flannery o'connor

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  • Flannery OConnor

    Um bom homem difcil de encontrar

    Traduo do ingls

    Clara Pinto Correia

  • Um bom homem difcil de encontrar

    Autor: Flannery OConnor

    Traduo: Clara Pinto Correia

    Capa: Miss ShusieFoto capa: Charles Mason / Getty Images / Image One

    Paginao: Gabinete Grfico Cavalo de Ferro

    ISBN: 9896230145

    Todos os direitos para publicaoem lngua portuguesa reservados por:

    Cavalo de Ferro Editores, Lda.Travessa dos Fiis de Deus, 1131200188 Lisboa

    Quando no encontrar algum livro Cavalo de Ferro nas livrarias,sugerimos que visite o nosso site:www.cavalodeferro.com

    Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzidasob qualquer forma ou por qualquer processosem a autorizao prvia e por escrito do editor,com excepo de excertos brevesusados para apresentao e crtica da obra.

  • Flannery O'Connor uma das mais importantes vozes da literatura americana, particularmente aclamada pela genialidade dos seuscontos que combinam o cmico, trgico e brutal. uma escritora de referncia da tradioGtica Sulista focada na decadncia do Sul enas suas gentes malditas.

    Flannery O'Connor deixa o leitor extasiado,emocionado e profundamente impressionadopor um talento literrio de grandiosidade nica.

    Sunday Telegraph

    Ela no era s a melhor escritora destetempo e lugar: ela conseguiu expressar algo secreto sobre a Amrica, algo chamado Sul, comum dom transcendente de expressar o espritoreal de uma cultura. Ela era tambm um gnio.

    New York Times

    FLANNERY O'CONNOR

  • Li as histrias todas, uma por uma, noitedentro, sempre a sentirme quase na margem dorio por onde se navega para outra dimensoqualquer. Viajei por dentro de todos os nervosde todas as perplexidades humanas, e a rede dedendrites ia sempre parar ao axnio fundamental, em que, de uma vez por todas, algum temque fazer o gesto definitivo que muda tudo, derruba tudo, atira tudo por terra ou volta a pr tudo no lugar mas j todos sabemos que nuncamais nada voltar a ser como era dantes. Era incrvel. Era hipntico. Era impossvel de interromper antes de chegar ao fim e depois eu apagava a luz e ficava a dar voltas na cama (...)A minha Flannery morreu em 1964. Descubramna agora, e cada um que julgue por si mesmo.

    Clara Pinto Correia

    4 OCONNOR

  • A velha e a filha estavam sentadas no alpendrequando Mr. Shiftlet subiu a estrada pela primeira vez. A velha deslizou para a ponta da cadeira e inclinouse para a frente, protegendo osolhos do sol penetrante com a palma da mo.A filha no conseguia ver grande coisa suafrente e continuou a brincar com os dedos. Embora a velha vivesse sozinha com a filha naquele paradeiro desolado e nunca tivesse vistoMr. Shiftlet antes, podia estabelecer, mesmo distncia, que o homem no passava de um vagabundo e no era preciso ter medo dele.A manga esquerda do seu casaco estava enrolada por forma a mostrar que s existia meio brao l dentro e a sua silhueta magra inclinavaseligeiramente para o lado como se o vento estivesse a empurrla. Envergava um fato preto eum chapu de feltro castanho que estava viradopara cima frente e para baixo atrs e carregava na mo uma caixa de ferramentas estreita dealumnio. Aproximouse, sem pressa, subindo aestrada, com a face virada para o sol que pare

    A VIDA QUE SALVARPODE SER A SUA

  • cia estar a equilibrarse no cume de uma montanha pequena.

    A velha no mudou de posio at ele j estar quase no seu quintal; depois levantousecom um punho cerrado apoiado na anca. A filha, uma rapariga grande com um vestido deorgandi azul curtinho, viuo de repente e saltoue comeou a bater com os ps e a apontar e afazer sons excitados sem palavras.

    Mr. Shiftlet parou mesmo porta do quintale poisou a caixa no cho e cumprimentoua comum toque no chapu como se ela estivesse a terum comportamento absolutamente normal; depois virouse para a velha e tiroulhe o chapu.Tinha um cabelo preto e liso que caa a direitodesde um risco ao meio at por detrs das orelhas de cada lado. A sua face era composta poruma testa que ocupava metade do rosto e terminava subitamente com as suas feies equilibradas por cima de uma mandbula protuberanteforte como o ao. Parecia jovem mas tinha umolhar de insatisfao cuidadosamente compostocomo se entendesse a vida com toda a clareza.

    Boa tarde disse a velha. Era aproximadamente do tamanho de um poste de uma cerca decedro e tinha um chapu de homem enterradoat baixo na cabea.

    O vagabundo ficou a olhar para ela e norespondeu. Virouse de costas e observou o pr

    6 OCONNOR

  • dosol. Lanou tanto o seu brao inteiro comoo mais curto para cima, devagar, de forma a indicar toda a extenso do cu e a sua figura formou uma espcie de cruz torta. A velha observouo com os braos cruzados sobre o peitocomo se fosse a dona do cu, e a filha olhava,com a cabea inclinada para a frente, as suasmos gordas e sem esperana penduradas dospulsos. Tinha o cabelo longo de um dourado rseo e os seus olhos eram to azuis como o pescoo de um pavo.

    Ele manteve a pose durante cerca de cinquenta segundos e depois agarrou na caixa eavanou para o alpendre e pousoua no primeiro degrau. Minha senhora, disse numavoz firme e nasalada, dava uma fortuna paraviver onde pudesse ver o sol fazer isto todas astardes.

    Faz isso todas as tardes, disse a velha evoltou a sentarse. A filha tambm se sentou eolhouo com uma curiosidade maliciosa comose ele fosse um passarinho que se tivesse aproximado mais que o habitual. Ele inclinousepara um lado, explorando o fundo das calas,e num segundo tirou de l uma caixa de pastilha elstica e ofereceulhe uma delas. Elaaceitoua e descascoua e comeou a mastigarsem tirar os olhos dele. Ele ofereceu tambmuma pastilha velha mas ela limitouse a le

    A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 7

  • vantar o lbio superior para mostrar que notinha dentes.

    O olhar plido e penetrante de Mr. Shiftlet jtinha passado por tudo o que existia no quintal a bomba junto esquina da casa e a figueiragrande onde trs ou quatro galinhas se preparavam para chocar ovos e j tinha avanadopara um barraco onde viu a traseira quadradae enferrujada de um automvel. As senhorasguiam? perguntou.

    Aquele carro j no se mexe h quinzeanos disse a velha. No dia em que o meu marido morreu, deixou de funcionar.

    J nada como costumava ser, minha senhora disse ele. O mundo est quase podre.

    verdade disse a velha. Voc mora aquiperto?

    Chamome Tom T. Shiftlet murmurou,olhando para os pneus.

    Muito prazer disse a velha, chamomeLucynell Crater e a minha filha a LucynellCrater. O que que anda a fazer por aqui, Mr.Shiftlet?

    Ele ponderou se o automvel seria um Fordde 1928 ou 1929. Minha senhora disse ele, evirouse e deulhe toda a sua ateno, deixeme dizerlhe uma coisa. Houve um desses mdicos em Atlanta que agarrou numa faca e cortou o corao humano o corao humano,

    8 OCONNOR

  • repetiu, inclinandose para a frente de dentrodo peito de um homem e segurouo na mo, elevantou a mo, com a palma levantada, comose estivesse a sopesar ligeiramente o coraohumano, e estudouo como se fosse um frangode ontem e, minha senhora, disse ele, permitindo uma longa pausa significativa durante aqual a sua cabea deslizou para a frente e osseus olhos cor de argila se iluminaram, no sabe mais sobre isso do que a senhora ou eu.

    verdade, disse a velha.Ora bolas! Mesmo que ele agarrasse naque

    la faca e retalhasse todos os bocados daquilo,no ia ficar a saber mais do que a senhora oueu. Quanto quer apostar?

    Nada disse a velha sabiamente. De ondeveio, Mr. Shiftlet?

    Ele no respondeu. Enfiou a mo nos bolsose tirou de l um saco de tabaco e um pacote demortalhas e enrolou um cigarro com toda a percia, e prendeuo pendurado de um canto dolbio superior. Depois agarrou numa caixa defsforos do bolso e acendeu um na sola do sapato. Segurou o fsforo aceso como se estivesse a estudar o mistrio da chama enquanto elaviajava perigosamente na sua direco. A filhacomeou a emitir sons agudos e a apontar paraa sua mo e a espetar o dedo, mas quando achama estava quase a tocar nele inclinouse

    A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 9

  • com a mo em concha como se fosse lanar fogo ao nariz e acendeu o cigarro.

    Atirou para trs o fsforo morto e lanou umrisco de cinzento no fim da tarde. Um olhar manhoso apoderouselhe da face. Minha senhora disse ele, nos tempos que correm no hnada que as pessoas no faam. Posso dizerlhe que meu nome Tom T. Shiftlet e que soude Tarwater, Tennessee, mas a senhora nuncame viu antes: como que sabe que eu no estou a mentir? Como que sabe se eu no souAaron Sparks, minha senhora, e nasci em Singleberry, Georgia, ou que no sou antes GeorgeSpeeds e venho de Lucy, Alabama, ou que nosou Thompson Bright de Toolafalls, Mississipi?

    No sei coisa nenhuma a seu respeito resmungou a velha, irritada.

    Minha senhora, disse ele, as pessoas jnem se importam com a qualidade das suasmentiras. Talvez o melhor que eu posso dizerlhe seja, sou um homem; mas escute, minhasenhora, disse ele e fez uma pausa e tornou oseu tom de voz ainda mais eloquente, o que um homem?

    A velha comeou a mascar uma sementecom as gengivas. O que que traz naquela caixa, Mr. Shiftlet? perguntou ela.

    Ferramentas disse ele, agora modesto. Soucarpinteiro.

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  • Bom, se vem aqui procura de trabalhoposso darlhe cama e mesa, mas no posso darlhe dinheiro. Estou a dizerlhe isto antes de voc comear disse ela.

    No houve logo resposta nem nenhuma expresso particular no seu rosto. Encostouse aosuporte do telhado do alpendre. Minha senhora, disse ele devagar, h homens para quemcertas coisas tm mais valor que o dinheiro.A velha balanouse sem comentar e a filha observou a ma de Ado que se movia para cimae para baixo no pescoo dele. Shiftlet disse velha que a nica coisa que interessava maioria das pessoas era o dinheiro, mas perguntoulhe para que que um homem era feito. Perguntoulhe se um homem era feito para o dinheiro, ou qu. Perguntoulhe para que queela achava que tinha sido feita mas ela no respondeu, limitouse a balanar a cadeira e perguntou a si prpria se um homem s com umbrao poderia instalar um novo telhado na suacasota do jardim. Ele fez vrias perguntas squais ela no respondeu. Disselhe que tinhavinte e oito anos e que at agora a sua vida fora de uma grande variedade. J tinha sido cantor de gospel, capataz no caminho de ferro, assistente numa casa funerria, e fizera rdio trsmeses com Inclement Roy e os seus Red CrestStranglers. Disse que lutara e sangrara nas For

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  • as Armadas do seu pas e que visitara todas asterras estrangeiras e em toda a parte tinha visto pessoas que no se importavam com a maneira como faziam as coisas. E acrescentou queno tinha sido educado dessa maneira.

    Uma lua gorda e amarela apareceu por trsdos ramos da figueira como se tambm quisesse chocar os ovos das galinhas. Ele disse queum homem tinha que fugir para o campo sequeria ver o mundo como um todo e que bemgostaria de viver num lugar desolado como este onde poderia ver o sol prse os fins de tarde da forma como Deus planeara que o ele fizesse.

    casado ou solteiro? perguntou a velha.Houve um longo silncio. Minha senho

    ra, perguntou ele por fim, onde poderia euencontrar uma mulher inocente nos temposque correm? No estou interessado em nenhum desse lixo que posso ir buscar sempreque quiser.

    A filha estava muito inclinada para a frente,com a cabea quase ao nvel dos joelhos observandoo atravs de uma porta triangular que tinha construdo com os cabelos; e de repentecaiu no cho num sobressalto e comeou a choramingar. Mr. Shiftlet agarroua e ajudoua avoltar para a cadeira.

    a sua menininha? perguntou ele.

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  • A minha nica disse a velha, e a rapariga mais doce do mundo. No a trocava por nada deste mundo. Alm disso, esperta. Sabe lavar o cho, varrer, cozinhar, lavar roupa, dar decomer s galinhas, e no, eu no a trocava nempor uma arca cheia de jias.

    No disse ele com gentileza, no deixenunca que homem nenhum a leve para longede si.

    Se vier um homem atrs dela disse a velha,eu no saio de casa.

    No escuro, os olhos de Mr. Shiftlet estavamcravados na parte do prachoques do carro quecintilava na distncia. Minha senhora, disseele, atirando o seu meio brao para cima comose com ele pudesse apontar para a casa e oquintal e a bomba, no h nada estragado nesta plantao que eu no possa consertar para si,aleijado de um brao ou no. Sou um homemdisse com uma dignidade triste, mesmo queno seja um homem completo. Tenho, disse elebatendo com os ns dos dedos no cho para enfatizar a importncia do que ia dizer, uma inteligncia moral! e a sua cara escorregou da escurido para um raio de luz vindo da porta eolhou para ela como se estivesse impressionadocom esta verdade impossvel.

    A velha no ficou impressionada com a frase. J lhe disse que pode ficar por aqui e tra

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  • balhar para ter que comer disse ela, desde queno se importe de dormir na barraca do carro.

    Mas oia, minha senhora, disse ele com umsorriso deleitado, os monges de antigamentedormiam dentro dos seus caixes!

    No estavam to avanados como ns estamos agora disse a velha.

    Na manh seguinte Mr. Shiftlet comeou aconsertar o telhado da casota do jardim enquanto Lucynell, a filha, se sentava numa pedrae olhava para ele enquanto trabalhava. Aindano tinha passado nem uma semana e j a mudana que criara no stio era visvel. Tinha consertado os degraus da frente e das traseiras,construdo um curral novo para os porcos, restaurado uma vedao, e ensinado Lucynell, queera completamente surda e nunca pronunciarauma palavra na vida, a dizer a palavra bird1A rapariga grande de cara rosada andava atrsdele para onde quer que ele fosse, batendo palmas e dizendo Burrttddt, ddbirrrtdt. A velhaolhava da distncia, secretamente satisfeita.Andava doida para ter um genro.

    Mr. Shitflet dormia no banco traseiro estreitoe duro do automvel com os ps fora da janela.

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    1 Pssaro. (N. da T.)

  • Tinha a sua lmina de barbear e uma caixa comgua num barril que lhe servia de mesa de cabeceira e pusera um bocado de espelho contra o vidro preto e mantinha o casaco por perto num cabide pendurado por cima da janela.

    Ao fim da tarde sentavase nas escadas econversava enquanto a velha e Lucynell abanavam violentamente as cadeiras, uma de cada lado dele. As trs montanhas da velha eram negras contra o cu azul escuro e eram visitadasocasionalmente por vrios planetas e pela luaquando j tinha abandonado as galinhas. Mr.Shiftlet salientou que a razo pela qual tinhamelhorado tanto a plantao era porque acabara por se interessar pessoalmente por ela. Disseque at ia fazer o automvel voltar a funcionar.

    Tinha levantado o capot e estudado o mecanismo e disse que era evidente que o automvel tinha sido construdo no tempo em que osautomveis eram mesmo construdos. Se viremagora, disse ele, um homem pe um parafuso, eoutro homem pe outro parafuso, e outro homem pe outro parafuso, de maneira que umhomem por parafuso. Por isso que precisopagar tanto por um carro: preciso pagar todos esses homens. Agora, se s fosse precisopagar a um homem, podia arranjarse um carro mais barato e nesse carro algum teria investido o seu interesse pessoal, portanto seria

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  • um carro melhor. A velha concordou com eleque era assim mesmo.

    Mr. Shiftlet disse que o problema do mundoera que agora ningum se importava com nada,ou se dedicava particularmente ao que quer quefosse. Disse que nunca teria sido capaz de ensinar Lucynell a dizer uma palavra se no se tivesse dedicado e esperado o tempo necessrio.

    Ensinelhe outra palavra qualquer disse avelha.

    O que que quer que ela diga a seguir?perguntou Mr. Shiftlet.

    O sorriso da velha era largo a desdentado esugestivo.

    Ensinea a dizer sugarpie2 disse ela. Mr. Shiftlet. j sabia no que que ela estava

    a pensar.No dia seguinte comeou a mexer no auto

    mvel e nesse fim de tarde disselhe que se elacomprasse uma correia de ventoinha seria capaz de por o motor a funcionar.

    A velha disse que lhe daria o dinheiro. Vesta rapariga? perguntou, apontando paraLucynell que estava sentada no cho a cerca deum p de distncia, a olhar para ele, com osolhos muito azuis mesmo no escuro. Se algum

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    2 Literalmente tarte de acar, uma forma rural e antiquada de dizer querido. (N. da T.)

  • homem quisesse levla, eu diria Nenhum homem no mundo vai levar esta doce menina para longe de mim!, mas se o homem dissesseMinha senhora, eu no quero levla, quero ficar com ela aqui eu diria, Cavalheiro, noposso criticlo. Eu prpria no desperdiaria aoportunidade de viver num stio permanente eter a menina mais doce do mundo. O senhorno parvo diria eu.

    Que idade tem ela? perguntou Mr. Shiftlet.casualmente.

    Quinze, dezasseis disse a velha. A raparigaj tinha quase trinta anos mas era impossveladivinhar devido sua inocncia.

    Tambm seria uma boa ideia pintlo notou Mr. Shiftlet. No vai querer que ele se enferruge.

    Isso vemos depois disse a velha.No dia seguinte ele caminhou at cidade e

    regressou com os instrumentos de que precisavae uma lata de gasolina. Mais para o fim da tardeouviramse rudos horrveis vindos da cabana ea velha correu para fora de casa, pensando queLucynell estava num lado qualquer a ter um ataque. Lucynell estava sentada no galinheiro, a bater com os ps e a gritar Burrddtt! Bddurrddttt!mas a sua agitao era causada pelo automvel.Este emergiu da cabana com uma profuso confusa de exploses, num movimento orgulhoso e

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  • solene. Mr. Shiftlet estava sentado ao volante,com as costas completamente erectas. Tinha umaexpresso sria de modstia como se acabasse deressuscitar um morto.

    Nessa noite, a balanarse na cadeira, a velha foi direita ao assunto sem perder tempo.Quer uma mulher inocente, no quer? perguntou com simpatia. No deve estar interessado nesse lixo que anda para a.

    No, minha senhora, no estou respondeuMr. Shiftlet.

    Uma mulher que no possa falar continuouela, no pode responderlhe torto nem usar linguagem rude. de uma mulher assim que vocprecisa. Ali mesmo e apontou para Lucynell queestava sentada de pernas cruzadas na sua cadeira, a segurar ambos os ps com as mos.

    verdade admitiu ele. No me causariaproblemas nenhuns.

    No sbado disse a velha, o senhor, ela e eupodemos ir no carro at cidade e tratar do casamento.

    Mr. Shiftlet sentouse mais confortavelmente nos degraus.

    No posso casarme agora j disse ele.Tudo o que a senhora quer fazer custa dinheiro e eu no tenho esse gnero de dinheiro.

    Para que que preciso o dinheiro? perguntou a velha.

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  • preciso dinheiro disse ele. Algumas pessoas fariam as coisas de qualquer maneira nostempos que correm, mas da maneira como eupenso, eu no me casaria com uma mulher queno pudesse levar a viajar como se fosse umapessoa importante. Quer dizer, precisava de levla para um hotel e tratla bem. No me casaria nem com a Duquesa de Windsor disse elecom firmeza, se no pudesse levla para umhotel e oferecerlhe um bom jantar.

    Fui educado assim, e no h nada que eupossa fazer para mudar isso. A minha velhame ensinoume como que se faz.

    A Lucynell nem sequer sabe o que um hotel, resmungou a velha. Oia l, Mr. Shiftletdisse ela, deslizando para a frente na cadeira, osenhor ganharia uma casa permanente com umpoo fundo e a rapariga mais inocente do mundo. No precisa de dinheiro nenhum. Deixemedizerlhe uma coisa: no h nenhum lugar nomundo para um pobre homem aleijado e semamigos que anda deriva.

    As palavras feias instalaramse na cabea deMr. Shiftlet como um grupo de milhafres no cimode uma rvore. No respondeu logo. Enrolou umcigarro e depois acendeuo e depois disse numavoz sem inflexo, Minha senhora um homem constitudo por duas partes, o corpo e o esprito.

    A velha apertou as gengivas com fora.

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  • Um corpo e um esprito repetiu ele. O corpo, minha senhora, como uma casa: no vaipara lado nenhum. Mas o esprito, minha senhora, como um automvel: sempre a moverse, sempre...

    Oia Mr. Shiftlet disse ela, o meu poonunca seca e a minha casa est sempre quenteno Inverno e nada neste stio est penhorado.V ao tribunal e veja por si prprio. E debaixodaquela cabana tem um belo automvel. estendeu o isco com cautela. Pode tlo pintadoat Sbado. Eu pago a pintura.

    Na escurido, o sorriso de Mr. Shiftlet esticouse como uma cobra fina a acordar junto auma fogueira. Ao fim de um segundo recompsse e disse, Estou s a dizer que o espritode um homem vale mais para ele do que qualquer outra coisa. Teria que levar a minha esposa a passear pelo menos um fim de semana, semme preocupar com os custos. Preciso de seguiro meu esprito para onde ele quer ir.

    Doulhe quinze dolares para uma viagemde fim de semana disse a velha com uma vozseca. o melhor que posso fazer.

    Nem sequer chegava para mais que pagar agasolina e o hotel disse ele. No dava para elacomer.

    Setenta e cinco disse a velha. tudo o quetenho por isso no ganha nada em estar a ten

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  • tar ordenharme. Podem levar um farnel para oalmoo.

    Mr. Shiftlet ficou muito magoado com o termo ordenhar. No duvidava de que ela possuiria bastante mais dinheiro enfiado dentro do colcho mas nessa altura j lhe tinha dito que noestava interessado em dinheiro. Heide fazercom que isso chegue disse e levantouse e foiseembora sem lhe dirigir nem mais uma palavra.

    No sbado guiaram os trs at cidade nocarro com a pintura ainda mal acabada de secare Mr. Shiftlet e Lucynell casaramse no gabinete da conservatria com a velha como testemunha. Quando saram do edifcio do tribunal, Mr.Shiftlet comeou a torcer o pescoo dentro docolarinho. Parecia moroso e amargurado comose tivesse sido insultado enquanto algum o segurava. Isto no me satisfez, disse. Foi suma coisa que uma mulher fez num gabinete,nada mais que anlises de sangue e papeladas.O que que eles sabem sobre o meu sangue?Mesmo que eles me tirassem o corao e o cortassem disse ele, continuariam a no saber nada sobre mim. No me satisfez de todo.

    Satisfez a lei disse a velha abruptamente.A lei disse Mr. Shifltet e cuspiu. a lei que

    no me satisfaz.Tinha pintado o carro de verde com uma fai

    xa amarela mesmo por baixo das janelas. Sen

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  • taramse os trs no banco da frente e a velhadisse, A Lucynell no est bonita? Parece umaboneca. Lucynell envergava um vestido brancoque a me tinha desenterrado de um ba e depois retocado e trazia um panam branco na cabea com cerejas de madeira vermelhas voltada pala. De vez em quando a sua expresso plcida modificavase com um pensamento breve eisolado como um raio verde que atravessasse odeserto. Saiulhe a sorte grande! disse a velha.

    Mr. Shiftlet nem sequer olhou para ela.Voltaram a guiar para casa para deixarem a

    velha e levarem o almoo. Quando estavamprontos para partir, a me de Lucynell ficou parada a olhar para a janela do carro, com os dedos apertados contra o vidro. Nunca me separei dela por dois dias antes disse.

    Mr. Shiftlet ligou o motor.E nunca deixaria nenhum homem levla

    mas vi que o senhor a trataria bem. Adeus, Sugarbaby disse ela, acariciando a manga do vestido branco. Lucynell olhou de frente para ela eno pareceu tla visto de todo. Mr. Shiftlet fezo carro deslizar em diante para a velha ser obrigada tirar dali as mos.

    O princpio da tarde estava claro e aberto ecercado por um cu azul plido. Embora o automvel no atingisse mais que trinta milhaspor hora, Mr. Shiftlet imaginou uma escalada

    22 OCONNOR

  • magnfica seguida de vrias curvas em ganchoexecutadas com percia a grande velocidade,que lhe subiu inteiramente cabea e lhe permitiu esquecer a sua amargura da manh. Sempre quisera ter um carro e nunca conseguiracomprar um antes. Guiou muito depressa porque queria chegar a Mobile ao anoitecer.

    A certa altura, deteve os seus pensamentos otempo suficiente para olhar para Lucynell nobanco ao lado do seu. A rapariga grande comera o almoo assim que tinham sado da cerca dacasa e agora estava a puxar as cerejas do chapu uma por uma e a atirlas pela janela. Mr.Shiftlet ficou outra vez deprimido apesar do automvel. Tinha guiado mais umas cem milhasquando decidiu que ela j devia estar com fomeoutra vez e na cidadezinha seguinte a que chegou parou em frente de um lugar para comerfeito de alumnio pintado, chamado The HotSpot 3 e levoua l para dentro e mandou virduas doses de fiambre e bolos de trigo4. A viagem tinha causado sono noiva e assim que subiu para o banco Lucynell encostou a cabea aobalco e fechou os olhos. No estava mais nin

    A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 23

    3 Literalmente O lugar quente, significando O lugar que est adar. (N. da T.)4 Prato caracterstico da Amrica sulista, extremamente gordurodose muito apreciado. O trigo esmigalhado com gua por forma a fazerum pasta, e depois frito na chapa em bolas irregulares. (N. da T.)

  • gum no The Hot Spot alm de Mr. Shiftlet e dorapaz do balco, um jovem plido com um pano engordurado por cima do ombro. Antes queele conseguisse engolir o que tinha no seu prato, j ela estava a ressonar suavemente.

    Dlhe a comida quando ela acordar disseMr. Shiftlet. Eu pago j.

    O rapaz inclinouse e comeou a olhar parao cabelo de tom dourado rseo e para os olhosentreabertos no sono. Depois levantou o olhar ecravouo em Mr. Shiftlet. Parece um anjo deDeus murmurou.

    Anda boleia explicou Mr. Shiftlet. E euno posso esperar. Tenho que chegar hoje aTuscaloosa.

    O rapaz voltou a inclinarse e tocou numamadeixa do cabelo dourado com muito cuidadoe Mr. Shiftlet foise embora.

    Sentiuse mais deprimido que nunca medida que guiava em solido. O fim da tarde tinhase tornado quente e hmido e a paisagemera agora mais plana. No fundo do cu estavauma tempestade a prepararse muito devagar esem troves como se tivesse a inteno de sugar todas as gotas de ar da terra antes de explodir. Havia certas alturas em que Mr. Shiftletpreferia no estar entregue a si prprio. Tambm achava que um homem possuidor de umautomvel tem algumas obrigaes para com os

    24 OCONNOR

  • outros e mantinhase alerta a ver se algum pedia boleia. A certa altura viu um sinal que dizia: Guie com Cuidado. A vida que salvar pode ser a sua.

    De cada lado da estrada estreita apareciamagora campos secos e aqui e ali uma cabana ouum posto de gasleo emergia nas clareiras.O sol comeou a prse mesmo em frente do automvel. Era uma bola avermelhada que atravsdo prabrisas parecia achatada em cima e embaixo. Viu um rapaz com jardineiras e um chapu cinzento parado na berma e reduziu a velocidade e parou diante dele. O rapaz no tinha opolegar levantado, mas trazia consigo uma mala de carto pequena e o chapu estava posto nacabea de uma forma que indicava que acabarade abandonar algum stio para sempre. Jovemdisse Mr. Shiftlet, vejo que queres uma boleia.

    O rapaz no disse se queria ou no queriamas abriu a porta do carro e entrou, e Mr. Shiftlet recomeou a guiar. A criana ps a mala nocolo e dobrou os braos por cima dela. Virou acabea e olhou pela janela afastandose de Mr.Shiftlet. Mr. Shiftlet sentiuse oprimido. Jovem disse ao fim de um minuto. Eu tenho amelhor me do mundo e por isso deduzo que tus tens a segunda melhor.

    O rapaz atiroulhe um olhar escuro e breve edepois voltou a olhar para a outra janela.

    A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 25

  • No h nada mais doce continuou Mr.Shiftlet, do que a me de um rapaz. Ensinoulhe as primeiras oraes nos seus joelhos, deulhe amor quando mais ningum lho daria, disselhe o que que estava bem e o que que noestava, e viuo fazer as coisas certas. Jovemdisse ele, nunca senti num nico dia da minhavida o que senti quando abandonei aquela minha velha me.

    O mido agitouse no banco e no olhou para Mr. Shiftlet. Descruzou os braos e ps umamo no fecho da porta.

    A minha me era um anjo de Deus disseMr. Shiftlet numa voz muito tensa. Ele tirouado Cu e deuma a mim e eu fugi dela. Os seusolhos ficaram instantaneamente enevoados pela humidade das lgrimas. O carro quase noandava.

    O rapaz voltouse violentamente no banco.Vai para o diabo! gritou. A minha velha umsaco de pulgas e a tua um gato fedorento esfomeado! e com isto escancarou a porta e saltou com a sua mala para a berma.

    Mr. Shiftlet ficou to chocado que durantecerca de cem ps continuou a guiar devagar coma porta ainda aberta. Uma nuvem, exactamenteda cor do chapu do rapaz e em forma de nabo,tinha descido pela frente do sol, e outra, compior aspecto, estava acocorada por trs do carro.

    26 OCONNOR

  • Mr. Shiftlet sentiu que a podrido do mundo estava prestes a devorlo. Levantou o brao e deixouo cair sobre o peito. Oh Senhor!, rezou.Aparece a varre a lama deste mundo!

    O nabo continuou a descer devagar. Depoisde alguns minutos veio o estrondo tremendo deum trovo por trs e pingos de chuva fantsticos, como tampas de latas de sopa, esbarraramcontra a traseira do automvel de Mr. Shiftlet.Carregou com fora no acelerador e com o cotovelo fora da janela lanouse a alta velocidade para Mobile debaixo do duche galopante.

    A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 27