ficção brasileira... tania pelegrini
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54NOVOS RUMOS ANO 16 NO 35 2001
I
Poder-se-ia dizer que o tema deste texto surgiu
de uma observao emprica, mas, na verdade, ele
se deve a algo menos concreto; deve-se mais a uma
percepo difusa, ao sentimento de uma ausncia,
da falta de alguma coisa que ocupou grande parte
do horizonte das discusses terico-crticas sobre
cultura e literatura na primeira metade da ltima
dcada. Refiro-me questo da ps-modernidade,
da sua existncia, definio, cronologia e aplica-
bilidade s letras brasileiras. Esse silncio atual intriga
e levanta suspeitas de que o tema no se esgotou.
Apenas saiu de moda, como tantos outros temas,
mtodos, teorias e abordagens que hoje surgem,
crescem, causam enorme celeuma e desaparecem,
sem suscitar maiores inquietaes. Essa rpida
obsolescncia, essa fungibilidade, essa substituio
ininterrupta de uma coisa por outra coisa seja ela
um bem, uma pessoa, uma teoria so, entretanto,
alguns dos elementos (quase inapreensveis) que
balizam os contornos justamente do que se chama
... ps-moderno.
Nesse sentido, portanto, parece interessante
reativar um debate a meu ver interrompido antes
do tempo, sobre a existncia do fenmeno como
um provvel novo paradigma literrio e/ou cultural,
no Brasil, embora, paradoxalmente, seus linea-
mentos, traos ou aspectos j tenham sido detec-
tados, com concluses s vezes um pouco pre-
cipitadas.
Fico brasileira
contempornea: assimilao
ou resistncia?*
Tnia Pellegrini**
* Texto apresentado no Simpsio Internacional: 500 anos de
Descobertas Literrias, realizado de 29 de maro a 2 de abril
de 2000 na Universidade de Braslia.
** Professora do Departamento de Letras da Universidade
Federal de So Carlos; pesquisadora da Fapesp.
O objetivo deste artigo, assim, analisar dentro
dos estreitos limites que permitem um trabalho deste
tipo , de que maneira a fico brasileira contem-
pornea, aqui entendida como a que se vem
produzindo a partir dos anos 70, constitui, na
multiplicidade de seus temas e situaes, uma forma
de assimilao ou de resistncia s injunes colo-
cadas pela lgica cultural ps-moderna, justamente
aquela de que pouco se tem falado nos ltimos
tempos e que, todavia, a meu ver, continua a
determinar o espao de produo, circulao e
fruio da literatura.
Em primeiro lugar, lembremos que represen-
tantes das mais diferentes linhas tericas debru-
aram-se sobre a questo, procurando estabelecer
parmetros a seu respeito, sobretudo sobre possveis
e/ou supostos contrastes com relao a seu ante-
cessor imediato, o modernismo. Refiro-me, por
exemplo, a Hassan, Lyotard, Jameson, Eagleton,
Hutcheon, etc., cujos textos, com gradaes e
enfoques diferentes entre si, detectaram, todavia,
aspectos em boa medida coincidentes no novo estilo
(perodo? corrente? ciclo?), descentramento, indeter-
minao, ambivalncia, fim das grandes narrativas,
deslocamento, morte do sujeito, etc., os quais, tomados
em conjunto, parecem apontar para transformaes
bem mais profundas.
Voltando, pois, ao debate interrompido,
necessrio destacar o fato de que, no Brasil, muitos
dos textos acima foram lidos como balizas tericas
e as discusses centraram-se sobretudo nas especi-
ficidades do problema que se relacionavam situao
scio-poltico-cultural prpria do pas, muito distante
e diferente daquelas dos grandes centros metro-
politanos, devido sua localizao geogrfica e
econmica perifrica. Os argumentos tericos mais
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gerais de um Jos Guilherme Merquior e de um
Paulo Srgio Rouanet coexistem com anlises mais
objetivamente literrias, como as de Silviano Santiago
e Flora Sussekind, por exemplo, e, mais recente-
mente, as de Nzia Villaa.
Desse modo, antes de examinar mais de perto a
situao da fico brasileira contempornea com
relao a essa problemtica, acredito ser necessrio
elencar as diferentes acepes que o termo ps-
moderno foi adquirindo, aqui e no exterior ainda
exerccio superficial, que apenas o que cabe num
texto como este como forma de ancorar minha
argumentao.1
II
O termo ps-moderno comeou verdadeira-
mente a se difundir apenas na dcada de 70, nos
Estados Unidos, com o surgimento de Boundary 2
Journal of Postmodern Literature and Culture, em 1972.
Foi a recepo dessa revista que, pela primeira vez,
estabeleceu a idia de ps-moderno como uma
referncia coletiva.2 Para isso contribuiu Ihab
Hassan, que escreveu seu famoso ensaio sobre o
ps-modernismo em 1971, POSTmodernISM: a
Paracritical Bibliography, no qual estende a noo de
ps-moderno s artes visuais, msica, tecnologia
e sensibilidade em geral, detendo-se em elementos
que, de alguma forma, radicalizam ou repudiam os
traos do modernismo. Nos seus ensaios posteriores,
ele considera que a unidade do ps-moderno reside
num jogo de indeterminao e imanncia, mas
no consegue responder se o ps-moderno apenas
uma tendncia artstica ou tambm um fenmeno
social; considera apenas que se estabelece um modo
diferente de articulao entre arte e sociedade.
Como se v, o termo foi cunhado e cresceu no
interior da crtica de literatura e no da arquitetura,
como afirmam algumas interpretaes. Tambm em
1972, Robert Venturi publicou Learning from Las
Vegas, em que ataca o montono e purista
modernismo arquitetnico, em nome de um novo
estilo mais heterogneo, exuberante e popular. Foi
esse texto que projetou definitivamente o termo
como originrio da arquitetura. Em 1977, Charles
Jenks consagra-o, em Language of Post-Modern Archi-
tecture, adotando a idia de que o ps-moderno um
estilo ecltico, hbrido, que se utiliza de uma sintaxe
ao mesmo tempo moderna e histrica, falando tanto
ao gosto educado quanto sensibilidade popular;
proclama o novo estilo como o de um mundo
civilizado e plural, em que no existem mais
vanguardas nem inimigos a vencer, pois a infor-
mao importa mais que a produo . Pode-se
perceber que vm da as idias mais comuns sobre
o ps-moderno na literatura e nas artes, que pene-
traram no Brasil juntamente com um certo deslum-
bramento pelas possibilidades de escolha abun-
dante e tolerncia pluralista.3
O termo j ampliara seu espectro para outras
reas do conhecimento: em 1979, Franois Lyotard
publicara, em Paris, La condition postmoderne,4 em que,
bebendo diretamente de
Hassan, postula a chegada
da ps-modernidade como
ligada emergncia de uma
sociedade ps-industrial, na
qual o conhecimento tornou-
se a principal fora eco-
nmica na produo. Nessa
sociedade, ento concebida
como uma rede de comu-
nicaes, a prpria lingua-
gem passa a ser composta
por uma srie de jogos
lingsticos, de modo que o
trao caracterizador mais
importante da condio
ps-moderna vem a ser a
perda de credibilidade nas
grandes narrativas (meta-
relatos, conforme a tra-
duo brasileira):
[...] a funo narrativa perde seus atores, os grandes
heris, os grandes perigos, os grandes priplos e o
grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de
elementos de linguagem narrativos, mas tambm
prescritivos, descritivos, etc. [...] Cada um de ns
vive em muitas dessas encruzilhadas. No formamos
combinaes de linguagem necessariamente estveis
e as propriedades destas por ns formadas no so
necessariamente comunicveis.5
Assim, as grandes narrativas da unidade tota-
lizante do saber humano, em todas as reas (a
religio, a cincia, o materialismo dialtico, a
psicanlise, etc.), perderam sua legitimidade, restando
apenas os pequenos relatos, instveis e mutveis,
que estabelecem consensos igualmente instveis e
provisrios. Foi a primeira vez que o termo apareceu
As intervenes de Lyotard e
Habermas fixaram a discusso
no campo da autoridade
filosfica, que ecoou bem
longe, chegando inclusive ao
Brasil, onde os tericos Jos
Guilherme Merquior e Srgio
Paulo Rouanet endossaram a
idia habermasiana da
modernidade como um projeto
ainda inconcluso.
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mais consistentemente vin-
culado a uma idia de
periodizao dependente
de transformaes sociais.
A crise epistemol-
gica postulada por esse
primeiro texto de Lyotard
tambm facilmente reco-
nhecvel na produo cr-
tica brasileira num mo-
mento em que os debates
sobre o ps-moderno aqui
adentravam a cena cul-
tural, chegando inclusive s pginas de jornais e
revistas no acadmicas, na esteira da descom-
presso poltica do final da ditadura , em grande
nmero de textos (que aqui no cabe elencar), nos
quais o desaparecimento das grandes narrativas
surge como uma espcie de senha a abrir portas
para qualquer possibilidade existencial e/ou criativa,
desde que, para o autor, o ecletismo o grau zero
da cultura contempornea.
O texto de Jrgen Habermas, Modernity An
Incomplete Project,6 publicado em Frankfurt, tambm
em 1979, foi lido como uma resposta condio
ps-moderna de Lyotard, na medida em que, para
Habermas, o projeto da modernidade postulado
pelo Iluminismo, que o conceito de ps-modernidade
pretende substituir, um amlgama contraditrio
de dois princpios opostos: especializao e popu-
larizao, cuja sntese seria dificilmente realizvel.
Nesse sentido, o projeto da modernidade ainda
no est completo, embora se reconhea que o
esprito da modernidade esttica, com o seu sentido
de tempo presente apontando para um futuro
herico, representado pelas vanguardas, envelheceu.
As intervenes de Lyotard e Habermas fixaram
a discusso no campo da autoridade filosfica, que
ecoou bem longe, chegando inclusive ao Brasil, onde
os tericos Jos Guilherme Merquior e Srgio Paulo
Rouanet endossaram a idia habermasiana da mo-
dernidade como um projeto ainda inconcluso. Num
nmero especial da Revista do Brasil, de 1986,
dedicado ao ps-modernismo, ambos os autores
refletem sobre o fenmeno: para o primeiro, o ps-
modernismo ainda em grande parte uma seqncia,
antes que uma negao do modernismo e, para o
segundo, a modernidade no est extinta: [...] ela
um projeto incompleto. Alm do mais, para
Rouanet, em grande parte,
o ps-modernismo literrio
foi uma inveno de cr-
ticos.7
No mesmo nmero da
revista, Silviano Santiago
tece consideraes sobre a
figura do narrador ps-
moderno num livro de
contos de Edilberto Cou-
tinho8 (com base nas con-
sideraes de Walter
Benjamin no texto O
narrador), concluindo que tal narrador aquele
que quer extrair a si da ao narrada, aquele que
no narra enquanto atuante, pois o sujeito, hoje,
est se privando de sua faculdade de intercambiar
experincias. Flora Sussekind, por sua vez, tenta
definir o que considera mais marcante na fico
brasileira das dcadas de 70 e 80, em termos das
diferenas com relao ao seu padro realista
tradicional, destacando as descontinuidades do
discurso literrio e as suas aproximaes da linguagem
da mdia da sociedade de consumo. Ela enfatiza a
anulao do sujeito, reduzido ao anonimato pela
cultura de massas.9
Esse nmero da Revista do Brasil uma evidncia
de que, de fato, os debates sobre o ps-moderno
passam a figurar j com certa nfase no interior do
discurso crtico-acadmico brasileiro, o qual, aos
poucos, vai incorporando, ainda que como estrutura
de sentimento e aqui utilizo um conceito de
Raymond Williams , o desenvolvimento do con-
ceito na Europa e nos Estados Unidos, nas suas
diferentes acepes.
Em 1985, publica-se no Brasil Ps-moderni-
dade e sociedade de consumo, de Fredric Jameson,10
texto que, pela primeira vez, no se limita a detectar
e explicar modificaes de ordem textual, a apontar
uma ruptura esttica ou uma mudana epistemo-
lgica; o autor baseia a questo da ps-modernidade
em alteraes concretas da ordem econmica e
social mundial, ou seja, ele v o ps-moderno como
um conceito de periodizao. Desse modo, estamos
diante do signo cultural de uma nova etapa nos
modos de produo: os do capitalismo tardio.11
Este, para Jameson, constitui a mais pura forma
do capital surgida at ento, uma prodigiosa expanso
do capitalismo para reas at ento no mercan-
Silviano Santiago
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tilizadas, uma espcie de terceira revoluo indus-
trial que vem conseguindo eliminar, principalmente
nos pases do chamado Primeiro Mundo, os enclaves
de qualquer organizao pr-capitalista. Desse modo,
tambm a cultura necessariamente torna-se coex-
tensiva da prpria economia, como uma espcie de
segunda natureza do capitalismo, uma segunda pele
em que cada poro est impregnado da cor do
dinheiro.
Um trao caracterstico dessa cultura a predo-
minncia dos artefatos visuais propiciada pelo
desenvolvimento dos mass-media, principalmente da
televiso , que estabelece a principal diferena em
relao ao modernismo, no qual o verbal ainda
mantinha a maior parte de sua antiga autoridade. A
cultura ps-moderna, assim, est ancorada no
simulacro12, ou seja, na infinita proliferao de imagens
cujos referentes iniciais j se perderam e que, impul-
sionadas pelo giro frentico do capital global, todos
consomem ao mesmo tempo, em todos os lugares
do planeta.
Alm disso, essa cultura baseia-se na dissoluo
de algumas fronteiras e divises fundamentais,
principalmente as da velha distino entre cultura
erudita e cultura popular. Nas palavras do autor:
Muitos dos mais recentes ps-modernismos tm se
deslumbrado precisamente com todo esse universo
da propaganda e dos motis, dos luminosos de Las
Vegas, do espetculo noturno e do filme classe B de
Hollywood, da chamada paraliteratura, com seus
vrios gneros padronizados de livros de bolso
(terror, romance sentimental, biografia popular,
mistrio policial, fico cientfica ou visionria). Os
autores ps-modernos no citam mais tais textos
[...] mas os incorporam a ponto de ficar cada vez
mais difcil discenir a linha entre
arte erudita e formas comerciais.13
Como conseqncia disso
tudo, a prpria psique humana
sofre transformaes. Emerge uma
nova subjetividade, centrada na
gradativa perda do senso de his-
tria, de esperana de futuro ou
de memria do passado, dispersa
numa sensao de eterno pre-
sente, que deriva para a dimi-
nuio do afeto e a falta de
profundidade. Da, tambm, a
morte do sujeito, ou seja, o fim
do individualismo organicamente
vinculado concepo de um eu nico e de uma
identidade privada, especficas do modernismo, que
engendrava uma viso prpria de mundo, vazada
num estilo singular e inconfundvel. Isso no existe
mais, numa cultura dominada por simulacros; da o
pastiche, uma espcie de canibalizao acrtica dos
estilos passados, que povoa a cultura ps-moderna.
O tempo das grandes obras de arte individuais
definitivamente terminou.14
As idias de Jameson passaram a ser lidas no
Brasil num momento de descenso do marxismo e
avano do neoliberalismo, que, coexistindo com j
referido processo de liberalizao poltico-existencial
ps-ditadura, criou uma grande resistncia a qualquer
grande narrativa, ou seja, a qualquer sistema de
idias que parecesse totalizante, pessimista,
fechado, sem brechas ou fissuras pelas quais
pudessem penetrar os ventos das possibilidades
alternativas, das descontinuidades, das rupturas, da
marginalidade e do provisrio.
Encontraram muito mais eco as idias de Linda
Hutcheon, contidas no seu A Poetics of Postmodernism,
de 1988, no qual ela afirma que o ps-moderno
no instaura um novo paradigma, mas, fundamen-
talmente, interioriza os questionamentos sobre
conceitos que perpassam a contemporaneidade, tais
como verdade, realidade, representao, referncia,
subjetividade. O ps-moderno, para ela, instaura a
possibilidade do provisrio, da contradio, das
fronteiras entre os diversos campos do saber e do
fazer artstico. Nesse sentido, o que se tem no
um conceito de periodizao, nem mesmo uma
potica, mas uma problemtica: um conjunto de
problemas e questes bsicas que pem em xeque
as fronteiras entre o literrio e o
no literrio, entre fico e no-
fico e entre a arte e a vida. Ao
contrrio das postulaes de
Jameson sobre o fim do sentido
da histria na literatura ps-
moderna, Hutcheon acredita
numa problematizao entre
fico e histria, ou seja, como
s se pode conhecer o passado
atravs dos textos que falam dele,
seria impossvel encontrar o
referente dessa linguagem. Para
ela, o ps-modernismo no nega
que o passado existiu, apenas
questiona como se pode conhec-Fredric Jameson
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lo hoje, se no a partir do sentido que se confere
aos seus vestgios lingisticamente reconstrudos. A
arte ps-moderna, portanto, coloca em primeiro
plano o fato de que podemos conhecer o real,
sobretudo o passado real, apenas por meio de
signos,15 mas isso no o mesmo que substitui-lo
por um simulacro, desde que o ps-moderno opera
no domnio da representao e no da simulao,
embora constantemente questionando as regras
desse domnio.
Desse modo, ela destaca a sobrevivncia da
pardia, cuja ironia, a seu ver, enfatiza a ruptura e o
questionamento, abrindo espao para o descontnuo,
o local e o marginal, dife-
rentemente de Jameson, que
acentua na arte ps-mo-
derna a presena do pastiche,
acrtica canibalizao de
estilos do passado.
O livro de Nzia Villaa,
Paradoxos do ps-moderno:
sujeito & fico, publicado no
Brasil, em 1996, em grande
parte tributrio das postu-
laes de Hutcheon e nele
se reconhece tambm a voz
de Lyotard, alm dos ecos
das discusses sobre o ps-
moderno na arquitetura.16
Discorrendo sobre a crise da
representao e a crise do
sujeito na fico contem-
pornea, ela entende o mo-
mento atual como de pro-
blematizao, devido s
opes pela multiplicidade
de paradigmas, pelos para-
doxos, pelas microabordagens em substituio
ortodoxia, aos macrodiagnsticos, s totalizaes
provenientes do desejo caracterstico do racionalis-
mo.17 Para ela,
o ps-moderno um momento de discusso, de
multiplicidade de perspectivas, no qual a
centralidade do altar principal que desaparece, so
os nichos laterais que se enchem de santos, fiis,
promessas e crenas; [...] submisso aos poderes
maiores e universais se sobrepem o dilogo, a
retrica da seduo, os envolvimentos mais
prximos, o ludismo interpares, as verdades
provisrias . 18
Como se v, tanto as teorizaes estrangeiras
quanto sua acomodao ao pensamento brasileiro
oscilam entre o entendimento do ps-moderno como
ruptura (o caso de Lyotard e Jameson, por exemplo),
sendo que ento teramos um conceito de perio-
dizao, ou como continuidade em relao ao
moderno (Habermas, Hutcheon), apenas com
mudanas estilsticas que no constituiriam um novo
paradigma. O sentido que se d a essa continuidade
ou ruptura vai de uma viso positiva, como a de
Lyotard, ou desencantada, como a de Habermas,
para uma outra mais contundente, a de Jameson,
sendo que alguns dos tericos brasileiros preferiram
integrar uma espcie de paradigma ecltico,
pretendendo acomodar s vezes acepes incon-
ciliveis, que, obviamente, s a leitura cuidadosa dos
seus trabalhos pode revelar. Para Nzia Villaa, o
que veio a se disseminar, sobretudo via Estados
Unidos, como sinnimo de ps-modernidade, foi
justamente a viso despolitizada do vale-tudo, do
pastiche, da intertextualidade infinita, associadas a um
neoconservadorismo poltico,19 que, de fato, como
ela mesma afirma, no me parece dar conta dos
mltiplos aspectos que envolvem a produo e o
consumo da fico ao longo das duas ltimas
dcadas. O prprio crescimento dos debates em
torno da questo, a partir de meados dos anos 80,
um ndice claro da discrepncia em torno de seus
sentidos e significado histrico e social.
Pode-se dizer, pois, que, no Brasil, os debates
desenvolveram-se seguindo etapas sucessivas: uma
primeira, em que se importam os conceitos e teorias
estrangeiras, incorporando-as ao pensamento de
alguns tericos brasileiros; uma outra, em seguida,
em que se acirram as discusses sobre os aspectos
mais especficos do ps-moderno, como, por
exemplo, o fim da noo de histria, o fim das
vanguardas, a morte do sujeito, a fragmentao
textual, a intertextualidade, etc.; e uma terceira, em
que, salvo engano, estabelece-se uma espcie de
relativo consenso em torno de trs desses aspectos:
o fim das grandes narrativas, a problematizao da
relao com a histria e a transformao do sujeito.
E, a partir da, o assunto praticamente fica fora de
pauta.
Portanto, nesse sentido que acredito ainda
serem pertinentes as seguintes questes: at que
ponto as mltiplas vises do ps-moderno at aqui
(superficialmente) elencadas podem auxiliar a
Alm do mais, o ps-
modernismo como fenmeno
brasileiro reflete muitos dos
traos, conflitos e dilemas da
situao poltica especfica que
o pas atravessou nos ltimos
trinta anos: a ditadura, a
abertura e a redemocratizao,
que geraram textos prprios,
surgidos sobretudo do hiato
representado pela suspenso
das liberdades democrticas e
pela censura.
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compreender a fico brasileira contempornea?Que ps-moderno esse? E, nesse sentido, a ficobrasileira representar uma assimilao ou umaresistncia sua lgica?
III
Parece claro que o ps-moderno brasileiro vaicorresponder s especificidades dos movimentosformadores da nossa economia e sociedade, que, seno so outros, em relao queles do chamadoPrimeiro Mundo, pelo menos funcionam de formadiferente, com dinmica e tempos diversos, vistoestarmos sabidamente na periferia. A despeito dehoje fazermos parte de uma comunidade culturalplanetria, que praticamente desconhece fronteirasnacionais, tal o poder da mdia e da Internet, aindase observa aqui um grande descompasso, em todosos nveis, devido convivncia de atraso e progresso,de misria e sofisticao tecnolgica, presente so-bretudo nas desigualdades econmicas regionais.
Nesse sentido, o sentimento do nosso ps-moderno estaria impregnado do duplo movimentoda nossa economia e sociedade: uma espcie de novoufanismo assentado na idia de que, enfim, com oauxlio da sofisticao tecnolgica de uma avanadae j consolidada indstria de bens culturais, teramosdado o salto para o futuro, convivendo com desi-gualdades scio-econmicas de fundo, as quais,entretanto, prendem-nos irremediavelmente aopassado. Isso se traduz em traos formais, emmudanas de estilo e em incorporao de contedos literatura, que funcionam como antenas dasmudanas sociais ainda em processo. So traosemergentes que convivem com resduos de outro tipode produo cultural e literria, caracterstica deestgios anteriores, sendo que assim sempre estopresentes solues diversas atestando as contradiesque operam na sociedade.20 Assim, de acordo comHabermas, pode-se dizer que tambm a moder-nidade brasileira no se completou.
Alm do mais, o ps-modernismo como fen-meno brasileiro reflete muitos dos traos, conflitose dilemas da situao poltica especfica que o pasatravessou nos ltimos trinta anos: a ditadura, a aber-tura e a redemocratizao, que geraram textos pr-prios, surgidos sobretudo do hiato representado pelasuspenso das liberdades democrticas e pelacensura.21
Desse modo,poder-se-ia pensarque nossa prpriaconformao eco-nmica e social seriacampo frtil para ohbrido, o comp-sito, o descontnuo,o provisrio, ostraos mais insis-tentemente atribu-dos ao ps-moder-no, em maior oumenor grau, porquase todas as teo-rizaes aqui abor-dadas. Nessa linha,a fico brasileiradas duas ltimas dcadas poderia ento ser vistacomo um caleidoscpio de opes temticas esolues estilsticas, formando um desenho novonum painel at ento sempre recortado por duaslinhas mestras: a da fico urbana e a da regional.
importante assinalar, porm, que a moder-nizao do pas ou sua ps-modernizao ,empreendida pelo regime militar com base sobretudona industrializao, desde meados dos anos 60,refletiu-se na fico, entre outras coisas, com oenfraquecimento da temtica regional; aos poucosvo ficando raros (ainda que no desapaream detodo) os temas ligados terra, natureza, ao sin-cretismo religioso, peculiares a uma narrativa defundamento telrico, ancorada num tipo de orga-nizao econmico-social de bases na maioria agrrias.O que cresce a fico centrada na vida dos grandescentros urbanos, que incham e se deterioram, da anfase na solido e angstia relacionadas a todos osproblemas sociais e existenciais que se colocam desdeento.
Esse processo, que antes operava paulatina-mente, acelerou-se com as profundas transfor-maes econmicas, polticas, sociais e culturais quese efetivaram a partir do regime militar. Grosso modo,assiste-se introduo do pas no circuito docapitalismo avanado e aqui retomo Jameson ,com a conquista e ampliao de mercados, inclusivepara a cultura, que, aos poucos, vai aprofundandoseu carter de mercadoria, a reboque do fortale-cimento de uma poderosa indstria cultural. Ter-minado o regime militar, em 1985 no por acaso
Caio Fernando Abreu
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o momento em quecrescem as discus-ses sobre o ps-moderno , perce-be-se que, alm deestabelecer um n-timo tte--tte como mercado, a ficoabandona seu tomde resistnciapoltica e ideolgica,predominante nadcada anterior(com seus teste-munhos, confisses,
romances-reportagens, grandes narrativas quetentavam dar explicaes coesas da realidade vividae/ou observada), com um claro comprometimento esquerda, e introduz outras solues temticas,todas ligadas ao universo urbano: a questo dasminorias (mulheres, negros, homossexuais) ouniverso das drogas, da violncia e da Aids. O estatutops-moderno, tido por alguns tericos como para-doxal, ambguo e ambivalente, parece encontrar auma brecha para que nossa realidade mltipla edescontnua, porque to desigual, encare suacomplexidade, rediscutindo os espaos, os tempos,a histria, e as subjetividades. Por conseguinte, aconsolidao, nesse perodo, de uma fico feita pormulheres e de uma outra, de temtica homossexual,22
representa a afirmao de vozes at ento repri-midas, que conseguem aos poucos um espao parase fazer ouvir, inclusive como decorrncia da prpriaorganizao desses segmentos sociais enquantomovimento poltico ps-abertura. Essa fico, svezes a despeito de si mesma, assume uma funopoltica especfica, a de um micropoder, na medidaem que procura, por meio das mais diferentesformas de representao, desmontar noes conser-vadoras de sexo e/ou gnero, reconstruindo, reva-lorizando e revitalizando aspectos sempre esca-moteados pelas estruturas sociais dominantes econservadoras. No se trata mais de resistir ditadura militar, mas de resistir a uma hierarquiaancestral em que predomina o discurso branco,masculino e cristo. So, portanto, novos sujeitosque se expressam, em dices marcadas por umaperspectiva diferente, se no vinda de um outro lugarsocial, pelo menos de um outro ngulo, o que produzoutras refraes discursivas.
No entanto, a nfase na diferena, social e/oudiscursiva, nas identidades particulares diversascomo gnero, raa, sexualidade e nas vrias opressesespecficas e separadas pode acabar excluindo, nosem perdas, as idias gerais da igualdade e daemancipao humana como um todo.23
Da mesma maneira, a fico histrica, que seafirma nesse perodo, provavelmente correspondea uma necessidade de reescrever a histria do pas,at ento sob censura: a questo nacional, quefora a tnica dos anos 60, impe-se de novo comotema importante e isso no corresponde exatamenteao que se detectou como sendo o fim do sentidoda histria na sensibilidade ps-moderna inter-nacional. A perda do sentido da histria, propostasobretudo por Jameson, que se expressa, parado-xalmente, na revivescncia do romance histrico,com sua inescapvel nostalgia do prprio presente,aqui se atenua um pouco, devido ao trauma histriconacional representado pela ditadura.
O que representa uma caracterstica ps-moderna, nesses textos, o fato de que muitos delesno so mais romances histricos tradicionais embora essa matriz no tenha desaparecido ,24 noqual o autor tenta reconstruir pela fico, baseadoem cuidadosa pesquisa documental, cada detalhe doperodo que enfoca, reescrevendo o discursohistrico, preenchendo apenas as lacunas do-cumentais, levantando prticas culturais, hbitos,fatos e costumes.
O romance histrico contemporneo (tanto obrasileiro quanto o internacional) reinterpreta ofato histrico, lanando mo de uma srie deartimanhas ficcionais, que vo desde a ambigidadeat a presena do fantstico, inventando situaes,alterando fatos, deformando perspectivas, fazendoconviver personagens reais e fictcias, subvertendoas categorias de tempo e espao, usando meias tintas,subtextos e intertextos recursos da fico e noda histria. Clara conseqncia da descrena nasmetanarrativas, essa fico aponta para o indi-vidual, para o fragmento, para a percepo atomi-zada do mundo caracterstica do homem de hoje,na medida em que o autor um demiurgo que contasua verso de uma histria possvel.25 So textos quepretendem questionar a veracidade do discursohistrico e tambm se autoquestionar, dobrando-sesobre si mesmos, desmistificando a representao efrisando a incapacidade de significar uma verdade
Jean-Franois Lyotard
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nica. Todavia, o questionamento da histria nessestermos muitas vezes refora traos que redundamem deslizes objetivos mas no inofensivos comoo de transformar a histria em uma coleo deanedotas exticas de fundamento privado, ntimo,subjetivo, em que se renuncia a qualquer idia deprocesso ou causalidade e, com isso, idia de fazerhistria como sujeito, atitude bastante condizentecom um mundo em que no existem mais van-guardas nem inimigos a vencer, como exaltouJenks.
Um outro tema que se aprofunda, a partir dadcada de 70, o que expressa as relaes entre amodernizao conservadora e a violncia. As cidadesinchadas e a favelizao das periferias, gerandolegies de excludos que rapidamente se tornammarginais, tema ideal para o hiper-realismo ps-moderno, vazado numa brutalidade suja inescapvele numa ausncia de afeto quase obscena. Violnciae degradao insidiosas, que se misturam a umapresena macia da cultura popular, pervadindo asvidas de personagens vazias, apticas e andinas.Alm da expresso da verdadeira guerra civil quecastiga a sociedade brasileira, paradoxalmente, essestextos muitas vezes instauram o espao ideal para oldico, o carnavalesco, o picaresco, que ressurgemcomo pardia (ou como pastiche?), em meio a ummundo de pequenos expedientes e malandragemmida, produto do crescimento selvagem e desor-denado,26 exotismo de novo tipo que funciona comocatarse para uma classe mdia que v o mundo pelastelas da televiso. Isso sem falar na proliferao deromances policiais, que usam como pastiche a matrizestabelecida por Rubem Fonseca.
Esses temas aparecem vazados em diferentesmaneiras de encarar a linguagem quanto ao seu poderde representao: uma delas a descrena nacapacidade de dizer dessa mesma linguagem; a outra a confiana na manuteno do discurso simblico,mtico, e outra ainda aquela que permanececentrada em grande parte no significante unvoco ena veracidade absoluta de um sujeito narradorntegro; na verdade, elas representam vises opostasdo sujeito que se expressa na linguagem. A primeirav esse sujeito como uma identidade descartvel oucombinatria, que assume mltiplas mscaras,exprimindo assim a arbitrariedade do signo lin-gstico e a restrio de sentidos por ele deter-minada, obrigando problematizao da relao do
texto com a realidade e, portanto, valorizao doprocesso de produo do texto. Essa vertente, levadaao extremo, redundaria no simulacro, pois no hmais possibilidade de contrapor o signo ao seureferente; portanto, restam apenas signos intercam-biveis, vazios de sentido, revestindo personalidadesigualmente intercambiveis, identidades descartveisque, em ltima instncia, reproduzem a linguagemdos meios de comunicao de massa. importanteassinalar, porm, que a insistncia na natureza fluidae fragmentada do eu, no seu descentramento,enfim, torna as identidadesde tal modo incertas efrgeis que difcil ver comose pode desenvolver qual-quer tipo de conscinciacapaz de formar as basespara uma resistncia efetivas novas formas de opressoe expropriao social e cul-tural hoje existentes. Es-taramos, pois, no interiordaquilo que Jameson deno-minou morte do sujeito,com um visvel retraimentodo autor e o esvaziamentode uma viso global, queincorpora muitas vezes umaespcie de suspenso dequalquer juzo crtico, vazadana proliferao frentica designos e discursos intercam-biveis.27
Mas, como se viu, arealidade brasileira mul-tivria e essa vertente deestilo ps-moderno aindano dominante; existecomo trao emergente, con-vivendo com as outras duas,a que se expressa nos pa-dres realistas e naturalistastradicionais, e a que procurao reinvestimento simblicoda linguagem enquantorepresentao, seja por meio da ironia, da pardia,do grotesco, seja por um certo reencantamento dalinguagem que ainda busca, embora registrando asua fragmentao, a unidade do sujeito dentro deum processo histrico especfico.28
A propalada eliminao das
fronteiras entre cultura erudita
e cultura popular instaurou
uma outra, muito mais
poderosa, a da cultura de
mercado, com sua verso
literria, cujos limites interferem
no s no consumo, mas na
prpria produo do texto, desde
que o autor agora um produtor
trabalhando diretamente para
esse mercado, tentando
arrebanhar leitores, que so na
verdade consumidores com
todas as conotaes que esse
termo carrega , devidamente
inseridos em nichos ou
fatias previamente
catalogadas.
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IV
Se, como vimos at aqui, a fico brasileiracontempornea incorporou muitos traos daquiloque parece ser um consenso inicial (provisrio?) arespeito do ps-moderno, como traduo dastransformaes polticas, sociais e culturais internaspelas quais vem passando o pas desde os anos 60, bem verdade que ela incorpora tambm, a partir desua situao geogrfica e econmica perifrica,aspectos que a ele se atribuem enquanto uma lgicacultural internacional correspondente a um novoestgio do capitalismo.
Nesse sentido, a diversidade e o hibridismo dasperspectivas ficcionais brasileiras apontadas, queincorporam os petits rcits das mulheres, dos negros,dos homossexuais; que se valem da autoconscinciatextual, da ironia reflexiva, da metalinguagem, daintertextualidade, assim expressando o paradoxo, acontradio e a ambivalncia constitutivos dasensibilidade ps-moderna, no esto conseguindo,in totum, funcionar como uma forma de des-mascarar a prpria ficcionalidade e de tentar con-testar as mltiplas formas da hegemonia e autori-dade sociopoltica e literria,29 as quais se expres-sariam sobretudo por meio das grandes narrativasde carter normativo, unvoco e totalizante, con-forme afirmam as teorias dominantes sobre o ps-moderno.
Alm das limitaes apontadas de sentidopoltico bem verdade, o que talvez no case bemcom a sensibilidade hoje dominante , a condiops-moderna identificada por Lyotard sobretudocomo o desaparecimento das grandes narrativas (afico literria no uma delas?), como rejeioao conhecimento totalizante, como insistncia nanatureza fragmentada do ser humano, como nfasena permanncia dos discursos sobre os fatos, vemcada vez mais funcionando como uma espcie degrande alegoria do capitalismo tardio. Muito longede terem desaparecido, essas grandes narrativasconsubstanciaram-se em uma nica, pois, pela pri-meira vez na histria, como afirma Perry Anderson,30
o mundo encontra-se sob o novo encantamentogerado pela maior de todas as at ento criadas: ada vitria global do mercado, o tempo todo vei-culada pelo discurso monoltico da mdia.
No Brasil, sobretudo a partir dos anos 80, como fim da ditadura, esse novo encantamento setraduz, com relao cultura em geral e literatura
em particular, numa nfase at ento desconhecidanas suas possibilidades de articulao global, emdetrimento da sua dimenso nacional trao atento mais constante que, na verdade, veio serevelando gradativamente como a legitimao dalgica da mercadoria. A consolidao da indstriada cultura e do mercado editorial, efetivada durantea ditadura, propiciou o surgimento e est impondoa proliferao cada vez maior de um tipo de bense de produtos literrios acrticos e monolgicos,que vm transformando nossas diferenas edesigualdades socioculturais internas e nossa histriaem puro folclore, abrindo-se acriticamente paratodo tipo de modismo ou voga internacional, semnenhum sentido antropofgico, digamos. E lan-ando mo de um estilo solto, fluido e desmontvel,leve e agradvel colagem de outros estilos de outraspocas (intertextos?), jogos lingsticos que doprazer, descuidado pastiche de si mesmo, recriamum populismo de novo tipo, que pretende apenasarrebanhar leitores entre os espectadores dateleviso.
A propalada eliminao das fronteiras entrecultura erudita e cultura popular instaurou umaoutra, muito mais poderosa, a da cultura demercado, com sua verso literria, cujos limitesinterferem no s no consumo, mas na prpriaproduo do texto, desde que o autor agora umprodutor trabalhando diretamente para esse mer-cado, tentando arrebanhar leitores, que so naverdade consumidores com todas as conotaesque esse termo carrega , devidamente inseridosem nichos ou fatias previamente catalogadas.Dentro dessas presses e limites, muito difcil quese mantenha a ateno ao texto em si e uma reflexoconstante sobre sua inspirao e fatura. Da asmesmices, descuidos, chulices e obviedades quepermeiam a fico contempornea, alardeadas comose fossem solues ps-modernas.
Assim, a definio de texto literrio comoherana modernista, que moldava uma escritapessoal, muitas vezes elptica e experimental e commuito de artesanal na filigrana da composio, emque se percebia a rejeio tradio, uma insistnciaclara na ruptura com os cnones do passado, mascomo evidente hostilidade ao mercado, vem desapa-recendo aos poucos, em razo da fora avassaladorado capitalismo de hoje, que cria exigncias deprodutividade industrial para a cultura, alm de
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formar consumidores muito mais afeitos a imagensque a letras.
esse tipo de ps-moderno que me parece tersido escamoteado pelas teorizaes estrangeiras maisaceitas no Brasil, sobretudo a de Hutcheon. Trata-se de algo muito maior do que um modo diferentede acomodao entre arte e sociedade, como queriaHassan e, com certeza, Jenks tinha razo ao afirmarque a informao importa mais que a produo.Na verdade, o ps-modernismo de que falo aqueleque transforma cultura em mercadoria, sem nenhumpudor e, mais que isso, invertendo sua prpria lgica,afirma orgulhosamente que, se cultura mercadoria,qualquer mercadoria pode ser cultura;31 ainda oque, valendo-se da perfeita simbiose operada entrea mdia e o mercado, apaga limites, esbate nuanas,escamoteia diferenas, com base na esttica doespetculo, que s foi possvel criar com a imitaodo processo de proliferao das imagens pelateleviso.
Nesse sentido, foi Fredric Jameson quem melhorconseguiu explicar aquilo que outros tericosapontam como espao para instaurao do paradoxoe da ambivalncia: de fato, trata-se do espao domercado, no interior do qual a cultura, a despeito dequalquer resistncia (e elas existem, como se viu) vemse tornando co-extensiva da prpria economia, noapenas como a base de algumas das maioresindstrias do planeta, mas, de modo muito maisprofundo, desenvolvendo-se numa direo em quecada objeto material, cada servio, idia, emoo,sentimento ou ideologia pode se transformar emmercadoria desejvel e, por isso mesmo, altamenterentvel.
E desse modo, a despeito de toda resistncia, afico contempornea brasileira tambm significaassimilao, pois j se configuraram nichos queconsomem, por exemplo, fico histrica; fatiasconsumidoras de literatura homossexual e de litera-tura feminina e/ou feminista apesar do enrai-zamento dessas temticas nas necessidades scio-histricas do pas sem falar de autores que, mesmocom a prpria seriedade ou com a falta dela,produzem seus textos com um olho no mercado, oqual, como se sabe, tem seu preo, muitas vezesalto demais...
O que se pode afirmar, portanto, que a ficobrasileira contempornea, oscilando entre a as-similao e a resistncia, vem representando, s vezes
como farsa e isso o que preocupa , a no-superao do nosso sempre presente drama histrico,o da ambivalncia ante a importao das influnciasdas culturas hegemnicas, tanto o que bom quantoo que mau, se que tem sentido falar de conceitosto totalizantes nestes tempos de tantos paradoxose relativizaes...
NOTAS1 As consideraes sobre a origem e evoluo do conceito,
fora do Brasil, esto baseadas em Perry Anderson, The Originsof Postmodernity (Londres/Nova York: Verso, 1998) e PeterCarravetta & Paolo Spedicatto (orgs.), Postmoderno e letteratura(Milo: Bompiani, 1984).
2 Os termos ps-moderno e ps-modernismo envolvemquestes conceituais mais especficas, mas, para os objetivosdeste texto, aqui sero usados como sinnimos.
3 Refiro-me a textos como os de Jair Ferreira Santos, O que ps-moderno (So Paulo: Brasiliense, 1986), Barth, Pynchon eoutras absurdetes, em Vv. Aa., Ps-modernidade (Campinas:Editora da Unicamp, 1987).
4 Traduo brasileira, Franois Lyotard, O ps-moderno (Rio deJaneiro: Jos Olympio, 1986).
5 Ibid., p. 16.6 No Brasil, Modernidade versus ps-modernidade, em Arte
em Revista, no 7, So Paulo, Kairs.7 Jos G. Merquior,Aranha e abelha: para uma crtica da
ideologia ps-moderna e Paulo S. Rouanet, A verdade e ailuso do ps-moderno, em Revista do Brasil Literatura anos80, ano 2, no 5, Rio de Janeiro, 1986.
8 O texto foi publicado novamente em 1989: O narradorps-moderno, em Nas malhas da letra (So Paulo: Cia. dasLetras, 1989).
9 Fico 80: dobradias & vitrines, em Revista do Brasil, cit.10 Fredric Jameson, Ps-modernidade e sociedade de
consumo, em Novos Estudos Cebrap, no 12, So Paulo, Cebrap,junho 1985. O texto fora publicado um ano antes na NewLeft Review.
11 Cf. o autor: Cabem aqui algumas palavras sobre o empregoapropriado desse conceito: ele no apenas mais um termopara a descrio de determinado estilo. tambm, pelomenos no emprego que fao dele, um conceito deperiodizao cuja principal funo correlacionar aemergncia de novos traos formais na vida cultural com a
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emergncia de um novo tipo de vida social e de uma novaordem econmica chamada, freqente e eufemisticamente,de modernizao, sociedade ps-industrial ou sociedade deconsumo, sociedade dos midia ou do espetculo, oucapitalismo multinacional (Ibid., p. 17).
12 Conceito extrado de Jean Baudrillard. Ver, sobretudo,Similaire et simulation (Paris: Galile, s/d).
13 Fredric Jameson, Ps-modernidade e sociedade deconsumo, cit.
14 Jameson desenvolveu essas teses no livro Postmodernism, or,The Cultural Logic of Late Capitalism (Durham: Duke UniversityPress, 1991). Edio brasileira, Ps-modernismo A lgica culturaldo capitalismo tardio (So Paulo: tica, 1997).
15 Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism: History, Theory,Fiction (Nova/Londres: Routledge, 1988), p. 230.
16 Nzia Villaa, Paradoxos do ps-moderno: sujeito & fico (Rio deJaneiro: Editora da UFRJ, 1996).
17 Ibid., p. 8.18 Ibid., p. 28.19 Ibid., p. 26.20 A respeito do ps-moderno na fico brasileira, ver Tnia
Pellegrini, A imagem e a letra Aspectos da fico brasileiracontempornea (Campinas: Mercado de Letras, 1999).
21 Para a fico produzida durante o regime militar ver ReginaDalcastagn, O espao da dor O regime de 64 no romance brasileiro(Braslia: Editora da UnB, 1996); Renato Franco, Itinerriopoltico do romance ps-64 (So Paulo: Edunesp,1998); TniaPellegrini, Gavetas vazias Fico e poltica nos anos 70(Campinas/So Carlos: Mercado de Letras/Edidora daUFSCcar, 1996); Malcon Silverman, Protesto e o novo romancebrasileiro (So Carlos: Editora da UFSCar, 1995).
22 Penso nos textos de Joo Silvrio Trevisan, Caio FernandoAbreu, Joo Gilberto Noll, Silviano Santiago, etc. e de SniaCoutinho, Lya Luft, Helena Parente Cunha, Mrcia Denser,Patrcia Bins, Ana Miranda e tantas outras.
23 Ver Ellen Meiksins Wood, Em defesa da Histria:o marxismo e a agenda ps-moderna, em Crtica Marxista,no 3, So Paulo, 1996.
24 Vejam-se Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz;Lealdade, de Mrcio Souza; Desmundo, de Ana Miranda; osromances de Lus Antnio de Assis Brasil, etc.
25 Como exemplos, Joo Ubaldo Ribeiro e seu Viva o povobrasileiro; Mrcio Souza, com Galvez, imperador do Acre ; Ana emVeneza, de Joo Silvrio Trevisan; Ana Miranda e Boca doInferno; Silviano Santiago e Em liberdade.
26 Vejam-se desde Joo Antnio, com Malagueta, perus e Bacanaoe Leo de chcara; Zero, de Igncio de Loyola Brando; oscontos de Rubem Fonseca e de Dalton Trevisan, os de JlioCsar Monteiro Martins, etc.
27 Com enfoques e gradaes diferentes desses traos, verespecialmente Srgio SantAnna em Simulacros, confisses de Ralfoe Senhorita Simpson; Silviano Santiago, Joo Gilberto Noll eoutros.
28 Vejam-se Dalton Trevisan, Osman Lins, Lygia Fagundes Telles,Lya Luft, Marilene Felinto, Helena Parente Cunha. Algunsanalistas tambm incluem aqui Guimares Rosa.
29 Bobby J. Chamberlain, Ps-modernidade e fico brasileirados anos 70 e 80, em Revista Iberoamericana, no 164-165, vol.LIX, julho/dezembro 1993.
30 Perry Anderson, The Origins of Postmodernity, cit.31 Terry Eagleton, Capitalism, Modernism and Postmodernism,
em New Left Review, no 152, julho/agosto 1985, p. 62.
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