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Domnio Conexo

Etiologia das ms ocluses: perspectiva clnica (Parte I) fatores genticosEtiology of malocclusions: Clinical perspective (Part I) Genetic factors

Daniela G. Garib* Omar Gabriel da Silva Filho** Guilherme JanSon***

Resumo

Abstract

A etiologia das ms ocluses representa um tema de importncia relevante na especialidade Ortodontia. Primeiro, por cumprir um compromisso acadmico, a erudio fundamental do especialista. Segundo, por possibilitar ao ortodontista uma viso mais aprofundada, e por isso mais refinada, da origem do problema. O arsenal de informaes permite ao profissional ponderar sobre a possibilidade de preveno de uma determinada irregularidade, delinear seu prognstico de tratamento e a estabilidade da correo, bem como valorizar a sua manifestao provvel na rvore genealgica. O presente trabalho investe numa classificao simples e em Palavras-chave: Etiologia. M ocluso. Gentica.

consonncia com a prtica clnica, dividindo os fatores etiolgicos em dois grandes grupos: fatores genticos e fatores ambientais. oportuno comentar de antemo que, pela diversidade morfolgica, esses dois fatores podem estar presentes na mesma m ocluso, somando seus efeitos. Por motivos unicamente didticos, o texto abrangendo os dois fatores etiolgicos ser dividido em 3 partes. A parte I discute as caractersticas dentofaciais com marcante determinao gentica. A parte II destaca os fatores ambientais que provocam ms ocluses. A parte III retrata as fissuras labiopalatinas, cuja etiologia congrega fatores genticos e ambientais.

The etiology of malocclusions is a subject of relevant importance in Orthodontics. At first, it is important for meeting an academic commitment, the fundamental erudition of the specialist. Second, it is relevant for opening to the orthodontist the possibility of a broad and detailed view of the origin of the problem. The arsenal of information allows the professional to rationalize the possibility of prevention, the treatment prognosis and the stability of the correction, as well as to consider the manifestation in other members of the patients family. This study demonstrates a simple classification with consonance to the clinical practice, dividing the etiological factors into two large groups: Genetic factors and environmental factors. Keywords: Etiology. Malocclusion. Genetics.

It is appropriate to highlight that due to morphological diversity, these two factors may be present in the same malocclusion, mixing its effects. For didactical reasons, the article is divided into 3 parts. Part I discusses the dentofacial characteristics with preponderant genetic determination. Part II highlights the environmental factors which causes malocclusions. Part III discusses the etiology of cleft lip and palate, which associates both genetic and environmental factors.

* Professora doutora de Ortodontia, Hospital de Reabilitao de Anomalias Craniofaciais e Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de So Paulo. ** Ortodontista do Hospital de Reabilitao de Anomalias Craniofaciais, Universidade de So Paulo. Coordenador do Curso de Ortodontia Preventiva e Interceptiva da Sociedade de Promoo Social do Fissurado Labiopalatal (PROFIS). *** Professor titular e chefe do departamento de Odontopediatria, Ortodontia e Sade Coletiva da Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de So Paulo.

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Etiologia das ms ocluses: perspectiva clnica (Parte I) fatores genticos

Introduo A etiologia das ms ocluses constitui um captulo essencial da Ortodontia. Ao longo da histria da cincia ortodntica, foram apresentadas diversas verses para a etiologia desse problema. No final do sculo XIX, prevalecia o conceito de que a herana gentica representava o principal fator etiolgico das ms ocluses16. Esse conceito mudou a partir do sculo XX, com a viso de Edward Hartley Angle fortalecendo os fatores ambientais3. Angle3 admitia que as ms ocluses apresentavam causas exclusivamente locais. A prova de que no acreditava na gentica como determinante do problema que tratava os apinhamentos com mecnica expansionista, defendendo, em grande parte de sua vida, a abordagem no-extracionista. Angle devotou o captulo IV da stima edio de seu livro etiologia das ms ocluses. Nesse captulo, o pai da Ortodontia apenas enumerou as causas provveis, todas elas ambientais, sem a pretenso de classific-las, incluindo em sua lista a perda prematura de dentes decduos, a perda de dentes permanentes, a realizao de restauraes incorretas, a reteno prolongada de dentes decduos, a erupo tardia de dentes permanentes, dentes supranumerrios, transposies dentrias, o desuso, o freio labial anormal, hbitos bucais deletrios e a obstruo nasal. Contemporneo de Angle, nem por isso compartilhando das mesmas ideias, Case5 dedicou cinco captulos da parte II de seu livro para a descrio dos fatores etiolgicos das ms ocluses, ressaltando a importncia da hereditariedade. O europeu Korkhaus31, em 1939, dividiu os fatores etiolgicos em endgenos, de origem sistmica e exgenos, representados por fatores ambientais locais. Guardo13, na dcada de 1950, subdividiu os fatores etiolgicos em cinco grupos, incluindo os fatores hereditrios, congnitos, adquiridos gerais, locais e proximais. Esse ltimo grupo inclua os hbitos bucais. Salzmann27 classificou os fatores etiolgicos das ms ocluses em pr-natais e ps-natais. Na mesma poca, Graber11 organizou as causas das ms ocluses em fatores intrnsecos, ou locais; e fatores extrnsecos, ou gerais. Considerou como fatores intrnsecos aqueles de responsabilidade do cirurgio-dentista, como as anomalias dentrias, freios, perda prematura e reteno prolongada de dentes decduos, erupo tardia de dentes permanentes, ectopias, anquilose, crie e restauraes inadequadas. Como fatores extrnsecos ou gerais, categorizou a hereditariedade, as doenas congnitas, o meio ambiente, as doenas metablicas, os problemas dietticos, os hbitos, a postura e acidentes e traumatismos, dificilmente resolvidos pelo profissional. Moyers24 sugeriu uma equao ortodntica envolvendo os fatores etiolgicos (hereditariedade, causas

desenvolvimentais de origem desconhecida, traumatismos, agentes fsicos, hbitos, enfermidades sistmicas e locais, e m nutrio), sua poca (idade) e modo de atuao (contnuo ou intermitente), o tecido (neuromuscular, dente, osso e cartilagem, tecidos moles) e os resultados produzidos (funo inadequada, m ocluso ou displasias sseas). Proffit, Fields Jr e Sarver26, recentemente, dividiram os fatores etiolgicos em causas especficas (como a causa da acromegalia, por exemplo), influncia gentica e influncia ambiental. Essa breve reviso da literatura demonstra a ausncia de uma abordagem consensual sobre o tema, alm da dificuldade em se estabelecer critrios para uma categorizao prtica dos fatores etiolgicos. Muitas abordagens clssicas da etiologia das ms ocluses confundiram a origem do problema com a sua poca de manifestao. Anormalidades de origens completamente distintas genticas e ambientais porm manifestadas na mesma poca, como na vida intrauterina, foram algumas vezes classificadas num mesmo grupo, denominado alteraes congnitas ou pr-natais13,27. Nessa perspectiva agrupavam-se a microssomia hemifacial ocasionada pela talidomida com a disostose cleidocraniana ocasionada por mutao gnica. Adicionalmente, muitas classificaes confundiram os adjetivos hereditrio, gentico e congnito13,27. importante ressaltar que toda irregularidade hereditria apresenta carter gentico. No entanto, o contrrio no verdadeiro. Muitas alteraes genticas no so herdadas e sim determinadas por mutaes22. No raro, os termos gentico e congnito so usados erroneamente. Congnito diz respeito a alteraes visualizadas ao nascimento. Nem toda alterao congnita apresenta carter gentico. As malformaes ocasionadas por drogas teratognicas, apesar de congnitas, representam irregularidades ambientais e, portanto, no so transmitidas para os descendentes. Da mesma maneira, nem todo problema gentico pode ser diagnosticado ao nascimento, desmerecendo a qualificao de congnito. Nessa categoria, poderamos enumerar o Diabetes Mellitus do tipo I, a agenesia dentria e o Padro esqueltico III. Os equvocos abarcam, tambm, os fatores ambientais. Influncias ambientais podem agir na vida intrauterina e ocasionar alteraes congnitas, como deformidades causadas por medicamentos, ou podem atuar na vida psnatal, a exemplo do trauma ou da crie dentria, ou ainda em ambas as fases, como a m nutrio. Portanto, irregularidades ps-natais no deveriam ser empregadas como sinnimo de fatores ambientais ou adquiridos, uma vez que muitos deles apresentam base gentica. Observe o exemplo da agenesia dentria, includa dentre os fatores adquiridos locais na classificao de Guardo13, enquanto apresenta

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uma etiologia essencialmente gentica. Tampouco o termo adquirido adequa-se a representar exclusivamente os fatores ambientais, posto que mutaes gnicas podem ser adquiridas em vez de herdadas. Essa discusso inicial acerca da etiologia das ms ocluses, filosfica e bastante acadmica, tornou-se necessria para justificar a proposta do presente artigo: a busca de uma simplificao no agrupamento dos fatores que causam ms ocluses. O sistema de classificao do presente artigo, em fatores genticos e fatores ambientais, , sem dvida, mais simples, mais prtico, contemporneo, compatvel com as novas descobertas da gentica a partir do projeto Genoma Humano e est em consonncia com a prtica clnica. Numa perspectiva histrica, o conhecimento do sculo XXI reconhece que as caractersticas dentofaciais como morfologia, nmero, posio e cor dos dentes, bem como tamanho e posio das bases sseas estruturando o Padro esqueltico da face so definidas fortemente pela codificao gentica22,23. O ortodontista britnico Mossey22,23 afirmou que a chave para a determinao da etiologia da m ocluso e para definir o seu prognstico de tratamento depende da habilidade

de diferenciar o efeito relativo dos genes e do ambiente sobre as estruturas dentofaciais, em cada paciente. Resumindo, o presente artigo agrupa as causas das ms ocluses em fatores genticos e fatores ambientais. No raro, ms ocluses podem resultar da associao desses dois fatores etiolgicos. Em geral, quanto maior a influncia ambiental em detrimento da influncia gentica, maior a possibilidade de preveno, melhor o prognstico de correo e maiores as chances de estabilidade ps-tratamento, desde que a causa seja eliminada. A comparao entre a mordida aberta predominantemente dentoalveolar e a mordida aberta predominantemente esqueltica representa tima exemplificao (Fig. 1, 2). Apesar da influncia multifatorial de fatores genticos e ambientais concorrer para a etiologia de ambas, na primeira predomina a influncia ambiental representada pelos hbitos bucais deletrios , enquanto na ltima predomina a influncia gentica, vinculada ao padro de crescimento facial predominantemente vertical. Dessa maneira, a mordida aberta dentoalveolar apresenta maior possibilidade de preveno, melhor prognstico de tratamento e maior estabilidade ps-tratamento, desde que os hbitos sejam abandonados.

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Figura 1 M ocluso de Classe I, com mordida aberta anterior. O aspecto circular e a restrio regio dos incisivos evoca a suco como etiologia e confere mordida aberta a conotao de dentoalveolar. A correo envolveu mecnica ortodntica com extruso dos incisivos e a eliminao do hbito.

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Figura 2 M ocluso de Classe III, com mordida aberta anterior. O aspecto mais difuso e retangular da mordida aberta anterior evoca etiologia relacionada com o crescimento facial. A participao da face na determinao da mordida aberta anterior confere a conotao de esqueltica. Mesmo na dentadura decdua, o tratamento no evoluiu bem e a mordida aberta anterior progrediu para a dentadura mista. A correo deve ser planejada com cirurgia ortogntica.

A importncia do reconhecimento da gentica ultrapassa o limite das intervenes ortodnticas. Elucida, por exemplo, a possibilidade de transmisso de determinada caracterstica aos descendentes. Quanto maior o papel da gentica na determinao de uma irregularidade dentofacial, maior a chance de observarmos a incidncia dessa caracterstica aumentada nos descendentes de pacientes afetados. Todas as ms ocluses representam interaes da gentica e do ambiente. Seria errneo acreditar que as dimenses e a morfologia craniofacial so determinadas exclusivamente pela gentica ou por fatores ambientais 22,23. A face e a dentio so influenciadas pela complexa interao de ambos, e cada m ocluso ocupa uma determinada posio no espectro gene/ambiente. Portanto, seria correto pronunciar que determinada m ocluso apresenta etiologia eminentemente gentica ou etiologia essencialmente ambiental, caracterizando a preponderncia do gentipo ou do meio ambiente na determinao de cada m ocluso. Esse entendimento apresenta um reflexo direto em uma das mais importantes preocupaes da Ortodontia: a determinao da extenso em que uma determinada m ocluso pode ser influenciada pela interveno teraputica ambiental, ou seja, o prognstico da correo ortodntica. Dessa maneira, o presente artigo prope-se a discutir os fatores etiolgicos das ms ocluses sob a perspectiva das influncias genticas e ambientais.

PArtE I - FAtorES GEntICoS resumo Os fatores genticos no so prevenidos, simplesmente instalam-se como fatalidade biolgica. Podem ser atenuados com interveno ortodntica, ortopdica e/ou cirrgica, na dependncia da localizao, extenso e gravidade da m ocluso. Tais fatores so aqui apresentados nos seguintes tpicos: Tipo facial, Padro esqueltico sagital da face, Discrepncias dente-osso, Anomalias dentrias, Infraocluso de molares decduos e Anomalias craniofaciais.

o CdIGo GEntICo E A M oCLuSo O cdigo gentico humano, ou genoma humano, corresponde ao conjunto de cerca de 27.000 genes distribudos nos 23 pares de cromossomos contidos em cada uma das clulas humanas diploides. Esses genes se organizam numa estrutura de dupla hlice formada por 4 bases qumicas nitrogenadas que se unem sempre aos pares: A-T e C-G (adenina e timina, citosina e guanina). Na linguagem da Gentica, o gene um segmento de um cromossomo ao qual corresponde um cdigo distinto: uma informao para produzir uma determinada protena ou controlar uma caracterstica como, por exemplo, a cor dos olhos. Portanto, o cdigo gentico humano contm a informao bsica

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necessria para o desenvolvimento fsico e psquico de um ser humano, sendo responsvel pela aparncia e personalidade, bem como pelo risco de doenas. Nesse contexto, o cdigo gentico explica muito da morfologia dentofacial. No ntimo da clula, define-se o tamanho, a forma e posio dentria, bem como o tamanho relativo e a disposio espacial dos ossos faciais, maxila e mandbula, na face. A constituio gnica de um indivduo conhecida como gentipo, enquanto as caractersticas manifestas so conhecidas como fentipo22. O sequenciamento do genoma humano, comemorado em 2001, foi realizado pelo Projeto Genoma Humano, desenvolvido por mais de cinco mil cientistas do mundo inteiro, possibilitando avanos expressivos na Gentica e na Medicina. O cdigo gentico de cada ser humano depende da herana e das mutaes gnicas22. As mutaes so caracterizadas por alteraes que ocorrem no gentipo aps a fertilizao e, portanto, no so herdadas, porm transmitidas aos descendentes a partir daquela gerao. Quando as caractersticas qualitativas, como cor dos olhos ou grupo sanguneo, so determinadas por um nico par de genes, apresentam uma herana que segue o padro mendeliano22. Nesse caso, se a manifestao dessa caracterstica imposta pela presena de apenas um gene, independentemente do gene alelo (ou par), o modo de transmisso considerado autossmico dominante. Se houver necessidade de dois genes para a expresso de uma determinada caracterstica, a transmisso considerada autossmica recessiva22. A herana recessiva e ligada ao gnero (cromossomo X) tambm segue um padro de transmisso mendeliano e explica, por exemplo, a manifestao da hemofilia e da calvcie, afetando somente o gnero masculino. As caractersticas quantitativas, tais como a altura corporal e as dimenses dos dentes e ossos faciais, so definidas pela interao de diversos pares de genes. Portanto, so caractersticas transmitidas pela herana polignica22. A herana polignica, contrariamente herana mendeliana autossmica ou ligada ao gnero, sofre influncia ambiental. A exposio a certos fatores ambientais pode potencializar a expresso de caractersticas reguladas por poligenes22. A morfologia craniofacial, as ms ocluses, certas anomalias dentrias e a fissura labiopalatina representam caractersticas moduladas pelo padro de herana polignica. Interessante atentar para o comentrio de Mossey22 de que a maioria das ms ocluses apresenta herana multifatorial contnua: As ms ocluses no deveriam ser consideradas como anormais ou doenas, mas sim variaes na forma normal de ocluso... considerando que h uma enorme escala de variao morfolgica para essa caracterstica.

A evidncia de que determinada irregularidade dentofacial apresenta supremacia gentica em sua etiologia provm de estudos em famlias e em gmeos23. Quando uma determinada irregularidade mostra uma prevalncia aumentada em famlias de pacientes afetados, comparada s prevalncias esperadas para a populao em geral, credita-se gentica uma influncia importante na etiologia do problema. O prognatismo mandibular da famlia imperial austro-hngara Habsburg representa o mais clssico exemplo de caracterstica gentica de interesse ortodntico, em humanos, transmitida por sucessivas geraes. Atualmente, a leitura do cdigo gentico pode isolar genes mutantes em famlias, desde que diversos membros expressem a mesma irregularidade. Recentes avanos no campo da Biologia Molecular e da Gentica humana tm influenciado significativamente os estudos da morfologia dentofacial22. Gmeos monozigticos compartilham cdigos genticos muito semelhantes. Portanto, as caractersticas geneticamente definidas expressam-se em ambos os gmeos monozigticos de maneira semelhante. Quando se constata uma alta concordncia para uma determinada irregularidade, em pares de gmeos homozigticos, conclui-se que a gentica consiste um fator importante na etiologia de tal anormalidade. Diferentemente, gmeos heterozigticos, por apresentarem gentipos distintos, manifestam baixo ndice de concordncia para a mesma irregularidade22. As caractersticas dentofaciais com etiologia gentica preponderante e de interesse para o ortodontista sero expostas obedecendo a seguinte ordem: tipo facial, padro esqueltico sagital da face, discrepncias dente-osso, diversos tipos de anomalias dentrias, infraocluso de molares decduos, e grande parte das anomalias craniofaciais. o tipo Facial Ao analisar o paciente sob uma perspectiva frontal, reconhecemos trs tipos faciais distintos, de acordo com a proporo entre a altura e a largura da face: braquifacial, mesofacial e dolicofacial (Fig. 3). Os pacientes mesofaciais apresentam a distncia bizigomtica proporcional altura facial, quantificada desde o nsio at o mento. Os pacientes dolicofaciais apresentam predominncia da altura facial em relao largura. De modo oposto, os braquifaciais exibem uma face mais larga do que longa. Observam-se diferenas tambm na vista lateral, com os braquifaciais mostrando uma maior profundidade da face comparativamente aos dolicofacais. As denominaes braquifacial, mesofacial e dolicofacial originam-se da antropologia e implicam no somente na morfologia da face, mas tambm do crnio4,7. Diferentes etnias demonstram predominncia de distintos

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Figura 3 Tipos faciais: A, B) mesofacial, C, D) dolicofacial e E, F) braquifacial.

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tipos faciais: indivduos de origem anglo-saxnica apresentam morfologia predominantemente dolicofacial, enquanto, dentre os asiticos, prevalece o tipo braquifacial4. O tipo facial consiste em uma caracterstica predominantemente gentica, sobre a qual o ambiente e as mecnicas ortopdicas exercem influncia mnima23. A Ortopedia Facial e a Ortodontia no so capazes de alterar o tipo facial herdado1,22,30. Por exemplo, a utilizao de mentoneira vertical no transforma o tipo dolicofacial em mesofacial. As medidas cefalomtricas que expressam o padro de crescimento facial mostram-se inertes aos efeitos de aparelhos ortopdicos ou ortodnticos, como registram a infinidade de estudos cefalomtricos publicados nas ltimas dcadas. Os hbitos bucais, como a respirao bucal crnica, representativos de influncias ambientais podem at acentuar um padro vertical de crescimento facial em termos numricos, porm inexistem evidncias de que essas alteraes alcancem magnitude suficiente para alterar o tipo facial determinado geneticamente (a discusso sobre esse tema ser enfatizada na parte II desse artigo). Portanto, o cdigo gentico mostra-se soberano na definio da morfologia facial frontal, e a inteno de alterla com aparelhos ortodnticos ou ortopdicos traduz metas inatingveis. Do ponto de vista gentico, mais fcil admitir que faces com predominncia vertical favorecem a respirao bucal do que vice-versa. Nas faces com predominncia vertical, a largura e a profundidade da faringe so menores, favorecendo a reduo da permeabilidade area. A eliminao de obstrues nasais e/ou faringeanas torna a via area permevel, mudando a funo respiratria de bucal para mista, mas no consegue mudana facial com impacto clnico. o Padro Esqueltico Sagital da Face A morfologia do perfil facial apresenta uma forte determinao gentica. Uma slida evidncia da influncia morfogentica sobre a arquitetura facial consiste na observao de que as diferentes etnias apresentam caractersticas especficas que as diferenciam. Os negros apresentam maior protruso bimaxilar comparados aos brancos, enquanto os asiticos apresentam um grau de protruso intermedirio entre o dos brancos e negros. Os padres esqueltico-faciais I, II e III tambm mostram uma determinao predominantemente gentica. A morfologia facial estabelece-se precocemente, sendo possvel o seu diagnstico desde a dentadura decdua e, em regra, o crescimento facial preserva o padro esqueltico. Assim, o comportamento mdio permite afirmar que, uma vez Padro esqueltico I, sempre Padro I. Essa mxima estendese aos Padres esquelticos II e III, desde que no tratados.

Seguindo uma herana polignica, os distintos padres esquelticos sagitais (I, II e III) mostram prevalncias aumentadas em famlias de pacientes afetados23. A hiptese de que o aleitamento materno contribui positivamente para o crescimento mandibular ps-natal sugerida na literatura, mas carece de comprovao cientfica20. Essa premissa salienta a influncia ambiental no crescimento e ignora o papel da gentica na determinao do padro facial. A fim de que essa hiptese ganhasse comprovao, estudos deveriam atestar que crianas que no foram amamentadas apresentam prevalncia aumentada de deficincia mandibular se comparadas a crianas que foram amamentadas por um longo perodo de tempo. Ser que crianas que foram abandonadas ao nascimento e privadas do aleitamento materno apresentam uma prevalncia de deficincia mandibular mais elevada do que a populao em geral? Essas evidncias inexistem na literatura. Um estudo epidemiolgico, com crianas na fase da dentadura mista, no identificou diferenas significativas na prevalncia de Padro esqueltico II por deficincia mandibular entre crianas com histrico de amamentao igual ou superior a seis meses, quando comparada de crianas no-amamentadas como recomenda a Organizao Mundial de Sade20. Tais resultados reforam a preponderncia do cdigo gentico sobre o fator ambiental na determinao da morfologia facial. Observou-se um ndice de correlao entre pais e filhos para a m ocluso de Classe II, diviso 1, maior do que de pares da populao selecionados aleatoriamente23 (Fig. 4). Estudos prvios documentaram a ocorrncia familial da m ocluso de Classe II, diviso 2, incluindo estudos em gmeos e trigmeos e em linhagens familiares23. Em um estudo clnico e cefalomtrico com 114 casos de m ocluso de Classe II, diviso 2 sendo 48 pares de gmeos e seis conjuntos de trigmeos , dos pares monozigticos, 100% demonstraram concordncia para a m ocluso de Classe II, diviso 2; enquanto aproximadamente 90% dos gmeos dizigticos mostravam-se discordantes23. Um rico conjunto de estudos tambm assinala o papel da gentica na etiologia do Padro esqueltico III. A partir de uma detalhada anlise genealgica da dinastia Habsburg, concluiu-se que o prognatismo mandibular foi transmitido como uma herana autossmica dominante23. Numa fase prvia inveno da fotografia, as pinturas de grandes mestres denunciaram que o prognatismo mandibular constitua caracterstica que se repetia na famlia real austro-hngara (Fig. 5). Na dcada de 60, Susuki29 estudou 243 famlias de pacientes Classe III e encontrou uma prevalncia de 34% dessa m ocluso dentre os familiares, em comparao a uma prevalncia de 7% de Classe III na populao local em geral.

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Figura 4 Padro esqueltico e m ocluso de Classe II: me (A F) e filho (G L).

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Figura 5 Famlia real austro-hngara de Habsburg. As pinturas ilustram quatro geraes de monarcas demonstrando Padro esqueltico Classe III. Da esquerda para a direita: Felipe II da Espanha, Felipe III da Espanha, Felipe IV da Espanha e Carlos II (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Philip_III_of_Spain).

Relatou que filhos de mes ou pais prognatas apresentam 20% de chance de mostrar o prognatismo mandibular, enquanto filhos de mes e pais prognatas apresentam o dobro de chance de exibir um prognatismo mandibular (40%). Um estudo europeu em pares de gmeos apontou que a concordncia para a m ocluso de Classe III em gmeos monozigticos mostrava-se seis vezes maior se comparada aos pares de gmeos dizigticos23. Litton et al.18 descreveram uma transmisso multifatorial e polignica da Classe III e sugeriram que diferentes modos de transmisso podem operar em diferentes famlias ou populaes. Recentemente, no Brasil, Cruz et al.6 estudaram famlias de prognatas e sugeriram que o prognatismo apresenta uma herana multifatorial, porm com um gene principal autossmico dominante. Outra fonte de evidncia que refora o papel da herana na determinao da morfologia craniofacial a constatao de que aparelhos ortodnticos e ortopdicos no exercem influncia significativa em longo prazo sobre as bases apicais1,26. Aparelhos ortopdicos representam uma forma de interferncia ambiental sobre o crescimento facial. Estudos longitudinais sobre o tratamento da m ocluso de Classe II com Ortopedia Funcional dos Maxilares mostraram que os aparelhos podem induzir apenas um efeito temporrio na relao maxilomandibular1,26 (Fig. 6). Aps a remoo do aparelho, a face tende a retomar o seu padro original de crescimento e o efeito esqueltico do tratamento mostra instabilidade, paulatinamente, no perodo que sucede o tratamento. Uma vasta reviso da literatura concluiu que ainda existe pouca evidncia cientfica de que o ortodontista seja capaz de alterar

permanentemente, na criana em crescimento, o padro do esqueleto facial herdado1. Investigaes longitudinais do tratamento do prognatismo mandibular com mentoneira apontam para a mesma direo. Apesar do perodo de tratamento mostrar alguma restrio da velocidade de alongamento mandibular, aps a remoo da mentoneira o crescimento da mandbula volta a se comportar como em grupos controles sem tratamento, denotando que a gentica retoma a batuta que rege a melodia do crescimento. A exceo constatada se a mentoneira for utilizada at o final do crescimento, quando haver diferena em relao ao grupo controle. Atualmente, acredita-se que o genoma expressa-se primariamente nas atividades neuromusculares e em menor grau nas cartilagens26. O crescimento sutural seria apenas responsivo ao comando proveniente dos msculos e cartilagens. Por esse motivo, a manipulao ortopdica da mandbula ainda mais restrita do que a influncia dos aparelhos sobre a maxila. Muitos poderiam atribuir essa diferena apenas ao crescimento sutural intramembranoso da maxila versus o crescimento condilar endocondral da mandbula. Porm, considerando-se a importncia da musculatura no crescimento facial, mais provvel que foras ortopdicas devem sobrepujar a musculatura mastigatria, um fator restritivo significativamente mais envolvido na mandbula do que na maxila26. Diferentemente das bases apicais, a regio dentoalveolar mostra-se muito vulnervel a influncias ambientais26. A incompetncia labial, os hbitos de suco e a respirao bucal podem agravar o trespasse horizontal na m ocluso

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Figura 6A - 6J Tratamento da m ocluso de Classe II com aparelho ortopdico funcional (associado ao aparelho extrabucal cervical). O tratamento foi eficaz em corrigir a m ocluso de Classe II. No entanto, na anlise facial, no ocorreu mudana significativa na expresso da mandbula no sentido anteroposterior (A E: fotografias iniciais; F J: fotografias finais).

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Figura 6k - 6O Cinco anos aps a finalizao do tratamento.

de Classe II, diviso 1, ao ocasionar uma inclinao adicional dos incisivos superiores para vestibular e, no caso do hbito de suco de dedo, uma retroinclinao dos incisivos inferiores. Crianas com hbitos de suco prolongada mostram prevalncia suavemente aumentada de m ocluso de Classe II, comparada de crianas sem hbitos20. No entanto, a influncia dos hbitos parece restringir-se regio dentoalveolar, uma vez que a prevalncia de Padro esqueltico II no difere entre pacientes com e sem hbito prolongado de suco de dedo e chupeta20. A prpria possibilidade de realizar compensaes dentrias nas ms ocluses esquelticas representa prova irrefutvel da grande vulnerabilidade da regio dentoalveolar a fatores ambientais (Fig. 7). O ortodontista pode alterar de maneira previsvel a morfologia dentoalveolar por meio da movimentao dentria induzida ou mesmo por meio de aparelhos ortopdicos. A distino entre o comportamento das bases sseas e da regio dentoalveolar, descrita nesse tpico, elucida de forma realista as possibilidades e limitaes da especialidade inaugurada por Edward H. Angle.

As discrepncias dente-osso A dimenso e, ocasionalmente, a morfologia das bases maxilares seguem predominantemente um comando gentico. Estudos em gmeos demonstraram que o tamanho das coroas dentrias tambm se mostra fortemente determinado pela gentica23. Se os tamanhos dos dentes e dos maxilares mostram-se subservientes ao genoma, as discrepncias dente-osso, incluindo o apinhamento e o espaamento dentrio (Fig. 8), sofrem grande influncia gentica. Num estudo clssico, Lundstrom19 observou um elevado grau de concordncia entre gmeos homozigticos para o apinhamento e para o espaamento dentrio. As caractersticas quantitativas como as dimenses dentrias e o comprimento das bases sseas seguem uma herana polignica22,23. Portanto, errnea a noo de que pacientes com apinhamento dos incisivos permanentes herdaram dentes grandes dos pais e maxilares pequenos da me. Na realidade, o tamanho dos dentes determinado por uma mirade de genes provenientes do pai e da me,

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Figura 7 Tratamento ortodntico compensatrio da m ocluso de Classe III com elsticos intermaxilares. Nota-se que a m ocluso foi corrigida, com manuteno das caractersticas faciais originais do padro esqueltico III (A F: fotografias iniciais; G M: fotografias finais).

L

M

A

B

Figura 8 Discrepncia dente-osso, apinhamento (A) e espaamento (B) apresentam etiologia eminentemente gentica.

assim como o tamanho dos maxilares. Dado o carter gentico do apinhamento e do espaamento, essas caractersticas oclusais no so passveis de preveno, podendo apenas ser corrigidas. No apinhamento gentico, o tratamento voltado para a reduo da massa dentria28. A proposta compatibilizar a massa dentria com o permetro do arco alveolar. A morfologia dos arcos alveolares, portanto, considerada normal. No entanto, o apinhamento pode apresentar carter ambiental28. Nesse caso, a irregularidade dos dentes reflete uma discrepncia entre a massa dentria e a morfologia dos arcos alveolares. A atresia das arcadas dentrias est acarretando a irregularidade na disposio dos dentes ao longo do rebordo alveolar (Fig. 9). O tratamento indicado, ao contrrio do apinhamento gentico, a mecnica transversal para expanso dos arcos alveolares28. O apinhamento ambiental pode se relacionar com a perda precoce de dentes decduos ou de dentes permanentes28,30 (Fig. 9). Nesses casos, o apinhamento pode ser prevenido com a utilizao dos mantenedores de espao. Em sntese, o apinhamento pode ter carter gentico ou ambiental e isso interfere no planejamento ortodntico. Aqui cabe a discusso sobre um diastema muito especfico, aquele localizado entre os incisivos centrais superiores na dentadura permanente, e sua relao com o freio labial. O freio labial superior consiste em um cordo de tecido fibroso, com formato triangular. No recm-nascido, o freio estendese desde o lbio superior at a papila incisiva, cruzando e sulcando o rebordo alveolar. Durante o desenvolvimento da

ocluso, a insero fibrosa do freio assume uma nova posio, prxima ao limite mucogengival por vestibular. Essa alterao mostra-se gradativa e relaciona-se ao desenvolvimento vertical do rebordo alveolar e compresso ocasionada pela erupo dos dentes anterossuperiores2. Nas dentaduras decdua e mista, o diastema interincisivos centrais pode representar caracterstica normal e fisiolgica. Ao adentrar na dentadura permanente, esse diastema eliminado, em condies de normalidade, pela influncia da erupo dos incisivos laterais e caninos superiores. No entanto, em uma pequena porcentagem da populao, o diastema interincisivos centrais permanece na dentadura permanente completa e pode ser explicado tanto por fatores genticos como ambientais, tais como: agenesia (Fig. 10A) ou microdontia (Fig. 10B) dos incisivos laterais superiores; discrepncia dente-osso positiva (Fig. 10C); presena de supranumerrios mesiodens e protruso dentria provocada por hbitos de suco2 (Fig. 10D). Com a manuteno do diastema devido a qualquer um dos fatores etiolgicos listados, o freio labial superior pode manter-se inserido inferiormente, dificultando a identificao da real participao da insero fibrosa na persistncia desse espao interdentrio. Surge, ento, a discusso semelhante do ovo e da galinha: quem veio primeiro? Atentando fisiologia normal do freio labial, tudo indica que o freio represente a consequncia, e no a causa, do diastema interincisivos centrais superiores. Poderamos culpar o freio pela persistncia do diastema interincisivos centrais superiores apenas diante da ausncia das demais causas reconhecidas.

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Figura 9 Apinhamamento dentrio de carter ambiental: A E) na regio dos incisivos superiores, em um paciente com atresia maxilar ocasionada por hbitos bucais deletrios; F J) na regio posterior, ocasionado pela perda precoce de dentes decduos.

As Anomalias dentrias Diversas investigaes sugeriram uma base gentica e hereditria na etiologia de anomalias dentrias de nmero, tamanho, posio e poca de desenvolvimento9,10,14,15,17,21. Tais evidncias provm de estudos em famlias, em gmeos monozigticos e da observao de frequentes associaes entre as anomalias dentrias. Certas anomalias dentrias aparecem frequentemente associadas em um mesmo paciente, mais do que se esperaria ao acaso. Isso se explica porque um mesmo defeito gentico pode originar

diferentes manifestaes ou fentipos, incluindo agenesias, microdontias, ectopias e atraso no desenvolvimento. De uma maneira simplista, poderamos dizer que um gene defeituoso ou mutante pode se expressar diversamente em diferentes dentes permanentes. Vale aqui a teoria do gene pleiotrpico, aquele responsvel por mais de uma caracterstica morfolgica e/ou funcional. Dessa maneira, um paciente que demonstra uma determinada anomalia dentria, como a agenesia ou a microdontia, apresenta mais chances de desenvolver outras anomalias dentrias no transcorrer do desenvolvimento da ocluso8.

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Figura 10 O diastema interincisivos centrais superiores na dentadura permanente representa irregularidade e pode ser ocasionado por: A) agenesia dos incisivos laterais superiores; B) microdontia dos incisivos laterais superiores; C) discrepncia dente-osso positiva com diastemas generalizados em ambas as arcadas; D) hbito persistente de suco no-nutritiva.A B

C

D

Grahnen12 conduziu um estudo em crianas com agenesias dentrias e verificou que 50% dos irmos e parentes tambm possuam agenesias, uma alta prevalncia comparada frequncia esperada para a populao em geral. Um estudo com gmeos achou uma alta concordncia para a agenesia dentria entre pares de gmeos homozigticos, enquanto os pares de gmeos heterozigticos eram discordantes21. A gentica molecular revelou mutaes nos genes MSX1, PAX9, AXIN2 e EDA em famlias cujos membros apresentavam mltiplas agenesias dentrias22. Os genes homeobox apresentam particular influncia sobre o desenvolvimento dentrio e, portanto, sobre a Ortodontia. Os genes homeobox msculo-especfico MSX-1 e MSX-2 parecem estar envolvidos na interao epitlio-mesnquima, influenciam o desenvolvimento craniofacial e, principalmente, a iniciao, a posio e o desenvolvimento dos germes dentrios. O gene homeobox msculo-especfico (MSX1) apresenta forte expresso no mesnquima dentrio nas fases da odontognese de iniciao, casquete e campnula22. O bloqueio do gene MSX1 ocasiona, entre outros defeitos, uma falha completa no desenvolvimento dentrio no estgio de iniciao do germe22. Segundo as Leis Evolucionistas de Darwin, fatores ambientais particulares garantem a permanncia dos genes mais favorveis, determinando uma seleo natural. No caso da agenesia dentria, a diminuio do nmero de dentes no compromete a sobrevivncia da espcie humana diante do atual tipo de dieta. Isso favorece que esses genes mutantes sejam transmitidos aos descendentes, perpetuando o fentipo da agenesia dentria de gerao a gerao. A microdontia, o atraso eruptivo e alguns tipos de ectopia parecem representar uma expresso parcial dos mesmos

genes que determinam a agenesia dentria, uma vez que a prevalncia dessas anomalias mostra-se aumentada em pacientes com agenesias8,9. Demonstrou-se que a agenesia e a reduo do tamanho dos dentes so, de fato, controladas pelos mesmos loci genticos ou por loci genticos relacionados23. A associao entre a agenesia unilateral do incisivo lateral superior e a microdontia do incisivo contralateral, frequentemente observada na rotina clnica, constitui uma clssica exemplificao. Aproximadamente 20% dos pacientes com agenesia de segundos pr-molares tambm apresentam microdontia dos incisivos laterais superiores 9 (Fig. 11). Em regra, pacientes com agenesia costumam mostrar uma reduo generalizada no tamanho dentrio e, diante de agenesias mltiplas, a reduo do tamanho dentrio ainda mais marcante 10. O atraso no desenvolvimento dentrio, traduzido por uma marcante assincronia entre a idade cronolgica e a idade dentria, parece representar outra expresso fenotpica do mesmo gentipo que define as agenesias dentrias. Pacientes com agenesias geralmente alcanam a maturidade oclusal mais tardiamente. Os segundos pr-molares, especificamente, podem mostrar atrasos eruptivos acentuados em pacientes com agenesia8. Ademais, reconhece-se o papel da gentica na etiologia de determinadas ectopias dentrias, como as transposies dentrias entre canino e primeiro pr-molar superior, canino e incisivo lateral inferior, reteno dos caninos superiores por palatino e erupo ectpica dos primeiros molares superiores (Fig. 12). Tais ectopias mostram uma prevalncia aumentada na famlia de pacientes afetados e frequentemente se associam com as agenesias dentrias8.

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Os dentes supranumerrios tambm parecem ser geneticamente determinados. Essa anomalia encontra-se frequentemente presente em pais e irmos de pacientes portadores, apesar da herana no seguir um padro mendeliano simples23. Evidncias verificadas em gmeos com supranumerrios tambm sustentam essa hiptese15. No entanto, importante ressaltar que as agenesias dentrias e os supranumerrios apresentam uma origem gentica distinta ou independente, uma vez que no se verifica associaes frequentes entre essas anomalias9. Esse fato apresenta coerncia, considerando-se que a agenesia dentria constitui uma

anomalia hipoplasiante contrariamente aos supranumerrios, que representam anomalias hiperplasiantes. Os dentes supranumerrios tornam-se particularmente preocupantes para o ortodontista quando funcionam como obstculo para a erupo dos dentes numerrios. O movimento dentrio em pacientes com indicao de tratamento ortodntico pode tambm ser impedido pela presena de dentes supranumerrios no-irrompidos (Fig. 13A). Quando conseguem irromper na arcada dentria, os supranumerrios tendem a criar uma discrepncia dente-osso negativa e um comprometimento esttico (Fig. 13B).

Figura 11 Radiografia panormica ilustrando a associao entre a agenesia de segundos prmolares e a microdontia dos incisivos laterais superiores.

A

B

Figura 12 Ectopias dentrias de carter gentico: A) canino superior deslocado para palatino (23) e distoangulao do segundo pr-molar inferior (35); B) transposio entre canino e primeiro prmolar superior (lado direito); C) erupo ectpica do incisivo lateral inferior (lado direito); D) erupo ectpica do primeiro molar superior esquerdo.

C

D

A

B

Figura 13 Dentes supranumerrios: retido (A) e irrompido na arcada dentria (B).

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Infraocluso de molares decduos A infraocluso retrata a condio clnica em que um dente, a qualquer momento durante ou depois da sua completa erupo, no consegue manter sua altura no plano oclusal, distanciando-se paulatinamente dos dentes antagonistas e posicionando-se apicalmente em relao aos dentes contguos. Essa alterao no nvel oclusal constitui trao revelador da anquilose, processo no qual ocorre o sumio do ligamento periodontal devido fuso do cemento e/ou dentina com o osso alveolar, deixando o dente em questo paralisado enquanto os demais dentes emergem junto com o osso alveolar em direo oclusal, como parte do processo contnuo de erupo. Em sntese, o dente conserva o nvel oclusal de antes da anquilose, enquanto os outros dentes acompanham o crescimento alveolar vertical normal. A inrcia provocada pela anquilose explica o carter progressivo da infraocluso17. A infraocluso dos molares decduos acomete aproximadamente 8,9% das crianas17. Uma sequncia de evidncias refora a influncia da gentica na determinao da infraocluso de molares decduos. Kurol17 verificou que a prevalncia da infraocluso mostra-se bastante aumentada em irmos de pacientes afetados, de modo que a prevalncia dessa irregularidade alcana quase 20%, ou seja, o

dobro do esperado para a populao em geral. Constatou-se, ainda, a associao na ocorrncia da infraocluso de molares decduos com outras anomalias dentrias, como a erupo ectpica dos primeiros molares permanentes superiores, erupo ectpica dos caninos permanentes superiores e com a agenesia de segundos pr-molares8. Pacientes com infraocluso de molares decduos apresentam uma prevalncia significativamente aumentada de agenesia de segundos pr-molares (14%), incisivo lateral conoide (13%), erupo ectpica dos primeiros molares permanentes (18%) e ectopia dos caninos superiores para palatino (14%)8. Alm disso, verificou-se que pacientes selecionados por uma dessas anomalias dentrias tambm apresentam prevalncia aumentada de infraocluso de molares decduos8. Garib, Peck e Gomes9 verificaram que 25% dos pacientes com agenesia de segundos pr-molares apresentaram infraocluso dos molares decduos. Essa prevalncia mostrou-se significativamente aumentada em relao ao esperado para a populao em geral (8,9%). Isso quer dizer que pacientes com agenesia de segundos pr-molares apresentam trs vezes mais risco de desenvolver a infraocluso do que o restante da populao em geral. Finalmente, Helpin e Duncan14 verificaram um alto ndice de concordncia para a infraocluso em pares de gmeos homozigticos (Fig. 14).

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Figura 14 Gmeas homozigticas apresentando infraocluso dos molares decduos, bilateralmente, em ambas as arcadas dentrias.

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Anomalias Craniofaciais As anomalias craniofaciais com base gentica so ocasionadas por alteraes cromossmicas, monognicas ou polignicas. As anomalias de origem cromossmica so bem representadas pela Sndrome de Down, ocasionada pela trissomia do cromossomo 21. Isso significa que o paciente com Sndrome de Down apresenta 47 cromossomos, em vez de 46. Como exemplos de anomalias craniofaciais monognicas de interesse para o ortodontista, destacam-se a disostose cleidocraniana e a displasia ectodrmica, ocasionadas pela mutao de um nico par de genes. Algumas sndromes so determinadas pela mutao de um gene pleiotrpico, gene responsvel por mais de uma caracterstica morfolgica e/ou funcional. Como esse gene influencia diversas caractersticas, a sua mutao, apesar de produzir um efeito ou modificao simples em nvel molecular, quase sempre resulta numa sequncia de anormalidades genticas. Outras anomalias, como por exemplo as fissuras labiopalatinas, representam malformaes craniofaciais de origem polignica, um grupo de genes atuando para determinar o fentipo, interagindo com fatores ambientais. Por isso sua etiologia considerada multifatorial, isso : uma congregao de genes com interaes ambientais determina o fentipo final22.

A disostose cleidocraniana consiste numa anomalia rara associada com agenesia ou hipoplasia clavicular, fechamento tardio das fontanelas cranianas, presena de mltiplos dentes supranumerrios, atraso indeterminado na esfoliao dos dentes decduos e reteno de dentes permanentes (Fig. 15). A prevalncia da disostose cleidocraniana equivale a uma em um milho, sem predileo por gnero ou grupo tnico. Essa desordem ocasionada pela mutao no gene CBFA1, localizado no brao curto do cromossomo 6p2125. Diante desse defeito gnico, define-se uma deficincia na troca de informaes entre o peristeo e os condrcitos, essencial para a formao ssea endocondral25. A displasia ectodrmica representa uma desordem heterognea com muitos tipos clinicamente distintos, e caracteriza-se pela trade hipotricose (pouco cabelo), hipohidratao (falta de glndulas sudorparas) e hipodontia (reduzido nmero de dentes). A hipodontia na displasia ectodrmica varia desde poucos dentes ausentes at a completa anodontia; e a forma e o tamanho dentrio tambm podem ser afetados22. A displasia ectodrmica apresenta etiologia gentica e pode advir de mutaes nos genes EDA, EDAR ou EDARADD. No que se refere etiologia das fissuras labiopalatinas, tanto o background gentico quanto as influncias ambientais mostram-se expressivos. Portanto, essa anomalia craniofacial merecer uma discusso especial na parte III dessa sequncia de artigos.

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Figura 15 Paciente do gnero masculino, sete anos de idade, com disostose cleidocraniana.

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enDeReo paRa coRResponDncia Daniela G. Garib Faculdade de Odontologia de Bauru-USP Al. Octvio Pinheiro Brisola 9-75 17.012-901 Bauru/SP E-mail: [email protected]

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