fiorin, josé luiz - interdiscursividade e intertextualidade in bakhtin - outros conceitos-chave...

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1l;\f.://7'IN (lUlroSt'>ilt'ciIO,-cl",ve

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, ti'

Interdiscursividade eintertextualidade

José Luiz Fiorin

Nnm tlhi ea uidenuH qui futura cccincrunt. si nOlldum sumI Nequeenim potest uideri id quoJ non cst. Et qui narranr praeterita, non

UdrjllC llL'm narmrcllt, s; animo iIIa non cemerem: quac si IlUJJaessem.

cemi omnino non posscnr,l

(Sallto Agostinho)

Só Ilrr" ~xíSl~ " qll~ "ã" p"de .,er illmginaJo.

(MrfflW Mendes)

ExisteI, c·CS!coexisrer.

(Gabrle! Mllcul}

Agostinho, em sua bela reflexão sobre o tempo, mostra-nos, ao discutir

a existência do passado e do futuro, que só se pode falar do que é e não

daquilo que não é. Conclui pela existência do passado e do futuro porque

falamos dele. Sunt fllJO et jittura et prae.terita: Essas reflexões agostinianas

vêm bem a fnopósito, gU:llldo se trata de explicar ° problema dainterdiscursividade c da intencxtualidade em Bakhtin. Se formos arer-nos

Il,\KIl TlN oUtrost'tlnccit"s'c1>nvc .• .. _ .--- ... -

ao significante, não temos o que dizer, pois, na obra bakhtiniana, não ocor­rem os termos interdiscurso, intercexto, interdiscursivo, interdiscursividade,

intercextualidade. No conjunto da obra do autor russo aparece uma única

vez o termo intertextual: "As relações dialógicas intercexcuais e intratextuais.

Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e dialética" (Bakhtin, 1992,

p. 331). No entanto, a primeira coisa a verificar diante dessa ocorrência é se

ela se trata de um problema de tradução. Como a tradução brasileira foi

feita a partir do francês, consultou-se primeiro o texto em francês, em que

a palavra também aparece: "Les rapports dialogiques intertexwels et

intratextuels. Leur caractere particulier (extra-linguistique). Dialogique et

dialectique" (Bakhtin, 1984, p. 313). Como, no entanto, a tradução fran­

cesa cerramente estaria impregnada das ressonâncias da obra de Kristeva,

que introduziu Bakhtin na França, seria preciso consultar outras traduções

feitas a partir do texto russo. Tomando a tradução espanhola. nota-se quenela o termo não ocorre: "Las relaciones dialógicas entre Ias textos y dentro

de los textos. Su carácter específico (no lingüística). El diálogo y Ia dialécticà'

(Bakhtin, 1985, p. 296). Essa tradução parece mais fiel ao texto russo

(Bakhtin, 1986, p. 299). Assim, não há nem mesmo o termo intertextuaL na

obra bakhtiniana2 e esse verbete, portanto não teria lugar. No entanto, a

questão é mais complexa, pois, como nota Sírio Possenti, "sob diversos

nomes - polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade - cada

um implicando algum viés espedfico, como se sabe, o interdiscurso reina

soberano há algum tempo" (Possenti, 2003, p. 253). Assim, a questão é: a)

verificar se, sob outro nome, a questão do interdiscurso está presente na

obra de Bakhtinj b) examinar se é pO,ssível distinguir, com base nas idéias

bakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade.

o APARECIMENTO DO TERMO INTERTEXTUALIDADE

A palavra intertextuaLidttde foi uma das primeiras, consideradas como

bakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidcme. Isso se deu graças à obra de

J úJia Kristeva. Obteve cidada.nia acadêmica, antes mesmo de termos como

dialogismo alcançarem notoriedade na pesquisa lingüística e literária.

Rastreemos brevemente a história do aparecimento desse termo.

162

__ ' __. .._.. _.~ lmcrdiscursividndc c imertextunlidadc JOSÉ Lurz FIORIN

Em 1967, Kristeva publica, na Critique, uma longa discussão acerca das

teorias bakhtinianas expostas nas obras Problemas da poética de Dostoiévski e

A obra de Français Rabel.ais (Kristeva, 1967, pp. 438-65).3 A preocupação

da semjoticista era discutir o texto literário. Segundo ela, para Bakhtin, o

discurso literário "não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de

superficies textuais, um diálogo de várias escrituras" (Idem, p. 439). Todo

texto constrói-se, assim, "como um mosaico de citações, todo texto é absor­

ção e transformação de um outro texto" (Idem, p. 440). Em sua leitura da

obra de Bakhtin, Kristeva identifica discurso e texto: "O discurso (o texto)

é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, um

outrO discurso (rexto)" (Idem, p. 84). Afirma ainda que, no lugar da noção

de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade (Idem, p. 441).

Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o

"diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem" (Idem, p. 443). Por

isso, ele vê "a escritura como leitura do corpus literário anterior e o texto

como absorção c réplica a um outro texto" (Idem, p. 444). Está aí elltfOnizada

a noção de intertexcualidade como procedimento real de constituição do

texto. Mais t,lt't!C, Kristcva vai elaborar a proposta teórica de um:! ciência

do texto, a que denominou Semanálise (Kristeva, 1974).

No entanto, essa intertexrualidade generalizada não pode funcionar se sevê o texto da maneira como tradicionalmente ele foi definido. Por isso, Kristeva

trata de repensar essa noção. Roland Banhes, em verbete para a edição de

1973 da Encyclopedia universaLis, explica, de maneira didática, esse conceito

redefinido pela semioticista búlgara (Barthes, 1994, pp. 1.677-89). Segundo

a opinião corrente, o texto é "a superfície fenomênica da obra literária: é o

tecido das palavras utilizadas na obra e organizadas de maneira a impor um

sentido estável e tanto quanto possível Único" (Idem, p. 1.677). Como diz

Banhes, no hll1do, ele não passa de "um objeto perceptível pelo sentido da

visão" (Idem. ibid.). Corno o texto é "o que está escritO", ele é, na obra,

o (lU~,~\lSdl:l" g;lfallti" da coi,a e,crita, CtJi"S lilllçõe> de snlvagu:ltda

dl' l'OIlCl'illr,,, de UI11 lado, n cstabilidndl" n pcrmanê,\cin dn inscri­

çno. deslilllld., a corrigir à fmgilidndc e a imprecisão d., memória; de

Olltro. a It'galidadc da lelra, tr.\ÇOirrcCllsável, indelével, 00 semitlo

quc () aulOr da obra nela imencionalmellte depOSitou, O tex[O é

uma arma contra o tempo. o esquecimento, e contra as velhacarias

163

/1t1KII7'lN oUlr"S(;(lIlCCiWs-chayc

da palavm, que, muito r.,cilmcme. volta atrás, ai rem-se, renega-se. A

noção de rexto csd, portanto, historicamellte ligad~ a todo um con­

jUlltO de ins!ituiçóe,ç: direito, Igreja, lireraturn, ensino; o texto é um

objeto mornl: é o que eMa eserim, enquanto participa do contrnto

social; ele assujeita, exige ser observado e re$pdtado; m:lS em troc.1

confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência

eb nao tem): a .'egurnnç.1. (Idem, ibid.)

O texto assim concebido, como "depositário da própria material idade

do signiflcanre" (Idem, p. 1.678), deveria ser mantido em sua exatidão.

Para isso, cria-se a filologia, que se vale da técnica da crítica textual. Essa

concepção de texto está ligada a uma merafísica, a da verdade. Ora, no final

do século XIX, começa~se a demolir essa metaf{sica. Por isso; também a no­

ção de texto entra em xeque (Idem, pp. 1.677-80). Citando Kristeva, Barrhes

redeflne o texto: "aparelho translingüístico que redistribui a ordem da lín­

gua colocando em relação uma palavra comunicativa, que visa à informa­

ção direta, com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos" (Idem,

p. 1.680). Atribui a Kristeva a elaboração dos principais conceitos teóricos

implicados nessa noção de texto: práticas significantes, produtividade,

significância, fenotexto e genotexto e inrertextualidade. Dizer que o texto é

prática significanre quer dizer que "a significação se produz, não no nível

de uma abstração (a língua), tal como postulara Saussure, mas como uma

operação, um trabalho, em que se investem, ao mesmo tempo e num só

movimenro, o debate do sujeito e do Outro e o contexto social" (1994,

p. 1.681). O texto é uma produtividade, porque é o teatro do trabalho com

:1 língua, que ele desconstrói e reconstrói (Idem, ibid.). É significância,

porque é um espaço polissêmico, onde se enrrecruzam v,írios sentidos pos­

síveis, A signiflcância é um processo, em que o sujeito se debate com o

sentido e se desconrrói (Idem, p. 1.682). O fenotexto é "o fenômeno verbal

tal como ele se apresenta na estrutura do enunciado concreto". É contin­

gente. Já o genotcxto é ()campo da significância, domínio verbal c pulsional,

onde se cstrutura o fenotexto, lugar da constiruição do sujeito da cnunciação

(Idem, pp. 1.682~3)."Todo texto é um intertexro; outros textos estão pre~sentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou mcn~~ ~e~o;;fjcdveis"

(Idem, p. 1.683). A interrextualidade é a maneira real de construção do

texto (Idem, ibid.).

164

hll('r(list"\lr~ivic.l"dc C ilHertcxltlulit1:lclc )051: 1.U1Z FIOR/N

Como se observa, o conceito de texto em Kristeva e Banhes, na medida

em que é pdcica significante, em que desconstrói e reconstrói a língua, em

que é o lugar de constituição do sujeito, em que seu modo de funciona~

mento real é a relação constitutiva com OUtros textos, poderia muitO facil­

menre recobrir aquilo que entendemos por discurso. Aliás, esse conceito de

texto apresenta um problema, que é distinguir, de um lado, manifestação

acabada do trabalho com a língua e, de ourro, esse próprio trabalho. Não é

sem raz.'i.oque Kristeva teve de diferença r o fenotexto do genotexto. E Banhes

faz uma distinção entre o texto e a obra. Esta é um objeto acabado, aquele

é um trabalho, uma produção (Idem, p. 1684). Cabe uma última pergun­

ta: por que esses autores não utilizaram o termo discurso? Porque, segundo

Barrhes, essc termo estava comprometido semanticamente. A linguagem

estava dividida em duas regi6es distintas e heterogêneas para fins de análise:

tudo o que era de nível inferior ou igual à frase era do domínio da lingüís­

tica; tudo o que estava no nível superior ao da frase, O discurso, era objeto

de uma ciência normativa, a retórica (Idem, ibid.).

Barthes não desqualiflca a lingüística, nem a retórica, nem a semiótica,

nem a semiologia. Apenas propugna a constituição de uma semanálise, que

teria um objeto, o texto, diverso daqueles dos campos do conhecimento

acima eitados. A semiótica, por exemplo, para ele, estudaria o fenotexto.

Ora, nesse conjunto de níveis e de objeto, ?.q,ue é. exatamente a

intertexwnlidade? Qualquer referência ao Ourro, tomado como põsiçao

discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetiçÕes,

reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, vai-i'antes

lingüísticas, lugarcs comuns, cte. O conceito foi sendo üêiliz.ãdCide li-iárieira

. muito frouxa, :\0 longo do (Cmpo. É hota, entretanto, de voirar à obi-á' de

Bakhtin c começar a discutir os problemas enl1nciados na introdução.

A Ql1IsrAo no INTEIWISCURSO FM BAKIITIN

Em Ihkhtin, a qucstão do inrerdiscurso aparece sob o nome de

dialogisl11o. É preciso examinar mais detidamente e~se conceito. C~~pre,no c 11 mn to, iniciaimcn tc, afastar duas lei turas recorrentes da obra

bakhtiniana: a) dialogismo equivale a diálogo, no sentido de ince ração face

165

IJAKlfT1N OU\rosconceilOS'chnvc • _ _______ lnterdiscursividadc c intcncxtualidade JOSÉ LU1Z FIORIN

Mas o que é efetivamente dialogismo em Bakbtin? Interessam-nosdois sentidos:

textos, do que es!:! concluído e do que eslá sendo elaborado em

relação ao primeito. H:l., portamo, enconCro de dois sujeicos, de

dois autores. (Idem, pp. 332·4).

Como não existe objeto que não seja cercado, envolto, embebido em

discurso, rodo discurso dialoga com outros disctlrso.~, toda palavra é cerca~

da de outras palavras (Bakhtin. 1992, p. 319).

® Por que o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem?

Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com

ela é sempre mediada pela linguagem. Afirma Bakhtin que "não se pode

realmente rer a experiência do dado puro" (Bakhtin, 1993, p. 32), ,Isso quer

dizer que o real se apresenta para nós semioticamente, o que impli~~'qtiénosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros

discursos, que semiotizam o mundo. Essa relação entre os discursos é o

dialogismo. Como se vê, se não tem~s reiação com as coisas, mas com o~discursos que Ibcs diio sentido, o dialogismo é o modo de funcionamento

real da linguagem, uma vez que

i·1

/ a) é o modo de funcionamento real da linguagem e, portamo, é seu princípiocansei cutivo;

b) é uma forma particular de composição do discurso.4

[...) todo discurso concreto (cnuncíaçiio) encomra aquele objeto p.ara

o qual esd voltado. sempre. por assim dizer, desacreditado, COntes­

[;Ido, avaliado, cl1volvi<!oI'llt sua névo:t ""lira Oll, pelo conrclrio,

iluminado pelos discursos de outrem que já F.1lamrnsobre ele. O

objeto CSlrlamarrado e penetrado por ideias gerais, por pOntOSde

vism, por apreciações de OUlros e por entonações. Orientado para o

sell objeto. o discurso penetra ncste meio dialogic:unente perturba­

do e lenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.

Ele se entrelaça com eles em inremçóe.'i complexas, fundindo-se com

uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros: e tudo isso pode

IOrlnar sulmandalmelllc o discurso, penetrnr em todos os seus es­

Ir;Hos"'1I1:1nlic"",,IOrnar cOlllplcxa a suo express50, influenciar todo

o Srtl '\SPl'CIO "slilfstico. (Bakhtill. 1,),)8, 1" R6)

' ..,

a face; b) há dois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores e o

dialogismo entre discursos (cf., por exemplo, Authier, 1982, pp. 118-9).

Essas duas afirmaçóes parecem equivocadas.

Bakhtin, em O problema do texto, afirma;

o esprrito (o próprio e o do outro) n50 pode ser dado enqu~mro

objeto (objeto diretamente obsetvável nas ciências naturnis), mas

somente na expressão que lhe datá o signo, na realiZ<lçãoque lhe

dará o texto - em se tracando de si mesmo e do outro. [... } O gc.,ro

natural na representação do atar que adquire valor de signo (a

lítulo de gesto deliberado, representado, submetido aO desrgnio

do papel). [... 1 () estellograma do pensamento humano é sempre

o estcoogralna tle um dirllogo dc tilH) especial: a c01l\plexa

inrerdcpendência entre o /(:</0 (objeto de anrllise e de renexão) e o

cOl/re)."/o que o elabora e o envolvc (comexto inrerrogativo,

COl1le.'lat,'>rio,etc.) alt:tv"s dll <]ual se reali?l ,) pellsamento do '"­

jeilO que pratica () :\lo tI:t wgniçiío c do juíw. 1-\;\ encolltH) de dois

o diálogo real (conversa comum. discussão ciemífica, conrrovér­

sia poIrtiCl, ecc.). A relação existente entre as réplicas de tal diálo­

go oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da rela­

ção dialogica. Não obstame, a telação dialógica não coincide de

modo algum com as relações existentes emre as réplicas de um

diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa.

(Bakhtín, 1992. pp. 353-4)

O dialogismo não se confunde com a:intetação face a face (cf. Bakbtin,

1998, p. 92). Essa é uma fOrma composicional em que ocorrem relações

dialógicas, que se dão em todos os enunciados no processo de comunica­

ção, tenham eles a dimensão que tiverem. Não se pode, portamo, pensar o

dialogismo como algo que possa reduzir-se aos estudos que faz, por exem­

plo, a Análise da Conversação.

Em segundo lugar, não se pode dizer que haja dois dialogismos: entre

interlocutores e entre discursos. O dialogismo é sempre entre discursos. O

interlocutor só existe enquanto discurS;'- }-kp~k,'~me~báêe Clea~is dis­

cursos: o do locmor e o do interlocmor, o que significa que o dialogismo se

dá sempre entre discursos, Isso fica claro quando Bakhtin discute a questão

do que chama as "ciências do espírito" e o problema da "compreensâo":

L66 167

IlAKHTlN "lIlro~r(lI1ceiln';-ch:lVe

Bakhtin, ao contrário do que faz crer cena leitura eivada de marxismo

vulgar, não nega a existência do sistema da Ilngua, já que, "por trás de todo

texto, encontra-se o sistema da língua" (Idem, p. 331).) Não condena seu

estudo; ao contrário, considera-o necessário para estudar as unidades da

língua (Idem, pp. 357-8). No entanto, mostra que ele não dá conta do

modo de funcionamento real da linguagem (Idem, pp. 346-7). Por isso,

propõe uma Outra disciplina, a translingüística,G que teria por objeto o exa­

me das relações dialógicas entre os enunciados, seu modo de constituição

real (Bakhtin, 1970, p. 239; 1992, p. 342).

As palavras e as orações são as unidades da Ilngua, enquanto os enun­

ciados são as unidades reais de comunicação. As primeiras são repetíveis,

os segundos, irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos (Idem, pp.

334-5; p. 287; pp. 295-7; p. 332). Bakhtin, diante da irrcprodutibilidade

do enunciado, pergunta-se se a ciência pode tratar de uma individualida­

de tão irrepetível, que estaria fora do domínio do conhecimento científi­

co - que deve tender à generalização. Responde que, em seu pOnto de

partida, a ciência trabalha com singularidades. Depois, faz generalizações

sobre a forma específica e a função dessas singularidades, o que significa,

no caso da translingüística, estudar os aspectos e as formas da relação

dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formas

tipol6gicas (Idem, p. 335).

Não é a dimensão que determina o que é um enunciado: ele pode set

desde uma réplica monolexemátÍca até um romance em vários tomos (Idem,

p. 305). O que delimita sua fronteira é a aJternância dos sujeitos falantes.

Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabele­

ce entre todos eles (Idem, p. 298). Nesse caso, o dialogismo é constiwtÍvo

do enunciado, ele não existe fora do dialogismo:

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação ver­

hal de urna dada c~fcm. As rrunleirns desse cnuuciado <lctcrmi­

Ilau,",~epela alll'rn~llcia <10,\sujeitos f:\lantes. o. clluuciado. nijo

são imlircrenres uns :1O.~ otltros nem aUla-suficientes; conhecem­

se uns aos outros, refletem-se mutuamente. $50 precisamente cs­

scs reflexos recfproco .•que Ihcs determinam o caráter. O enuncia­

do eslá replcto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aOS

'1uais esliÍ vinculado numn e.,fera Ctllnllm <..Iacomunicaçâo verbal.

16R

rl1lcr(lj5~:ursividadec imerrcKtualidade JOSÉ I.UlZ FIOR1N

o cnullciado dcvc ~er considerado acima de tudo como uma res­

pil.~I'1n cl1l1r\t"iad". allleriorl's dClIlrtl de unln dada esfcra (a palavr;t

"resposta" está cmpl'egada aqui no scntido laro): rcfuta-os, confir­

ma-mo complcra-os. supõe-nos cOllhecido~ e, de um modo ou de

ourro. conta com elcs. Niio se pode esquecer que o enunciado

ocupa uma posiç50 defillida numa dada esfera da comunicação

verbal relariva a um dado problema. a uma dada questiio. etc, Não

podemos dcterminar nossa posição sem correlacioná-Ia a OUtra.~

posiçól'., (Idem, p. 3 J 6)

A relação dial6gica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre

enunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justa~

postos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo IingUístico), en­

tabularão uma relação dialógica (Idem, pp. 345~6).A primeira caractcrística de um enunciado é ter um autor, ao passo

que as unidades da língua não pertencem a ninguém. Os enunciados re­

velam sempre uma posição de autoria (Bakhtin, 1963, pp. 240-1 j 1992,

p. 308). É por isso que as relações dialógicas não são relações lógicas ou

semânticas, mns rebções entre distintas posições (Bakhtin, 1963, pp. 24­

241). O enunciado, sendo como que uma réplica de um diálogo, possui

um acabamento específico (Bakhtin, 1992, p. 299). Por isso, ele constitui

um todo de sentido (Idem, p. 351) e, por conseguInte, permite uma res­

posta. As unidades da língua não têm acabamento, não constituem um

todo quc possibilita uma resposta (Idem, p. 299). As unidades da língua

são completas, mas não tem acabamento. A completude é característica

do elemento, o acabamentO é o que singulariza o todo (Idem, p. 307). A

palnvra fogo é completa, mas não suscita nenhuma resposta. S6 quando

adquirc uma autoria e ganha um acabamento, rransforma~se em enunci­

ado, (IUC denuncia uma situação de perigo e permite ser objeto de uma

resposta. Sendo réplicas de um diálogo, os enunciados têm um destinatá­

rio, enquanto as unidades da língua não são dirigidas a ninguém (Idem,

p. 3')3). As llnidadl's da língua silo neutras, os enullciados contêm neces­

sariamcnte emoçõcs, juízos de valor, expressões (Idem, pp. 308-12),7 As

unidades da língua, puramente potenciais, têm significação, que se deter­

mina na relação com outras palavras da mesma língua ou de outra l1ngua

(Idem, p. 346). Os enunciados não têm significação, mas sentido (Idem,

169

IJAKHTlN ourros conceitos-chave ,__.__ -.• _

p. 355). Se eles são constitutivamente dialógicos, seu sentido é de ordem

dia lógica (Idem, p. 342 e p. 355). O sentido concreto (distinto da signifi­

cação) é o conteúdo do enunciado (Idem, p. 310) e sua natureza é dialógica

(Idem, pp. 310, 335 e 326). Como se vê, o conceito de enunciado em

Bakhtin recobre o que chamamos habitualmente discurso. Adiante, apre­sentaremos algumas precisões a mais sobre essas correspondências.

Quando se diz que o dialogismo é constitutivo do enunciado, está-se

afirmando que, mesmo que, em Sua estrutura composicional, as diferentes

vozes não se manifestem, o enunciado é dialógico. Toda réplica, considera­

da em si mesma, é monológica, enquanto lOdo monólogo é dialógico (Idem,

pp. 345 e 317-8). Todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela

duas posições: a sua e a do outro.

Como noca Faraco, um dos significados da palavra diálogo é o que

remete à "solução de conflitos", "entendimenro", "promoção de consen­

so"; no entanto, o dialogismo é tantO convergência, quanto divergência; é

tantO acordo, quanto desacordo; é tanto adesão, quanto recusa; é tanto

complemento, quanto embate (Faraco, 2003, p. 66). Prossegue ainda

Faraco, mostrando que, na verdade, "o Círculo de Bakhtin entende as

relações dialógicas como espaços de tensão entre os enunciados", pois,

"mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer

de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com OLltros dizeres (Oll­

tras vozes sociais)" (Idem, p. 67). Isso significa que, do pauto de vista

consCÍtutivo, o dialogismo "deve ser entendido como um espaço de luta

enrre as vozes sociais" (Idem, ibid.). Assim, pode-se dizer que,

constiturivamenre, a relação dialógic~ é contraditória.

Exemplifiquemos esse caráter constiturivo do dialogismo. Para isso, to­

memos um fragmento do sermão do quinto domingo da Quaresma, de Vieira:

Como cstamos na corre, onde das casos dos pequenos não se faz

caso, nem têm nome de casas, busquemos c~ra fé em alguma casa

grnnde e dos grandes, Deus me guie.

O escudo desra port~da em um quartel tem as quin:ls, em outro

as lises, em outro as águias, leões e castelos; sem dúvida esre deve

ser (")palácio em que mor:! a Fé crisrã, c:ltólica e crisrlanf,Isima.

Enrremos c vamos examinando (l q~le virmO.I, pane por 1':1rt c'.

l'rimciro que tudo vejo cav;llo.', lileiras e cnches; wi" cri'ldns dt,

170

.-.--- .. lnrerdiscursividade e Inrerrexrualidade JOSÉ LU/i: FIOR/N

diver~o~ c~libres, uns com Iibré, ourros sem c1~; vejo galas. vejo

jóias. vejo baixela~: as paredes vejo-as cobertas de ricos rapius;

das janelas vejo ao peno jardins, e ao longe quintas; enfim, vejo

rodo o palácio e também o oratória; mas não vejo a fé. E por que

não aparece a fé nesta c~s~? Eu o direi ao dono dela, Se os vossos

cavalos comem à cusra do lavrador, e os freios que mastigam, as

ferradura.~ que pisam e as rodas e o coche que arrastam são dos

pobres oficiais. que andam arrastados sem poder cobrar um real,

como se há de vcr a fé na vos,~acavalariça? Se o que vestem os

lacaios r os pajens. e os socorros do olltro exúcito doméstico

[J\a~cllli'10 e feminino dependem do mereador que vos assistc, e

tio principio do ano lhe pagais com esperanças e no fim com

desr~perações. a risco de quebrar. eomo se há de ver a fé na vossa

fitrn/lia? Se as galas, as jói3s e as baixelas, ou no Reino, ou fora

dele foram ~dqllirid~s com tanta injustiça ou crueldade, que o

ouro e a prnrn derretidos, e as sed~s se se espremeram. haviam de

Vt'rtcr sangue, como se há de ver a fé ncss~ Falsa riqueza? Se as

voss~.' parede,~ estão vestidas de preciosas tapcçarias, e os m iserá·

veis a quem despisres para as vestir a elas, estão nus ou morrendo

de frio, como se há de ver a fé, nem pintada nas vossaS paredes?

Se a Primavera está rindo nos j:lrdins e nM quintas, e as fontC5

estão nos olhos da triste viúva c órfãOs, a quem nem por obriga­

çno. ncm por esmola sarísf:1zcis. ou agradcceis o quc seus pais vos

~ervirilm. C01ll0 se há dc ver :I fé nes.las Acres c alamcda,,? Se as

pcdms da me~I1l:lC:lS:lem que vivcls, d"de os telhados ~té os ali­

l'erres t'SIão dlOveml" os "umes dos ;"rnalcirn.~, a quem nnO Glzfcis

a {«ria. c, se q~lerial11ir busc:lr a vida a outra parte, os prcndlcis e

obrig:íveis por força, C0l110 se há de ver a fé. nem sombra dela na

vossa casa1 (Vieira. 1959. vai, 11, como 4, pp. 203-4)

Nesse sermão, Vieira fala do que é a fé e resolve mostrá-Ia no palácio

(alguma casa grande) de um nobre (dos grandes). Simula estar entrando,

juntamente com os ouvintes por ele convidados, em um palácio de fidalgos

muito ricos cujo escudo no alto da portada exibe os signos heráldicos (qui­

nas, Iises, águias, leões e castelos) da "fé cristã, católica e cristianlssima" da

família. Vai, enrão, fazendo ver, de um lado, as riquezas da casa, os objetos

de luxo, os cavalos e coches, a multidão de criados, as belezas dos jardins e

das quintas, ctCi de outro, os seres humanos explorados para que essa rique­

Z:l possa existir: os pcqucnos proprietários de terra, a quem não se paga o

171

IJI1KI JTlN (llllrflHOncdlnS-dlllVC

que os cavalos comem; os artesãos, a quem não se pagam os objeros (freios,

ferraduras, rodas e coches) que fizeràJll; os mercadores, a quem não se pa~

gam as mercadorias que forneceram; os criados, a quem não se pagam os

salários; os diaristas (jornaleiros), a quem não se paga a féria (a diária); as

viúvas e os órfãos de criados, a quem se deixa no abandono.

Vieira nota, então, que não pode haver fé, sem que se leve uma vida em

conformidade com ela, ou seja, deixa claro que não há fé sem as obras

correspondentes. A fé cristã, segundo o pregador, exige a justiça com os que

trabalham, implica que o trabalho seja remunerado, que a riqueza não se

construa sobre a exploração do outro. O sermão de Vieira constitui-se em

oposição ao discurso feudal, que defendia os privilégios da nobreza e as

relações servis de trabalho, em que os servos tinham obrigação de prestar

serviços ao senhor e não podiam I11udar de trabalho, pois estavam presos a

uma propriedade ("se queriam buscar" vida a outra parte, os prendícis e

obrigáveis pela força"). Em oposição ao discurso que defendia os privilégios

da nobreza, dados por seu nascimento, Vieira tem o ponto de vista da socie~

dade mercantil, que valoriza o trabalho dos operários e dos burgueses (mer­

cadores, eec.); que condena as relações servis de trabalho c dcfende o

assalariamento, em que o operário tem a liberdade de fazer contrato de

trabalho com quem quiser; que preconiza que o valor de cada homem não

é dado por seu nascimento, mas por sua ação no mundo. Condena yiva­

mente os que dizem ter fé, mas que não praticam as obras correspondetHes.

O sermão de Vieira faz parte da esfera do discurso religioso, é um discurso

jesufdco, pregando que o ser humano se define por sua ação no mundo.

Opõe-se ao discurso jansenista, segundo o qual a fé basta para salvar o

homem, mesmo que desacompanhada das obras. O discurso religioso de

Vieira manifesra uma voz ativista e pragmática, que se constirui numa rela­

ção polêmica com o que foi chamado o quietismo, que sustenta que a per­

feição consiste na anulação da vontade, na indiferença toral em relação aos

acontecimentos e na união contempladva com Deus.

Observe~se que mesmo que cssas vozes todas não sejam mostradas no

enunciado, elas constituem o enunciado de Vieira, pois ele se constrói em

oposição a elas, em comradição com elas. É dessa forma flue Bakhtin expli­

ca a produção da estatuária grotesca, que se constitui em oposição à estatuária

clássica (Bakhtin, 1970a, pp. 33-6).

17)

Il1Icrdiscursivid~dc C intcrtcxtualidadc JOSÉ I.UlZ I'IORIN

No "simpósio universal" (Ba.khtin, 1989, p. 293), que poderíamos in­

terpretar como uma formação social específica, definida pelo presente de

seus múltiplos enunciados contraditórios, pelo passado discutsivo, a tradi­

ção de que é depositária, e pelo futuro discursivo, suas utopias e seus obje­

tivos, atuam {orças centrípetas e centrífugas. Aquelas buscam impor uma

centralização enunciativa no plurilingüismo da realidade; estas procuram

minar, principalmente, por intermédio da derrisão e do riso, essa tendência

centraJizadora (Bakhtin, 1988, pp. 80~3). As ditaduras são centrípetas; as

democracias centrífugas. Ali ditaduras têm um forre componente nardsico.

Com cfeito, poderíamos fazer uma leitura dos mitos de Narciso e Eco, à luz

do princfpio do dialogismo. Esses dois mitos aparecem sempre juntos: em

Eco existe a negação radical da identidade, já que ela foi condenada por

Juno a jamais ter a iniciativa da palavra; em Narciso ocorre uma recusa tOtal

da "lteridade, pois de se apaixona pela pr6pria imagem refletida llO espelho

das águas de lima falHe. Eco e Narciso são a própria negação do dialogismo.

As ditaduras, em seu afã ccntrípeto, apresentam um forte componente

narcísico, tentando negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindo

que os ouU·os a ecoem. No CIH:lnto, essa mesma identidade é consriru(da

dialogicalllcnre (Idem, p. 81).

COIno observa Faraco, Bakhtín, com os conceitos de forças centr(petas

e forças centrífugas, "aponta para a existência de jogos de poder enrre as

vozes que drculam socialmente" (Faraco, 2003, p. 67). Isso significa que,

para o autor russo, não há uma neutralidade na circulação de vozes. Ao

contrário, e1<l tem uma dimensão polfrka. As vozes não circulam fora do

,~xercício do poder; não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer.\2) Além desse dialogismo .que não se e~ibe no fio do disc.urso, há u:n

outro, que nele se mosrra. E quando as dlferentes vozes são lllcorpor~~.as l-~+·110 interior do discurso. Dizemos que, nesse caso, o dialogismo é uma

forma composicional. É aquilo a que Bakhrin chamará "concepção ~si:;ei-

ta do diaJogislJ1o" ou "formas exrernas, yis{veis", do dialogjsmo (Bakhrin,

1992, p. 350). Cabe aqui um esclarecimento. O autor russo não as con­

sidera menos imporrântes. Quando afirma que reduzir o dialogismo a

elas é ter uma visão estreita desse fenômeno, quer dizer que o diaJogismo

vai muito além dessas formas em que as vozes entram na composição do

enunciado, pois ele é o próprio modo de funcionamento real do enuncia-

173

I

U.llK/ J 7JN ()Ull'o:-; cUllú'itüs·chavc"

do, o próprio modo de sua constituição. No entanto, essas formas deincorporação do discurso do Outro são a própria maneira de tornar visívelesse princípio de funcionamento das unidades reais de comunicação, osenunciados. São modos pelos quais o princípio real de funcionamento da

linguagem é enunciado.Há duas maneiras básicas de incorporar distintas vozes no enunciado:

a) aquela em que o discurso do outro é "abertamente citado e nitidamen­te separado" (Idem, p. 318); b) aquela em que o enunciado é bivocal, ou

seja, internamente dialogizado (Idem, p. 348 e pp. 337-8; 1970, pp. 248­58). Na primeira categoria, entram formas composidonais como o dis­curso direto e o discurso indireto (Bakhtin, 1979, pp. 141-59), as aspas(Bakhtin, 1992, p. 349), a negação (Bakhtin, 1970, pp.240-1); na se­

gunda, aparecem formas composicionais como a paródia, a estilização, apolêmica velada ou clara (Idem, pp. 259-60); o discurso indireto livre(Bakhtin, 1979, pp. 160-82).

Observemos um exemplo de cada um desses procedimentos

composicionais. Para o primeiro, tomaremos um caso de negação.

Cansados, finalmente. os embaixadores de lhcs responder o Batis­

ta que não era Messias. nem Elias, nem profeta pediram-lhe, fi­

nalmenre, que, pois ele.' nao acenavam a perguntar, Ihes dis,es.,e

ele quem era. A esta insrância não pôde deixar de deferir o lhlista.

E ° que vos parece que responderia? Ego mln vox c/Al1It1ntiJ i1/

deJato: Eu sou uma V01. que clama I1UdcscrlO, Verd,,,kir:IIl1<'ll1l'

não entendo esta resposta. Se os emhaixadores pergul1\ar;Ull ;lu

Batista o que fazia. então estava bem respondido com a voz que

clamava no deserto. porque o que.o Badsta fazia no deserto era dar

vozes e damar; mas se os embaixadores perguntavam au [latl'ln

quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu

discretissimamente. Quando lhe petguntavam quem era, respon­

deu o que fazia: porque Clda um é o que faz, e não é ourrn cousa.

As eClUSaSdefinem-se pela essência: o Bacista definiu-se pelas ações;

porque as ações de Clda um são a Sua essência. Definiu-se pelo que

fazia, para declarar o que em,

Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de

pondemr, O Batista, perguntado se era Elias, respondeu que não

era Elias: NOIl S1II1I. E Cristo no capfwlo onze de S. Mateus disse

que o Balista era Elias: JOI1/1I1(J Bt1/tisttl ipu tst E/il1s. Pois .'e

174

Jlllel'dí~llrsivi<i;ltI,· c il\I"rlexllluliclntle )051" I.U/Z F/ORIN

CriSto diz que o Badsta em Etias, como diz ° mesmo Batista que

não era Elias? Nem o Badsta podia enganar, nem Cristo podia

enganar-se: como se hão de concotdar logo estes textos? Muito

facilmente. O Batism era Elias, e não era Elías; não era Elias,

porque as pessoas de Elías e do Batista eram diversas: era Elias.

porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modés­

tia do Barism disse que não era Elias, pela diversidade das pesso­

as; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade

das ações, Era Folias,porque fazia ações de Elias. Quem f.11. ações

dc Elias li F.lias; quem fizer ações de Batista será Batista; e quem

as fizer de Judas será Judas. Cada um é as suas ações, e não é

outra causa, Oh que grande doutrina esta pata o lugar em que

escamas! Quando vos pcrgull[arem quem sois, oão vades revol­

ver o Ilobilidrio de VO.'iSOS avó.'. ide vera maHicuL1 de vossas ações.

O que fazds, isso soi.', nada mais. Quando ao Batista lhe per­

gulltaram quem em. não disse que se chamava João, nem que er:l

filho de Zncarias; não se definiu pelos pais. nem pelo apelido, Só

de suas :tções formou a sua definição: Ego vox c/AmIl7ltÍJ. (Vieira.

1959, vai I, torno I. pp. 211-3)

No Sermão da Térceira Dominga do Advento, a que esse trecho pertence,Vieira parte do episódio bíblico Uoão, 1, 19~34), que narra a ida a JoãoBatista de uma embaixada de sacerdotes e levitas de Jerusalém, a fim de

perguntar-lhe quem era, e sua resposta de que era a voz que clama nodeserto. Com base nessa resposta, Vieira tece uma argumentação, paramostrar que cada UI11 sc ddllll' por aquilo que f:1z, pelo seu trabalho. O que

importa aqui é analisar a negação que aparece no seguinte trecho: "Quandovos perguntarem quem sais, não vades revolver o nobiliário de vossos avós,ide vcr a matrícula de vossas ações", Vieira nega o pOnto de vista social queafirma que a posição de uma pessoa na sociedade é dada pela família emque nasceu, pelo sangue. Ao contrário, assevera que o que define o serhumano é sua ação no mundo. Mais adiante, em outro trecho desse ser­

mão, negará que a fidalguia, a nobreza, seja uma herança familiar, afirman­do que pertence à esfera da ação, do trabalho. Diz que ela não é qualidade

nem sangue, mas ação. Esse sermão opõe-se à posição aristocrática de que anobreza é algo onrológico, um valor herdado pelo nascimento. A essa pers­pectiva Vieira contrasta a idéia de que a nobreza é uma virtude conquistadano trabalho, de que não há uma ordem social natural. Poderíamos dizer

175

TlAKIITlN OllllOseoneeilOS·chave .._.. . ...

que à maneira de ver da aristocracia feudal Vieira contrapõe o modo bur­

guês de considerar o mundo. A negação, ao receber um autor, mostra os

dois pontos de vista distintos.

Para o segundo procedimento, tomemos um caso de discurso indireto livte:

Olhou áS cédulas arrumadas na palma, os n(queis e as prams, sus­

pirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar.

Baixava a crista. Se nno baixa.lse, desocuparia a terra, largar-se-ia

com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Par.1 onde? Hem?

linha par.1 onde levar a mulher e 05 meninos? TInha nada! {... ]

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Apa­

rentemente resignado. sentia um 6dio imenso a qllalquer coisa

que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrno, os soldados

c os agentes da prefeitura. Tudo na -verdade era con tra ele. Es­

tava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes arre­

liava. Nno havia paciência que supormssc tanra coisa. (Ralllos,

1971. PI), 138-9)

No discurso indireto livre, misruram-se duas vozes, a do narrador e a <.Ia

personagem (em nosso texto, Fabiano). No entanto, faltam elementos

lingüísticas, como os dois ponros e o travessão 110 discurso direto ou a

conjunção integrante que no indireto, que determinem a fronteira entre as

duas. Há dois tOns diferentes, que permitem perceber essas duas vozes: o

tom mais ou menos neutro da narração e o tom entre colérico e resignado

da personagem. Há frases claramente do narraoor ("Olhou as cédul;)s arru­

madas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços"); ou­

tras que, sem dúvida nenhuma, pertencem à personagem ("Para onde? Hem?

Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!"). Outtas, no

entanto, poderiam ser de um ou de outro ("Se pudesse mudar-se, gritaria

bem alto que o roubavam" poderia ser dita tanto pelo narrado r quanto pela

personagem). Essa impossibilidade de separação nítida entre a voz do

narrado r e a da personagem, faz do enunciado em discurso indireto livre

um enunciado bivoca!. Ao misturar Sua voz à da personagem, o narrador

revela uma "profunda simpatia" por esse homem submetido a condições

"pré-capiraJistas" de trabalho, a esse homem espoliado e degradado. É como

se o narrador assumisse como sua a indignação da personagem diante da

exploração a que estava sujeira,

176

.- .. _.- - .... o. _ •• Interdiscursividadc c intertextuaHdade JosE LUIZ FIORIN

Cabe perguntar agora se o dialogismo é um fenômeno social ou indivi­

dual. Em Olltr;)s palavr;)s, as vOzes que estão em re\;tção dia lógica são indi­

viduais ou sociais? A teoria formulada por Bakhtin leva em conra tanto o

que é de ordem individual, quanto o que é do domínio social:

o locutor l1~o é um Adno. c por isso ° objeto de seu discurso se

[nma, incvitavelmcllle, o pomo onde se cncommm as opiniões de

illlerloclltores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca

de qualqucr aconcccilllCI1l0 da vida cotidiana) ou então as visócs de

Illundo, as tendências, as lcorias. etc. (na esfera da comunicaç5o

culmral). fi visfio dc mundo. a tendência, o ponto de vista, a opi­

"ifio têm scmpre slIa eXl'res.~áoverbal. (Bakhtin, 1992. pp. 319-20)

Ao levar em conta o individual e o social, Bakhtin pretende considerar

não só ;)s polêmicas políticas, culrurais, econômicas, que refletem visões de

mundo Jivers;1s, maS também fenômenos como a fala - que se vai moldan-

do pela opinião do locuror imediato ou a reprodução da fala alheia com

uma CI1tOIl:1çãozombeteira, dubitariva, admirativa, indignada, <lprovadora,

reprovadora, etc. (Idem, pp. 337-8; cf. 1988, pp. 91-3) É toda uma gama

de fcn6nK'llos que c.~tiíopresentes na cOl11unicaçií.o real. No entanto, a rela­

ção entre o individual e o social não é simples nem estanque em Bakhtin.

De um lado, Bakhtin mostra que a maioria das opiniões dos indivíduos é

social. Todo enunciado, além de um destinatário imediato, que é percebido

com mnÍor ou menOr consciência, dirige-se a um superdestinatário, cuja

compreensão respol1siva, idealmemc correta, é determinante em sua pro­

dução. Esse superdestinatário assume uma identidade que varia de época

para época, de formação social para formação social, de grupo social para

grupo social: a Igreja, a "correção polftica", o partido, a ciência, ctc. (Bakhtin,

1992, pp, 356-7). Na medida em que mesmo uma réplica individual numa

conversação cotidiana se dirige ao superdesrinatário, os enunciados são, na

maior parte das vez.es, sociais. De outro, não preconiza um sujeito absolu­

tamenre assujcitado, o que seria a própria negação da heteroglossia e do

dialogismo. Como observa Faraco, a utopia bakhtiniana é "a resistência a I ~qualquer processo centrípeto, centralizado r" (Faraco, 2003, p. 72); o

dialogismo incessanre é ":1 lll1ica f(ltllla de preservar a liberdade do ser hu­

mano c do seu inacabamento; uma relação, portamo, em que o OUtro nun-

ca é rei ficado; em que os sujeitos não se fundem, mas cada um preserva sua

177

IJ,IKIITlN ounoscOnccilOs'chavc _ -----~_ ..~._~_. -- IJlIl'f,j;sc.:ursivid"dc c illlertexwalídade JOSÉ LUlZ T'IOR1N

própria posiçã~ de extra-espacialidad~ ~ e.x~e~~().de_yisão e a compreensão

daí advindà' (Idem, p. 73-74). A singularidade do sujeito ~corre na "inceração

viva das vozes sociais" e, por isso, ele é social e singular (Idem, p. 83).

Normalmente, quando se fala. em dialogismo, pensa-se em relações com

enunciados já constituídos e, portanto, enunciados anteriores, passados.

No entanto, o enunciado está relacionado não só aos que o precedem, mas

também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. Com efei­

to, na medida em que um enunciado é elaborado em função de uma res­

posta, está ligado a essa resposta, que ainda não existe. O locmor sempre

espera uma compreensão responsiva ativa e o enunciado se constimi para

essa resposta esperada (Bakhtin, 1992, p. 320).

INTERDlSCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE

Notam Beth Brait e Rosineide de Meio que,

como (...] é próprio do pensamento bakhriniano, a concepção de

enunciado/enunciaçiio não se cncomm pronm e acabada numa derer­

minada obT<l,num determinado tCXW:o sentido e as particularidades

v50 sendo construIdos ao longo do conjunto das obr:ls,

indissociavdmente implicados em outras noções paulatinamente

construídns. [...] O enunciado concreto, visto dessa perspectiva tcóri­

C:I poder.\, ao longo de outros obras (e em diferentes tradllçóes) [...1

~cr~ubstitllldo "li fundido l1a idéia de r,davra, de teXLO,dt, disnlfw «­

aré mcsmo de enúndação concreta). (Brait, 2005, p. 65 e 67).

Pelas razões apontadas por Bralt e Melo, há uma dificuldade em distin­

guir os conceiros de texto, enunciado e discurso na obra de Bakhtin. Ora eles

se equivalem; ora se distinguem. Para nossos propósitos, tomaremos o traba­

lho O problema do texto,8 em que Bakhtin tratou, de maneira específica, da

questão do texto. Nele, os termos texto, enunciado e discurso não se recobrem.

O texto "representa uma realidade imediata (do pensamento e da emo~o)"

(Bakhtin, 1992, p. 329). Sendo o texto "um conjwlto coerente de signos", ele

não é uma enddade exclusivamente verbal. Na verdade, ele é uma categoria

presente em todas as linguagens, em todas as semióticas (Idem, ibid.). A dife­

rença fundamental cntre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, embora

sua separação n5,,' ., rígida, reside no fato de que, naquelas, "o pensamento é

\78

orientado para o pensamen to, o sentido, o significado do outro, que se manifes­

tam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de textos. Quaisquer

que sejam os objedvos de um estudo, o ponto de partida só pode ser O texto"

(Idem, p. 330). O texto, em Bakhtin, é wna unidade da manifestação: manifes­

ta o pensamento, a emoção, o sentido, o significado.

Cada texto tem atrás de si um sistema compreensível para todos (con­

vencional, dentro de uma dada comunidade) - uma língua, "ainda que seja

a língua da arte" (Idem, p. 331). Não há texto que não pressuponha uma

língua. Se não há lima língua atrás de um texto, temos um fenômeno natu­

ral e não um texto: por exemplo, uma sucessão de gritos e gemidos (Idem,

ibid.), Tudo o que no texto é repetitivo e reproduzível é da ordem da lín­

gua, pois o texto é único, individual e irreproduzível (Idem, ibid.). Mesmo

quando o texto é reproduzido por um sujeito (excetuada evidentemente a

reprodução mecânica. como. por exemplo, a reimpressão), "é um aconteci­

mento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeia

histórica da reprodução verbal" (Idem, p. 332). Todo texto tem um autor e,

por isso, o texto enquanto entidade "não se vincula aos elementos

reproduzíveis de um sistema da língua (dos signos) e sim aos outros textos

(irreproduzíveis) numa relação específica, dia[ógica" (Idem, ibid.). "O acon­

tecimento na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteira

de duas consciências, de dois sujeitos" (Idem, p. 333). Temos, pois, num

texto, dois pólos: o que é reproduzível e o que é irrepetível.

As Ciências Humanas si[Uam-se entre esses dois pólos:

Pode-se tendcr paT<lo primeiro pólo. isto é, para a lfngua - a lín­

gua de UI1l aUWf, a IIn[!.llade um gênero, de um movimcnto litcrá­

rio, a língua natural (o procedimcl1to da Lingülstica) - c. por fim,

para a língua potencial (o procedimento do esrrururalismo, da

glossemáricaJ. Pode-se tcnder para o segundo pólo, para o acontc­

çimenro irreproduz(vcl do tcxto (Idem, ibid.).

Se o texto tem um autor, é irrepetível e só ganha sentido na relação

dialógica, texto não é, na verdade, sinônimo de enunciado? É preciso ler

cuidadosamente o trabalho de Bakhtin, juntando indícios colocados ao longode seu texto:

179

IJIlKIITIN outro~tonteílo~-chave ""'"__o -"

"O texto enquanto emmcÍltdo (Idem, p. 330).

Dois fatores determinam um texto c o tornam um enunciadn: scu

projero (a intenção) e a execução desse projeto (Idem, p. 332).

Fora dessa relação (a relação dia16gica), o enunciado não tem rea­

lidade (a não ser como texfO) (Idem, p. 351).

A Lingüística lida com o texto, não com a obra, [...] Pode-se dizcr,

simplificando, que a abordagem puramcnte linglHstica (ou seja, o

objeto li~gülstico) encara a relação do signo com o signo e COIll os

signos dentro dos limitcs do sL~tema de uma llngua ou dc um

texto (relações com o interior de um sistema ou relações lineares

entre os signos). A relação de um enunciado com a realidade exis­

teme, com o sujeito /iJ.lante real e com os outros enunciados renis

(relação que faz que um enunciado seja o primeiro li articular o

verdadeiro Oll o falso, o belo, ete.). esta relação não poderia [Or­

!lar-se obJeto da Lingtífstica. Os signos tomados isolndnml'nll', O

sistema de IIIll:l IIngua (lU o texto (enquanto Unidade de Siglll")

lliío podem ser verdadeiros, nem falsos, nem bclm", (Idem. PI',

352-353).

Na medida em que o texto se torna um enunciado, de é distinto deste.

O texto pode ser visto como enunciado, mas pode não o ser, pois, quando

o enunciado é considerado fora da relação dialógica, ele só tem realidade

como texto. Pode-se ter uma Lingü(stica que estuda o texto, mas o faz

como uma entidade em si, fora das relações dialógicas, já que essas não

podem ser objeto da Lingüística.Se o texro é distinto do enunciado e este é um todo de sentido (Idem,

p. 351) - marcado pelo acabamento (a obra) (Idem, p. 345), dado pela

possibilidade de admi tir uma réplica~, cuja natureza específica é dial ógica,o texro é a manifestação do enunciado, que é uma "postura de sentido"

(Idem, p. 352). Por isso, ele é uma realidade imediata, dotada de uma

materialidade, que advém do fato de ser um "conjunto de signos". Oenunciado é da ordem do sentido; o texto é do domínio da manifestação.

O sentido não pode consrruir"se senão nas relações dialógicas.'J Sua mani­

festação é o texto e este pode ser considerado como uma entidade em si.Há ainda um elemento curioso nesse texto: é que Bakhtin diferencia

enunciado e discurso. Diz ele:

180

I1lfNdiSl'ursividmlc c inlCrreX1Unlidadc JOSt: I.UlZ FIOR1N

Pode-se estabelecer um pdndpio de identidade corre ti Jlngua e o

discurso, porque no discurso se apagam os limites dialógicos do

ellul1ei~do, m~s jamais se pode confundir IIngua e comunicação

verbal (entendida como comunicação dialógica efetuada mediante

ellunciados). (Idem. p. 335).

o discurso deve ser entendido como uma abstração: uma posição so­

cial considerada fora das relações dialógicas, vista corno uma identidade.

Poder-se-ia então acusar Bakhtin de considerar as relações dialógicas como

exteriores ao discurso. Não, pelo contrário, o enunciado (inrerdiscurso)

não é um conjunto de relações entre intradiscursos (discurso, em Bakhtin).O inrerdiscurso é interior ao intradiscurso. é constiturivo dele. Na comu­

nicação verbal real, o que existem são enunciados, que são constitu~

tivamentc dialógicos. O discurso é apenas a realidade aparente (mas rea­

lidade) de quc os f.1lamcs concebem seu discurso autonomamente, dão ade uma idcntidade essencial. Entretanto, no seu funcionamento real, a

linguagem é dialógica.

Com base em tUdo o que foi dito, é poss(vel distinguir interdiscursividade

e inrcrtcxwalidade. \Á:llrcmos a Bakhtin: "O texto como mônada específica

que refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera. Interdependência

do sentido (na medida em que se realiza através do enunciado)" (Bakhtin,

1992, p. 331).

Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enuncia­

dos e aquelas que se dão emre textos. Por isso, chamaremos qualquer rela­

ção dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, inrerdiscursiva.

O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a

relação discursiva é marerializada em textos. Isso significa que a

interrextualidade pressupõe scmpre uma inrerdiscursividade, mas que o

contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não semanifesta 110 texto, temos interdiscursividade, mas não interrextualidade.

No cnlan to, é preciso vcrificar que nem todas aS relações dialógicas mostra­das no tcxto devcm scr consideradas ifl[crtexruais. Bakhtin fala em "rela­

ções Jialógicas interrexruais e intratexruais" (Idem, ibid.). Como já mostra­

mos, seria mais fiel ao texto russo falar em relaçóes dialógicas entre textos e

dentro do texto. As relaçõcs dentro do cexto ocorrem quando as duas vozes

se acham no interior dc Ulll mesmo texto: no caso do exemplo de Vidas

181

IJAKIITlN outros conceitos-chave

secas, temos uma relação dialógica dentro do texto, pois as vozes do narradore de Fabiano se encontram no interior de um texto, não estão constituídasnum outro texto fora do texto em análise. A mesma coisa acontece no

exemplo da negação em Vieira. No entanto, pode-se ter também relaçõesentre textos, quando um texto se relaciona dialogicamente com outro textojJ constituído. Há no texto que se relaciona com elc um encontro de doistextos. É o que acontece, por exemplo, na negação que aparece em Satélite,de Manuel Bandeira:

SATÉLITE

Fim de tarde.

No céu plúmbeo

A Lua baça

Paira

Muito eosmograf1Clmente

Satélite.

Desmeta rori7.ada,

Desmitificada.

Despojada do velho segredo de melancolia.

Não é agora o goirão de cismas,

O astro dos loucos e enamorados,

Mas tão-somente

Satélite.

Ah Lua deste fim de rarde,

Dcmissionária de atribuições romântiCls:

Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,

Gosto de ti, assim:

Coisa em si,

- Sarélite.

---(Ihmldra, 1'>7), p. 2.~2)

lR2

Imerdlscursividade e intcrtextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

Nas linhas de 1 a 6, o poeta constrói uma figura da lua, situando-a num

fim de tarde, num céu pltí.mbeo, atribuindo-lhe a qualidade de baça e dizen­

do que ela paira muito cosmografieamente. Como cosmografia é a astrono­mia descritiva, principalmente referente ao sistema solar, o que o poeta

quer dizer com paira muito cosmograficamente é que a lua está no alto purac simplcs1llcI1tccomo um astro. Ele sintetiza essa imagem numa palavra:Satélite. Com essa figura, pretende enfatizar o conceito "puro" de lua, des­pojado de qualquer tipo de associação paralela, sem as impressões senti­mentais que ele evoca.

O uso reiterado do prefixo des, que indica ação contrária (desmetajorizada,

desmitificaJa, despojada), e a afirmação de que a lua não é agora o astro dosloucos e dos enamorados pressupõe que, no passado, ela foi metaforizada,

mitificada, considerada como o depósito do velho segredo de melancolia,como um golfão de cismas, como o astro dos loucos e enamorados. A nega­ção, tanto a indicada pelo prefixo des, quanto a feita pelo advérbio não,

implica a presença de duas vozes, dois pontos de vista a respeito da lua: um

que a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e demetáforas; outro que a considera em sua realidade nua indicada pela pala~vra satélite.

Apesar de essasduas perspectivas estarem delimitadas pela negação, pre­cisamos ainda de nosso conhecimento dos texros literários, para entender

bem o que o poera está refutando. As expressões "golfão de cismas" e "astrosdos loucos e enamorados" remetem-nos a uma estrofe do poema P!enilttnio,de Raimundo Correia:

Há tantOS al10s olhos nela arroubados,

No magnetismo do seu fulgor!

l.ua dos tristes e enamorados,

Golfão de cismas rascil1ador.

(Correia, 1976, p. 65)

Ao opor-se a lima concepção a respeito da lua, atribuída a um literatodo passado, podemos concluir não que o poeta esteja lamentando o fim dosbons tempos românticos e criticando a frieza do mundo moderno, mas queé avesso aos exageros sentimentais de uma certa literatura em torno da lua.

(2uando de diz s{'m S/;II1(i pllm as disporúbifidtTdes sentimentttis, quer dizer

183

/l/1KJ ITlN ollfrns"(1I1ttiws'ch"\'~

que a lu'a à qual dirige seus versos não está mais a exibir-se para pessoas

predispostas a vê-Ia de maneira sentimental. Se levarmos em conta que a

mais-valia se define como a diferença entre o custo da força de trabalho e o

valor do produro produzido pelo trabalhador, ao dizer fatigado de mais·valia, o poeta manifesta sua aversão aos exageros próprios de literatos de

épocas passadas, que consistem em explorar a lua, roubando dela significa­

dos que ela não comporta. O poeta expõe sua predileção pela concepção

moderna (Gosto de ti assim: / Coisa em si, I Satélite).

Por meio das negações, e da negação de um texto poético, o poeta cir­

cunscreVe no texto dois pontOS de vista a respeito da poesia. Contesta uma

poesia que idealiza a realidade, assume como sua uma concepção de poéticacomo busca da essência da realidade.

Só pode ser considerada Ínterrextualidade a negação explícita dos versos

de Raimundo Correia. As outras negações são da ordem da

inrerdiscursividade. No poema de Bandeira, encontram-se dois textos: o deBandeira e o de Raimundo Correia. O texto de Raimundo Correia tem

uma existência como texto fora do texto de Bandeira. É só nesses casos que

se deve falar em inrertextualidade. Ela é o processo da relação dialógica não

somente entre duas "posturas de sentido", mas também entre duas

materialidades lingüísticas.

A concepção que, com base na obra de Bakhtin, adotamos de

intertextualidade é bastante restrita - nada tem a ver com o uso frouxo que

se,vem fazendo dela. No entanto, ela pode ser um pouco alargada.

Como os estilos são manifestados por "elementos de ordem material",

"quando existe uma vontade consciente de representar uma variedade de

estilos, estabelece-se sempre LI ma relação dialógica encre eles" (Bak1ltin, 1992,

pp. 339; cf. pp. 345, 347 e 349). Por ter uma materialiJade, os estilos de

autores, de movimentos literários, de grupos sociais, quando são estilizados

OtLparodiados, mantêm também relações inrertcxruais.

Mário de Andrade faz, no texto a seguir, urna parôd ia de estilo.

Senhoras:

Não ruuco vos surpreell,!cd, por certo, CJ ell(lercç<' e a liter:ltllra

delta 1l1issiva. Cumpre.nos, clltrClanto. Inici"r estas linhas de

salldadc e {lIuil<>amor nllll desagrad,ívd nova, r.bem vcnlade <jlle

na boa cidade de São 1'aul" - a maior do universo no di?cr de Sl'US

184

.. Inlcrdi5<:urslvidadeC itllcrtcxtu"lidade JOSÉ LU12 F10R1N

prolixos habitantes - não sois conhecidas por "iC'lmiabas", voz es­

púria, sinno que pelo :1.peladvo de Amazonas; e de Vós se afirma

cavalgardes bellgeros ginctcs c virdes da Hél"de c1ássiC'l;e assim

sois chamadas. Muito nos pesou a n6s, Imperamr vosso, tais dislates

de erudição, porém hds de convir conosco que, assim, ficais mais

heróicas e mais conspfcuas, mcadas por essa pátína respeidvel d"

tradição e da pUrC7.:1.antiga.

Mas não devemos espcrdiçarmos vosso tempo fero, e muito me.

1I0S coruurbarnl0s vosso entendimento. com noticias de mau cali.

bre: pas.lemos. pois. de imediato. ao relato de nossos feitos por cá.

Nem einco sóis eram passados que de vós nos panlramos, qU:lndo

a mais temerosa desdita pesou sobre nós, Por uma beh noite dos

idos de maio do nno tr"nslnto, pcrdlamos a muiraquitã; que outrém

grafara muraquitâ. e, "Iguns doutos, ciosos de etirnoJogias

esdníxulas. ortografam muyrakitam e até mesmo muraqué-itã, não

sorriais! H"vcis de saber que este vocábulo. tão f.,mili"r a vossas

troll1i'"S de Eusd'1uio. é quasi dc.'conhecido por aqui. Por estas

I'"ragens mui civis. os guerreiros ch~mam-se policias, grilos, guar·

das-cívicas. hoxislil.l. legaJisras. mazorqueiros. ere.; sendo que aJo

guns desses termos são neologismos ab,lUrdos - bagaço nefando

com que os desleixados e petimeues conspurcam o bom falar lusi.

tano. M"s não nos sobra já vagar para discretearmos "sub tegmine

f.1gi", sobre a Jrngua portuguesa. também chamada lusitana. O

que vos interessará. por Sem dúvíd:l. é saberdes que os guerreiros

de cá não buscam mavórdcas damas para o enlace epital:imieo.

I11~S antes a.s preferem dóceis e facilmente tratáveis por voláteis

folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro, o "curriculum

vitae" da civiliZàÇão a que boje fazemos pOnto de honra em per­

tencermos, (Andrade. 1978, pp. 71-2)

Esse texto, logo à primeirn vista, parece ter sido escrito num período

al~terior ao modernismo, em que se cultivava uma forma "clássica" de es­

crever. Os traços que permitem afirmar isso são:

:I) uso da segunda pcs,oa do p1ur,11 pata tratamento;

b) l"Illprt'gll sislt'm.'Íli(l) do p/uml majr.:stádco;

c) utilização do objeto indirero pleonástico, em Muito nos pesorl ti nós;

d) uso de um léxico prcciosista c até de sabor arcaizante (voz por "palavra",

missi/ltfS por "canas". Hél.ttde por "Grécia", beflgeros ginetes por "cavalos de

185

liA K//TIN outros conceilos-chnvc ------~-----------------------~-

guerra", distates por "asneiras", conspfcUllSpor" ilustres", "respeitáveis", pátina

por "envelhecimento" ,firo por "feroz", idos de maio por "dia 15 de maio";translato por "passado", petimetre por "homem que se veste com apuro

exagerado", discretear por "discorrer calmamente", enlace epitalâmico por"casamento", vulgo por "povo", mavórticas - adjetivo derivado de Mavorte,

forma epentética de Marte - por "guerreiras");

e) utilização de perífrases que chegam aOridículo, para falar de coisas bastante

banais (trompas de Eustáquio por "ouvidos");

f) emprego de formas da sintaxe clássica, como, por exemplo, oração reduzidade infinidvo em casoS em que no português moderno se utiliza uma

oração desenvolvida (de vós se afirma caval'{.ardes be!fgeros ginetes e virdes

da Hélade clássica);

g) uso do inflnitivo fIexionado em locuções verbais ou juntO de auxiliarescausadvos (não devemos esperdiçarmos;fazemos ponto de honra pertencermos);

h) emprego das normas portuguesas andgas de acentuação (sm'aiade em lugarde saudade, epitaldmico em vez de epitat.ímico);

i) citação de dois versoS de Os Lwíadas, com que se inicia o célebre episódio

do Gigante Adamastor.

Porém já cinco sóis eram p:lssados

Que dali nos parrframos cortando (v, 37, 1-2).

..

j) citação de um trecho do primeiro verso das BlICÓÜCtlS, de Virgflio: mbtegmine jàgi.

O texto surpreende no contexto do romance, porque o narrado r rompe

com a modalidade espontânea de linguagem que vinha utilizando até então

e adota um registro marcadamente formal. Ao optar por um léxico e uma

sintaxe já desusados, muito a gosto dos parnasianos e pré-modernistas (comoRui Barbosa, Coelho Neto, Bi/ac) , o narrador imita o estilo desses autores,

para ridicularizar a literatura brasileira do período anterior ao modernismo

e, por conseguinte, toda a cultura brasileira dessa época - já que esse estilo

correspondia ao gosto da moda. Ao satirizar o caráter anacrônico e formal

da linguagem d;l época, escarnece do caráter ultrapassado e solene de nossacultuf:i urbana em geral. Imniza as Jiscllssócs crimológ'lcls, l11uito aprccia­

das então. Ao dizer que as palavras da gíria ou da linguagem familiar são

186

. ~- Inlerdiscursividadc c intcrtcxtualidnde JOSE LVIZ F10RIN

neologismos absurdos, bagaço nefando, com que se conspurca a língua

portuguesa, satiriza os puristas. Ridiculariza uma certa norma do português,

o que era tido por "português castiço" no período. lroniza uma forma de

escrever, em que, sem o menor prop6sito, cita-se a literatura clássica. Ê um

caso de paródia de estilo, pois o narrado r desqualifica o estilo imitado no

próprio movimento de imitação,

Trata-se de um caSo de intertextualidade, pois é a rnaterialidade

lingüística-textual do escilo do pré-modernismo que se encontra presente

no texto de Manuel Bandeira. Entretanto, nem tudo o que diz respeito aestilo será do domínio da inrertextualidade. O estilo, sendo um fato do

funcionamento real da linguagem, constitui-se dialogicamenre. Nesse caso,

não se encontra num texto a materialidade lingüística-textual de dois esti­

los. Temos, então, um fato de interdiscursividade e não de incertextualidade,

pois é da ordem do dialogismo constitudvo.

A poesia da terceira geração romântica brasileira é uma poesia libertária.

Por isso, posicionou-se contra a escravidão e a favor do progresso. É escri­

ta numa linguagem grandiosa, cheia de hipérboles e antíteses. Toma ànatureza, à divindade e à história o material para metáforas e compara­

ções. Nela, a natureza significa e revela. Os símiles são construídos com

os aspectos da natureza que sugerem a imensidão e a infinitude: os astros,

o oceano, as procelas, os tufões, os alcantis, o Himalaia, os Andes. a águia,

o condor. É urna pocsia indignada (a "ira condoreira"), plena de vocativos,

dc ap<Ístl'Ofcs, de imprccações coIltra a divil1lbdc, de convocação da natu­

reza e dos heróis do passado. 'lem um tom oratória e, por isso, apresenta

a oralidade do discurso exaltado da praça pública. Esse tom declamatório

é marcado por reticências, que indicam as pausas dramáticas; por traves~

sées, que assinalam as pausas de e1ocução; por pontos de exclamação, que

modulam a ênfase. Há um grande subjetivismo no trato dos temas, pois

se pane do princípio de que os sentimentos e as emoções têm papel cen­

tral na História. Aos ideais de liberdade expostos no plano do conteúdo

correspondc lima grande liberdade de versificação, de ritmos e de rimas

(Bosi, 1975, pp. 132-6). Tomemos, para exemplificar, um fragmentO de

Navio negreiro, de Castro Alvcs, sem dúvida nenhuma o maior represen~

tal1le dessa geração.

187

1lt\I<HTJN OltlrOs,'oncciros-chnvc ._ _._ ..__._.

Existe um povo quc a bandeira empresta

Pra cobrir rama inf:imi:t e coOOrdia!... [... ]

Auriverde pcndão da minha tcrm,

Que a brisa do Brasil bcij~ e b~lança,

E.çtandane que a luz do sol encerra

E as promessas divinas de esperança",

Tu que. da liberdade após a guerra,

POHe hasteada dos heróis na lança,

Antes te houvessem roco na batalha.

Que servires a um povo de mortalha! ...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!.,.

Extingue nesta hora o brigue imundo

O [filho que Colombo ahriu lia vaga,'

Como um lris no pélago prorundo!'"

.,. Ma" ê inf?1mia de mais ... Da elérea plaga

uvantai-vos. hcróis do Novo Mundo ...

Andrada! arranca csre pendão dos ares!

Colombo! recha a porra de teus mares!

(Alves, 1972, pp. 183-4)

Em oposição ao tom grandiloqüente da poesia da cerceira geração ro'

mântica, o parnasianismo representou uma descida de tom. Constrói uma

poesia inenfática, que faz um esforço para aproximar-se impessoalmente

das coisas, dos objetos. Há um culto à forma, um ideal da arte pela arte. O

supremo cuidado estilístico não é senão a manifestação do desejo de criar

um objeto imperecível, longe dos embates da história. A religião da forma

cem origem no pessimismo que subjaz à ideologia do determinismo (Bosi,

1975, p. 187). No parnasianismo, há um efeito de objetividade no tratodos temas. Não se trara de remas sociais; ao contrário, há um fetichismo

dos objetos: "0 parnasiano típico acabará deleitando-se na nomeação de

alfaias, vasos e leques chineses, flautas gregas, taças de coral, ídolos de gesso

em túmulos de mdrmore ... e exaurindo-se na sensação de um detalhe ou na

memória de um fragmento narrativo" (Idem, p. 248). Por isso, o

parnasianismo tem um gosto particular pela descrição nítida (a "mlmese

pela mímese"), rrata-se de uma poética descritiva. do quadro, da cena, do

retrato. Seu compromisso não é intervir na História, mas operar a mímese.

188

l"lcrcli>ClIrsil'id~cle c inrertcxlunlidade .I0Sf: I.U/7. r-IOR1N

A esse desejo de consrruir um objero imarcesdvel correspondem os usos de

uma língua clássica, de uma sintaxe plena de inversões e s{nquises, de for­

mas tradicionais de metro, de rima e de ritmo, de um léxico preciosisra. Apoética parnasiana acaba com o que era considerado a frouxidão e a incorM

reção dos românticos (Idem, pp. 246-56). Sirva de exemplo para essa poéMtica, o soneto Vaso grego. de Alberto de Oliveira:

bla d~ áureo relevos. trabalhada

De Jivns mãos. brilhante copa, um dia.

Já de aos deuses servir como cansada

VinJa do Olimpo, a um novo deus servia.

Em o púcta Tens que a suspendia

Enl.io, (\ om rcpk'ra ora cnv:'{:çada,

A Inça amiga :l()~ dcdos .~t:ustini:!,

'I"da de roxas l,éta1a" colmad:1.

D"l1ois ... Ma.' o lavor da taça admira,

loca-a. e do ouvido aproximando as bDrd:l.~

Finas hás-de lhe ollvir. canora e doce.

Ignota V07., qual se da amiga lira

Fos,c a encanmda música das cordas,

Qual se e,,~aV07, de Anacrcomc rosse.

(n:1rIJosa, 1997, p. (42)

O estilo parnasiano se constitui numa relação dialógica com o da tercei­

ra geração romântica. Temos aqui um caso de interdiscursividade, mas não

de intcrrcxwalidade, pois não se encontram, no mesmo texto, duas

materialidades textuais distintas, como se vê, por exemplo, na "Carta prasicamiabas", de Mário de Andrade.

Olnvo Bílac tinha consciência da constitutividade dialógica do estilo eexpôs isso em SlI" Profissão de fi.

N,io '111~m(l /.""S CapilO!illO.

Herclíle(l c hdo.

'l:lIhar 110 In:[rl1lC>r('divi"o

(~nll1 o 'ç;Lnl.1rtdo.

189

EJAKHTlN oUlrosconceitos'ch~vo ---~------~~----------------

Que outro - não eul - a pedra corte

Par.l, brutal,

Erguer de Athene o altivo porre

Descomunal.

Mais do que esse vulto eXtraordinário,

Que assombra a vista,

Sedu7.-me unI leve relidrio

De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de urna flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra Firo;

O ;tIvo cristal, a pedra rara,

O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, corno em prata firmeCorre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem.

A idéia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagemA2ul-eclcste.

Torce, aprimora, altcia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima, .

Como um mbim.

Quero que a estrofe cristalina

Dobrada ao jeitO

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito:

E que o bvor do verso, acaso,

Por tão sutil,

Possa o lavor lembrar de um vaso

Ik lkcerri1.

(Bibc, 1942, pp. S-7)

lq0

___ ._. . ~ Inlcrdiscursividadc c intcrtcxtualidadc JOSÉ LUlZ F10R1N

Bi/ac afirma que não quer fazer o que faz o escultor, mas que seu traba­

lho é semelhante ao do ourives. O escultor é a figura do poeta da terceira

geração romântica com sua grandiloqüência, sua grandiosidade, sua

monumentalidade, com sua imersão na realidade, com suas hipérboles, com

seu gosto pronunciado pelo narrativo, com sua liberdade formal; o ourives

é o poeta parnasiano, com sua leveza, sua sutileza, seu requinte. com seu

afastamento da realidade, com sua busca pela perfeição, com seu tom

inenfático, com seu culto ao descritivo, com sua rigidez formal.

CONCLUSÃO

Se em Bakhtin há uma distinção entre texto e enunciado e este pode ser

aproximado ao que se entende por interdiscurso - já que se constitui nas

relações dialógicas, enquanto aquele é a manifestação do enunciado -, a

realidade imediata dada ao leitor, pode~se fazer uma diferença entre

interdiscursividade e intertextualidade. Aquela é qualquer relação dialógica

entre enunciados; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquela

em que se encontram num texto duas materialidades textuais distintas. Cabe

entender que, por materialidade textual, pode-se entender um texto em

sentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura um

estilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. O caráter fundamental~

mente dialógico de todo enunciado do discurso impossibilita dissociar do

funcionamento discursivo a relação do discurso com seu outro.

O discurso em Bakhtin é lingüística e histórico. No entanto, o autor

russo não apreende essa historicidade discursÍva por meio de "anedotas"

acerca da produção de um determinado discurso. Com o conceito de

dialogismo, capta-a no próprio movimento lingüística de sua constituição.

É na relação com o discurso do Outro, que se apreende a história que

perpassa o discurso. Essa relação está inscrita na própria interioridade do

discurso, constitutiva ou mostradameme. Com a concepção dialógica da

linguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser a descrição da época

em que o texto foi produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semânti­

ca, que leva em conta confrontos sêmicos, deslizarnentos de sentido, apaga­

Il1Clj().~ de signifIcados, illtt'l'illCOlllprccnsócs, ete. Em sfntcse, em Bakhtin.

191

/J/lKIITIN OUtroscollccitos'ch~"c _. _ • , .•• _ .••••••. ._ 'w •• _~

l"lcrdi~ursividadc c ITllerlcxlUalidade JO.~(;I.li/? I'/ORIN

a História não é algo exterior ao discurso, mas é interior a ele, pois o sentidoé histórico. Por isso, para petceber o sentido, é preciso situar o enunciadono diálogo com outros enunciados e apreender os confrontos sêmicos quegeram os sentidos. Enfim, é preciso captar o dialogismo que o permeia.

NOTAS

I Com efeiro. aqueles CJuepreviram as coisas futuras onde as Viram, se e13Snão existem ainda? Nãose pode prever o que não é. E aqueles que narram as coisas passadas. de toda maneira não

narrariam coisas verdadeiras, se não as apreendessem pela imaginação: porque se das não fossemnada, náo poderiam de modo algum ser apreendidas.

1 A quesrão das relações dial6gicas entre textos e delllro dos lextos será discutida mais adiame.

J Posteriormellle, esse texto constituiu o capitulo 4 do livro lmroduçiío li Semnndliu.

4 Poder-se-ia dizer que há ainda um terceiro sentido. mais geral: é um prindpio de constituiçãodos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo.

I Observe-se ainda: "Cada texrO pressupõe um sisrema compreens(vel pará lodos (convencional,

delllro de uma dada coletividade) - uma !fngun (ainda que seja a lIngua da anel. Se por trás dotexro não há uma IIngua, já não se tr.'Ila de um rexro, mas de um fenômeno natural (não perten­

ceme à csfera do signo); por exemplo, uma combinação de grilOS e de gemidos. desprovida dareprodutibilidade lingüística (própria do signo)" (Bakhrin, 1992, p. 331).

(, O termo proposto por Bakhtin é Mero{ingiilstiea. Prc!erimos, no enranro, chamar essa ciência. à

maneira dos franceses, trnnslingüfslica, por causa dos valores semii.micos que envolvem a palavra

Muo!ingiils/ica. Esse problema de denominação é uma prova da correçao das teses bakhtinian:>s

sobre o problema da distinção entre as unidades porenciais do sistema (objero da Lingüística) eas unidades reais de comuniC:1ção (objelo .1, lranslingülsríca). Do ponro de vista do sistema,

meta (prefixo grego) e trdtÚ (prefixo latin',: nJ equivalenres; no entanto, eles são completameme

distintos no funcionamemo discursiv,\_ ! --L ,[ualquer forma. o que Bakhtin pretendia em consti·luir uma ciência que fosse além da Lingüfstica puis rrararia de analisar o funcionamenro real da

linguagem e não apenas o sistema virtual 'I"': possibilita esse funcionamento.

7 Essa tCSCbakhriniana mosrr:1.o equIvoco d . ~hamada linguagem politicamente correra, que pre­

tende dar às palavras da lI"I',ua um sentidu imrínseco. O campo de batalha ideológico não são asunidades da lIngua, m", ", enunci~,Jos.

, Esse rextO é um manuscri:o, não toralmeme acabado. que deve rer sido produúdo por volta doinicio da década de 1960.

? Viu-.,e amerl()rmente que Bakhtin distingue signifiC:1ç.~oe senrido.

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