BAKHTIN, op. cit., p. 397-428.

36

epopéia, Lukács56 observa as contradições entre as finalidades do indivíduo e as da totalidade,

ao contrário do que ocorre no mundo épico. Desse modo, o romance moderno dispõe de

terreno fértil e de temática segura: a luta da individualidade com o mundo hostil, que reúne as

duas naturezas do romance, quais sejam, a individualidade e a exterioridade. Em outras

palavras, afirma Lukács:

Em geral, por razões que já levantamos, a conciliação das contradições sociais pode se tornar um elemento da composição do romance somente quando não é alcançada e quando o autor representa alguma coisa diferente, que é superior a essa almejada conciliação dos opostos, ou seja, o próprio caráter insolúvel das contradições.57

Assim como na tragédia burguesa, no romance moderno os homem estão

abandonados pelos deuses. Destruída a distância épica de um mundo que liga diretamente

deuses e homens, passa-se à representação do presente ou de um passado recente,

modificando-se, consideravelmente, a criação de enredos e personagens, estes tornando-se

comuns, rebaixados, aqueles prosaicos. Sem ter por referência o mito fundador de um povo, o

romance se baseia na experiência pessoal e na livre invenção criadora.

Preso a uma visão marxista da sociedade e empregando-a na elaboração de sua

teoria literária, Lukács supervaloriza a categoria da ação, sem cuja preponderância o romance

perde seu aspecto épico e deixa de revelar a totalidade contraditória da realidade moderna.

Um romance seria épico se fosse além da superficialidade quotidiana das contradições

fundamentais da sociedade burguesa, concretamente representadas em destinos humanos. É

essa contradição social, e não um deus, o que determina o destino de um personagem. Nesse

contexto, a ação e o triunfo definem o herói positivo. Mas Lukács observa que esse tipo de

herói vai cedendo lugar a um tipo que nem sempre triunfa e nem sempre tem uma finalidade

55 LUKÁCS, Georg. “O romance como epopéia burguesa”. In _ : Ensaios Ad Hominem, nº 1. Tomo II – Música e literatura. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 1999. p. 95. 56 Ibid., p. 90. 57 Ibid., p. 108.

37

clara. Para o teórico marxista, à medida em que no romance a lírica, a análise e a descrição

suplantam o caráter, a situação e a ação, vai se desagregando a forma narrativa e o herói

romanesco perdendo a capacidade de agir, distanciando-se ainda mais do herói épico.58

Podemos contrapor a essa posição de Lukács em relação ao romance e à evolução da ação,

alguns argumentos. Primeiro, convém considerar a ação como um processo em que se

desenvolvem eventos singulares, que podem chegar ou não a um desenlace irreversível.59 O

romance, como totalidade, se constrói pela complementaridade entre categorias importantes e

a própria ação, para se concretizar, depende da interação de pelo menos três componentes:

sujeitos empenhados, tempo determinado para o seu desenrolar e transformações que se

verificam na passagem de certos estados a outros60, de modo que, no estudo do romance, não

se pode perder de vista a sua composição. Entendemos, ainda, que as palavras de Décio de

Almeida Prado a respeito da ação do personagem do drama também são válidas para o

personagem do romance:

Ação, entretanto, não se confunde com movimento, atividade física: o silêncio, a omissão, a recusa a agir, apresentados dentro de um certo contexto, postos em situação (como diria Sartre) também funcionam dramaticamente. O essencial é encontrar os episódios significativos, os incidentes característicos, que fixem objetivamente a psicologia da personagem.61

Em posição diversa da de Lukács, Bakhtin não vê o romance em decadência,

mas como forma em evolução, ainda a se constituir, na medida em que absorve outros gêneros

e formas não-literárias. Para o teórico russo, essa tendência faz o romance caminhar passo a

passo com a evolução da própria realidade, como gênero que verdadeiramente a exprime, pois

se transforma com ela.

58 Ibid., p. 104-105. 59 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. p. 190-192. 60 Ibid. p. 190-192. 61 PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In.: CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 92.

38

Para melhor entendermos o personagem do romance, categoria central nesta

pesquisa, faz-se necessária, em primeiro lugar, uma breve síntese do herói mítico.

A razão da existência do herói mítico é a luta. Hesíodo62 estabelece o mito das

cinco raças: a primeira é a Raça de Ouro, do tempo de Cronos, quando os homens vivem em

harmonia uns com os outros, com a natureza e com os deuses; a segunda é a raça de Prata,

inferior à primeira, pois comete o excesso de não servir nem fazer sacrifícios aos deuses,

hybris essa que desperta a cólera de Zeus, que a confina sob a terra; em seguida, vem a Raça

de Bronze, criada pelo Cronida, mas, dedicada aos excessos da violência e da guerra,

sucumbe por suas próprias mãos. A quarta raça é a dos heróis: criada por Zeus, é mais justa e

mais corajosa que a anterior. Protagoniza as guerras do ciclo tebano e do ciclo troiano.

Desaparece como as anteriores, arrastada pela luta. Mas o Pai dos deuses a confinou, segundo

Hesíodo, na Ilha dos Bem-Aventurados. Talvez, por essa razão, sejam os heróis cultuados

como guardiões da pólis e estejam destinados a servi-la. A Raça de Ferro é contemporânea do

poeta grego e, uma vez tomado como referência o mito hesiódico, seria também nossa

contemporânea. É a mais fraca das raças: vive da labuta, da guerra e das angústias, que se

misturam às virtudes. Os heróis das narrativas modernas e contemporâneas estariam mais

próximos dos representantes da Raça de Ferro, pois estruturalmente se distanciam dos

semideuses da raça anterior.

A raça dos herói representa a crença de que os poderes humanos podem

superar-se e se concentrar numa só pessoa, de personalidade acima da média. Normalmente,

é autóctone e ancestral de um povo ou família. É o caso de Cadmo, herói tebano, e de Argos,

da região que recebeu seu nome. Na mitologia grega, o herói é um semideus, filho de uma

mortal com um deus ou de uma deusa com um mortal. Aquiles, por exemplo, é filho de Peleu,

rei de Ftia, na Tessália, e de Tétis, uma divindade marinha. O nascimento do herói é, não raro,

62 HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Carmago Neves Lafer. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 1996, p 31-37.

39

complicado e sua morte transforma-o em um daímon, um intermediário entre os homens e os

deuses, um escudo de proteção da pólis, sendo essa a razão do surgimento de seu culto.

Criatura especial, talhada para a ação grandiosa, o herói está sujeito a uma contínua

transgressão do métron, os limites impostos pelos deuses aos mortais. Talvez, por essa razão,

sua morte é sempre traumática, violenta ou ocorre quando ele se encontra em absoluta

solidão. É na dramaticidade do mito dos heróis que os grandes tragediógrafos buscaram

matéria para seu trabalho. Mas os poetas trágicos não foram totalmente fiéis aos mitos, pois

havia muitas versões de cada um deles e, se o fossem, estariam abrindo mão do ofício de

criar, essencial na arte.

Diferentemente do herói moderno, o herói da tragédia e epopéia é pronto,

acabado, totalmente exteriorizado: entre sua essência e seu aspecto exterior não há

discrepância. Ele coincide consigo mesmo e realiza todas as suas possibilidades e

potencialidades, sem conhecer a problematização do eu. Já o herói do romance é

problemático. Mas, segundo Lukács, ele deve agir, pois, sendo o homem um ser social, só

encontra a verdadeira expressão de sua essência, sua caracterização, na ação, única capaz de

revelar a unidade entre o individual e o típico. Eis a razão por que Lukács elege a ação como

categoria central do romance, enquanto Bakhtin, com sua concepção de romance como forma

acolhedora do plurilingüismo, privilegia o dialogismo, o conflito de vozes, como veremos

adiante.

Em obra anterior, escrita ainda na juventude hegeliana, Lukács conceitua o

herói romanesco como herói problemático e vê nele três possibilidades. A tipologia começa

com o herói do idealismo abstrato, cujo caráter demoníaco leva-o a agir sozinho, de forma

intransigente. Ele pouco pára para agir e pouco reflete. Sem se reavaliar, não aprende com a

realidade e nem faz concessões. Suas idéias tornam-se petrificadas, mas para ele o mundo

exterior deve ser recriado à luz de seus ideais. Temos aqui o total descompasso entre uma

40

ação heróica da interioridade e a vida prosaica exterior, que já não admite o heroísmo. O

protótipo desse tipo de herói é o protagonista de Dom Quixote, de Cervantes.

Já o herói do romance da desilusão, cujo modelo é A educação sentimental de

Flaubert, malogra em seus ideais e passa a descrer da possibilidade de conciliação com a

ordem social. O descompasso entre a interioridade do herói e o mundo é ainda maior. Ao

contrário do herói do idealismo abstrato, cujo impulso de ação se volta para o mundo exterior,

o herói do romance da desilusão tende à passividade, a esquivar-se das lutas e confrontos

externos. Nessa forma romanesca, segundo Lukács, dá-se a perda do simbolismo épico,

substituindo-se a fábula pela análise psicológica. Essa auto-suficiência da subjetividade em

relação ao mundo exterior significa a renúncia da luta por sua realização nesse mundo

exterior, considerada como inútil e humilhante. Assim, o tipo humano dessa estrutura é mais

contemplativo que ativo e se depara com o problema de como converter em atos esse

recolhimento-em-si e a ação hesitante. Enquanto no idealismo abstrato o indivíduo é portador

de mundos transcendentes, nesta configuração o indivíduo porta o valor exclusivamente em si

mesmo. Duas são as saídas para seu impasse, sem que o resolva: ou se resigna ao mundo

social, anulando-se, ou se isola na interioridade da alma, preservando-se, mas sem agir.

O herói do romance de formação é também inadequado, porém este tipo de

romance é uma tentativa de síntese entre os anteriores. Aqui, o indivíduo problemático busca

reconciliar seus ideais com a realidade social. O modelo de que se serve Lukács é o romance

Wilheim Maister, de Goethe. A reconciliação entre a interioridade e o mundo não deve ser

uma harmonia ou uma acomodação que se dá a priori, mas algo que engloba lutas e

descaminhos para afinal ser alcançado. O ideal desse tipo de herói tem como conteúdo e

objetivo encontrar nas estruturas da sociedade formas de vínculo e satisfação para seus apelos

anímicos, o que se alcançaria mediante um lapidar-se e habituar-se de personalidades antes

isoladas em si mesmas, e que equivaleria a um processo educativo e a uma conquista de

41

maturidade por parte do herói. O romance de formação é uma superação do heroísmo do

idealismo abstrato e da pura interioridade do Romantismo e requer um equilíbrio entre a

atividade do primeiro e a atitude contemplativa do segundo.63

Na sua concepção de romance como conflito de vozes, Bakhtin não separa

ação e discurso, pois, para ele, todo discurso soa como uma ação sublinhada pela posição

ideológica particular do herói, que não é necessariamente portador de uma ideologia política.

Ele reconhece que o romance do século XIX criou um tipo de personagem que apenas fala,

que é incapaz de agir, mas que representa apenas uma das variantes do herói romanesco.

Associando discurso e ação, Bakhtin afirma que

A ação do herói do romance é sempre sublinhada pela sua ideologia: ele vive e age em seu próprio mundo ideológico (não apenas mundo épico), ele tem sua própria concepção do mundo, personificada em sua ação e em sua palavra. No entanto, por que não se pode descobrir a posição ideológica do personagem e o mundo ideológico que está em sua base, em suas próprias ações e unicamente nelas, sem precisar se representar seu discurso? [...] Não é possível representar adequadamente o mundo ideológico de outrem, sem lhe dar sua própria ressonância, sem descobrir suas palavras. Já que só estas palavras podem realmente ser adequadas à representação de seu mundo ideológico original, ainda que estejam confundidas com as palavras do autor.64

Diferentemente do herói épico que age em um mundo onde a ação tem uma

significação geral e indiscutível, o herói do romance desempenha uma ação (atenuada ou não)

vinculada a um discurso que torna inteligível sua posição ideológica, particular, no mundo. Só

o discurso pode tornar clara a posição do herói. Essa é a razão pela qual é tomado por Bakhtin

como categoria essencial. E essa ideologia, como parte da totalidade contraditória que já não

é a dos valores inquestionáveis do mundo épico, precisa ser elucidada pela voz do

personagem e por isso mesmo pode ser contestada. Como se vê, a ação enquanto processo

63 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades & Editora 34, 2000. (Coleção Espírito Crítico). p. 99-150. 64 BAKHTIN, op. cit., p. 137.

42

físico e mudança de situação não se explica por si só à revelia do discurso. O romance, como

construção polissêmica, constitui-se como conflito de vozes equivalentes num mundo em que

já não impera o consenso épico. No mundo da epopéia, a voz do narrador soa como voz

oficial, detentora de todas as outras vozes, o que, segundo Bakhtin, repete-se como

experiência estética na vertente mais tradicional do romance, o romance monológico.

Afirmar que a posição do herói revela-se no discurso não significa dizer que

ele se realiza plenamente. Pelo contrário, o herói romanesco parece carregar uma máscara, na

medida em que conteúdo interior e exterior nele não coincidem. Enquanto o herói trágico ou

épico realiza todas as suas potencialidades, sempre resta um excedente de humanidade não

realizado na trajetória do herói romanesco. Pelo viés da inadequação ou da problematização,

as posições de Lukács e de Bakhtin a respeito do herói romanesco se aproximam. O filólogo

russo assim expõe seu ponto de vista:

Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade. Ele não pode se tornar inteira e totalmente funcionário, ou senhor de terras, comerciante, noivo, rival, pai, etc. [...] A mesma zona de contato com o presente inacabado e, por conseguinte, com o futuro, cria a necessidade de tal não coincidência do homem consigo mesmo. Nela sempre permanecem as virtualidades irrealizadas e as exigências não satisfeitas.65

Emerge, aqui, uma fundamental distinção entre o personagem do romance e o

herói da epopéia: no romance, o homem enquanto entidade se desagrega, torna-se

problemático ou inacabado: surge uma divergência essencial entre o homem aparente e o

homem interior.

A composição do personagem do romance se dá por meio de um procedimento

que Antonio Candido66 chama de convencionalização, que consiste na seleção e combinação

65 Ibid., p. 425. 66 CANDIDO, Antônio. A personagem do romance. In.: CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 75-76.

43

de traços sugeridos pela realidade, filtrados pela memória e pela observação e transformados

artisticamente pela imaginação do autor. A seleção é necessária, uma vez que é impossível

captar a totalidade duma existência, e leva o romancista a inventar, e não a reproduzir

personagens reais ou presentes na memória. Evidentemente, o pressuposto dessas afirmações

do crítico e teórico brasileiro é o de que o romance – e certamente também as outras formas

de narrativas – funda-se na possível relação entre o ser vivo e o fictício, concretizada no

personagem. Mas a verossimilhança não diz respeito apenas à relação entre a obra e os

objetos externos. Pelo contrário, não sendo a obra uma cópia da realidade, a verossimilhança

exprime a relação interna, convincente, que se dá entre ao partes da estrutura.

O romance, ao criar personagens com fragmentos que são recorrentes na ação e

caracterização, retoma “a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que

elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes”.67 Apesar disso, na sua marcha do

século XVIII ao começo do século XX, procurou aumentar ainda mais o grau de dificuldade

do ser fictício, diminuindo a idéia de esquema fixo, de ente delimitado, criando o máximo de

complexidade, de variedade com um mínimo de traços psíquicos, de atos e de idéias. Essa

impressão de complexidade do personagem resulta da seleção e combinação dos elementos de

caracterização, cujo número é limitado, se comparado com o dos traços humanos que

encontramos nos seres reais.

Antonio Candido ainda atenta para o fato de que a verdade da fisionomia de

um personagem e do seu modo de ser deriva mais da concatenação da sua existência no

contexto, que da descrição e análise do seu ser isolado. Mais do que fidelidade ao real,

importa que os elementos que compõem a estrutura do romance estejam combinados de

maneira adequada. Para Candido, em termos críticos,

67 CANDIDO, op. cit., p. 58.

44

O aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente.68

1.5 O romance dramático e o conflito trágico.

Dentre as várias classificações do romance sustentadas por teóricos diversos

atemo-nos, aqui, à classificação proposta por Edwin Muir, que agrupa as obras em três tipos:

romance de ação, no qual a intriga é a categoria predominante; romance de personagem, cuja

ênfase recai sobre os protagonistas; e romance dramático69, que nos interessa mais de perto

neste trabalho.

A composição do romance dramático, conforme sugere a denominação, é a

que melhor aproxima o romance do drama, chegando sua realização extrema a incorporar o

conflito trágico, embora Muir advirta que essa modalidade não tenha que ocorrer,

necessariamente. Em todo caso, assim como no drama, ação e personagem são categorias

inseparáveis, revelando-se o caráter pela ação, o que ocorre de forma semelhante na tragédia

grega, conforme atesta Aristóteles.70 Desaparece, portanto, o hiato entre personagem e enredo,

pois o caráter dos personagens revela-se na ação e esta, por sua vez, modifica,

progressivamente, os personagens. Estes, todavia, guardam em si algo de inalterável, que

determina sua relação com os outros personagens e com a situação. Assim, o lógico e o

espontâneo têm pesos semelhantes nesse tipo de romance, evitando-se o resultado mecânico,

previsível. É de certa forma surpreendente que, em Os irmãos Karamázov, Ivan, intelectual

ateu, sempre tão seguro de suas posições, entre em delírio e nele alterque com o Diabo. Eis

68 Ibid., p. 75. 69 MUIR, Edwin. A estrutura do romance. 2 ed. Porto alegre: Editora Globo, 1975. p. 21-33 70 ARISTÓTELES, op. cit., p. 37-45.

45

aqui uma das características fundamentais do romance dramático: enquanto há ação, há

revelação das figuras. O desfecho não é apenas o arremate da história, mas o último momento

da caracterização.

A ação, no romance dramático, inicia-se, em geral, com duas ou mais figuras e

converge em direção a um centro, o que se viabiliza por meio de sua limitação a um cenário

restrito onde se concentram as forças em conflito. Estas, movidas por causação interior, fiéis

a si mesmas, embora possam incorporar no decorrer do enredo algumas transformações, são

ponto de partida dos eventos. Sabemos que onde há ação nem sempre há tensão dramática. A

causação interior e até a irredutibilidade dos personagens principais são os motores dessa

tensão dramática e dialógica em Os irmãos Karamázov.

O método dramático, o uso do diálogo e o ponto de vista restrito concorrem,

formalmente, para a viabilização do romance dramático, conforme verificamos em breve

estudo realizado por A. A. Mendilow.71

É fundamental que, nesse tipo de romance, o narrador onisciente se abstenha de

comentários e intrusões e proceda a uma apresentação direta, que imprima no leitor a ilusão

de tempo presente, e não a de lidar com fatos distanciados no tempo, de modo que a

suspensão da ação em processo seja evitada. Reforçando-se a sugestão de tempo presente, o

passado em geral ocupa as reflexões e lembranças do personagem, formando elos com seus

conflitos atuais.

Na medida em que o narrador se distancia, as cenas transcorrem como se

apresentam ao personagem e o cenário é identificado a partir dessa perspectiva, como se o

personagem operasse por si mesmo.

O solilóquio mental em sua forma desenvolvida (monólogo interior) e a

corrente de consciência preservam as vantagens da onisciência do narrador que, de forma

71 MENDILOW, Adam Abraham. O tempo e o romance. Trad. Flávio Wolf. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.

p. 124-130.

46

menos arbitrária, seleciona fatos externos ou internos e ainda pode situar os conflitos no

âmbito interior dos personagens.

Optando pela técnica do ponto de vista restrito, o narrador apresenta a matéria

através da mente de um personagem ou de um personagem de cada vez, procedimento que foi

identificado por Norman Friedman como onisciência seletiva múltipla72 e que se

operacionaliza estilisticamente por meio da fala representada ou discurso indireto livre.

Embora ainda se mantenha a onisciência do narrador conhecedor da interioridade do

personagem, não é verossímil haver onisciência do personagem que detém a focalização, uma

vez que ele faz parte do universo diegético, o que aumenta a relação de conflito, já que o

personagem vê o outro a partir de uma perspectiva limitada. Assim, cada personagem é

julgado a partir de sua exterioridade, de seu comportamento e maneira de agir conforme

visualizado pelo personagem que detém a focalização.

Além da onisciência seletiva múltipla, Friedman identifica, em sua tipologia

que vai do autor onisciente intruso à câmara, o modo dramático.73 Aqui, o teórico americano

já vê eliminados o autor e o narrador. As informações recebidas pelo leitor limitam-se ao que

os personagens fazem e falam, em grande parte. O romance se aproxima do drama na medida

em que o leitor parece ouvir apenas aos próprios personagens. Predomina, nessa técnica, a

cena: os personagens se movimentam como se ocupassem um palco e estivessem a pouca

distância, de frente para um público. Trata-se, evidentemente, de uma radicalização do

romance dramático.

A partir da noção de romance dramático, podemos tecer algumas considerações

acerca do que poderíamos chamar de romance trágico ou, de forma menos rigorosa, de o

trágico no romance. Tais considerações, tendo como ponto de partida um ensaio de Alain

72 FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53. 2002. p. 12-13. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/n53/friedman.html.

47

Robbe-Grillet e um outro de Raymond Williams, não se detêm, seguindo a opção dos críticos

em questão, na configuração formal dos romances analisados.

Robbe-Grillet74, refletindo sobre os diversos caminhos paralelos do romance,

discute o modo como o humanismo, negando o pragmatismo moderno, retoma a tragédia,

especialmente em certa tendência da narrativa contemporânea. Essa nova configuração do

trágico é vivida por amantes que se fazem freiras, policiais-gangsters, criminosos

atormentados, prostitutas de alma pura, justos coagidos à injustiça por suas consciências,

sádicos por amor, dementes por lógica, etc. O crítico e romancista do nouveau roman detém-

se na perspectiva de duas obras, O estrangeiro, de Albert Camus, e A náusea, de Sartre,

afirmando que, não só essas, mas, em geral, as grandes obras da literatura contemporânea

contêm, ao mesmo tempo, a afirmação da liberdade humana e o germe trágico de seu

abandono. O impasse do homem no mundo está no absurdo, ou seja, no abismo

intransponível entre as aspirações humanas e a incapacidade do mundo em satisfazê-las.

Nessa perspectiva, o absurdo é uma forma de humanismo trágico, mas propõe

também uma visada metafísica da condição humana. Em O Estrangeiro, as metáforas do

humano projetadas na natureza sugerem que, em vez de uma separação entre o homem e as

coisas, “há uma briga de amor, que leva ao crime passional”75, do qual o mundo é cúmplice: o

sol, o mar, a areia cintilante, etc. O trágico revelado pelo absurdo mostraria, em última

instância, a desgraça natural de nossa condição, conforme Pascal, lembrado por Robbe-

Grillet.

Em A náusea, segundo o crítico, estamos, também, em um universo

inteiramente tragificado: solidariedade com as coisas (os objetos parecem seres vivos), pois

elas trazem em si a própria negação; impossibilidade de acordo, pela recuperação das

73 Ibid., p. 13. 74 ROBBE-GRILLET, Alain. Natureza, humanismo, tragédia. In. _ Por um novo romance. Trad. T. C. Netto. São Paulo: Editora Documentos Ltda., 1969. p. 36-54. 75 Ibid. p. 46.

48

distâncias, dos fracassos, das solidões e das contradições. Antoine Roquentin, o herói de

Sartre, cultiva o isolamento. Vive sem amante, amigos, não se interessa pelos outros homens,

e acha o mundo um absurdo, algo que não parece conter nenhuma razão em si. Nada tem

sentido, mas, ao mesmo tempo, homens e coisas parecem feitos da mesma matéria, daí as

analogias apontadas por Robbe-Grillet entre seres tão estranhos.

Certamente seria proveitosa uma reflexão acerca dos pontos de contato e das

diferenças entre o absurdo, que também se manifesta no teatro contemporâneo, e uma visão

cerradamente trágica do mundo, como a aniquilação absoluta de forças em luta sem uma

explicação ou a emergência de um sentido transcendente. Mas, caminhar nessa direção seria

afastar-nos do objetivo desta pesquisa.

É importante ressaltar que o trágico não ocorre apenas no romance dramático;

este é, certamente, a forma mais viável de realização daquele. Bakhtin toma como

contraponto do romance polifônico de Dostoiévski a maneira monológica de Tolstói. O que

caracteriza a obra narrativa desse último é a ausência do grande diálogo do qual personagens

e autor participam em pé de igualdade no romance polifônico. Os diálogos e o conflito

existem, sim, mas são objetificados, expressos no interior do campo de visão do autor, que

detém a última palavra.76

Ignorando aspectos formais como os que ocupam Bakhtin ou Edwin Muir,

Raymond Williams77 perscruta o modo como o trágico permanece ou aparece na

contemporaneidade, sem perder de vista a categoria da ação e a relação entre o social e o

pessoal na narrativa e, sobretudo, no drama. Não interessa muito se as narrativas de Tolstói

são monológicas ou dialógicas, se são romances dramáticos ou não. Importa que o trágico ali

irrompe sob novas formas.

76 BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 69-76. 77 WILLIAMS, op. cit., p. 161-182.

49

Para Williams, a grande crise da literatura moderna está na divisão ideológica

entre experiência pessoal e experiência social. Estar em contato com a experiência moderna é

escolher uma dessas alternativas de forma excludente. Essa separação, criticada pelo teórico,

funda a tragédia social, que representa uma civilização destruída ou destruindo-se a si mesma

e, concretamente, homens arruinados pelo poder e pela fome; e funda, por outro lado, a

tragédia pessoal, na qual homens e mulheres sofrem e se destroem nos seus relacionamentos

mais íntimos. Nessas duas formas de tragédia, as crises de um plano são tomadas apenas

como reflexos de um plano noutro.

Todavia, em romances como Anna Karênina (1875-1877), de Tolstói, “um

importante relacionamento termina em tragédia, numa morte que adquire significação a partir

da ação como um todo”.78 Aqui, formas de relacionamentos que não apenas os íntimos

conferem à tragédia um contexto, uma sociedade que gravita em torno da experiência trágica.

Na verdade, Williams está rebatendo as posições de Lawrence, autor de Mulheres

apaixonadas (1921), segundo o qual em Shakespeare e Sófocles, a moralidade maior ou o

destino é transgredido, enquanto que em Tolstói, o código social ou a moralidade humana

menor é que é transgredida, estando neste ponto a fraqueza da tragédia moderna.

Williams, tendo em mente os aspectos sociais do romance de Tolstói, não

perde de vista, porém, o patamar mais profundo da tragédia de Anna, ao indicar que ela se

inicia em relacionamento específico e inadequado que, todavia, se insere num padrão de

relacionamento socialmente identificável através de suas ligações e analogias com o mundo

do trabalho do qual participam os personagens. Assim, esse sentido de totalidade da vida

presente na obra derruba de vez as usuais separações entre relacionamentos pessoais e sociais,

comuns na tragédia contemporânea. A união desses dois aspectos não correspondem,

78 WILLIAMS, op. cit.., p. 162.

50

evidentemente, à transcendência reclamada por Lawrence. Mas Anna não deixa de ser trágica

por estar em guerra apenas com o código social histórico, passageiro, e não com Deus.

1.6 O dialogismo e o romance polifônico

Bakhtin79 elege a categoria do discurso como a fundamental no estudo da

narrativa e vê na tradição literária dois princípios estéticos, o monologismo e o dialogismo,

sendo Dostoievski o fundador, na tradição ocidental, do romance polifônico que, para o

teórico russo, surge como uma grande inovação na história literária. Trata-se de narrativas

construídas a partir de consciências autônomas que interagem com outras consciências

autônomas, entre elas a consciência do narrador. Ao invés da voz monológica de um narrador

que submete ao seu domínio a voz dos personagens, nesse tipo de romance as vozes se

equivalem. Mas a voz do autor, como o diz Bakhtin, ao mesmo tempo em que participa dessa

totalidade que é o grande diálogo do romance, preserva a sua função de organizador da trama.

O dialogismo pode ser exterior e interior. Pelo primeiro, entendemos a forma

como as vozes interagem e se confrontam, integrando a trama e a forma narrativa. No

segundo, temos vozes internas que dialogam ou mesmo vozes externas que se interiorizam na

consciência do personagem. Fundamental no dialogismo é a não coincidência dessas vozes,

ou seja, elas são independentes e imiscíveis. E são, naturalmente, veículos de concepções de

mundo diferentes, ideologias e interesses, mas irredutíveis a definições exatas. O dialogismo

é, no entanto, algo mais complexo que a simples definição pode supor. Em um diálogo entre

dois personagens podem se fundir as duas formas de dialogismo. Um dos exemplos

apresentados por Bakhtin é o diálogo entre Aliocha e Ivan Karamázov, em que aquele afirma

que este não matou o pai Fiódor Pávlovitch, afirmação essa que dialoga com a voz interior de

79 BAKTHIN, 1997, p. 4-6.

51

Ivan que afirma: “eu matei”. Ao matar de fato o velho, Smerdiákov o faz por assimilação da

voz exterior de Ivan segundo a qual, se Deus não existe tudo é permitido, mas realiza-o em

diálogo com a voz interior do irmão que diz: “mate”.

Em Crime e Castigo, Raskólnikov interioriza vozes cujo conflito tornam ainda

mais dramática a sua situação. Embora o dialogismo exterior esteja presente, prevalece o

dialogismo interior, uma vez que quase toda a ação gira em torno do protagonista e de um

crime que ele oscila entre esconder e revelar.

O discurso monológico de Raskólnikov impressiona pela extrema dialogação interior e pelo vivo apelo pessoal para tudo sobre o que pensa e fala. Também para Raskólnikov, pensar no objeto implica apelar para ele. Ele não pensa nos fatos, conversa com eles [...] Era assim que se torturava, propondo a si mesmo todas essas perguntas, sentindo mesmo uma espécie de prazer com isso.80

Rompendo com a estrutura monológica da tradição romanesca, Dostoiévski

incorpora à sua obra a diversidade e a multiplicidade de vozes que caracterizam a natureza

humana e a vida social. Alteridade, coexistência e interação são idéias caras a sua teoria do

romance.

As concepções de Bakhtin esclarecem muitas questões, sobretudo as que se

ligam à organização da narrativa, mas nos levam a problemas inquietantes. Ao afirmar que a

linguagem é por natureza dialógica e, ao mesmo tempo, que o romance polifônico só aparece

com Dostoiévski, no século XIX, ele conclui que toda uma tradição que começa com a

epopéia, passa pela tragédia grega e atravessa grandes períodos da literatura ocidental,

mantém-se nos marcos do monologismo, consideração essa que parece rasurar, de certa

forma, a sua concepção de linguagem. Além da unidade ideológica presente nesses gêneros,

Bakhtin vê, sobretudo na tragédia e na epopéia, uma construção com unidade estilística

rigorosa, elevada. Essa unidade estilística só começará a ser rompida pelos gêneros sério-

80 BAKHTIN, 1997, p. 241.

52

cômicos, que introduzem a pluralidade de vozes. Eles se caracterizam pela politonalidade da

narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, pelo emprego amplo de

gêneros intercalados como cartas, manuscritos, diálogos relatados, paródias de gêneros

elevados, etc. Mas essas novas formas, já presentes na Antiguidade, não correspondem ainda

ao romance polifônico.

Como, por tanto tempo, e em tantas formas literárias desenvolvidas ao longo da

História, a voz monológica teria submetido as demais vozes, que só se libertam a partir de

romances como Os Irmãos Karamazov e Crime e Castigo, do citado romancista russo? Esse

problema se desdobra em uma questão à parte: a tragédia grega, segundo Bakhtin, não

comporta o plurilingüismo ou o dialogismo, pois as divergências de concepção dos

personagens da tragédia são apenas fissuras dentro de um mundo, de um pensamento

monológico. O todo dramático, para Bakhtin, é monológico, não admite mais de um sistema

de referência. Só há dialogismo quando mundos diferentes entram em rota de colisão. Afirma

o teórico e crítico russo:

As réplicas do diálogo dramático não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam multiplanar; ao contrário, para serem autenticamente dramáticas, elas necessitam da mais monolítica unidade desse mundo. No drama, ele deve ser constituído de um fragmento. Qualquer enfraquecimento desse caráter monológico leva ao enfraquecimento do dramatismo.81

Pensamos, ao contrário, que seria viável uma análise de tragédias como

Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, e Antígona, de Sófocles, entre outras, à luz do conceito

bakhtiniano de dialogismo. As forças opostas nesses conflitos se afiguram imissíveis, e se

colocam, enquanto vozes, em pé de igualdade, irredutíveis umas às outras. Dois

personagens, em situação dialógica, não precisam proceder de mundos diferentes ou de

81 BAKHTIN, 1997, p. 16.

53

classes sociais opostas: os seus discursos antagônicos nem nascem e nem terminam neles;

são historicamente assumidos. Bakhtin considera correta a opinião de Lunatcharsky,

segundo a qual “todas as vozes que desempenham papel realmente essencial no romance

são ‘convicções’ ou ‘pontos de vista acerca do mundo”.82 Ora, não é exatamente essa a

posição dos protagonistas das supracitadas tragédias? Embora pertençam ao mesmo

universo, não apresentam a respeito deles concepções bem distintas?

O raciocínio de Bakhtin, embora considere o dialogismo a essência da

linguagem, nega sua presença na tragédia e tende a inviabilizar o estabelecimento de

paralelos entre o trágico e dialogismo, na medida em que também nega ser tragédia o

romance de Dostoiévski, embora não negue, aí, a persistência do trágico. Pelo contrário,

afirma que “tudo nele se constrói de maneira a levar ao impasse a oposição dialógica”.83

Albin Lesky, aludindo aos conflitos encontrados na tragédia grega, vê duas possibilidades

concretas: “a contradição trágica pode situar-se no mundo dos deuses, e seus pólos opostos

podem chamar-se Deus e homem, ou pode tratar-se de adversários que se levantem um

contra o outro no próprio peito do homem.”84 A nosso ver, nada mais próximo ou

semelhante ao dialogismo interior levado às ultimas conseqüências que essa segunda

possibilidade salientada por Lesky. Não serão os conflitos interiores, articulados de forma

dialógica, a própria configuração do pathos em Raskólnikov?

Embora as digressões quebrem, em alguns momentos, a unidade dramática da

obra do romancista russo, não poderíamos ver, na aproximação de mundos outrora

distantes, o surgimento das condições exigidas pela unidade dramática? Em Os Irmãos

Karamazov, os quatro filhos do velho Pávlovitch que, ao se aproximarem, ao ocuparem o

mesmo espaço, constituem uma família em conflito, são mundos personificados ainda

82 BAKHTIN, 1997, p. 33. 83 BAKHTIN, 1997, p. 17. 84 LESKY, op. cit., p. 31.

54

distantes em seus fundamentos. A nosso ver, nada mais trágico, nada mais dialógico que o

que se passa entre esses personagens.

Há, em FM, provavelmente, mais unidade dramática que no citado romance de

Dostoiévski. O que estamos propondo é, em outras palavras, analisar essa construção

romanesca que lança mão dessas duas categorias – o trágico e o dialogismo – que, a nosso

ver, não se excluem, não conflitam, mas se articulam, se complementam. E essa

combinação – poderíamos ir ainda adiante – não faria do romance de José Lins um

romance não só dialógico, mas polifônico?

1.7 O trágico como representação da série social e histórica

O presente trabalho não objetiva dar provas de que FM é uma representação

fiel da sociedade de uma determinada época. Nenhuma obra literária pode ser veículo dessa

pretensão, o que implicaria a renúncia ao estatuto de arte. A ficção, por mais que eleja como

matéria primordial o social ou o real, dele extrai apenas os elementos necessários como ponto

de partida para a criação artística. Entendemos, com Aristóteles, que a imitação não é uma

cópia ou uma reprodução exata da realidade. Afinal, como afirma o filósofo em sua Poética,

“... na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade.”85 Em

outras palavras, o que confere validade a uma obra é a verossimilhança interna e não,

necessariamente, a fidelidade ao real.

Se nos propomos a estudar um determinado corpus sem perder de vista as

relações entre a literatura e a sociedade, temos de entender, antes de mais nada, que não

estamos fazendo um estudo de natureza histórica ou sociológica, mas estética, sem deixar de

85 ARISTÓTELES, op. cit., p. 143.

55

lado, entretanto, as contribuições das várias ciências envolvidas. Assim, é o estudo formal do

corpus que há de evidenciar a presença de aspectos sociais na estrutura da obra.

A literatura, como outras manifestações artísticas, não surge do nada. O

escritor extrai de algum lugar o material a ser trabalhado. E esse material são os temas, são as

formas, assim como esse lugar é a sociedade, com sua dinâmica, a experiência subjetiva e a

própria tradição literária. Nenhum escritor é indiferente à sua época: seu trabalho tende a

confirmar ou a refutar as tendências estéticas e ideológicas de seu tempo.

Estudar uma obra sem perder de vista as relações entre a literatura e a

sociedade é partir das operações formais que a tornam arte e atentar para os diversos modos

como aspectos da realidade integram sua composição. Assim, não sendo a literatura uma

reprodução integral do ambiente que lhe dá origem, opera-se, no processo de criação, uma

escolha dos elementos externos que passam a ser internos, participando da estrutura da obra e

assumindo uma funcionalidade nessa mesma estrutura. Essa seleção é limitada a alguns

elementos que para o escritor são significativos e expressivos esteticamente. A função de cada

um e sua combinação derivam do trabalho artístico, criativo, e não do mero transporte. É por

essa razão que imitar não é copiar nem reproduzir, assim como é falsa qualquer separação

entre forma e conteúdo. A obra literária é um todo harmônico. Como afirma Antônio

Candido, “no conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais

enformam a matéria.”86

Que relação estabelecer entre o conceito do trágico admitido nesta pesquisa e a

concepção de Antonio Candido aqui brevemente resumida? Tentamos demonstrar como o

trágico em FM é uma representação metonímica do colapso sofrido pela sociedade patriarcal

da zona açucareira do Nordeste, o que se pode observar em outras narrativas do ciclo da cana-

de-açúcar. Mostrar apenas a representação da derrocada, fartamente estudada pela crítica, não

86 CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. p. 6.

56

constitui novidade. Como o trágico se articula esteticamente no corpus estudado, é a tarefa a

que nos propomos, preenchendo uma lacuna importante deixada pela crítica até o momento.

Como elemento externo, social, datado historicamente, esse colapso é o pano de fundo da

narrativa. Assume funcionalidade e expressividade estética no drama íntimo e social vivido

pelos protagonistas e na queda do engenho Santa Fé.

57

2. OS ROMANCES DO CICLO DA CANA-DE-AÇÚCAR E SEUS ASPECTOS

TRÁGICOS

2.1 A memória, o trágico e a decadência na fortuna crítica de José Lins do Rego

Passamos a fazer, nesta parte da tese, uma breve revisão crítica de estudiosos

da obra de Lins de Rego – alguns dos que se detiveram na análise da influência da memória,

na pertinência do trágico e da decadência na obra ficcional do escritor paraibano.

É bastante comum que críticos, sobretudo aqueles que tendem ao biografismo,

encontrem, na ficção de José Lins do Rego, manifestação das lembranças dos tempos de

infância no Engenho Corredor, do avô e das tias, dos moleques e das negras. Os lugares, as

pessoas e as situações vividas ou presenciadas pelo menino de engenho ou adolescente

parecem transpor a barreira da ficção sem se transformarem, sem passarem por uma

elaboração artística. Em certos textos críticos, Carlinhos e José Lins parecem ser a mesma

pessoa.

Não se pode negar que o autor se serve da memória, pois parte de sua obra,

possivelmente a mais significativa, recria a microrregião onde ele viveu os primeiros anos de

sua vida. Mas, que escritor não recorre à memória, sobretudo aquele que se dedica ao ofício

de contar histórias? A grande questão, parece-nos, é o que fazer com os dados da memória,

como combiná-los com a imaginação, como transformá-los em obra de arte? Ou será que

todos aqueles que têm histórias para contar, que dispõem de um material que possa vir a se

tornar artístico, já são, a priori, artistas? A decadência dos engenhos, a seca no Nordeste e a

crise do cacau motivaram o surgimento de grandes romances, mas esse fenômeno não ocorreu

58

espontaneamente. Já o abalo sofrido pelos cafeicultores não ecoou numa criação romanesca,

embora pudesse fornecer matéria para isso, conforme lembra Gilda de Mello e Souza.1

É comum que, com relação às fontes da obra de José Lins, se fale em

interpenetração entre memória e ficção, entre arte e realidade, como se o que procede da

realidade, uma vez transporto para a narrativa, ainda tivesse o estatuto de realidade, como

algo que passou a pertencer ao campo da arte sem sofrer qualquer tipo de transformação. É

importante assinalar que, em literatura, a matéria do real e do vivido é apenas ponto de

partida, sobre o qual trabalham a memória, a observação e a imaginação, combinadas em

diferentes graus e sob o influxo de concepções morais, estéticas e intelectuais, conforme os

valores da época em que a obra é concebida.2

Um outro lugar-comum é o que diz respeito a uma questão temática: a

decadência é o tema, por excelência, das obras ficcionais de José Lins do Rego, especialmente

daquelas que compõem o ciclo da cana-de-açúcar. É como se o autor guardasse na memória

os últimos momentos da decadência que ele presenciou. Mas ela aparece, em muitos críticos,

não como uma ação em curso, mas como um estado, algo que já passou, algo que se concluiu.

O que muitos têm em mente é um processo acabado, não as ações situadas que interferem na

causalidade trágica. Assim, a decadência, vista como algo concluído, parece desprovido de

dramaticidade, parece uma ocorrência da natureza. Interessa-nos a decadência não só como

tema, mas como algo que se atualiza a cada leitura dos romances, enquanto algo que vai se

articulando, que vai se tornando impasse, crise, enquanto trágico. Não apenas como fato

sociológico, um tema já sem vida, distanciado.

Ainda outros, apreciando os romances do paraibano, referem-se a ambientes

carregados de tragédia, a personagens trágicos, a ímpeto do destino. Mas esses críticos não se

1 SOUZA, Gilda de Mello e. Teatro ao Sul. In _. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 109-116. 2 CANDIDO, 1998. p. 67-76.

59

detêm nessa linha de análise, nem definem as concepções do trágico em que se amparam. São

apresentações breves do autor e da obra, como as de Antônio Carlos Villaça.3

Em estudo dedicado exclusivamente a José Lins do Rego e a sua obra, José

Aderaldo Castello4 investiga a biografia, os antecedentes literários e os fundamentos estéticos

e ideológicos que estão na base da criação do autor de Menino de engenho. Dois capítulos são

dedicados à importância do pensamento sociológico de Gilberto Freyre na definição da

carreira do romancista. Em seguida, um capítulo inteiro rastreia os precursores do escritor

paraibano.

Exaltando a ausência de planejamento e a espontaneidade como marcas

características do estilo José Lins, Castello aponta o que lhe parece a chave do processo

criativo desse autor: a autobiografia e a memória, aliadas aos conceitos de regionalismo e

tradicionalismo, concebidos a partir da fundação do Centro Regionalista do Nordeste, que tem

em Gilberto Freyre sua principal figura.5 Essa seria a matriz do romancista do Pilar. Mas o

crítico dimensiona a autobiografia e a memória. Chega a identificar personagem real e

personagem da ficção: José Paulino é uma espécie de reencarnação do velho José Lins, o avô

do romancista. E em seguida afirma, um tanto paradoxalmente, que “... a narrativa de

inspiração autobiográfica é concebida ficcionalmente, de maneira que não implica em

identificação de personagens com figuras reais.”6 Mais à frente assegura, no entanto, que

“a obra de José Lins do Rego realizou-se, pois, substancialmente presa à memória e à região

3 VILLAÇA, Antônio Carlos. Fogo Morto. In _ . REGO, José Lins do. Fogo Morto. 54 ed. José Olympio: Rio de Janeiro, 2000. 4 CASTELLO, José Aderaldo. José Lins do Rego: Nordeste e Modernismo. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), 2001. 5 “Os anos de 1920 no Recife foram decisivos na formação de José Lins do Rego. Debatem-se posições que ao cabo se harmonizam com o que havia de fundamental no movimento modernista brasileiro. Os procedimentos iniciais do eixo São Paulo/Rio de Janeiro o atingem seja por contatos através de um Joaquim Inojosa, paraibano, seja pela presença de Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, mensageiros de São Paulo. A rigor o confronto se faz com a proposta regionalista/tradicionalista desde cedo sob a liderança de Gilberto Freyre, contando em José Lins do Rego um dos seus principais seguidores.” Cf. CASTELLO, op. cit. p. 31. 6 Ibid., p. 101.

60

em que ele viveu os anos fundamentais de formação. Deve ser explicada prioritariamente em

função da memória”7 e que “nos limites dessa inspiração, voluntária ou impulsivamente, o

memorialista prevaleceu sobre o ficcionista”.8 É fácil perceber que boa parte do estudo de

Castello se volta para a gênese da criação literária de José Lins do Rego, como se nela se

achasse a grandeza da construção artística da obra.

Castello chama a atenção para o roteiro de evocações espontâneas que se

delineia na obra romanesca de Lins do Rego. Ora, se os fatos da memória incorporados à obra

aparecem espontaneamente, como então se organizam na seqüência temporal? Se há uma

consciência já distanciada dos eventos que os apresenta de acordo com a ordem temporal em

que aconteceram, de modo a constituírem narrativas com começo, meio e fim, o resultado

final ainda seria fruto do espontâneo fluir da memória? Uma obra de arte, sobretudo tendo por

matéria-prima a palavra, passa por várias mediações, como a linguagem e a consciência atual

do seu criador, até constituir-se objeto já autônomo do impulso inicial. Basta ver a reviravolta

em seus planos, confessada pelo próprio José Lins, com relação à série de romances a que ele

mesmo denominou ciclo da cana-de-açúcar:

A historia desses livros é bem simples – comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.9 O impulso inicial de José Lins seria, de fato, a memória mas, uma vez

distanciado dos fatos que pretende evocar, reconhece que a arte, estabelecida pela forma do

romance, teria um efeito mais verossímil, talvez mais convincente. Assim, para constituir sua

arte, o memorialista, entre tantos fatos reais evocados, seleciona aqueles que, segundo seu

plano, têm funcionalidade na economia da narrativa. E esta seleção, por mais que ceda à

7 Ibid., p. 91-92. 8 Ibid., p. 159. 9 REGO, José Lins do. Nota à primeira edição. In _ Usina. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 2000a., p. xiii.

61

sensibilidade do autor, já é um procedimento racional, já é uma escolha. Isso não quer dizer

que não haja escritores mais espontâneos que outros – e José Lins pode ser um deles – ou que

toda construção artística obedeça a critérios exclusivamente racionais. É verdade que Menino

de engenho ainda tem fortes marcas do plano inicial de Lins do Rego. Mas, a cada novo

lançamento, os romances vão se tornando mais romances.

O autor de Bangüê é um grande romancista não apenas pelo compromisso com

a terra e o povo, por ter transposto para a ficção a história de seu lugar, ou por que tenha se

impregnado das narrativas orais dos cegos cantadores, mas, principalmente, por ter, ao longo

de seu aprendizado, conseguido dominar técnicas importantes da construção narrativa.10 Não

é à toa que um dos seus mais bem elaborados romances é um dos últimos. Neroaldo Pontes de

Azevedo observa o movimento crescente na obra de José Lins, que, a seu ver, é a vitória do

escritor sobre o homem, da observação sobre a memória, trajetória observada também por

Antonio Candido, citado pelo ensaísta:

Enquanto certos escritores se tornam grandes engolfando na subjetividade, José Lins do Rego se realizou integralmente à medida que dela se libertou, destacando uma visão objetiva do mundo dentre as penumbras do tateio autobiográfico. Por isso, seria o caso de arriscar paradoxo e dizer que apenas aparentemente a memória constitui o elemento fundamental na sua arte, pois ele cresceu à medida em que se foi libertando dela.11

10 Em vez da propalada linguagem espontânea e até descuidada empregada nos romances por José Lins, enxergamos um trabalho consciente de estilização das várias linguagens com que o escritor manteve contato ao longo de sua vida. Estão na base de seu estilo não só os cantadores nordestinos, mas toda a literatura jornalística a que se dedicou por longos anos, além da literatura acadêmica de que foi ávido consumidor. Vale a pena consultar Bakhtin a respeito da variedade de discursos que entram na composição do gênero: “O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais [...] E é graças a esse plurilingüismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes, que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das personagens não passam de unidades de composição com a ajuda das quais o plurilingüismo se introduz no romance”. Cf. BAKHTIN, 1998, p. 74-75. 11 CANDIDO, Antonio. O observador literário. São Paulo: Conselho estadual de Cultura/Comissão de Literatura, 1959, p. 34 apud AZEVEDO, Neroaldo pontes de. José Lins do Rego: trajetória de uma obra. In __ COUTINHO, Eduardo F. e CASTRO, Ângela Bezerra de (org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; João Pessoa: FUNESC, 1991. ( Coleção Fortuna Crítica, 7).

62

O tema da decadência perpassa a análise de Castello. Para ele, aparecem

associados, em Bangüê, a decadência do patriarca rural, agravada com a extinção do trabalho

escravo, e a sucessão deste pelo filho (no caso, neto) que se faz bacharel. O abalo das velhas

estruturas reflete uma situação geral: ascensão de valores novos e queda de homens apoiados

no orgulho senhorial, ou mesmo de homens do eito ou do trabalho alugado. Gostaríamos de

acrescentar, apenas, que o problema do bacharel sucedendo o patriarca rural não pode ser

visto como um fato isolado na formação do sucessor: o patriarca, ao investir na formação

acadêmica do filho, ao mandá-lo para os estudos na capital ou no exterior, ao afastá-lo do

engenho, colabora com a crise de sucessão, com a decadência da tradição rural em curso. De

volta ao engenho, depois de formado, e encarnando novos valores, o filho do senhor tende a

formar uma nova casta no seio da velha: a de senhores de escravos ilustrados, sofisticados o

suficiente para preferir a vida da cidade à rudeza da vida das fazendas e engenhos.

Na oscilação pendular entre memória e ficção, o ensaísta define FM como obra

que, embora síntese do ciclo, está de fato no campo da ficção, diferentemente de Bangüê e

Usina, que seriam pontes entre esta e a memória. Mas boa parte do estudo de Castello se volta

para a gênese da criação literária de José Lins do Rego, como se nela se achasse a grandeza da

construção artística da obra.

Em FM, conforme Castello, a decadência das estruturas e dos valores ligados à

sociedade açucareira estaria diretamente ligada a fatos históricos como o fim da escravidão, o

cangaço e a política provinciana, fatos esses atuantes na ação narrada. O crítico vê, ainda, no

destino dos protagonistas, o drama social e o drama interior, sobretudo em José Amaro e Lula

de Holanda. Quase todos os personagens de FM já se acham nos romances anteriores mas,

adverte Castello, uma das grandes diferenças que apresenta essa narrativa em relação às

outras estaria no deslocamento do ângulo de visão, naquelas centralizador, nesta

redistribuidor, o que garante um raio de ação maior na trama de FM.

63

Em obra crítica voltada para o estudo da relação entre a realidade ficcional e a

realidade regional na literatura brasileira, José Maurício Gomes de Almeida12 estuda o ciclo

da cana-de-açúcar e, no que concerne a FM, destacando categorias como personagem e

narrador, chama a atenção para alguns aspectos da estrutura dramática da narrativa: 1 – José

Lins do Rego lança mão de recordações pessoais, mas esse material recebe tratamento mais

livre e mais complexo, enquanto organização estética; 2 – Prevalece, sobretudo na Primeira e

na Terceira Parte, a cena ou forma dramática, seja no desenvolvimento da trama, seja no

modo de narrar que renuncia à onisciência absoluta e coloca, no primeiro plano, ações,

diálogos e reflexões dos próprios personagens; 3 – O espaço da ação se reduz, em geral, à

casa do mestre Amaro, ao engenho Santa Fé e ao Pilar: essa redução evita uma dispersão que

seria prejudicial à estrutura dramática do enredo.

A nosso ver, o crítico toca em importantes aspectos do trágico e da polifonia,

mas, não sendo este o objeto do seu estudo, não aprofunda suas observações, nem estabelece

relações entre essas duas categorias.

Estruturada no processo cênico e, ora sob o predomínio da diacronia (Segunda

Parte), ora da sincronia (Primeira e Terceira Parte), a narrativa se desenvolve a partir de

perspectivas múltiplas, que traduzem a focalização dos personagens mais importantes.

Para o crítico, FM foge ao esquematismo simplista da maioria dos romances

sociais, que opõem personagens maus e personagens bons. Os caracteres revelam elevado

grau de complexidade: Lula e Amaro, por exemplo, são figuras trágicas, culpadas e vítimas de

uma situação que os esmaga. Para eles, acabou o mundo em que queriam viver. Os três

protagonistas se definem pelo conflito irredutível com o mundo, sendo que Vitorino se

constrói como personagem tragicômico.

12 GOMES DE ALMEIDA, José Maurício. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de

Janeiro: Achiamé, 1981. p. 183-216.

64

A nosso ver, algumas afirmações acerca da ação e do caráter dos personagens

parecem equivocadas. Para o ensaísta, o ódio aos poderosos é um efeito, uma conseqüência

das frustrações de José Amaro. Por isso, quanto mais bem sucedido o senhor de engenho,

maior seu ódio contra ele. Parece insuficiente afirmar que Amaro projeta em Antônio Silvino

todos os seus desejos de vingança por se sentir impotente. Frustração e impotência não

resumem o caráter do mestre Amaro, pois, como afirma o crítico, este é, juntamente com os

outros, um personagem complexo. Não nos esqueçamos, outrossim, de que Antônio Silvino

figura como herói para amplos setores da população, e este é um fenômeno social, mais que

subjetivo ou psicológico. Entendemos como igualmente simplista a afirmação de que Lula de

Holanda casa-se com Amélia apenas por razões de herança. A trajetória de um personagem

tão-somente mesquinho e oportunista dificilmente daria ensejo a um efeito trágico.

São dignos de menção os comentários acerca do tema da loucura como

dominante em FM e suas relações com outro tema central, o da solidão. José Maurício

observa que esses dois temas estabelecem simetria entre a casa-grande de seu Lula e a tenda

do mestre Amaro, apesar das diferenças sociais que os separam. Mas questionamos a sugestão

de que a loucura simboliza o próprio processo de decadência da região, pois trabalhamos com

a visão de que FM não representa literariamente a derrocada geral dos antigos engenhos. No

seu raciocínio, o crítico afirma que a decadência do Santa Fé e de seus moradores retrata a

decadência de toda uma sociedade e região. Lembremos que o Santa Rosa e os demais

engenhos estão ainda todos de pé, diferentemente do que ocorre em Bangüê, cuja lista de

engenhos em ruína é significativa.

Em geral, os críticos apresentam a decadência como o grande tema da obra de

Lins do Rego, e esse termo também é usado por José Maurício. Mas o que eles encontram – o

trágico – nem sempre vem nomeado devidamente. E quando o nomeiam, em geral, não o

estudam com profundidade.

65

Antonio Candido13, em breve ensaio sobre o tema da decadência em FM

observa, não só nesse romance, mas na obra ficcional de José Lins, uma vocação para

situações anormais, ambientes carregados de tragédia, atmosferas opressivas e personagens

em desorganização. São heróis de decadência e de transição, vivendo situações em que o

irremediável parece solto.

Para Candido, FM é um romance de grandes personagens, mas a realidade

social é agente e põe em circulação considerável número de caracteres, o que contribui para

uma análise diferencial de tipos sociais e humanos.

Os três protagonistas acham-se em decadência e têm em comum um traço

bastante nítido, além de outros: a doença do prestígio. Lula fecha-se no isolamento trágico e

no autoritarismo fracassado; Amaro, apesar da doença do prestígio, cultiva forte sentimento

de inferioridade; e Vitorino, em permanente delírio de autovalorização, dá grandeza excessiva

aos próprios atos.

Candido demonstra que, em Vitorino, a força do ideal se sobrepõe à realidade

da decadência a ao ridículo, que o herói passa a ser respeitado pelos pequenos, elevando-se no

conceito público. Na visão do crítico, o personagem cresce, enquanto os outros caem. No

nosso entendimento, Vitorino não cresce o suficiente para levar a cabo seus projetos.

Permanece no delírio, o que se comprova no último capítulo, um pouco antes de receber a

notícia da morte do mestre Amaro. O monólogo sugere que a luta de Vitorino continua, porém

ainda limitada pela autovalorização, pela distorção da realidade, pela aventura quixotesca.

A análise de Eduardo F. Coutinho14 favorece a uma visão do aspecto dramático

e dialógico do romance em pauta. Para ele, FM inaugura um novo tipo de regionalismo. No

romance de 30 predomina, via de regra, a natureza e a região, enquanto o personagem, como

13 CANDIDO, Antonio. Um romancista da decadência. In __ COUTINHO; CASTRO (org.), op. cit., p. 392-397. 14 COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In __ COUTINHO; CASTRO (org.), op. cit., p. 430-440.

66

retirante, jagunço ou trabalhador rural, é sempre um tipo representativo de uma condição,

focalizado por uma ótica exterior à sua. Em FM a situação se inverte: o centro de gravidade

da ficção se desloca da natureza para o homem. Esse novo procedimento dentro do

regionalismo já aparece em Menino de engenho, mesmo que sob outro enfoque, e em obras de

Graciliano Ramos, especialmente São Bernardo.

A partir de perspectivas variadas, e não mais do ponto de vista fixo, em FM o

universo dos romances anteriores é recriado, o que abre espaço para vozes que dialogam e

conflitam em igualdade de condições.

Para Coutinho, o núcleo básico de FM é a decadência dos engenhos

escravocratas, mas a problemática é tratada através de casos individuais, do conflito entre

personagens, da fala e da ação. Esse conflito é acompanhado por um movimento de câmera

que foge à visão maniqueísta dos agentes.

Os personagens se constroem por contraste ou por aproximação com os outros.

Lula, sem vocação para a função que herdara, é o oposto do sogro, que erguera o Santa Fé e o

levara ao apogeu, e a José Paulino, que mantém o Santa Rosa de pé. A ação do mestre Amaro

é ineficaz, pois se dirige contra tudo e contra todos, atendo-se ao plano individual, o que o

aproxima de Vitorino. Este é o personagem que liga os dois espaços da narrativa (a tenda de

Amaro e a casa-grande de Lula), reunindo em si os traços de branco pobre e de senhor de

engenho. Coutinho afirma que Vitorino se impõe no final, mas entende que sua luta é

malsucedida , pois se baseia na confiança em um único político e falta-lhe uma visão social do

problema.

Com argúcia, Coutinho mostra que, sem definir posições próprias ou apontar

caminhos, o discurso do narrador instaura a dúvida, a reflexão, põe em xeque as versões dos

personagens, sugere que não há uma verdade única para os fatos narrados e que as versões

apresentadas pelos personagens são meros discursos. Essa posição do narrador e o

67

deslocamento do centro de gravidade da natureza para o homem fazem de FM um romance

precursor de um novo momento dentro do regionalismo, segundo Coutinho.

Em conferência15 lida em sete de novembro de 1975, durante a Semana de

Estudos Literários Luso-Brasileiros, no Instituto Joaquim Nabuco, em homenagem à memória

do escritor Virgínius da Gama e Melo, o professor Juarez da Gama Batista faz breve análise

temática, de conotação filosófica, da obra de José Lins do Rego. Buscando estabelecer

relações entre as posições do romancista e as dos pensadores espanhóis Miguel de Unamuno e

Juan Ruiz, o conferencista elege o Destino como categoria central da ficção do escritor

paraibano.

A obra de José Lins é, então, uma constante e agoniada interpelação ao destino

da criatura, a sua significação, ao obscuro sentido da vida, vida que o homem não pode

governar, de que não pode dispor. Mas, enquanto Unamuno se fixa no Tempo e na

Eternidade, sendo esta a grande aspiração humana, José Lins, mais próximo de Juan Ruiz,

destila seu violento repúdio contra a morte, o sentimento de finitude, ou seja, tudo o que resta

ao homem, após todo o sofrimento no mundo. Para o romancista, tudo seria mutável. O tempo

e a eternidade são grandeza de Deus e qualidade das coisas, não dos homens. Nesse sentido, o

ensaísta observa o grande contraste que se estabelece, nos romances de José Lins, entre a

condição humana – miserável, sofrida – e a natureza, cujos pássaros, ventos, partidos de cana,

o céu longe e azul, as nuvens brancas, expressando tempo e eternidade, se erguem diante da

fraqueza, da fragilidade e da desgraça humana.

Nessa concepção metafísica do trágico, o homem está cercado de

impossibilidades e se depara com o impasse que transcende as transformações de cunho

meramente social. Assim, é inerte diante do destino, que detém o comando de tudo. Para o

15 BATISTA, Juarez da Gama. As fontes da solidão. In: ___ As fontes da solidão (Ensaios literários). João Pessoa: A União, 1994. p. 15-32.

68

conferencista, “o carrossel do mundo gira em torno do homem parado, inerme, sem ação”16.

Mesmo os atos céleres de Vitorino parecem tornar-se, no conjunto, emperrados, vagarosos,

difíceis. “O próprio Vitorino Papa-Rabo, com todo o seu destempero, entrando e saindo em

cena sem parar, nada pretendia dos outros, como sugestão dramática. A sua natureza é que era

aquela”.17 A ação vira inação, como se os personagens nada pudessem fazer ante as forças do

Destino.

Falando ora da obra, ora do autor, Batista observa que não havia misticismo na

angústia existencial de Lins do Rego. Não havia consolo para ele. Ainda se referindo ao autor,

lembra os destinos malogrados dos remanescentes da aristocracia do próprio romancista.

Em um outro ensaio18, Juarez da Gama Batista segue, em linhas gerais, o

mesmo raciocínio acerca do nosso romancista. Aqui, a tônica é o contraste entre o drama

humano e a soberania da natureza. Nem os homens, nem as coisas, nem os animais se salvam.

A exuberância da paisagem assume o primeiro plano, na mesma hora em que o homem se

arrebenta e seus valores se aniquilam. Esse contraste tem a função de expor o absurdo da vida.

O homem é desamparado e solitário. Entrega-se a um destino desconhecido, a

uma trajetória sem sentido, sem uma razão. O seu fim é a morte nada dignificante. O trágico

está na evidência de que o homem, um nada, um ser irrelevante é, porém, legítimo e parte

estrutural do absurdo indiferente e soberano.

Porém, José Lins não é, para o crítico, o romancista do desespero, mas da

solidão e do desamparo do homem perante seu Destino. O homem é pensado como uma

vontade encurralada, um ser que carrega horrores e expia culpas que não são suas.

É clara a predominância, nos ensaios do professor Juarez da Gama Batista, da

análise temática, ficando para um segundo plano a análise propriamente estética. Além disso,

16 Ibid., p. 27. 17 Ibid., p. 28. 18 BATISTA, Juarez da Gama. Sentido do Trágico em José Lins do Rego. In: ___ As fontes da solidão (Ensaios literários). João Pessoa: A União, 1994. p. 15-32.

69

o ensaísta, assim como outros já citados, muda freqüentemente de objeto de análise, fixando-

se ora no autor, ora na obra. Assim, o trágico deixa de ser encarado como categoria que

permeia a trama das narrativas, para ser visto como manifestação do absoluto indiferente e

soberano, numa tentativa crítica de se perscrutar, não a construção estética, mas a dimensão

humana da pessoa do escritor projetada na obra. Mesmo quando as considerações recaem

sobre a obra, o foco é dirigido ao Destino, e não à trajetória dos personagens. Esta, a nosso

ver, não sendo determinada a priori, se realiza a partir de ações situadas, nas relações que se

estabelecem entre os homens, e não na luta destes com uma entidade transcendente que tudo

decide. A trajetória, ao contrário, sugere o desencadeamento voluntário da ação e esta revela o

caráter, conforme Aristóteles, ou se funda na circunstância, na situação vivida por cada

personagem.

Em última análise – embora saibamos que não é disso que o professor Juarez

trata – podemos afirmar que o romance de José Lins, como herdeiro do realismo/naturalismo,

abre mão do maravilhoso, do fantástico, da intervenção divina. Nesse aspecto – não

precisamos salientar as diferenças de gênero literário – difere em muito da concepção da

tragédia grega.

2.2 A trilogia de Carlos de Melo

As três primeiras narrativas do ciclo da cana-de-açúcar, Menino de Engenho,

Doidinho e Bangüê, contam a história de Carlos de Melo, o neto do Coronel José Paulino que,

após perder a mãe, assassinada pelo marido no Recife, vem para o engenho Santa Rosa, no

Pilar, morar com o avô, sob os cuidados maternos da tia Maria. A trilogia pode ser lida como

uma só obra: trata-se da trajetória de um personagem em três fases da vida, a infância, a

adolescência e a idade adulta. O desfecho das narrativas apresenta semelhanças: Carlos de

70

Melo muda ou foge de um ambiente para outro. Na primeira, deixa o Engenho Santa Rosa,

como um menino perdido, para ingressar como interno no colégio do seu Maciel, em

Itabaiana. Nesse ponto, inicia-se a narrativa de Doidinho, que se encerra com a fuga para o

Santa Rosa. O narrador, sempre de primeira pessoa, reinicia sua história dez anos depois,

quando, já adulto, formado em direito, tenta tomar as rédeas da própria vida. Herdeiro do

Santa Rosa após a morte de José Paulino, Carlos de Melo, oscilante e impotente, vê o engenho

ruir e assiste à ascensão da usina. Vende-o ao tio Juca e parte mais uma vez sem destino certo.

Essas três narrativas descrevem a vida de um personagem que parece correr em

círculo, cujo caráter conduz a uma ação trágica, a uma experiência patética sem fim. Vamos a

elas.

Embora seja um romance mais pautado pela divisão em quadros que pela ação

propriamente dita – a leitura de alguns capítulos pode ser feita independentemente do

conjunto – um dos elementos mais significativos de Menino de Engenho é a atmosfera trágica

que envolve a existência de Carlinhos. Aqui, ainda não temos a tragédia social do Santa Rosa,

o tema da decadência, mas os primórdios da tragédia pessoal do seu futuro herdeiro. Cada

capítulo realça um aspecto da vida do engenho: a produção do açúcar, a cheia do rio, as

histórias de Trancoso contadas pela velha Totonha, as crenças e superstições populares, etc.,

de modo que esses elementos parecem ter uma função mais temática e descritiva que fabular.

A idéia inicial do romancista é escrever as memórias de um menino como qualquer outro

criado nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Mesmo assim, transparece na obra

alguma narratividade e certa dramaticidade.

Marcado pela morte da mãe, embora deslumbrado pela vida do engenho,

Carlinhos é um menino triste, nervoso, asmático, atraído pela solidão e privado da liberdade

de que gozam os primos e os moleques. Mesmo o sexo, quando descoberto, é uma espécie de

refúgio mórbido, um impulso sem controle, desencadeador do vício. O resultado é a doença

71

venérea, uma irônica antecipação da maturidade. Nesse aspecto, o dado trágico da experiência

reside na quebra da expectativa: o que é feito para lograr prazer traz sofrimento. O narrador,

Carlos de Melo já adulto, distanciado temporalmente dos fatos, se por um lado se derrama em

saudades, por outro reprova a libertinagem do engenho.

Vai-se esboçando aos poucos, ainda na infância, o caráter angustiado e

hesitante do Carlos de Melo adulto. Assim, o narrador desse primeiro romance revela uma

visão fatalista da própria vida: “Essa força arbitrária do destino ia fazer de mim um menino

meio cético, meio atormentado de visões ruins.”19

Impressionado com a morte real – a da mãe e a da prima Lili – Carlinhos vive

com grande intensidade a morte simbólica: o casamento da tia Maria que significa, então, a

maior de todas as perdas, é narrado no capítulo 36. No 37, também carregado de simbologia,

vem o inverno, motivo de recolhimento, solidão e tristeza, que reforça o sentimento de perda

da segunda mãe. A prima Lili, aliás, está predestinada a uma morte prematura. As negras,

verdadeiras pitonisas, vendo-a tão pálida, sempre recolhida e calada, prevêem que ela não se

cria. Nas suas cogitações apavorantes sobre a morte, imagina Carlinhos o fim do avô José

Paulino e teme o destino incerto do Santa Rosa.

O tema da loucura, igualmente trágico, presente em muitas obras de José Lins e

dominante em Doidinho, já aparece em Menino de Engenho. O protagonista é visto por todos

com grande pesar, pois o pai, tendo matado a esposa, é tido como louco, vindo a falecer dez

anos depois na casa de saúde. O menino se impressiona com a notícia da loucura do pai e

teme que lhe esteja reservado o mesmo destino. A preocupação com doenças será uma de suas

torturas na adolescência. Sob os cuidados da tia Maria, vê-se privado, por questões de saúde,

das liberdades de que gozam os moleques. Podemos identificar, nesse ponto, um breve esboço

do contraste homem/natureza, que reaparece em FM: as angústias de Carlinhos destoam do

19 REGO, José Lins do. Menino de engenho. 72 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 05.

72

paraíso que é o Santa Rosa, de que nem sempre ele pode usufruir. Aqui, embora não tenhamos

um desfecho catastrófico, o investimento no pathos é considerável.

Ao ser levado para o colégio do professor Maciel, o menino conta com 12 anos

de idade, já bem diferente daquele de quatro anos que chegara do Recife sem conhecer o

engenho. Parte para um mundo desconhecido, para ser corrigido pela educação. Mas o

essencial do seu caráter já está definido. Tudo o que ele vem a aprender – a primeira

repreensão de um estranho, a concorrência amorosa, a vida num internato, a tomada de

consciência de problemas sociais – não lhe traz grandes mudanças, apenas se acrescenta ao

que ele já é, consolidando suas tendências.

Menino de engenho, como romance inaugural de José Lins, antecipa ambiente,

personagens, costumes, organização social e muitos eventos que compõem os outros

romances do ciclo. Nessa narrativa, já se acha o Santa Fé de fogo morto, fato que é visto pelo

narrador como crueldade do destino. O engenho de seu Lula, após a morte do proprietário,

será reativado sob o comando de José Marreira, em novo contexto, a serviço das usinas, fato

que integra a narrativa de Bangüê. Mas a situação do Santa Fé em Menino de Engenho é um

caso isolado. Os engenhos tradicionais vivem ainda seu apogeu, seus tempos de glória. O

velho José Paulino comanda nove unidades. Em Doidinho, os sinais de modernização

aparecem timidamente, mas incomodam: “a verdade é que as usinas já estavam ali para

humilhar os bangüês do meu avô.”20

Um outro sinal das mudanças é a chegada do cinema a Itabaiana. Em Bangüê,

o processo de decadência que se inicia com o Santa Fé em Menino de Engenho estende-se ao

Santa Rosa. Usina desenha a nova realidade. Esses romances, cuja seqüência histórica interna

explicaremos mais adiante, não devem ser lidos e interpretados isoladamente, assim como a

trajetória de muitos de seus personagens.

20 REGO, José Lins do. Doidinho. 38 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000b, p. 109.

73

Em Doidinho, Carlinhos conhece um universo diferente, envolve-se com

outros personagens e vive uma situação diversa daquela do Santa Rosa. Agora, a sensação da

perda da liberdade é enorme. A grande metáfora da narrativa é a da prisão, que tem a função

de denunciar o sistema pedagógico do colégio: interno, entre estranhos, sofrendo castigos e

sentindo-se abandonado, o protagonista vê-se como um prisioneiro a cumprir sentença.

“Éramos seis no quarto pequeno de telha-vã. Ninguém podia trocar palavras. Falava-se aos

cochichos, e para tudo lá vinha: é proibido. A liberdade licenciosa do engenho sofria ali

amputações dolorosas.”21

A hipocondria, o pavor da morte e a terrível dificuldade em aprender as lições

do professor Maciel tornam a vida de Carlinhos um grande tormento. O seu jeito esquisito e o

tique nervoso rendem-lhe o apelido de doidinho, que dá título à obra. Já inscrita no cognome,

a loucura é mais um fantasma a molestar os dias do protagonista. Aqui também não temos

catástrofe. Mas o pathos persiste e é uma espécie de fio condutor dessa segunda narrativa. No

seu fatalismo, Carlinhos vê sempre algo a lhe perseguir, como uma maldição. Fixa-se

insistentemente nas coisas tristes.

A atmosfera fatalista tem seu ponto culminante com a morte de Aurélio,

menino triste, feio e doente, abandonado pela família no colégio, e que divide o quarto com

Carlinhos. Nesse dia, a coruja dá o seu sinal macabro. O pavor de Carlinhos pela morte e o

medo do abandono têm agora uma referência bem próxima.

Dividido entre dois mundos – a liberdade do Santa Rosa e a prisão do internato

– o protagonista oscila, vive a angústia de um ser em formação, enquanto enfrenta os novos

desafios como rituais de passagem dolorosos. Dúvidas, fé e sentimento de culpa conflitam em

sua alma. “Um indeciso de tudo, olhando as encruzilhadas sem a coragem de uma

iniciativa.”22 A oscilação é traço característico de sua personalidade e define sua ação

21 REGO, 2000b, p. 35. 22 REGO, 2000b, p. 145.

74

catastrófica em Bangüê. Já em Doidinho, marcado pela solidão, a tendência ao isolamento se

confirma. Coruja, o único amigo, torna-se, por necessidade, decurião do colégio, alguém da

confiança do professor Maciel. Essa é mais uma perda experimentada por Carlinhos. Estando

de férias no Santa Rosa, dois fatos o deixam triste e impressionado: tia Maria, casada,

cuidando da recém-nascida, já não lhe devota o amor de antes; a morte do pai, no sanatório, o

faz pensar ainda mais na loucura. O sentimento de rejeição se acende por qualquer motivo.

Assim, as perdas acumulativas fazem parte da articulação do trágico em Carlos de Melo.

Aliás, encontramo-las em todas as obras do ciclo da cana-de-açúcar.

Um outro motivo de sofrimentos são as frustrações amorosas. Carlinhos é

adiantado no sexo: primeiro fora a negra Luísa, que o viciara na masturbação; depois, a perda

da virgindade com Zefa Cajá, quando contraíra uma doença venérea. Mas as relações afetivas,

desde o primeiro beijo com Maria Clara, prima vinda do Recife, em Menino de Engenho,

tendem ao fracasso. Agora a paixão é por Maria Luísa, aluna externa do colégio do professor

Maciel, que resulta em nada: primeiro, o ciúme doentio motivado pela concorrência de Pedro

Muniz, um aluno externo. Por fim, Maria Luísa muda-se para a Paraíba (capital) e jamais

retorna.

O desfecho de Doidinho é um momento de alívio: Carlinhos escapa do

internato e foge para o Santa Rosa, recuperando o paraíso perdido. Mas carrega consigo toda a

oscilação de um homem fraco, que será decisiva na sua ação e trajetória futura.

Bangüê é, por fim, o romance da decadência. O engenho Santa Rosa já não

vive seu apogeu. José Paulino está no fim da vida, aos oitenta e seis anos, demente, sem

comando. Carlos de Melo, aos vinte e quatro anos, formado em direito, volta para a casa-

grande, onde não consegue ser bacharel nem senhor de engenho. As usinas, com seu

maquinário moderno, vão ceifando, um por um, os engenhos e os bangüês que, quando muito,

reduzem-se a meros fornecedores de matéria-prima para aquelas.

75

Nem Carlos de Melo nem o tio Juca herdam o poder de comando do velho

José Paulino. O tema da descontinuidade patriarcal será retomado em FM, onde o filho

homem ou não existe ou toma um destino diferente do pai, quebrando-se o elo da tradição.

Juca e Carlos de Melo, ambos bacharéis, criados no ambiente rural, porém educados na

cidade, retornam para os engenhos, mas a formação acadêmica não lhes dá o tino

administrativo e a voz de comando que os engenhos exigem.

Ainda em Doidinho, Carlos compreendera que o sonho de José Paulino era

formar o neto. Em Menino de Engenho, quando estava de partida para o colégio, o avô

aconselhara: “Não vá perder seu tempo. Estude, que não se arrepende.”23 Com o fracasso de

Juca, passa a ser a esperança do velho. Mas a estirpe dos bacharéis não parece a mais indicada

para os partidos de cana. Quando retorna com o diploma na mão, ainda uma vez é o velho

quem fala: “Vamos ver para que dá o senhor – me disse o meu avô no dia de minha

chegada.”24 Mas o neto nem se dedica ao ofício para o qual se preparara durante longos anos,

nem assume o comando do Santa Rosa. Pelo contrário, cultiva a preguiça, aquilo que mais

causa repugnância ao avô. Juca, por seu turno, casa-se com uma moça rica, filha de um senhor

de engenho e, após a morte do velho José Paulino, entra em conflito com o sobrinho por causa

da herança.

Homem fraco, Carlos oscila a vida inteira: nunca pôde ser como os moleques

do Santa Rosa, pois era neto de senhor; nunca foi senhor, pois se preparara para o Direito.

Porém, incapaz de tomar uma decisão na vida e de abraçar uma só causa como advogado,

acaba ocupando a lacuna deixada por José Paulino, embora sem saber o que fazer com o

cacete de mando, embora herdando o Santa Rosa. Assim, seu destino trágico não é motivado

pela intransigência, mas pela indecisão. Sua ação desencadeia um fim catastrófico. Bangüê

23 REGO,1998, p. 82. 24 REGO, José Lins do. Bangüê. 21 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. p. 31.

76

pode conter a seguinte sinopse: um homem fraco, hesitante, herdeiro de um mundo em

agonia.

A pequenez do Santa Rosa se revela para Carlos quando este, olhando de perto

a realidade sem grandeza, desiste do sonho vaidoso de fazer literatura sobre a nobreza do avô

e a glória de seus domínios. Esbarra na falsidade de seus propósitos, no absurdo de seus

sonhos. Não há barões, carruagens, e o velho José Paulino é um homem simples, sem luxo. O

Santa Rosa é menor do que supunha sua imaginação de estudante idealista. A usina cresce ao

seu redor. E o engenho marcha para o fim. O Santa Fé, de fogo morto há anos, está ali como

um prenúncio do que seria o Santa Rosa: “Desde a minha infância que seu Lula era aquilo,

aquele doloroso fim de uma raça. E o Santa Fé o mesmo, com a mesma tristeza, a mesma

gente misteriosa.”25 Aquela geração ia chegando ao fim: um fraco, como Lula; um forte,

como José Paulino. Com ela, sua obra desmorona. O crescimento devorador da usina e a

passividade de Carlos entram nessa dialética da destruição.

A solidão é um dos aspectos dessa decadência em marcha. A casa grande já

não é habitada pela numerosa família, como nos velhos tempos. Vovó Galdina já morrera, Tia

Maria há muito se casara e Juca fizera o mesmo. A mesa posta reserva a maior parte dos

lugares vazios. O velho José Paulino, no seu trágico silêncio de quem compreende que o fim

se aproxima; e Carlos, na sua melancolia, no seu isolamento, na sua indecisão. A angústia e a

tristeza imobilizam os poucos viventes da casa-grande.

Maria Alice, amor passageiro, vem compor a lista das conquistas não

realizadas ou das perdas sofridas por Carlos de Melo. Casada com um parente da capital,

passa uma temporada no engenho para restabelecer a saúde. Movido pelo amor, ele consegue

disposição para o trabalho. Mas quando Maria Alice se despede, Carlos se anula de vez. Não

há mais motivos para entusiasmos e para os cuidados que se esperam de um senhor de

25 REGO, 2002, p. 68.

77

engenho. Permanece aquele homem sem projeto: mesmo quando esquece Maria Alice, não se

decide por um casamento, entregue à compulsão sexual, que procura saciar com as negras do

engenho. Faz e desfaz planos a todo instante. Se toma alguma decisão, agindo sempre pelo

impulso, vem logo o arrependimento e a inércia.

Depois da despedida de Maria Alice, as oscilações e indecisões de Carlos de

Melo se incorporam de forma mais intensa à trama, emprestando-lhe maior dramaticidade.

Virginius da Gama e Melo26 assinala o desespero do bacharel diante do oratório da casa-

grande, pedindo aos santos o retorno da amada. Mas, oscilante, em outra passagem27 ele cai

de joelhos diante dos santos, pedindo proteção contra aquele tormento: o dualismo

pecado/pureza angustia-o desde a infância. Nesse dialogismo interior, o personagem vive um

conflito intenso, sem perspectiva de conciliação consigo mesmo. A idéia de loucura herdada

do pai volta a impressioná-lo, mas ele mesmo duvida de sua insanidade.

No final, levado pela corrente dos acontecimentos, como o poder crescente do

cabra José Marreira no engenho e a dívida insolúvel com a usina São Félix, Carlos encontra

na fuga a saída: vende o engenho ao tio Juca e compra uma passagem para o mundo. O leitor

não fica sabendo o destino do protagonista. É a catástrofe com face dupla: o Santa Rosa será

arrancado de suas bases, será tragado pela usina, e seu proprietário, lançado ao desconhecido,

ao abismo, ao nada. A narrativa faz coincidir a desgraça pessoal do senhor e a ruína do

engenho, como fatos articulados, organicamente ligados. Igualmente trágica é a morte de Lula

de Holanda, um nobre decadente, dono do Santa Fé, cuja ruína é tema de FM. A família não

tem sequer um vintém para o enterro. Ironicamente, quem paga os funerais é o negro José

Ludovina, agregado do velho e seu afilhado. Mas, há tempos, o mata-pasto e o melão-de-são

26 GAMA E MELO, Virginius da. José Lins do Rego. In:_ Estudos críticos. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), v 1, 1980. p. 112. 27 REGO, 2002, p. 139.

78

caetano, símbolos do abandono e da ruína dos engenhos, haviam invadido o telheiro e o

alpendre do Santa Fé.

A decadência do Santa Rosa começa com a decrepitude de José Paulino e se

conclui com a inaptidão de Carlos de Melo. A morte do velho fixa o fim de uma era de

prosperidade. A ligação entre esses dois fatos é representada como símbolo: ao anunciar a

morte do patriarca, o narrador passa a descrever o estado de ruína de diversos engenhos, como

o Oratório e o Comissário.

Já a função de Carlos na narrativa é representar a descontinuidade e a

impossibilidade de reversão do processo. O indivíduo isolado, ainda que tivesse competência

para tal, não teria forças para desviar o curso dos acontecimentos sociais. A imobilidade de

Carlos é tanta que a ordem se inverte: o camumbembe Zé Marreira chega a ter mais poderes

no Santa Rosa que o senhor. Mas essa reviravolta não significa um avanço social: Zé

Marreira, que se estabelece com competência, precisa do apoio logístico da Usina São Félix,

que lhe compraria os benefícios feitos no Santa Rosa por setenta contos. Carlos, não tendo

como cobrir tal proposta, vê seu engenho na situação do Santo Antônio, Boa Sorte e Bogari,

que tombaram na queda de braço com as usinas, bem como o Santo André, o Pitombeira e o

Engenho do Meio. Oposto ao avô em tudo, é arrastado por esse redemoinho devorador. Fecha

o negócio com a usina, mas não consegue pagar as letras.

Quanto maior o drama de Carlos de Melo, mais se intensificam as oscilações,

marcadas pelo medo da morte, pelo temor de ataques de inimigos ao Santa Rosa e a fixação

com a loucura. O conflito interior recrudesce e, ao comparar-se com o velho Zé Paulino,

perceber-se cada vez mais um fraco. Para cada ação, um arrependimento, um remorso. Nessa

luta interior, parece haver dois personagens em uma só. A fraqueza leva-o quase à insanidade:

medo do escuro, medo de almas do outro mundo. O isolamento e a solidão tornam sua

79

situação ainda mais patética. Enquanto isso, o melão-de-são-caetano invade a boca da

fornalha do Santa Rosa.

Ante a pressão da São Felix, Carlos acaba vendendo o engenho para o tio Juca.

“O Santa Rosa se findara. É verdade que com um enterro de luxo, com um caixão de defunto

de trezentos contos de réis. Amanhã, uma chaminé de usina dominaria as cajazeiras.”28

Carlos descreve, numa visão de conjunto da trilogia, um percurso de oscilações

e fracassos que coincidem, dialeticamente, com a queda dos engenhos e o advento das usinas.

O personagem nasce no Recife, transfere-se aos quatro anos de idade para o engenho Santa

Rosa, no Pilar; aos doze, ingressa no colégio interno em Itabaiana, de onde foge para o Santa

Rosa. Dez anos depois, reaparece no engenho do avô, como bacharel, formado no Recife,

período em que faz discreta aparição em O Moleque Ricardo, como personagem secundário.

Fracassando como senhor de engenho, herdeiro da aristocracia rural, sai pelo mundo afora,

sem saber o que fazer da vida. Todo esse percurso indica a trajetória de uma vida para a qual

não há uma saída, um conflito trágico cerrado, que, embora não implique a morte, implica um

pathos sem fim, tecido a partir de perdas que se acumulam indefinidamente.

2.3 O Moleque Ricardo e Usina

O Moleque Ricardo é o primeiro romance de José Lins narrado em terceira

pessoa. Estamos, portanto, fora da perspectiva de Carlos de Melo, de uma vez por todas. A

visão de mundo agora não é a de um descendente da aristocracia rural, mas a de um

descendente de ex-escravos que, embora sendo companheiro de infância de Carlinhos, carrega

uma outra perspectiva de vida, condicionada pela posição ocupada naquela sociedade. O

tempo da ação dessa narrativa é anterior ao de Bangüê e coincide com os

28 REGO, 2002, p. 284.

80

estudos de Carlos de Melo no Recife. Quando este volta para o Santa Rosa, Ricardo é preso e

conduzido a Fernando de Noronha. Com a venda do Santa Rosa ao Dr. Juca, encerra-se o

enredo de Bangüê. A narrativa de Usina inicia-se com a volta de Ricardo de Fernando de

Noronha para sua terra. O Santa Rosa já deixara de ser um engenho tradicional.

Ricardo, moleque filho de mãe Avelina, criado no Santa Rosa, parece correr

em círculo fugindo do destino, mas acaba tendo um fim trágico, depois de um longo percurso.

Viver na bagaceira, como negro e filho de ex-escravo, sujeito à servidão e sem

expectativas de melhora, é repetir o passado de seus ancestres e de todos os membros de sua

raça. Só restavam a Ricardo dois caminhos: a fuga, como faziam os escravos, ou a

permanência no Santa Rosa, nessas condições, até a morte. Se Carlos vai para o Recife em

busca do bacharelado em Direito, Ricardo vai em busca da sobrevivência, imaginando

encontrar condições melhores que as do engenho. Separam-se o menino e o moleque, que na

visão de seu criador eram tão parecidos:

Ao lado dos meninos de engenho havia os que nem o nome de menino podiam usar, os chamados ‘moleques da bagaceira’, os Ricardos. Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa a sua história que é tão triste quanto a do seu companheiro Carlinhos. Foi ele do Recife a Fernando de Noronha. Muita gente achou-o parecido com Carlos de Melo. Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram tão íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem.29

Nesse novo contexto, além dos elementos de semelhança entre os dois

personagens – oscilações, fracasso no amor e destino trágico – as condições sociais diversas

revelam brutais diferenças.

Uma dos temas fundamentais desse romance é o paralelo entre o mundo dos

engenhos e a cidade grande. Temos um personagem deslocado de seu universo de origem para

um outro inteiramente estranho que, na sua perspectiva, aos poucos é visto como igualmente

29 REGO, 2000a, p. xiii.

81

hostil, porém mais desumano. O Recife que Ricardo conhece não é o dos sobrados, mas o dos

mocambos, ou melhor, o moleque pertence ao mundo dos mocambos, mas serve aos que

moram nos sobrados.30 Depois de passar uma temporada como criado na casa do condutor de

trem, emprega-se como entregador de pão na padaria de um português. Seu plano é

economizar para trazer a família do Santa Rosa para o Recife.

O primeiro envolvimento de Ricardo e com é a negrinha Guiomar, que sem

uma explicação plausível se suicida. Depois vem a cabrocha Isaura que, com seu amor

luxurioso, o domina e o faz sofrer como um cativo ao abandoná-lo. Por fim, casa-se com

Odete, que logo adoece e morre de tuberculose.

Ricardo ainda vê muito de perto duas tragédias: Dona Isabel, mulher de seu

Alexandre, dono da padaria, morre à míngua, enquanto o marido lamenta apenas a perda da

força daqueles braços que tanto lhe davam lucro. Florêncio, o masseiro, é um trabalhador

engajado nas lutas sindicais, nas quais tenta engajar Ricardo. Durante uma greve, Florêncio é

ferido gravemente no peito. Nem a Sociedade dos operários nem o patrão lhe dão ajuda.

Apenas Ricardo socorre o companheiro e a família, mas Florêncio definha e morre sem vê

seus sonhos de transformação social realizados. O sentimento de solidariedade demonstrado

por Ricardo para com o companheiro parece dizer da pureza e da bondade não mais existentes

na sociedade urbana.

Ricardo, que resiste em engajar-se ao movimento paredista, acaba aderindo. A

greve é derrotada pelas tropas do governo e os líderes são presos e deportados para Fernando

de Noronha. O moleque é um deles. O narrador, um tanto pessimista com as lutas sociais na

cidade grande, procura mostrar nesses episódios forças políticas escusas manipulando e

aniquilando o indivíduo. A vida no engenho cristaliza o abismo social entre os homens. Mas,

na capital, a miséria parece ser mais dramática.

30 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 14 ed. São Paulo: Global Editora, 2003. p. 269-379.

82

Depois de sua experiência em Fernando de Noronha, o moleque retorna ao

Santa Rosa, onde seu destino trágico é selado. Esse episódio pertence à narrativa de Usina.

O mundo que Ricardo encontra no Santa Rosa é outro: o engenho do velho

José Paulino fora transformado na usina Bom Jesus pelo Dr. Juca, filho do antigo proprietário.

A narrativa de Usina, embora não seja a última do ciclo, pois José Lins o

reabre com FM, ocupa-se da fase final deste mesmo ciclo, considerando-se o tempo histórico

enfeixado por essas narrativas. Ela deveria ser lida como a última, e FM como a primeira,

uma vez que o engenho Santa Fé já se acha de fogo morto em Menino de Engenho. O ciclo da

cana pode ser tomado, portanto, como um ciclo de derrocadas que se fecha em Usina. Não só

engenhos e bangüês decaem; as modernas unidades que os submetem, também. Se a velha

ordem patriarcal acaba se mostrando inviável, a ordem moderna, capitalista, parece ser trágica

em si mesma. Em Moleque Ricardo, a cidade grande, matriz do novo sistema, também se

mostra inviável, pelo menos para os que habitam os mocambos e os mangues.

Se, por um lado, o Dr. Juca traz no seu caráter uma falha que acaba se

revelando trágica – a desmedida com mulheres (agora as prostitutas brancas do Recife), que já

se manifestara desde Menino de engenho – por outro comete erros igualmente trágicos, como

o investimento estupendo na Bom Jesus à base de empréstimos, que seriam amortizados com

os preços do açúcar em alta no mercado internacional.

A nova lógica imposta ao campo representa uma verdadeira tragédia para

aqueles que praticam nos engenhos uma agricultura de subsistência. Com a usina, ávida de

terras para o plantio da cana, reduz-se drasticamente a produção de cereais que alimentam o

povo; desmantela-se a organização social patriarcal, rompem-se os costumes e instalam-se

novas relações entre as pessoas, deixando os antigos moradores e agregados sem espaço e em

83

condições piores que as anteriores.31 Funda-se uma estratificação social ainda mais perversa:

de um lado, os trabalhadores do eito, levando uma vida miserável; de outro, os operários da

usina, gente vinda de fora, ganhando salários melhores e morando na rua nova, em casas com

luz elétrica, latrina e chão de tijolo. Diante da falta de perspectiva, o misticismo é a saída para

os mais humildes.

Se em Bangüê o foco é a desgraça pessoal de Carlos de Melo, em Usina a

narrativa evidencia a desgraça coletiva: a derrocada de Juca é também a da sua família e

sócios, que hipotecam seus engenhos ao projeto ambicioso de modernização da Bom Jesus; é

a peste e a fome dos agregados, sem salário e sem ter o que colher; e dos retirantes, fugitivos

da seca do sertão.

O narrador, como em O Moleque Ricardo e Bangüê, faz predominar a técnica

do discurso indireto livre, estabelecendo, no plano estilístico, o recurso do dialogismo, por

meio do qual os personagens apresentam diferentes visões dos acontecimentos. Enquanto o

Dr. Juca e o Dr. Pontual só vêem vantagens no empreendimento, a velha Neném, tia de Juca e

D. Dondon, mulher do usineiro, têm medo da usina. Mãe Avelina e o povo em geral só

pressentem desgraças. O negro velho Feliciano, desalojado da várzea, profetiza um fim

desastroso. Esse procedimento narrativo alcança dois efeitos: uma atmosfera conflituosa e

uma antecipação do desfecho catastrófico.

A narrativa está repleta de prolepses que acenam para a catástrofe: as profecias

ameaçadoras do místico Feliciano; o poder avassalador do Rio Paraíba, evidenciado logo nos

31 A questão é retomada por José Lins em artigo escrito em colaboração com Gilberto Freyre intitulado “No Brasil também se morre de fome”. Vejamos o que dizem os autores: “A usina de açúcar não é só uma devoradora de terras, ela liquida com o homem pela boca, reduzindo o alimento do pobre a uma mesquinharia pelas condições da monocultura. Compare-se o trabalhador de eito de um bangüê com o trabalhador de eito de uma usina, e a conclusão é bem triste. Enquanto em muito bangüê o trabalhador fazia o seu roçado, plantava o seu feijão, o seu milho, chupava a sua cana – isto de chupar cana, em alguns engenhos – o de usina é obrigado ao eito, de inverno a verão. Fora do eito da usina não há meio de vida”. Cf. REGO, José Lins do. O cravo de Mozart é eterno: crônicas e ensaios. Seleção, organização e apresentação de Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: José Olympio. 2004. p. 286-289.

84

primeiros capítulos da Segunda Parte; o desejo do Dr. Luís, da usina São Félix, de que a Bom

Jesus fosse de água abaixo; o temor de alguns personagens, acima relatado.

As usinas são metaforicamente apresentadas como monstros famintos,

serpentes ameaçadoras, cujas goelas se alimentam de cana-de-açúcar, trituram tudo, avançam

e ocupam todos os espaços. Além de devorarem terras, devoram engenhos, bangüês, e

devoram-se umas às outras, processo típico do capitalismo monopolista. Como essa é a regra

do jogo, o Dr. Juca justifica sua atitude de mudar radicalmente os costumes paternalistas

deixados pelo coronel José Paulino no Santa Rosa, como forma de não ser tragado pela

concorrente.

As oscilações de Ricardo coincidem com a sua busca de um lugar melhor para

viver: nem o Santa Rosa, nem o Recife, nem a usina, que fizera desaparecer o Santa Rosa,

nenhuma é a terra da promissão. Como remanescente do velho engenho, Ricardo, assim como

Carlos, desaparece. Ao abrir a porta do barracão da usina, onde trabalha, para que os famintos

saciem sua fome, é baleado, vindo a falecer pouco depois. A primeira e a última ação de

Ricardo são decisivas em sua vida: fugir do Santa Rosa e colocar-se ao lado dos seus.

Embora seja representante do novo poder econômico, o Dr. Juca não é

caracterizado como vilão, mas como homem que tem uma falha trágica (defeito de caráter) e

que comete um erro fatal no mundo dos negócios. A doença, que o aniquila e o deixa

impotente para a luta do dia-a-dia, funciona como elemento que gera certa empatia no leitor e

garante o efeito trágico da narrativa. A trajetória do protagonista é articulada para provocar

comoção. Reconhece o erro cometido e tem consciência do trágico: ele sabe que sua doença

não tem cura e é fatal. Guardadas as particularidades, o contexto representado e a

caracterização como personagem, o Dr. Juca descreve uma trajetória que se aproxima da do

herói trágico, que passa da ventura para a desdita. O primeiro momento é simbolizado pelo

85

carro de luxo em que viaja e se exibe; o segundo, pelo carro de boi, sobre o qual escapa da

inundação.

Como o trágico não raro agrega elementos e forças que estão acima da ação

humana, em Usina os fenômenos da seca e da enchente assumem função importante no

desfecho da trama. As secas obrigam levas de sertanejos e pilharem a Bom Jesus, agravando

ainda mais sua situação. A cheia do Rio Paraíba conclui a catástrofe.

Nos primeiros capítulos da Segunda Parte, o Rio Paraíba é apresentado como

uma entidade que está acima dos homens, que ajuda, mas também pode destruir, que traz

benefícios, mas também pode se vingar. Embora a chaminé da usina aponte para o alto e seja

apresentada como verdadeiro símbolo do novo poder, ela não pode mais que o rio, essa força

da natureza. Semelhante a um deus ex maquina que o Paraíba inunda tudo. Sua ação contraria

também os interesses da Usina São Félix, a nova soberana da várzea, senhora da massa falida

da Bom Jesus.

Uma análise mais profunda dos romances que compõem o ciclo da cana-de-

açúcar poderia levar-nos, pelo menos, às seguintes considerações: o trágico, como

componente dessas narrativas, tomadas como um projeto literário, aponta para um conflito

cerrado, que se configura em perdas consecutivas e na ausência de saída para personagens e

para o grupo que eles integram. Se em Menino de Engenho e Doidinho o Santa Rosa ainda

vive os dias de glória da sociedade patriarcal, os herdeiros desse mundo – Carlos de Melo e

Juca – revelar-se-ão incapazes de salvá-lo. As duas primeiras narrativas preparam o terreno

para as três seguintes, que são catastróficas, apresentando tio e sobrinho como tendentes ao

fracasso na sucessão de um poder que começa a ruir. Mas a nova ordem também se revela

inviável: Recife é mais desumana que o Santa Rosa, e a Bom Jesus e a São Felix, apesar dos

nomes, trazem a fome em meio à abundância, a violência e a morte em nome da ordem.

86

O trágico não é, enfim, uma categoria que entra apenas na composição de

FM.32 Integra o projeto literário e a visão de mundo dos romances do ciclo da cana-de-

açúcar. Como observa Gomes de Almeida33, nesses romances predomina uma visão

diacrônica que descreve o percurso da plenitude – Menino de engenho – ao desmoronamento

– Usina, que corresponde ao da ação trágica anotado por Aristóteles34, na qual o herói sai da

dita para a desdita. Mas aqui o colapso é mais social que individual: não só Carlos de Melo, o

Dr. Juca e sua família caem em desgraça. Os personagens, o engenho e a usina, são

metonímia de uma ruína mais ampla, que todavia não atinge a totalidade.

32 Uma visada trágica da vida, de obras, temas e autores é bastante clara em obras não-ficcionais de José Lins do Rego. Encontramo-la com freqüência nas crônicas e ensaios do autor reunidos por Lêdo Ivo em O cravo de Mozart é eterno. Nesses textos acham-se breves referências ao trágico em Shakespeare, nos dramaturgos gregos antigos, ao patético e ao fatalismo cruel em Graciliano Ramos, à postura fria de Eça de Queiroz ante a tragédia de seus personagens, ao Euclides da Cunha como ‘pesquisador de tragédias’, aos temas trágicos como a seca do Nordeste, e a vidas trágicas como a do poeta Fagundes Varela. 33 GOMES DE ALMEIDA, op. cit., p. 198.

34 ARISTÓTELES, op. cit., p. 69.

87

3. FOGO MORTO: A AÇÃO TRÁGICA DOS TRÊS PROTAGONISTAS

3.1 Inserção de Fogo Morto no ciclo da cana-de-açúcar

FM vem a lume em 1943, quando José Lins do Rego já havia dado por

concluído, com Usina (1936), o que ele mesmo denominou ciclo da cana-de-açúcar. Num

primeiro momento, podemos afirmar que aparece, assim, como obra síntese deste ciclo.

Em Menino de engenho (1932), Doidinho (1933) e FM, o engenho Santa Rosa,

capitaneado pelo coronel José Paulino, vive ainda seus dias de glória. Decai em Bangüê

(1934) e é transformado na Bom Jesus em Usina. Na primeira dessas narrativas, o engenho

Santa Fé, que sela sua decadência em FM, já se acha liquidado. Carlos de Melo, o narrador,

refere-se direta ou indiretamente a três episódios ocorridos antes de sua chegada ao Santa

Rosa: o fim do cativeiro (início do capítulo 22), a invasão do Pilar por Antônio Silvino,

apresentada em breve analepse no capítulo 10, e, no capítulo 28, a situação de falência do

engenho de seu Lula:

Coitado do Santa Fé! Já o conheci de fogo morto. E nada é mais triste do que um engenho de fogo morto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, que dá à paisagem rural uma melancolia de cemitério abandonado1.

Fica claro, então, que o tempo interno da narrativa publicada em 1943 é

anterior ao da narrativa de 1932. FM é síntese e retomada do ciclo provisoriamente

abandonado por José Lins, mas, também, nessa perspectiva, ponto de partida. Esse novo

quadro do tempo interno das narrativas, tomadas como um todo, pode esclarecer o silêncio em

relação às usinas em FM: o tempo interno desse romance, correspondente ao tempo externo,

abrange desde o ano de 1848 até o ano de 1911, em pleno mandato do Marechal Hermes da

1 REGO, 1998, p. 52.

88

Fonseca: “surgiu a candidatura do Coronel do Exército Rego Barros, ao Governo do Estado,

que agitou os elementos descontentes com a situação dominante.”2 Essa candidatura é

defendida, na narrativa, por Vitorino Carneiro da Cunha, como salvação da Paraíba contra as

oligarquias que a dominam. E essas oligarquias são compostas, em grande parte, pelos

coronéis, especialmente os senhores de engenho, ainda com grandes poderes, apesar do lento

processo de decadência em que estão imersos.

Sabemos que as usinas começam a surgir no final do século XIX e sua

produção só ultrapassa a dos engenhos, segundo Elza Nadai e Joana Neves3, a partir de 1927.

A decadência dos patriarcas rurais é processo lento que, segundo Gilberto Freire4, inicia-se

ainda no século XVIII, com a transferência de capitais para as minas, a urbanização do país, a

chegada da Família Real ao Brasil em 1808; tem continuidade, conforme sabemos, com a

expansão do café, a Lei Áurea e, por fim, a implantação das usinas. É verossímil, portanto,

que as referências às usinas sejam bastante escassas em FM.

Essas informações nos alertam para o equívoco que pode significar a leitura

isolada de uma dessas obras, sobretudo a narrativa que mais de perto nos interessa neste

trabalho.

Em FM, os engenhos do Rio Paraíba ainda não estão, portanto, diretamente

ameaçados pela presença sufocante das usinas pois, nesse tempo, elas ainda não são

dominantes. O processo de decadência da economia açucareira tradicional é acelerado, na sua

fase final, pela extinção do sistema escravista, pela concorrência internacional e pelo

deslocamento dos capitais privado e oficial para o Sudeste do país, com a política de

valorização do café, e tem seu ponto crítico com o advento da usina. Este é, resumidamente, o

2 LEAL, José. Itinerário Histórico da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: FUNCEP & A União Editora, 1989, p. 224. 3 NADAI, Elza ; NEVES, Joana. História do Brasil. 18 ed. Saraiva: São Paulo, 1996, p. 287-288. 4 FREIRE, op. cit., p. 105-127.

89

contexto externo das tramas vinculadas ao ciclo, com componentes históricos e geográficos

interiorizados nas narrativas. O complexo de causas da crise do patriarcado em FM exclui,

portanto, por uma questão de verossimilhança externa, a presença da usina.

O tema da decadência e o componente trágico de FM já se antecipam no

próprio título da obra: a expressão se refere ao engenho que por alguma razão deixou de

fabricar o açúcar. Na narrativa em questão, alguns fatores concorrem para a derrocada do

Santa Fé, como veremos.

FM foi saudado pela crítica como a obra-prima do autor paraibano. Seus

protagonistas – o mestre José Amaro, o coronel Luís César de Holanda Chacon e o capitão

Vitorino Carneiro da Cunha – integram a galeria dos personagens mais importantes da vasta

obra desse romancista que fixou a região do brejo, o sertão e temas como o cangaço, o

misticismo e tantos outros aspectos da vida brasileira.

O romance se divide em três partes. A primeira, “O mestre José Amaro”,

apresenta-nos esse personagem, um dos três protagonistas. É pelo seu ângulo de visão que se

descortinam, aos poucos, o ambiente, o engenho Santa Fé, os demais personagens e os

conflitos que movimentam a narrativa. A segunda parte, “O engenho de seu Lula”, inicia-se

com um recuo no tempo, para retomar os primórdios do engenho Santa Fé, fundado pelo

capitão Tomás Cabral de Melo por volta de 1848. Essa parte narra o apogeu do engenho, com

o casamento de Lula de Holanda e D. Amélia e o lento declínio do novo proprietário e do

empreendimento herdado. A terceira, intitulada “O capitão Vitorino”, é uma síntese das duas

primeiras. Apresenta-nos o agravamento dos conflitos, a ação tragicômica do protagonista

Vitorino Carneiro da Cunha e o desfecho da narrativa.

É curiosa a estrutura triangular de FM. Além da divisão em três partes, cada

uma dominada por um protagonista, as respectivas famílias se compõem de três personagens:

a primeira, com José Amaro, a mulher D. Sinhá e a filha Marta; a segunda, com Lula de

90

Holanda, a esposa D. Amélia e a filha Neném; a terceira, com Vitorino, sua mulher Adriana e

Luís, o filho ausente. Essas famílias correspondem, respectivamente, aos três estratos sociais

básicos: a classe trabalhadora, representada por um artesão; os setores intermediários, na

figura de um aristocrata decadente; e a classe patronal, em franco declínio. Conforme observa

o professor Milton Marques, nessa narrativa, “... o poder também obedece a tal estruturação,

tripartindo-se entre o Coronel José Paulino, o Tenente Maurício e o Capitão Antônio

Silvino”5.

Essa estrutura triangular assenta as bases dos conflitos, ocorram eles no âmbito

individual, familiar ou social. É a relação orgânica entre esses três níveis de conflito que dá à

trama a sua intensidade dramática. O número três ainda sugere a totalidade do processo

narrado, ou seja, aparecimento, apogeu e derrocada do Santa Fé, cenário da trama.

O enredo está centrado na focalização dos personagens, que predominam sobre

a paisagem. Como assinala Eduardo F. Coutinho6, essa narrativa rompe com outras da série

literária a que está normalmente ligada pela crítica, pois coloca em primeiro plano o homem

não apenas como tipo representante de um contexto político e sócio-econômico, mas em toda

a sua complexidade e em relação conflituosa com o meio em que vive. A grandeza de José

Lins, sobretudo em FM, não está apenas no contador de histórias que é, mas no inventor de

almas, como as que protagonizam essa narrativa.

Os recursos mais empregados são o monólogo interior e a cena – que

dissolvem as fronteiras entre a voz do narrador e a dos personagens, sobretudo na Primeira e

Terceira Parte, e o sumário, dominante na Segunda. A constante mudança de foco, que se fixa

até em personagens secundárias como D. Adriana, D. Sinhá e D. Amélia, favorece uma visão

relativa dos fatos, uma perspectiva dialógica, em que o narrador abre mão do ponto de vista

5 MARQUES JUNIOR, Milton. Quem manda no engenho? (José Lins do Rego na sala de aula). João Pessoa: Manufatura, 2002. P. 68. 6 COUTINHO, op. cit., p. 430-440.

91

fixo, monológico, que domina as três primeiras narrativas de José Lins do Rego. Essa

estratégia do narrador visa à criação de uma atmosfera dramática, conflituosa, que, adensada

ao máximo, conduz a um conflito trágico7.

3.2 O caráter e a situação do mestre José Amaro

A primeira parte da obra é dominada pela presença e pela perspectiva de um de

seus protagonistas, o mestre José Amaro. Mas, aos poucos, o foco passa aos outros

protagonistas e, em alguns momentos, a personagens secundários. Ao fazer o aspecto mais

significativo da história fluir da mente do mestre, o narrador adota uma posição discreta,

porém empática, como estratégia que visa à dramatização dos estados interiores.

Inicia-se a narrativa com breve descrição física do protagonista e do ambiente,

no seu diálogo com o pintor Laurentino. José Amaro é um seleiro antigo, um velho de

aparência doentia, de olhos amarelos e barba crescida, que arrasta uma perna torta. Vivem

com ele, em sua casa de taipa, de telheiro sujo, sua mulher – dona Sinhá – e sua filha Marta,

solteira, com seus trinta anos. A localidade é uma beira de estrada, em terras do engenho

Santa Fé, na região do Pilar, na Paraíba. Nela o mestre mora há mais de trinta anos, quando

seu pai, também seleiro, ali se estabeleceu, fugindo de um crime perpetrado em Goiana.

Antonio Candido8 chama-nos a atenção para essa opção estilística do narrador

de FM, qual seja, a necessária simplificação na caracterização dos personagens. A

verossimilhança externa, que se baseia na relação entre o ser vivo e o ser fictício, dá-se pela

seleção, combinação e ênfase de alguns elementos que nos dão a impressão de verdade

existencial. Podemos adiantar que esse procedimento do narrador se estende também à

7 A edição de Fogo Morto que adotamos nesta pesquisa é a de número 54, da Livraria José Olympio, do ano de 2000. 8 CANDIDO, 1998. p. 58.

92

dimensão psicológica dos personagens, o que não os empobrece. Pelo contrário, é a reiteração

de traços mínimos que os individualiza, marca fortemente o seu caráter e lhes dá consistência.

Na análise de um personagem, convém atentar para os traços físicos e

psicológicos e, principalmente, para sua capacidade de ação. Necessário se faz, aqui, o reparo

de que o herói contemporâneo não reúne os mesmos elementos do herói clássico, haja vista o

fato de que as obras dos últimos séculos refletem, de um modo ou de outro, sociedades e

concepções estéticas diferentes daquelas que engendraram a dramaturgia grega antiga. Desse

modo, a análise do mestre requer um contato com as características e as ações que o fazem

trágico, porém diferenciado do herói clássico, o que não nos impede de conferir os aspectos e

situações comuns a esses dois seres da ficção.

Como seleiro, artesão dos velhos tempos, o mestre se identifica,

irremediavelmente, com a sola, a faca e o martelo. Esses objetos se incorporam ao seu perfil

social, mas sua função não é apenas a de instrumentos e meios de trabalho. O narrador os traz

à cena em momentos de grande tensão psicológica, em que a ação e os monólogos do herói

são mais intensos. Mesmo no discurso direto, em tom de prolepse, o mestre revela

consciência de um destino um tanto inflexível que parece se lhe reservar: “Não quero nada.

Vivo de cheirar sola, nasci nisto e morro nisto”.9

Temos, a partir da descrição física, do ambiente doméstico e dos meios de

trabalho, um breve perfil social do seleiro. Falta-nos conhecer melhor a dimensão interna, a

ser revelada no arrebatamento do discurso e em poucas ações concretas.

José Amaro é um personagem que carrega uma mágoa e um orgulho

profundos. Seu trabalho desperta, ao mesmo tempo, esses dois sentimentos. Já velho e doente,

tem consciência do fim que se aproxima. Mas ele não caminha da dita para a desdita, pois sua

trajetória é amarga desde o princípio e está inscrita no próprio nome. Os motivos de sua

9 REGO, FM, p. 51.

93

mágoa são de ordem social e existencial. O primeiro deles está na condição de seleiro.

Herdeiro do ofício do pai, que também fora Amaro, faz selas para camumbembes, enquanto

aquele, em tempos idos, chegou a confeccionar uma peça para o barão de Goiana, que a deu

de presente ao imperador. Vê sua profissão ser engolida pelas técnicas modernas que, aos

poucos, despontam no horizonte:

Estou perdendo o gosto pelo ofício. Já se foi o tempo em que dava gosto trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito. E que porcarias se vendem por aí! Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por muita preciosidade que vejo. Basta lhe dizer que o seu Augusto do Oiteiro adquiriu na cidade uma sela inglesa, coisa cheia de arrebiques. Pois bem, aqui esteve ela para conserto.10

A mágoa profissional se funde com frustrações afetivas. “– Estou velho, estou

acabado, não tive filho para ensinar o ofício, pouco me importa que não me procurem mais.

Que se danem”.11

Numa sociedade de orientação patriarcal, o mestre fracassa como pai de

família: não tendo gerado filho homem que o protegesse na velhice, percebe que sua estirpe

tem data marcada para se extinguir. Sinhá, sua mulher, casara-se com ele para não ficar no

caritó. Sua filha Marta, aos trinta anos, ainda solteira, é mais um motivo de desgosto: acaba

demente e é internada na Tamarineira. Esta é a primeira catástrofe enfrentada pelo mestre. A

relação com as duas – mulher e filha – sempre fora tensa. Mas o componente da solidão se

agrava com a perda de ambas.

Um outro foco de tensão tem caráter social e político: a querela com os

senhores de engenho, sobretudo o Coronel José Paulino e Lula de Holanda, vistos por ele

como arrogantes e orgulhosos. Amaro não se dobra às ordens de ninguém. Só atende os

fregueses de sua escolha e tem verdadeiro ódio ao governo e aos senhores, que mandam e

10 REGO, FM, p. 50. 11 REGO, FM, p. 51.

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desmandam na região. Aparentemente avesso à política, declara-se eleitor livre em terra de

coronéis. Por fim, vítimas de mexericos e do próprio destempero verbal, acaba sendo expulso

das terras onde viveu a vida inteira.

Descrente dos poderes constituídos, vê no cangaceiro Antônio Silvino um

verdadeiro herói, único homem capaz de fazer justiça, de dobrar os influentes da região. Com

este, procura colaborar em segredo.

Que fossem para o inferno os grandes da terra. Para ele só havia uma grandeza no mundo, era a grandeza do homem que não temia o governo, do homem que enfrentava quatro estados, que dava dor de cabeça nos chefes de polícia, que matava soldados, que furava cercos, que tinha poder para adivinhar os perigos.12

Seu sonho é conhecê-lo, o que jamais ocorre, mantendo-se o herói sempre

distante do colaborador, o que fomenta ainda mais a idealização de um por parte do outro.

Nessa escolha, um equívoco do seleiro: o que seria uma luta política, de caráter público,

transforma-se em uma maquinação clandestina e, embora ligada a uma organização – o

cangaço – acaba tão isolada quanto a ação quixotesca de Vitorino. A aventura do mestre é

uma transgressão perigosa: menos uma ação com objetivos políticos definidos que uma saída

vingativa para seu rancor e para a misantropia em que vai mergulhando de vez. Na verdade,

impotente na ação e inflamado no discurso, delega a seu herói todo o poder de combate e de

resistência frente ao Estado e aos senhores da terra. Mas a idolatria ao cangaceiro não é

privativa do mestre Amaro. O cego Torquato expressa uma visão que é comum entre o povo

humilde: “Deus tem protegido este homem com todos os seus poderes. Ele protege o povo,

mestre. Ele faz com o rifle o que o padre Ibiapina fazia com o rosário.”13 E o mestre, tendo

acumulado grandes perdas, vê em Antônio Silvino sua última esperança, no conflito com Lula

de Holanda:

12 REGO, FM. p. 145. 13 REGO, FM, p. 307.

95

Havia uma força maior que as dos senhores de engenho. O sono não lhe chegava. Era mais forte que a vontade do velho Lula. O que poderia ele fazer contra uma ordem do capitão Antônio Silvino? Não tinha mais nada na vida, não tinha filho, não tinha mulher, mas ficaria ali, ficaria na terra que o seu pai plantara, que devia ser sua. Os bogaris, a pitombeira, as vazantes do rio não mais lhe seriam tomados.14

Resumidamente, essa é a situação do mestre. O seu drama se nutre de conflitos

por todos os lados. Em rota de colisão com todos os que se lhe afiguram culpados e injustos –

a começar pela mulher Sinhá, e com as circunstâncias da vida que ele não pode alterar, como

a velhice e a doença – sua trajetória é carregada de pathos intenso e descomedimentos. Sua

revolta generalizada acaba se esvaziando na falta de ação e de foco definido. O resultado é o

gradativo isolamento em meio a vozes que o definem como destemperado, gênio terrível, etc.

No seu isolamento, o mestre lembra Prometeu e Filoctetes, heróis respectivos

de Ésquilo e Sófocles, que vivem o pathos desde o primeiro ato do drama e são confinados, o

primeiro, preso pela correntes de Hefesto num rochedo, e o segundo, abandonado pelos

gregos na ilha de Lemnos, onde curte as dores insuportáveis de uma ferida no pé. O mestre

arrasta uma perna doente, mas sua dor é maior na alma que no corpo, tal como a de Filoctetes.

Porém, ao contrário do herói sofocliano, que faz o percurso da desventura à felicidade, o

mestre vive a desdita desde o princípio da narrativa. As perdas, motivadas pela falha trágica –

orgulho, destempero verbal, ação oscilante – e por erros fatais num contexto de crises,

acumulam-se, levando-o à desgraça final.

A professora Sandra Luna procura estabelecer distinção entre hamartia e tragic

flaw.15 O primeiro conceito, identificado como erro involuntário, o que exclui a idéia de

culpa, já se acha na Poética de Aristóteles e dá conta da ação dos heróis das tragédias gregas.

O segundo corresponde a uma falha de caráter responsável pela queda do herói, tendo maior

proveito quando empregado na análise da ação do herói moderno, dado o relevo que

14 REGO, FM, p. 333. 15 LUNA. Op. cit., Tomo II, p. 450

96

tragediógrafos, como Shakespeare, dão à construção do caráter e da interioridade dos

personagens. Não seria correto afirmar que todas as ações do mestre decorrem mecanicamente

do seu caráter, nem apenas de erros involuntários. Toda ação é sempre situada, integrada à

dinâmica de eventos externos. Mas o orgulho e a intransigência do seleiro participam de seu

caráter e em grande parte respondem por suas ações. Isso não quer dizer que a ação do mestre

deva ser tomada como maléfica. Seu temperamento difícil não traz danos à sociedade. É sobre

ele próprio que recaem as conseqüências de seus atos. No entanto, a falha trágica não exclui a

hamartia. Ao bater em Marta, Amaro não revela propriamente uma faceta definida de seu

caráter, pois não é dado a essa forma de violência, mas comete um erro involuntário, já que

não conhece a gravidade da doença da filha. Sua ação desencadeia uma peripécia, uma vez

que a intenção do mestre é curá-la, conforme acredita. A partir de então, o conflito com Sinhá

leva a uma ruptura: a completa ausência de consenso cria uma situação dialógica que culmina

na catástrofe da separação. Se, para Amaro, Sinhá é culpada de tudo, para ela, que já via nele

um homem sem alma, cheio de opinião, é agora um pai malvado. E, aos poucos, Sinhá

começa a incorporar as vozes que o tomam por lobisomem.

3.2.1 Ação e dialogismo no mestre Amaro

O dialogismo em FM tem ponto de partida na voz do velho Amaro e não se

restringe a seu conflito com Sinhá. De seu posto de observação, o mestre vê tudo e a respeito

de todos tem opinião formada: o coronel José Paulino é um velho gritador, por isso o seleiro

não aceita encomenda dele; Lula de Holanda não é mau, mas é orgulhoso, homem de opinião,

cercado de luxo e aluado; o Pilar é uma terra infeliz, que tem como chefe Quinca Napoleão,

um ladrão de terra. A visão política do mestre acerca daquele mundo pode ser resumida nos

fragmentos a seguir:

97

Queria ser delegado nesta terra, um dia só. Mostrava como se metia gente na cadeia. Senhor de engenho, na minha unha, não falava de cima para baixo [...] Aonde já se viu autoridade ser como criado, recebendo ordem dos ricos? Estou aqui no meu canto, mas estou vendo tudo. Nesta terra só quem não tem razão é pobre.16

José Paulino, personagem socialmente distante do mestre e focalizado quase

sempre em segundo plano, nunca lhe dá réplicas de suas declarações acerbas. O coronel só

quebra o silêncio quando da prisão do seleiro: “ – Este José Amaro estava mesmo precisando

de cadeia. É um malcriado de marca maior.”17 Já Lula de Holanda chega a pensar em se servir

do velho numa questão contra um vizinho. Na visão de Lula, Amaro é um homem valente,

que veio de Goiana com uma morte nas costas. Essa opinião é reiterada quando o coronel

expulsa o seleiro do Santa Fé.18 Portanto, a situação dialógica do mestre em relação aos dois

senhores não é a do confronto direto de vozes, mas a da distância social, o que desperta em

Amaro sentimento de inferioridade e ressentimento. Na visão do mestre, não há como não

tachá-los de orgulhosos.

Os conflitos com o mundo em volta ganham uma outra dimensão quando

somados aos da vida privada. Ponto alto de solidão e dor é o momento em que Marta é levada

como louca para a Tamarineira, no final da Primeira Parte da narrativa:

Não podia ver aquilo. Lá embaixo, escutou os gritos da filha [...] Agora um silêncio de casa abandonada, de deserto, cercava-o por todos os lados. A manhã parecia uma noite escura para ele. Não ouvia nada, não via nada [...] Havia dentro dele um vazio esquisito. Teve medo de voltar para dentro de casa. E ali mesmo, por debaixo da pitombeira, baixou a cabeça e chorou como um menino. O bode manso chegou-se para perto dele e lambeu as suas mãos. E começou a berrar, como se tivesse coração de gente.19

16 REGO, FM, p. 57-58. 17 REGO, FM, p. 387. 18 REGO, FM, p. 192 e 266 19 REGO, FM, p. 207.

98

Grande parte da ação do mestre constitui o tumulto interior dado a conhecer

pela via do discurso indireto livre, uma estratégia do narrador para fazer emergirem os

conteúdos internos do drama vivido pelo protagonista. Vale lembrar, a esse respeito, que a

própria inércia deve ser considerada ação. “A questão é que a ação física não é por si só

dramática. Expressões de atividades mentais ou mesmo cenas de imobilidade total podem ser

efetivamente mais dramáticas do que movimentos ou deslocamentos corporais.”20

A ação do mestre José Amaro pode ser assim esquematizada: o remoer

constante da mágoa e os conflitos interiores; o dialogismo tenso com outros personagens,

verificado nas cenas que envolvem o discurso direto; raras ações decisivas, como a surra em

Marta, a colaboração com o cangaceiro Antônio Silvino e o desentendimento com Lula de

Holanda.

A onisciência seletiva, técnica narrativa estudada por Norman Friedman21,

formalmente se realiza com o emprego do discurso indireto livre. Nesse procedimento, o

narrador, de certo modo, desaparece. O leitor tem acesso direto, por esse meio expressivo, aos

conteúdos da mente do personagem. Diferentemente do que ocorre na onisciência neutra, em

que o narrador resume os fatos depois de sua ocorrência, na onisciência seletiva o leitor tem a

impressão de presenciá-los ou de recebê-los diretamente do figurante, sem mediação alguma,

aproximando-se a narrativa do drama, constituindo-se o romance dramático.

Os conflitos que o mestre vive no mundo externo, no embate com outros

personagens e situações que lhe são adversas, agudizam-se no seu interior. Os seus rompantes

e a exposição do narrador se confundem sintaticamente. Outras vozes externas ecoam em sua

mente, encenando uma luta sem fim. Mas o dialogismo interior também traduz um conflito do

mestre consigo mesmo e revela-o um personagem oscilante. Porém, o mundo em volta,

segundo sua ótica, é o causador do seu drama, e contra ele deve se debater: Sinhá é culpada

20 LUNA, op. cit., Tomo II, p. 430. 21 FRIEDMAN, op. cit., p. 12-13.

99

de tudo; os senhores de engenho são uma laia só; e as autoridades se dobram aos ricos. O

trecho abaixo ilustra bem o emprego da onisciência seletiva como focalização interna do

seleiro:

Batia forte na sola, batia para doer na sua perna que era torta. Que lhe importava o cabriolé do coronel Lula? Que lhe importava a riqueza do velho José Paulino? As filhas do rico morriam de parto. O canário não se importava com o martelo do mestre. Um silêncio medonho envolvia tudo, num instante, como se o mundo tivesse parado. Parara de bater o mestre José Amaro, parara de cantar o canário da biqueira. Um silêncio de segundos, de vertigem do mundo.22

Mais que perguntas que o mestre, em seu dialogismo interior, faz a si mesmo,

são respostas a vozes internas que o incomodam, como se quisesse apaziguar sua mágoa

íntima, seu sentimento de inferioridade, seu ressentimento com o mundo, seu conflito consigo

mesmo.

Na Primeira Parte de FM, predominam o monólogo interior, formalmente

estabelecido pelo discurso indireto livre, e a cena. Nesta, o diálogo, recurso dramático por

excelência, largamente empregado em contos, novelas, romances e, sobretudo no teatro, é

uma estratégia bastante eficaz na atualização e agilização dos conflitos. Na narrativa em

apreço, além de fazer progredir a trama, trata-se de um dos procedimentos que deflagram o

dialogismo e os conflitos trágicos. Mas, em inúmeras cenas, parece romper-se a interação

verbal típica do diálogo. A palavra do mestre, em tom raivoso ou ressentido, serve sempre

para reiterar posições irredutíveis, embora seus antagonistas de vulto quase nunca estejam

presentes, com exceção da mulher e da filha, com as quais pouco interage. Aqui, os rompantes

do mestre contrastam com as oscilações e os conflitos íntimos.

FM é estruturado como romance polifônico tanto na sua arquitetura triangular

como, no plano do discurso, na mimese dos eventos que os diálogos e os monólogos

representam. Interessa-nos, aqui, o dialogismo entre os figurantes, seja pela via do confronto,

100

seja pelo simples estabelecimento de oposições irredutíveis, o que leva à autonomia das

vozes, respeitadas pelo próprio narrador e, portanto, à polifonia.

Embora mantendo-se eqüidistante, o narrador de FM é empático com os

protagonistas e com suas três mulheres. O ambiente diegético nos é apresentado segundo o

ponto de vista desses seis personagens. Porém, como a focalização muda freqüentemente, não

se oferece um ponto de vista fixo, nem uma verdade dominante. Com José Amaro, tomamos

conhecimento de fatos diversos. É através dele que nos chegam as primeiras impressões

acerca do Santa Fé, do Santa Rosa, daqueles que os comandam e das autoridades da região.

As vozes do narrador e do protagonista parecem, formalmente, soar juntas, com ligeira

predominância desta última. Por essa técnica narrativa, o mestre, nos primeiros capítulos da

Primeira Parte, dá-se a conhecer, faz sumários, mostra o mundo à sua volta e emite sua

opinião a respeito desse mesmo mundo, como já observamos. Procede como que narrando e

atuando, o que lhe garante certa autonomia em relação ao narrador, cuja voz, embora organize

e conduza a narrativa, não faz intrusões. Mas o foco não se restringe ao mestre: salta de um

personagem a outro, constantemente, permitindo-nos acompanhar diversos olhares e diversas

vozes, não raro conflitantes, que registram nova impressão sobre o mundo, pessoas e fatos.

Em estudo sobre o romance polifônico, afirma o crítico e teórico Mikhail Bakhtin:

A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor (sic); não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis.23

FM tem, na diversidade de personalidades e de vozes, uma característica

importante. Os traços bem definidos, os cacoetes e as expressões próprias estabelecem forte

contraste entre os personagens e estão na base de sua concepção. Soma-se a isso a própria

22 REGO, FM, p. 60.

101

construção dialógica da narrativa, que permite, conforme já demonstrando, um certo

distanciamento do narrador. O tom das diversas vozes traduz angústia, tristeza e antagonismo

vividos no tempo presente, revelando conflitos em todos os níveis.

Vejamos o ponto de vista de Sinhá sobre o mestre:

Nunca podia imaginar que o povo estivesse fazendo de seu marido um lobisomem. Era, sem dúvida, por causa daquele gênio azucrinado do Zeca, por causa de sua cor, do amarelo dos seus olhos [...] Zeca dera agora para fazer aqueles passeios à noite. Era homem de manias. Quando procurava fazer uma coisa, tinha que fazer mesmo.24

E o ponto de vista do mestre sobre sua esposa:

Tinha receio de sua mulher. Era sua inimiga. Por quê? O que fizera para aquele ódio terrível de Sinhá? Desde aquela noite da surra em Marta que ela ficara daquele jeito, sem falar em casa, de cara fechada, cuidando das coisas como uma criada.25

Dialogismo não implica necessariamente tragédia, mas, nessa narrativa, insere-

se como estratégia da ação trágica. É justamente esta estrutura polifônica que dá a FM a base

de um enredo trágico, o que se observa na irredutibilidade dos protagonistas e nas freqüentes

mudanças de foco. À medida que o foco muda, as verdades irredutíveis inpõem o jeito de ser

de cada protagonista, que não pode variar muito, sob pena de deixar de ser o que é. Conforme

Hegel em sua Estética,

... as circunstâncias de uma ação dramática são tais que ao fim individual se antepõem obstáculos, postos por outros indivíduos que perseguem fins diferentes e não menos justificados, pelo que surgem conflitos e complicações de toda a espécie.26

Embora não haja conflito direto entre Amaro e Vitorino, sobretudo depois que

o seleiro começa a reconhecer a bravura e o espírito de solidariedade do compadre, seus

23 BAKTHIN, 1997. p. 05. 24 REGO, FM, p. 129. 25REGO, FM, p. 199.

102

projetos se excluem: enquanto Vitorino segue inflexível sua luta aberta pela justiça e pelos

mais fracos, o mestre prefere o apoio clandestino ao cangaço e, não aceitando outras soluções,

acaba pondo fim à própria vida, algo impensável para Vitorino. Este, na sua ação incansável,

de forte tom dramático e teor épico, não se detém em introspecções. José Amaro é fechado em

si, remói sua dor e fala mais do que age propriamente, vivendo seu drama no âmbito interno,

embora em momentos de explosão externe tudo o que pensa. Um dos dramas do mestre é não

ter a coragem de Vitorino para agir, o que ilustra bem o contraste entre o furor discursivo e a

ausência de ação:

O mestre José Amaro pensou no capitão Antônio Silvino, mas quem lhe chegava à cabeça, numa insistência que o surpreendeu, foi a imagem do velho Vitorino, o seu compadre, perseguido pelos homens, atormentado pelos moleques. Lembrou-se dele, e quando procurava fugir daquela imagem do compadre infeliz, não sabia como, sentiu que o queria mais que a todos os seus conhecidos. Afinal Vitorino sempre lhe parecera um podre desgraçado, um traste inútil. E por que aquele seu pegadio com o velho, por que de repente lhe viera aquele pensamento? Vira a fúria de sua cólera, a força com que puxava a arma para furar o negro bêbado. Era um homem, era mais homem do que ele, que nunca pudera ser mais que aquele seleiro da beira da estrada, com uma filha velha, com uma mulher que lhe tinha ódio, com medo de fazer o que lhe viesse à cabeça.27

O seleiro e o capitão Vitorino se opõem a Lula de Holanda, que se isola cada

vez mais no mistério, no orgulho e na doença. Se pudéssemos compará-los por meio de uma

metáfora solar, poderíamos relacionar Vitorino à luz, Amaro à sombra e Lula de Holanda à

escuridão: esse é o grau de visibilidade que seus caracteres oferecem.

Como afirma Hegel, os fins dos heróis trágicos podem ser legítimos, mas

negam-se mutuamente e entram em conflito. Os protagonistas desse romance são portadores

de discursos acabados, delimitados, que se defrontam e mantêm sua autonomia perante o

outro.

26 HEGEL, op. cit., p. 388. 27 REGO, FM, p. 148-149.

103

3.2.2 O conflito trágico e o dialogismo interior

A casa de taipa do mestre José Amaro localiza-se à beira da estrada que dá para

o Pilar, São Miguel, engenho Senta Fé e região. Compõem o cenário em volta a pitombeira, as

cajazeiras – cujos frutos cheiram – os bogaris, a criação de porcos e galinhas de Sinhá e o

canário da biqueira, cujo canto não raro contrasta com a tristeza da casa e com a tensão do

seleiro. Aliás, os elementos da natureza assumem significativa importância na trama por

figurarem, não como cenário imóvel, mas como algo vivo, manifestando, na maioria das

vezes, oposição ao drama humano em volta.

Em Fogo Morto a natureza se apresenta sempre cheia de vitalidade e alegria, em agudo contraste com o universo humano, atormentado, mórbido e sombrio. O homem torna-se assim uma áspera nota dissonante na harmonia reinante no mundo natural. Os efeitos obtidos nesse jogo de contraste atingem intensa força poética e expressiva.28

Diante da casa do mestre passam todos os que vão e os que vêm: é Lula em seu

cabriolé, é o aguardenteiro Alípio, é Vitorino Papa-Rabo na sua égua, são os comerciantes do

Pilar. Dessa circunstância tira o narrador proveito para trazer à cena todos os tipos sociais e a

própria dinâmica daquela vida interiorana. É ali que transcorre boa parte do enredo,

principalmente da Primeira Parte. Esse ambiente, com a tenda do seleiro e a pitombeira à

frente, lembra o cenário fixo de uma tragédia grega, com seu frontispício e sua economia de

detalhes: poucas cenas se dão no interior da habitação. Preso ao trabalho e à sua casa, é ali

que atua o mestre, seja remoendo os pensamentos enquanto bate o martelo na sola, seja na

conversa não raro pouco amistosa com os que passam pela estrada e o procuram.

Enquanto pensa e trabalha, o mestre parece não agir, no sentido de resolver

seus dilemas. Os conflitos, aparentemente limitados ao âmbito familiar e social, revelam-se

28 GOMES DE ALMEIDA, op. cit., p. 209.

104

bem mais complexos na focalização interna. São vozes discordantes que, na interioridade,

entram em embate dialógico, levando o personagem, não raro, a uma situação patética. Pathos

e dialogismo definem a situação do seleiro desde o início da trama. Em um primeiro

momento, Amaro joga toda a culpa de sua desgraça na mulher e na filha, ele que não tivera

um filho homem, como convém numa sociedade patriarcal:

Era a sua mulher Sinhá e não podia esconder o seu ódio por ela. Agora viu a filha sair de casa com uma panela na cabeça, caminhando para o chiqueiro dos porcos. Era de fato a sua filha, mas qualquer coisa havia nela que era contra ele. O mestre José Amaro viu-a no passo lerdo, no andar de pernas abertas e quis falar-lhe também, dizer qualquer coisa que lhe doesse. Martelou mais forte ainda a sola e sentiu que a perna lhe doeu. Com mais força, com mais ódio, sacudiu o martelo. Era a sua família. Uma filha solteira, sem casamento em vista, sem noivo, sem vida de gente.29

É sintomático que as pancadas do martelo na sola manifestem, no seu ritmo e

intensidade, o desespero e a fúria do seleiro em seu silêncio. De instrumento de trabalho, o

martelo passa a instrumento de ação dramática, já que o mestre, apenas pela via discursiva,

coloca em relevo seus propósitos. É um elemento de conotação social, porque diz respeito à

profissão do protagonista, e ainda um dado revelador de um traço psicológico. Faz coro com a

voz interior que ecoa em sua mente, que se repete tantas vezes ao longo da narrativa, e traduz

seu conflito com a esposa: Culpada de tudo era Sinhá, sua mulher. O mestre sacode o martelo

com força para a perna doer mas, no seu desespero, “... queria mandar em tudo como

mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo como batia naquela sola.”30 Assim, o

martelo nos dá a unidade do personagem, seu traço social e particular, sua ação e seu drama.

Mas sua violência efetiva poucas vezes vai além dessa que o instrumento lhe proporciona.

Num segundo momento, quando Marta, já doente, está para ser retirada de

casa, o mestre, preocupado com os acontecimentos envolvendo o bando de Antônio Silvino e

29 REGO, FM, p. 64-65. 30 REGO, FM, p. 55.

105

as prisões realizadas pelo tenente Maurício, mostra-se frágil, oscilante em seu íntimo, e cai em

sentimento de culpa. No monólogo abaixo, assimila, de forma conflituosa, a voz de Sinhá, que

o acusa de ser um pai malvado, depois que este bateu na filha:

Não era possível que ele não se importasse com a filha doente, com o sofrimento da mulher. Era por isto que o povo corria, fugia de sua presença. Por que era aquele pai sem coração, aquele marido desnaturado? Ali estava a comadre Adriana, casada com um maluco, e no entanto, ainda tinha força para vir ajudá-los na desgraça. Era, de fato, um homem perdido, sem amor às coisas, sem amor ao ofício, à mulher, à filha. No outro dia faria o maior sacrifício de sua vida. Tinha a obrigação de levar a filha para o hospital.31

Mas, em cena com outros figurantes, o mestre Amaro não só faz valer sua voz,

sua concepção de mundo, como chega à exasperação. Em vez do martelo, aqui seu

instrumento ameaçador é o discurso. É no diálogo que o drama se exterioriza, que a tensão

domina. Os conflitos ocupam a arena externa, mas, apesar da contundência, não demonstram

o grau de complexidade com que ressoam no monólogo interior. Aqui, o mestre parece não

ter conflito consigo mesmo. Como ali na sua tenda nunca param os que considera seus

verdadeiros inimigos, suas declarações agressivas são feitas em tom de recado. Na fala,

revelam-se o estilo e o caráter: “o coronel Lula passa por aqui, me tira o chapéu como um

favor, nunca parou para saber como vou passando. Tem o seu orgulho. Eu tenho o meu.”32

Mais do que orgulho, o mestre revela sentimento de inferioridade, ressentimento. Embora

afirme que os senhores de engenho sejam todos da mesma laia, distingue Lula de José

Paulino, sendo este um velho gritador, aquele um homem que não é mau, mas que vive do

orgulho e do luxo.

Se, por um lado, o orgulho, como falha trágica, aproxima o velho Amaro do

coronel Lula, como móbil da ação de ambos, coloca-os em rota de colisão, no espaço social

31 REGO, FM, p. 202. 32 REGO, FM, p. 61.

106

do engenho Santa Fé. É a partir de uma discussão com o negro Floripes, serviçal do coronel,

que as relações entre o senhor de engenho e o mestre se deterioram de vez. Floripes se

encarrega de alertar Amaro acerca de comentários maldosos que este teria feito a respeito da

casa-grande. O mestre se exaspera e chega a armar-se com a quicé de cortar sola. O negro

foge e o seleiro fica lívido, suado, de tanta ira. Mas o narrador desloca o foco para a natureza,

evidenciando sua função contrastiva em relação ao conflito humano:

O canário cantava na biqueira, na mansa manhã de sol enublado. Um bando de rolinhas corricavam por cima da grama. O bode espichado por debaixo da pitombeira, quieto. Tudo quieto, tudo na paz, menos o coração do mestre José Amaro que batia com arrancos de açude arrombado. Quando a mulher apareceu com o copo d’água, ele lhe disse: - Antes de sair daqui eu faço uma desgraça.33

O foco volta-se novamente para o mestre que, abalado com os acontecimentos,

sente a boca amarga e recomeça o trabalho com fúria.

As relações de propriedade e o poder de mando dominam a cena em que Lula

expulsa o velho Amaro de suas terras. Com a decisão do senhor de engenho, o mestre apela ao

cangaceiro Antônio Silvino – sua única esperança – e se fixa na idéia de matar o negro

Floripes. Em Antígona, Sófocles traz a lume o conflito entre as leis divinas e as leis do

Estado, no caso as leis de Tebas, comandada por Creonte. Antígona, seguindo o costume,

planeja sepultar o irmão Polinices, morto em combate com Etéocles, outro irmão. Em FM,

uma questão legal confronta Amaro e Lula: este detém o direito positivo da propriedade,

como senhor do Santa Fé; àquele, a posse por longos anos dá uma espécie de usucapião,

fixado pelo tempo e pelo costume. Assim como Antígona, José Amaro reclama as leis não

escritas e pergunta repetidas vezes: não há um direito?. Para Hegel34, duas partes opostas

33 REGO, FM, p. 102. 34 HEGEL, op. cit., p. 388.

107

perseguem fins diversos, mas igualmente justificáveis. O trágico consiste na colisão insolúvel

desses dois direitos e ganha, nesse ponto da narrativa, conotação mais especificamente social.

Um motivo desencadeador do trágico igualmente importante é o conflito com

membros da família. Seria desnecessário enumerar as tragédias clássicas e modernas que

transcorrem nesse espaço ao mesmo tempo privado e existencial. O casamento entre Amaro e

Sinhá ocorreu por conveniência, segundo o mestre. Não tendo um filho que lhe assegurasse a

continuidade da família e a quem transmitisse os segredos da profissão, e dando-lhe a

providência apenas uma filha louca, o seleiro vislumbra a solidão e o desamparo na velhice.

Por causa de sua aparência doentia e seus hábitos de andar em noite de lua, o

velho Amaro ganha a fama de lobisomem que, segundo a crença popular, é filho do diabo.

Soma-se a isso o crime praticado pelo pai em Goiana, antes de fugir para a Paraíba. Como

uma maldição familiar, o filho carrega um crime nas costas, ao mesmo tempo em que passa a

ser identificado com o lobisomem. É ser criminoso duplamente. As palavras assassino! e

lobisomem!, vozes interiorizadas pelo mestre, irrompem em sua mente, como um par de

desgraças que se fundem numa só. O que poderia ser visto como ato de bravura do pai, seria

visto como um crime, se praticado pelo filho.

Ironicamente, os raros momentos de suspensão do contraste entre o

personagem e a natureza dão origem a sua maior angústia: seus passeios noturnos despertam a

curiosidade dos supersticiosos.

O seleiro estava possuído de paz, de terna tristeza; ia ver a lua, por cima das cajazeiras, banhando de leite as várzeas do coronel Lula de Holanda. Foi andando de estrada afora, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o para andar. Era o que nunca fazia. [...] Na lagoa, a saparia enchia o mundo de um gemer sem fim. E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. Tudo era tão bonito, tão diferente da sua casa.35

35 REGO, FM, p. 76-77.

108

A partir de então, sua situação torna-se ainda mais patética. Meninos e

mulheres fogem de sua presença. A morte da velha Lucinda, uma vizinha, é atribuída a sua

má influência. Aprofunda-se a solidão do mestre, que chega ao auge com o internamento de

Marta na Tamarineira. Revela-se mais uma faceta do seleiro: aquele coração, que “era como

um cardeiro cheio de espinhos”36, chora como menino.

O tema do lobisomem alude ao do bode expiatório, aquele que é culpado pelas

desgraças da comunidade. Está presente nos mitos da Grécia antiga na figura do pharmakós, e

ressurge em Édipo, o rei que, na tragédia de Sófocles, é a causa da peste que aflige Tebas. Ele

deve ser expulso da cidade, a fim de que se possa afastar a polução. Enquanto o destino de

Édipo remonta ao ritual ateniense do pharmakós, como atesta Jean-Pierre Vernant37, a

situação do mestre evoca a superstição popular brasileira em torno da figura do lobisomem. O

aspecto sombrio, a aparência doentia, a cor da pele amarela e o costume de andar em noite de

lua são os elementos que os habitantes do lugar identificam com o lobisomem.38 Mas são as

vozes propagadoras do boato que criam o estigma contra o mestre. O narrador contraria a

crença popular ao registrar os fatos que dão origem à má fama mas, evitando intrusões, deixa

o leitor à mercê das vozes que consolidam o mito:

A postura dominante é a da potencialização do mito, já desvinculado de suas bases sensíveis e transformado em algo superior, impassível de críticas e desnudamento. A pluralidade de vozes tem efeito crítico no leitor; mas não é suficiente para desfazer as

36 REGO, FM, p. 75. 37 Embora estejamos tratando de tradições diversas, podemos estabelecer semelhanças entre o nosso lobisomem e o pharmakós grego. Vejamos o que nos relata VERNANT: “Como eram escolhidos os pharmakoí? Tudo leva a pensar que eram recrutados na ralé da população, entre os kakoûrgoi, malfeitores condenáveis, que sua maldade, sua feiúra física, sua baixa condição, suas ocupações vis e repugnantes, designavam como seres inferiores, degradados, phaûloi, o rebotalho da sociedade. Cf. VERNANT, Jean-Pierre. “Ambigüidade e Reviravolta”. In. _ VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado et al. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 88. 38 De fato, alguns hábitos e elementos de caracterização física do mestre Amaro coincidem com os do animal fabuloso que povoa a imaginação popular. Alertando-nos sobre as variações regionais do lobisomem, assim o descreve Câmara Cascudo: “Sai também ao escurecer, atravessando na carreira as aldeias onde os lavradores recolhidos não adormeceram ainda. Apaga todas as luzes, passa como uma flecha, e as matilhas de cães, ladrando, perseguem-no até longe das casas”. Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Global Editora, 2000. p. 335.

109

impressões lúgubres sobre o mestre e restabelecer sua verdadeira identidade. A adesão crescente das pessoas à crença demonstra a ineficácia do pensamento lúcido frente às convicções impregnadas de medo.39 Adriana, a comadre fiel, é voz discordante, mas não convence ninguém. O

boato opera uma reviravolta na vida do velho, antes respeitado, apesar do mau humor, e o

transforma em bode expiatório. Não é expulso do Santa Fé por essa razão, mas, ao ser evitado

como aquele que bebe o sangue das pessoas, vê-se expulso do convívio social, aprofundando-

se sua amargura e solidão. Poucas pessoas ainda visitam sua casa: a comadre Adriana, o cego

Torquato, José Passarinho (que não deixa de ter algum receio) e Vitorino, que não

compartilha nenhum tipo de crença ou superstição. Sinhá, à medida que seus conflitos com o

marido vão se intensificando, assimila a voz coletiva do pavor e o revela à comadre Adriana:

- Comadre, eu prefiro a morte a viver mais tempo naquela casa. Uma coisa me diz que ele tem parte com o diabo. Eu nem sei dizer o que sinto. É uma coisa lá dentro me dizendo isto. É uma voz que escuto, de dia, de noite, até dormindo. Fico até imaginando que estou variando. Ele me olha como uma fera. Agora que brigou com o coronel só fala em matar, em briga, no diabo.40

A conjugação pathos e dialogismo interior chega ao extremo quando o seleiro

assimila mais uma voz que passa a conflitar em sua intimidade:

Que queria dizer tudo aquilo? Foi quando se lembrou da conversa do compadre. Lobisomem. Estremeceu com o pensamento. Era como se gritassem ao ouvido: “Assassino!” Lobisomem. Estavam com medo dele. Os cardeiros da beira da estrada tinham enormes frutos encarnados que os pássaros furavam com ganância. Lobisomem. Pura invenção de Laurentino. Todos agora o tomariam por um bicho, inventariam histórias com o seu nome.41 A assimilação conflituosa da voz coletiva torna ainda mais frágil a condição

interior do personagem e maior a distância entre discurso e ação. Amaro não esconde a

39 GOUVEIA, Arturo. As angústias do outono: uma proposta de análise crítica de Fogo Morto, de José Lins do Rego. João Pessoa: Manufatura, 2004. p. 77. 40 REGO, FM, p. 349.

110

enorme vontade de matar o negro Floripes, mas o conflito de vozes que se opera no seu

íntimo parece torná-lo ainda mais incapaz de realizá-la:

Negro miserável. Dele viera toda a intriga. Uma raiva de morte se apossou do mestre. Teria que matar aquele negro. Não sabia como lhe viera aquele desejo terrível. Aquele negro teria que morrer em suas mãos. Lobisomem. E estacou no pensamento, horrorizado. Matar, derramar sangue. O povo dizia que ele vivia bebendo sangue, na calada da noite. Matar, teria que matar aquele negro.42

Em Crime e castigo, o estudante Raskólnikov premedita o assassinato da agiota

Aliena Ivánovna e o leva a efeito.43 Apesar disso, sua falha trágica é o caráter oscilante.

Porfiri, o juiz de instrução, não tem nenhuma prova do crime praticado, apenas hipóteses que

coincidem com os fatos reais. O que faz o protagonista se entregar não são as provas do feito

– que mesmo lhe parecendo repugnante e absurdo, não se lhe afigura criminoso – mas o

conflito interior, que opera como um castigo. Semelhante, neste ponto, a Amaro, Raskólnikov

é irredutível nas idéias e oscilante nas ações. Amaro promete matar Floripes, mas nunca o faz.

O herói de Dostoiévski mata a velha agiota, mas sem estrutura de caráter para fazê-lo, para

suportar o feito, o que reconhece tardiamente. Amaro se mata, fugindo da tragédia da vida.

Raskólnikov faz algo parecido: depois de muito protelar a decisão, entrega-se à justiça para

ser punido e escapar do conflito que o consome. Desse modo, tenta se livrar da alternância de

vozes que ora o levam a se defender, ora o impelem a se confessar.

O caráter do mestre José Amaro já vem inscrito em seu nome, o que não quer

dizer, em absoluto, que todo o seu conflito seja apenas de natureza subjetiva ou que esteja

determinado por forças superiores. Se ele é amargo de batismo – a palavra deriva do latim

41 REGO, FM, p. 189. 42 REGO, FM, p. 308. 43 DOSTOIÉVSKI, op. cit., p. 90-100.

111

amarus – amarga é igualmente a sua condição. Situado no mundo, não como fantoche das

forças sociais, mas como alguém que faz escolhas, acertando ou errando, é, em parte,

responsável pelo que lhe ocorre. Seu destino decorre de ações como a ameaça ao negro

Floripes, que resulta na ordem de desocupação da casa que ocupa no engenho de seu Lula; da

surra em Marta, que agrava a doença da filha e desencadeia a separação definitiva entre o

mestre e a mulher; e do apoio ao capitão Antônio Silvino, que tem como conseqüência a

prisão comandada pelo tenente Maurício. Como se vê, nas poucas vezes em que age, suas

ações se voltam contra ele como verdadeiras peripécias. Mas decorre seu destino ainda de

eventos que ele não pode ou não pôde controlar, como a doença que o consome aos poucos; a

fama de ser lobisomem; e o crime de morte realizado pelo pai. Nesse último evento, mais um

antagonismo dialógico: para o mestre, a ação do pai é digna de honra e deve ser imitada pelo

filho; para Lula e d. Amélia, um crime horrendo, que depõe contra o mestre, com o qual o

convívio se torna indesejável.

Junto com José Passarinho e o cego Torquato, o velho Amaro é humilhado e

espancado na cadeia de Sapé, o que o mestre jamais pensara lhe acontecer. Ainda outra

peripécia lhe ocorre: na esperança de que Antônio Silvino lhe devolva a liberdade, não chega,

no entanto, a ajuda do cangaceiro; uma vez solto graças à ação de Vitorino, realiza a desgraça

que tanto prometera: esperava-se que o mestre matasse o negro Floripes, mas, ao contrário,

reconhecendo que sua vida chegou ao fim, suicida-se com a faca de cortar sola, gesto que

ganha uma dimensão simbólica adicional, levando-se em conta o instrumento utilizado, do

qual dependera o sustento de sua vida. Esse gesto põe fim à vida do mestre e sugere,

simbolicamente, o início da decadência da técnica pré-industrial do artesão. No auge do

pathos, conclui-se o desenho do romance trágico. Aqui, a catástrofe decorre de peripécia e

reconhecimento ocorridos conjuntamente.44

44 ARISTÓTELES, op. cit. p. 59.

112

A morte do mestre encerra ainda um sentido, que encontramos em outros

personagens trágicos.. Trata-se de uma escolha que não recai sobre o que há de mais doloroso,

uma vez que ninguém almeja sofrer. Ocorre que, para esses heróis, a morte é mais digna que a

vida que lhes resta. Polixena, filha de Hécuba (Eurípides), embora não tenha escolha, prefere

a morte a continuar como escrava dos aqueus; Antígona (Sófocles) considera que pior que

sucumbir é deixar de cumprir com o dever para com o philos, deixar de ser fiel à família; Ájax

(Sófocles), preterido pelo conselho dos helenos que honra Odisseu com as armas de Aquiles –

morto em combate – prefere o suicídio a ser um herói de honra maculada. Esses personagens

se perguntam se há algo de bom em uma existência que para eles perdeu o sentido. Pior que a

morte é uma vida vazia, mutilada. É o que Amaro, livre da cadeia, diz, em outras palavras, a

d. Adriana, que lhe acena com a possibilidade de morar no Engenho Novo, do doutor Quinca:

“É, comadre, morar para mim não adianta mais. O que vale um caco como eu?”45 Nesse

reconhecimento, a noção de valor contida nas palavras do mestre vai muito além da referência

à saúde, às condições físicas e à velhice do seleiro, claras na passagem referida. Seu sentido se

amplia se considerarmos toda a trajetória do mestre, marcada pelo orgulho, pelo sentimento

de inferioridade, pelos valores que integram seu caráter, e pela sensação de vazio que

progressivamente o invade, até levá-lo à catástrofe do suicídio. A desventura máxima é viver

sem honra, sem motivos para viver. O que Ájax faz com a espada, Amaro faz com a faca de

cortar. Vale lembrar, aqui, a reflexão de Raymond Williams acerca da morte voluntária,

embora analisando situações diferentes da de Amaro em tragédias modernas: “Mais uma vez a

verdadeira tragédia não está na morte, mas na vida.”46

Lembrando o que ocorre nas tragédias gregas, a morte do mestre é anunciada e

narrada por um mensageiro, José Passarinho, perante Vitorino e D. Adriana. E, assim como

em muitas tragédias, uma outra catástrofe ocorre no final, também relatada por José

45 REGO, FM, p. 391. 46 WILLIAMS, op. cit., p. 215.

113

Passarinho: o Santa Fé está de fogo morto. Encerra-se a Terceira Parte com dois eventos

patéticos.

3.2.3 O conflito trágico do mestre: uma combinação de fatores

Podemos considerar, com estas reflexões, que vários fatores pesam no destino

trágico do mestre José Amaro: no caráter, revelado na ação, podemos encontrar o que

modernamente se identificou como falha trágica: ação oscilante, orgulho, discurso irredutível

e sentimento de inferioridade; fatos de ordem existencial, como a decadência em relação ao

pai, a desagregação da família e o aprofundamento da solidão; fatos de ordem social e

política, como a luta com Lula de Holanda, o ódio a José Paulino, a colaboração com o

cangaço e o banimento motivado pela fama de lobisomem; por fim, o suicídio, marcado por

um misto de desolação, desespero e fuga.

Amaro, como personagem trágico contemporâneo, pertence a um status social

rebaixado, mas, do ponto de vista humano, sua posição é intermediária: firme na ostentação

de seus valores, mas impotente ou oscilante na ação. Persegue sua finalidade – servir ao

capitão Antônio Silvino – aliás a única que leva adiante, até tornar seu drama uma tragédia.

Desolado, prefere morrer a fazer concessões. Quando admite sair do Santa Fé, já é tarde.

Aproxima-se do herói trágico preconizado por Aristóteles, na medida em que é infeliz sem o

merecer e cai no infortúnio, não por ser vil e malvado, mas em conseqüência de erros,

involuntários ou não e, acrescentamos, das circunstâncias. Apesar de incapaz de realizar ações

corajosas às claras, Amaro torna-se um personagem empático. A própria estratégia do

narrador, ao focalizá-lo por dentro, objetiva alcançar o envolvimento do leitor: os sofrimentos

do protagonista são apresentados não por uma focalização externa, mas de modo a que seja

114

percebido como o mais trágico dos três protagonistas. Por outro lado, a velhice, a doença e a

retidão moral compensam os possíveis defeitos, o que permite a empatia.

Com esse tratamento dado ao personagem, o narrador arma sua estratégia para

garantir o efeito catártico da trama. Ocorre, no entanto, que o mestre vive uma situação

patética desde o início de sua trajetória, ou seja, não passa da felicidade para a infelicidade

nem desta para aquela, mas da infelicidade para um fim doloroso, o que intensifica o efeito

trágico. O seu percurso, como o de outros personagens, é o de perdas que vão se acumulando

gradativamente, não de forma aleatória, mas em cadeia, como que por contaminação,

precipitando-se quase ao mesmo tempo. Vamos a dois exemplos: 1 – Amaro perde a filha, que

enlouquece, e, logo em seguida, recebe ordens de Lula para deixar o engenho; 2 – no mesmo

dia em que é preso, Sinhá o abandona e a esperança na ação de Antônio Silvino vê-se

frustrada.

O conflito trágico cerrado é a definição que melhor ilustra a trajetória do

mestre. Com o protagonista, também se vão seu mundo e seus valores. Aqui, trata-se de um

conflito que escapa a uma motivação fatalista. Articula-se a partir de vozes que se confrontam

e que levam às últimas conseqüências suas convicções, tornando-se vozes trágicas,

representativas de um mundo em crise, que marcha para a ruína. Não há consenso possível

entre Amaro e Sinhá, entre Lula e Amaro, entre o tenente Maurício e Antônio Silvino. Mas,

ao mesmo tempo, nem todo o mundo compreendido pela narrativa está em conflito insolúvel.

Os seres humanos, pelo menos os do primeiro plano, são focalizados como sofredores ou

conflituosos. Quase não há personagens jovens em FM: os novos envelheceram antes do

tempo, como Marta e Neném; e a velhice não é representada como sabedoria, experiência,

mas como sofrimento e decadência. Amaro, Sinhá e Adriana não se cansam de afirmar que

estão apenas esperando a hora da morte, como se a velhice fosse um estágio entre a morte e a

vida. Há, no entanto, exceções: José Paulino é velho, mas ainda está no comando; e Sinhá,

115

rompendo com a submissão feminina típica do patriarcado, liberta-se de um sofrimento que

parecia eternizado pela instituição do casamento.

É nesse mundo em crise que se movem, agem e caem os personagens de FM.

Mas não há, nele, lugar para uma visão cerradamente trágica do universo. O contraste

homem/natureza nos dá a perspectiva do conflito trágico cerrado. Em uma das inúmeras

cenas que ilustram esse contraste, a velha Sinhá chega à casa da comadre Adriana. Esta reflete

sobre o comportamento indomável de Vitorino, seu marido. Sinhá cai em prantos, dizendo

que não suporta mais viver com o mestre Amaro. O narrador desloca o foco do conflito das

amigas para a natureza: “A tarde bonita, de vento brando, de cajazeiras cheirosas, cobria a

casa do capitão Vitorino de uma paz de remanso.”47 Quando o foco volta para as duas

personagens, reaparecem o drama e a tristeza, sobretudo em Adriana: José Passarinho chega

do Pilar e acaba de presenciar desaforos de Vitorino contra o major José Medeiros.

3.3 A trajetória de Lula de Holanda

3.3.1 Passado e presente na focalização de Lula de Holanda

O presente da ação ocupa a Primeira e a Terceira Parte da narrativa de FM.

Nelas, José Amaro e Vitorino já são velhos, vivendo cada um seu conflito. A atualidade dos

fatos aproxima a narrativa do drama, operando-se a ilusão de tempo presente. Por essa razão,

a descrição desses dois personagens se fixa sem maiores alterações.

A ordem temporal da narrativa, porém, é suspensa na Segunda Parte. O

narrador passa a relatar eventos anteriores ao presente da ação, remontando às origens de

47 REGO, FM, p. 350.

116

Luís César de Holanda Chacon e do Santa Fé, com o objetivo de realçar o contraste entre o

apogeu do engenho, por volta de 1850, sob o comando do Capitão Tomás Cabral de Melo, e a

ruína atual. Mas entre esses dois momentos, decorre o lento processo da decadência. Essa

parte da narrativa acompanha a evolução dos fatos ao longo do tempo, o que faz aparecerem

os contrastes entre passado e presente. 1850 é o ano da pintura nova da casa-grande, da

chegada do piano e da volta de Amélia, filha do Capitão Tomás, que conclui os estudos e

almeja um casamento à altura da família, conforme deseja o pai. 1888 é o ano da Lei Áurea. O

Santa Fé e Lula, genro do Capitão Tomás, já não são os mesmos. Os problemas do engenho se

agravam com a libertação da escravatura e com o estilo do novo proprietário.

Assim é que, em descrições sumárias, o narrador apresenta-nos o senhor do

Santa Fé em momentos distintos: no primeiro,

O primo Lula tinha aquela barba negra de estampa, de olhos azuis, o ar tristonho, a fala mansa. A velha olhava-o para sentir bem o genro que viera de longe para fazer de Amélia uma criatura feliz48.

No segundo momento,

Tudo se fora. Só Neném existia para ele. A barba que fora negra, estava branca, a voz que fora terna, era rude. Tornara-se áspero com todos. Um homem podia mudar de alma, mais do que de corpo. A alma de Lula não era a mesma49.

Mas logo nos primeiros tempos, Lula se mostrara alheio a tudo que o

cercava. Se percorria os partidos de cana ou ia à moenda, estava vestido como homem da

cidade, sempre de gravata, parecendo uma visita. Era um homem calado e, quando falava de

assuntos relacionados ao engenho, não demonstrava interesse. O que lhe atraía eram os

jornais, os livros e o piano de Amélia.

48 REGO, FM, p. 219. 49 REGO, FM, p. 262-263.

117

O sexto e último capítulo da Segunda Parte decorre já na velhice do

protagonista, fase em que se acham José Amaro e Vitorino. No último parágrafo desse mesmo

capítulo, o narrador antecipa, de forma dramática, o fim do Santa Fé. Mas, nos seus estertores,

seus personagens, também em franca decadência, ainda agem, cada qual a seu modo, tentando

evitar ou ignorar a catástrofe. Diga-se de passagem que os conflitos que compõem a trama

extrapolam o problema particular do Santa Fé e de seu Lula. São diversas vozes em conflito,

cuja irredutibilidade conduz ao impasse, ao isolamento dos personagens e a um desfecho

doloroso.

3.3.2 Seu Lula na visão dos outros personagens

Em FM, os protagonistas não são fixados pela palavra monológica do narrador,

mas pelos diversos ângulos de visão de cada personagem. Retomada a ação presente ainda no

final na Segunda Parte, volta a estrutura dramática que confronta os três protagonistas da

trama. A construção dialógica, pontuada por vozes autônomas, deflagra o conflito trágico no

plano do discurso. Os personagens são o que os outros dizem deles e o que eles dizem de si

mesmos. Não há uma última palavra sobre eles, nem uma voz que estabeleça a verdade. Suas

vozes é que são intrusas, mas se equivalem.

Amaro, mergulhado na angústia, no ressentimento e ódio aos senhores de

engenho, traça um perfil irredutível do senhor do Santa Fé em suas falas e monólogos. Pelo

seu enfoque, Lula de Holanda é um homem orgulhoso, soberbo, que, ao invés de cuidar

pessoalmente do engenho, vive do luxo, metido na gravata, no cabriolé e nas rezas, hábitos

que o levam à ruína. Essa postura do senhor incomoda profundamente o mestre. Reiteradas

118

vezes essas críticas irrompem nas conversas do seleiro ou no seu monólogo interior.50 Por

fim, ganha força na visão de Amaro a idéia de que Lula de Holanda está “aluado”, de que só

pode estar fora do juízo. Não haveria outra explicação para um senhor que se entrega às rezas,

isola-se de tudo e de todos em casa e deixa o mata-pasto tomar conta das terras. Mas no perfil

traçado por Amaro, Lula não propende inteiramente para o mal. O senhor de engenho é

orgulhoso, mas nunca lhe cobrou foro da casa onde o mestre mora, nem nunca lhe gritou,

como o fizera o coronel José Paulino. Não se trata, portanto, de um homem mau. No fundo,

deseja uma aproximação com ele, daí seu ressentimento com o orgulho do velho. Na sua

ilusão, vê em Lula e d. Amélia aliados contra o dono do Santa Rosa:

Pelo menos, o carro do coronel Lula cantaria pela estrada, seria mais alguma coisa que o cavalo ruço do coronel José Paulino. O cabriolé consolava um pouco o seleiro da mágoa que lhe dava aquele senhor muito rico, muito cheio de terras, que lhe dera gritos como se fosse um negro cativo. Gostava de ver o coronel Lula no cabriolé, enchendo a estrada com a sua parelha. O diabo era aquele orgulho do velho, aquela soberba51 As ressalvas feitas ao caráter de Lula tornam ainda mais trágico o conflito entre

os dois, pois frustra-se, como peripécia, qualquer esperança de aproximação. No único

confronto direto entre os protagonistas, confirma-se a impossibilidade de consenso. Ao ser

expulso das terras do engenho em cena de intensa dramaticidade, Amaro vive mais uma perda

e vê confirmada sua visão irredutível acerca de Lula de Holanda.

A posição de Vitorino acerca do senhor do Santa Fé não é muito diferente da

do mestre Amaro, embora suas motivações sejam mais políticas que de outra natureza.

Vinculado à candidatura de Rego Barros, no qual deposita esperanças de transformação, vê

nos coronéis da Várzea os adversários a serem vencidos por esse projeto. Pela sua ótica, Lula

de Holanda é medroso, mofino, luxuoso e doido. Está sempre se referindo ao proprietário do

50 REIS; LOPES, op. cit., p. 266-267.

51 REGO, FM, p. 80.

119

Santa Fé como a um adversário político fraco, uma leseira, mas não há réplicas da parte deste,

mesmo porque a palavra de Vitorino nunca é levada a sério. A visão de Papa-Rabo em relação

a seu Lula também não evolui ao longo da narrativa, nem mesmo quando procura defendê-lo

do ataque promovido ao Santa Fé por Antônio Silvino.

A narrativa se constrói de modo a que raras vezes Amaro e Vitorino entram em

confronto direto com Lula de Holanda. O conflito cerrado deflagra-se intensamente pela via

do discurso, que reverbera de modo diverso: o de Amaro, transmitido por Floripes como

intriga e levado a sério pelo coronel, tem efeito catastrófico – a expulsão do mestre do Santa

Fé; o de Vitorino, sequer replicado por seu Lula, precisa ser reiterado, reclama para si o

contraditório, o respeito, que Vitorino tenta impor, desesperadamente, com a patente de

capitão e com a palavra desaforada. A sua tragédia é a ausência da réplica esperada, pois seu

discurso só obtém como resposta o riso geral e o silêncio de seu Lula e do Coronel José

Paulino.

Poderíamos destacar ainda, em FM, uma espécie de voz coletiva, anônima, que

se opõe a Lula de Holanda e funciona como mais um fator de isolamento do senhor de

engenho do Santa Fé. É a voz do povo do Pilar, denominado pelo protagonista de canalha ou

camumbembe. Seu Lula jamais se mistura a essa gente e, no seu orgulho, mesmo diante das

propostas políticas de José Paulino, só se sente pequeno aos pés de Deus. Até as portas da

casa-grande se fecham, para evitar a impureza do mundo.

A voz do povo do Pilar, como a dos personagens já analisados, é irredutível em

relação a Lula. Nem mesmo a defesa do coronel, feita pelo padre Severino no sermão, cala a

voz do povo. Mas se trata de uma voz que, apenas em parte, combina com a de Vitorino e a de

José Amaro. Para a canalha do Pilar, Lula é um fidalgo de porcaria, um homem que veio

pobre do Recife e tinha um rei na barriga. Seus escravos tinham o lombo em ferida devido

aos castigos aplicados sob suas ordens. Se, para Amaro, Lula é aluado por rezar, mas não é

120

mau, para o povo do Pilar é hipócrita, engana a Deus e é malvado. Se, para Vitorino, é um

homem sem forças, um mofino, para essa voz coletiva é difícil no trato, o maior unha-de-fome

da Várzea. Por essas razões, segundo essa voz, ao invés de ser protegido por Deus, é

castigado e o Santa Fé é um engenho de maldição. Lembrando o coro de uma tragédia, ela

chega a apontar nas atitudes e defeitos de Lula as causas da maldição do Santa Fé52.

O efeito trágico desse conflito de vozes em torno de Lula de Holanda é o seu

isolamento cada vez maior, seja em casa, seja com relação aos seus domínios territoriais, no

conflito com Amaro, seja no espaço público. Lula se desinteressa pela mulher depois que esta

perde o segundo filho; entra em conflito com Neném, sua filha, porque não quer vê-la casada

com um camumbembe; afasta-se da política por não acreditar na República; não cuida do

engenho, pois isso não lhe apetece, e tem a atenção voltada para os jornais e para o passado da

família. A única instituição a que se liga é a Igreja, não como meio de sociabilização, mas

como forma de chegar a Deus e se afastar ainda mais dos homens.

Cabe ainda, para efeito da análise do trágico e sua relação com o conflito de

vozes, mencionar a voz de d. Olívia, cunhada de seu Lula, que mora na casa-grande do Santa

Fé, onde nasceu e se criou e para onde voltou, após enlouquecer como estudante no Recife. O

destino de d. Olívia está ligado ao fim trágico dos antigos proprietários do Santa Fé: sua

loucura fora um dos grandes desgostos que arruinaram seu pai, o capitão Tomás Cabral de

Melo. A voz de d. Olívia é portadora de curiosa ambivalência: é o eco de uma tragédia

consumada e a prolepse de uma tragédia que está prestes a acontecer. Diversas vezes ela

repete frases imperativas em momentos de densidade trágica na casa-grande: Cala a boca,

meu pai. Eu estou costurando a tua mortalha.53 São exclamações dirigidas a seu pai, pois sua

mente parou no tempo, mas que na ação presente da narrativa valem para Lula, agora no papel

52 REGO, FM, p. 249. 53 REGO, FM, p. 272.

121

do velho da casa-grande. Assim, a voz de Olívia, expressão da demência e do ininteligível,

liga duas tragédias no seio familiar.

Olívia oscila entre o silêncio e o grito, entre os extremos da loucura. Lula,

acometido pela gota, fecha-se cada vez mais em si mesmo: “ficava assim dias e dias como se

estivesse completamente fora do mundo. Saía daqueles silêncios terríveis para os gritos, as

impertinências com todos de casa”54. O ambiente do Santa Fé parece carregado de demência e

mistério.

3.3.3 Ação e caráter de Lula de Holanda

Se o ponto de interseção das vozes traduz o conflito trágico no plano do

discurso, este não é suficiente para uma caracterização do personagem, pois, como vimos, não

há consenso entre essas mesmas vozes acerca do protagonista, embora todas elas constituam

um campo de oposição a ele. Precisamos acompanhar o personagem nos seus atos e não

perder de vista o fato de que estes estão situados nesse mesmo contexto de vozes em conflito.

Predomina, em FM, uma caracterização indireta, levada a termo mais pela voz

dos personagens que pela voz do narrador. De modo dinâmico e fragmentário, os caracteres

vão sendo apresentados e retomados de acordo com a ótica do personagem que detém a

focalização. Amaro e Vitorino, por exemplo, fazem constantes apreciações críticas das

qualidades éticas e morais de seu Lula, enquanto o narrador isenta-se dessa tarefa. Este

apresenta, de forma recorrente, tiques e falas do coronel que o marcam nitidamente, sobretudo

na fase mais aguda da doença, na velhice.

A trajetória de Lula de Holanda começa com sua vinda do Recife, para casar-se

com Amélia, moça fina, educada, filha do capitão Tomás Cabral de Melo e de d. Mariquinha,

proprietários do engenho Santa Fé. O capitão erguera o Santa Fé com pulso e determinação e

54 REGO, FM, p. 263

122

fizera dele um engenho próspero por vários anos. Mas aos poucos fora perdendo suas forças,

abalado por grandes perdas: vê-se ferido em sua honra ao não recuperar o negro fujão

Domingos, sofre profundamente com a loucura da filha Olívia e fica desencantado com o

genro Lula, que não demonstra interesse pelos negócios do engenho e conserva os hábitos da

cidade55. Com a morte do capitão e, tempos depois, a de d. Mariquinha, Lula assume

definitivamente o comando do Santa Fé, mas não muda os hábitos citadinos e permanece um

homem sem iniciativa.

Noutros aspectos, no entanto, Lula vai se transformando: fixa-se cada vez mais

no passado, na idealizada nobreza do pai, que lutara na Revolução de 1848; isola-se do povo

do Pilar, pois seu orgulho não lhe permite misturar-se a camumbembes; rejeita cargos

políticos oferecidos pelo coronel José Paulino; torna-se cruel na aplicação de castigos aos

escravos, proibindo a realização de seus cultos. Em linhas gerais, Lula revela-se um caráter

irredutível, porém fraco como senhor de engenho: acometido de epilepsia, vê seu engenho

marchar para a ruína, mas ao invés de esboçar uma reação, refugia-se no sentimento religioso,

o único capaz de ainda mobilizá-lo. Tudo em Lula parece fuga da realidade. A devoção, vista

pelo povo do Pilar como falsa, apresenta-se como saída para um fim doloroso, inevitável. As

reflexões sobre a desgraça que o atinge aparecem com freqüência nos monólogos de d.

Amélia, como se Lula já não tivesse consciência do que lhe ocorre ou não se deixasse atingir

pelos fatos:

55 Alguns casos reais parecem servir de modelo para José Lins construir seus personagens, especialmente os daqueles que se mostram inadequados para tratar com os engenhos. Vejamos o que o romancista diz do Dr. Aprígio, apresentado aqui como pai do poeta Augusto dos Anjos: “A morte seria íntima da poesia do meu querido Augusto. Lendo-o, era o Pau d’Arco o que eu lia, era o pai sem força para botar para diante as safras, era o engenho atrasado, com o senhor sabendo muito dos seus livros sem saber muito da vida. O mestre Dr. Aprígio – um desajustado como o filho – o pai morto naquela madrugada de 13 de janeiro.” Cf. REGO, José Lins do. Augusto dos Anjos. In_ . O cravo de Mozart é eterno: Crônicas e ensaios. Org. Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 336-338.

123

O Coronel Lula de Holanda, na Segunda Parte, é retratado também em desgraça, mas, nesse caso, o narrador assimila muito mais as reflexões de Dona Amélia. Essa comparação proporciona um resultado capital: Lula de Holanda não tem mais condições de refletir, porque cada vez mais se absorve na religião, o que lhe parece solucionar os problemas e dar-lhe segurança para desprezar o mundo.56

Na sua obsessão religiosa e debilitado pela doença, o coronel oscila entre essa

frágil consciência do mundo ao redor e a completa alienação, que culmina com estados

delirantes. Numa noite, quando a família já se agasalhava para dormir, aparece a canalha do

Pilar para serrar a velha, uma forma regional de zombar de moças no caritó. Lula se ergue de

clavinote na mão, mas a canalha foge a tempo e ele cai com todo o corpo em um ataque de

epilepsia. O narrador expõe o contraste do conflito trágico cerrado entre o homem e a

natureza. É pelo ângulo de visão de Amélia que tomamos conhecimento da cena dolorosa:

A lua iluminava o curral, a casa do engenho, as cajazeiras cheirosas. Era uma noite maravilhosa de céu mais limpo que céu de verão. Fazia frio, e Lula, de camisão de dormir, parecia-lhe uma figura penada. Teve naquele instante dó de seu marido.57

O foco da narrativa volta-se para o sofrimento de Lula, que torna a si do

desmaio, mas mergulha em seu delírio religioso:

- Amélia, muito mais sofreu o Salvador. Amanhã vai ele subir para a cruz, amanhã ele vai, hein, sentir o coração varado pela lança, vai ele, hein, Amélia, morrer pelo mundo.58

Amélia conserva a consciência clara do destino daquela família. Ela aparece

como antípoda da consciência de Neném, Olívia e Lula. Por isso, assume o comando que, na

sociedade patriarcal representada no enredo, cabe ao marido. Diga-se, de passagem, que o

ponto de vista das esposas dos três protagonistas é o de consciências que pressentem o

56 GOUVEIA, op. cit., p. 84 57 REGO, FM, p. 294. 58 REGO, FM, p. 295.

124

trágico, que sabem mas não podem alterar o curso dos acontecimentos. No caso de Adriana,

mulher de Vitorino, e Amélia, mulher de Lula, ocorre uma inversão de papéis: elas assumem

o sustento da casa.

3.3.4 O patriarcado e a ruína de seu Lula

Há um processo de redução do nome do protagonista que corresponde a sua

gradativa perda de poder. Luís César de Holanda Chacon transforma-se em Lula de Holanda,

seu Lula e simplesmente Lula, como gosta de chamar Vitorino, com deboche. Curiosamente,

o título da Primeira Parte inclui o nome e a profissão do protagonista: Amaro marcha para um

fim trágico mas, pela própria origem social, não seria verossímil que sofresse perdas no nome.

Na Terceira Parte, intitulada “O Capitão Vitorino”, referida a um homem de bem já decaído,

destaca-se, não o sobrenome indicativo da origem do protagonista, mas seu nome e a patente

de capitão, comprada para impor respeito. A Segunda Parte, por sua vez, exibe um título que

se refere não ao nome do proprietário, mas à coisa possuída. Opera-se uma mudança de

enfoque, como a assinalar que, uma vez decaído o nome do senhor, agora a narrativa passa a

tratar de sua conseqüência, qual seja, a queda do engenho. Aliás, desde o primeiro momento,

em visita ao Santa Fé, o protagonista é tratado por Lula pelo futuro sogro, sem nenhuma

conotação pejorativa, mas que sugere premonição. Essas observações iniciais são válidas pois,

numa sociedade patriarcal, escravocrata, o nome da família é um distintivo social importante.

A troca do nome pela alcunha ganha sentido como índice da decadência patriarcal do

protagonista, à medida que ela se impõe no lugar do nome completo. Vitorino passa por

processo semelhante, com o acréscimo da chacota: uma certa voz coletiva o trata por Papa-

Rabo, quando sua expectativa é ser tratado por capitão.

125

Importa lembrar que a figura de José Paulino paira soberana, o que ajuda a

validar a nossa hipótese de que o conflito trágico cerrado aplica-se à análise de FM, pois nela

não se observa o colapso da totalidade, mas de uma parte que a compõe. Assim como seu

proprietário, o Santa Rosa e muitos outros engenhos permanecem de pé. A queda de Lula e

de seu engenho são fatos indissociáveis. Não se trata, aqui, ainda, da derrocada motivada pelo

surgimento das modernas usinas, cujo tempo externo de sua predominância não coincide com

o tempo interno de FM, mas da representação da crise do patriarcado rural como um momento

dessa derrocada.

As três famílias em questão não se perpetuam nas gerações seguintes: Neném,

Luís e Marta não constituem novas famílias. Lula, Amaro e Vitorino, embora ocupem posição

social diversa, constituem o mesmo modelo de família, cujo chefe vive alguma forma de crise.

Luís, fazendo carreira na Marinha, contrasta com a insanidade do velho, é o novo, o saudável,

o que vive um projeto de vida, e contrasta também com o enclausuramento e a ausência de

perspectiva de Marta e Neném. Ele não dará continuidade a Vitorino. Será outro em outro

universo. As filhas não reproduzirão as mães. As três famílias não se renovarão.

Renegando a política e refugiando-se na religião, Lula esboça uma visão

idealizada do passado que, com suas instituições, forjou as bases históricas do patriarcalismo:

“Não ia com a República. Apesar do 13 de maio, apesar de ter sido roubado por João Alfredo,

ele não se esquecia do imperador. Regime era aquele, de homens sérios, de gente de

vergonha”.59 Mas, ao renegar a República, Lula está renegando os ideais de seu pai, que

figura na sua memória como herói. A Revolução Praieira60, da qual participara Antônio

Chacon, pai de Lula, ao lado de Nunes Machado, fora impulsionada por aspirações liberais e

federalistas, notadamente o voto livre e universal, liberdade de expressão, direito ao trabalho e

extinção do Poder Moderador, ideais opostos aos defendidos pelo proprietário do Santa Fé.

59 REGO, FM., p. 283.

126

Parece não lhe incomodar a posição tomada pelo pai, mas importa a bravura com que o fez, o

que garante ao filho uma ascendência que o honra.

Consoante Victor Nunes Leal61, a política de compromisso típica do

coronelismo da Primeira República pressupõe certo grau de fraqueza tanto do poder privado

decadente, quanto do poder público, embora este venha gradativamente se fortalecendo. Em

FM, já o afirmamos, José Paulino ainda está no apogeu. Mas, como todos os coronéis, precisa

dos votos para manter sua influência perante o Estado. Este, por sua vez, retribui o apoio

daqueles, com favores e cargos políticos, ao passo que tenta impor-se perante grupos rebeldes

como o cangaço.

Na verdade, o coronelismo, um sintoma da decadência do patriarcado rural,

surge da dependência crescente dos senhores de terra das benesses do poder público, não só

para manter seus privilégios, como para reproduzir os vínculos de dependência e

solidariedade com as camadas populares. [...] Nasce o coronelismo da acomodação do poder

privado com o fortalecimento progressivo do poder público.62

A recusa dessa política, verdadeira regra que vincula os coronéis à oligarquia

que comanda o Estado, somada ao saudosismo de Lula para com o velho patriarcalismo, que o

isola de sua classe, que o leva a abrir mão dos meios mais seguros contra a decadência,

contribui sobremaneira para acelerar sua falência, apesar dos favores pessoais oferecidos por

60 AMARAL AZEVEDO, Antônio Carlos do. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 400. 61 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 4 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. p. 252. 62 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. p. 128-129.

127

José Paulino. Vale ressaltar que na hierarquia da própria classe, o senhor do Santa Rosa está

no posto mais alto, exercendo liderança política em sua região, o que o leva a proteger o

vizinho, buscando alcançar deste compromissos eleitorais.

A defesa que Lula faz do nome da família é intransigente. Chega a abandonar

uma festa na casa de José Paulino após uma discussão com Vitorino (a primeira das duas

únicas em que os protagonistas se enfrentam diretamente), pois este se refere de forma

debochada a seus parentes, participantes das lutas de 1848. Da mesma forma, coloca-se

irredutivelmente contra o casamento de Neném com o promotor do Pilar, filho de um alfaiate

da Paraíba: “Seu Lula, como um alucinado, não parava de falar. Preferia ver a filha estendida

num caixão a se casar com um tipo à-toa, sem família”.63 A partir de então, Neném fecha-se

no seu silêncio trágico e passa a cuidar apenas do jardim da casa-grande. É patética a cena em

que Lula mata uma besta a tiros à noite, supondo ser o promotor que viera raptar Neném. Vale

lembrar que, como filho de alfaiate, Luís Viana, ao assumir a função de promotor ascende

socialmente, ao passo que Lula, em trajetória inversa, é que está em franca decadência com

seu engenho. Mas Amélia e Neném não questionam a tutela do pater familias. E a moça fica

sem casar pois, na opinião do pai, nenhum homem na região do Pilar está à sua altura.

Em FM, os conflitos aparecem, com freqüência, no monólogo interior dos

personagens. Mas o confronto direto, com o registro do diálogo, é sempre decisivo. Lula

convoca Amaro para saber das ofensas que, segundo o negro Floripes, o seleiro anda fazendo

a sua família. A discussão é tensa. Apesar da surdez e da demência, Lula grita e se impõe

como proprietário e patriarca ofendido. Como quem procura colocar cada sujeito no seu lugar

hierárquico, pergunta diversas vezes a Amaro quem manda no engenho.64 De modo

significativo, a narrativa procura enfatizar as posições hierárquicas dos personagens em cena,

embora a irredutibilidade seja traço comum aos dois: “O sol iluminava as barbas brancas do

63 REGO, FM, p. 271. 64 REGO, FM, p. 190-193

128

velho. Ele tinha naquele momento um tamanho de gigante, em cima dos batentes de pedra. Lá

embaixo estava o mestre José Amaro que falara de sua filha, a d. Neném.”65 Lula dá ordens a

Amaro para que procure outro engenho, o que complica ainda mais o drama vivido pelo

mestre. Gilberto Freire.66 chama a atenção para a abrangência do poder tutelar do senhor

patriarcal: essa tutela diz respeito a uma unicidade que engloba a família, a economia, e

política e a socialidade. A permanência de Amaro no Santa Fé feria a honra do proprietário e

ameaçava o seu comando.

Uma outra cena, baseada no discurso direto e igualmente decisiva, é a da

invasão do Santa Fé por Antônio Silvino. Aqui os papéis se invertem: quem dá ordens não é o

senhor de engenho, mas o que está à margem da lei. A humilhação só não é maior porque José

Paulino, semelhante a um deus ex maquina, aparece para negociar com o cangaceiro. Este se

rende aos argumentos do senhor do Santa Rosa, mas antes já revirara tudo e destruíra o piano,

expondo a fragilidade do Santa Fé. Lula desmaia num ataque de epilepsia e Amélia, numa

cena que mistura terror, humilhação e ironia trágica, toca piano pela última vez, pressionada

por Antônio Silvino, aquele mesmo piano que ela tocara no tempo da mocidade, no apogeu do

Santa Fé. Depois da execução musical, o instrumento e outros objetos de valor são destruídos

pelos cangaceiros, que procuram dinheiro supostamente escondido por Lula. Não acham nada.

A ruína do coronel é maior que se imaginava. Aqui, o dialogismo67 motiva a cena trágica: são

conhecidos os comentários acerca da ruína do Santa Fé, mas neles Antônio Silvino não

acredita e só constata a sua veracidade após os estragos realizados na casa-grande. A ação do

cangaceiro, inicialmente violenta e, por fim, conciliatória ante a intervenção manipuladora do

coronel José Paulino, relativiza a voz popular, como a de Amaro, que o considera um

justiceiro, um vingador, um homem que dá ordens aos poderosos. Antônio Silvino exibe a

65 REGO, FM., p. 191-192. 66 FREYRE, op. cit., p. 44. 67 BAKTHIN, 1997, p. 241-272.

129

mesma violência da polícia e se mostra igualmente submetido ao poder dos coronéis,

sobretudo os que são amigos. A cena, como tantas outras que envolvem tragicidade, passa-se

à noite.

A função de José Paulino na cena é a que ele desempenha reiteradas vezes na

narrativa: ainda no auge de seu poder, procura reforçar a política de compromissos típica dos

coronéis. Ao servir a Lula, almeja garantir a permanência do vizinho na sua esfera de

influência, como forma de pagamento pelo favor prestado.

A destruição do piano representa a derrocada final dos símbolos de distinção de

que seu Lula se cercara durante anos. Os cavalos ruços do cabriolé já haviam sido substituídos

por outros de raça inferior, e o próprio cabriolé, cujas campainhas alegres contrastavam com o

aspecto sombrio de seus ocupantes, se desgastara com o tempo, não servia mais para as

viagens ao Pilar nem para expor a distinção daquela família. As jóias iam escasseando, à

medida que Lula mandava trocá-las por dinheiro no Recife. A ruína do protagonista e de seus

bens parece caminhar em paralelo: Lula adoece e envelhece, o cabriolé se desgasta, o piano é

abandonado até ser destruído, as jóias minguam, a jitirana e as flores invadem o bueiro do

Santa Fé e o mata-pasto cobre os campos abandonados. Mas, enquanto pode, o coronel

mantém os elementos decorativos de sua falsa opulência. O status ainda importa, o que

contradiz a excessiva devoção religiosa do protagonista.

A cena de violência na casa-grande é humilhante para Lula de Holanda em

vários aspectos. Um homem de procedência tem sua casa invadida por um homem fora da lei

e é defendido por um ridículo, de condição inferior. Vitorino alterca com o cangaceiro, é

espancado e sai contando vantagens. Por fim, o impasse é superado pela intervenção do

coronel José Paulino, cujos favores já incomodam profundamente o velho ofendido.

130

3.3.5 O fim trágico de seu Lula

Uma leitura isolada de FM não nos autoriza a ver nesse romance um painel da

ruína dos senhores de engenho motivada pela modernização da sociedade patriarcal agrária,

pela chegada da usina moderna e outros fatores de ordem política e econômica. É evidente

que sinais isolados da chegada de novos tempos despontam aqui e ali. O mestre Amaro já

sofre a concorrência da sela industrial, o trem já corta o território do Pilar, o jornal da capital

já chega à casa-grande do Santa Fé. Mas esses elementos modernos não são dominantes, não

alteram o quadro arcaico que ainda se desenha na narrativa, nem estão ao alcance de parcelas

mais significativas da população que compõe o universo diegético. A comunicação se faz,

quase exclusivamente, pela via da oralidade e veicula valores, lendas e superstições de um

universo ainda relativamente isolado e fechado em si mesmo. Assim, a narrativa não

privilegia uma perspectiva panorâmica, que descreve exaustivamente a paisagem exterior e

suas relações com universos mais afastados. Pelo contrário, privilegia a cena, o monólogo

interior e o conflito incessante de vozes, exceção feita à Segunda Parte, quase inteiramente

dominada pelo sumário narrativo. Os ricos detalhes da paisagem aparecem, inúmeras vezes

em função contrastiva em relação à circunstância vivida pelos personagens. A lógica narrativa

que põe em primeiro plano o homem em suas relações imediatas dá ênfase à ação, ao caráter

e, conseqüentemente, à função de erros e falhas trágicas, num enredo que tem por desfecho a

desgraça de uns e a falta de saída para outros.

Gilda de Mello e Souza68, analisando alguns aspectos da peça A Moratória69,

de Jorge Andrade, afirma que o moderno teatro brasileiro realiza, no Sul, a mesma tarefa que

os romancistas da memória realizam no Norte, qual seja, a representação da crise da

68 SOUZA, op. cit., p. 109-116. 69 ANDRADE, Jorge. A Moratória. In _. Marta, a Árvore e o Relógio. 2 ed. Perspectiva: São Paulo, 1986, p. 117-187.

131

sociedade patriarcal. Autores como Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida teriam

encontrado na linguagem do teatro um meio mais adequado para levar ao público o súbito

colapso dos cafeicultores tradicionais, enquanto a relativa morosidade do naufrágio dos

senhores de engenho do Norte seria matéria mais adequada ao romance. A autora do ensaio

faz menção a José Lins do Rego, sem citar obras. Gostaríamos de ressaltar, apenas, sem entrar

diretamente no mérito dessa observação que vincula ao gênero literário determinada matéria,

que o aspecto trágico das narrativas do autor paraibano as aproxima, não só pelos conteúdos

referenciais, mas em parte pela forma, como a construção dos personagens, do texto de Jorge

Andrade. Sem pretender esgotar a questão, passaremos a enumerar algumas semelhanças e

diferenças entre os representantes das famílias que protagonizam a peça e o romance.

Em A Moratória, tragédia construída em dois planos simultâneos, o do passado

e o do presente, Joaquim, um cafeicultor do interior paulista, vive a esperança de recuperar na

justiça a fazenda entregue aos credores como pagamento de dívidas insolúveis. O contexto da

ação é a crise do café, a Revolução de 30 e a ruína de muitos fazendeiros. Mas Joaquim

comete erros, como a venda da colheita a prazo, que são decisivos para o seu fim trágico. Em

todo o caso, a crise é geral e atinge a maioria dos cafeicultores, o que não ocorre em FM, que

focaliza a decadência do engenho Santa Fé em perspectiva diacrônica – passado e presente –

vinculada a outros conflitos limitados àquele universo.

O golpe econômico que desencadeia a ação da peça é súbito e condiciona, a

partir de então, o comportamento dos personagens, absorvidos pelo drama da decadência. A

vida para Joaquim só faz sentido na terra perdida, que passa a significar para ele uma espécie

de terra prometida. Sua vinculação com a propriedade não é apenas patrimonial, mas afetiva.

Lula de Holanda não tem vínculo afetivo nenhum com a terra nem afinidade com o açúcar.

Chega ao engenho já homem formado e se volta para o passado deixado no Recife. Sua

relação com a terra é apenas uma relação de propriedade. Semelhanças e diferenças

132

aproximam e afastam os dois protagonistas: ambos mantém o orgulho de classe, acreditam

que ainda são o que eram e, por isso, defendem a manutenção das aparências. Distante da

terra, morando na cidade, Joaquim está privado de ação por ter perdido a propriedade. Lula

tem a posse de seu engenho, mas, sem ação, pode vir a perdê-lo, resvalando para a miséria.

Em A Moratória, um elemento da natureza – as formigas – simboliza ameaça e

destruição. Mas Joaquim age contra elas, atacando-as com água quente. Em FM, o mata-pasto

e a jitirana tomam conta do Santa Fé à revelia de seu Lula, que não esboça reação nenhuma.

Enquanto Lula, mergulhado nas rezas, ignora o que ocorre ao seu redor, Joaquim, após ser

expulso da fazenda, leva consigo um galho de jabuticabeira, que simboliza, para ele, promessa

de retorno. Nas duas tramas, o verde da natureza assume simbologia oposta: o mata-pasto e a

jitirana trazem destruição; o galho da jabuticabeira, enquanto não seca, representa esperança.

Se, por um lado, o contexto sócio-econômico tem maior peso como

causalidade trágica na peça, nas duas obras o caráter e a ação dos personagens são decisivos

na configuração dramática e no desfecho da trama. A culpabilização dos protagonistas pelo

fracasso de suas ações é focalizada de modo diverso: em A Moratória, ocorre no seio da

própria família; em FM, é mais freqüente nas vozes exteriores à casa-grande do Santa Fé.

Algumas semelhanças aproximam as mulheres, especialmente Lucília e

Amélia. Na peça, é a filha do patriarca quem sustenta a casa trabalhando na máquina de

costura. Lucília é realista, mas ao perceber que desfazer as ilusões do pai é tirar-lhe a vida,

prefere mantê-lo na ilusão. Amélia tem consciência da tragédia que a cerca. Sem cumprir sua

função reprodutora tão valorizada na sociedade patriarcal – perde um filho homem e decai

perante o marido – resolve agir, às escondidas de Lula, assumindo funções que seriam do

chefe de família. Toma decisões sobre o funcionamento do engenho e vende ovos para prover

a casa-grande do necessário.

133

Ela nunca, em sua vida, tivera tempo para pensar naquelas coisas. Agora só ela pensava no Santa Fé. Lula parecia um homem que não tinha tempo para olhar o engenho. E pelas suas mãos começavam a passar as contas dos trabalhadores.70

Só Amélia parece compreender, em seus monólogos, a gravidade do que se

passa em sua família. O último capítulo da Segunda Parte encerra-se com um desses

reconhecimentos71: Amélia recebe a notícia da morte de Joaquina, uma moradora do Santa Fé,

escuta de longe o pranto na casa da falecida, mas sente que em sua casa há coisa pior que a

morte, que não há vozes que possam aliviar as dores no coração dos seus. Pressente o fim do

Santa Fé. Encerra-se a Segunda Parte com cena patética.

Em outra situação de reconhecimento, o narrador evidencia, mais uma vez, o

contraste entre a natureza e o sofrimento humano, configurando o conflito trágico cerrado

que perpassa a narrativa:

A tarde macia, com céu azul, e o sol morno cobrindo a verdura da várzea. O gado do engenho vinha chegando para o curral. Pobre gado, meia dúzia de reses. O moleque que o pastoreava gritava para os bois velhos. Naquele silêncio, naquela tarde tão calma, d. Amélia via que nada mais podia fazer. Ficou ali até que as sombras fossem tomando conta das coisas. A noite começava a cobrir tudo.72

Embora prevaleça o contraste entre homem e natureza em toda a narrativa,

nesta passagem o narrador lança mão da simbologia das sombras que cobrem tudo, enquanto

na consciência do personagem revela-se a verdade trágica, sempre tarde demais para que

possa ser modificada.

Há importantes semelhanças entre a trajetória do mestre Amaro e Lula de

Holanda. Ambos são patriarcas decadentes em relação aos genitores. Não tiveram filhos

homens – o que os marca profundamente - mas filhas problemáticas; ambos são doentes,

70 REGO, FM., p. 288 71 ARISTÓTELES, op. cit., p. 61-63. 72 REGO, FM, p. 356.

134

irredutíveis em sua forma de pensar, porém fracos na ação. Acumulam perdas até chegarem a

um ponto sem volta, a um desfecho trágico.

Ironicamente, o proprietário está, na medida em que decai, cada vez mais

próximo da condição social que tanto abomina. Por outro lado, quanto mais reza mais se

aprofunda sua decadência. Essa ironia trágica se realiza como peripécia73 na trajetória de

Lula e já se acha no nome do seu engenho: Santa Fé. Já em Amaro a ironia trágica está em

não ter crença definida e ser vítima de uma superstição popular. Ele seria o lobisomem, filho

do diabo. Por fim, é libertado da cadeia, não pelo seu herói – o Capitão Antônio Silvino –

mas graças ao habeas-corpus impetrado por Vitorino e após a intervenção política de José

Paulino, o homem que ele mais odeia.

Em Vitorino, patriarca decaído, é a aparência que esconde o que há de herói em

seu caráter: velho, da cara raspada, montado em uma égua magra. Mesmo quando conquista

certo respeito, encontra resistência entre os representantes das elites: para José Paulino, não é

homem de regular; para d. Inês, mulher do prefeito, é homem de veneta; para o vigário, é um

inocente. O único consenso entre essas vozes é de que não é mau, mas é homem que não deve

ser levado a sério. A construção dialógica da narrativa se estende também ao ponto de vista

de personagens secundários.

Lula e Amaro vão acumulando perdas comparáveis ao longo de suas

trajetórias: isolamento, doença, solidão, ruína. Amaro tem consciência do trágico, quando este

é iminente; Lula o camufla; e Vitorino não o percebe ou não reflete sobre ele: acumula

pequenas vitórias pessoais que não podem ter grande alcance. Por isso, permanece no

conflito, no impasse, na ilusão de que o resolve.

73 ARISTÓTELES., op. cit., p. 61-63.

135

A última aparição de Lula em cena, passando no cabriolé em frente à casa de

Vitorino, retoma um elemento estruturante como o dialogismo e se mantém nos marcos do

conflito trágico cerrado:

Vitorino viu no carro o velho sentado com a família. O senhor de engenho não lhe tirou o chapéu, mas ouviu bem a voz de d. Amélia, dando-lhe boa noite. O cachorro do Lula pensava que ele fosse um camumbembe qualquer. Botara-o uma vez fora de sua casa. Aquilo era um leseira de marca. Trepado naquele carro, e com o cercado vazio, as várzeas no mato, o engenho parado. A lua cobria os arvoredos que o vento brando sacudia de leve. Naquele silêncio, ouvia as campainhas do cabriolé, de longe, tinindo, enquanto os cachorros começavam a latir para a lua. Cantavam os galos no poleiro de sinhá Adriana.74

Era a primeira vez que se viam, depois que Vitorino tentara evitar a ação

violenta de Antônio Silvino na casa-grande do Santa Fé. Persiste a irredutibilidade dos

protagonistas, seja na ação, seja no discurso. Mais uma vez, o contraste entre as tensões

humanas e a serenidade da natureza é recorrente, sugerindo um conflito que se limita à parte,

não à totalidade.

A queda do mestre José Amaro se liga à queda de Lula de Holanda e ambos à

do engenho Santa Fé. Este vai à ruína motivada pelos erros de seu proprietário, já apontados.

E estas causas particulares se ligam ao lento processo de transformações que, como pano de

fundo, atuam no romance e que se iniciam com a queda do patriarcalismo, a Lei Áurea, a

presença do cangaço, a crise da República velha e do coronelismo. Cabe então a pergunta: por

que o Santa Rosa permanece de pé em FM, desafiando o título da obra? Ora, seria

inverossímil literariamente e impossível historicamente que os engenhos ruíssem todos de

uma só vez. Natural seria que tombassem aos golpes das grandes transformações primeiro

aqueles que se sustentassem em bases frágeis, como o Santa Fé. Lula é uma causa imediata da

queda trágica desse engenho. A história se encarregaria do resto. Não custa nada lembrar que

74 REGO, FM, p. 399.

136

a ruína do Santa Rosa ocupa a narrativa de Bangüê, mas situa-se cronologicamente após a do

Santa Fé, estabelecendo-se coerência temporal entre esse romance e FM. Vale ressaltar que o

conflito trágico cerrado, como representação de formas arcaicas em decadência perante

formas novas que se impõem, tem respaldo no conjunto da obra de José Lins do Rego,

particularmente naquelas que compõem o chamado ciclo da cana-de-açúcar.

O cangaço e o mundo arcaico dos engenhos, como elementos externos

vencidos historicamente na primeira metade do século XX, assumem funcionalidade épica e

dramática na narrativa, não só porque recriam a realidade, mas porque são decisivos no

desencadeamento dos conflitos que apontam para o trágico. Os elementos aproveitados da

série social e histórica apóiam, assim, o entrecho. As instituições agonizam: o poder está

dividido entre o cangaço, os coronéis e o governo, ou melhor, entre a força, o dinheiro e a lei.

Como o diz Antonio Candido75, esses elementos externos tornam-se internos e importam mais

pelo papel que desempenham na estrutura que pela significação em si.

3.4 O Capitão Vitorino Carneiro da Cunha

3.4.1 Ação e caráter de Vitorino

A Primeira Parte da narrativa de FM, centrada em José Amaro e em sua casa,

segue o ritmo da psicologia e da ação desse protagonista, com o predomínio do monólogo

interior. Nos últimos capítulos – quando o mestre passa a ser identificado com o lobisomem,

sua filha Marta enlouquece e Lula de Holanda lhe dá um prazo para que se retire do Santa Fé

– o drama se exterioriza em fatos mais dinâmicos, acelerando-se consideravelmente o ritmo

das ações.

75 CANDIDO, 2000, p. 4.

137

Na Segunda Parte, com o foco voltado para Lula de Holanda e o Santa Fé,

introduz-se um flashback – uma suspensão da seqüência dos fatos da ação presente e

conseqüente sumário76 da fundação e apogeu do engenho para estabelecer-se, desse modo, o

contraste entre o passado e o presente, a glória e a ruína do empreendimento herdado por seu

Lula.

Na Terceira Parte, aproxima-se o fim da trama, predomina a cena77 e os

conflitos ganham tensão máxima. Em posição de destaque e sob focalização externa, o

capitão Vitorino Carneiro da Cunha acelera, com seus enfrentamentos, o ritmo da ação,

tornando-a mais contundente, decisiva, em contraste com o andamento moderado,

psicológico, dos outros dois protagonistas. Os conflitos, aparentemente isolados, cruzam seus

fios, tecem a trama do romance e Vitorino toma parte em todos eles. No que diz respeito ao

enfoque desse protagonista, o narrador só o altera já no final do último capítulo quando,

mergulhado em longo monólogo, o capitão delira com sua chegada ao poder e as inúmeras

tarefas que tem pela frente.

Não resta dúvida que o dado memorialista da ficção de José Lins do Rego é

fundamental na sua constituição, assim como seu estilo é, aparentemente, espontâneo. Mas

personagens, situações e linguagem não existem a priori acabados em literatura. O trabalho

do escritor não é válido apenas por se manter fiel às sugestões da realidade e da memória. Não

se pode negar que José Lins se utiliza de elementos autobiográficos, pois os romances do

ciclo são representações, pelo menos em parte, do que ficou em sua memória. Deve-se,

porém, atentar para o fato de que a linguagem literária não é espontânea, mas, nesse caso,

76 FRIEDMAN, op. cit., p. 7. 77 Ibid., p. 12-13.

138

estilização de uma linguagem espontânea.78 O ofício não consiste em enquadrar a realidade e

sua linguagem na literatura, o que daria a esta o estatuto de documento, mas, como arte,

recriar o real e a linguagem social.

Vitorino Carneiro da Cunha é personagem do mundo de José Lins e, como tal,

aparece no livro de memórias Meus verdes anos. Trata-se de um velho tido como bestalhão,

que se considera tão importante quanto os senhores da várzea, sendo, na verdade, um ex-

proprietário de terras decaído, agora morando nos domínios do Engenho Maçangana. No

plano da memória e no da ficção, é um homem sem limites e domínio na língua, sobretudo

quando alguém o trata pelo apelido de Papa-Rabo, o que o faz reagir com impropérios e

desaforos. Noutros aspectos, várias coincidências nos dois planos: a cara gorda e raspada, a

burra magra que lhe serve de montaria, a tabica com que açoita os moleques, a coragem para

enfrentar qualquer um e o sentimento de oposição, em política. Senhor de engenho é, para ele,

uma casta desprezível. As opiniões definitivas já fazem parte do caráter do personagem real e

são marcas decisivas do protagonista de FM.

Mas literatura não é cópia da realidade. A grandeza dos ideais de Vitorino é

obra da ficção. O narrador combina os dados da memória com os da criação e, de forma

original, dá vida a um novo personagem, dotando-o de ações, valores e sentimentos não

vividos na existência real. No que concerne aos dados biográficos, aproveita-os e os

desenvolve, fazendo-os aparecer em situações ficcionais. Antonio Candido insiste em que “...

78 Apesar de enxergar naturalidade e espontaneidade no estilo próprio de José Lins e de afirmar que, nele, pouco importa a composição, pois o que interessa é a história que conta, José Américo de Almeida faz referência à criação de uma expressão, o que, de certa forma, escapa, no nosso entender, aos limites da espontaneidade: “Pegou-a na boca do povo com toda a sua frescura e modelou-a. Não é, contudo, a gíria: é o linguajar do homem comum, a fala da sala e da cozinha, do engenho e da cidade. Se não tem disciplina, se foge, por vezes, ao controle gramatical, à rigidez da sintaxe, é, prodigiosamente, exata. É rica de propriedade e precisão. Trabalhada, não deixa de ser agradável e musical com seu ritmo de vozes soltas, dando a idéia da presença de alguma coisa que está viva, bulindo, diante de nós.” Cf. ALMEIDA, José Américo de. O contador de histórias. In __ COUTINHO; CASTRO (org.). op. cit., p. 70-75.

139

o princípio que rege o aproveitamento do real é o da modificação, seja por acréscimo, seja por

deformação de pequenas sementes sugestivas.”79

Em FM, dada a sua articulação dialógica, os personagens são não raro

introduzidos por outros. Na primeira parte, conhecemos Lula de Holanda pela voz do mestre

Amaro, que também esboça, a princípio, uma opinião um tanto desfavorável do capitão

Vitorino, seu compadre:

Sempre lhe causava mal-estar aquela companhia de um pobre homem que não se dava a respeito. Era demais aquela vida sem rumo, aquele andar de um lado para o outro, sem fazer nada, sem cuidar de coisa nenhuma.80

Vitorino, apesar de certo ranço conservador e do mundo arcaico que habita,

atua como um verdadeiro idealista moderno. Defende os mais humildes, ataca os senhores de

engenho e sonha com uma ordem onde todos são iguais perante a lei. Seu idealismo ingênuo

levou muitos críticos a compará-lo a D. Quixote. Mas é preciso considerar as diferenças de

caráter, de finalidades e de contextos. Vitorino chega, de fato, a lembrar D. Quixote, mas,

enquanto o herói espanhol luta pelo restabelecimento da ordem feudal – situada no passado –

o herói nordestino acena para uma sociedade moderna, futura, baseada no império da lei e no

fim dos privilégios. O protagonista tem patente de capitão e nome forte, que sugerem força e

nobreza. Na verdade, como proprietário decadente, compra esse título para se fazer respeitar.

Jamais quer ser confundido com um camumbembe. Por isso, exige o tratamento hierárquico.

Também ele está em decadência porque é de família senhoril e cai lentamente para o povo. É uma ponte entre um estrato social e outro. Na sua conduta, porém, só se sentem a glória e a supremacia. A paranóia dá escala de grandeza a seus atos. O delírio de autovalorização é a tábua de salvação de Vitorino.81

79 CANDIDO, 1998. p. 67. 80 REGO, FM, p. 70. 81 CANDIDO. Antonio. Um romancista da decadência. In _ COUTINHO; CASTRO (org.), op. cit., p. 395.

140

Expõe-se, desse modo, uma das contradições vividas pelo personagem que,

diga-se de passagem, não se traduzem em conflitos interiores como os do mestre Amaro: ao

mesmo tempo em que combate a ordem vigente, quer ser reconhecido nessa mesma ordem.

Quer recuperar posições sociais perdidas, enquanto seu antagonista, Lula de Holanda, quer

esconder que as perdeu.

Vale a pena mencionar duas acepções da palavra capitão, entre outras que

constam do verbete do Dicionário Aurélio: além de dirigente de partido ou facção política, a

palavra designa também uma das principais personagens cômicas da commedia dell’arte, cujo

comportamento é autoritário e ridículo e representa o poder militar82. Vitorino é o Papa-Rabo,

aquele que não é levado a sério nem por moleques nem por adultos. Suas atitudes e reações

são motivo de risada geral. E isso desperta a piedade das pessoas que lhe são mais próximas,

como D. Adriana, sua esposa, e o mestre Amaro, seu compadre. Quando se sente ultrajado,

recorre ao punhal e, sozinho, enfrenta até mesmo a volante do Tenente Maurício. Mas, ao

mesmo tempo em que é cômico, é sério. É um homem branco e representa a oposição no

Pilar. Luta contra o poder local, cujas figuras centrais são o coronel José Paulino, o prefeito

Quinca Napoleão, o delegado José Medeiros e o tenente Maurício. Sua esperança é a eleição

do coronel Rego Barros à presidência do Estado, o que, na sua opinião, representaria uma

nova era, em que prevaleceriam a lei, a ordem e a justiça. Com Rego Barros, os senhores de

engenho perderiam seus privilégios.83

.82 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio (Dicionário eletrônico). 3. versão. Nova Fronteira, 2000. 83 Internalizada na narrativa de FM, a candidatura Rego Barros situa o tempo interno da trama no ano de 1911 e nas inquietações políticas que se espalhavam pelo Nordeste: “O movimento da “Salvação” estendeu-se à Paraíba, estimulado pelo apoio que lhe dava o Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca. Surgiu a candidatura do Coronel do Exército Rego Barros, ao Governo do Estado, que agitou os elementos descontentes com a situação dominante. Realizaram-se comícios e desenvolveram intensa propaganda, mas ao fim de uns meses de agitação tudo serenou com o regresso daquele militar para o Rio, desistindo da luta eleitoral.” Cf. LEAL, 1989, p. 224.

141

Embora se oponha a Lula de Holanda, vai ao Santa Fé defendê-lo, quando

Antônio Silvino invade a casa-grande e exige do coronel o ouro escondido. Sua ação de

enfrentamento do temido cangaceiro é vista como demonstração de coragem e valentia.

Homem determinado a agir, não perde tempo com introspecções. Nesse sentido, sua

construção se aproxima à dos heróis clássicos, cujo caráter se revela, via de regra, na ação.

Seus gestos de coragem e bravura se multiplicam: defende o mestre Amaro na questão contra

Lula de Holanda; enfrenta a volante do tenente Maurício; resiste quanto pode à prisão,

vociferando sem parar; impetra habeas-corpus pela soltura do compadre, do cego Torquato e

do negro Passarinho, presos e acusados de colaborar com o cangaço e vai aos jornais

denunciar as arbitrariedades da polícia, como motivadas por interesses político-eleitorais

contrários à oposição.

Recorremos, aqui, mais uma vez, à necessária simplificação que Antonio

Candido observa na construção de personagens do romance. O tragicômico Vitorino tenta se

impor pela patente de capitão, pela tabica, pelo punhal, e pelas bravatas. São essas as suas

armas. Seu discurso tem marcas que, reiteradas no decorrer da narrativa, são facilmente

reconhecidas. Muitas vezes, referindo-se a si mesmo, emprega a terceira pessoa em sentenças

como: Vitorino Carneiro da Cunha não leva grito para casa. Esses elementos, sejam objetos,

gestos ou cacoetes, dão-nos a nítida distinção do personagem em relação aos outros e, dado o

dialogismo que estrutura a trama, fixam os contrastes e as oposições entre eles.

A definição tragicômica de Vitorino pode ser observada nesses elementos: o

punhal e a tabica são índices de heroísmo e de seriedade e ele procura mantê-los consigo,

mesmo quando preso pelo tenente Maurício, como a afirmar o aspecto heróico de sua

personalidade. A aparência física, os rompantes e a égua rudada derrubam o herói das alturas,

tornando-o motivo para a chacota. A certa altura, o capitão troca a égua por uma burra, fato

142

que sinaliza a permanência do caráter tragicômico do personagem. Podemos ler essa mudança

como indicativa da tragédia da condição que não se altera.

A recorrência desses elementos não só tem a função de caracterizar o

personagem, mas de colocá-lo em contraste com o modo mais introspectivo e grave do mestre

Amaro e a inércia de Lula de Holanda. É pelo contraste que as vozes e as ações em conflito se

distinguem, tornam-se imiscíveis.

Além da recorrência de elementos mínimos, o outro recurso de caracterização e

narração em FM é a introdução de uns personagens pelos outros, o que faz a narrativa mudar,

freqüentemente, de perspectiva, multiplicando-se os contrastes. Ao invés do ponto de vista

fixo de um narrador onisciente, temos o predomínio de um modo dramático, em que várias

vozes comentam-se, seja, como já assinalamos, pelo discurso indireto livre, seja pelo discurso

direto. Essa técnica faz da narrativa um longo diálogo, cujas vozes se confrontam e todas as

verdades tornam-se relativas. Mantém-se, desse modo, uma permanente atmosfera de conflito.

Se nas suas ações mostra-se corajoso, Vitorino é visto por muitos como o Papa-Rabo, motivo

de diversão. Na visão de d. Adriana, sua mulher, é alguém que não tem a percepção correta do

mundo em volta:

Luís queria levá-la para o Rio. Não podia ficar por ali para ver a desgraça de tudo. Vitorino não tinha consciência para sofrer. Não sofria, não era capaz de sentir que tudo se acabara, que eles em breve veriam o fim da família [de Lula] que fora tão grande, tão cheia de riqueza.84

Para d. Adriana, antes de se convencer dos valores do marido, a mentalidade de

Vitorino estacionara no nível da infantilidade:

Mas ele não deixava a vida que levava. Era uma criança, sempre o mesmo, com as manias, a preocupação de parecer o que não era. Deus o fizera assim e ninguém desmanchava aquele destino.85

84 REGO, FM, p. 345. 85 REGO, FM, p. 349.

143

Vitorino parece estar sempre em duelo discursivo com algum interlocutor.

Mesmo quando em conversa com alguém, parece dar réplicas a vozes ausentes:

A voz de Vitorino parecia que tinha a contestá-la um adversário fogoso: - Voto no coronel para dar um ensino nesta cambada. Quero Quinca Napoleão na cadeia e José Paulino pagando imposto.86 No longo delírio do último capítulo, o capitão rebate com veemência a voz

ausente e sempre silenciosa do coronel José Paulino:

Todos pagariam impostos. Por que José Paulino não queria pagar impostos? Ele próprio iria com os fiscais cobrar os dízimos no Santa Rosa. Queria ver o ricaço espernear. Ah! Daria gritos. - Tem que pagar, primo José Paulino, tem que pagar, sou eu o prefeito Vitorino que estou aqui para cumprir a lei. Tem que pagar!. E gritou na sala com toda a força.87

No decorrer da trama, a ação de Vitorino refaz sua imagem perante as pessoas

que lhe são mais próximas e setores humildes da população: Adriana, Amaro e os moleques

passam a admirá-lo. Ele é o único com coragem de enfrentar, sozinho, o cangaceiro Antônio

Silvino e o Tenente Maurício.

Embora se respeitem, o capitão e o mestre continuam a correr em raias

paralelas. Ambos cultivam verdadeiro rancor pelos senhores de engenho, pelo prefeito do

Pilar e pela volante do tenente Maurício. Mas reagem ao que consideram injusto de forma

diferente. Amaro remói sua dor e colabora em silêncio com Antônio Silvino – aliás duas

atitudes impensáveis para Vitorino. Este age abertamente, encarando de frente todos os

perigos. Embora coincidam nos fins, os meios e as visões de mundo se opõem. Mas é

oportuno observar que essa situação dialógica não se traduz necessariamente em confronto

direto: Vitorino não é afeito ao cangaço, mas não entra em polêmica com Amaro sobre o

assunto. Já com relação às eleições, diversas vezes procura o compromisso do compadre, e

86 REGO, FM, p. 182. 87 REGO, FM, p. 398-399.

144

este se mantém nas evasivas. Uma leitura atenta do romance Os irmãos Karamázov, de

Dostoiévski, tomado por Bakhtin como um dos protótipos do dialogismo, leva-nos a

constatações instigantes: Aliócha, Ivan e Dimítri são irmãos e têm concepções de vida

conflitantes. O primeiro escolhe a vida monástica; o segundo, influenciado pela cultura

francesa, é ateu; e o terceiro leva uma vida desregrada, à semelhança do pai, o velho Fiódor

Pávlovitch. Mas as diferenças que os separam não se expressam, necessariamente, em

diálogos diretos, em confrontos abertos, embora isso também ocorra diversas vezes ao longo

da trama. Trata-se de posições irredutíveis, alimentadas por matrizes ideológicas de que cada

um se nutre. Aliócha, agindo conforme os valores cristãos, tenta unir a família, evitar os

desfechos trágicos que se anunciam, mas nada consegue. Por outro lado, é curioso observar

que Dimítri e o pai, tendo características semelhantes – entregando-se à bebedeira e

disputando uma mesma mulher – têm mais motivos ainda para rivalidades.88 Se a construção

do romance de Dostoiévski não é monológica, conforme Bakhtin, é, ainda conforme o teórico

russo, profundamente atraída pela forma dramática, o que não implica exaustiva profusão de

confrontos diretos, pois o dialogismo não se reduz ao diálogo, mas engloba outros elementos

do enredo que se apresentam em recíproca contradição.89 Em FM, não há réplicas diretas de

José Paulino a José Amaro e a Vitorino, e as de Lula de Holanda se limitam a momentos

decisivos.

3.4.2 Contexto e personagem: confronto de forças

Consoante o raciocínio que aqui desenvolvemos, a decadência histórica que

José Lins recria artisticamente reclamava uma forma estética e temática adequada: o trágico.

Essa é uma questão nuclear: encontrar na literatura os recursos que a tornem uma

88 DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázov. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. 2 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 89 BAKHTIN, 1997. p. 28 e 42.

145

representação especial da realidade exterior. Os dados que a documentam, como afirma

Antonio Candido, integram a economia da narrativa como elementos de composição. É o que

o citado crítico chama de formalização ou redução estrutural dos dados externos. Uma vez

internalizado, o elemento de composição dissolve-se na dinâmica dos acontecimentos.90

Desse modo, a visão do trágico, extraída da série social e da memória do autor, é aproveitada

esteticamente, assim como tempo e fatos externos aderem à lógica da ficção, tornando-se

também ficcionais. Datas como 1888 (Lei Áurea), fatos como a Revolta de Quebra-Quilos,

personagens históricos como Antônio Silvino e Rego Barros funcionam, não só como marcos

fixadores do tempo externo, mas como importantes elos da cadeia da trama, garantindo

verossimilhança externa ao enredo e, principalmente, atuando como elementos de causa e

efeito. Basta ver o impacto da Lei Áurea sobre o engenho Santa Fé e a ação vertiginosa de

Antônio Silvino sobre o Pilar, provocando a reação do Tenente Maurício e o envolvimento do

mestre Amaro, de Vitorino, Lula e José Paulino na seqüência narrativa. Os dados externos

entram na composição não para ornamentá-la ou torná-la fiel à realidade, mas para compor a

trama, dissolvendo-se nela. A exemplo de Vitorino, esses personagens da série social e

histórica também se ficcionalizam, em maior ou menor grau, apesar de ocuparem papel

secundário no enredo.

Vista de outro ângulo, a ação trágica do romance, como elemento da série

interna, é ponto de partida para a interpretação da série externa que a obra recria.

Nesta tese, somos norteados pelo que Albin Lesky conceitua como conflito

trágico cerrado. Nosso desafio é explicitar por que mesmo o destino de Vitorino, que não

resulta propriamente em catástrofe, adere a essa definição. Para tanto, podemos começar pela

assertiva de que o evento para ser trágico exige vários momentos essenciais: “ação consciente,

empenho total por valores importantes contra resistências poderosas, internas ou externas,

90 CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem In _ . O discurso e a cidade. 3 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/ Ouro sobre Azul, 2004. p. 29-30.

146

conflito, etc.”91 Embora a tragédia seja o veículo mais adequado à manifestação do trágico,

este pode perfeitamente aparecer em obras de outros gêneros, como epopéias, romances e até

em artes não-literárias. Além de categoria estética, referida a personagens fictícios, o trágico é

um dado da realidade, sobre o qual podem se debruçar artistas e pensadores. Fica implícito,

em todo o caso, e confirmado pela história literária ocidental, o fato de que, fora da tragédia

clássica, a categoria do trágico tem rendimento pleno, mesmo porque as transformações

sociais ocorridas ao longo dos séculos e o modo como elas são vividas pelos seus atores,

fornecem farta matéria para a composição do chamado drama sério. Fica evidente, ainda, que,

por conta dessas mesmas transformações sociais e suas repercussões ideológicas e estéticas, a

tragédia contemporânea não poderia ser protagonizada, como a tragédia clássica, pelo herói

mítico ou mesmo pelo herói de estirpe nobre. Independentemente da natureza ou caráter do

herói, se mítico ou rebaixado, o trágico e a tragédia sempre voltam à cena, por força desse elo

que se estabelece entre a sociedade e a arte, especialmente em épocas de grandes transições:

Tragédias importantes, ao que tudo indica, não ocorrem nem em períodos de real estabilidade, nem em períodos de conflito aberto e decisivo. O seu cenário histórico mais usual é o período que precede à substancial derrocada e transformação de uma importante cultura. A sua condição é a verdadeira tensão entre o velho e o novo...92

Raymond Williams lembra como exemplo de grandes crises do

desenvolvimento humano associadas à tragédia o conflito grego entre homem e destino e o

dualismo do homem na Renascença.

Se tomarmos os romances do ciclo da cana-de-açúcar como um conjunto,

vinculado a um projeto conscientemente articulado, veremos que a derrocada do Santa Fé,

como cena final de FM, é, na verdade, o início da derrocada geral. Desencadeia-se, a partir

dali, uma longa transição, por onde passa o Santa Rosa, que se conclui com a Bom Jesus, cujo

91 ROSENFELD, 2000. p. 67.

92 WILLIAMS, op. cit., p. 79.

147

romance, Usina, sugere a abertura de novo ciclo catastrófico. É importante atentarmos para a

transição, pois a tragédia não coloca em cena a derrocada que já se concluiu, sob pena de ver

esvaziada a tensão típica do trágico. Por isso, trabalha com a ação, com o processo, nos

momentos que antecedem o desfecho, como observa Aristóteles na Poética.

Admitido o trágico fora da tragédia clássica e sem o vínculo predominante do

fatalismo ou da intervenção divina, resta-nos encontrá-lo no corpus escolhido com o mesmo

mecanismo que o aciona em inúmeras tragédias modernas e contemporâneas: os conflitos

internos e externos, o conflito entre o indivíduo e as instituições, de modo que o herói é

surpreendido em suas relações, e nunca em estado de isolamento. Diz-nos ainda Raymond

Williams: “Novos tipos de relação e novos tipos de lei, que estabeleçam vínculos com o nosso

sofrimento presente e o interpretem, são as condições da tragédia contemporânea.”93

As posições de Raymond Williams são claras a respeito da racionalização do

trágico e, nesse sentido, podemos afirmar que coincidem com o que Albin Lesky identifica

como conflito trágico cerrado. Neste, embora o que acaba em morte ou ruína possa ser apenas

a parte de um todo transcendente, suas leis podem ser compreendidas pelo homem. A tragédia

social identificada por Raymond Williams não é diferente. Nela, não há lugar para eventos

que escapam de forma absoluta à racionalidade, pois os seus sentidos se acham nas relações

humanas e nas estruturas sociais que as engendram. São tragédias, conforme afirma o teórico,

perfeitamente evitáveis e que, no entanto, ocorrem. Resultam de ações conscientes, do

empenho das partes em conflito que pensam ser necessário agir e recusam-se a ceder, cujo

desfecho é doloroso e, quase sempre, catastrófico. Esses elementos já se acham, naturalmente,

na tragédia clássica. Mas nesta, o solo é mítico e, por trás da ação, não raro, está a vontade

divina. A contemporaneidade não torna a tragédia impossível, inviável. Apenas, não mais

93 WILLIAMS, op. cit. p. 76.

148

acolhe a aura metafísica dos tempos de Sófocles. Isso por que “o liberalismo paulatinamente

corroeu a concepção de uma natureza humana permanente e de uma ordem social estática que

tivesse conexões com uma ordem divina.”94 .

3.4.3 Vitorino: herói trágico?

Como personagem moderno, a origem de Vitorino é, naturalmente, diversa da

origem do herói mítico. Há, entretanto, alguns pontos de contato entre o nosso personagem e

o herói das epopéias e tragédias. Vitorino não transfere a ninguém o que lhe cabe fazer e age

de forma determinada, sem transigir:

Mas o homem de ação do movimento era o capitão Vitorino. Ele mesmo dizia por toda a parte que não tinha chefe. Só se entendia com os homens da capital diretamente. Ninguém como ele conhecia de política. Vinha da monarquia. Nos dias de feira, ficava nos grupos falando dos adversários. Cabalava a seu jeito.95

O capitão organiza a oposição no Pilar. Ali, ele não tem chefes, mas, em todo o

caso, ao contrário do herói mítico que, mediado pelos deuses, concentra em si a ação, está

sujeito a mediações humanas. Pertence a uma facção política, cujos líderes, superiores a ele,

atuam na capital.

Os marcos do tempo histórico acima assinalados demonstram que o enredo de

FM está situado entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século

XX. De fato, a ação do romance desenha uma sociedade rural, arcaica, que aos poucos recebe

os influxos da modernização: é o cabriolé de seu Lula, são os fios do telégrafo, é a estrada de

ferro, o jornal que vem da Paraíba, o gramofone que Luís traz do Rio de Janeiro. Mas aquela

sociedade recém-saída da escravidão não conhece ainda ligas camponesas ou sindicatos.

94 WILLIAMS, op. cit., p. 96. 95 REGO, FM, p. 339.

149

Muitos dos ex-escravos, como os de José Paulino, permanecem pelos engenhos, em regime de

servidão, mesmo livres do cativeiro depois de 1888. Estamos numa transição, terreno fértil

para a ocorrência de tragédias.

Apesar de já não terem a força da época áurea do açúcar, as oligarquias ainda

detêm o poder de mando. A proteção do Estado, em troca do compromisso político, é

necessária na superação das crises. Mas a Monarquia deixa saudades em homens como Lula

de Holanda. Se, por um lado, a sociedade civil ainda não se organiza nos moldes modernos, o

que já se observa na Recife de O moleque Ricardo, por outro a República não chega de fato a

todos os recantos. A ordem antiga decai, mas o estado moderno ainda não se impõe. Na

ausência da justiça e da lei, o espaço está aberto ao cangaço, aos voluntariosos, aos que

procuram agir como heróis. “O capitão Antônio Silvino sabia agradar. Todos o tinham na

conta de pai dos pobres.”96

Para Anatol Rosenfeld,

O herói mítico é a personificação de desejos coletivos. Em tempos de crise, este desejo impregna-se de força virulenta e projeta a imagem plástica e individual das esperanças em forma de personificação.97

Vitorino e Antônio Silvino protegem os pobres. Cada um ao seu modo ocupa o

espaço ausente de instituições. Sob o controle das oligarquias em declínio, elas não podem

servir a outros interesses. José Paulino e Quinca Napoleão revezam-se na prefeitura do Pilar.

Este é ladrão, segundo Vitorino e José Amaro. Aquele não paga imposto. Assim, Antônio

Silvino vira mito para o povo, e o velho Vitorino procura agir como herói e ganha algum

respeito. Ocorre que o Pilar é arcaico, mas seu solo não é mítico. E mesmo Antônio Silvino,

96 REGO, FM, p. 300. 97 ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 36.

150

quando invade a casa de Lula, revela uma face diferente daquela do herói imaginado por José

Amaro. A observação é de Vitorino, após ser espancado pelos cabras do cangaceiro:

- Capitão Antônio Silvino, o senhor sempre foi da estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este do coronel Lula, é mesmo que dar surra num cego.98

O protesto de Vitorino nivela o cangaço e a polícia, o que dilui bastante a

imagem do herói fixada popularmente em Antônio Silvino.

Que tipo de herói é então Vitorino? Algumas de suas ações são as de um herói

trágico deslocado no tempo. Não transige nem transfere a ninguém o que considera tarefa sua.

Defende causas nobres e procura reverter qualquer situação que lhe pareça injusta, como a

prisão do mestre Amaro e a invasão da casa-grande do Santa Fé pelos cangaceiros. Mas, ao

impetrar habeas-corpus pela soltura do compadre, recorre a uma instância da lei, solicita a

mediação do Estado. Falta-lhe, portanto, o universo mítico, próprio do herói clássico. Seu

desígnio é servir, mas, por outro lado, almeja o reconhecimento em uma sociedade dividida

entre camumbembes e senhores. Para isso, aceita as regras da hierarquia que combate,

comprando a patente de capitão. E, não obstante a coragem e os ideais que defende, agrada-

lhe o vínculo com a casta local:

Pelo seu gosto o padrinho do seu filho Luís seria o primo José Paulino. Mas a sua mulher tomou o seleiro. Mulher teimosa, de vontade, de opinião. Queria era chamar, encher a boca com um “meu compadre José Paulino”. O diabo da mulher escolhera o outro.99

Não é, portanto, nem herói mítico nem o da ruptura, o justiceiro, como Antônio

Silvino o é na imaginação popular. O respeito custa-lhe a chegar. Imagina que os grandes

incitam os moleques a chamá-lo de Papa-Rabo. Só depois de enfrentar a polícia e o

98 REGO, FM, p. 364. 99 REGO, FM, p. 69.

151

cangaceiro, consegue a consideração dos pequenos. Antes desses episódios, é ridicularizado

por todos. Este é o seu sofrimento (pathos), mas não tem tempo a perder com ele. Seu lugar

são as ações de fortes tons épicos e dramáticos, nas quais a coragem de herói avulta.

Momento de plasticidade épica é a cena bélica em que desafia a volante do Tenente Maurício,

é preso e conduzido para a cadeia do Pilar:

A tropa saiu com o capitão Vitorino Carneiro da Cunha todo amarrado de corda, montado na burra velha que os soldados chicoteavam sem pena. Corria sangue da testa ferida do capitão. A luz vermelha da madrugada banhava o canavial que o vento brando tocava de leve. Marchava o capitão na frente da tropa, como uma fera perigosa que tivessem domado com tremendo esforço. Os moradores vinham olhar e os homens se espantavam de ver o velho que todos sabiam tão manso, amarrado daquele jeito100 A reação de Vitorino é prometer vingança àqueles bandidos e recusar, aos

gritos, a proteção do seu primo, o coronel José Paulino. Quando a tropa passa em frente à casa

do mestre José Amaro, Vitorino berra: “ – É isto, meu compadre. Para me levar preso, só

mesmo um batalhão.”101 Nessa batalha perdida, um misto de caricatura de ação grandiosa e

dignidade da queda, na firmeza de quem não se dobra.

Mas a coragem de Vitorino se confunde com a vanglória. E isso o impede de

enxergar os limites de sua ação e de fazer uma avaliação mais precisa dos fatos. Aqui também

reside sua falha trágica, que acompanha o caráter do herói. É a evasão para uma vida

imaginativa, feita de uma grandeza idealizada e de façanhas sem empreendimento, conforme

palavras de Marilene Carlos do Vale Melo.102 Voltado para seu mundo interior de grandezas

que não admitem derrotas, o protagonista forja uma versão de suas ações que o apresentam

sempre como vitorioso. Suas tiradas reforçam a mesma idéia: Vitorino Carneiro da Cunha

100 REGO, FM, p. 324-325. 101 REGO, FM, p. 326. 102 MELO, Marilene Carlos do Vale. Do trágico e do lírico em Fogo Morto e Pureza. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – UFPB, João Pessoa/PB., 1979, p. 23.

152

não pede favor para dizer a verdade / Meu compadre, Vitorino Carneiro da Cunha tem

quengo / Para onde Vitorino Carneiro da Cunha pende, a coisa vira.103

O contraste entre sua aparência de velho de barba raspada, montado em uma

burra magra e dando ouvido aos moleques que o chamam de Papa-Rabo, com a figura

vitoriosa e respeitosa que procura impor, é motivo de gargalhada geral. Nesses momentos, em

que a totalidade do caráter do personagem avulta, e a mistura de gêneros ganha novo

contorno, o épico e o trágico por vezes se transformam no cômico, rasurando essa imagem de

herói que emerge na hora da luta. Para Bakhtin, a quebra da distância épica foi passo

importante para a constituição do romance, nascido do cômico popular. É o riso, destruidor de

qualquer distanciamento que pudesse erigir Vitorino a uma condição mais épica, o que torna

caricatura seu aspecto sério:

O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona do contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar e, com isto, prepara-o para uma investigação absolutamente livre.104

Mas esse mesmo riso, no caso do nosso protagonista, não lhe destrói o aspecto

trágico: se exprime a alegria jocosa dos que o provocam com o apelido de Papa-Rabo,

converte-se na dor não assumida, no plano do discurso, por aquele que pretende alcançar

respeito, ser tratado como capitão e que, sem que o perceba, acumula, se não perdas, vitórias

aparentes. Tragicômico, Vitorino é digno de riso e de pena.

FM é uma narrativa pungente, onde os jovens envelhecem cedo, como D.

Neném, ou enlouquecem, como Marta, ou vivem distantes, como Luís; onde o amor conjugal

é escasso, e os velhos, quase sempre doentes, como Lula de Holanda e José Amaro, dominam

103 REGO, FM, p. 313, 314 e 332. 104 BAKHTIN, 1998. p. 413-414.

153

a cena. Vitorino também é velho, mas não tem noção de seus limites. Essa atmosfera grave do

ambiente é suspensa pelos rompantes do capitão: é o alívio cômico da tensão trágica.

O momento da leitura do habeas-corpus pelo juiz põe em evidência a

contraditória síntese do caráter e das ações do protagonista: a coragem e a grandeza de seus

atos, nesse momento reconhecidos por aqueles que não o levam a sério, mas também sua

mania de grandeza:

Vitorino, em pé, ao lado dos presos, não dava uma palavra. Todos olhavam para a sua figura. Era um grande dia de sua vida. Estava ali, na defesa dos seus homens. Teria que haver justiça para a causa que defendia. Quando o juiz leu a petição do habeas-corpus, e que pronunciou o seu nome, olhou para a assistência basbaque. Todos estavam sabendo que ele não era um qualquer.105

Já não estamos na época dos heróis. O ideal de justiça e de valores

fundamentais associados antes ao herói mítico é demanda de todos e sua conquista, bem ou

mal, é mediada pelas instituições, no meio das quais esse herói supremo se esvaziaria. Em

FM, o Estado luta para se impor e já se acha em crise. O desfecho do romance expõe essa

situação: Vitorino é preso pela autoridade policial e depois é solto por ordem de um senhor de

engenho. O habeas-corpus concedido pelo juiz é desacatado pelo Tenente Maurício e, só mais

tarde, depois de certa negociação, é cumprido. Nesse ponto, evocando os termos de Antonio

Candido, a série interna remete a uma leitura crítica da série externa, na qual grupos locais se

sobrepõem à legalidade, cujos fenômenos extremos são o coronelismo e o cangaço. Mas o

herói, como solução dessa crise de poder, é inviável. Sobretudo quando suas falhas e erros

inviabilizam seu triunfo. Vitorino não se dobra em momento algum, demonstrando coerência

e coragem, mas, ao mesmo tempo, erra pela intransigência e por falta de visão política.

Na contemporaneidade, o isolamento do herói que combate nessa seara

funciona como erro trágico. Não sendo determinado pelo destino ou pela vontade dos deuses,

105 REGO, FM, p. 380.

154

sua ação é situada. Ele está em pé de igualdade com os outros homens e, portanto, sujeito à

dinâmica das relações. As forças que Vitorino enfrenta sozinho – o Estado corrupto, os

coronéis protegidos pelo estado e protetores de cangaceiros – são-lhe superiores, são

organizações políticas. Mesmo Antônio Silvino, mitificado pelo povo, não age como herói

mítico, pois se acompanha de um bando, ao qual dá ordens e com o qual divide suas ações.

Trata-se de uma organização, embora não apresente um projeto político nítido.

No mundo representado por FM o herói tem função limitada, mesmo que

comova, mesmo que encarne as aspirações dos mais fracos. Vitorino falha por tentar agir

como herói num mundo que não mais comporta heróis, embora os deseje, mas comporta

tragédias, embora as dissimule. É um mundo de homens comuns, vivendo tragédias pessoais e

coletivas.

3.4.4 Um herói rebaixado e um conflito trágico

Sem esboçar conflitos interiores e em permanente luta com forças ao seu redor,

o capitão Vitorino se volta inteiro para a realização do que considera grandes ideais. Sem que

o limitemos à tipologia proposta por Lukács, observamos que, em grande parte, corresponde

ao indivíduo do idealismo abstrato:

A absoluta ausência de uma problemática internamente vivida transforma a alma em pura atividade. Como ela repousa intocada por todos em sua existência essencial, cada um de seus impulsos tem de ser uma ação voltada para fora. A vida de semelhante homem, portanto, tem de tornar-se uma série ininterrupta de aventuras escolhidas por ele próprio.106

Mas o capitão Vitorino conserva algumas características do herói trágico, que

vale lembrar: vontade consciente, determinação, falha trágica, erro trágico, conflito. Todavia,

como herói problemático, rebaixado, nivelado a seus pares, sua ação por vezes se dilui ante

106 LUKÁCS, 2000, p. 102.

155

forças que lhe são superiores. Por isso, devemos ater-nos não só ao que acontece ao herói,

mas ao que acontece por meio do herói. A crise dramática deflagrada em FM está nas

instituições, no comando da sociedade e nos personagens envolvidos.

Afirmar, porém, que o herói mítico é inverossímil no contexto de obras

contemporâneas não implica afirmar que já não possam existir tragédias. Desde o advento da

literatura realista, finais trágicos não supõem heróis clássicos ou idealizados. O protagonista

contemporâneo pode ser medíocre ou mesmo anti-herói e, não obstante, como personagem

central, ser o foco de interesse, experimentar um fim trágico e despertar empatia no leitor.

Desprovida da grandiloqüência e da ação de seres superiores, a tragédia contemporânea nasce

da reação do herói comum contra o sofrimento que não é inevitável:

A idéia da ‘completa redenção da humanidade’ é [...] trágica na sua ação, no sentido de que não é contra deuses ou coisas inanimadas que o seu ímpeto combate, nem contra meras instituições ou estruturas sociais, mas contra outros homens.107

Apesar de certo conservadorismo, Vitorino alimenta esse sonho de redenção:

quando ele tomasse conta do Pilar, os manda-chuvas não mais roubariam os cofres públicos,

os ricos pagariam impostos, a vila teria calçamento, cemitério novo, jardim, e ele abriria as

portas da cadeia para que os injustiçados fossem soltos. Mesmo lhe faltando uma consciência

mais lúcida da realidade, não é fatalista e sabe que a ação humana é o que pode mudar as

coisas, mas não lhe parece claro que a ação humana contrária é o que pode impedir que as

coisas mudem. Ele fracassa, mas sua derrota não é inevitável.

A catástrofe de FM envolve o capitão, mas não da forma sinistra como a

Marta, a José Amaro e a Lula de Holanda, que termina completamente arruinado. O delírio

em que se imagina prefeito do Pilar é uma página de verdadeiro idealismo político, de

conotações reformistas, modernizadoras, cuja realização não pode ser de ordem individual e

107 WILLIAMS, op. cit., p. 107.

156

parece fora do seu tempo. A cena pode comover, mas é um momento que surpreende o

personagem em seu mundo ilusório de grandeza interior, em total perda de contato com a

realidade. Trata-se de rara passagem da narrativa em que o monólogo interior, recurso

largamente empregado na análise de outros personagens, revela, no seu silêncio, o pensar

desvairado desse protagonista:

Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores em cima dele. Dariam vivas, gritando pelo chefe que tomara a direção do município. Mandaria abrir as portas da cadeia. Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino seria de estrondo. Ah, com ele não havia grandes mandando em pequenos. Ele de cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho.108

Não entendemos ser inviável o sonho de um homem do povo, mas entendemos

que esse sonho, sendo político, implica condições concretas para a sua realização, o que, na

sua falha trágica, Vitorino não consegue enxergar. Ingênuo, o capitão imagina renovar o

mundo apenas com a mudança de mandatários políticos. Na Paraíba, Rego Barros, candidato

das oposições contra o governo federal e os coronéis locais. No Pilar, ele próprio. O contraste

entre as imagens do delírio e as da realidade é visível:

E, escorado no portal da casa de taipa, de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino era dono do mundo que via, da terra que a lua branqueava, do povo que precisava de sua proteção.109

Para José Hildebrando Dacanal,110 Vitorino estaria à frente de seu tempo, seria

anacrônico. A tensão que o envolve estaria na impossibilidade de sua existência num tempo

em que suas idéias ainda não dominam. Relacionando, mais uma vez, tempo ficcional e tempo

real, e tomando a literatura como representação deste, vale lembrar que os eventos narrados

em FM são anteriores aos de todos os romances do ciclo. A queda do coronelismo, apregoada

108 REGO, FM, p. 401. 109 REGO, FM, p. 401. 110 DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. 2 ed. Mercado Aberto: Porto alegre. 1986. p. 32-40.

157

por Vitorino, só se efetiva, no tempo real da História, a partir da Revolução de 1930. Ora, se o

idealismo democrático e utópico do protagonista de FM se relaciona com a evolução das

elites brasileiras no período de 1930 a 1943, o personagem é, de fato, anacrônico, antecipa-se

a elas. Daí, sua dificuldade de se impor num mundo ainda fechado, dominado pelos coronéis,

embora em crise. A ação do herói tende, naturalmente, a ser tragicômica, mesmo porque

dificilmente seria compreendida nesse universo arcaico. Assim, a utopia liberal-democrática

parece ainda tão estranha e improvável no universo recriado em FM, que a estratégia mais

convincente para a trama parece mesmo ser vinculá-la, associá-la a um personagem delirante,

fora do seu tempo. Rindo de Vitorino, as elites não só desacreditam do velho, mas, parece,

desdenham de mudanças nas quais não acreditam.

O fim de Vitorino não é catastrófico, mas está situado num conflito trágico

cerrado. Não há nada no desfecho de FM que indique vitória ou mesmo suspensão da marcha

da decadência. Enquanto vários personagens acumulam perdas, configurando o conflito

cerrado, ele acumula vitórias aparentes: respeito, notoriedade, reconhecimento de sua

coragem. No entanto, seus feitos pouco alteram a realidade. Representam a necessidade da

luta, a esperança na ação humana, mas, ao mesmo tempo, os limites da ação de um homem

isolado, em situação adversa.

A força do ideal se sobrepõe à realidade da decadência e do ridículo. Redimido pela paranóia heróica, o velho Vitorino se eleva lentamente no conceito público. Os pequenos começam a respeitá-lo.111

Esse reconhecimento, como o demonstra Edda Arzúa Ferreira112, restringe-se

ao zé-povinho que, a exemplo de Amaro, cego Torquato e Zé Passarinho, eleva Antônio

111 CANDIDO, Antonio. Um romancista da decadência. In _ COUTINHO; CASTRO (org.), op. cit., p. 396. 112 FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de perspectivas: contribuição para uma análise das personagens de ficção. Rio de Janeiro; Livraria Editora Cátedra, 1975.

158

Silvino à condição de herói. Tendo em vista os interesses de classes envolvidos, Vitorino

jamais poderia representar o consenso. O conflito de vozes permanece. Para José Paulino e o

tenente Maurício, o capitão não regula. Para Dona Inês, primeira dama do Pilar, Vitorino não

deve ser levado a sério, pois tudo o que faz é de veneta. E os soldados continuam a rir de suas

bravatas.

O capitão permanecerá na luta. Seu triunfo é nunca desistir e fugir da angústia

existencial que mata o mestre Amaro. Sua trajetória permanece em aberto, o que nos faz

lembrar o fim inacabado de Os irmãos Karamázov. Não sendo apenas um personagem trágico

mas, também, cômico, é natural que permaneça, não morra. Assim, apesar de ferido, ele se

prepara para voltar à cabala, enquanto prepara o enterro do compadre Amaro. Formalmente, o

monólogo nos apresenta, pela primeira e única vez, Vitorino sozinho consigo mesmo, mas

ainda cuidando do mundo. No ponto alto do delírio, mantém-se sua posição dialógica,

intransigente e sonhadora em relação ao mundo e a si mesmo:

As feridas que lhe abriam no corpo nada queriam dizer. Não havia força que pudesse com ele. Os parentes se riam de seus rompantes, de suas franquezas. Eram todos uns pobres ignorantes, verdadeiros bichos que não sabiam onde tinham as ventas. [...] Tudo podia fazer, e nada temia.”113

A próxima imagem da desgraça é o Santa Fé, de fogo morto. Dos três conflitos

definidos por Albin Lesky, o trágico cerrado é o que, mesmo sem saída, “nos deixa aberto um

caminho para a libertação e a compreensão interpretativa”,114 através do qual a estrutura da

narrativa trágica fornece um sentido para a série social e histórica, muitas vezes apresentada

pela crítica como decadente. Não se trata apenas de decadência, mas de intenso conflito que

envolve pessoas, grupos, valores, e se atualiza na ação.

113 REGO, FM, p. 396. 114 LESKY, op. cit., p. 40.

159

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

4.1 O trágico e o dialogismo na construção de Fogo Morto

Este trabalho teve como objetivo investigar não a representação da decadência

da economia açucareira – o que a crítica já fez diversas vezes – mas o modo como a categoria

do trágico é pertinente e se articula com os elementos narrativos e o dialogismo, compondo

um romance polifônico.

Em FM, a ação vai tecendo o trágico, que se constitui a partir de um confronto

permanente de vozes. O que aparece no primeiro plano manifesta o impasse de um mundo em

crise, narrado formalmente em terceira pessoa que, em grande parte, é uma primeira pessoa

dissimulada.1 Mas esse confronto nem sempre corresponde a uma luta direta, embora a

narrativa se estruture, fundamentalmente, como romance dramático.

Mestre Amaro e Vitorino são compadres, respeitam-se, têm senso de justiça e

sentimento de revolta semelhantes, mas correm em raias próprias, combatem de forma

diferente. Nesse sentido, são vozes que não comungam: assumem posições irredutíveis. Um

parte para a ação direta, aberta; o outro age na calada da noite e remói no íntimo a angústia.

Porém, ambos convergem na ação isolada, perigosa, que resulta trágica. O orgulho e o

misticismo sombrio de Lula de Holanda levam-no à inércia e ao isolamento em seu mundo

particular, débil, único modo de sobrevivência do sentimento de nobreza, de cujo colapso

iminente o protagonista parece não se dar conta. Estas são as vozes que dominam a narrativa,

em torno das quais outras também se erguem, comentam-se, conflitam.

Amélia é a consciência que resta na casa-grande do Santa Fé, a ponte entre

aquele mundo e o mundo real. D. Adriana é o bom-senso que falta a Vitorino. Sinhá,

dissonância de Amaro, é a tentativa de fuga da tragédia, abandonando o marido, apesar das

160

perdas já sofridas. Cada uma dessas mulheres acaba ocupando espaços deixados pela crise do

pater familias. Os filhos representam o fim da ascendência, a crise do patriarcalismo rural,

que não pode se reproduzir nas mesmas bases.

A estrutura da trama, composta por três partes, três famílias, três formas de

poder – o Estado, o cangaço e os senhores de engenho – corresponde à constante mudança de

foco que domina a narrativa. Através de perspectivas múltiplas, emerge a totalidade

contraditória do universo diegético, cuja crise está posta e sugere o advento de impasses

insolúveis. Mas a derrocada de tal universo apenas principia no tempo ficcional de FM e se

confirma nas narrativas que perfazem o ciclo da cana-de-açúcar.

Comprovamos que o efeito trágico é possível na narrativa, mesmo quando

irrompe fora de uma perspectiva divina, como já ocorre desde a Era Moderna. FM não é uma

tragédia, mas um romance trágico. Seus heróis não são os do mundo clássico, mas carregam

em seu caráter a falha e cometem erros trágicos, vivem peripécias, situações patéticas,

reconhecimentos, catástrofes.

Pelo menos em um ponto, Anatol Rosenfeld2 e Raymond Williams3

concordam: a tragédia tende a se desenvolver em fases de grandes transições, em que se

rompe uma unidade ante o advento de novas formas sociais, crenças e filosofias novas. Essa

nos parece a intuição artística de José Lins do Rego. O romancista paraibano lança mão da

categoria do trágico como melhor estratégia para o projeto narrativo de FM, com vistas a

representar o início da derrocada da sociedade patriarcal vinculada à economia açucareira. .

Todos os recursos estudados e o exame de sua funcionalidade no texto nos

levam às seguintes considerações: José Lins não é um escritor espontâneo, como afirma

grande parte da crítica. Sua frase é simples, mas trata-se de estilização de uma linguagem

espontânea, popular e regional. As marcas do narrador erudito estão no estilo e na

1 GOUVEIA, op. cit., p. 26. 2 ROSENFELD, 2000. p. 71-72.

161

estruturação da trama, ou seja, no modo peculiar como o enredo é organizado. Estamos diante

não só de um grande contador de histórias, como se elas viessem prontas e acabadas de uma

fonte inesgotável – a memória – mas também de um recriador de cenários sociais ricos,

personagens complexos e situações dinâmicas.

Conforme Aderaldo Castello4, FM é seleção e síntese das narrativas do ciclo da

cana-de-açúcar. Nesta tese, procuramos confirmar a hipótese de que a retomada de eventos e

personagens de romances anteriores a FM se dá como revisão, com mudança de perspectiva,

saindo de cena o narrador monológico, o ponto de vista fixo, e adotando-se uma focalização

múltipla, dinâmica. Aqui, como em muitos romances dialógicos, rompe-se a uniformidade

sugerida pelas primeiras narrativas de José Lins, sobretudo as três primeiras, e passa-se a

representar, de forma mais consistente, a pluralidade do mundo e seus contrastes. É o fim da

voz monológica: em FM, o conflito de vozes, a polifonia é a forma como o conflito trágico se

contrói.

4.2 O conflito trágico cerrado como síntese da ação dos personagens e da

representação da série social.

Considerando a seqüência temporal dos eventos narrados nos romances do

ciclo, FM é o primeiro da série, pois situa-se num lapso temporal anterior ao de Menino de

engenho. É natural, portanto, que, embora construído como metonímia da derrocada que se

arrasta de Bangüê a Usina, não apresente, ainda, um universo inteiramente dominado pelo

signo da decadência, como entende considerável parte da crítica. Em grande medida, estamos

3 WILLIAMS, op. cit., p. 79. 4 CASTELLO, 2001. p. 117-124.

162

diante de uma tragédia de caracteres, desencadeada por ações humanas, sendo que os agentes

ocupam o primeiro plano da trama e a natureza opera por contraste.

Igualmente tumultuada é a vida das instituições e grupos sociais em interação

na trama de FM. Guardando afinidades com o tempo externo, o tempo da narrativa

corresponde a um período de transição e crise que engloba fatos da maior importância: fim do

Império; extinção do escravismo; crise do patriarcado rural, que busca fortalecer seus laços

com o Estado para sobreviver; crise da República velha, sinalizada pela campanha

salvacionista de Hermes da Fonseca; e debilidade das instituições, com o conseqüente

florescimento do banditismo e a imposição do poder local por parte dos coronéis, sobretudo

nas regiões interioranas. Mas, nem tudo é derrocada em FM: José Paulino e o engenho Santa

Rosa estão no apogeu e em perfeito contraste com seu Lula e o Santa Fé. O fator usina ainda

não é preponderante, não podendo, portanto, ser relacionado como uma das causas da queda

desse engenho.

É nesse ambiente em crise que se colocam os protagonistas de FM, com seus

dilemas pessoais e suas soluções irredutíveis. À medida que executam suas ações, vão

acumulando perdas irrevogáveis. Vitorino tem trajetória diferenciada, pois, em vez de perdas

acumulativas, vai alcançando vitórias aparentes que, no conjunto, se inserem num mundo que

ele tenta reformar, mas não dá sinais de mudança.

O drama dos protagonistas e de outros personagens só adquire significado

quando relacionado com o do ambiente social a que pertencem. Só essa relação dialética dá

sentido ao fracasso de cada um deles. Nesta tese, não examinamos o trágico como sentido

transcendente da vida, ou como obra do destino, mas a sua ocorrência em relações concretas,

imediatas e como conflito existencial: o herói mergulhado em sua angústia ou às voltas com

forças sociais que lhe são superiores.

163

Dois fatos, um fornecido pela natureza e outro pela sociedade, nos convencem

da pertinência do conflito cerrado, como conceito mais adequado para a análise e

interpretação de FM pelo viés do trágico: embora as instituições representadas estejam em

crise e uma leitura em conjunto dos romances do ciclo não comprometa – pelo contrário,

confirme – o rendimento desse conceito, não há por que se apelar para uma visão

cerradamente trágica da vida ou do mundo, vez que todas as ocorrências encontram suas

causas nas falhas, nos erros humanos e no conjunto das relações sociais. O outro fato,

igualmente importante para a confirmação de nossa hipótese, está no papel desempenhado

pela natureza na trama de FM: no geral, ela sinaliza que os conflitos estão circunscritos ao

âmbito humano e que nem tudo está perdido.

Reafirmamos, enfim, através da leitura crítica de FM, a possibilidade de

conjugação estética entre o trágico e o dialogismo e, para além de Dostoiévski, a permanência

do romance polifônico.

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