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FEDERICO FELLINI, O “DOCUMENTARISTA DE SONHOS” DE GLAUBER ROCHA, E SEU FILME I CLOWNS. LEMOS, Anna Paula Soares Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 268 FEDERICO FELLINI, O “DOCUMENTARISTA DE SONHOS” DE GLAUBER ROCHA, E SEU FILME I CLOWNS LEMOS, Anna Paula Soares Professor Adjunto 1 do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes - UNIGRANRIO [email protected] RESUMO Falaremos, no artigo proposto, sobre o filme I clowns (1970), sua estrutura crítica, e como ele figura as características de um filme documento-ficcional. No artigo Glauber-Fellini, Glauber Rocha, inspirado e com foco no filme 81/2 (1963), diz que Fellini satiriza o inconsciente reprimido da cultura pagã naufragada no nazismo. Documentarista de sonho, Fellini o recria magicamente através de cenografias e atores, o sonho é a projeção de sua Câmera Olho” (GLAUBER, 2006: p. 258). 81/2 é um divisor de águas na obra Felliniana mas é na década de 1970 que, no projeto Blocknotes di un regista, Fellini demonstra uma perspectiva mais crítica e melancólica. É deste Fellini, transitando do onírico para o utópico, documentarista de sonhos e de utopias, com uma narrativa crítica de características tão próprias, que trataremos aqui. Palavras-chave: Fellini. Clowns. Glauber. ABSTRACT We'll talk in the proposed article on the film I clowns (1970 ) , its critical structure , and how it figures the characteristics of a doc-fictional movie. In the paper entitled Glauber - Fellini , Glauber Rocha, inspired and focused on the movie 81/2 (1963 ) , says that Fellini satirizes the repressed unconscious of wrecked pagan culture in Nazism. "Dream documentary filmmaker , Fellini magically recreates through the sceneries and actors , the dream is a projection of your Camera Eye " ( GLAUBER , 2006: 258 p .). 81/2 is a watershed in Fellinian’s work but it is in the 1970s that in the project Blocknotes di un rigista, Fellini shows a more critical and melancholic perspective. It is about this Fellini , moving from dream to the utopian discourse, documentarian of dreams and utopias , with a critical account of such characteristics , which we discussed here . Key-words: Fellini. Clowns. Glauber. INTRODUÇÃO É na medida do espetáculo, em estrutura figurativa, dilatada, que o cineasta italiano Federico Fellini lança um olhar crítico, autossuficiente, autoral e desafiador ao mundo da indústria cultural do qual faz parte. O conceito de figura utilizada está nos termos da estrutura conceitual desenvolvida por Erich Auerbach no livro Figura. Auerbach expõe as aparições do termo que vão de Terêncio a Quintiliano e que comporta significados cambiantes forma plástica,

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FEDERICO FELLINI, O “DOCUMENTARISTA DE SONHOS” DE GLAUBER ROCHA, E SEU FILME I CLOWNS.

LEMOS, Anna Paula Soares

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

268

FEDERICO FELLINI, O “DOCUMENTARISTA DE SONHOS”

DE GLAUBER ROCHA, E SEU FILME I CLOWNS

LEMOS, Anna Paula Soares

Professor Adjunto 1 do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes -

UNIGRANRIO

[email protected]

RESUMO

Falaremos, no artigo proposto, sobre o filme I clowns (1970), sua estrutura crítica, e como ele figura as características de um filme documento-ficcional. No artigo Glauber-Fellini, Glauber Rocha, inspirado e

com foco no filme 81/2 (1963), diz que Fellini satiriza o inconsciente reprimido da cultura pagã naufragada no nazismo. “Documentarista de sonho, Fellini o recria magicamente através de cenografias

e atores, o sonho é a projeção de sua Câmera Olho” (GLAUBER, 2006: p. 258). 81/2 é um divisor de

águas na obra Felliniana mas é na década de 1970 que, no projeto Blocknotes di un regista, Fellini

demonstra uma perspectiva mais crítica e melancólica. É deste Fellini, transitando do onírico para o utópico, documentarista de sonhos e de utopias, com uma narrativa crítica de características tão

próprias, que trataremos aqui.

Palavras-chave: Fellini. Clowns. Glauber.

ABSTRACT We'll talk in the proposed article on the film I clowns (1970 ) , its critical structure , and how it figures

the characteristics of a doc-fictional movie. In the paper entitled Glauber - Fellini , Glauber Rocha,

inspired and focused on the movie 81/2 (1963 ) , says that Fellini satirizes the repressed unconscious of wrecked pagan culture in Nazism. "Dream documentary filmmaker , Fellini magically recreates through

the sceneries and actors , the dream is a projection of your Camera Eye " ( GLAUBER , 2006: 258 p .).

81/2 is a watershed in Fellinian’s work but it is in the 1970s that in the project Blocknotes di un rigista, Fellini shows a more critical and melancholic perspective. It is about this Fellini , moving from dream to

the utopian discourse, documentarian of dreams and utopias , with a critical account of such

characteristics , which we discussed here .

Key-words: Fellini. Clowns. Glauber.

INTRODUÇÃO

É na medida do espetáculo, em estrutura figurativa, dilatada, que o cineasta italiano Federico

Fellini lança um olhar crítico, autossuficiente, autoral e desafiador ao mundo da indústria

cultural do qual faz parte. O conceito de figura utilizada está nos termos da estrutura conceitual

desenvolvida por Erich Auerbach no livro Figura. Auerbach expõe as aparições do termo que

vão de Terêncio a Quintiliano e que comporta significados cambiantes – forma plástica,

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imagem, cópia, forma que retrata ou forma que muda. Originalmente, figura, da mesma raiz de

fingere, figulus, fictor e effigies, significava “forma plástica”, aparência externa, contorno.

Effigies expressa ainda algo vivo e dinâmico, incompleto e lúdico. A figura em Fellini será,

portanto, por sua busca pela forma plástica, pela aparência externa que paradoxalmente torna

seu personagem incompleto e lúdico; dilatado e frágil. Uma fragilidade apontada pelos traços,

pelo exagero da forma, pela caricatura.

Fellini é originalmente um caricaturista que faz do seu estúdio 5 do complexo de cinema

Cinecittà, uma “policlínica”. Uma espécie de hospital que reestrutura as imagens do seu

pensamento, de sua memória, de sua recordação, do seu mundo. Um cuidado artesanal que

inicia o processo de reconstrução, desconstruindo, no texto, estruturas pré-estabelecidas. Em

detalhados traços e blocos de anotações que estimulam não imagens, mas evocações, e não

evocações diretas, mas sentidos, spectrus – cheiros, cores, gostos, sons – Fellini dilata

afetuosamente os fracassos do mundo contemporâneo. O pianista italiano Nino Rota, criador da

maioria das trilhas dos filmes de Fellini, foi quem mais acompanhou os sentidos do cineasta.

Tem a assinatura de Nino Rota as trilhas de La Strada (1954), Il Bidone (1955), Le notti di

Cabiria (1957), La dolce vita (1960), Boccaccio 70 (1962), 8 ½ (1963), Giulieta degli spiriti

(1965), Histórias Extraordinárias (1968), Blocknotes di un regista (1969), Satyricon (1969), I

clowns (1970), Roma (1972), Amarcord (1973), Il Casanova (1976) e Prova d’orchestra (1979).

Ao trabalhar a trilha de I clowns (1970) Fellini conta no programa radiofônico Nino Rota,

l'amico magico que queria uma

...evocação que não fosse assim realisticamente evocativa, que não chamasse

exatamente ao circo, mas uma espécie de recordação do circo como se pode imaginar ser a recordação de uma criança. Dou conta agora que isso será um

pouquinho difícil, mas é exatamente para seguir esta operação que eu acredito

ser bastante erudita do figurativo: dar um perfume da música do circo. Deve ser violenta e fracassada como a música do circo é. Deve permitir ser

atenuada, mas sem perder violência.

Com uma narrativa sempre mediada, tal criação de uma figura que deve permitir ser atenuada,

sem perder violência, e que deve ser violenta e fracassada é uma constante nos filmes de Fellini

desde seus primeiros trabalhos.

Como cineasta formado no Neorrealismo de Roberto Rosselini, e como caricaturista, chargista

do jornal italiano Marc’Aurelio e roteirista de sketches de humor para rádio, Fellini desenvolve

nos seus últimos filmes, no estúdio e na montagem, um cinema que tem inspiração de filmagem

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nas cidades – Cinecittà, a cidade do cinema, criada depois do bombardeio de 1939 ao Estúdio

de Cinema de Roma, e Rimini, a cidade em que ele nasceu, e que foi totalmente bombardeada

em 1944, um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial e cinco anos depois de sua mudança

para Roma. Assim, tais cidades que tiveram que ser refeitas no pós-guerra, Fellini refaz, em

cada um dos seus filmes, em cenários, maquetes e personagens os quais ele reposiciona na

montagem inspirado em um jogo de contrastes, de luz e sombra, de recortes e colagens, de

figurações em quadrinhos.

Assim, a sua arte cinematográfica evoca o mundo real em um mundo de papel que se faz e

propositadamente se desfaz, que destaca as fragilidades humanas e não traz respostas prontas,

mas faz elogio à loucura, à sala escura, ao vazio. Um mundo de colagens que por trás do riso e

da ironia rascunha um caminho de melancolia e profanações. Fellini faz um esforço de

otimismo: congelar o tempo, apagar as luzes, transitar em contexto figurado, fragmentado em

sketches, paralisado em cenários para, assim, sentar na plateia e controlar ele mesmo a luz de

seus refletores, com a melancólica ilusão construída de que a vida é um palco cênico em que ele

é um ator e autor em “saudável alienação em relação ao seu mundo ambiente [...]”

(BENJAMIN, 1994: p. 102).

No artigo Glauber-Fellini, Glauber Rocha, inspirado e com foco no filme 81/2 (1963), diz que

Fellini satiriza o inconsciente reprimido da cultura pagã naufragada no nazismo.

“Documentarista de sonho, Fellini o recria magicamente através de cenografias e atores, o

sonho é a projeção de sua Câmera Olho” (GLAUBER, 2006: p. 258). 81/2 é um divisor de

águas na obra Felliniana porque rompe de vez com a escola neorrealista e inicia uma tragetória

que mais tarde, na década de 1970, com o projeto Blocknotes di un regista, demonstra uma

perspectiva mais crítica ainda que melancólica e, em certa medida, utópica. É deste Fellini,

transitando do onírico para o utópico, documentarista de sonhos e de utopias, com uma

narrativa crítica de características tão próprias, que trataremos aqui.

1. I CLOWNS COMO FILME DOCUMENTO-FICCIONAL.

Lo sceicco bianco e Gelsomina, Cabíria e Saraghina, Giulietta (dos espíritos) e Anita Eckberg;

Marcello Mastroianni, Guido Anselmi e Mandrake, Ginger, Fred: todos clowns. Todos com

alma de I clowns – personagens que dentro de suas calças larguíssimas e sua risada explosiva,

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têm os olhos cheios de melancolia. Eles são a alma de todos os personagens dos filmes de

Fellini que faz um cinema-clown, um não-cinema que é construído como interseção das artes

do ator.

Desde Luce del varietà, de 1950, co-dirigido com Alberto Lattuada, Fellini fala da vida do ator

em seus diversos palcos. Mas só em 1970, vinte anos depois, Fellini dirige a história do próprio

circo. Um circo que, no contexto de sua contemporaneidade, é o cinema.

De fato o cinema, quero dizer, fazer cinema, não é como a vida do circo?

Artistas extravagantes, operários musculosos, técnicos,especialistas estranhos, mulheres bonitas a ponto de nos fazer desmaiar, costureiros,

cabeleireiros, gente que vem de todos os cantos do mundo e que se entende

numa babel de línguas, e aquelas invasões típicas de um exército de patifes de praças e ruas, numa desordem caótica de convocações, gritos, irritações,

brigas e o silêncio repentino obtido por meio de um urro; e por detrás dessa

desordem aparente, um programa abandonado, um rolo de filme por milagre sempre respeitado, e o prazer de estar junto e de viajar como uma família

destruída realizando o ideal de uma convivência harmoniosa, de uma

sociedade utópica... tudo isso, que é o que acontece de maneira prodigiosa durante a realização de um filme, não é a vida do circo? (FELLINI, 2004:

p.155)

Como protagonista, em um longa-metragem pensado exclusivamente para a televisão, a arte

mambembe artesanal transita pelo circo da indústria fotografada (reescrita com luz

expressionista1), repaginada pela memória em tentativa de imortalizar pela poesia o que

inevitavelmente se dilui na sociedade do espetáculo, da imagem, do espelho2.

No filme I clowns (1970) Fellini decreta a morte do palhaço Augusto. Toda a estrutura

narrativa leva a esta instância de morte de abismo e ascensão. Mas Fellini, ele mesmo, explica:

Mesmo o fato de eu ter projetado sobre o circo e sobre o palhaço uma sombra de morte, é a prova de sua vitalidade dentro de mim. Quando se diz: Deus está

1 Já disse tantas vezes: no cinema, a luz é ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, história. Ela faz milagres, acrescenta, apaga, reduz, enriquece, anuvia, sublinha, alude, torna acreditável e aceitável o

fantástico, o sonho, e ao contrário, pode sugerir transparências, vibrações, provocar uma miragem na realidade

mais cinzenta cotidiana. Com um refletor e dois celofanes, um rosto opaco, inexpressivo, torna-se inteligente,

misterioso, fascinante. A cenografia mais elementar e grosseira pode, com a luz, revelar perspectivas inesperadas e

fazer viver a história num clima hesitante, inquietante; ou então, deslocando-se um refletor de cinco mil e

acendendo-se outro em contraluz, toda a sensação de angústia desaparece e tudo se torna sereno e aconchegante.

Com a luz se escreve o filme, se exprime o estilo. (FELLINI, 1994: p. 182)

2 Renzo Renzi, crítico cinematográfico, documentarista e escritor, afirma que Fellini é ele mesmo um espelho:

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morto, significa, sobretudo, repropor a necessidade de Deus em um modo mais virgem, menos corrompido.

E com a sombra da morte, portanto, Fellini decreta em contraste, a imortalidade. Uma sombra

de imortalidade que, já em 1965, está na cidade da morte de Il viaggio di G. Mastorna, livro

escrito por ele, mas que não foi filmado. Durante o processo de reconhecimento da própria

morte, o violoncelista G. Mastorna presencia a chegada de um jovem corpulento e forte que se

aproxima comemorando:

- Viva, aleluia! Então estou morto, está feito! Não nos importamos mais com

nada, não temos medo de nada! Não tenho mais que morrer, finalmente! Não podemos mais nem mesmo de quiséssemos! Mas vocês, o que fazem aqui?

Porque não festejam? Porque não riem, não gritam? Não temos mais nada a

temer. Toda a vida aquele pensamento nojento! Bastava uma febre, bastava uma dorzinha e a paz estava perdida.

O homem se aproxima impetuosamente de Mastorna, aponta-lhe o dedo

contra o peito.

- Por que você faz esta cara? Por que está triste? De que você tem medo? Não

te envergonha? Você não entendeu que não pode mais morrer. E no trem

tínhamos medo, no avião tínhamos medo, medo das doenças, do câncer, dos incidentes, de noite tínhamos medo! Toda a vida, medo. E agora acabou!

Acabouuuu! A condenação acabou para sempre! Vamos festejar!!! [...]

(FELLINI, 2008: p.75).

“Você não entendeu que morrendo você não pode mais morrer?”: artifício de contraste no que

se refere ao tema da morte, uma morte que é vida eterna. Mas Fellini profana a expressão “vida

eterna” que nos termos da religião católica romana tem aura abstrata e a figura, quebra a

abstração e traz a morte para o âmbito do terreno. Mostra a morte. Em G. Mastorna, a vida

eterna é sentida no corpo, em contraste, através das tentativas de morte, em grotescas tentativas

suicidas, em jogos de atirar-se pela janela, sangrar, bater a cabeça e continuar vivo. “Vamos

brincar de nos matar”, sugere o rapazinho. E todos se lançam no suicídio impossível.

Reestabelecer vida eterna como a expressão suicídio impossível é a retomada do sacro em

atitude profana, do etéreo em imagem corporal.

O homem espatifa a cabeça lá em baixo na calçada. O corpo permanece

imóvel contorcido de modo atroz dentro de um lago de sangue e matéria cerebral. Permanece por alguns segundos assim, e então salta para cima como

mola; vivo, jovem, vigoroso, mais do que antes.

-- Vocês também, vocês também, se joguem! Não se morre mais!

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E começa um bacanal desenfreado. Aqueles do night, eles também saem para o terraço, mergulham no vazio em poses engraçadas e, – com baques sinistros

– se esfacelam lá embaixo, levantam-se em poucos segundos, intactos e

felizes. (FELLINI, 2008: p. 76)

Tal estrutura narrativa está afinada na interseção de dois tons: o da vanguarda expressionista

como evocação teórica e a apresentação circense na forma. O russo Wassily Kandinsky diz o

seguinte sobre a Vanguarda: “mesmo a matéria morta é espírito vivo” – e completa a fala com

tons do movimento vanguardista que aguçam as características básicas da forma, constituir a

experiência sensível modelada segundo estruturas primordiais da alma humana, reintroduzir as

marcas do invisível, desmascarar o mundo visível.

A sombra provoca o desnudamento e é poderosa justamente porque constitui a presença mais nítida da forma pura sem as diluições que a textura material

impõe. Nela, temos a essência sem os acidentes da superfície. (KANDINSKY

apud XAVIER, 2008: p. 102)

E o circo – com seus clowns, Branco e Augusto – estabelece a estética e as “regras” do jogo do

cinema felliniano – os contrastes: luz e sombra, vida e morte, acidentes da superfície e acidentes

da essência, figuração e representação, significante e significado, grandiosidade e microcosmos

cotidiano, velho e novo mundo. Ambivalências da existência humana.

O palhaço branco “é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, propostas de

forma moralista, como as situações ideais e únicas, as divindades indiscutíveis”. O palhaço

augusto, por sua vez, vê, no branco, lantejoulas cintilantes e se encanta com tais perfeições e

brilhos, não fossem elas ostentadas com tanto rigor e vaidade. E como, assim, esse brilho se

torna um fardo pesado e inalcançável, o palhaço augusto, que é a criança, entra em cena,

revolta-se ante tanta “perfeição” e “rola no chão e anima uma contestação perpétua”. Nas

palavras de Fellini:

... essa é a luta entre o culto soberbo da razão (que atinge um estetismo proposto com prepotência) e o instinto, a liberdade do instinto [...] Estas são

duas atitudes psicológicas do homem: o impulso para o alto e o impulso para

baixo, divididos, separados”. (FELLINI, 2004: p. 158 e 160)

Fellini defende a liberdade do instinto ainda que melancolicamente entenda que o

contemporâneo deu infelizmente a vitória desta luta ao orgulhoso culto da razão.

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Nesse sentido, Maurizio de Benedictis, que também deu foco ao estudo e análise dos últimos

filmes de Fellini, aponta um tom de utopia no diretor de I clowns:

Desde criança os clowns do circo o aterrorizam porque se assemelham aos

estranhos, loucos e aleijados que circulavam pelas praças de Rimini, de onde

surge o interesse, um tanto ao tom de exorcismo, pelos tipos – Branco e Augusto – de clown: duas metades originadas da cisão entre razão e corpo –

consciência e inconsciência – que deveriam se re-compor. Essa recomposição

constituiria a impossível utopia de Fellini. (BENEDICTIS, 2010: p. 60)

Utilizando a estética do circo, estas faces são aquelas do palhaço Branco e do Augusto. Forças

que se “recompõem” ou fazem seu exercício de recomposição no estúdio. Um estúdio que

Fellini faz de palco e exigia que estivesse absolutamente vazio para o início do seu trabalho.

Não pisava no Estúdio 5 de Cinecittà se houvesse algum resquício de filmagens anteriores, era

preciso encontrá-lo vazio. Um espaço vazio que para Fellini era necessário tanto no estúdio

como nos próprios atores. Um vazio que é teatro em potencial. Uma disponibilidade de se

transfigurar.

O conceito de espaço vazio foi utilizado por Peter Brook, teórico do teatro, para designar, em

termos visuais, um espaço cênico a-histórico e sem referências explícitas. Segundo ele, são os

atores, com a excelência do gesto e do olhar que criam o cenário. E tais atores em Fellini são

também espaços internos vazios, espaços internos de teatro em potencial. O que conta é a

forma. Assim ele monta um cinema – que já é arte figurativa – ainda mais figurativo, feito

através das máscaras, dos rostos e dos gestos das diversas instâncias de ator no sentido de ser

aquele que age na narrativa. Uma narrativa que permite uma crítica no registro do clown. É

como se cada instância crítica fosse feita em sketches de teatro de variedades, de cima de um

palco cênico. Plateia e atores mudam de posição continuamente, ou são uma coisa e outra

durante a narrativa.

Fellini utiliza-se de si mesmo como paródia. Faz um jogo de palavras que constrói o mito

Fellini. Segundo Giorgio Agamben, em um sentido particular, toda a literatura italiana recai sob

o signo da paródia que procura produzir um duplo de sentido Dantesco. Imita o verso de

alguém, e transfigura o que é sério para ridículo, cômico ou grotesco. Tal definição provém de

uma tradição retórica que encontra sua consolidação no final do século XVI, em Massimo

Scaligero, que dedica à paródia um capítulo inteiro de sua Poética. Sua definição

transformou-se em modelo no qual se inspirou por séculos o tratamento do assunto:

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Assim como a Sátira deriva da Tragédia e o Mimo da Comédia, a Paródia

deriva da Rapsódia. Aliás, quando os rapsodos interrompiam sua recitação, entravam em cena os que, por amor do jogo e para reanimar os ouvintes,

invertiam tudo o que havia acontecido antes... Por isso, chamaram tais cantos

de paroidous, pois ao lado e para além do assunto sério inseriam outras coisas ridículas. A Paródia é, portanto, uma Rapsódia invertida, que transpõe o

sentido para o ridículo, trocando as palavras. Era algo semelhante à Epirrhema

e à Parábase. (SCALIGERO apud AGAMBEN, 2007: p.38)

Existem, portanto, duas características canônicas da paródia: a dependência de um modelo

pré-existente que de sério é transformado em cômico; e a conservação de elementos formais em

que são inseridos conteúdos novos. Assim, o que está na medida do “sério” nos âmbitos de

espetáculo em que Fellini transita – neste caso a ideia de conciliação – ele figura em um duplo.

O espetáculo da iminência de morte do artesanal e da própria narrativa cinematográfica diante

da industrial chegada da televisão se reflete, no jogo de espelhos Felliniano, em um tempo

transfigurado, caricaturado, recriado como no sonho.

Ele estabelece uma estética da invenção, uma aparente criação, que teve origem em

documentos-relatos de fatos já acontecidos, e que é, assim, uma recriação ou reinterpretação do

mundo empírico: nesta medida faz um pastiche, no âmbito da memória. Já na construção

narrativa do filme, na montagem, quando utiliza as falas laterais e os contracantos para expor e

alargar as feridas do mundo contemporâneo, se utiliza da paródia - uma ode paralela que,

acentuando fragmentos e destacando rimas, faz como no coro da tragédia grega: estabelece uma

crítica cômica da estrutura narrativa principal.

1.1. A gênese.

I clowns, primeiro longa-metragem televisivo de Federico Fellini, teve inspiração em

uma proposta americana de trabalho que propunha que ele fosse uma espécie de clown sem

maquiagem. Fellini tinha um contrato um tanto vago: ser entrevistado em uma transmissão

intitulada Sperimental hour – um programa de 55 minutos que era colocado à disposição de

personalidades da cultura e do espetáculo já que nesse tempo poderiam fazer o que quisessem.

O produtor, para fazê-lo assinar o contrato, segundo Fellini, disse: “Você pode inclusive ficar

parado, sem dizer nada, e quando cansar colocamos uma fotografia sua que o substitui”. Ao

contar isso, Fellini evidentemente constrói um relato crítico que, se não acontece de fato,

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lembra uma forma bufa de dizer que a televisão é capaz de transformar tudo em espetáculo e

mata o homem pela reprodução da imagem. Mais tarde, faz paródia de sua própria história, ao

incorporá-la como artifício narrativo.

Em I clowns, a fotografia em movimento e a fotografia still se complementam na montagem do

filme que é todo construído em jogo de espelho: clown entrevista clown, a imagem é quem dá o

testemunho que é também nostálgico. O filme, portanto, se vê pelo reflexo, pela imagem do

circo no espelho. Um circo construído inclusive para ser inserido dentro de um chamado

espelho que é uma grade, uma tabela de programação de TV, dividido em blocos narrativos e

fragmentos engessados por uma estrutura capitaneada pela publicidade. Fellini, na narrativa,

lamenta a morte do artesanato, a incapacidade de um olhar de infância sonhador, o fim da

sutileza e da ingenuidade. Afirma que essa sutileza, só se encontra em resquícios nos circos do

interior e sua busca é a tentativa de imortaliza-lo. No livro Fazer um filme ele fala do que pensa

ser a imortalidade do circo:

Penso que o espetáculo circense, apesar de algumas notórias contradições com

o mundo contemporâneo, deva ser recuperado [...] Penso que toda forma de

espetáculo tem sua origem no circo, ou que, de qualquer maneira, ele é seu precursor ideal, se não cronológico. (FELLINI, 2004: p.156).

1.2. A estrutura narrativa

I clowns, diferente dos outros filmes de Fellini feitos para a televisão, não está dividido em

episódios e sim em um roteiro único estruturado em duas partes: uma parte que é um texto

explicativo da trama do filme que funciona como introdutório ou uma espécie de justificativa

do projeto; e em seguida a segunda parte constituída de 47 cenas escritas. Nazzareno Taddei,

diretor de TV e amigo do cineasta, no livro Tutto Fellini – materiali di studio, faz uma breve

análise do filme que é dos menos estudados da filmografia felliniana e o divide em três partes,

três blocos narrativos que estabelecem o movimento de aproximação e distanciamento do

narrador Fellini.

Parte 1: A recordação do menino Fellini

Parte 2: A análise do fenômeno: os célebres clowns

Parte 3: E morre o mundo clown

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FEDERICO FELLINI, O “DOCUMENTARISTA DE SONHOS” DE GLAUBER ROCHA, E SEU FILME I CLOWNS.

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Pensando nessa estrutura, vamos dividir mais ainda cada parte para clarear aqui a temática

principal de cada bloco narrativo estabelecido por Taddei. Assim, a publicada Parte 1, que é

prólogo do filme, se divide, assim: a chegada do circo de cavalinhos, o circo artesanal italiano

das periferias como memória da infância universal, as cenas de picadeiro com os sketches

tradicionais dos circos artesanais italianos (na década de 30) e os clowns da cidade de Rimini,

memória em montagem de Fellini, onde a vida é um circo.

Na Parte 2, aquela que Taddei chama de “Análise do fenômeno” se estabelece o seguinte

movimento: Fellini vira personagem, diretor “mestre de pista” entre o documentário e a ficção;

em a história do clown Branco e Augusto, o especialista entra em cena - Tristan Remy, o teórico

do circo que é clown Branco e é apresentado entre eles por Fellini.

Já a Parte 3, “A morte do circo”, se delineia a partir dos relatos de memória que já transparecem

a melancolia da morte: os relatos de memória e as fotografias, o caminho da melancolia à

derrota na frieza dos corredores da televisão francesa, a suspensão do pathos narrativo, a

caricatura da fragilidade contemporânea, a sátira da morte do clown Augusto encenada pelo

próprio clown em picadeiro e a poesia e a sombra que não morrem...

Vamos nos ater neste artigo ao terceiro bloco narrativo que começa na cena 17 – Ufficio,

Fellini, Interno, Giorno. A sequência começa em close de uma fotografia do picadeiro do

Cirque Moliere que está ao centro de uma montagem de fotografias de rostos de clowns e cenas

tradicionais de circo do interior, na parede do escritório de produção do próprio Fellini.

É neste escritório com sua trupe clown, no tom Augusto, que Fellini entra em cena como clown

sem maquiagem. O personagem técnico de som aponta um exagerado microfone fálico na

direção da secretária Maya. Sentado no sofá, ele está logo abaixo de sua própria fotografia

paramentado de clown. Esta é a primeira relação direta cinema-fotografia que a partir desse

ponto se estabelecerá no filme sempre na relação dialética documento histórico – ficcional/

micro-macro história/ relato - narrativa/ fio – rastro/ memória - montagem. Na fotografia,

aparece primeiro o tom aristocrático – Branco - dos primeiros “Circos de cavalinhos”. Assim

começa a sequencia. Um close da fotografia. É ela a cena.

Ao passar à frente das câmeras, Fellini brinca de meta-filme com o estilo mediador do real

empírico, apresentando os clowns de sua equipe de filmagem. Em cena o Clown Augusto (na

trupe) a serviço do Clown Branco (na TV), apresenta o argumento do filme, o foco da sua

pesquisa inicial e traz o assunto do passado ao presente, em formato de entrevista.

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Maya: Os clowns de então, de quando você era criança, onde estão agora? Existem ainda? Aquela comicidade violenta que dava desespero, aquele

grande alvoroço hila... hi... hilariante!

Fellini: Hilariante! Maya: Sim.

Fellini: Aquele grande desespero hilariante e espasmódico pode ainda

divertir? Certo, o mundo ao qual tal desespero pertencia e do qual era expressão não existe mais. Os teatros transformados em pistas...

Maya: Um momento, o senhor está um tanto veloz demais...

A pesquisa de Fellini busca pela credulidade infantil. Ele conversa no Circo Orfei de Paris com

o teórico francês Tristan Remy. O estudioso do circo, no entanto, nas mãos de Fellini

transforma-se também em clown. Um Clown Branco em “tom professoral”. Dentro do Circo

Orfei uma trupe de Clowns Brancos espera por Remy.

Fellini: A certa altura Remy me perguntou, “Por que um filme sobre clowns?

O mundo do circo não existe mais. Os clowns estão espalhados,

desapareceram. O circo não tem mais significado na sociedade atual.” E acrescentou: “Merecia acabar como acabou!”.

Nesta mesma sequência, em fusão de imagens, Fellini apresenta o desfile dos figurinos dos

clowns brancos em picadeiro e corta para os mesmos clowns brancos, desta vez “a paisana” e

engravatados, discutindo com Tristan Remy o fim do circo. Na montagem das cenas, em jogo

de espelho que define a tensão entre o artesanal e a indústria, a construção dos figurinos está em

pauta. De um lado, os próprios palhaços contam a história dos figurinos dizendo que eles eram

feitos pelas mãos das próprias esposas dos clowns; de outro, Tristan Remy afirmando que na

verdade os grandes circos já entregam o figurino para as grandes grifes da moda. Assim, Fellini

identifica a industrialização do artesanal. O artesanato e a indústria são mostrados pelo cineasta

cartunista frente a frente em uma pantomima que, na montagem das cenas coloca os mesmos

palhaços Brancos, paramentados e em terno e gravata, fazendo caretas uns aos outros,

brincando de espelho, refletindo de um lado o palhaço do circo e do outro o palhaço da

indústria.

Em seguida faz cortes dos closes das personagens de sua equipe para as fotografias dos atores

paramentados de seus clowns, nas paredes do Cirque d’Hiver parasiense – “que virou uma

cervejaria”, diz a personagem Maya transparecendo a crítica a publicidade.

É a fotografia que retém os resíduos dos quais a historia se despediu. O corte rosto-fotografia

identifica a equipe clown de filmagem e o corte rosto à paisana-máscara deixa clara a passagem

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do tempo e, mais uma vez, Fellini transparece melancolia. Uma melancolia que mostra o rosto

idoso do ator, corta para a fotografia de “o rosto de gesso” do clown para quem o tempo não

passa, e de novo volta ao rosto idoso do homem, para quem o tempo passa, envelhece e mata

aos poucos a memória, uma memória que, no entanto, consegue se reestruturar no processo de

recepção do registro fotográfico – os traços do ser humano são conservados apenas na sua

história.

2. FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA

A perspectiva da pesquisa sobre Fellini foi a de um cineasta crítico que com suas

especificidades apontava as fragilidades da indústria cultural e da sociedade do espetáculo em

mundo contemporâneo acelerado que, na figuração de Fellini, podia muitas vezes ser

comparada ao Inferno de Dante. Alguns autores foram fundamentais para o desenvolvimento

da pesquisa: Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Auerbach, Guy Debord, Jean

Baudrillard, Giorgio Agamben, Ismail Xavier, Glauber Rocha, Dante Aliguieri além de grande

fortuna crítica que se debruçou também sobre a obra de Federico e Fellini e o cinema italiano

neorrealista.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

A obra de Federico Fellini foi tema da tese de doutorado Anotações de um diretor, o cinema de

Federico Fellini na televisão defendida no departamento de Ciência da Literatura, Faculdade

de Letras da UFRJ em 2012. Está no prelo para publicação no 1º semestre de 2016.

CONCLUSÕES

I clowns é fortemente melancólico. Mas quando o espectador está absolutamente certo de que

Fellini perdeu a esperança, de que o circo morreu com a chegada da indústria cultural e de que

ele está absolutamente descrente, no momento em que viramos cúmplices da fábula, Fellini

suspende o pathos narrativo e a próxima cena é um esquete de circo, caricaturando a morte de

um clown com o choro cômico de outro. Artifício que leva o público bruscamente de uma ponta

a outra da percepção, do choro ao riso, em uma suspensão narrativa que tenciona as linhas do

texto até o ponto de arrebentar; mas antes que arrebente, entra a sátira, a pantomima, o riso que

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atenua o conflito, mas não o encobre. Nessa medida, entra o conciliador de 81/2. É Fellini

mesmo que assume seu tom ao falar do filme de 1963 e, com 81/2, traz Glauber Rocha e seu

Cinema Novo de Terra em Transe e de Deus e o Diabo na terra do sol para sua plateia. Diz ele:

Estou em resumo, conciliando [...] um pouco também para não ser visto com rancor, com ódio, para que não digam que eu não ligo para os outros e, talvez,

um pouquinho por megalomania; a felicidade é poder dizer a verdade sem

fazer ninguém chorar. (FELLINI sobre 8 ½).

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