faraco - norma culta brasileira

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Lingualgeml25 l. Portugtês ou brasileito? Um convite à pesquisa Marcos Bagno, 6" ed. 2. Lin7uagei & comunicação social - visões da lingúística moderna ManoeÌ Luiz Gonçalves Corrèa 3. Por uma lingúistica crítica KanaviÌüÌ RajagoPalan, 3" ed. 4. Educação "^- ingu" matetna! a socìolingüstica na sala de aula Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed. 5. íi"tu^t, mudança e linguagem - um petturso pela histótia da lingüística moderna Dante Lucchesi 6. 'O português são dois" - novas fronteiras, velhos problemas Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2'ed' 7. Ensaios p"ru u^, sócio-história do português brasileiro Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2" ed' 8. A lingúística que nos faz falhar - Investigação-crítica - ú""""iffl RajãgopaÌan, Fábio Lopes da Silva lorgs'ì - esgotado 9. Do signo ao d.iscurso - Introdução à frlosofia da lingtagem Inês Lacerda Âraújo, 2' ed. l0-Ensaros de frlosofia da lingüística José Borges Neto ll.Nós cheguemu na escola, e agora? Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed' p.iiÀ u" lindos filhotes de poodle - Variação lingüística' mídia e preconceito Maria Marta Pereüa Scherre, 2" ed' L3.A seopoìítica do inglès Yvãs Laco"te Íorg.l, Kanavillil Rajagopalan lL-Gêneros - teotias, métodos, debates - J. L, Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [orgs'ì' 2" ed' ts.oi^po noé rerbos do português - uma introd.ução a sua ìnterpretação semântica Maria Luiza IlvÍonteiro SaÌes Corôa Il.Cinsideraçoes sobre a fala e a escrita - fonologia em nova chave Darcilia Simões lT.Princípios de kngüística descritiva M. A. Perini, , 2" ed. I}.Por uma lingüística aplicada rNdisciplinar Luiz Paulo da Moita LoPes, 2'ed' l9-Fundamentos empíricoi para uma teoria da mudança lingüística U. Weinreich, W. Labov, M. I' Herzog 2}.Origens do português brasileito Anúony Julius Naro, Maria Marta Pereira Scherre 2|.Introdução à gramatìcalização - Princípios teóricos & aplicação Sebastiáo Carlos Leite GonçaÌves, Maria Cé}ia Lima-HernantÌes' Vânia Cristira Casseb-Galvào lorgs'ì 22.O acento em português - Abordagens fonológicas Gabrieì Anlunes de Araújo lorg.J 23. Sociolingüística qu àntitativa - Instrumen ial de anáIise Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl ZiìÌes 24.Metáfora Tony Berber Sardinha 2í.Norma cultma brasileìra - desatando alguns nós Carlos AÌberto Faraco ,'Q i,( tìp g * ff F Ë $, Carlos Alber"to Faraco .J, .t q' ': kçn * \lÀ 1* ì Ì:r ìlèjr MI I ïa

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Lingualgeml25l. Portugtês ou brasileito? Um convite à pesquisa

Marcos Bagno, 6" ed.2. Lin7uagei & comunicação social - visões da lingúística moderna

ManoeÌ Luiz Gonçalves Corrèa

3. Por uma lingúistica crítica

KanaviÌüÌ RajagoPalan, 3" ed.

4. Educação "^-

ingu" matetna! a socìolingüstica na sala de aula

Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed.

5. íi"tu^t, mudança e linguagem - um petturso pela histótia da lingüística moderna

Dante Lucchesi6. 'O português são dois" - novas fronteiras, velhos problemas

Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2'ed'

7. Ensaios p"ru u^, sócio-história do português brasileiro

Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2" ed'

8. A lingúística que nos faz falhar - Investigação-crítica- ú""""iffl RajãgopaÌan, Fábio Lopes da Silva lorgs'ì - esgotado

9. Do signo ao d.iscurso - Introdução à frlosofia da lingtagem

Inês Lacerda Âraújo, 2' ed.

l0-Ensaros de frlosofia da lingüística

José Borges Netoll.Nós cheguemu na escola, e agora?

Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed'p.iiÀ u" lindos filhotes de poodle - Variação lingüística' mídia e preconceito

Maria Marta Pereüa Scherre, 2" ed'

L3.A seopoìítica do inglèsYvãs Laco"te Íorg.l, Kanavillil Rajagopalan

lL-Gêneros - teotias, métodos, debates- J. L, Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [orgs'ì' 2" ed'

ts.oi^po noé rerbos do português - uma introd.ução a sua ìnterpretação semântica

Maria Luiza IlvÍonteiro SaÌes Corôa

Il.Cinsideraçoes sobre a fala e a escrita - fonologia em nova chave

Darcilia SimõeslT.Princípios de kngüística descritiva

M. A. Perini, , 2" ed.

I}.Por uma lingüística aplicada rNdisciplinar

Luiz Paulo da Moita LoPes, 2'ed'

l9-Fundamentos empíricoi para uma teoria da mudança lingüística

U. Weinreich, W. Labov, M. I' Herzog

2}.Origens do português brasileito

Anúony Julius Naro, Maria Marta Pereira Scherre

2|.Introdução à gramatìcalização - Princípios teóricos & aplicação

Sebastiáo Carlos Leite GonçaÌves, Maria Cé}ia Lima-HernantÌes'

Vânia Cr ist i ra Casseb-Galvào lorgs ' ì

22.O acento em português - Abordagens fonológicas

Gabr ieì Anlunes de Araújo lorg.J23. Sociolingüística qu à ntitativa - Instrumen ial de anáIise

Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl ZiìÌes

24.MetáforaTony Berber Sardinha

2í.Norma cultma brasileìra - desatando alguns nós

Carlos AÌberto Faraco

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32 NORMA CULTA ERASILBRA: O€sAÌANDO ALGUNS Nô5 r Codo5 AlbsÌo FoÍqco

ramos que a reunião desse material contribua para que essedebate se amplie, atraindo seja aqueles que estão se iniciandona área de letras e lingüística, seja todos os que têm a língua comotema de interesse6.

6 Fiz a reunião destes textos por sugestão do coìega Marcos Bagno. Agradeço sua insistên-cia, que acabou por me tirar da inércia. Os diversos textos que constituem o livro foram,a seu tempo, Iidos preúamente por coÌegas lingüistas. Todos contribuíram com críticas esugestões que ajudaram a diminuir minhas muitas carências. Por isso, registro aquimeus agradecimentos a cada um deles: Ana Maria stahl Zilles, caetano waldriguesGalindo, Gilberto de castro, Irandé costa Morais Artunes e Maria Bernadete Fernandesde oliveira. obviamente, não cabe a eÌes nenhuma responsabilidade pelo que está ditoneste liwo.

conceito de norma, nos estudos

da necessidade de estipuÌar um

de captar, pelo menos em parte,

constitutiva da língua.

estudos científicos da linguagem

do, nenhuma língua é uma realidade unitária

é, de fato, nas representações imaginárias de

concepções poÌít icas de uma sociedade.

capítulo um

Iingüísticos, surgiuníveÌ teórico capaza heterogeneidade

verbaÌ têm mostra-e homogênea. Só o

uma cultura e nas

No plano empírico, uma língua é constituída por um conjun-

to de variedades. Em outras palavras, não existe língua para

1Ìém ou acima do conjunto das suas vaïiedades constitutivas,

nem existe a língua de um lado e as variedades de outro, como

muitas vezes se acredita no senso comum: empiricamente a lín-

gua é o próprio conjLrnto das varieclades. T?ata-se, portanto, de

uma realidade intrinsecamente heterogênea.

1 Este capítuÌo arnplia e atualiza a discussão que fizemos no texto "Norma-padrãobrasileira: desembaraçando aÌguns nós", publicado no livro Lìngüística da norma,

organizado por Marcos Bagno (São Paulo: LoyoÌa. 2002.p.37-61). Seu objet ivo é fazer

uma apresentação técnica dos conceitos de norma, norma cuita, norma-padrão eproblemas correÌatos.

Nonann

3534 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESAÌANDO ALGUNS NOS r CoÍ1o5 AlbeÍïo Foroco

Por isso é que tendemos a dizer hoje, nos estudos científrcos

da linguagem verbaÌ, que uma língua é uma entidade cultural e

política e não propriamente uma entidade lingüística. Ou seja:

não há uma definição de língua por critérios puramente lingüísti-

cos, mas fundamentalmente por critérios políticos e culturaisz.

Q.t 44o, portanto, üzeryos po,rtuguês, est:lo1qg não de"iglaqg

objeto empírico uno, homogêneo, claramente delimitável e objetiva-

-"tttu ilefinível por critério" up"nu, lingiiísticos 0ãxi"o:er"úatic"iil

O nome singular recobre, de flto, uma realid.ade plural, ou

seja, um conjunto de inúmeras variedades reconhecidas históri-

ca, política e culturalmente como manifestações de uma mesma

língua por seus falantes.

A sociologia da Ìinguagem desvelou alguns aspectos da alta

complexidade envolúda nessa questão do estabelecimento do que

é uma língua- Mostrou, por exempÌo, que falantes de diferentes

comunidades lingüísticas se reconhecem como falantes de uma

mesma língua mesmo quando não há entre eles mútua inteligibili-

dade. Exemplo clássico é o do chinês. Falantes das variedades

reunidas sob a designação de mandarim se consideram falantes

de chinês tanto quanto os falantes das variedades reunidas sob a

designação de cantonês, embora entre eles não haja, em geral,

mútua inteligibiÌidade.

Por outro lado, faÌantes de variedad.es mutuamente inteÌigí-

veis (e que poderiam ser consideradas, por critérios puramente

Ìingüísticos, como partícipes de um mesmo contínuo dialetal) se

declaram falantes de línguas diferentes. Caso clássico é o do ne-

erlandês e das variedades do chamado baixo alemão faladas no

noroeste da Alemanha. Jamais um cidadão dos Países Baixos diráque fala uma variedade do baixo alemão. Por razões polít icas e

2 Taìvez por isso é que o Ìingüista norte-americano William D. Whitney, um dos maisimportantes da história da Ìingüística. dízia, jâ no sécuÌo XIX, que una língua não sedefine: só é possível mostrá-Ìa e descrevê-Ìa ("No one can defrne, in the proper sense ofthat term, a languagei for it is a great concrete institution, a body of usages prevaiìing ina certain comnunity, and it can onÌy be shown and described", p. Ì5?),

culturais, ele sempre se reconhecerá como membro de uma comu-nidade que faÌa uma língua específica3.

$ Iilfriística_p-ropriamente dita (i.e., a ciência que recortou como

objeto a língua em síà ii"g.r" em sua imanência, em sua realidade

estrutural desvinculada, em princípio, de suas condições externas)

loftglo" yryt a priori, ou seja, a sunosição térclta de que, por trás de

toda a variação constitutiva d.e uma língua, existe uma unid.ad.e

sisiêmica (suposição nunca, porém, efetivamenle demonstrada),

Milroy (2001) e Romaine (rgg+) argumentam que esse a priori

resultou do quadro de crenças no interior do qual a lingüística

estruturaÌ se constituiu como ciência. Tendo sua origem no con-

texto cultural europeu, ela acabou por reproduzir, em seus mode-

los teóricos, a concepção de língua aí vigente - qual seja a identi-

ficação da língua com a norma-padrão.

Essa concepção derivou do fato de, na Era Moderna (desde o

século XV), a língua ter se tornado assunto de Estado nos países

europeus, que, como parte do processo de centralização caracte-

rístico daquela conjuntura histórica, desenvolveram políticas lin-güísticas homogeneizantes em seus territórios.

Dessa identificação da iíngua com a norma-padrão decorre a

dificuldade da lingüística e dos lingüistas em acomodar em seus

modelos teóricos a heterogeneidade empírica que caracteriza qual-

quer realidade Ìingüísticaa.

Nesse sentido, não foi ainda superada (nem há indícios deque venha a ser no futuro próximo) uma divisão de trabalho nos

estudos lingüísticos: a lingüística segue sob o pressuposto teórico

da necessária idealização homogeneizante da língua, cabendo a

heterogeneidade, em suas diferentes faces, a outras disciplinas

3 Uma interessante discussão dessas quesrôes pode

Hal l iday ' . Mclntosh & Strevens (1974).'Uma análise crítica de aspectos dessa situação teórica& Herzog (2006).

ser encontrada no capítuÌo 4 de

pode ser Ìida em Weinreich, Labov

AFINANDO CONCEITOS

ëÊ'.f

NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ATGUNS NÔS r Codos Alberio Foroco

- à dialetologia, à sociolingüística, à Ìingüística histórica, à

estilística, à lingüística antropológica.

No passado, a suposição tácíta de que, por trás de toda varia-

ção constitutiva de uma Ìíngua, existe uma unidade sistêmica ad-

quiriu uma forma teórica na concepção de língua como um siste-

ma social uniforme que se materializaria nos usos individuais (es-

tes sim heterogêneos), resumida na famosa dicotomia langue/

parole formuÌada por Ferdinand dg Saussure-

No entanto, por mais produtiva que esta concepção possa ter

sido em algumas áreas dos estudos lingüísticos (em especial na

criação da fonologia), ela se mostrou insuficiente para explicitar

a imaginada unidade sistêmica, bem como para dar conta da varia-

bilidade lingüística supra-individual.

O pressuposto forte dessa concepção era o de um sistema

único e uniform.e, pensado como um nível de grandes relações

invariantes que conteria, em potência, todas as possibilidades

expressivas materializáveis nos atos individuais de fala.

Esse modelo não comportava a variabilidade como fenômeno

intra-sistêmico, nem dispunha de estratos intermediários entre

sistema e indiúduo. Não tinha, portanto, recursos teóricos sufici-

entes para absorver a heterogeneidade supra-individual (social)

constitutiva da língua.

Foi preciso, então, refinar o recorbe teórico, nascendo daí o con-

ceito de norma, formulado pelo lingiústa Eugenio Coseriu no início da

décacla de 1950. A perspectiva dicotômica Qangue/parole, sistema/fala)

deu lugar a uma perspectiva tricotômica (sistema/norma/fala).

Mantido o olhar estruturalista de inspiração saussuriana, po-

de-se entender trorma, nop_l41o teórico, como cada um dos dife-

*j11,tgs m.odgs sociais de_realizar os grandes esquemas de relaçõ-es

do sistema. Nesse sentido, cada norma se organiza como um certo

r*""j;ìã possibilidades admitidas pelo sistema. Cada um des-

ses arranjos se desenha a partir do uso corrente, habitual de de-

terminado grupo de falantes socialmente definido.

AFINANDO CONCEITOS

Coseriu, buscando dar mais precisão ao conceito, afirmava

que uma norma não corresponde ao que "se pode dizer" (tarefa do

sistema), mas ao que já "se disse" e tradicionalmente "se diz" na

comunidade considerada.

É possível, então, conceituar tecnicamente norma como deter- I

minado conjunto de fenômenos lingüísticos (fonológicos, morfoló-

gicos, sintáticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habitu-

ais numa dada comunidade de fala. Norma nesse sentido se identi-

fica com normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habi-

tual, recorrente ("normaÏ') numa certa comunidade de fala5.

É importante deixar claro que a idéia de norma, embora nasci-

da no interior do arcabouço teórico estruturalista de inspiração

saussuriana, não perde sua vitaÌidade quando transposta para ou-

tros quadros teóricos. E isso por força do que nos impõe a empiria:

qualquer modelo teórico da linguagem verbal tem, inexoravelmente,

de se posicionar frente à variabilidade supra-individual, ou seja,

frente às diferentes variedades que constituem uma língua.

Assim, se adotarmos um olhar gerativista, diremos que a cada

norma corresponde uma gramát ica. Se adotarmos um olhar

variacionista (sociolingüístico ou dialetológico), será produtivo

equiparar norma e variedade.

QuaÌquer das três abordagens deixa claro um dado fundamental

para o estudo das línguas: toda e qualquer norma (toda e qualquer

variedade constitutiva de uma língua) é dotada de organização6. Cada

5lJma norma não comporta apenas um conjunto de fenômenos fixosi ela inclui também,

como é próprio das manifestações da Ìinguagem verbaÌ, fenômenos em variação, como

teremos a oportunidade de ver ao longo de nossa discussào.6 O lingúista norte-americano Edward Sapir, em artigo de 1924,'utiÌizou a expressão

plenitude formalpara se referir ao fato de que toda e quaÌquer manifestação da Ìingua-

gem verbaÌ (toda e quaÌquer norma lingüística, toda e qualquer variedade Ìingüística)

tem organização, tem gramática (cf. Sapir, 1924: 33). O senso comum, orientado pelo

imaginário de que uma Ìíngua é unitária e homogênea, tem grande dìficuldade para

assimilar este dado fundamentaÌ da constituição e funcionamento da Ìinguagem verbaÌ

Costuma, então, tratar as variedades distantes de um certo modeÌo como erradas,

desestruturadas, corrompidas. Um dos desafios mais difíceis para quem se inlcta nos

3736

f:í

,Y

NORMA CUTTA BRASILEIRÀ: DESAÍANDO ALGUNS NOS r Cqrlos Alberto Faroco

abordagem teórica construirá, a partir de seus pressupostos ge-

rais, um modelo diferente dessa otganização - num, cada norma

será entendida como um cer to arranjo das grandes reÌações

sistêmicasi noutro, como a materialização de uma determinada

gramática (de um certo conjunto de princípios e regras); no ter-

ceiro, como determinada conjunção de uma certa combinação de

regras variáveis. No entanto, nenhuma teoria deixa de reconhe-

cer o fato básico: não há norma sem organização7.

A pleníIude formol: consegüêncíosde seu Íeconhecimento

O fato de que toda norma tem uma organrzaçã.o estruturaldeixa sem fundamento empírico enunciados de.senso comum emque se afuma, por exemplo, que os anal.fabetos ou os falantes devariedades do chamado português popular falam "sem gramáti-ca". Se toda norma é estruturalmente-,qlgad?_qd?' é -ilqpggqiyelratr.ìããg.t-átú.

Esse fato põe igualmente sob suspeita a própria noção deerro em Ìíngua- Se um enulrciq4o.=.é-pfglnslS_por uma norma, não

!9_pg4g qoqdgg_rf lg 99mo erro goqr_base na organízaçág g1tIgEI.l

4e qma outra ngrma. Desse modo, o lingüista não pode escaparda tarefa de desenvolver instrumentos descritivos adequados paradar conta das diferenças de organização estruturaÌ entre as mui-tas normas de uma 1íngua. Os fatos não lhe autorizam optar pela

solução sirnples do conceito de erro.

estudos científicos da linguagem verbaÌ é precisamente aprender a reconhecer a plenitu-

de formal de todas as variedades lingüísticas. Sem isso, nenhuma discussão sobre línguaconsegue avançar.? O {iiósofo e ìingüista WilheÌm von HumboÌdt, um dos rnais importantes pensadores dahistória da iingüística. resumiu num só enunciado o fato de todas as manifestações dalúguagem verbaÌ terem, de um Ìado, organização e, de outro, serem extremamenteheterogêneas. Dizia eìe (em texto publicado postumamente em 1836, cf. Humboldt, 1988:56):"Na linguagem, pois, a rirdrradualizaçãonoínterior de uma conforntidade geralétàomaravilhosa que se pode dizer com igual correção que o conjunto da humanidade temuma só língua e que cada ser humano tem uma iíngua que Ìhe é excÌusiva".

AFINANDO CONCETTOS

Do mesmo modo, o fato de toda norma ter organização estru-

tural (ter uma gramática) deixa infundada a afirmação que apare-

ceu num ârtigo de um jornal de grande circulação (e que trazemos

aqui porque resume todo um discurso sobre a língua portuguesa

do Brasil) de que "o português aqui [no Brasil] transformou-se

num vernáculo sem lógica e sem regras"8.

Há, obviamente, grupos de falantes que não dominam ou do-

minam precariamente determinadas normas. Um bom exemplo

disso é a situação dos falantes de cultura intrinsecamente urba-

na. Em geraÌ, eles só conseguem reproduzir as normas rurais por

meio de estereótipos. Outro exemplo é a situação de falantes pouco(ou maD escolarizados que não dominam (ou dominam apenas pre-

cariamente) a norma da escrita formaÌ.

Por outro lado, apesar de haver diferenças entre os falantes

quanto ao domínio das muitas normas sociais, não há falantes que

falem sem o domínio de alguma norma. Diferentes grupos sociais,

por terem histórias e experiências culturais diversas, usam sim

normas diferenciadas (e até discordantes). Mas não há grupo so-

cial que não tenha sua norma, que faÌe sem o suporte de uma dada

organização estrutural (não há, portanto, "vernáculos sem lógica

e sem regras"; o que pode haver - e há - são vernáculos com

outra lógica e com outras regras).

:i':: Umo comunidade, vóríos normos

A situação, porém, é ainda mais cornplexa porque, na verdade,

cada comunidade lingüística tem várias normas (e não apenas uma).

Nesse sentido, uma comunidade lingüística não se caracteríza por

uma única norma, mas por um determinado conjunto de normas.

Essa diversidade está diretamente correÌacionada com a pró-

pria heterogeneidade da rede de relações sociais que se estabele-

8 Tt'ata-se de artigo assinado por Marilene FeÌinto e publicado, sob o títuÌo "O português

que brasiÌeiro não sabe escrever", no jornaÌ Folha de S.Paulo (04,/01/2000).

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NORMA CULÌA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS r CoÍlos Alberlo Foroco

cem no interior de cada comunidade lingüstica. Daí que hoje mútosestudiosos da heterogeneidade sociolingüística estejam optando por

entender uma comunidade lingüística como composta de várias (as-

sim chamadas) comunidades de prática (ver, por exemplo, Eckert 2000).

Grosso modo, pode-se entender por comunidade de práticaum agregado de pessoas que partilham experiências coletivas notrabalho, nas igrejas, nas escolas, nos sindicatos e associações, no

^ Iazer, no cotidiano da rua e do bairro etc. Uma mesma pessoa des-;;l sa coletividade, bem como cada um de seus pares, pertence si-

""., rÌrültaneamente a diferentes comunidades de prática.

_,n'. i Em cada uma dessas comunidades, costuma haver modos pe-culiares de falar (ou seja, há normas específicas) e o comporta-mento normal do falante é variar sua fala de acordo com a comu-nidade de prática em que ele/ela se encontra. É. parte d.o repertó-rio lingüístico de cada falante um senso de adequação, ou seja,ele/ela acomoda seu modo de falar às práticas correntes em cadauma das comunidades de prática a que pertence. Por isso, se dizque cada falante é um camaleão Ìingüístico. Obviamente, ele/elapode romper as expectativas por diferentes razões, entre outras:causar riso, provocar conflito ou assinaìar que seus laços com aque-la comunidade estão se tornando tênuese.

Pode-se obsewar, diante desse panorama de diversidade, que quaÌÌ-to mais tem avançado o estudo da heterogeneidade lingtiística, mais elase mostra complexa. Assim, embora necessárias, são já insuficientes ascategorias tradicionais com que a sociolingtústica começou a trabaÌhar,como idade, gênero, etnia, nível de renda e escolaridade. Tornou-se in-dispensável anaÌisar também as múltipÌas redes de reÌaçõessociointeraciopais de que pariicipam os faÌantes: elas são fatores dire-tamente correlacionados com os diferentes modos de falar (e escrever),com as diferentes normas de uma determinada comunidadelo.

s Para mais detalhes sobre comunidades de prática, consultar Wenger (i908). Para umavisão geral de seu uso na pesquisa socioÌingüística, consuÌtar, entre outros, Milroy &Gordon (2003), cap. 5.10 tabaÌho pioneiro nesse sentido foi Milroy (1980). No BrasiÌ, as pesquisas de SteìlaMaris Bortoni-Ricardo são referência desde seu hoje cÌássico estudo sobre os migrantesno Distrito Federal (Bortoni-Ricardo, Ì985).

AFìNANDO CONCEÍÌOS

Compreender bem esse ampÌo quadro empírico é essencial.

Sem essa compreensão, faÌtará chão firme para fazer avançar odebate das questões lingüísticas. Compreendidos esses dados fun-

damentais de como funciona a linguagem verbal, pode-se dar umpasso à frente buscando esclarecer outro aspecto fundamental: as

valorações sociais que recobrem diferentemente cada norma

constitutiva da língua e os muitos e compÌexos efeitos dessas dis-

tintas valorações - discussão que faremos adiante.

ffi ,atguns exempfos

Por ora, para deixar sedimentado o conceito de norma, é opor-

tuno considerarmos aÌguns exemplos. Comecemos pela pronún'

cia de palawas como úia, tinha, dia, direito. Em aÌgumas comuni-

dades brasi Ìe i ras. a norma (o 'normal ' ) é a pronúncia af r icada(representável, para nossos fins, como tchia, tchinha, djia, djireito);

em outras comunidades, a norma é a pronúncia não-africada.

Outro exemplo. A norma, em boa parte do Rio Grande do Sul,

no tratamento familiar do interlocutor, é o uso do pronome úui em

outras partes daquele Estado e do país, a norma é o uso do prono-

me você1| .

Outro aspecto interessante daquela norma gaúcha é o uso de úu

com a forma verbal da chamada terceira pessoa gramatical. O co-

mum (o 'normaìl) é dizer tu vai, tu disse, tu pode, tu correu etc. No

entanto, num contexto em que há um leve grau de distanciamento

entre os interlocutores, é comum os falantes passaïem a usar o pro-

nome üu com a forma verbai da chamada segunda pessoa gramaticaÌ(ou só a forma verbaÌ sem o pronome expÌícito). Vai se dizer, então,(tu) vais, (tu) &'ssesre, Qu) podes, (tu) correste etc.12

ir Para um estudo diaÌetoÌógico do uso de úu e vocé no Rio Grande do Sul, consuÌtar o Aúlas

Lingüístico'Etnogtáíico da Região Sul do BrasìL, vol. 2.12 Mais interessante ainda é observar que, se seguidas de outras formas verbais, estas

poderão vir com ou sem concordância de segunda pessoa, segundo um rico sistema de

princípios sociolingüísticos variáveis, como bem demonstra o estudo de Amaraì (2003).

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42

ï"NORMA CULTA ERASILEIRÂ: DESATANDO ALGUNS NÔS r COÍIO5 AIbETIO FOÍOCO

Na norma curitibana, que usa o pïonome você, essa diferença

de graus de proximidade se expressa peÌa escolha do pronome pos-

sessivo: serâ teu \Você deve sempre ttazer o teu livro) se a relação

com o interlocutor for de total familiaridade e será seu (Você deve

sempÍe trazer a seu üvro) se a relação for de relativo distanciamento.

Ainda um exemplo. Em Portugal, há uma norma em que é

corrente o uso do pronome possessivo vosso significando "de

vocês". Não se usa mais o pronome vós - que desapareceu de

praticamente todas as variedades da língua e foi substituído, no

pluraÌ, peìo pronome vocês. No entanto, essa norma lusitana man-

tém úvo o possessivo vosso - agora em outra chave gramaticaÌ,

ou seja, em correlação com o pronome vocês.

Nesse caso, o corriqueiro, o habitual, o normal é dizer: Para o

exame, vocês devem trazer os yossos Livros.

Já no Brasil, a norma, nesse caso, é variavelmente o pronome

seus ou a expressão de vocês. Dizemos, então: Para o exame, vocês

devem trazer os seus livros. Ou:' Para o exame. vocês devem tra-

zer os livros de vocês.

ï:$ wormos, ídenfidodes e conÍofos

Numa síntese, podemos então dizer que norma é o termo que

usamos, nos estudos lingüísticos, para designar os fatos de língua

usuais, comuns, correntes numa determinada comunidade de fala.

lEm outras palavras, norma designa o conjunto de fatos lingüísticos

4 que caracterizarn o modo como normalmente falam as pessoas de

uma certa comunidade, incluindo (como observamos na nota 5) os

fenômenos em variação.

Os diferentes grupos sociais se distinguem, portanto, peÌas

formas de língua que lhes são de uso próprio. Assim, numa socie-

dade diversificada e estratificada como a brasileira, haverá inú-

meras normas li.ngüísticas, como, por exemplo, normas caracte-

rísticas de comunidades rurais tradicionais, aquelas de comuni-

AFNANDO CONCÚTOS

dades rurais de determinada ascendência étnica, noïmâs carac-terísticas de grupos juvenis urbanos, normas características depopulações das periferias urbanas, e assim por diante.

IJm mesmo falante, como vimos, domina mais de uma norma (á

que a comunidade sociolingüística a que pertence tem várias nor-

mas) e mudará sua forma de fa-lar (sua norma) variavelmente de acor-

do com as redes de atividades e relacionamentos em que se situa.

Como as normas são, em geral, fator de identificação do gru-

po, podemos afirmar que o senso de pertencimento incÌui o uso

das formas de falar características das práticas e expectativas lin-gtústicas do grupo. Nesse sentido, uma norma, qualquer que seja, ?

não pode ser compreendida apenas como um conjunto de formas , -l ingüísticasi ela é também (e principalmente) um agregado de I "valores socioculturais articulados com aquelas formas.

A força identitária das normas lingüísticas não se faz apenas

endocentricamente, mas também exocentricamente. Assim como

há uma tendência dos falantes a se acomodar às práticas lingüís-

ticas normais de seu grupo sociaÌ (e isso pode se transformar em

motivo de orgulho e, eventualmente, em fator de resistência aprocessos sociais sentidos como ameaçadores ao grupot3), o dese-jo de se identificar com outro(s) grupo(s) ou a própria pressão das

redes de relações sociais externas ao gïupo podem levar os falan-

tes a buscar o domínio de outra(s) norma(s)tn.

Um exemplo do primeiro caso são as normas dos adolescen-

tes urbanos e um exemplo do segunclo é o movimento em direção

às normas urbanas percebido nas gerações mais novas da popula-

ção que migrou, nas décadas passadas, do campo para a cidade(cf. Bortoni-Ricardo 2005i Lucchesi 2002).

t3 E clássico, nesse sentido, o estudo que Labov desenvoÌveu na ilha de Martha 's Vineyard

(EUA) - ver Labov (t963).tn Em Signorini (2002), pode-se ler uma discussão bastante interessante desses compÌe-xÕs processos de instabilidade, Ílutuações, desÌocamentos e também dos modos dereguÌação e calibragem das ações lingüísticas dos faÌantes.

43

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f,--4544 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS . CoÍ1os AlberÌo FoÍoco

Numa sociedade complexa, não há, obviamente, um total

encapsuÌamento e insulamento dos grupos sociais, nem de seus

membros. Assim, é inevitável o contato entre as muitas normas

no intercâmbio social, seja pelo encontro de falantes de diferen-

tes normas, seja pelo fato corriqueiro de um mesmo falante domi-

nar mais de uma norma - dominar no sentido ativo, isto é, de ser

càpaz de fazer uso efetivo de mais de uma norma; ou apenas no

sentido receptivo, isto é, de ser capaz de reconhecer e compreen-

der determinada(s) norma(s), mas não de usá-Ìa(s) efetivamente.

Um dos resultados desses contatos são as múltiplas e contí-

nuas interinÍluências entre as normas. Tome-se, como exemplo, a

situação de uma comunidade ainda essencialmente rural que, no

entanto, tem contato contínuo com as normas urbanas por meio

do ráüo, da televisão e da escoÌa e pense-se no espraiamento de

caracteústicas urbanas na fala dessa comunidade - espraiamen-

to que será tanto maior quanto mais positiva for a orientação dela

em direção à cultura urbanal5.

Não existe, em suma, uma norma "pura": as normas absor-

vem características umas das outras - elas são, portanto, sem'pre hibridizadas. Por isso, não é possível estabelecer com absolu-

ta nitidez e precisão os limites de cada uma das normas - haverá

sempre sobreposições, desbordamentos, entrecruzamentos.

Isso , ev identemente , to rna o t raba lho c ien t í f i co com a

heterogeneidade lingüística ainda mais compÌexo e não é de ad-

mirar que não haja ainda, no interior dos estudos iingiústicos, um mo-

delo teórico càpaz de dar conta de toda essa complexidade. Os

modelos teóricos atuais enfocam apenas parceÌas desse todo.

Por outro lado, a lingüística histórica tem demonstrado que o

contato e a hibridização das normas são fatores que favorecem o

desencadeamento de mudanças Ìingüísticas em diferentes dire-

ções (cf., para mais detalhes, L. Milroy, 1980 - entre outros). Por-

t5 [Jm estudo de caso de assimilação de características de norma urbana súandard por

uma Ììorma rural não-súandard pode ser Ìido em Guv & ZiÌÌes (no prelo).

AFINANDO CONCEITOS

tanto, assim como não há norma "pura", não há também nenhumanorma estática.

Estes diversos fatores - contatos entre normas, hibridizaçõese mudanças - acrescentam ingredientes fundamentais a qual-quer discussão sobre questões de língua: nunca é possível deixar Ide considerar que toda realidade lingüística é organizada, hete-rogênea, híbrida e mutanter6.

Tendo este panorama geral sobre as normas lingüísticas nohorizonte, podemos nos encaminhar para a discussão da chamadanorma culta.

Nonma cutTA

Antes de mais nada, é preciso dizer que não é simples conceituare identificar, no BrasiÌ, a norma a que se dá o quaÌificativo de culta.Para facilitar, pode ser útil tomar como ponto de partida uma bre-ve fotografia de pelo menos parte do amplo espectro das varieda-des que constituem a língua portuguesa no nosso país.

f$ Os frês confinuo e o linguogem uÍbona comum

Embora não exista ainda um Ìevantamento exaustivo (ou su-ficientemente abrangente) da diversidade constitutiva do portu-guês brasiÌeiro, dispomos já de ricos acervos de dados dialetoÌó-gicos e sociolingüísticos, além de um significativo registro da nossa

língua escrita do úItimo meio século.

Há, desses dados, consolidações parciais, mas ainda nos falta

uma consolidação geral que apresente urna descrição mais siste-

mática da cara lingüística do país como um todo.

'6 Não é demais Ìembrar aqui que estes fatos característicos de toda reaÌidade Ìingüística

conflitam com as representações que o senso comum tem da Ìíngua como uma realidadehomogênea, pura e estática. Essas representações impedem, muitas vezes, um debateprofi cuo sobre questões ìingüísticas.

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46 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATÀNDO ALGUNS NÓS r coíos Alberio Foroco

Apesar dessa ausência, está bastante claro que nenhum cortedicotômico da realidade lingiÍstica brasileira português culto/português popular, português formaUportuguês informal ou identi-ficações simplistas como português formal/Iíngua escrita e portu-guês informal/língua fa-ìada - é suficiente para representá-la.

O modelo que, no momento, parece fornecer o meÌhor instru-mental para registro da diversidade já estudada é o proposto porStella Maris Bortoni-Ricardo (ZOOS), que busca distribuir as varie-dades em três continua que se entrecruzami o continuum rural-urbano, o de oralidade-letramento e o da monitoração estilística.

Considerando as características da urbanização do país (que,em menos de cinqüenta anos, inverteu a distribuição da popuÌaçãoentre o campo e cidade, tornando o Brasil um dos países maisurbanizados do mundo, com aproximadamente 8O% de sua popula-

ção úvendo hoje nas cidades); e o alcance de seus meios de comuni-cação social (o rádio está em praticamente todos os lares brasiÌei-ros e a teleúsão, com produção e transmissão fortemente centrali-zadas, chega a mais de g0% deles), podemos dizer que as varieda-des que exercem, hoje, a maior força de atração sobre as demais sãoas faladas pelas popuìações tradicionalmente urbanas, situadas naescala de renda de média para alta e que, por isso, têm garantidopara si, historicamente, bons níveis de escolaridade (peio menos aeducação média completd e o acesso aos bens da cu-ltura escrita.

Adotando o modelo dos três continua, podemos caracterizarestas variedades como aquelas que se distribuem no entrecruzamen-to do pólo urbano (no eixo rural-urbano) com o póIo do letramento(no eixo oralidade-Ietramento). No eixo da monitoração estiÌística,essas variedades conhecem, como todas as demais, diferentes esti-los, desde os menos até os mais monitorados.

A maior força de atração dessas variedades (intimamente re-lacionadas com a vida e a cultura tradicionalmente urbana) e aobservação de seus efeitos levaram Dino Preti, um dos principaisestudiosos da variação lingüística do Brasil, a designá-las pelaexpressão lingaa.gem urbana cornum (ver Preti, lgg7).

AFINANDO CONCEIÌOS

Essas variedades são dominantes nos nossos meios d.e comu-nicação socialÌ7. Seus diferentes estiÌos (i.e., suas diferentes ma-nifestações no continuum da monitoração estilística) estão aímuito bem representados, desde os estilos menos monitorados(nas novelas, programas humorísticos e sitcoms, por exemplo),até os mais monitorados (em noticiários e programas de entrevis-tas como o emblemático Roda viva da TV cultura de são paulo).

Essa dominância lhes dá ampÌa audibilidade e ressonância.Nenhum outro conjunto de var iedades do país tem a mesmaaudibilidade e ressonância'8. Não é de estranhar, portanto, quesejam justamente elas a exercer um poder centrípeto permanen-te e irresistíveÌ.

Tlcazem para mais perto de si as variedades rurais e rurbanasfaladas pelas populações que, por força do intenso êxodo rural dasúltimas décadas, se tornaram urbanas só mais recentementels. Oconjunto destas variedades constitui o que alguns estudiosos costu-mam chamar de português popular brasileiro em contraste com umportuguês dito culto (cf. Mattos e Silva, 2}04al e Lucchesi, 1994).

Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana comum que caracte-riza boa parte das manifestações orais mais monitoradas dos fa-

r7 Pelas características socioeconômicas e sociolingüísticas da maioria dos professores daeducação básica, podemos afirmar que estas variedades, na intersecção com um grau(digamos assim) médio de Ìetramento e pelo menos em seus estiÌos medianamenremonitorados, são dominantes também no contexto escoÌar. Uma discussão ampÌa clessaquestão pode ser lida em Mattos e Silva, 2004b.18 como fruto das políticas homogeneizantes do Estado Novo getuÌista (tg3T-tg+5), nos,sos meios de comunicação sociaÌ - o rádio, primeiro, e, depois, a televisão - tenderamsempre a uma pasteurização da variedade Ìingúística, barrando a presençâ, no seu espár-ço, da maior parte das variedades do português faÌado no BrasiÌ. só mais recentemente éque se começou a fazer menção à necessidade de dar espaço e audibiÌidade aos diferentes(assim chamados) sotaques brasiÌeiros. Note-se, porérn, que por "sotaques" normaÌmentese entende, neste tipo de discurso, não toda e quaÌquer variedade, mas apenas as diferen-tes pronúncias regionais das variedades urbanas tradicionais, ou seja, d,a Ìinguagemurbana comum.rs Os efeitos centrípetos das variedades tradicionaÌmente urbanas estão ainrla por seranaìisados em detaÌhes. No entanto, eìes são já bastante perceptíveis nos estudos deBortoni-Ricardo (ver, por exempÌo, Bortoni-Ricardo. 2005).

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NORMA CULTA ERASILETRA: DESAÌANDO ALGUNS NóS I CoÍtos Atberro Fqoco

lantes que poderiâm ser classificados de "cultos". Em outros ter-, -o", a norma culta brasileira falada pouco se distingue d.os esti-, los mais monitorados dessa linguagem urbana comum, segundofica demonstrado pela análise dos dados coletados pelo projetoNURC (Norma Lingüística Urbana Culta) - (cf. pretti, 19gZ).

Essa constatação empírica causou surpresa em alguns estudio-sos dos dados do NURC. Imaginavam eles que os falantes cultos,nas situações de fala mais monitoradas, tinham uma varied.ade bemdistinta da linguagem urbana comum, ou seja, acreditavam eles que,na norma culta falada, os falantes seguiam estritamente, por exem-plo, os preceitos da tradição gramaticai normativa.

A realidade, porém, desconcertou o imaginário: a norma cul-ta brasileira falada se identifica, na maioria das vezes, com a lin-guagem urbana comum, ou seja, com a fala dos faÌantes que estãofora do grupo dos chamados (tecnicamente) de cultos (cf. preti,1gg7: 18)20 e não propriamente com as prescrições da tradição gra-matical mais conservadora2l.

Vale lembrâr, neste ponto, que o projeto NURC restringiu seucorpo de informantes a falantes que tinham escolaridade supe-rior completa, só estes eram considerados pertencentes ao grupodos "cultos", ou seja, dos usuários da "boa linguagem',.

Encontramos aqui um primeiro critério para identificar o fe-nômeno lingüístico â que se dá o nome de norma culta: ela seria a

, Preti (1997: 26) concìui seu texto com a seguinte observaçâo: "Em síntese, o que ocorpus do Projeto NURC/sP tem-nos mostrado (e isso já na década ae [rg]zo) é que osfaiantes cultos, por influência das transformações sociais contemporâneas a que aÌudi-mos antes (fundamentalmente, o processo de democratização da cultura urbana), o usolingüístico comunr (principaimente, a ação da norma empregada pela mídia), além deprobÌemas tipicamente interacionais, utiÌizam praticamente o mesmo discurso dos faÌan-tes urbanos comuns, de escoÌaridade média, até em gravações conscientes e, portanto. demenor espontanei dade".zr Isso não signifrca que os falantes ditos cuÌtos não usem estruturas preconizadas pelatradiçâo gramaticaÌ conservadora em sua faÌa monitorada. AÌgumas d.estas ocorrem nanorma culta falada, mas, pelo que os dados indicam, sempre variaveìmente com suasconespondentes não'autorizadas" (e até mesmo "condenadas',) pela tradiçâo gramaticalmais conservadora, que. no entanto, são normais na linguagem urbana comum (cf. adiscussão em Leite, 1997).

AFINANDO CONCEIÌOS

variedade de uso corrente entre falantes urbanos com escolarida-de superior completa, em situações monitoradas. Ou seja, a nor-ma culta seria, pelos critérios do NURC, a variedade que está naintersecção dos três continua em seus pontos mais próximos dourbano, do }etramento e dos estilos mais monitorados.

Nesse sentido, ela seria, no Brasil, a manifestação lingüísticade uma parcela ínfima da sociedade, considerando que aqui, noinício do século XXI, menos de 10% da população adulta tem es-colaridade superior. Desse modo, a norma cuÌta não estaria, en-tre nós, desvenciìhada de um certo matiz aristocrático: seria pro-priedade exclusiva da elite aÌtamente letrada.

No entanto, a força centrípeta da linguagem urbana comumquebra, em parte, esse vínculo: de um lado, porque é eÌa que bali-za, de fato, o falar culto brasiieiro (a norma culta falada pouco sedistingue dela); e, de outro, porque é hegemônica nos meios d.ecomunicação social22.

Em suma, é esta Ìinguagem urbana comum que baÌiza de fatoo falar culto (o que se poderia chamar tecnicamente d,e norma cul-ta faladd e, ao mesmo tempo, tem poderoso efeito homogeneì.zantesobre as variedades do chamado português popular brasileiro23.

As principais características sintáticas da linguagem urbanacomum do Brasil podem ser faciÌmente cataÌogadas: desde o sé-cuÌo XIX eÌas estão Ìistadas pelos comentadores gramaticais maisconservadores como "erros comuns" da fala brasiÌeira. Isto é, aspropriedades correntes (habituais, normais) na nossa Ìinguagem

22 Diante disso, frca a questão: tem sentido ainda insistirmos numa norma cuÌta faladacomo distinta da Ìinguagem urbana cÒmum em seus estilos mais monitorados?23 Apesar desse poder centrípeto que a linguagem urbana comum èxerce sobre as varie-

a- dades do português popular. não podemos deíxar de notar que taÌvez esteja se consoÌidan-

ì."lt d:: entre as gerações mais. novas da população urbana da chamada periferia das grandes

)t cidades, umâ certâ resistência a esse poder centrípeto. O rap (que tem ocupado espaçonos meios de comunicação sociaÌ) e as manifestações literárias como a de Ferró2, entreoutros, podem estar sinalizando uma crescente direção anti-homogeneizante. Só o estu-do empírico sistemático e o futuro potlerão escìarecer e confirmar (ou não) essa nossaimpressâo.

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INORMA CULÍA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NÓS . CoíosAlbertoFoíoco

urbana comum têm sido tradicionalmente classificadas não comopeculiaridades do português urbano brasileiro, mas como "erros".

rúrr ^rnro Interessante notar, nesse sentido, que os comentadores do sé-

,J{ cuìo XD( e início do )O( em gera1, não distinguiam propriedades do',

,pnt português brasileiro que poderíamos chamar de popular das proprie-

{ ; ",{ dades do português que estamos chamando de linguagem urbana

yeF*'.' comum das populações tradicionalmente urbanas e escolarizadas.

Em outras paÌavras (e aproveitãndo a formulação de Bortoni-

/r'' Ricardo,2005), esses comentadores não distinguiam os traços gra'

duais (comuns, em graus variáveis, a todas as variedades brasi-Ìeiras de'ele' como objeto direto, por exemplo) dos traços

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, .;,"f. descontínuos (característicos das variedades ditas populares -'''

.",Y,1 as pronúncías barde por balde ou teia por telh4, por exemplo).

"'*; \í

it".ì*' Como veremos adiante e, em mais detalhes, no capítulo 2, a

:rr'!í nossa elite letrada conservadora, em seu aÍã de parecer européiae "civilizada", recusou legitimidade tanto às variedades do portu-guês brasileiro popuÌar, quanto àquelas do português brasileiro

dito culto: tudo o que se afastasse da norma-padrão artificialmen-te construída era tachado de "erro", mesmo que normal (i.e., co-mum) na fala mais monitorada dos falantes cultos.

Ainda hoje, essa indistinção continua muito presente nas rea-

ções às críticas dos Ìingüistas à norma-padrão artificialmenteconstruída no século XIX. Nessas reações, o eixo básico da argu-

mentação continua sendo: ou a norma-padrão (artificiaÌ) ou o caos.

Embora aÌguns desses pretensos "erros" estejam já abonadospelos autores da norma gramatical contemporânea (em tazão deterem sido usados na escrita por autores consagrados), o imagi-

nário que transformou nossas peculiaridades Ìingüísticas em "er-

ros" é ainda forte nas discussões sobre língua no Brasil, como ve-remos em mais detalhes à frente.

Não podemos deixar de dar destaque, neste ponto, ao fato deque os chamados "erros" comuns permanecem inalterados na fala

50

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.r:, i.-:

AFINANDO CONCEITOS 5 l

culta brasileira apesar da repetida e insistente condenação de maisde um sécuÌo dos comentadores e manuais mais conservadores.

Há aqui, sem sombra de dúvida, um sério (e secular) equívoco yìde análise da realidade Ìingúística do nosso país: o que se chama ï ìXde "erros" comuns - por serem justamente "erros" de todos - rconstituem, na verdade, características defrnidoras do português ,brasileiro urbano comum. Por isso mesmo, não há sobre eles qual-quer efeito, seja da recorrente condenação conservadora, seja dainsistente ação "higienizadora" da escola. Milroy & MiÌroy (fggg)

desenvolvem, a propósito do inglês britânico, rica discussão so-bre as atitudes condenatórias em língua e seu pouco ou nenhumefeito sobre o comportamento dos falantes.

Essas considerações não encerram o tema da norma culta. Ou-tros aspectos precisam ser ainda apreciados - o que fazemos a seguir.

ffi atgumos dísfinções perfinenfes

Estamos usando no singuÌar as expressões norma culta e lin-gtagem urbana comum. É importante não perd.er de vista, porém,

que essas manifestações lingüísticas, embora tenham certa unidade,

não são uniformes: como qualquer realidade lingüística, eÌas com-portam variabilidade. Como bem demonstrou Celso Cunha (tggS:

36), "unidade lingüística não implica uniformidade normativa".

Essa variabil idade pode ser observad.a no mod.o como a nor- ' iÉ.;",

ma culta e a l inguagem urbana comum são realizadas em diferen-.;rÊ,Ì.?r.d.i

tes regiões do país ou, mesmo, entre diferentes gerações de falan- ,. .'i." ,tes. Assim, são comuns e cultas as pronúncias 'pasta'ou 'pashta'

(para a palavra pasta), 'dia'ou'djia'(para a palavra dia), 'awto'ou'aÌto' (para a palavra alto).

Igualmente o são (cf. Luft, 2006: 79 e 534) as regências assis'

tir o jogo e assistir ao jogo (assistir no sentido de ver), visar o

caïgo e visar ao cargo (visar no sentido de almejad; e as coloca-

ções (cf. Cunha e LindÌey Cintra, 2001: 314-377) Ele não nos vai

5352 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS r Corlos Alberto Foroco

dar um presente caïo / EIe não vai nos dar um pÍesente caro / Ele

não vai dar-nos um Presente caro'

Por outro lado, é também indispensável distinguir a norma

culta falada da norma cuÌta escrita. Isso porque há fenômenos que

ocorrem na fala cuita (pela sua grande proúmidade com a lingua-

gem urbana comum), mas não ocorrem na escrita culta ou chegam

mesmo a ser criticados quando nela aparecem. Em alguns casos,

somos ainda uma sociedade que, em situações altamente monitora-

das, usa uma variedade na fala e outra na escrita.

IJm exemplo simples dessa diferença são os pronomes pes-

soais oblíquos de terceira pessoa (o, a, os, as). Eles praticamen-

te desapareceram da norma culta falada no Brasil. No entanto,

ainda são bastante comuns na escrita culta (Nós já o analisa-

mos em outras ocasiões - em que o pronome o pode ter como

antecedente, por exemplo, a expressão nominal plena este fe'

nômeno socioeconômico).

Embora na fala culta a sintaxe preferida nesse caso seja a do

objeto nulo (a posição do objeto direto ftcavazía - Nós já analisa-

mos em outras ocasiões) ou a mera repetição do sintagma pleno

(Nas ia analisamos este fenômeno socioeconômico em outras oca'

siões), encontramos também os pronomes retos de terceira pes-

soa (Nós já analisamos ele em outras ocasiões)-

Há, porém, por mera ranhetice de certa tradição gramaticalza,

uma interdição sobre este uso do pronome reto na norma culta

escrita, embora taÌ uso ocorresse já no período arcaico da Ìíngua(cf. Silveira Bueno, 1955i 270-211) e, modernamente, alguns escri-

% Não posso deixar de comentar, neste ponto, um fato que muito diz das dificuldades que há

no nosso país para Ìidar com a reaÌidade da língua portuguesa urbana comum/culta que aqui

se fala e se escreve. A ranhetice a que me refiro é tão nefasta que resultou num ato de

censura de um texto que escrevi para a revista Discutindo Línglta portugaesa (São Paulo:Editora Escala Educacional). Era um texto sobre mudança lingúística. Citei o caso do eÌe naposição de objeto direto e afirmei que a restrição sobre seu uso normal na escrita decorria demera ranhetice de certa tradição grarnatical. O texto foi publicado, mas (conforme constatei,estupefato, ao ler a revista) esta afirmação foi censurada pelos editores/revisores!

tores consagrados, como clarice Lispector e Luís Fernando veríssi-mo, tenham lhe dado acolhida em seus textos25.

Outro exemplo curioso é a contração da preposição com o pro-nome sujeito ou com o determinante (artigo ou demonstrativo) deum sintagma nominal sujeito de uma oração subordinada reduzi-da de infinitivo. Na norma culta falada, essa contração é a cons-trução normal. Assim, dizemos:

O fato deles aceitarem propina não espantou ninguém.O motivo do juiz transferir o julgamento foi um pedido dopromotor.Apesar da chuva espantar aÌguns turistas, a festa foi um sucesso.

Muitos, porém, consideram inadequada sua ocorrência naescrita culta. Hâ até aqueles que chegam a afirmar que a contra-ção não segue a "norma da língua" - seja lá o que querem dizercom essa expressão26.

Não há, porém, para esse juízo prescritivo nenhum fundamen-to plausível, como bem argumenta Evanildo Bechara em sua Mo-derna gramática portuguesa (p. 567-8).

Apesar da cristalina argumentação de Bechara, sustentadaem exemplos de clássicos da língua, o texto do Acordo Ortográfi-co assinado em 1990 pelos países que têm como oficial a línguaportuguesa determina (em sua Base XVIII, item 2o, letra b) quenão se faça a contração na escrita. Quando taÌ Acordo começar avigorar, teremos, seguindo a argumentação de Bechara, empobre-cido os recursos estilísticos da iíngua por mera picuinha.

No entanto, é em tais picuinhas, como veremos adiante aodiscutir o que chamamos Ì?orm a cwta, que se susf,enf,a uma certa

25 Sobre isso há uma interessante discussâo, com farta exempÌificação, em Bagno 2001,cap. 4, e em Bagno 2003, cap. 3. Não esqueçamos da briÌhante anáIise que MattosoCâmara Júnior fez desse fenômeno em seu estudo "Ele como um acusativo no português

do Brasil", publicado originaÌmente em 1957.26 Esta obscura expressão consta do Manual de redação e estilo de O Estado de S. Paulo(p. 86).

AFINANDO CONCEITOS

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54 NORMÂ CULTA BRASILEIRA: DESAÍANDO ALGUNS NÔS r Corlos Alberto FoÍoco

disputa pelo poder simbólico de ditar o que constitui a língua ìe-

gítima no Brasi,leT.

Um exemplo um pouco mais complexo das diferenças entre a

norma cuÌta falada e a escrita são as chamadas orações relativas

cortadoras. Na fala culta brasileira, é comum (é normaD o não-uso

da preposição antecedendo o pronome relat ivo. Dizemos, por

exemplo, Este é o liwo que mais gostei e mais raramente Este é o

Iivro de que mais gostei. Para corfirmar isso, basta analisar as

falas em debates televisivos como os do programa Roda Viva (TY

CuÌtura de São Paulo), em que, de regra, entrevistado e entrevista-

dores são falantes brasileiros classificáveis no grupo dos chama-

dos cultos.

Tal sintaxe, porém, apesar de ser já encontrada com certa

freqüência em textos da grande imprensa (cf. Bagno 2001, cap. 3),

é ainda considerada inadequada na escrita culta.

Obviamente, esses dois fatos - a norma culta ser variáveÌ e

haver diferenças entre a faÌa culta e a escrita culta - são, de novo,

determinantes de flutuações, desbordamentos e mudanças. De um

lado, as fronteiras nunca são bem precisas e, de outro, inovações

na fala culta (sempre menos conservadora que a escrita) alcan-

çam inexoravelmente a escrita culta - mesmo que continuamen-

te condenadas por certos comentadores gramaticaiszs.

Um exemplo interessante dessas transposições da fala culta

para a escrita são os verbos originalmente pronominais - como

iniciar (A feira se inicia hojd, estragar (O leite se estragou), der'

ramar (O vinho se derramou), quebrar (O vaso se quebrou), esgo'

tar (A nova edição já se esgotou), deitar (Eles se deitam cedò etc.

27 Sobre o conceito de !íngua legítima, ver Bourdieu (1996).4 Nesse sentido, a nossa linguagem urbana comum - da qual, como vimos, a normâ

culta falada pouco se distingue - exerce sua força centrípeta também sobre a norma

cuÌta brasiìeira escrita. E as descrições do acervo de ìíngua escrita do Laboratório de

Estudos Leúcográfrcos da UNESP de Araraquara deixam isso muito claro (cf. Borba,

1990 e 2002; Neves, 2O00 e 2003).

Na fala culta moderna, esses verbos ocorrem mais freqüente-mente como não-pronominais. Dizemos, então, A feira inicia hoje/ O leite estragou / O vinho derramou / O vaso quebrou / A novaedição do liwo já esgotou / Eles deitam cedo etc.

E esse uso é hoje já bastante comum também na escritaculta, de tal modo que são poucos os falantes que notam essadiferença. Há, porém, aqueles que ainda condenam tal mudan-

ça (cf., por exemplo, o Manual de redação e esti lo de O Estadode S. Paulo, p. 148). No entanto, ela é tão difundida que já estádevidamente registrada nos grandes dicionários brasileiros con-temporâneos da língua. Segundo eÌes (cf. os verbetes nos dicio-nários Houaiss e Aurélio correspondentes aos verbos mencio-nados acima), a norma cuÌta brasileira usa estes verbos quercomo pronominais (s intaxe c láss ica) , quer como não-pronomi-nais (sintaxe moderna).

Diante desse registro, fica injustificada a condenação que aÌ-guns fazem desse fato (como o Manual citado). A menos, claro, queadmitamos que os nossos melhores dicionários não devem ser le-vados a sério. Mas, nesse caso, se nossos melhores dicionáriosnão servem de referência, fica a pergunta: quem serve? Ou, emoutros termos, quais podem ser, então, nossas referências?

:'ËJ o odjetivo 'ctrllo'em quesÍõo

Ainda um detaÌhe importante que não podemos perder de ús-ta é que a qualiÍicaçáo culta dada a determinada norma foi apenasparte de um processo mais geral. No desdobramento dos estudosiingüísticos, foi preciso qualificar o termo nornla, agregando a eÌediferentes adjetivos tais como rcgíonal, popular, rural, informal,juvenil, culta etc. Essa qualificação do termo decorreu da necessi-dade de se distinguir com mais precisão os diversos modos sociaisde falar e escrever a Ìíngua, buscando dar adequado acolhimento àheterogeneidade lingüística e à correlação das normas com seusdiferentes condicionantes sociais.

AFINANDO CONCEIIOS 55

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NORMA CULÍA SRASTLEIRA: OESAIANDO ATGUNS NOS r Cq'IOsAIbgtOFqOCO

Esse reconhecimento da diversidade contribuiu também para

refinaï a percepção a que já nos referimos antes, ou seja, a per-

cepção de que, do ponto de vista exclusivamente lingüístico, osdiferentes modos sociais de falar e escrever a língua se equiva-lem: cada grupo de faÌantes reattza a Ìíngua por normas diferen-tes, mas nenhum deixa de ter suas normas.

Outra percepção importante desse processo de qualifrcaçãodas normas foi a de que existe uma hierarquização sociaÌ delas.Isto é, embora não haja critérios Ìiigüísticos capazes de susten-tar uma diferenciação qualitativa das normas, esta diferenciaçãoocorre e é feita por determinados segmentos da sociedade toman-do por base valores sociocuÌturais e políticosze.

Há, na designação norma cuJta, rm emaranhado de pressupos-tos e atitudes nem sempre claramente discerníveis. O qualificativo"culta", por exempÌo, tomado em sentido absoluto, pode sugerir queesta norma se opõe a normas "incultas", que seriam faladas por gïu-pos desprovidos de cultura. TaÌ perspectiva está, muitas vezes, pre-sente no universo conceitual e axiológico dos faÌantes da norma cul-ta, como fica evidenciado pelos julgamentos que costumam fazer dosfalantes de outras normas, dizendo que estes "não sabem falar",ufa-lam mal", "faÌam erradd', "são incultos", "são ignorantes" etc.

Contudo, não há grupo humano sem cultura, como bem demons-tram os estudos antropológicos. Por isso, é preciso trabalhar criti-camente o sentido do qualificativo culta, apontando seu efetivo li-mite: ele diz respeito especificamente a uma certa dimensão da

i cultura, isto é, à cultura escrita. Assim, a expressão norma culta

I deve ser entendida como designando a norma lingüística pratica-

f da, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau

I maior de monitoramento), por aqueles gïupos sociais que têm esta-I do mais diretamente relacionados com a cultura escrita.

Por outro lado, é interessante lembrar que essa designaçãofoi criada pelos próprios falantes dessa norma, o que deixa trans-

2s uma densa discussão da complexa questão da hierarquização das normas, tendo ocontexto francês como pano de fundo, pode ser lida em Bourdieu (19g6).

AFÌNANDO CONCETTOS

parecer aspectos da escala axiológica com que interpretam o mun-

do. Seu posicionamento privilegiado nâ estrutura econômica esocial os leva a se representar como "mais cultos" (talvez porque,

historicamente, tenham se apropriado da cultura escrita como bem

exclusivo, transformando-a em efetivo instrumento de poder) e,por conseqüência, a considerar a suâ norma iingüística - mesmo

difusa em sua variabilidade de pronúncia, vocabulário e sintaxe

e, na fala, pouco distinta, no caso do Brasil, da linguagem urbana

comum - como a meÌhor em confronto com as muitas outras nor-

mas do espaço sociaÌ. Isso, como sabemos, é fonte de vários pré-

juízos e preconceitos lingüísticos que afetam o conjunto da socie-

dade, mas, em especiaÌ, os falantes de normas que são particular-

mente estigmatizadas pelos falantes da norma cuÌta.

É em razão de todos esses fatores que podemos afirmar ser a

questão da norma cuÌta certamente das mais complexas no campo

das investigações l ingüísticas, particularmente quando com ela

se mescla a questão da norma-padrão.

Foi talvez este fato que levou Haugen (1966/2001: I02) a dízer

que, "rÌa tentativa de esclarecer essas relações, a ciência lingüís'

tica tem tido um sucesso apenas modestd'.

De fato, quando nos embrenhamos em seu estudo, fica logo

evidente que não se trata apenas de recortar um conjunto deter-

minado de expressões da língua, como se o fenômeno sociocuÌtural

da norma culta se resumisse a um problema exclusivamente de

vocabulário e estruturas gramaticais.

O que encontramos nesta área é um complexo entrecruza-

mento de elementos léxico-gramaticais e outros tantos de natu-

reza axiológica que, enr seu conjunto, definem o fenômeno que

designamos tecnicamente de norma culta. E é esse conjunto que

tem de ser considerado se queremos desenvolver um entendimento

científico abrangente da complexidade desse fenômeno - enten-

dimento este que terá de ser, portanto, multidisciplinar e não

apenas lingüístico.

575ó

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I: !' t' ' i

#

5 958 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ATGUNS NOS r Corlos Alberlo FoÍoco

É preciso lernbrar, por exemplo, que a norma culta está vin-

culada estreitamente ao espectro de práticas socioculturais que

constituem o que se pode chamar de cultura letrada em sentido

amplo, isto é, as práticas culturais que envolvem não apenas ati-

vidades de leitura e escrita como tais, mas toda e qualquer ativi-

dade (mesmo que, em si, se dê apenas oralmente) que tem o pro-

"""ss histórico do escrever como pano de fundo.

Em outras palavras, a cultura Ìetrada é, como têm procurado

demonstrar os estudos sobre letrarãento (cf., entre outros, Soares1998), maior do que apenas ler e escrever. Do mesmo modo, a nor-ma culta é mais que apenas um rol de elementos léxico-gramati-cais. Ela combina práticas culturais, valores sociais e elementospropriarnente lingüísticos.

O domínio da cultura letrada está ensopado de uma densateia de valores que produz e mobiliza uma vasta gama de modosde ser, de agir, de pensar e, eúdentemente, de dizer - seja nosentido de gêneros discursivos (cf. Bakhtin, 1952t1992): seja nosentido do prestígio que se dá a certas formas léúco-gramaticais.Essa densa teia de valores participa do processo de constituiçãoe funcionamento do universo do imaginário social que recobre osfenômenos lingüísticos.

Por outro lado, o domínio da cultura letrada e seus valoresestão articulados a todo um arcabouço institucional (ele mesmo,aliás, em boa medida, fruto da cultura letrada) correlacionado como processo fls discriminação dos eÌementos propriamente lexicaise gramaticais id.entificados como cultos: interesses do Estado eseus âparelhos (como a escola, por exempÌo), instrumentos decodificação (formuiários ortográficos, gramáticas, dicionários) eagências de comunicação social.

Dadas essas considerações, pode parecer que o probÌema estásuficientemente escÌarecido. No entanto, as questões nessa áreada norma culta são mais complicadas do que parecem. Há muitosnós que precisam ser desatados para podermos avançar na com-preensão desse fenômeno.

AFINANDO CONCEÍÌOS

ffi Afrnoí, quem é um folonte "culto"?

O primeiro deles _- e não certamente o menor - é saber quem

são os letrados na sociedade brasileira, ou seja, qual ou quais gru-pos sociais servem de referência para delimitarmos objetivamen-

te os fenômenos que constituem a norma culta brasileira.

Como vimos anteriormente, o projeto NTIRC restringiu a clas-

sificação de "cultos" (de mais letrados) aos falantes com educação

superior completa.

No entanto, numa sociedade que distribua de maneira mais

equânime os bens educacionais e cuÌturais, é mais adequado con-

siderar letrados todos os que concÌuem pelo menos o ensino mé-

dio. Este é um critério que se constituiu historicamente nas socie-

dades industriais modernas nos últimos duzentos anos3o.

Dois fatores principais participaram da construção desse critério:

a) as exigências trazidas pela economia que se desenvolveu

a partir da Revolução IndustriaÌ;

b) as pressões ideológicas do conceito de cidadania que se

cr iou no século XVII I , em especia l com o pensamento

iluminista e com as mudanças sociais, polít icas e cultu-

rais trazidas pela Revolução Francesa.

Quanto ao fator econômico, é importante Ìembrar que a econo-

mia industrial - diferentemente da economia agrária tradicional- começou a exigir um nível básico de qualificação das pessoas en-

volvidas no processo industrial. E esse nível foi se alterando à medi-

da que os processos de produção foran se tornando mais complexos.

Se no início bastava ser alfabetizado, logo a indústria come-

çou a exigir um mínimo de quatro anos de escoÌaridade. Assim é

'r0 Neste ponto, vaÌe trazer à baiÌa dados estatísticos apontados peÌo IBGE (cf. o site

www.ibge.gov.br, consuitado em20lO9l20O7). Enquanto nos países da OCDE (Organiza-

ção para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mais de 60% da população entre

25 e 64 ânos tem peÌo menos o ensino médio completo, no BrasiÌ apenas 28% deste

segmento da popuÌação o tem.

6 ló0 NORMA CULÍA BRASITEIRA; DESATANDO ALGUNS NOS r CqÍlos AlbeÍto Fq@o

que - nos fi.ns do século XIX - vemos a França, a Inglaterra e

alguns outros países europeus universalizando a educação pri-

mária de quatro anos.

Cinqüenta anos depois, terminada a Segunda Guerra Mun-

dial, a demanda nesses países era já por onze anos de escolarida-

de e vamos ver a educação média se universaÌizando na Europa,

nos Estados Unidos e no Japão já no início da década de 1950.

Hoje, passados outros cinqüenta anos, discute-se nesses mesmos

países a universalízação de uma educação superior básica de qua-

tro anos para todos os jovens entre 18 e 22 anos-

O segundo f,ator que mencionamos, ou seja, as pressões ideo-

lógicas do conceito moderno de cidadania, tem a ver com o fato de

que os membros de uma sociedade deixaram de ser entendidos

como súditos de um rei e passaram a ser entendidos como cida-

dãos com igualdade poÌítica e jurídica.

Nesse novo contexto ideoÌógico, acredita-se que, para esta

cidadania se estabelecer efetivamente, é preciso cumprir várias

exigências, entre as quais a garantia de educação básica comum a

todos os cidadãos. É consenso hoje que a educação básica comum

inclui pelo menos o ensino médio e, portanto, deve cobrir um pe-

ríodo mínimo de 11 a 12 anos de escolaridade. Daí dizermos que,

em tese, é mais adequado considerar letrado todo aquele que com-

pletou o ensino médio, que teve acesso à educação básica comum

a todos os cidadãos - uma educação que possa garantir a todos,

entre outros aspectos, uma imersão na cultura letrada e, em con-

seqúência, o domínio da variedade da Ìíngua a ela atrelada.

O acesso a essa variedade seria então, em princípio, um fator de

inclusão na cidadania já que correÌacionada com a democratização da

cuÌtura escrita e @m o exercício da faÌa nos grandes espaços públicos.

No Brasil, porém, esse ideal está ainda longe de ser alcançado.

Nós maÌ conseguimos universalízar a educação primária de quatro

anos. Estamos ainda distantes de garantir oito anos de escolarida-de para todos. E o ensino médio é ainda quase uma raridade.

AFINANDO CONCEÍÍO5

Os dados oficiais (cf. Lima, 2004: 93) indicam que, nesta déca-

da de 2000, dos 10 milhões de jovens brasileiros entre 15 e 17

anos, a metade está fora da escola. Um milhão destes jovens está

ainda na escola fundamentaÌ. Estão, portanto, com sua escolari-

dade atrasada. E os demais aÌunos do atual ensino médio têm 18

anos ou mais, ou seja, estão também com sua escolaridade atrasa-

da. Nesse quesito, estamos, portanto, cinqüenta anos atrás das

sociedades industriais avançadas31.

Se a maioria da atual população adulta brasileira não chegou

a completar o ensino médio, a maioria dos nossos jovens não tem

ainda acesso garantido a esse nível de ensino. Ou seja, os bens

educacionais e culturais estão muito mal distribuídos na nossa

sociedade. {Jma das conseqüências disso é que só uma minoria

tem acesso efetivo à cultura letrada. o que incÌui o estudo da cha-

mada norma culta.

Esta, embora em boa parte identificada, na fala, com a Ìin-

guagem urbana comum em seus usos mais monitorados, continua

sendo, no Brasil, em especial na escrita, um fenômeno restrito: é

ainda um bem culturaÌ de poucos.

Por isso também é que ela pode ainda funcionar entre nós como

um fator de discriminação sociaÌ, cultural e econômica. No fundo,

ela não perdeu ainda entre nós seu defeito de origem - ou seja,

continua recoberta por uma aura elitista que se materializa na nor-

ma curta, ou seja, na insistência em se interditar a ocorrência na

escrita de fenômenos normais na fala culta. São picuinhas gramati-

cais, mas ainda funcionam com certa força no jogo simbólico que,

pela desquaÌif icação Ìingüística, discrimina e exclui. Por isso, é

importante sempre abordar essa questão numa perspectiva social

e histórica e não apenas lingüística.

3r o censo Escolar de 2005 (segundo os dados pubÌicados peÌo INEP - Instituto NacionaÌ

de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira em seu siúe www.inep.sovbr -

consuitado em2Ol09l20O7) mostra que esta situação mudou pouco em cinco anosAescoÌa

média tem hoje 9 milhões de aÌunos matricuÌados, sendo 4,6 milhões de jovens entre 15

e 17 anos. Os demais 4,4 mi lhões têm 18 anos ou mais.

NORMA CULÌ.A BRASILEIRA: DESAÍANDO ÀLGUNS NOS r Corlos Âlberlo Foroco

Desde que temos registro desse fenômeno de prestígio e cul-

tivo de determinada variedade da língua na cultura ocidental, ele

tem uma clara marca eÌitista, aristocrática.

A idéia de uma variedade cuÌtivada da língua resultou sempre

do esforço das elites para criar símbolos que pudessem distingui-Ias

das camadas populares - ou seja, como se diz de modo bastante

depreciativo, as eÌites sempre se esforçaram para criar símbolos que

pudessem distingui-las da "plebe rude", do "vulgo", do "populacho".

Assim, os patrícios romanos I e todas as elites que vieram

depois deles - marcavam sua "nobreza" por meio do vestuário, da

arquitetura e decoração de suas casas, por meio de hábitos aÌimen-

tares e de lazer e também por meio do modo como falavam a língua.

Nesse processo, agregava-se a certa variedade da língua va-

lores simbólicos poderosos. Ela se tornava símbolo de pertenci-

mento a uma classe sociaÌ, embÌema de nobreza, fator de discri-

minação e exclusão.

Na hisúria moderna, a chamada sociedade de corte (ou seja, o

modo como a nobreza se organizou ao redor da corte reaÌ, no cha-

mado antigo regime, em especiaÌ na França de Lús XfV) foi exímia

nesse ptocesso, conforme se pode ler no estudo que Norbert Elias

fez dela. Suas práticas de valoração de suas próprias formas de

falar e escrever (ao lado de outros tantos processos simbólicos) serve

de contraponto ao que veio a ocorrer na sociedade que a sucedeu.

As transformações econômicas, sociais, poÌít icas e culturais

dos últimos 200 anos afetaram profundamente esse perfil elitista,

tradicionalmente agregado a certa variedade da língua.

CÌaro, os diferentes modos de falar e escrever não deixaram

de ser embÌemas de classe, já que a sociedade continuou assim

dividida. No entanto, a sociedade contemporânea foi historicamen-

te levada a atribuir outras funções a uma variedade relativamen-

te cuÌtivada da língua3z.

32 Para uma interessante anáIise de aspectos desse complexo processo em relação aoinglês britânico, cf. WiÌliams (1961).

AFNANDO CONCEIÌOS

Como bem sabemos, a sociedade industrial moderna trouxeconsigo uma série grande de efeitos, redesenhando a face do mun-do contemporâneo: provocou uma intensa urbanização da popula-

çãoi teve de expandir o sistema educacional para quali-fi.car os en-volvidos direta ou indiretamente nos processos industriais (o que

acabou por trazer como resultado, nas sociedades mais avança-das, a necessidade de garantir a todos uma educação básica depeÌo menos 11 anos)i deu relativa amplitude, em termos políticos,

ao conceito moderno de cidadania. Por fim, o desenvolvimentotecnológico redundou na criação, na sociedade industriaÌ moder-na, de sistemas de comunicação sociaÌ de massa tais como os queconhecemos hoje.

A conjunção de todos esses fatores alterou profundamente asrelações econômicas, sociais e culturais. Alteradas essas condi-

ções objetivas do funcionamento da sociedade, alteraram-se tam-bém as condições objetivas do funcionamento social da língua. Aurbanização intensa, a expansão do sistema educacional, a formu-lação e difusão política do conceito moderno de cidadania e o de-senvolvimento dos sistemas de comunicação social de massa de-ram hegemonia e ampla difusão social a certas variedades da lín-gua, em particular às variedades tradicionalmente urbanas, quepassaram a exercer poderosa força centrípeta sobre as demaisvariedades. Não se trata mais de uma variedade de poucos e parapoucos. Não se trata mais do exercício de um obsoleto beletrismonuma rarefeita "república das letras". Não se trata mais de umemblema discriminatório de "nobreza".

A sociedade contemporânea, em toda a sua complexid.ade, ao fcriar as condições que permitem amplificar a presença social d*'l;fcertas variedades da língua, as f.az funcionar, pragmaticamente, Icomo um e_letne,4tg de relativa aSregaeiro :9911. Essas variedades lpassam a se sobrepor aos Ìimites da comunicação caseira, da comu-nicação restrita ao imediato, ao ÌocaÌ, ao regionali respondem aosdesafios postos pela urbanízaçáo intensa, pela complexificação dasrelações sociais e pela massifrcação dos meios de comunicação.

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6 561 NORMA CULÍA SRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS r CoíosÂlbertoForoco

ffi wormo cvlto: aíndo foz sentido usor esfo expressõo?

Nessa nova conjuntura histórica, a idéia de uma norma cuÌta(ou, melhor dizendo, de uma norma comum,/súandard)33 perdeu sua

aura aristocrática e adquiriu funções de amplo alcance social numa so-

ciedade urbanizada, massificada e, claro, alfabetizada, isto é, uma

sociedade em que todos os cidadãos têm, em princípio, acesso a

uma educação básica de qualidade e aos bens da cultura escrita.

No Brasil, contudo, nossa hi-stória de contradições, nossas

heranças coloniais ainda embaraçam a democratização da norma

culta/comuml standard, em especiaÌ da norma escrita. Estamos

longe de torná-Ia um fenômeno de amplo uso social. Primeiro,porque ainda não universalizamos a educação básica de 1l anos.

Segundo, porque a educação lingüística que oferecemos a nossosestudantes é ainda de baixíssima qualidade. E, por frm, não con-seguimos ainda aceitar com clareza a nossa norma culta./comum/standard efetiva e nos aproveitamos, no jogo dos poderes simbóIi-cos, da tradição que se consolidou na norma curta.

Estamos há mais de um século perdidos em grande confusãoquanto ao reconhecimento das nossas características lingüísticas.

33 Por tudo o que a6rmamos no texto, talvez melhor faríarnos se abandonássemos a

denoninação norma culta. De um lado, nos livraríamos de sua carga de injustifrcável

elitismo. Por outro lado, estaríamos nos aproimando de uma análise mais precisa da

realidade lingüística brasiÌeira, na medida em que não há, pelo menos no plano da fa1a,

diferenças substanciais entre o que se poderia chamar de norma culta e a linguagemurbana comum. Por tudo isso, ganharíamos se adotássemos uma designação como nor-ma comum oü. norma standard, qualifìcações que parecem carregar menos impregna-

ções axiológicas do que o adjetivo cuJúa. A questão terminoÌógica continua, porém, a nosdesafiar: como encontrar quaÌificações de baixo teor vaÌorativo e que façam justiça ànossa realidade Ìingúística? Bagno (200;3: 63ss.) propôe que se use variedades pres'

tigiadas Gm vez de norma culta) e variedades estigmatizadas (em vez de norma popu'

lar). Claro, ao apontarmos a estigmatização, podemos contribuir para superá-la critica-mente. No entanto, podemos também favorecer uma suâ naturalização, o que, obvia-Ìnente, correria contra nosso esforço crítico. O mesmo poderia ocorrer com a idéia deprestígio, se não ficasse bem evidente que eÌe é efeito da dinâmica sócio-hìstórica e nãoum fator intrínseco (''naturaì") àqueias variedades. Como contribúção à busca da me-Ihor terminologia, usaremos no texto os três adjetivos em seqüência alternativa: normaculta,/comum/ s t andard.

AFINANOO CONCEITOS

Ainda nos atrapalha enormemente o espírito aristocrático que,no século XIX, quis nos impingir certa norma lusitana como nossanorma-padrão e tachou de "incorretos" muitos dos nossos usoscuÌtos normais. E, mais grave: não conseguimos ainda assimilarconceitualmente os efeitos das mudanças que têm alterado pro-fundamente a cara da nossa sociedade, em especial suas reper-cussões sobre nossa reaÌidade lingüística.

Por isso, nos digladiamos há mais de um século a propósitodas mesmas picuinhas gramaticais (e de outras tantas que, detempos em tempos, os cultores da norma curúa inventam). Fazmais de um século que perdemos nosso tempo e nossas energiascom questões equivocadas e altamente irrelevantes em matériade língua3a. Ainda circula com certa força entre nós um discursoexcessivamente purista (ou pseudopurista) sobre âs questões lin-güísticas, como se fôssemos uma sociedade colonial agrária comuma minúscula "república das letras", uma minoria inexpressivapara quem fazia sentido o jogo de salão de apontar "erros deportuguês" em seus pares35.

,ffi u- coso exemproÍ

Os exemplos desse modo de se relacionar com a língua são

muitos. SeÌecionamos aqui o mais recente deÌes. Tüdo começou

com a faÌa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no en-

cerramento do 3 ' congresso do seu par t ido (día 23l l l l07) em

Brasília. Disse ele que o Brasil quer dirigentes que falem bem aìíngua, que sejam meÌhor educados e que não desprezem a educa-

ção, a começar pela própria. Indiretamente, como todos bem en-

tenderam, FHC lançava farpas contra o presidente Lula.

3a Obviamente, é preciso dizer que, se essas questões permanecem vivas, é porque tômsua função nos jogos de poder simbóÌico e é por esse úés que precisam ser adequadamen-te criticadas.35 Celso Cunha, nosso grande fiIólogo e importante gramático, já chamava nossa atençãopara "a freqüente confusão entre norma culta e norma purista, e sobre a inconveniênciada última num país como o Brasil" (1985: 85).

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t^p

NÈ4rDr

6 766 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESAÌANDO ALGUNS NÓ5 . CoíÍos Atberto Fqoco

As reações não se {tzeram esperar. Críticos e a mídia saíram

em campo tentando desqualificar a fala de FHC apontando nela

um suposto "erro" de gramática no uso da expressão "melhor edu-

cados". Aparentemente, o feitiço virava contra o feiticeiro: fala

mal da língua dos outros, mas comete um "erro" de gramática...

O caso é banal, mas riquíssimo pelo que revela do modo como

se concebe a língua entre nós e do modo como ela é transformada

em argumento nos debates.

Apesar de todo o episódio sugerir que o que está em foco é umaquestão lingi.iústica, não nos deixemos iludir: ela é fi.rndamentalmen-

te uma questão política. E é nesse pÌano que deveria ser debatida.

Ao dizer "meìhor educados" em vez de "mais bem-educados", tería

FHC cometido urn "erro" de gramática, "tropeçado'' no idioma, "escor-

regado" no poúuguês formal como a-firmaram a mídia e seus cútios?

A resposta é não: FHC não cometeu um "erro" de gramática, não

"tropeçou" no idioma nem "escorregou" no português formal. Para

deixar isso claro, basta uma consulta aos nossos melhores e mais

confiáveis instrumentos normativos. Em todos eles, encontramos

abonação para a estrutura "melhor educados", como veremos mais

adiante. Não é, portanto, pela gramática que FHC merece ser criti-

cado, mas por outras questões embutidas nas suas afirmações.

Se nosso meÌhores e mais confráveis instrumentos normativos

abonam a construção "meÌhor educados", por que, então, a mídia

e os críticos insistiram em tachá-la de "erro"? E por que persisti-

ram insistindo mesmo quando foi demonstrado o contrário?

Fizeram isso porque tomam como referência uma das nossas

maiores fraudes históricas. Falam eles em nome da chamada "nor-

ma culta", mas, de fato, estão se baseando no que poderíamos me-Ihor designar peÌa expressão norma curta - uma concepção queapequena a língua, que encurta sua riqueza, que não percebe (por

conveniência ou ignorância?) que o uso culto tem abundância deformas a-lternativas e não se reduz a preceitos estreitos e rísidos.

AFINANDO CONCEÍÍO5

Infelizmente, é a norma curta que tem sido usada, no Brasil,para balizar os juízos sobre os fatos da língua portuguesa commuito mais força do que os bons instrumentos normativos funda-dos em sóIida pesquisa filológica e lingüística.

Só isso merece uma reflexão cuidadosa: por que, afinal, ,ro".. Icultura se apega tanto à norma curta (à mediocridade gramaticaD Ie raramente dá a devida atenção e espaço aos bons instrumentos )

r,f

no mativos? Por que o dizer dogmático tem, entre nós, mais força fque a criteriosa e sóIida investigação frIológica e lingüística? I

Ainda hoje, apesar do que apresentam em contrário os nos-sos bons instrumentos normativos, é a norma curta que prevale-ce no discurso da escola, do senso comum e, principaÌmente, damídia. E isso certamente porque ela tem lá sua utilidade nos nos- Isos jogos de poder: afrnal é dela que se servem os que, em aÌgum Imomento, desejam desqualificar os outros. )

Alguém disse que, no nosso país, toda polêmica termina nagramática. Isso quer dizer que, à falta de argumentos para sus-tentar o debate, nosso costume é apelar para o trambique retórico,ou seja, tentar desquaÌificar o oponente apontando-lhe "erros" deportuguês. Em outros termos, quando nos faltam argumentos,nosso último recurso é xingar o adversário de ignorante, "poisnem a língua sabe falar bem".

Assim, quando FHC, no congresso de seu partido, disse que opaís quer dirigentes que saibam falar bem a Ìíngua e que sejammelhor educados, não manifestou um juízo apenas indir,{duaÌ con-tra seus adversários. O que ele fez foi lançar mão do veÌho trambiqueretórico, reproduzindo um gesto que historicamente tem sido par-te inerente da nossa maneira de debater. E esse trambique quedeve ser criticado. É preciso desvelar o que eÌe de fato significa.

Obviamente, não é à toa que se apeÌa a esse trambique. Ele érecorrente nos jogos argumentativos porque tem o efeito deseja-do de desquaiificação do oponent". É, pata ficarmos no vocabulá-rio da retórica, um lugar-comum - uma crenÇa disseminada no

v

d,ni

6 9ó 8

I

NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NÓS . Cqdos Alberto Foroco

senso comum dos escolarizados de que é importante falar bem a

Iíngua (embora - reconheçamos - nunca fique muito cÌaro o que

se quer dizer com "falar bem a língua"). Assim, por esse viés, quem

faia maÌ a língua (seja tá o que isso quer dizer) é um desqualificado.

Podemos, então, perguntar por que, na sessão de encerramen-

to do congresso do PSDB, seu líder de maior expressão teve jus-

tamente de desancar os oponentes pelo fato de supostamente fa-

larem mal o português?

Parece não ser difícil responder: o apelo ao veÌho trambique

retórico desnuda o fato de que os dois partidos que mais se digladiam

na arena política nacionaÌ não têm propostas políticas efetivamen-

te alternativas. Face a isso, só resta mesmo desqualifïcar os opo-

nentes. Ou seja: se não há diferenças substanciais de progïama e

prática política, o que sobra além de desqualificar os oponentes

dizendo que nem a língua eles falam bem?

As reações à fala de FHC atacaram não a falta de idéias e

projetos políticos alternativos, mas o que consideraram ser uma

indelicadeza, rlrn preconceito, uma expressão de soberba e de des-

peito do ex-presidente. E, g1ória das glórias, puderam apontar

uma suposta *derrapada" lingüística (ou, como preferem algunsjornalistas, um "erro" de gramática, uma "escorregada" no portu-

guês formal) no próprio enunciado de FHC.

E, nesse tipo de jogo argumentativo, nada melhor do que poder

rebater a desancada, desancando. Ou seja, nada melhor do que achar,

no próprio enunciado de quem critica a língua do outro, um "erro" de

português. E isso nunca será dificil, já que ninguém fala e escreve de

acordo com a norma curta. EÌa é uma enorme fraude histórica, mas

utilíssima para preservar a cara de quem nada tem a üzet

Em suma, quando a língua é trazída para a cena argumentativa,

estejamos certos de que é outra coisa que está efetivamente em pauta.

Para encerrar, visitemos alguns dos nossos bons instrumen-

tos no rma t i vos a p ropós i t o da cons t rução "pessoas me lho r

educadas":

AflNANDO CONCEITOS

T

Celso Cunha e Lindley Cintra, nâ sua Nova gramática doportuguês contemporâneo (p. 550), dizem que, diante de

adjetivos-particípios, usamos preferencialmente "mais

bem". Note-se que se trata de um uso preferencial e não

obrigatório. Portanto, podemos, sem nenhum problema,

considerar as construções "mais bem educados" e "melhor

educados" como formas cultas aÌternativasi

o mesmo díz o Dicionário Aurélio (consuÌtar o verbete me-

lhor): mesmo citando exemplos de Machado de Assis, Ale-

xandre Herculano e Aquilino Ribeiro (que usaram, diante

de adjetivos-particípios, "melhor" e não "mais bem" - FHC

está, então, em boa companhia...), diz que, neste contexto,

prefere-se "mais bem". De novo, não se trata de obrigatorie-

dade, mas de preferência de usoi

o Dicionário Houaiss apresenta a questão de modo um pou-

co diferente (consultar o verbete bem). Depois de dizer que

"em lugar de mais bem, nas comparações, usa-se melhor(saiu-se b. na prova escúta e melhor na oraD", diz que, "di-

ante de um particípio, é vernáculo empregar mais bem (uma

parede mais b. pintada que outrai um embrulho mais b. fei-

to que outro)". Ou seja: lembra que "meÌhor" substitui "mais

bem" nas comparações, mas, para evitar que se tome "mais

bem" sempre como impróp r i o , chama a a tenção do

consulente para o fato de que seu uso é perfeitamente ade-

quado ("é vernáculo") quando diante de um particípioi

o filólogo Cândido Jucá (filho), em seu Dicionário escolar

das difrculdades da língua portuguesa", ü2, \o verbete bem,

que este advérbio participa de locuções adjetivas (bem acom'

panhado, bem feito) e que faz, nestes casos, o comparativo

regularmente (isto é, mais bem acompanhado, mais bem

feitò e conclui afirmando, respaÌdado ponum exemplo de

Camilo Castelo Branco, que se pode também usar "melhor".

De novo, as construções são registradas como alternativasi

o gramático Rocha Lima, em sua Gramática normatìva da

Língua portuguesa (p. 347), diz o mesmol "Em vez de me-

lhor e pior empregam-se os comparativos mais bem e mais

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i L' , i

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I

NORMA CUL1A BRASILEIRA: DESAÍANDO ALGUNS NÔ5 r cõlo5AlberloForoco

mal ^rrtes de adjetivos-particípios: lTabaIhos mais bem cut-

dados. Planos mais mal urdidos. Mas diz-se também:. Obra

melhor talhada. Coisas mal ouuidas e pior entenüdas"|

I por frm, o Guia de usos do português, orgarizado pela lin-

gursta Maria Helena de Moura Neves, nos informa (no ver-

bete melhor) que tradicionaÌmente se recomenda que, antes

de particípio, se use a forma analítica mais bem e não me-

thor (note bem: é uma recomendação, não uma determina-

ção). Contud,o, os dados analisados por ela no interior do vasto

acervo d.o Centro de Estudos Lexicográfrcos da UNESP de

Araraquara mostram que são usuais, nos diversos tipos tex-

tuais, construções com melhor em vez de mais bem'

Acreditamos que essas seis referências são sufrcientes para di-

rimir qualquer dúüda: ambas as expressões - melhot educados e

mais bem-educados - são adequadas na norma culta brasileira reaÌ-

Não custa lembrar que melhor, neste câso, é advérbio e' por

isso, é sempre invariável (flexioná-lo seria, sim, uma irnproprie-

dade gramaticai)'

Por fim, não custa também comentar a questão do hífen' Al-

guns disseram que não se poderia dizer "melhor educados" por-

[rru u palawa bem-educado se escreve com hífen' Ora há, neste

comentário, d.ois problemas. Primeiro, uma clara confusão entre

língua falada e língua escrita. O hífen é apenas uma convenção

l*"i," mal regulada, aliás, pelo nosso Vocabulário ortográfico)

da forma de grafar as palavras- Nada tem a ver com a fonologia e

a sintaxe da língua falada'

Por outro lado, a questão gráfica neste caso é controversa.

Como falta às regras de uso do hífen um mínimo de racionalidade,

há quem defenda as duas possibilidades gráficas -'(fosrn-.6t.t-

do" e "bem educad.o". No primeilo caso, a expressão significaria,,cortês, polido"i no segundo, "qu€ recebeu boa educação escolar"'

Os nossos dicionários, porém, registram "bem-educado" com

os dois sentidos. Assim, penso que ficamos bem respaldados se

não quisermos entrar nesta controvérsia algo metafísica'

AFNANDO CONCEITOS

gil Hó soídos?

Uma das conseqüências dessa situação toda é que não consegui-

mos ainda criar uma educação de qualidade na área da ìinguagem

verbaì, nem sequer desenvolver uma cultura positiva diante de nos-

sas questões de língua, como detalharemos nos capítulos seguintes.

Para aÌterar substancialmente esse quadro, precisamos al-

cançar pelo menos três metas:

1" - universalizar a educação básica, isto é, garantir de 11 a

12 anos de escoÌa a todas as nossas crianças e adoÌes-

centesila - sfsvsçer a todos uma educação de qualidade, o que sig-

nifica, na área da linguagem, garantir, entre outras coi-

sas, que os alunos saiam da escoÌa básica com um bom

domínio das práticas sociais de leitura e escritai

3a- redesenhar nossa maneira de encarar nossa realidade

Iingüística, em especial, nosso modo de entender a nor-

ma culta/comum/súandatd falada e escrita'

Nossa intenção, com essas considerações, é deixar claro que

o problema da norma culta - de que tanto se fala hoje no discurso

d.a escola e da mídia - não se resolve em si. Não se resolve pela

insistência em "corrigir" pontualmente os "erros de português"' A

norma culta.icomuml standard, na função moderna que Ìhe atribui

a sociedade urbanizada, massificada e alfabetizada, está direta-

mente correlacionada com a escolarização, com o letramento, com

a superação do analfabetismo funcional.

Nosso probÌema lingüístico nâo é a regência desse ou daque-

Ie verboi não é esta ou aqueÌa concordância verbali não são as re'

gras de colocação dos pronomes oblíquos' não é a (maD chamada

mistura de pronomes.

Nosso problema são 5 milhões de jovens entre 15 e 17 anos

que estão fora d.a escola. Nosso probÌema são os elevados índices

de evasão escoÌar. Nosso probÌema é termos ainda algo em torno

7 170

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7372 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESAÍANDO ALGUNS NÓS I CorlosAlberto Foroco

de 72% de analfabetos na população adulta. Nosso problema é o

tamanho do analfabetismo funcional, isto é, a quantidade daque-

les que, embora freqüentem ou tenham freqüentado a escola, não

conseguem ler e entender um texto medianamente complexo.

Os estudos sugerem que apenas 25o/o da população adulta bra-

sileira, perto de 30 milhões de pessoas, alcançam esse nível de

Ìetramento, isto é, conseguem ler e entender um texto mediana-

mente complexos6

Seria, em princípio, o uso normal desses falantes que consti-tuiria, no BrasiÌ, a referência para a descrição da norma culta/

comum/súandard. Foi na produção escrita, de 1950 para cá, desse

segmento da população que o projeto de pesquisa da norma escri-

ta do Laboratório de Estudos Lexicográficos da Faculdade de Ci-

ências e Letras da UNESP, Campus de Araraquara, foi buscar seus

80 milhões de ocorrências.

Esse corpus extenso e representativo nos dá balizas impor-

tantes para explicitarmos, sem a arbitrariedade dos que teimam

em se nomear legisÌadores da língua, as características da nossa

norma culta/comuml standard escrita. Só assim podemos dar fun-

damento seglrïo ao projeto de democratizar seu uso.

No entanto, para isso não bastam esses estudos baseados em

corpus do uso lingüístico efetivo se, ao mesmo tempo, não enfren-

tarmos os probÌemas socioeducacionais a que vimos nos referin-

do. A democratizaçáo da norma culta/comurnl standard escrita seráapenas conseqüência da superação desses problemas.

36 Estamos utiÌizando aqui os dados do INAF - Indicador deAlfabetismo Funcional, que é

uma pesquisa realizada periodicamente pelo Instituto PauÌo Montenegro, vincuÌado ao

IBOPE. Na sua edição de 2005 (dacÌos obtidos em www.ipm.org.br em2oll9l200l), o INAF

constatou que, erÌtre os alfabetizados brasiÌeiros com mais de 15 anos, apenas 260/o sãoplenamente alfabetizados, perto de 30 milhões de pessoas. Este é, segundo o INAF, ocontingente popuÌacionaÌ que tem a leitura como atividade corriqueira e consegue Ìercompreensivamente textos Ìongos e consegue fazer reÌações entre os textos que Ìê. Nãosabemos quantos desses alfabetizados funcionais efetivamente escrevem com desenvoÌ-tura. O INAF verfica apenas a capacìdade de Ìeitura.

AFINANDO CONCBTOS

Nonmn cuLTA, NoRMA-pADRÃo E NoRMA cRAMATtcAL

A expressão norma culta/comum/standard, como discutimos aci-ma, designa o conjunto de fenômenos ÌingiÍsticos que ocorrem habi-tualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitora-das de fala e escrita. Esse vínculo com os usos monitorados e com aspráticas da cuÌtura escrita leva os falantes a lhe atribuir um vaÌorsocial positivo, a recobri-Ia com uma capa de prestígio social.

Por essa mesma razão, ela se tornou historicamente objetoprivilegiado de registro, estudo e cultivo sociocultural. Esse pro-

cesso produziu, no imaginário dos faÌantes, a representação des-s3_rìgMg_gellq _Uma yariedqdq sup_91qr, como uma variedademelhor do que todas as demais.

E s s a rep re qc4t 4ç ã9_q c I,e_y 4, i4clu s ive, .a _q 9_qf-r1 n $r, e -s s a_lig_r -

gra com q_lí4gqg-q-.r_g.qjê, a l.poag?nar que a _{ìoII!a mais monitor4d4

gj litrgge. E que todas as demais variedades são deturpações,

corrupções, degradações da Ìíngua verdadeira.

Por outro Ìado, é essa mesma identficação imaginâría que faz

as pessoas dizerem alarmadas que a língua está decaindo quando

se vêem diante de mudanças que começam a alcançar essa norma.

Tal representação imaginária, embora bastante forte entre

nós, não encontra, porém, sustento na realidade. Primeiro, por-

que as mudanças, como bem demonstra a l ingüística histórica,

nunca aÌteram a plenitude estrutural de nenhuma das varieda-

des da língua. Elas passam sim por contínuas reconfigurações

estruturais, mas nunca perdem seu caráter estruturado3T.

Segundo, porque qualquer Ìíngua é sempre heterogênea, ou

seja, constituída por um conjunto de variedades (por um conjunto

de normas). Não há, como muitas vezes imagina o senso comum, a

língua, de um lado, e, de outro, as variedades. A língua é em si o

conjunto das variedades. Ou seja, elas não são deturpações, corrup-

I[ , t

tç[

t t Para mais detaÌhes sobre o fenômeno da mudança l ingüist ica. ver Fataco (2005).

NORMA CULTA BRASILETRA: DÊSAÍANDO ALGUNS NóS I CqÍtosAtbeÍtoForoco

Ções, degradações da língua, mas são a própria língua: é o conjun-

to de variedades (de normas) que constitui a língua.

A norma dita cuÌta é apenas uma dessas variedad.es, com fun-

cões socioculturais bem específicas. Seu prestígio não decorre de

".ru" ptoptiedades gramaticais, mas de processos sócio-históri-

cos que agregam valores a ela. Em outras palavras, seu prestígionão decorre de propriedades intrínsecas (lingüísticas propriamen-

te ditas), mas de propriedades extrínsecas (sócio-históricas).

como vimos antes, do ponto de vista estritamente gramatical,as variedades (as normas) se equivalem, isto é, tod.as são igualmen-te organízadas, todas são igualmente compÌexas. rsso não significaque todas as variedades se equivalham sociaÌmente. Há uma dife-rcncíação valorativa que hierarquiza as variedades. por razões his-tóricas, os grupos sociais vão atribuindo diferentes valores às dife-rentes variedades. Assim, algumas variedades recebem avaliaçãosocial positivâ, enquanto outras são desprestigiadas e até estigma-tízadas. O importante é entender que tais vaÌorações não são ..na-

turais", não são puramente Ìingüísticas, mas resultam do modo comose constituem historicamente as relações entre os gïupos sociais.

Foi em razão d'e seu prestígio entre os letrados que a normaatltalcomumlstandard das línguas européias ocidentais moder-nas foi gramatízada, isto é, passou a ser objeto de gramáticas edicionrírios (cf- Auroux, 1992).

ffi Normo-podÍão: o cÍioçôo do conceifo

A produção desses instrumentos lingüísticos para essas lín-guas começa na Europa nos fins do século XV, impulsionada pelanecessidade política de se aÌcançar certa unidade lingüística nosEstados Centrais que então se constituíam. Em outras palavras, aunificação e a centralização política tiveram um efeito centrípetohmbém sobre a língua, ou seja, um mundo que superava a frag-mentação econômica, sociaÌ e política própria da sociedade feudalpassava a ter necessidade de uma referência em matéria de línguaque pairasse acima da grande diversidade regional e social.

AF]NANDO CONCEIÍOS75

A sociedade feudal tinha um perfil que favoreceu o funciona-mento das forças sociais centrífugas. s'a descentraÌização, suaeconomia basicamente agrária, os poucos vínculos de comunica-ção para fora dos limites regionais resultaram, em matéria de lín-gr.la, numa grande diversificação.

Aìgumas das mudanças que a Europa conheceu na Baixa lda-de Média' tais como a intensificação das práticas mercantis e d.acirculação de pessoas, o revigoramenro e a expansão da vida ur-bana e a progressiva centralização política alteraram substancial-mente esse quadro, passando a favorecer as forças centrípetas.

Em resposta à profunda diversiÍicação do mapa ringiústico decada um dos novos Estados, emergiu um projeto padronizador. Des_de Antonio de Nebrija (autor daqueÌa que é consid.erada a primeiragramática de uma língua moderna - a gramática do casterhanopublicada em L4g2) se buscou estabeÌecer, por meio d.e instrumentosnormativos (gramáticas e dicionários), um padrão de língua para osEstados centrais Modernos, de modo a terem eles um instrumenrode política lingrústica capaz de contribuir para atenuar a diversida-de Ìingiiística regionaÌ e social herdada da experiência feudal. A esseinstrumento damos hoje o nome de norma-padrão.

se a norma cuÌta,/comum/standard é a variedade que os letradoslusam comentemente em suas práticas mais monitoradas d.e faia e escri- |ta, a norma-padrão não é propriamente uma variedade da língua, -u. / -x

bem destaca Bagno (zoola) construto socio-histori"o qr" /serve de referência para estimuÌar uÌn processo de uniformi zação.

)Enquanto a norma culta/comumr standard é a expressão viva l

de certos segmentos sociais em determinadas situações, u ,ror*r- ipadrão é uma codiÍïcação reÌativamente abstrata, uma baliza u"- ï.,Jtraída do uso reaÌ para servir de referência, em sociedades fmarcadas por acentuada dialetação, a projebos poÌíticos de unifor- fmízação lingüística

No caso europeu, a variedade de língua tomad.a como refe-rência para a construção da norma-padrão diferiu de Estado nara

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7776

lã,rïl

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lNORMA CULTA BRASILEIRA: DESAIANDO ALGUNS NOS i Coíos Âlberlo Foroco

Estado - ora resultou de uma perspectiva mais conservadora,

ora de uma perspectiva mais pragmática (conforme discutiremos no

capítulo 3). Em geral, porém, não deixou de estar próxima da norma

culta/comum./standard, ou seja, da variedade praticada à época pela

aristocracia ou, mais propriamente (considerando que a questão da

norma-padrão foi, antes de tudo, um trabalho dos homens letrados),da variedade praticada pelos'barões doutos" - na feliz expressãodo erudito português do século XVI, João de Barros, autor, entre ou-tras obras, de uma das primeiras gramáticas do português.

Nesse contexto histórico, as gramáticas e dicionários não foramentendidos apenas como instrumentos descritivos (isto é, de registroda norma culta/comuml standard), mas como instrumentospadronizadores, ou seja, como instrumentos de fixação de um padrão

a ser tomado como reguÌador (normatizador) do comportamento dosfalantes, visando alcançar uma 'língua" para o Estado Centra-Iizado.

As gramáticas e os dicionários adquiriram, então, certa força

coercitiva. Eles passaram a ser aceitos como instrumentos de medi-

da do comportamento. Criou-se uma expectativa forte de que a fala e

a escrita formais se conformassem ao que estava neles estipulado.

Em decorrência disso é que a palavra norma tem, no uso con-

temporâneo, dois sentidos. No primeiro, norma se correlaciona

com normalidade (é norma o que é normal). No segundo, norma se

correlaciona com normatividade (é norma o que é normativo).

Nos estudos l ingüísticos, norma designa primordialmente

aquele conjunto de fenômenos lingüísticos que são correntes, ha-

bituais ("normais") numa determinada comunidade de fala.

No funcionamento monitorado da língua, porém, a palavra

norma é usada com o sentido de preceito, isto é, designa aquiloque tem carâter normativo, que serve, no interior de um projeto

político uniforrnizador, para regular explicitamente os comporta-mentos dos falantes em determinadas situações.

O exemplo clássico de padronização será sempre o que estevealiado à constituição dos Estados Modernos na Europa. Posterior-

AFNANDO CONCEITOS

mente, há outros casos bastante reìevantes para se compreender

os processos padronizadores, quer os dos países que saíram do

colonialismo das Grandes Descobertas (basicamente a situação dos

países americanos - e aqui vai nos interessar em especial o caso

brasileiro), quer os dos países que saíram do colonialismo tardio.

Para este segundo caso, vale a pena acompanhar o que ocorreu e

vem ocorrendo com o tok pisinss na Papua Nova Guiné (cf. Romaine

ï992 e 1994), em especial o fato de serem preferidas, como referên-

cia padronizadora, as variedades rurais e não propriamente as urba-

nas (estas foram, à época, consideradas menos "autênticas" por te-

rem incorporado vários elementos lingiísticos externos) - o que dá

uma direção totalmente inusitada ao processo, se o considerarmos

pelo viés da experiência dos cont nentes europeu e americano.

De todo modo, as experiências padronizadoras tentadas fora do

continente europeu tiveram sempre como paradigma o ocorrido na

Europa pós-medieval. Suzanne Romaine (1994), ao estudar o proces-

so de transformação, pelos missionários euïopeus, do tok pisin numa

língua-padrão escrita, demonstrou, nesse sentido, que a própria no-

ção de língua-padrão é um conceito especificamente europeu, cujos

critérios definidores são baseados em atributos das língras-padrão

européias e em valores culturais euïopeus. A autora diz ainda mais:

"Na verdade, eu ainda iria além e djria que a própria noção de uma

língua é em boa parbe um artefato europeu" (1994: p.2U.

Tais afirmações coincidem, de certa forma, com as reflexões

de James Milroy (ZOO1), que, ao discutir o tema da padronização

iingüística, em especial o fato de que eìa não é um universal, mos-

tra como, no fundo, o pensamento lingüístico esteve e está conta-

minado por aquiÌo que ele chama de ideologia da língua'padrão, e

como contribui para a reprodução dessa mesma- ideologia.

Grosso modo, pode se caracterizar tal ideologia como a pers-

pectiva que confunde uma língua com seu padrão, o que é particu-

3s o tok pisin é uma língua criouÌa que teve o ingÌês como base. EÌa evoÌuiu de um pidgin

e é, hoje, a Ìíngua mais falada na Papua Nova Guiné e uma de suas Ìínguas oficiais.

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78 NORM CULÌA ERASILBRA: DESAÌANDO ALGUNS NÔ5 | CoíÍos Alb€rlo Fqqco

larmente o caso cultural da maioria das línguas européias de

amplo uso. Lembrando que boa parte dos métodos e teorias em

lingüística foram (e são) elaborados tendo essas línguas em sua

forma-padrão como referência, Milroy (ZOOf) considera que inevi-

tavelmente aqueÌa ideologia interfere diretamente na Ìingüística

e na análise das Iínguas em geral. E afirma (p. 531):

Podemos muito bem suspeitar de que há influências ideológicas veladasem alguns aspectos do pensamento lingüístico e de que muitas dessasinIluências não são identifi.cadas e-reconhecidas.Além disso, algumas dessas influências emanam do fato de que, comoobservamos, um número de línguas importantes (i. e., amplamente usa-das) que possuem forma escrita são tidas por seus falantes como eristin-do em formas padronizadas. Nossa dependência em relação às línguas-padrão dos Estados-nações pode, portanto, ter distorcido de algumasmaneiras o nosso entendimento.

Se, no âmbito do trabalho científrco, é dificiÌ sepârar as coi-

sas nessa complexa área, mais dificiÌ fica quando se trata de deba-

ter extramuros a questão da norma-padrão: quanto mais os envol-

vidos no debate estão distantes do trato científico da língua - no

qual, em princípio, as assertivas devem ser sustentadas empirica-

mente e não apenas enunciadas categoricamente; ou, em outras

palavras, no qual a validade das proposições não decorre da auto-

ridade de quem as enuncia -, mais nebulosa fica a possibilidade

de enfrentamento desapaixonado da questão.

Bastaria lembrar aqui a enorme dificuldade de se instaurar no

Brasil um amplo debate sociaÌ - que enyolva lingüistas, gramáticos,

professores, jornalistas, escritores, autoridades públicas e interes-

sados em geraÌ - em torno do probÌema da norma-padrão.

Uma primeira razão para essa dificuldade advém do fato de

que boa parte dos que se envolvem com o tema, costuma ter uma

visão reducionista do problemal a norma-padrão é, nessa perspec-

tiva, apenas um rol congelado de formas ditas "corretas". E o tom

do debate no Brasil (há mais de século) é sempre o mesmo: recrimi-

na-se os brasileiros por não cuidarem de sua língua e por suposta-

AFINANDO CONCSÍOS

mente não saberem falar e escreveï "corretamente" (recriminaçãoque não é dificil de ser feita, porque, em geraÌ, nem mesmo os maisletrados usam as formas cuÌtuadas na velha norma-padrão).

Por outro lado, qualquer debate hoje costuma logo ser abor-tado por recorrentes acusações da e na mídia de que os lingüistassão (perigosamente) relativistas e, portanto, contrários ao ensinode um padrão de língua.

Mesmo admitindo com Haugen que os lingüistas avançarampouco no deslinde da questão como um todo, eles têm razoâvercLareza do sentido sociolingüístico de um padrão de Ìíngua e, porisso, não são, em princípio, contrários a seu cultivo e ensino (ver,por exemplo, Castilho, 2002; e nossa discussão no capítuÌo 4)Bn.

O que os lingüistas brasileiros vêm efetivamente combaten-do é o caráter excessivamente artiÍïcial do nosso padrãoi é a con-cepção do padrão como uma camisa-de-força e todos os preconcei-tos daí advindos. Desse modo, são essas as questões que devemconstituir o ponto de partida e o núcleo de quaiquer debate e nãoa equivocada acusação de relativismo.

Como essa acusação, no entanto, decorre de um grosseiro mal-entendido, o desafio preliminar que se põe aos Ìingüistas é buscarmeios de l impar a ârea, meios de esclarecer publicamente seuefetivo posicionamento. Daí nosso esforço aqui neste capítulo paraafinar os conceitos.

Como dissemos antes, a norma-padrão, enquanto realidadeÌéxico-gramatical, é um fenômeno relativamente abstrato; há, emsua codificação, um processo de relativo apagamento d.e marcas

3e Para deixar mais claro ainda o posicionamento dos Ìingüistas;vaÌe a pena reproduziraqui as palavras do insuspeito celso cunha (19g5: g6): "ImpossíveÌ, pois, querermosmanter a quimera de uma norma purista no conturbado e interÌigado mundo que nostocou viver. Não se concìua dessa afirmação, e de outras que temos feito sobre a arbitra-riedade com que se vieram estabelecendo alguns padrôes inexeqüíveis de correção gr-a-maticaÌ, que propomos a anarquia lingüística. Nada menos exato. Reconhecemos apenasa inoperância e a inconveniência da maioria dos processos adotados até aqui para impediro laissez aller idiomático".

79

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;**,.t;is:

8 l80 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS r Corlos Alberlo Foroco

dialetais muito salientes. E por aí que a norma-padrão pode se

tornar uma referência supra-regional e transtemporal.

Nesse sentido, o padrão tem sua importância e utilidade como

força centrípeta no interior do vasto universo centrífugo que ca-

racteríza as línguas, em especial nas situações em que se busca

alcançar certa uniformidade que atenue uma intensa dialetação.

O padrão não conseguirá jamais suplantar integralmente a

diversidade porque, para isso, seria preciso alcançar o impossí-

vel (e o indesejável, obviamente): homogeneizar a sociedade e a

cultura e estancar o movimento e a história. Mesmo assim, o pa-

drão terá sempre, por coações sociais, certo efeito unificador so-

bre as demais normas.

Embora o padrão não se confunda com â norma cuÌta/comum/

standard, está mais próximo dela do que das demais normas, por-

que os codifi.cadores e os que assumem o papel de seus guardiões

e cultores saerrr dos estratos sociais usuários dessa norma.

Se esse é um fator de aproximaçã.o, é também um fator de

tensão porque o inexoráveÌ movimento histórico da norma culta/

comum./súa ndard tende a criar um fosso entre ela e o padrão, fi-

cando este cada vez mais artificial e anacrônico, se não houver

mecanismos socioculturais para reahzar os necessários ajustes.

,i'ï Normo-paúão no BÍosfï

O caso brasileiro é particularmente exemplar nesse sentido,

em especial porque o padrão foi construído, já na origem, de forma

excessivamente artificial. A codificação que se fez aqui, na segunda

metade do século XIX, não tomou a norma culta/comum{ standard(a linguagem urbana comum, nos termos de Preti, 1997) brasiÌeira

de então como referência. Bem ao contrário: a elite letrada conser-

vadora se empenhou em fixar como nosso padrão certo modelo lu-

sitano de escrita, praticado por alguns escritores portugueses do

romantismo (cf. Pagotto, 1998i e nossa discussão no capítulo 2).

AFlNANDO CONCÉITOS

O modeÌo não foi, portanto, a língua de Portugal, como mui-

tos pensam, imaginando uma homogeneidade que, de fato, não

existe, já que o português de Iá é, como qualquer língua, um ema-

ranhado de variedades.

Tal modelo não foi também uma imposição porluguesa. Mui-

tos imaginam que a "metrópole" coÌoniaÌ nos impingiu sua norma

standard como norma-padrão. Intelectuais portugueses, ao acusa-

rem os brasileiros de escreverem "errado", participaram desse pro-

cesso. No entanto, a tentativa de Ìusitanízação da nossa norma cul-

ta./comum/standard foi de integral responsabilidade de nossa pró-

pria elite letrada.

Por trás da atitude excessivamente conservadora dessa elite le-

trada, além de uma herança da pesada tradição normativa dos países

de línguas latinas, estava seu desejo de viver num país branco e euro-peu, o que a fazia lamentar o caráter multinacial e mestiço do nossopaís (aspirando, de modo explícito até a década de 1930, a um

"embranquecimento da raça')l e, no caso da língua, afazía reagir siste-

maticamente a tudo aqujlo que nos diferenciasse do modelo lingiístico

Ìusitano por ela escolhido para padronizar afala e a escrita no Brasil.

Nesse sentido, a reação a uma norma-padrão abrasileirada (i.e.,

a reação ao que propunha, por exemplo, José de Alencar) se mani-

festava no mesmo tom com que se combatiam os fenômenos

iingi.ústicos identificados como "português de preto" ou "pretoguês",

essa "ì.íngua de negros boçais e de raças inferiores" (cf. discussão

em Christino, 2001), que era entendida pela elite conservadora como

sinônimo de corrupção, degeneração, desintegração.

O esforço padronizador no Brasil, diferente do que ocorreu na

Europa, não teve como objetivo primordial responder a uma situa- ,t vção de dialetação profunda - já que, como mosÍram os estudos I

' ' '

diaÌetológicos, as sociedades resultantes de colonização tendem a i" Iser dialetalmente mais uniformes do que as sociedades originarias. | ì

Não esteve também, em princípio, vinculado a um projeto de

construção de um Estado unificado: o BrasiÌ se constituiu como

tal já na Independência, estando politicamente consolidado quando

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82 NORMA CULTA BRASITEIRA: DEsAI,ANDO ALGUNS NóS I CaÍtos AttErro ForocoAFINANDO CONCEITOS

83

4

os mo\rimentos de lud:or1z"rão lingüística tomaram vuìto na se-gunda metade do sécuÌo XIX.

) o projeto da norma-padrão no BrasiÌ teve, então, como objeti-

I ;;,iTJïïi:ff-" veremos em mais detaÌhe

"" ""oii,r" 2, com_o Diretorio oo" ,ì?^l'l:""*êÌ

popuÌar. se no "é"J;ï;rr, com

r:r:ïtrïffiï* :ïi :ïï.'#tï":ï,:ïï; ru ;:ux;:r*i**,r :ïïJt ïf : ;J ;ïï,Íii1ï JtTï"gii:ï;n*::ïï,n:kïÏÏ":'""ïï$"ÏJ:ffi :lï::ïïffi :trém, que ere se "J#,:"::;'""$ïïiffiJt:J,ï'ïï"ì-*u,,,, oo.

Podemos dizer hoje, passado mais de um século do esforçopadronizador do século XIi, q"" "f"

Àïfracassou: po. feri" excessivamenre o Jïiï,ffJï,;: t:*,

tes urbanos letrados brasileiros, "";;;

conseguiu, de fafo, alte_rar a face Ìingüística do nosso o"r.. ï" entanto, na mão dospseudopuristas, continua a nos ,""o*U"u".

' racterísticas da nossa norma cuÌta,/comu mJstandardrear. Esse ̂^€ffifez os nossos meÌhores gramáticos da segunda metad<XX ÍtexibiÌizar os luiroJno"m;;;;r, quebrando, ,"i;;t"ï:"::: #"parte, a rigidez da tradiçâo excessivamente conservadoraro. ,f t É,

Essa flexibilização produziu um- fenômeno interessante a quepoderemos tentativamu"tu .'u-* d-e norma ÃÃ"r*)r,ou seja,o conjunto de fenômetror un"u"untados como cuÌtosrcomuns/standard por esses gramáticos.

Nossos bons gramáticos já não insistem na defesa categóricada norma-padrão do século *i. N; entanto, embora suas gramá-ticas acolham vários f"rrO_urro" àr-(em especial a q uere s ; a .o"""., i", ;i:ïff [1ïïJi""rrJ: iïÍnão são propriamente descriçõu* "i"t"*áticas dessa norma. Nos-sas melhores gramáticas atuais estãq assim, num meio termo entre'bs excessos carr,i1ho1os,, da

""]*l-o"arão (para usar a feliz ex-pressão de Evanildo Bechara -

"r. notas 55 e 56) e as ãescriçõessistemáticas da norma cuÌta/comu mlstand.ard.

Nossos melhores dicionários contemporâneos também se abri-ram (mesmo que timidamentu u_ "*tos

casosal) para nossa nor-

:.ffi:ï:fr tr::.üïil*ïi1ïï:ff#.ïï*:"o-dav3Ìhanorma.padrãopossasermais proliferarum o"

"*"ríciá. "tu"r"* ã"ïi##:

t^it:t ti. sem dúüda, a área em quee condenações totalmente infu"a"a". àr.

"i;;ff:*""'

com aprocÌamação deproibi@es

:ï$ïï";lïH:,ïtextopubücado"-'bú;;"Ë;ãï:"##:LïËiÍ::,i"ffi"tr;.dïrxr"fiË:HxtrïFï'Í1,ïiü!i*:::ti#"j,,"ï,"%rlí:í:í*"xx,:l'Ëi:i:*ïãïïhiïi j-,$,*ïï*ïïrï'.'..ruïï:i:tr j'áïifsua obrigatoriedadel! Ainrconsiderar obrigarório o .,: li: l"

Ìiwamos' portanto, a, r"r*rr *"1ì"1ã'ii"to"i.u au

"r*:**;mïïm:tiil:ïï'ïï';"ïJ:'*""ï'ïïïï;,";;árioque,evenruaisarirur;"r;.,",11ïlïïï,"1"""*Jï:ff ::,ï:**f;,"ï"ï#ï*ïf#nhar aquere uso ou o preceito purista),

"- ;;;;; rasos simpÌesmente repete, sem ne-

it:ïff::ï::"ïrïïïï" t"adicionais inru;;;. Nãoàá dúvida a" qui,,o,"o" no.,.

.rr'o r """

pu."J"i;;;; .t" *"stto da nossa norma culta. rvo

""t.ìi",ïii"â" "- **u

em cerros verberes ,""""" i,lïjïlïrïos juízos arbirrários q.r" *r,a" u'Joiïrlïg,r"ridu

x

Os embates a propósito da norma_padrão sempre foram bas-tante sangüíneos entre nós. Basta lembrar uqrri, unt""-orr"u", ufamigerada polêmi^.a a propósito da redação do nosso primeirocódigo civiÌ' contndo, s"mp"u rrorJrqueles que resistiram, des-de o início, ao que .u chu^urra, ""iuo

ã" .,"*""r"o de lusitanismo,,.

Posteriormentn is ras rom ará, n "" liuX il. ffiï: ::iiï_ï:.ï::ï"ï::"i"ï;de seu projeto estético u critica.a i;;;."-"nte a distância enrrea norma-padrão e a norma culta/comu mlstandard brasileira.

i€qE

,i.J Á normrr gramoticol contemporãneo

i r !

Essa resistênciau m a re r a ri vu, u ",t,liu ï:' ff:lffï ï,1," *ffii ï;1"; J ïl

8584 NORMA CULÌA BRASILEIRA: DESAÍANDO ALGUNS NOS . Corios Alberlo Foroco

ma culta/comumlstandard real que está manifesta hoje não só na

nossa literatura, mas também nos textos da grande imprensa e da

produção universitária (cf. Neves 2003 e Borba 200il.

'Apesar de nossos melhores gramáticos e de nossos maiores

dicionáriosa2 terem se aberto para nossa norma culta/comum/

standard real (rompendo, em boa parte, com a norma-padrão do

século XIX) e apesar dos ampÌos estudos descritivos dessa nossa

norma, há ainda na nossa "república das letras" aqueles que con-

tinuam a se orientar, em matéri-a de língua monitorad.a, exclusi-

vamente pelo que vamos chamar à frente de norma curta.

O paradoxo que nos acompanha é este: a norma-padrão codi-

ficada no século XIX não conseguiu se estabelecer de fato, isto é,

não conseguiu orientar o modo como falamos ou escrevemos a lín-

gua portuguesa no Brasil. No entanto, a ideôlogia da língua-pa-

drão nas várias faces que aqui adquiriu - ou seja, a crença de que

os brasileiros não cuidam da língua, falam mal o português, não

sabem português, falam e escrevem "um vernáculo sem lógica e

sem regras" - ss consolidou no imaginário e nos discursos que

dizem a língua entre nósa3.

Como a distância entre a norma culta/comuml standard e opadrão artifrcialmente formulado era, desde o início, muito gran-

a2Aqui e em outros pontos do livro, qualificamos gramáticas e dicionários. Fazemos issotomando como criüário a formação e a experiência profissional de seus autores. Emborahaja, no comércio, várias gramáticas e dicionários voltados para o uso comum ou escolar,acreditamos que, para um debate bem fundamentado das questões da língua, devemosrestringir nossas referências àquelas gramáticas e àqueles dicionários cujos autoresforam ou são filólogos consagrados. Desse modo, nossas referências aqui são aos dicioná-rios Aurélio, Houaiss e Luft (para o português brasiÌeiro) e, quando pertinente, ao Dicio-nário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (para oportuguês europeril. As gramáticas brasiÌeiras que tomamos como referência são as deRocha Lima, CeÌso Cunha & LindÌey Cintra e EvaniÌdo Bechara. Usamos também comoreferências indispensáveis para os debates todas as publicações que decorreram de estu-dos empíricos da norma culta brasileira falada - basicamente do projeto NURC - Nor-ma Lingüística Lfrbana CuÌta e de seus desdobramentos no projeto da Gramática doPortuguês Falado; e escrita - do projeto do Laboratório de Estudos Lexicográfrcos daFaculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus de Araraquara.{3 Pagotto (2001) faz uma acurada análise de aspectos dessa situação paradoxaÌ.

AFINANDO CONCEITOS

de, foi necessário desenvolver, na nossa cultura, para tentar sus-

tentar a norma-padrão, uma atitude excessivamente purista e

normativista que vê erros em toda païte e condena o uso de qual-

quer fenômeno que fuja ao estipulado peÌos compêndios grâmati-

cais mais conservadores44. Paradoxalmente, são condenados mes-

mo aqueles fenômenos amplamente correntes na nossa norma

culta/comuml standard e em textos de nossos autores mais impor-tantes (os nossos famosos "erros" comuns). E continuam a ser con-

denados mesmo quando os grandes dicionários da língua ou osbons gramáticos já os acolheram.

Essa situação tem nos causado inúmeros males, seja no ensino,

seja no uso da variedade culta/comumlstandard. Esta, que deveriaser um elemento sociocultural positivo, se tornou, no caso brasilei-

ro, um pesado fator de discriminação e exclusão sociocultural.

ffS wormo-padrão: precísomos deto?

Em contraposição à norma-padrão artif iciaÌ do século XIX,

muitos lingüistas, com base no estudo empírico da linguagem ur-

bana comum falada e escrita, costumam postular a necessidade

de uma renovação da nossa norma-padrão (cf . , por exemplo,

Lucchesi, 2002) com a incorporação a ela de todos os fenômenos

característicos dessa variedade. Em outras palavras, esses l in-

güistas postulam a Íixação de uma norma-padrão que seja o efeti-

vo reflexo da norma culta"/comumlstandard brasiÌeira.

No entanto, cabe perguntar se o Brasil, neste início de sécuio

)O(I, necessita, de fato, defrnir uma norma-pad-rão. A questão é saber

se a natural diversidade lingüística nacional está pondo em risco a

relativa unidade das variedades cultas/comuns/súandard faÌadas.

A resposta parece ser bem clara: não há qualquer indício de

risco à relativa unidade dessas variedades. Bem ao contrário: as

t'Para aprofundar a anáÌise do conservadorismo purista brasileiro, é indispensável o

trabalho de Marìi Quadros Leite (1999).

878 6 NORMA CULÌA BRASILEIRA: DÊsAÍÀNDO ALGUNS NOS r Coíos Alberto Foroco

circunstâncias históricas - ou seja, a intensa urbanização da popu-

iação brasileira, as novas redes de relações que se estabelecem no

espaço urbano e suas respectivas pressões niveladoras, a presença

quase universal dos meios de comunicação sociaÌ e a própúa expan-

sao (ainda que precária) da escolaridade - em boa medida favore-cem a manutenção da relativa unidade das nossas variedades cultas/

comuns/súandard e criam condições para sua extensão social.

Os estudos empíricos têm mostrado que, embora a realidadelingiiística brasileira seja historica-'mente bastante polarizada en-tre as variedades ditas cultas e as variedades ditas populares, háuma clara e forte tendência ao nivelamento desses dois conjun-tos, puxado pela força centrípeta da linguagem urbana comum (o

que, como desüacamos antes, era de esperar, considerando os aI-tos índices de urbanização da população brasileira)a5.

Diante desses fatos, talvez possamos mesmo abrir mão deprojetos padronizadores, direcionando nossas energias para o que

efetivamente interessa: de um lado, a descrição e a difusão dasvariedades cultas/comunsl standard faladas e escritasi e, de ou-tro, o combate sistemático aos preceitos da norma curúa que, emnome de uma norma-padrão artiÍicialmente fixada, ainda circu-lam entre nós, quer na desqualificação da Ìíngua portuguesa doBrasiÌ, quer rÌâ desqualficação dos seus faÌantes.

A pretensão de deÍinir uma norma-padrão para a pronúncia

brasileira, por exemplo, parece estar defïnitivamente abandona-da. Foi um projeto que ocupou parte de nossa intelectualidadeentre meados da década de 1930 até meados da década de 1950.Chegou-se a propor que a pronúncia carioca fosse assumida comoa pronúncia-padrão para o teatro, o canto e, por ilação, para osmeios de comunicação social.

Essas propostas se mostraram totalmente irreais e nuncaprosperaram. Sem que houvesse quaìquer tipo de regulamenta-

ção padronízadora, a expressão no teatro, no canto e nos meios de

AFINANDO CONCEITOS

comunicação social tendeu para uma pronúncia que dificilmente

pode ser identificada com a carioca.

Fica evidenciado, assim, que o BrasiÌ passa muito bem sem

uma norma-padrão para a pronúncia: ela não se mostra nem ne-

cessária, nem conveniente. A própria dinâmica sócio-histórica,

atropelando todos os esforços intencionais de padronização, defi-

niu certa pronúncia preferenciaÌ para o teatro, o canto e os meios

de comunicação social.

Precisaria o país de uma norma-padrão escrita? Parece óbvioque necessitamos de uma grafia-padrão (e. para isso, já existe o

Vocabulário Ortográfico, responsabilidade da Academia Brasilei-

ra de Letras). No entanto, a questão que se coÌoca é de outra natu-

1s22: precisamos ir além dessa uniformização ortográfica, isto é,precisamos também regulamentar fenômenos sintáticos, conside-rando o fracasso eúdente das tentativas padronizadoras do sécu-

lo XIX? É preciso (e factível) padronizar fenômenos tais como:

a) certas regências verbais (obedecer o princípio constitucio'nal ou obedecer ao princípio constitucionaP Ou, de fato,tanto faz?))

b) certas concordâncias verbais (aluga-se casas ou alugam'se casas? Ou, de fato, tanto faz?)i

c) o uso dos pronomes (lhe como objeto direto de segunda pes-

soa ou só como objeto indireto? Te e teu combinando com opronome você ou só com o pronome tu? EIe só como sujeitoou também como objeto direto? Ou, de fato, tanto faz?)?

Não bastaria deixar que as variedades cuÌtas/comunslstanda-rd

sejam nossa referência? Ou, em outras palawas, não bastaria deixarque o normal culto seja o Ìlormativo para a fala e p*1 u escrita cultas?

Essas questões talvez não sejam ainda de fáciÌ assimilação

porque continuamos assombrados pela norma-padrão escrita fi-

xada no século XIX, pela violência simbólica que a acompanha e

pelo temor histórico de uma suposta "desagregação" da língua em

nosso país.

Ìr

r iIIjf l** r

o5 Em Lucchesi (zOüJ) pode se ler uma boa dìscussão desse fenômeno

8988 NORMA CULÍA BRASILBR^: DEsÂTANDO ATGUNS NóS I CoÍtosAlbstoFqoco

No entanto, exorcizar esse espectro é cada dia mais urgente,

em especial se considerârmos o caráter altamente rarefeito da-quele padrão e a urgente necessidade de a sociedade brasileirademocratizar o Ìetramento como uma das condições vitais para

seu desenvolvimento efetivo.

Nonmas E,r coNFuTo

As relações entre os instrum--entos normativos (a norma gra-matical) e os usos (a norma culta,/comumlstandard) não são sim-ples. De um lado, certos usos (em geral dos escritores consagrados)costumam ser tomados como abonações dos modelos definidos nosinstrumentos normativos. Em tese, esses usos constituem a fontedo modeÌo, ou seja, a norma gramatical deve estar subordinada aosusos (eÌa apenas os descreve e consolida), conforme, aliás, já esti-pulava Dioúsio T!ácio, erudito alexandrino considerado o aurorda primeira gramática da história, datada do século II a.C. Em suaobra, ele conceituava a gramática como "o conhecimento empíricodo comumente dito nas obras dos poetas e prosadores"a6.

No entanto, a norma gramaticaÌ é também ústa como Ìimitadorados usos. Há certa expectativa de que os usos (a norma culta,/comum/standard) se conformem ao que está estipulado nos instrumentosnormativos (na norma gramatical). Nesse sentido, o uso culto, emtese, deveria estar suborünado aos instrumentos normativos.

Como bem sabemos, não é muito fácil, no plano do imaginá-r io socia l , resolver esta dupla subordinação. Objet ivamente,a l íngua precede sempre os inst rumentos e estes devem, por-tanto, estar sempre em consonância com eÌa. Cul tura lmente,porém, dá-se um vaÌor quase sagrado aos inst rumentos nor-mativos, como se eÌes é que precedessem a língua e garantis-sem sua preservação.

6 UtiÌizamos aqui a tradução feita por Chapansb (2003) em sua dissertação de mestrado,trabalho de aÌta qualidade que recomendamos a todos os interessados.

AFINANDO CONCBTOS

Nada disso seria problema, se a língua fosse homogênea e

estática. No entanto, a língua é uma realidade heterogênea e

mutante. Os usos diferem e se alteram. Nem mesmo a difusão

fortemente institucionalizada da norma-padrão (como na França)

consegue homogeneizar as normas sociais e estancar as mudan-

ças. É inevitável que, com o passar do tempo, ocorram conflitos

entre os usos e os instrumentos normativos, entre a norma culta/

comum./súa ndard e a norma gramatical, conflitos que, dependen-

do do contexto, podem desembocar em impa"""". É preciso, en-

tão, desenvolver balizas culturais para amenizar os conflitos e

superar os impasses.

ffi urn exempfo

Na atualidade, um exemplo particularmente curioso de con-

flito entre a norma culta-/comuml standard e a norma gramatical é

a colocação do pronome átono em construçôes com o futuro do

presente ou com o futuro do pretérito.

Com a arcaízaçáo da mesóclise no português brasileiro (mes-

mo na escrita mais formaD e a condenação pela norma gramatical

da ênclise, isto é, da colocação do pronome depois destas formas

verbais, só resta a próclise.

No entanto, a próclise é condenada pela tradição normativa

se o pronome átono iniciar o período (a velha questiúncuÌa gra-

matical brasiìeira, a rainha de todas elas...).

Ufa! ! Como sai r desse impasse? Se usamos a mesócl ise,

arcâizamos demais nosso texto e espantamos os leitoresi se não

usamos, ficamos entre duas condenações (a ênclise é interdita ln

Iimine pela norma gramatical e a prócÌise só'é admitida, pelo

menos nos preceituários mais conservadores, se o pronome não

iniciar o período).

AÌguns comentadores, tentando acomodar as coisas, recomen-

dam que, com as formas do futuro do presente e do pretérito, se

.Ì.ÊÌ:::ì'i.'È.':iF;-*!i.

: iJ-:Ì

9 l90 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NóS I Coítos Alberto Foroco

.deixe sempre explícito o sujeito. Desse modo, a próclise estaria

abonada pela norma gramatical.

No entanto, essa artimanha nem sempre resolve o problema,

como nas construções com o pronome se indicando indeterminaçãodo sujeito Ge üria que / se teria isso como certo) ou sinalizando achamada passiva sintética (se encontraria[m] facilmente outrosexemplos / se tornarão visíveis outras sìtuações semelhantes).

Nesses casos, quem escreve fica, muitas vezes e implacavel-mente, entre duas condenações. Temos observado que na impren-sa os jornalistas, para fugir da rainha das questiúnculas gramati-cais (não iniciar período com pronome átono), têm usado a conde-nada ênclise {Diria-se que / Teria-se isso como certo), para *hor-

ror" dos gramatiqueiros.

Luís Fernando Veríssimo, porém, preferiu desrespeitar a ra-inha das questiúnculas gramaticais e escreveu: "Se resgataria oideal republicano desse renitente infantilismo político...',47, cer-tamente para "horror" de outros gramatiqueüos.

A pessoa de bom senso certamente se perguntará como sairdessa estapafúrdia situação, fruto da mais canhestra ranheticegramatiqueira.

A solução do impasse é simpÌes: considerando que na normaculta-/comumJstandard falada no BrasiÌ o pronome átono começaos períodos sem nenhuma restrição (porque, como todos bem sa-bemos, a próclise é a coÌocação mais adequada à prosódia do por-tuguês brasileiro), basta adequar a norma gramaticaÌ ao uso.

E a soÌução é ainda mais simples se considerarmos que a gra-mática da Ìíngrra culta/comum/ standard falada já se espraiou porboa parte da escrita Ìiterária, jornalística e mesmo acadêmica.

Nesse sentido, é curioso observar que pouco se alterou o con-junto de fatos do uso cuÌto/comuml standard que são, há mais d"e

AFINANDO CONCEITOS

um século, insistentemente combatidos como incorretos peÌa tra-

dição normativa pseudopurista. Esta situação é uma das provas

cabais da inefrcácia da norma-padrão que se quis impingir à socie-

dade brasileira.

O conflito já na origem entre a norma culta'/comumlstandard

e a norma-padrão deixou a sociedade brasileira sem uma adequa-

da referência normatizadora e deu margem para que vicejasse aqui

um purismo exacerbado, sempre a desmerecer as características

da nossa norma culta-/comuml standard.

Esse purismo motivou, por exemplo, no início do século )C( a poÌê-

mica virulenta e estéril (embora com efeitos danosos pzÌra nossa cultura

Iingtística, como veremos nos capítuÌos seguintes) conduzida por Rui

Barbosa a propósito do texbo do Código Civil. Hoje esse (pseudo)purismo

se materializa no que estamos chamando de norma anrta.

Aindo um exempro

Como comentamos anteriormente, boa parte dos nossos es-

critores, em especial a partir do modernismo, tem acolhido em

seus textos fatos da nossa norma culta/comuml standard falada.

Nossos bons gramáticos e dicionaristas têm também incorporado,

mesmo que algumas vezes de forma apenas tímida, esses fatos,

flexibiÌizando o padrão artificiaÌ definido no século XIX. Apesar

disso, o que tem tido maior visibilidade nos juízos sobre a língua

no BrasiÌ é, infeÌizmente, â norma curta.

Tomemos, como exemplo dessa situação esdrúxuÌa, a regên-

cia do verbo ' implicar'no sentido de 'ter como conseqüência', 'acar-

retar'- como na seguinte sentença: A decisão do juiz implicava

prejuízos futuros para a empresa.

Originalmente o verbo 'implicar' neste sentido é transitivo di-

reto (a decisão impücava prejuízos). Com o tempo este verbo se tor-

nou também transitivo indireto no uso culto. Passou a ser normaÌ

dizer e escrever 'implicar em' (a decisão implicava em prejuízos)-n?cf.acónica'?-eisereis",pubÌicadanojornalGazetadopovo,cuÌitiba,27loll2007.o.rJ

9392 NORMA CULTA BRASIIEIRA: DESAÌANDO ALGUNS NÓS r Corlos AlbeÍlo Foroco

Esta inovação já estava registrada como de uso culto na déca-

da de 1950 (50 anos atrás, portanto) pelo prof. Rocha Lima -

indubitavelmente um dos nossos bons gramáticos - na sua gra-

mática normativa (cf. Rocha Lima, 2006: 433).

Posteriormente, o prof. Celso Luft - autor do melhor dicioná-

rio de regência verbal de que dispomos atualmente - dizia assim:

Implicar em algo é inovação em reÌaçã o a implicar algo por inÍluência de

sinônimos como'redundar','rever*er','resultar','importar'. Aparente-

mente um brasileirismo. Plenamente consagrado, admitido até peÌa gra-

mática normativa (Luft, 2006: 326).

Um bom gramát ico como o prof . Rocha L ima e um bom

gramático e dicionarista como o prof. CeÌso Luft registram a re-

gência 'implicar em' como própria da norma culta brasileira e a

acolhem como tal em seus instrumentos normativos.

Diante disso, poderíamos acreditar que se trata de questão

paciÍïcada.

No entanto, recentemente (em 2007), a jornalista Dora Kramer,

muito dada a caçar "erros" de língua pelo metro da norma curtaas,

condenou com veemência - em sua coluna diária - o uso da re-

gência'impÌicar em' por um ministro do governo federal numa reu-

nião em que ele fez a apresentação púbÌica de um plano econômico.

O argumento da jornalista era de que essa regência não é pró-

pria da norma cuÌta. Ora, dois grandes fiÌólogos já afrrmaram o con-

trário, um deles há mais de 50 anos. E notemos de passagem que se

trata de dois frlóIogos cuja postura relativamente conservadora, no

conjunto das suas obras, é bem conhecida. Não se trata, portanto,

de "lingüistas relativistas e ociosos". Apesar disso tudo, a jornalis-

ta se sentiu no direito de condenar (arbitrariamente, portanto) aque-

la regência já de há muito consagrada na norma cuÌta.

a8 Sobre os comenhários "gramaticais" de Dora Kramer e de outros jornalistas, vaÌe a pena

Ìer a discussão crítica de Bagno (2003: 13ss.). Sobre a relação da mídia brasileira com aÌíngua portuguesa, é indispensáveÌ a leitura de Scherre (2005).

ARNANDO CONCEITOS

TYazemos este exemplo para mostrar como aqueles que se

arrogam a condição de "guardiões" da língua nem sempre têm base

sufrciente para sustentar seus juízos condenatórios, salvo um con-

junto arbitrário de preceitos dogmáticos.

Nada obriga a jornalista a usar o verbo'implicar'como transi-

tivo indireto. Mas, ao mesmo tempo, nada autoriza a ilustre jor-

naÌista a condenar o uso de'implicar em'.

Eia pode perfeitamente continuar usando o verbo como tran-

sitivo direto ('implicar algo') - a norma cuÌta/comumlstandard

abriga, variavelmente, as duas possibilidades. Mas falta à jorna-

lista fundamento para condenar a regência 'implicar em', já que é

de uso comum entre os falantes cultos e está, como tal, devida-

mente registrada por dois bons instrumentos normativos.

Não é trivial o que estamos apresentando por meio deste exem-

plo, porque esse tipo de atitude condenatória é ainda, infelizmente,

muito comum entre nós, afetando a vida de muita gente no Brasil.

Muitas pessoas sofrem constrangimentos públicos e até dis-

criminação, são humilhadas, são recriminadas ou perdem pontos

em exâmes e têm sua classifrcação prejudicada em concursos pú-

blicos pelo fato de usarem uma forma que alguns - sem qualquer

fundamento filológico e lingüístico - consideram errada.

Cabe, então, a pergunta:. até quando continuaremos a aceitar

esse tipo de arbitrariedade?

Nonma cuRrA

Na maioria das vezes, a simples consuÌta a um bom dicionário

ou a uma boa gramática (cf. nota 40) é suÍiciente para desautorizar

as condenações arbitrárias. No entanto, apesar do que dizem os

bons instrumentos normativos, essas condenações arbitrárias con-

tinuam a ser feitas e com grandes prejuízos para os falantes.

Parece que os nossos bons dicionários e as nossas boas gra-

máticas não têm vez - raramente são tomados como efetiva re-

:it

ii

, if' I

. : F . . -

9594 NORMA CULÍA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NÔS . Corlos AlbeÍto Foroco

ferência. Infelizmente, como destacamos acima, o que tem predo-

minado e que tem servido de referência no nosso sistema escolar,

e tem sido reforçado por boa parte dos consultórios gramaticais

da mídia, pela ação de revisores das editorasne, por manuais de

redação dos grandes jornais, por cursinhos pré-vestibulares e por

elaboradores de questões de concursos públicos é uma norma es-

treita a que chamamos aqui de norma curta.

Tbata-se de um conjunto de pteceitos dogmáticos que não encon-

tram respaÌdo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos,

mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um

estudo adequado da nossa norma culta"/comum/standard.

Esta norma (o uso real, portanto) e os comentários dos nos-

sos bons g ramá t i cos cos tumam con t rad i ze r t a i s p rece i t os

dogmáticos. Apesar disso, eles são repetidos como se fossem ver-

dades absolutas e são tomados como justificativa para humilhaq

constranger e prejudicar as pessoas.

Quando os defensores desses preceitos dogmáticos são contes-

tados, costumam revidar acusando seus oponentes de "relativistas

e ociosos", de defensores da "anarquia lingüística", do "tudo vale";

e de serem contrários ao ensino de padrões de língua porque não

passam de -populistas e esquerdistas de meia-pataca".

um discurso, sem dúvida, tonitruante. No entanto, falacioso.

A ele voltaremos nos capítuÌos seguintes. Por ora, nos interessa

caracLerizar bem a norma curta.

Ela não passa de uma súmula grosseira e rasteira de precei-

tos normativos saídos, em geral, do purismo exacerbado que, in-

felizmente, se alastrou entre nós desde o século XIX. A norma

curta é a miséria da gramática.

Bem ao contrário da norma curta, a atitude normativa de

nossos bons dicionários e das nossas boas gramáticas modernas

AfINANDO CONCEIÌOS

tem sido relativamente fleúvel. Os juízos são, em geral, bastante

ponderados, com seus autores recomendando mais do que asse-

verando categoricamente.

Parte dessa atitude equilibrada e ponderada se deve ao fato

de os autores desses bons instrumentos normativos, por serem

estudiosos sistemáticos da língua, saberem que ela, mutante e

heterogênea como é, dificilmente pode ser reduzida a enunciados

dogmáticos. Por isso, recomendam usos porque constatam as ten-

dências já consolidadas, em maior ou menor gïau, no uso social.

Po r ou t ro l ado , essa a t i t ude comum nos g ramá t i cos e

dicionaristas contemporâneos reflete o fato de que, no fundo, o

projeto padronizador do século XIX fracassou redondamente.

A nossa cultura gramatical de melhor qualidade, ciente do

artificialismo e da ineficácia dos padrões deÍinidos no século XIX,

tem estado mais atenta aos fatos do uso culto, isto é, tem se dedi-

cado mais a apresentar a norma cu1ta./comum/standard do que a

reiterar a fracassada norma-padrão oitocentista.

Tem, por isso, a nossa cultura gramatical de melhor qualidade

buscado combinar adequadamente a tradição e a inovação, o clássi-

co e o moderno: tende a ser conservadora, mas aberta às caracte-

rísticas da norma culta/comum/standard brasileira e às mudanças

por que passam inevitavelmente as variedades da língua.

E esse trabaÌho está hoje bastante facilitado pelo saber que

acumulamos a partir de projetos como o NURC (Norma Lingüísti-

ca Urbana Culta) e seus desdobramentos no projeto da Gramática

do Português Falado, para a norma culta/comumlstandard faÌadai

e como o do Laboratório de Estudos Lexicográficos da Faculdade

de Ciências e Letras da UNESP, Campus de Araraquara, para a

norma cuÌta/comurnl standard escrita.

Muito diferente dessa atitude ponderada e flexível, a norma

curta ê o reino da inÍlexibilidade, das aÍirmações categóricas, do

certo e do errado tomados em sentido absoÌuto. A norma curta é o

mundo das condenações raivosas, das rabuÌices gramaticais. Nãoas Em Britto \2OO2,hâ uma perspicaz anáIise da ação dos revisores de texto (p. 1b3-a).

NORMA CULÌA BRASILEIRA: DESATANDO ATGUNS NÓS . Corlos Alberto Fqíoco

é tato que defensores da norma curta cheguem a ser grosseiros e

vulgares em seu discursoso.

Um rii-scurso tão dogmático e que chega às raias do grosseiro

e do vulgar pode sugerir que se trata de juízos límpidos, indiscu-

tíveis e isentos de contradições. No entanto, basta ter paciência

suficiente para comparar alguns manuais da norma curta para

Iogo se deparar com várias contradições. Só para frcar num exem-

plo que, como muitos da norma cuÍta> beira o ridículo, vale lem-

brar aqui a "portentosa" dúvida'de qual forma é a "correta": falar

ao telefone ou falar no telefone?

Eduardo Martins, no Manual de redação e estilo de O Estado

de S. Paulo $. 27$ diz sumariamente (sem qualquer justi-ficativa,

como é, aliás, típico da norma curta): "IJma pessoa fala ao telefo-

ne e não'no'telefone". No entanto, outro celebrado autor adepto

da norma cltrta, Napoleão Mendes de Almeida, em sua Gramáti

ca metóüca (p. 336), condena "falar ao teÌefone" em vez de "falar

no telefone" por ser galicismo!!

Coitado do falante que busca orientação nesse tipo de mate-

riaÌ: acabará sempre vítima de um fogo cruzado.

E os exemplos de contradições proliferam. No senso comum, no

entanto, prevalece a idéia de que os preceitos da norma curta sáo

únicos, uniformes e, por isso mesmo, inquestionáveis e absolutos.

ffi Psnunciondo o notma curto

Nossa obrigação, como estudiosos da Ìíngua, é denunciar essa

cultura gramatical rasteira. Primeiro porque ela agride a nossa

inteligência e desrespeita nossos estudos lingüísticos e nossos bons

instrumentos normat ivos. E, segundo, porque e la, no fundo,

50 Chegam até a depreciar nossos grandes escritores, como faz, por exempÌo, NapoleãoMendes de Almeida a propósito do nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, aochamá-io de *derrotista da nossa gramâtica" (Dicionário,p.470) Como promover a Ínguase nem sequer Ìrossos monumentos literários merecem respeito?

AHNANDO CONCEÍTOS

atrapalha, peÌa sua estreiteza de visão, o importante projeto cul-

tural de ensino e difusão da cultura escrita e, em conseqüência,

da nossa norma culta/comum./ standard teal'

Nossos bons instrumentos normativos tendem a ser conser-

vadores, mas têm se mostrado sensíveis ao uso efetivo dos falan-

tes. Por isso, eles tendem a acolher os fenômenos que são ou vão

se tornando correntes na nossa norma cuÌta/correntelstandard.

Para exempÌificar essa atitude de acoÌhimento, vale sempre

citar. entre outros, os trabalhos do prof. Celso Luft.

O prof. Luft - falecido em 1995 - tinha uma sólida formação

frlológica e lingüística e foi um incansável e apaixonado estudioso

da língua portuguesa. A ele devemos instrumentos normativos

muito bons, como um dicionário escolar, uma gramática, guias de

ortografra e um excelente dicionário de regência verbal.

E a regência, como qualquer outro fato da língua, pode mu-

dar. Por exempÌo, o verbo socofter foi, no passado, transitivo in-

direto. Dizia-se socorrer aos náufragos. Hoje, ele é transitivo di-

reto. Dizemos socorcer os náufragos'

Com o verbo suceder aconteceu o contrário. Ele era transiti-

vo direto e hoje é transitivo indireto. Dizia-se Pedro II sucedeu

seu pai. Hoje o normal é dizer Pedro II sucedeu a seu pai.

Considerando esse fato, é fundamental que um bom dicioná-

rio de regência verbal esteja aberto às inovações que ocorrem.

Ora, é exatamente isso que fez o prof. CeÌso Luft. Na introcÌução a

seu dicionário, eÌe diz:

Este dicionário, embora obviamente dedicado à regência da língua cul-

ta, em registro formal, sobretudo na escrita (não necessariamente lite-

rária), deu toda a atenção a inovações nesse campo.

Observemos o tom do discurso do bom dicibnarista: o dicio-

nário está voltado para a regência na norma culta, mas dá aten-

ção às inovações. E o equilíbrio que se espera de um estudioso

qualif icado da língua: apresentar a tradição, sem descuidar da

inovaçãoi apresentar os usos clássicos sem ignorar (ou, pior, con-

d.enar arbitrariamente) os usos modernos'

9 7

9 ?98 NORMA CULÌA BRASILEIRA: DESÂTANDO ALGUNS NOS r Corlos AlbeÍto Foroco

O estudioso qualifrcado da língua não sai por aí simplesmente

condenando os usos modernos como "erros". O estudioso qualifrcado

sabe que a língua muda e que é preciso estar atento aos usos. Se a

inovação é de uso corrente entre os falantes letrados, uma boa des-

crição da norma culta/comum/standard deve fazer referência a ela.

Vejamos um exemplo retirado do dicionário do prof. Luft para

deixar bem claras as bases deste nosso argumento.

Digamos que alguém queira saber a regência do verbo namo'

rar. Consultando o dicionário do prof. Lufb, vai encontrar a infor-

mação de que este verbo pode ser transitivo direto (Maria namr

ra um estudante de medicina) ou transitivo indireto (Maria na-

mora com um estudante de medicinò.

E o prof. Luftb acrescenta:

A regência primitiva é de transitivo direto. Por isso, puristas condenam

a regência 'namorar com'. . ., que, no entanto, é normal, de uso perfeita-

mente legítimo moldado em casar com e noivar com.

E abona esta afirmação com exemplos dos escritores José Lins

do Rego e Bernardo ÉIis.

As duas regências são, portanto, legítimas e próprias da nor-

ma culta/comuml standard.

Essa mesma interpretação vamos encontrar nos dicionários

Houaiss e Aurélio.

Apesar disso tudo, autores que pensam as questões da norma

culta/comumlstandard sem se livrar do viés da norma curta ain-

da se sentern no direito de condenar o uso do verbo namorar como

transitivo indireto. E não só isso: chegam, incÌusive, a desacredi-

tar os nossos bons escritores e os nossos bons dicionaristas. Um

desses manuais publicado recentemente5l diz: "O verbo namorar

5r Tlata-se de Nicola & Terra (2006). O projeto editoriaÌ do Ìivro, âo apresentar dúvidas emordem alfabética. é, sem dúvida, positivo: facilita a consulta - tarefa que é, em geral,

difrcultada pelo modo cÕmo nossas gtamáticas se estruturam. LamentáveÌ, porém, é ainsistência, aqúou ali, em preceitos excessivamente puristas.

AFINANDO CONCEITOS

é transitivo diretoi o seu complemento, portanto, não deve lgrifonosso] ser preposicionado".

E acrescenta a seguinte afirmação:

Embora alguns autores e dicionaristas abonem o emprego do verbo na-morar como transitivo indireto exigindo compìemento regido peÌa prepo-sição com, prefira sempre o emprego como transitivo direto.

No fundo o que se diz aqui é: não leve muito a sério os nossos

bons instrumentos normativos.

Obviamente não será dessa maneira - desacreditando bons

escritores e bons instrumentos normativos - que construiremos

no nosso país uma sólida cultura lingüística capaz de sustentar apromoção da língua, um bom ensino dela e a difusão ampla da

nossa norma culta/comuml standard.

O discurso da norma curta hem aÌgumas características que

merecem ser duramente criticadas. Primeiro, essa norma se pauta

por uma noção equivocada de errol ou entende erro em sentido abso-

luto, ou classifrca como erro inovações correntes e consolidadas.

Segundo, os porta-vozes da norma curta ou desconhecem (ig-

noram?) os nossos bons instrumentos normativos ou costumam

desqualif icá-Ìos abertamente.

Já vimos aqui o caso da jornaÌista que arbitrariamente conde-

nava um fenômeno que há mais de 50 anos é já reconhecido comoparte do nosso uso cuÌto e consta como taÌ da gramática do prof.

Rocha Lima e do dicionário de regência verbal do prof. Celso Luft.

Quem quer usar seu espaço na imprensa para condenar os

usos lingüísticos dos outros tem a obrigação ética de conhecer a

fundo os nossos bons instrumentos normativos.

Mas j á v imos aqu i t ambém o caso daque le manua l que

desqualifica - assim sem mais - escritores e dicionaristas que

abonam certa regência verbal que ele - arbitrariamente - con-

sidera errada.

Ft;-:*,çj

Ì 0' lt00 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESAÍANDO ALGUNS NÓS r CoÍlosAlbeÍtoFqÍoco

Por fim, o discurso dos porta-vozes da norma curúa está cheio

de xingamentos e afirmações desrespeitosas aos falantes. Um

desses autores (Napoleão Mendes de Almeida), por exemplo, nos

trata, em seu Dicionário, de "delinqüentes da língua", de "quadri-

lha de dilapidadores do idioma". E estas são apenas algumas de

suas muitas expressões gtosseiras. E nem são as mais grosseiras.

Em razão de todos esses absurdos é que perguntamos aci-

ma: até quando vamos toÌerar, como sociedade, essas arbitrarie-

dades, essas gïosserias, essas ãgressões? Até quando vamos to-

Ìerar que pessoas sejam constrangidas em público, sejam discri-

minadas, prejudicadas em provas e concursos públicos pelo fato

de usarem uma certa forma que os porta-vozes da norma curúa

consideram errada quando nossos bons instrumentos normativos

e nossos bons escritores a acolhem e a abonam?

Não estamos aqui propondo - repitamos com todas as ìetras- que não se cuide da expressão, que não se cultive a norma cul-

ta./comum/standard. Estamos sim criticando as condenações arbi-

trárias que não observam os fatos, que não acompanham a dinâ-

mica da Ìíngua, que desconhecem as pesquisas contemporâneas

da nossa realidade Ìingüística e os estudos consolidados nos bons

instrumentos normativos.

Por isso, temos repetido aqui que essa cultura do erro, que

essas condenações arbitrárias em nada contribuem para construir-

mos uma sólida cultura lingüística no nosso país "e" um ensino de

quaiidade para todos.

Obviamente, ninguém é obrigado a acÌotar as inovações. Quaì-quer um de nós pode per fe i tamente ser mais conservador em

matéria de língua. Mas o fato de ter uma atitude mais conserva-

dora não Ìhe dá o direito de condenar os que usam formas inova-

doras, em especiaÌ se elas são já correntes entre os falantes letra-

dos em situações mais monitoradas de fala e escrita. E mais ain-

da, se eÌas já foram acoÌhidas peÌos bons instrumentos normativos.

AFINANDO CONCEfTOS

O falante mais conservador pode perfeitamente aconselhar, su-

gerir, recomendar o uso mais clássico. Está no seu direito. Mas, se na

norma culta,/comum/standard já circulam outras formas, esse falan-

te não tem o direito de condenar os que as usam. Antes cabe maravi-

lhar-se com a beleza da dinâmica e da riqueza da língua que muda

continuamente sem jamais perder sua plenitude estrutural e seu

potencial semiótico.

Para exemplificar esse nosso argumento, voltemos ao dicio-

nário de regência verbaÌ do prof. Celso Luft e vamos consuÌtar o

verbete referente ao verbo assistir.

O autor nos informa que, no sentido de estar presente, pre'

senciar, este verbo é originalmente transitivo indireto: assistir a

um jogo, a um filme, a Ltm ensaio e assim por diante.

No entanto, diz ele, este verbo - por pressão semântica de seus

sinônimos ver, presenciar, obsewar - se tornou transitivo direto no

Brasil. Primeiro na linguagem coÌoquial e, desde meados do século

passado, já corrente na escrita literária. Por isso, diz ele, não faz

sentido condenar essa inovação. E acrescenta:'ïsso não impede que,

para a linguagem culta formal, se aconselhe a regência originária".

Aí está um belo exempÌo do que estamos defendendo.

Celso Luft registra a mudança ocorrida na regência do verbo'as-

sistir' de transitivo indireto para diretoi observa que a regência ino-

vadora é de uso corrente na escrita literária, o que, por si só, justifica

que eÌa não seja mais condenada. Isso tudo não impede, diz ele, que se

aconselhe o uso da regência cÌássica em situações mais formais.

Notemos bem: é um conselho, não uma determinação categó-

rica. Está sugerindo, não impondo de maneira grosseira. É ,-

conselho de aÌguém que, embora conhecendo a fundo a língua, tem

uma justa preferência pelas formas mais conservadoras.

Avançaríamos muito se conseguíssemos adotar e disseminar ati-

tudes mais abertas e bem fundamentadas diante dos fatos da língua,

em esneciaÌ dos fatos da chamada norma cuÌta,/comumlstandard.

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r02 NORMA CULÍA BRASILEIRA: DESATANDO ÂLGUNS NÔS r Corlos Alberto FoÍoco

Awontonor rm tÍNoua

O problema de fundo de todas essas questões, a lém do

equívoco do processo padronizador tentado no século XIX (que,

pelo artif iciaÌismo do modeÌo adotado, acabou por alimentar

um purismo exacerbado que se materiaÌiza hoje no que cha-

mamos aqui de norma curta), é o fato de que, em matéria de

língua, não há uma autoridade a que se possa apelar em busca

da palavra def in i t iva.

Dízer que não há autoridade em matéria de língua deve cer-

tamente causar sobressaltos em quem está nos lendo, porque a

tradição escolar e a cuÌtura do erro ainda tão arraigada entre nós

dão a impressão de que existe uma autoridade suprema donde

emanam os preceitos gramaticais que costumam ser categorica-

mente proclamados pelos porta-vozes da norma curta.

No entanto, tal autoridade não existe.

Não eriste, por exemplo, uma autoridade como o papa para os

católicos, ou seja, uma pessoa que é fonte indiscutível da'ïerdade".

Do mesmo modo não existe, em matéria de língua, uma insti-

tuição como o Supremo Tfibunal Federal que - na ordem consti-

tucional brasileira - funciona como a autoridade úÌtima para re-

solver dúvidas e arbitrar polêmicas relativas à Constituição.

Em materia de língua, não há, portanto, papas nem tribunais

supremos. E os antigos já sabiam disso e diziam, com muita pro-

priedade, que a única autoridade em língua é o uso, isto é, a ma-

neira habitual, comum, corriqueira de faìar ou de escrever. Re-

cordemos como Dionísio T\rácio conceituava gramática já no sécu-

lo II a.C.: "O conhecimento empírico do comumente dito nas obras

dos poetas e prosadores"sz.

52As gramática-s, por meÌhor que sejam, não seguem estritamente esta lapidar formuÌa-

ção. Bagno (20O?b) mostra como a reÌação dos gramáticos com os grandes escritorestende a ser sempre seletiva: só vaÌem o-s exempÌos que reiteram os preceitos. Outros usossão simplesmente ignorados.

ARNANDO CONCEITOS r03

M E o Academio BrosÍfeiro de lefros?

Algumas vezes, as pessoâs perguntam se a Academia Brasi-

leira de Letras não é a autoridade em língua, uma espécie de Su-

premo Tïibunal FederaÌ das questões gramaticais.

E a resposta é, obviamente, não. A Academia, entidade de di-

reito privado, tem sim uma única tarefa em matéria de língua -

que lhe foi delegada por lei - que é produzir o VocabuÌário Orto-

gráfico. A Academia tem, portanto, a responsabii idade Ìegal de

fixar a forma gráfica das palavras. Nada aÌém disso53.

Ela é uma instituição que tem, obviamente, sua importância

cultural: produz edições críticas de alguns dos nossos autores consa-

grados, oferece prêmios aos novos escritores e seus estatutos esti-

pulam, como um dos seus objetivos, o cuÌtivo da iíngua porluguesa.

T\rdo isso é relevante, mas nada disso dá à Academia qualquer

autoridade sobre â língua5a. Há outras instituições que têm também

esse objetivo de estudo e cultivo da língua. As universidades, por

exemplo. É nehs que vamos encontrar - junto a seus programas de

pós-graduação em letras e ìingüístic maioria dos estudiosos

que pesqúsam as características da língua portuguesa no Brasil.

53 O Vocabulário Ortográfico produzido pela Academia é uma espécie de livro do tombo

das paÌavras, isto é, um livro em que se registra a forma gráfica das palavras. Esse

registro é necessário porque é inviáveÌ que cada um escreva as palavras como bemquiser. Uma forma gráfrca írxa é sempre desejável, e é a Academia que estabeÌece essa

convenção. Quando entra, por exemplo, uma palawa nova no português - importada de

outra Ìíngua -, é preciso decidir que grafia vamos adotâr: vamos manter a grafia originaÌ

ou vamos aportuguesar? Tomemos o caso de layout. E uma palawa vinda do inglês, de

uso geral nas artes gráficas, significando o esboço de diagramação de um iexto, de um

cartaz, da capa de um livro. AAcademia fixou duas grafias para esta palavra no vocabuÌá-

rio ortográfico: a originaÌ Oayout ) e a aportuguesacla (Ìeiauúe). Neste caso específrco,tanto faz, portanto, grafar de um modo ou de outro. Em outros casos, aAcademia regis-

trou apenas a grafia originaÌ, sem aportuguesar. Sàorv, por exemplo, se escreve conÌo em

ingiês e pizza, como em italiano. Há, por fim, casos, a maioria,.em que o VrcabuÌário

Ortográfico autoriza apenâs a forma aportuguesada. Por exempÌo, uísque. Repetindo:

essa é a única tarefa que cabe à Academia Brasileira de Letras em matéria de Ìíngua.5n O filólogo EvaniÌdo Bechara, em seu discurso de posse naABL, chamou a atenção de

seus pares "imortais" precisamente pâra esse ponto, ou seja, "a alta sabedoria dos funda-

dores desta casa em atribuir-se a si o cuÌtivo, e não o estudo da 1íngua. Nesta implícita

distinção queriam deixar patente que não thes cabia a tarefa de técnicos da descrição do

idioma nem tampouco a elaboração de uma gtamática".

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105104 NORMA CULÍÂ BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NôS r Corlos Atberto FoÍoco

As universidades têm uma capacidâde técnica que a Acade-mia Brasileira de Letras não tem. Basta lembrar que a AcademiaatuaÌmente tem um único filólogo entre seus 40 "imortais", en-quanto as universidades têm um conjunto expressivo de pesqui-sadores e Ìrm acervo respeitável de estudos da língua55.

Nem por isso são as universidades autoridade suprema emmatéria de língua.

ffi ,e ínguo é moior que o i'mpurs o ouloritório do normo curto

A língua, em sua infinitude, em sua heterogeneidade e em

seu constante processo de mudança, é, no fundo, incontornável -

como dizia o filósofo alemão Martin Heidegger. Isto é, não dispo-

mos de meios para cercá-la, para riscar um traço a seu redor, para

desenhar uma Ìinha que a contenha.

Claro, a nossa cuÌtura l ingüística tradicional tem enormes

dificuldades para conviver com essas características da língua.

Diante do infinito, do heterogêneo e do sempre mutante, muitaspessoas clamam por regras categóricas. Surgem, então, aqueÌesque se arrogam o direito de ditar tais regras. Como não há umpapâ ou um supremo tribunal federal lingüístico, alguns se acham

no direito de assumir o papel de autoridade: inventam regras eproibições, condenam usos normais e ficam execrando e humilhan-

do os faÌantes. E, pior, nunca admitem contestação.

Infelizmente, esse autoritarismo gramatical, essas atitudes

autocráticas têm grande prestígio na nossa sociedade, em espe-

cial entre alguns dos nossos inbelectuais. No entanto, um dos efei-

tos desse autoritarismo lingüístico tem sido justamente bloquear

o amplo acesso sociaì a um bom domínio da língua. Inibe e cons-

55 No mesmo discurso de posse, dizia Bechara, com bastante propriedade: "AAcademìaestará atenta a toda essa atividade puramente científrca, à medida que a investigaçãocontribua para desbastar os excessos caprichosos que porventura ocorram na gramáticanormativa e demarcar-Ihe, a esta, os aìcances e os limites".

ARNANDO CONCEITOS

trange. De um lado, porque instaura uma insegurança nos falan-

tes. De outro, porque se aproxima dos fatos da língua sempre de

modo fragmentário (arrolam picuinhas sobre picuinhas - alguns

chegam até a ultrapassar a casa do miÌhar), sem nunca oferecer

uma perspectiva de conjunto da nossa realidade lingüística, em

narticuÌar da norma culta/comum/standard.

ffi Superondo esse imbróglío

Se não dispomos de uma autoridade suprema em matéria de lín-

gua, como podemos dirimir dúúdas ou arbitrar polêmicas? Não temos

alternativa, a não ser observar criteriosa e sistematicamente os usos.

No caso da norma culta/comuwtJstandard, os bons dicionários

e as boas gramáticas devem registrar e consolidar os usos obser-

vados. Não cabe a eles criar regras, mas - observando os usos -

cabe a eles descrever e consolidar os fatos dessa norma'

Tal consoÌidação não pode ser feita aleatoriamente ou arbi-

trariamente, como ftzeram, no passado, alguns gramáticos a pro-

pósito, por exemplo, da colocação pronominal.

Não interessa o gosto ou a preferência do gramático ou do

dicionarista. Nenhum gramático e nenhum dicionarista têm nas

mãos o poder constituinte sobre a língua. Nenhum deÌes pode

outorgar regras e normas a seu bel-prazer. Nenhum deles pode

transformar seus gostos e preferências em regras categóricas.

Todos e les - se que rem se r bons g ramá t i cos e bons

dicionaristas - têm de observar e registrar o uso, têm de acom-

panhar a dinâmica da iíngua na sua heterogeneidade e no seu

constante processo de mudança.

Como a Ìíngua é heterogênea e mutante, não nos deve causar

espanto se diferentes observadores registrarem - a propósito do

mesmo aspecto - usos diferentes. E comum encontrarmos essas

divergências de registro e de interpretação no interior dos nos-

sos bons instrumentos normativos.

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107l 0 ó NORMA CULTA BRASILBRA: DESATANDO ALGUNS NÔS I Coíos Alberlo FoÍoco

Vejamos, por exemplo, o caso do verbo adequar.

Se aÌguém quiser saber como ele é conjugado e for consultar o

dicionário Aurélio, vai encontrar lâ a informação de que este ver-

bo não é regular, mas defectivo. Isso quer dizer que ele só conhe-

ce, em sua conjugação, as formas arrizotônicas, ou seja, as formas

que têm o acento fora da raiz como adequamos, adequei, adequá'

vamos, adequasse ehc.

No entanto, se a pessoa for áo dicionário Houaiss, vai encon-

trar a informação de que o verbo adequar é regular, tendo - em

sua conjugação - todas as formas, inclusive as rizotônicas - aque-

las que têm o acento naraí2, como eu adéquo, ela adéqua, que eÌes

adéqüem, e assim por diante.

E há ainda a observação de que, modernamente, as formas

rizotônicas ocorrem também com o acento na vogal u, Assim, po-

demos dízer eu adéquo ou eu adequo, ela adéqua ou ela adequa,que eles adéqüem ou que eles adequem.

E agora" a quantas ficamos: o verbo adequar é regular ou defecüivo?

Acreditamos que a única resposta plausível neste caso é: se há

uma divergêncía como esta, se dois bons instrumentos normativos

fazem afirmações diferentes sobre o mesmo fenômeno, isso indica

que os dois usos são, de fato, correntes, isto é, estão ambos incluí-

dos na norma culta"/comum/standard que, como qualquer variedade

da língua, contém inerentemente fenômenos em variação.

Desse modo, podemos afirmar que o verbo adequar pode ser

usado como defectivo (não usamos as formas rizotônicas) ou como

reguÌar (usamos as formas rizotônicas). A primeira é a conjugação

clássica e a segunda, a moderna. Ambas correntes na norma culta/

comum/súa ndard brasileira.

Se não há papas nem tribunais supremos em matéria de lín-gua, será necessário estabelecer alguns princípios norteadorespara sustentar nossas afirmações sobre os fatos da língua, em es-pecial sobre os fatos da norma culta./comurnl standard.

AFINANDO CONCEÌTOS

O juízo mais seguro será sempre aquele fundado na observa-

ção sistemática do uso. Isso porque a língua está viva na boca e

nas mãos dos falantes.

No caso da norma culta/comum,/standard, se houver divergên-cia entre o uso dos falantes e o que estipulam os bons dicionários

e as boas gramáticas, deve prevalecer o uso.

Assim, embora nossos bons instrumentos normativos digam

ainda que não se deve começar o período com pronome átono, este

é o uso corrente na norma culta./comum,/standard falada brasilei-

ra. Logo, aquela proibição não tem, de fato, cabimento, mesmoque se queira restringi-la apenas à escrita: mesmo neste caso, boaparte de nossos escritores, jornalistas e acadêmicos não a seguem.

Se, por outro lado, houver divergência no interior dos bons

instrumentos normati como no caso do verbo adequar q:ue

comentamos acima - os dois registros são válidos.

Por fim, se houver conÍlito entre os bons instrumentos normativos

e a norma curta, deve valer sempre o que está estipulado naqueÌes

e não nesta. Ou seja, a norma curta, pela estreitezaefalta de funda-

mento de seus júzos categóricos, não deve valer nunca.

Um exemplo simples aqui é a regência do verbo assistir no

sentido de ver, de presenciar. Os manuais da norma curta üzem

que ele exige a preposição a (assistir a um filme). No entanto, os

nossos bons instrumentos normativos reconhecem como adequa-

do seu uso sem a preposição.

Acreditamos que com apenas estes três simples princípios -

o uso se sobrepõe sempre à norma gramaticali conflitos entre ins-

trumentos normativos são indicação de que os dois fatos perten-

cem à norma culta/comuml standard (cabe ao falante optar pelo

uso que lhe parecer melhor)i por fim, em conflitos entïe a norma

curta e a norma gramatical, deve prevaÌecer sempre esta - esta-

remos dando um passo significativo para construir e consolidar

uma cultura l ingüística realista, positiva, equil ibrada e que dê

sustentação adequada ao ensino e à difusão das práticas da cultu-

ra escrita e da norma culta/comumlstandard.