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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA DOUTORADO EM FILOSOFIA

TICACOMOMETAFSICADA ALTERIDADEEMLEVINAS

JOS TADEU BATISTA DE SOUZA

PORTO ALEGRE/2007

JOS TADEU BATISTA DE SOUZA

TICACOMOMETAFSICADA ALTERIDADEEMLEVINAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da PUCRS, em cumprimento s exigncias para obteno do grau de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza

PORTO ALEGRE/2007

AgradecimentosAgradecemos, em primeiro lugar, s energias de criao, desenvolvimento e conservao da vida, que nos mantiveram vivo e permitiram a realizao do nosso trabalho. Universidade Catlica de Pernambuco, que concedeu licena e permitiu nosso afastamento das atividades; deu apoio que permitiu a realizao da nossa pesquisa. Pontfcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, que nos acolheu e, generosamente, nos concedeu bolsa durante toda a pesquisa. s colegas Emanuele, Glucia, Katarina e Andra, que, pacientemente, digitaram o nosso trabalho. Aos novos irmos Kuiava e Luciano, que partilharam comigo a rouquido dos dias de estudos e a alegria do viver juntos pequenas grandes coisas. A Sandro Sayo, Marcelo Pelizzoli, Magali e famlias, que amavelmente nos acolheram em suas residncias, nos apoiaram e nos introduziram na espiritualidade gacha. Aos Professores do Programa de Ps-Graduao da PUCRS, especialmente De Boni, Flickinger, Jaime Parviani, Nythamar Fernandes, Pivatto, Alcira Bonilha e Draiton Gongaza. s secretrias dos Departamentos de Filosofia da UNICAP e da PUC, Gorete e Denise, que, durante todo o tempo, facilitaram gentilmente os procedimentos formais das instituies. Agradecemos, de modo muito especial, ao nosso orientador Prof. Dr. Ricardo Timm, que aceitou fazer a orientao da nossa pesquisa e esteve sempre disponvel para nos atender, com pacincia generosa, espera da concluso de nossa pesquisa.

Dedicatria

Aos meus pais, Severino e Tica, in memorian. minha famlia: Lucas, Laiza e Leide, que, durante um ano, partilharam comigo o frio e o calor gacho e sofreram todo o tempo minha ausncia e presena estressante.

JOS TADEU BATISTA DE SOUZA

TICA COMO METAFSICA DA ALTERIDADE EM LEVINAS

Tese Apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Doutorado em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do grau de doutor em filosofia. Aprovada em 03 de agosto de 2007.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS) (Orientador) _________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Luft (PUCRS)

_________________________________________ Prof. Dr. Pergentino Pivatto (PUCRS)

_________________________________________ Prof. Dr. Castor Mari Martin Bartolon Ruiz (UNISINOS)

________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Fabri (UFSM)

SUMRIO

RESUMO ABSTRACT RESUM INTRODUO

vi vii viii 9

I CAPTULO CRTICA METAFSICA E A POSSIBLIDADE DA TICA EM HEIDEGGER 1.1 O que a metafsica 1.2 Retorno ao fundamento da metafsica 1.3 A superao da metafsica e a possibilidade da tica 1.4 Reao a Heidegger: a emergncia da existncia 1.5 A ontologia no: a tica fundamental 14 23 29 41 52

II CAPTULO A PROCURA DA ALTERIDADE EM HUSSERL 2.1 A intersubjetividade pressupe a subjetividade 2.2 A alteridade intersubjetiva 68 65

III CAPTULO A TRANSFORMAO LEVINASIANA DA INTENCIONALIDADE 3.1. A recepo a Husserl 3.2.A intencionalidade em questo 3.3 A racionalidade tica 3.4 A m conscincia 3.4 A conscincia como passividade 74 79 86 93 96

IV CAPTULO A METAFSICA DA LINGUAGEM DO ROSTO 4.1 As possibilidades abertas por Karl Otto Apel 4.2 A metafsica da linguagem 4.3 A imoralidade da linguagem retrica 4.4 A linguagem do rosto 4.5 A herana da tradio 4.6 A significao da linguagem do rosto 4.7 O sentido transcendente 4.8 A palavra tica do rosto 4.9 A idia do infinito 4.9.1 O infinitamente tico 103 107 118 126 128 134 138 145 159 160

CONCLUSO REFERNCIAS

175 179

RESUMO

A partir da constatao de que a compreenso de metafsica, que emergiu com os pr-socrticos e se efetivou no desenvolvimento histrico do pensamento ocidental teve como preocupao fundamental constituir um saber sobre o ser, procuramos, na nossa tese, afirmar a possibilidade da tica como metafsica da alteridade. Na contemporaneidade, Husserl se preocupa em incluir a alteridade na constituio do sentido da objetividade. Na sua tentativa de constituir o sentido do outro, emerge um ns constituinte. A intencionalidade egolgica e solitria transforma-se em intencionalidade intersubjetiva. Heidegger fez uma crtica veemente metafsica, acusando-a de ter esquecido de considerar o ser como a questo mais fundamental. Enunciou que a possibilidade do pensar tico seria vivel medida que se tornasse o agir na procura da verdade do ser, que garantiria ao homem, na sua existncia, realizar sua essncia. Levinas percebe que a prioridade do pensamento na procura de estabelecer a verdade como o ser resultou na configurao de uma ontologia, uma gnosiologia e uma forma de racionalidade, que se identificaram com os prprios temas investigados, a coerncia das relaes lgicas e as formas objetivas abstratas. Esse modelo de pensamento no ignorou a dimenso antropolgica, mas, na obsesso pela sntese e pela objetividade, terminou nivelando as coisas e a interioridade subjetiva das pessoas, igualando e diluindo suas particularidades numa generalizao neutra e abstrata. O humano tornou-se um ente entre outros entes, um ser annimo, impessoal, apreendido pelo sujeito pensante e expresso num conceito. A corporeidade, a sensibilidade, os desejos, a dinmica de relao com os outros, o nascer, o viver, o sofrer, o morrer do humano transformaram-se em contedo objetivo, sintetizado e representado num sentido puramente racional. Em vez da relao terica abstrata na determinao inteligvel do ser, Levinas prioriza a busca do sentido do humano, onde se verifica a possibilidade da relao metafsica do mesmo com o outro, sem que o outro reduzase ao mesmo, nem o mesmo se absorva na identidade do outro, mantendo, cada um, a condio de separao e a verdadeira relao de alteridade. A relao tica de alteridade torna-se lugar originrio da construo do sentido e provocao eminente racionalidade. O rosto do outro apresenta-se como apelo irrecusvel de responsabilidade para com ele, que tem como medida, a des-medida do infinito. O rosto no um ente objetivo que possa ser abordado de modo especulativo. O rosto fala e, ao proferir sua palavra, invoca o interlocutor a sair de si e entrar na relao do discurso. A linguagem tem a excelncia de assegurar a relao entre o mesmo e o outro, que transcendente em absoluto respeito sua alteridade. O infinito se mostra na subjetividade vivente na histria, que pode desejar outrem para alm do sentido racional, objetivo e abstrato. Na relao com o outro, efetiva-se a possibilidade do infinito dar-se sem padecer os horrores da violncia do modo de pensar entificante e totalizador. Ela faz reluzir o seu brilho como verdadeira alteridade metafsica, que nos convoca a desejar aquilo que sabemos nunca poder saciar, o desejo.

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ABSTRACT

Starting from observing that the metaphysics understanding that emerged with the presocratics and it was executed in the historical development of the western thought had as fundamental concern to constitute a knowledge on the being, we sought in our theory to affirm the possibility of the ethics as metaphysics of the alterity. In the contemporary age, Husserl worries in including the alterity in the constitution of the sense of the objectivity. In his attempt of constituting the sense of the other one, it emerges as an ourselves constituent. The egologic and lonely intention become intentional and intersubjective. Heidegger made a vehement critic to the metaphysics, accusing it metaphysics of having forgotten to consider the being as the most fundamental subject. He enunciated that the possibility of ethical thinking would be feasible as far as the man turned acting in the search of the being's truth, that it would guarantee to the man in existence, to accomplish his essence. Levinas notices that the priority of the thought in the search of establishing the truth as the being resulted in the configuration of an ontology, a gnosiology and a rationality form, that were identified with the own investigated themes, the coherence of the logical relationships and the abstract forms lenses. That thought model didn't ignore the anthropological dimension, but in the obsession for the synthesis and for the objectivity, it ended leveling the things and the people's subjective innerness, equaling and diluting their particularities in a neutral and abstract generalization. The human became a being among other beings, a being to be anonymous, impersonal, apprehended by the thinking subject and expressed by a concept. The body sense, the sensibility, the desires, the relationship dynamics with the other ones, being born, living, suffering, dying of the human became synthesized objective content and acted in a sense purely rational. Instead of the abstract theoretical relationship in the being's intelligible determination, Levinas priorizes the search of the human's sense, which in the possibility of his metaphysical relationship is verified with the other one, without the other is reduced to the same, nor the same is absorbed in the identity of the other, maintaining, each one, the separation condition and the true alterity relationship. The ethical relationship of alterity becomes original place of the construction of the sense and eminent provocation to the rationality. The face of the another comes as irrecusable appeal of responsibility to him, that has as measure, the dis-measure of the infinite. The face is not an objective being to be approached in a speculative way. The face speaks and when speaking it invokes the speaker to leave of himself/ herself and to enter in the relationship of the speech. The language has the excellence of assuring the relationship between the same one and the other one, which is transcendent at all respect to his alterity. The infinite is shown in the living subjectivity in the history that can insure somebody else for beyond the rational, objective and abstract sense. In the relationship with the other one, the possibility of the infinite is executed to feel without suffering the horrors of the violence in the way of thinking as being and totalizer. She makes her shine as true metaphysical alterity, that calls us to want that we never know how to satiate the desire.

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RESUM

On prtend affirmer dans cette thse la possibilit de lthique comme mtaphysique de laltrit, partir de la constatation que la comprhension de la mtaphysique, qui a merg avec les pr-socratiques et sest ralise dans le dveloppement historique de la pense occidentale a eu comme proccupation fondamentale de constituer un savoir sur l`tre. Dans la contemporanit, Husserl sest proccup dinclure laltrit dans la constitution du sens de lobjectivit. Dans sa tentative de constituer le sens de lautre, merge un nous constituant. Lintentionnalit egologique et solitaire se transforme en intentionnalit intersubjective.Heidegger a critiqu vhmentement la mtaphysique, et laccuse davoir oubli de considrer l`tre comme la question la plus fondamentale. Il a nonc que la possibilit de la pense thique serait viable la mesure quon puisse rendre lagir la recherche de la vrit de ltre, qui assurerait lhomme, dans son existence, de raliser son essence. Levinas peroit que la priorit de la pense la recherche dtablir la vrit comme ltre a donn comme rsultat la configuration dune ontologie, dune gnosologie et dune forme de racionalit, qui se sont identifies avec les thmes recherchs eux-mmes, la cohrence des relations logiques et les formes objectives abstraites. Ce modle de pense na pas ignor la dimension antropologique, mais dans lobsession par la synthse et par lobjectivit, a mis au mme niveau les choses et lintriorit subjective des personnes, a rendu gales et a dlay leurs particularits dans une gnralisation neutre et abstraite.Lhumain est devenu un tre parmi dautres tres, un tre anonyme, impersonnel, saisi par le sujet penseur et exprim travers un concept. La corporalit, la sensibilit, les dsirs, la dynamique de la relation avec les autres, la naissance, lexistence, la souffrance, la mort de lhumain se sont transformes dans un contenu objectif, synthtis et reprsent dans un sens purement rationnel. Au lieu dune relation thorique abstraite dans la dtermination intelligible de l`tre, Levinas donne priorit la recherche du sens de l humain o on se vrifie la possibilit de la relation mtaphysique du mme avec lautre, sans que lautre puisse se rduire au mme, ni le mme puisse sabsorber dans lidentit de lautrui, en maintenant, chacun , la condition de sparation et la vraie relation de laltrit.La relation thique de laltrit devient un lieu originaire de la construction du sens et de la provocation minente la rationalit. Le visage de lautre se prsente comme un appel irrcusable de responsabilit envers lui, qui a comme msure, la des-msure de linfini. Le visage nest pas un tre objectif quon puisse aborder d`une manire spculative. Le visage parle et quand il exprime sa parole, il invoque linterlocuteur sortir de lui-mme et entrer dans la relation du discours. Le langage a lexcellence dassurer la relation entre le mme et l`autre qui est transcendante dans un respect absolu son altrit. Linfini se montre dans la subjectivit vivante dans lhistoire, qui peut dsirer l`autrui par-dl du sens rationnel, objectif et abstrait. Dans la relation avec lautre, se ralise la possibilit de linfini se donner sans souffir les horreurs de la violence de la faon de penser de l tre et totalisatrice. Cette relation met en relief son clat comme une vraie altrit mtaphysique qui nous invite dsirer ce qui nous savons tre impossible de satisfaire pleinement le dsir.

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INTRODUO

A escolha do nosso tema A tica como Metafsica da Alteridade justifica-se porque Emmanuel Levinas tem, nos meios acadmicos contemporneos, um lugar de considervel destaque internacional. Esse espao foi conquistado graas recepo que sua obra teve em vrias academias espalhadas pelo mundo. Sobretudo, destaca-se a originalidade de suas anlises, os ncleos temticos que imprime aos seus textos, a perspectiva que assume nas consideraes de temas tradicionais e a novidade das propostas que formula. A sua produo terica, que aparece como obras sistemticas e artigos diversificados quanto a sua temtica, profundamente marcada por uma aguda sensibilidade aos problemas humanos. A questo humana1, na maioria das vezes, no encontrou a acolhida devida nas obras dos denominados grandes filsofos, nem nos grandes sistemas que configuram a histria da filosofia. Salvo as excees, ela aparece nas articulaes de uma Antropologia Filosfica, de uma Filosofia Poltica e, at mesmo, numa Filosofia Moral ou sistema de tica. Todavia, o status que lhe foi conferido nem sempre ultrapassou a condio de apndice ou aspecto complementar de um sistema mais geral. Alm disso, quando a presena do humano e seus problemas se deixou visibilizar nos sistemas e obras de determinados pensadores, foi com a inteno de evidenciar a coerncia lgica do pensamento, a exaltar, elegantemente, as possibilidades e o potencial da razo que opera sem limites. Segundo ele, a filosofia identificou-se com as idias e no com as pessoas; com o tema e a interioridade da relao lgica e no com a exterioridade da interpelao. A constatao de Levinas no nos deve levar a pensar que ele reivindica a inverso dos termos, que, pondo-se o humano como eixo articulador da reflexo, tudo estaria justificado. No se trata de trazer ao centro aquilo que est na periferia, nem simplesmente de lanar luzes sobre aquilo que est na obscuridade. A sua constatao tem uma dimenso de profundidade que vai mais alm da exigncia de reorganizar a tradio. Alm da extenso do espao que se requer para o humano, sugere a reformulao dos pressupostos ancoradores da reflexo mesma. Em outras palavras, Levinas sugere uma interrogao profunda sobre as bases da racionalidade do Ocidente, com todo o seu conjunto de categorias. A interrogao tem como inteno atingir o mago daquilo que pode ser considerado no mbito da cultura

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Referimo-nos a concepo de ser humano no contexto do pensamento contemporneo.

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filosfica do Ocidente, como as prprias condies de possibilidade do pensar. O que torna possvel o pensar chamado a justificar-se quanto ao sentido de sua prpria produo de sentido. No fundo, o autor quer saber se as bases da razo conceitual so apropriadas para dar conta do sentido do humano. Levinas percebe que o pensar racional propriamente dito, no momento de sua emergncia na Grcia Antiga, origina-se j identificado com objeto, com o ser. O famoso fragmento de Parmnides pode ser considerado como paradigmtico testemunho da aludida identidade: "Pensar e ser o mesmo". Estabelece a um forte acento no domnio do pensar e a indubitvel condio de pensar o ser. Uma vez estabelecida a identidade originria entre ser e pensar, a dimenso de horizonte dos objetos possveis passa a ser o prprio pensamento, pensamento como imanncia identificadora. As intuies originrias da ontologia vinda dos gregos tiveram desdobramentos diferenciados ao longo da histria do pensamento no Ocidente. Mas foi na modernidade que a Razo, o pensamento racional, assumiu dimenses de notveis magnitudes. Descartes, ao formular a sentena Cogito ergo sum, instaura o primado da racionalidade moderna. O cogito, agora, o princpio normativo e condio de inteligibilidade. A partir de agora, o sujeito adquire autonomia e elevado condio de sujeito juiz absoluto do que , do que no e do que poder vir a ser. Esse sujeito tematiza a si mesmo em pleno gozo da liberdade. Na modernidade, iniciada com Descartes, a conscincia torna-se autoconscincia. Em particular, no sistema de Hegel, ela atinge o patamar de conscincia absoluta. De algum modo, o plo diferenciador de interlocuo da conscincia ela mesma. Atravs da atividade de reflexo, a conscincia determina a prpria realidade. Essa dimenso criadora da reflexo caracterstica do pensamento moderno. O sujeito tudo pode. Ele o fundamento ltimo de tudo. Frente dinmica da relao sujeito-objeto, com o domnio do sujeito sobre o objeto, Levinas pergunta se o prprio do racional o seu poder sobre o objeto. Se a inteligncia que atua como um ardil de caador, de luta e violncia para com os seres, tem condies de plasmar uma ordem verdadeiramente humana. As perguntas formuladas tm um alcance de grande importncia, pois apontam para a maneira de conceber a prpria racionalidade. No se trata simplesmente de recusar a razo. A questo indicar, de modo incisivo, o sentido operante do Eu penso. Esse modo de proceder

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seria inadequado para abordar o humano enquanto tal. Ser que a razo consegue dar conta da essncia do homem? Uma forma mais adequada de abordar o humano no requer uma alternativa essncia? Uma das nossas pretenses na realizao desta pesquisa mostrar que o mbito prprio para equacionalizar o que diz respeito ao humano requer, necessariamente, uma ruptura com a ordem da essncia. No mbito da ontologia, o humano no pode ser

considerado seno puro ser. um ente entre outros entes. Existe como qualquer outro existente. Enquanto ser annimo, impessoal, ele pode ser capturado pelo sujeito pensante e subsumido numa generalidade conceitual. A sua singular dimenso subjetiva, a sua estrutura corporal, que ocupa um espao nico na natureza, o fluxo da complexidade de relaes que ele tece com os outros torna-se contedo abstrato de um pensamento representador. prpria do humano a possibilidade de desejar o infinito, referir-se transcendncia na finitude da subjetividade, que existe com suas fraquezas e limites no espao e no tempo da histria. Levinas critica o modelo de racionalidade hegemnica porque ele se configura como legitimador de procedimentos ticos reprodutores da indiferena para com os humanos. Esse modelo de racionalidade comporta a violncia do poder sobre todas as dimenses da existncia, seja ela efetivada como prtica repressiva dominadora, ou pela simples posio de indiferena para com os outros, como acontece atualmente com os denominados excludos. Afinal, quais so as conseqncias em considerar ou no um ser annimo? Levinas defende uma idia de racionalidade, que se pe para alm do mundo dos meios objetificadores, abstratos, totalizadores e indiferentes. A contraposio verifica-se como crtica radical ao primado da ontologia, onde os entes tornam-se seres objetivos. O prse alm ocorre como estabelecimento da dimenso social onde o humano pode abrir-se para o outro. A forma de abertura desenha uma estrutura que se diferencia, fundamentalmente, do procedimento do sujeito transcendental moderno na sua operao apreendedora, possessiva e representadora. A evaso da dimenso ontolgica para a sociabilidade possibilita uma subjetividade acolhedora, capaz de produzir, pela hospitalidade, a imploso do ser, do saber e do pensar como operaes puramente abstratas. Trata-se de desenvolver uma "inteligibilidade" do humano onde ele, como ente privilegiado, escape s possibilidades de domnio ontolgico e, por conseguinte, considere o desafio da metafsica como relao tica de alteridade.

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A escolha que fizemos do tema da nossa pesquisa foi tica como metafsica da alteridade em Levinas. A ressonncia significativa que tem a metafsica, a vinculao entre tica e metafsica, tica e alteridade, so muito amplas e assumem um alto nvel de complexidade no transcurso da histria da filosofia. Levando em conta a amplido de sua obra e a complexidade da problemtica, julgamos conveniente estabelecer um texto especfico a partir do qual seja possvel articular a temtica em questo. Escolhemos a obra de 1961, Totalidade e infinito, como nosso referencial principal. A partir de da, faremos, necessariamente, recorrncia a outros textos que incidem, de forma mais contundente, sobre a nossa temtica, como o caso de alguns artigos de Descobrindo a existncia com Husserl e Heidegger, Humanismo do outro homem, Outramente que ser, Entre ns e De Deus que vem a idia. A partir da idia de que a ontologia insuficiente para exprimir a realidade do humano, onde acontece a trama tica e metafsica, propomo-nos investigar, no seu pensamento, uma concepo de tica como metafsica da alteridade. Partimos de uma considerao sobre a crtica de Heidegger metafsica e em que sentido ele aponta para uma tica. Depois, analisamos as tentativas de Husserl na busca da alteridade. Esforar-nos-emos para explicitar o sentido da linguagem, que se pe para alm da pura troca de signos verbais ou intercmbio de idias sobre o mundo objetivo, mas que garante a relao entre o mesmo e o outro no cumprimento tico do respeito alteridade metafsica do outro. Investigaremos a significao do rosto como possibilidade de encontro face a face e como resistncia tica s investidas de apreenso, cognoscibilidade objetivante e sintetizadora. Finalmente, consideramos a categoria do infinito como possibilidade de ruptura com a totalidade e como efetivadora do evento tico na subjetividade humana. A partir da avaliao crtica que Levinas faz do pensamento ocidental, que ele considera um pensamento englobante, neutralizador da diferena, constituindo uma totalidade, defenderemos a tese central da possibilidade da tica como metafsica da alteridade, como nova forma de inteligibilidade. A partir da tese central, pretendemos demostrar as seguintes teses particulares: a) O ponto de partida principal assumido por Levinas na postulao da metafsica como tica da alteridade uma avaliao crtica ao primado da ontologia, bem evidente no pensamento de Heidegger. Defenderemos a idia que, aps a crtica heideggeriana metafsica, ela ressurge como tica em Levinas.

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b) A crtica formulada tem a inteno de referir-se ao conjunto dos sistemas filosficos institudos no desenvolver-se do pensamento ocidental, mas pode-se identificar autores como Hegel, Husserl e Heidegger como alvos particulares, representativos do conjunto dos sistemas. c) Levinas transforma a conscincia intencional de Husserl em uma conscincia hospitaleira. d) A categoria de desejo presente na Fenomenologia do Esprito de Hegel contraposta por Levinas, com a idia de desejo metafsico na inteno de radicalizar a diferena entre Mesmidade e Alteridade. As idias de Desejo Metafsico, Infinito, Linguagem e Rosto constituem, no pensamento de Levinas, os elementos nucleares e fundamentais da metafsica como tica da alteridade. O tema ser abordado no mbito da obra do prprio autor. Como Levinas um autor de estilo filosfico e de uma terminologia muito prpria, requer, inicialmente, o esforo de interpretao. Esforar-nos-emos para situar alguns conceitos que julgamos pouco usuais. Tomaremos a obra Totalidade e Infinito como o referencial principal para articularmos a nossa reflexo no interior da obra do autor, e na relao com outros conforme nossos objetivos. Tentaremos usar o mtodo da anlise exegtica dos textos de Levinas e dos outros autores; o analtico comparativo, quando do esforo de relacion-los entre si. E, finalmente, usaremos o mtodo hermenutico para proceder s interpretaes que julgamos pertinentes na configurao dos argumentos que explicitam os nossos objetivos. Dividimos o nosso trabalho em quatro captulos. No primeiro captulo, faremos o esforo de apresentar a crtica de Heidegger metafsica. No segundo captulo apresentamos as tentativas de Husserl na procura da alteridade. O terceiro captulo apresenta os esforos de Levinas na transformao da intencionalidade de Husserl e na abertura de novas possibilidades para a conscincia. O quarto captulo trata da questo da metafisica da linguagem do rosto e da idia do infinito como explicitao mais evidente da tica como metafsica da alteridade em Levinas.

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I CAPTULO

CRTICA METAFSICA E A POSSIBILIDADE DA TICA EM HEIDEGGER

1.1 O que a metafsica.

A temtica da metafsica foi enfrentada por Heidegger a partir da exposio de sua obra maior: Ser e Tempo em 1927. No entanto, ele se deteve, de modo mais particular, na problemtica especfica da metafsica, a partir de 1929, quando escreveu uma preleo intitulada Que Metafsica? e Kant e o Problema da Metafsica. Em 1943, voltou a considerar o problema e escreveu um posfcio ao texto de 1929. Em 1949, voltou questo, escrevendo um texto com o ttulo de Retorno ao Fundamento da Metafsica. Em 1953, deteve-se na confeco de outro texto: Introduo Metafsica. No mesmo ano, investiu na mesma temtica e escreveu o texto: Superao da Metafsica. Em 1975, um pouco antes de sua morte, escreveu uma preleo: Os Conceitos Fundamentais da Metafsica: Mundo, Finitude e Solido. Os dados cronolgicos nos fazem concluir que a temtica da metafsica no foi para Heidegger algo que apareceu na sombra de uma questo mais fundamental. Ela teve uma importncia destacada e perdurou ao longo do tempo como problema fundamental nas suas investigaes. Da tentativa de definir o que a metafsica at proposio de sua superao, corre um substantivo mpeto em torno da questo da metafsica. No vamos considerar aqui o itinerrio das questes particulares que cada texto apresenta, nem pontuar a posio que ele tomou em relao a cada uma delas. A nossa pretenso delinear a idia mais geral que aponta para a superao da metafsica. O que Heidegger detectou de problemtico na metafsica para propor a sua superao? Seria o fato de ela no ter se dado conta do carter problemtico de suas pretenses e aquisies? O que Heidegger props para o pensar aps a metafsica superada? A superao da metafsica suficiente para resgatar o rigor do pensar na sua pulso originria? O que a metafsica esqueceu de considerar que justifique sua

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superao? Ou ainda, a que ela se apegou que lhe impediu de pulsar viva na histria do pensamento? Afinal, o que a metafsica em si mesma, que precisou ser superada? Quando Heidegger comeou a considerar especificamente a metafsica, tomou, como ponto de partida, a elaborao de uma interrogao metafsica. Logo aps a formulao do que considerou uma questo, esboou uma resposta: Nossa tarefa inicia-se com o desenvolvimento de uma interrogao metafsica, procura, logo a seguir, a elaborao da questo, para encerrar-se com sua resposta2. Detendo-se no desenvolvimento da interrogao, compreendeu que ela tem duas caractersticas. A primeira est no fato de que toda questo metafsica abarca sempre a totalidade da problemtica da metafsica. Ela a prpria totalidade3. A segunda caracterstica apresenta-se no fato de que toda questo metafsica somente pode ser formulada de tal modo que aquele que interroga, enquanto tal, esteja implicado na questo, isto , seja problematizado4. As duas caractersticas apontam para uma condio possvel, no caminho da interrogao: a interrogao metafsica deve desenvolver-se na totalidade e na situao fundamental da existncia que interroga5. O que propriamente acontece na existncia interrogante? Ele respondeu constatando que nossa existncia [...] determinada pela cincia6. Admite que as cincias so diversas entre si, tm mtodos distintos de abordar seus objetos, somente tm unidade por causa de uma organizao tcnico-administrativa e que seu fundamento essencial, desapareceu completamente7. No entanto, na vigncia de todas as cincias, ns nos relacionamos, dceis a seus propsitos mais autnticos com o prprio ente8. O ente se constituiu na razo de ser da busca das cincias, na sua referncia ao mundo:A referncia ao mundo, que impera atravs de todas as cincias enquanto tais, faz com que elas procurem o prprio ente para, conforme seu contedo essencial e seu modo de ser, transforma-lo em objeto de investigao e determinao fundante9.

HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores. p. 35 3 ibid 4 ibid 5 Ibid 6 Ibid 7 Ibid 8 Ibid 9 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores. p.35-36

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O direcionamento para o mundo onde se apresenta o ente no somente efetivado, mas sustentado por um comportamento existencial do homem livremente escolhido10. Quer dizer que o tomar a deciso de assumir a busca pelo ente como a tarefa principal do fazer cientfico do homem uma deciso livre. Para Heidegger, no somente o fazer cincia, mas tambm o agir pr-cientfico e extracientfico do homem esto movidos em direo ao ente: Tambm a atividade pr e extracientfica do homem possuem um determinado comportamento para com o ente11. Em outras palavras, ele quer explicitar o fato de a existncia do homem como sujeito da cincia ter se apropriado dele e impresso na sua identidade existencial, a possibilidade da conduo do seu prprio agir. Dito de outro modo, o ente passa a comandar as possibilidades do prprio que fazer humano. Na verdade, no momento em que a cincia pretende dizer algo sobre alguma coisa, a primeira e a ltima palavra, passando, objetivamente, a pontuar o seu perguntar, determinar e fundar o ente, realiza-se uma submisso peculiarmente limitada ao prprio ente12. O ente assim posto assume o comando da existncia cientfica. Em resumo, Heidegger sintetizou aquilo que ele entendeu caracterizar a existncia cientfica e que, para ns, indica uma aproximao mais pontual da formulao da interrogao metafsica: Aquilo para onde se dirige a referncia ao mundo o prprio ente e nada mais. Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientao o prprio ente, e, alm dele, nada.13. O posto evidencia que somente o ente interessa cincia. Alm dele, nada. O nada dispensado pela cincia como elemento nadificante. Aqui est o ponto da interrogao o que acontece com o nada: Que acontece com este nada?14. Heidegger se perguntou se, no momento em que a cincia rejeitou o nada, ela no o admitiu, e at certo ponto, no recorreu a ele? Ou seja, aquilo que ele rejeitou termina sendo levado em conta. Assim ter-se-ia uma ambivalncia: o nada rejeitado admitido. Da estar-se diante de um paradoxo. Essa situao ambivalente e paradoxal imps a Heidegger a necessidade de elaborar a questo do nada e, assim, pleitear uma resposta ou deparar-se com sua impossibilidade. No esforo de elaborar a questo, ele partiu da posio da cincia. Enquanto a cincia o rejeitou como aquilo que no existe, ele afirma: Ns, contudo, procuramos perguntar10 11

Ibid. p.36 Ibid 12 Ibid 13 Ibid 14 Ibid

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pelo nada. Que o nada?15. O levantamento da pergunta pelo nada fora a admisso de que o nada assim e assim - como um ente16. Estamos diante de uma questo complexa. Pois o perguntar pelo modo de ser do nada, por sua essncia transforma o interrogado em seu contrrio: a questo priva-se a si mesma de seu objeto especfico17. Da mesma maneira uma possibilidade de resposta torna-se invivel. Ora, o nada comparado com o ente exatamente o que dele se distingue de forma radical, mas, precisamente, dele que se distingue absolutamente18. A partir da distino, Heidegger afirmou que o nada a negao da totalidade do ente, o absolutamente noente19. Portanto, no pode ser elevado categoria de objeto. Ao contrrio, ele elevado mais alta determinao do negativo, assim, do negado20. Reconheceu que atingiu um ponto que concerne lgica: A negao , entretanto, conforme a doutrina dominante e inata da lgica, um ato especfico do entendimento21. Ele se perguntou como podemos pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e at na questo da possibilidade de sua formulao22. Ele est seguro que a pretenso de manter inviolvel o princpio da no-contradio deixa latente uma dimenso importante e no perceptvel pela prpria lgica. Desconfia do que se pressupe e se pergunta:

se representa o no, a negatividade e com isto a negao, a determinao suprema a que se subordina o nada como uma espcie de negado. Existe o nada apenas porque existe o no, isto , a negao? Ou no acontece o contrrio? Existe a negao e o no apenas porque existe o nada?23.

Quanto a isso, ele ficou convencido que no estava ainda decidido, nem sequer tinha sido formulado como questo. Optou pelo lado oposto da questo porque julgou ser mais radical: ns afirmamos: o nada mais originrio que o no e a negao24. Aqui est a nosso modo de entender, o ncleo mais importante da questo perseguida por Heidegger. AHEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p.37 16 Ibid 17 Ibid. 18 Ibid. 19 Ibid 20 Ibid. 21 Ibid. 22 Ibid. 23 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p.37 24 Ibid.15

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proposio do nada originrio inverte as coisas de modo que a efetivao da negao operada pelo entendimento e ele prprio dependem do nada e no ao contrrio. Sendo assim, o nada que decide sobre o entendimento e no o inverso. Se o nada mais originrio que a negao, podemos nos perguntar como acessar esse originrio? possvel encontr-lo? Ele apresenta algumas indicaes possveis. Em primeiro lugar, pe-se a afirmao j mencionada que o nada a plena negao da totalidade do ente25. Isso admitido, considerou que a totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente a negao, na qual, ento, o prprio nada se dever manifestar26. No entanto, essa indicao pode revelar um nada ainda como ente figurado e pensado no entendimento e, portanto, ser apenas um conceito formal de nada, e no o nada originrio ou autntico. Por isso, ele indica a possibilidade de uma experincia fundamental do nada27. Assume que nunca podemos compreender a totalidade do ente em si e absolutamente, to evidente 28. E, no entanto, nos encontramos postados em meio ao ente de algum modo desvelado em sua totalidade29. Para ele, enquanto a compreenso da totalidade do ente impossvel,

o encontrar- se em meio ao ente em sua totalidade algo que acontece no cotidiano da nossa existncia. Por mais variado que seja o experienciar, o dia-a-dia ele retm, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de totalidade 30.

Este em totalidade nos aparece no momento em que nos desocupamos de qualquer ente de ns mesmos, atravs do tdio: [...] sobrevm-nos este em totalidade, por exemplo, no tdio propriamente dito31. Ele no fala do tdio num sentido banal, como entediar-se com uma roupa que se veste ou uma comida que se come ou outra atividade qualquer. Obviamente ele pensa o tdio como uma experincia profunda capaz de manifestar o ente em sua totalidade: o profundo tdio, que como nvoa silenciosa desliza para c e para l nos abismosIbid.p.38 Ibid. 27 Ibid. 28 Ibid. 29 Ibid. 30 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 38. 31 Ibid.26 25

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da existncia, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferena. Este tdio manifesta o ente em sua totalidade 32. Em segundo lugar, ele sugeriu a possibilidade de alegria, pela presena de um ser querido. No simplesmente a presena da pessoa, mas da existncia de um ente querido33. alegria pela existncia de um ser querido, ele chama de disposio de humor34, que no apenas um sentimento de revelar o ente na sua totalidade, mas de ser esse revelar mesmo, um acontecimento fundamental de nosso sera35. Quer dizer, ele no um simples ato, que acontece sem maiores implicaes, mas um acontecimento significativo para o ser-a. Nesse particular, Heidegger pergunta: acontece no ser-a do homem semelhante disposio de humor, na qual ele seja levado presena do nada? A resposta afirmativa. Ele defendeu que, apesar de bastante raro e apenas por alguns instantes, a angstia essa disposio de humor que leva o ser-a humano presena do nada. Para ele, a angstia radicalmente diferente do temor36. O temor sempre acontece diante de um ente determinado. sempre temor de ou temor por. A angstia sempre angstia diante de ou por, mas nunca angstia por isso ou aquilo37. A angstia, portanto, tem um carter de indeterminao. No se trata somente de uma simples falta de determinao, mas a essencial impossibilidade de determinao38. Ela provoca uma espcie de estranheza, que nos afunda numa radical indiferena: todas as coisas e ns mesmos afundamo-nos numa indiferena39. medida que se procede ao afastamento, ela reaparece se aproximando, pois em se afastando elas se voltam para ns40. Ele ainda diz que: este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angstia, nos oprime. No resta nenhum apoio. S resta e nos sobrevm na fuga do ente este nenhum41. No momento que o ente foge do nosso alcance, no h mais um ponto de ancoragem onde possamos nos segurar. Somente esse nenhum se faz presente. A angstia impera. Justamente por isso, ela manifesta o nada: A angstia manifesta o nada42. ela que se

Ibid. Ibid. 34 ibid.p.39 35 Ibid. 36 Ibid. 37 Ibid. 38 Ibid. 39 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 39. 40 Ibid. 41 Ibid. 42 Ibid.33

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apresenta, no para nos segurar como apoio, mas para suspender: Estamos suspensos na angstia43. No h, portanto, um ponto de apoio, mas um estranho suspender: somente continua presente o puro ser-a no estremecimento deste estar suspenso onde nada h em que apoiar-se44. Por causa da impossibilidade de determinao e um ponto de ancoragem, na total ausncia do ente, emerge a angstia como estranha companheira com quem no se pode falar. Falar a quem? Falar de qu? Falar o qu? Somente o calar adequado pela simples impossibilidade de falar: A angstia nos corta a palavra45. Qualquer possibilidade de dizer torna-se impossvel. Quando o ser-a-humano deu-se conta da estranheza dessa experincia como uma ocorrncia e se pergunta pelo que o angustiava, d-se conta que era puro nada: Diante de e por que ns nos angustiamos era propriamente nada. Efetivamente: o nada mesmo enquanto tal estava a 46. Nas indicaes do tdio e nas disposies de humor, como alegria e angstia que manifestam o nada, Heidegger pensou ter formulado a questo. Esse ponto termina com a retomada da pergunta: Que acontece com o nada?47

. De certa maneira, a resposta

pergunta foi dada no modo pelo qual foi articulada a prpria questo. No entanto, ele fez algumas pontuaes, que a explicitaram mais adequadamente. Retoma a idia de que, no homem em seu ser-a, a angstia se realiza e manifesta o nada. Entretanto, tem o cuidado de acentuar o fato de que o nada que se revela na angstia no um ente: o nada se revela na angstia mas no enquanto ente48

. Do mesmo modo, observa que ele no dado como

objeto que possa ser apreendido. Ao contrrio, revela-se propriamente o nada com e no ente como algo que foge em sua totalidade49. Alm disso, assegura que, na angstia, no se concretiza nenhuma destruio do ente nem sua negao. O nada nos visita juntamente com a fuga do ente50. Na fuga, no h apenas um retroceder, mas uma espcie de quietude fascinada, que se constitui em atrao ou remisso para o ente que foge. No movimento de remeter, rejeitar, fugir, est o modo de o nada fascinar na angstia o ser-a. O fascnio, que se realiza no ser-a, que angustia na procura do ente que sempre foge,

Ibid. Ibid. 45 Ibid. 46 Ibid. 47 Ibid. 48 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 39. 49 Ibid 50 Ibid44

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termina expressando a essncia do nada: a essncia do nada: a nadificao51. Nessa direo, ele observa que a nadificao no destri o ente, nem tem sua origem numa negao. O nada simplesmente nadifica, o prprio nada nadifica52, diz Heidegger. O que significa este nadificar? Qual a sua essncia? A essncia do nada originariamente nadificante consiste em: conduzir primeiramente o ser-a diante do ente, enquanto tal53. No se trata apenas de o nada revelado originariamente conduzir o ser-a diante do ente, mas entrar nele mesmo: somente base da originria revelao do nada pelo ser-a pode o homem chegar ao ente e nele entrar54

. O nada atua como um tipo de suspenso do ser-a humano, que o

possibilita chegar at o ente, entrar em relao com ele e consigo mesmo. Uma vez suspenso dentro do nada, o ser-a se pe para alm do ente. A este pr-se alm, Heidegger chama de transcendncia: Este estar alm do ente designamos a transcendncia55. Com isso, ele pensou ter encontrado a resposta questo do nada:

O nada no nem um objeto, nem um ente. O nada no acontece nem para si mesmo, nem ao lado do ente ao qual, por assim dizer, aderiria. O nada a possibilitao da revelao do ente enquanto tal para o ser-a humano. O nada no um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente essncia mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada56.

Essa resposta que Heidegger encontrou para a questo do nada expe a fragilidade das concepes de metafsica, que vem dos gregos e permanece vigorante na histria do pensamento ocidental. A fragilidade estaria na metafsica grega no fato de ter compreendido o nada no sentido do no ente, quer dizer, da matria informe57. No pensamento medieval, ela se expressou na negao do enunciado ex nihilo nihil fit e d, com isso, uma significao modificada do nada que, ento passa a significar a absoluta ausncia do ente, fora de Deus 58. O nada acaba sendo entendido como o que oposto ao ente e sua verdade. Cada concepo do nada exprime tambm uma concepo de ente. Se, no pensamento antigo e medieval, o nada foi compreendido respectivamente como negao e oposio ao ente,Ibid Ibid 53 Ibid. p. 41 54 Ibid 55 Ibid 56 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 41. 57 Ibid 58 Ibid52 51

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tambm o ente e o ser no foram considerados de maneira prpria. Ele diz enfaticamente: A discusso metafsica do ente mantm-se, porm, ao mesmo nvel que a questo do nada. As questes do ser e do nada enquanto tais no tm lugar59. Ora, o que Heidegger julgou ser a tarefa da metafsica justamente o esforo de pontuar o ente como tal e sua radical diferena do ser. Por isso no concordou que o nada fosse a simples negao do ente, nem a oposio a ele. Parece, a esta altura, que ele quis manifestar a necessidade que o homem tem de encarar o nada para poder acercar-se do ente e aproximar-se de sua essncia, como um ser capaz de experienciar a natureza da metafsica: O ser-a humano somente pode entrar em relao com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar o ente acontece na essncia do ser-a. Este ultrapassar, porm, a prpria metafsica60. Isso quer dizer que no fugindo do nada, nem se afogando no ente ou sobrevoando o campo das idias lgicas que o homem faz metafsica. No , portanto, fora do nada, do ente ou de si mesmo que ele se estabelece e manifesta sua essncia. Ela parte essencial do acontecer do ser-a-humano: [...] a metafsica pertence natureza do homem [...] o acontecimento essencial no mbito do ser-a, ela o prprio ser-a 61. Por isso, no prprio pensar que a metafsica seja algo que vem de fora, ou que se precise entrar nela. O fato de existir o ser-a enquanto ser finito no mundo, j acontece a metafsica: [...] na medida que existimos j sempre estamos colocados dentro dela 62. No ltimo pargrafo do texto de 1929, ele acenou sutilmente para uma possvel identificao do filosofar com sua tarefa maior: pr em marcha a metafsica63. Contudo adverte que essa marcha s possvel se houver o ultrapassamento da existncia nas condies do ser-a no seu todo. E impe condies fundamentais:

Para este salto so decisivos: primeiro, o dar espao para o ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos dolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se sub-repticiamente; e, por ltimo, permitir que este desenvolva este estar

Ibid Ibid. p. 44 61 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 44. 62 Ibid 63 Ibid60

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suspenso para que constantemente a questo fundamental da metafsica que domina o prprio nada: por que afinal ente e no antes o Nada? 64.

1.2 Retorno ao fundamento da metafsica

muito interessante o fato de, no primeiro texto que Heidegger escreveu, tentando responder a pergunta o que metafsica, terminar com uma pergunta radical. Passados catorze anos, ele mantm a convico que ela , de fato, uma pergunta: A pergunta que a metafsica permanece uma pergunta65. Aqui ele oferece uma indicao do que se constituir em meta de suas investigaes: a superao da metafsica. Considerando que a interrogao pela metafsica uma pergunta que se pe para alm dela, ele afirmou que a prpria pergunta j emerge de um pensamento penetrado na sua superao: ela nasce de um pensamento que j penetrou na superao da metafsica 66. No Posfcio de 1945, Heidegger aponta, com mais veemncia, as razes que impulsionaram a busca pela superao da metafsica. Recolocou sua recusa em aceitar que a cincia possa ser o ponto de partida para a aproximao essncia da metafsica. Toda pretenso da objetividade da cincia moderna na procura da verdade no passa de um rodopiar em torno do ente. Alm disso, o ente produzido por um clculo objetivo. No foi o fato objetivo de a cincia reproduzir o ente atravs de um clculo o motivo maior dessa recusa, mas o engano em que ela incorreu ao t-lo produzido e pensado que fosse o ser. Nisso residiu o maior equvoco da cincia: Mas pelo fato de toda objetivao do ente se exaurir numa produo e garantia do ente, conquistando, desta maneira, as possibilidades de seu progresso, permanece a objetivao apenas junto ao ente e j o julga ser67. O engano perpassou o modo de conhecimento do pensamento moderno, cientfico e filosfico, de modo que a inteno de atingir a verdade do ser no significou outra coisa que a verdade do ente:

Ibid Ibid. p.47 66 Ibid 67 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 47.65

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Esta verdade a verdade sobre o ente. A metafsica a histria dessa verdade. Ela diz o que o ente , enquanto conceitua a entidade do ente. Na entidade do ente pensa a metafsica o ser, sem contudo, poder considerar, pela maneira de pensar, a verdade do ser. A metafsica se move, em toda parte, no mbito da verdade do ser que lhe permanece o fundamento desconhecido e infundado 68.

O exposto nos aproxima da constatao mais significativa a partir da qual, Heidegger justifica a necessidade de perseguir a superao da metafsica e buscar-lhe um fundamento mais originrio. No lhe interessa somente acessar o ente, mas o que torna possvel o ente no seu fundamento. Para ele, o ser que se constitui na origem e fundamento do ente, e no o contrrio. Portanto, o desafio da metafsica deveria ter sido buscar o ser na sua verdade para poder anunciar a verdade do ser. Segundo ele, isso ainda no aconteceu, e a pergunta pela metafsica em seus fundamentos continua vigente:

suposto, porm, que no apenas o ente emerge do ser, mas que tambm, e ainda mais originariamente, o prprio que reside em sua verdade e que a verdade do ser se desdobra (west) como o ser da verdade, ento necessria a pergunta pelo que seja a metafsica em seus fundamentos 69.

A verdade do ser, portanto, o que deve se constituir no chamamento maior do pensamento que se dispe a escutar atentamente a voz do ser. Uma possibilidade de responder a esse apelo se configura no momento em que o ser-a humano se dispe a fazer o sacrifcio de ouvir a voz silenciosa do ser e somente a ele responder. Somente no sacrifcio, o homem pode fazer a experincia mais profunda do pensamento originrio: No sacrifcio, se realiza o oculto reconhecimento, nico capaz de honrar o dom em que o ser se entrega essncia do homem, no pensamento, para que o homem assuma, na referncia ao ser, a guarda do ser 70. A disposio do homem em assumir o sacrifcio de ouvir a voz do ser e guard-lo cuidadosamente pode dar-lhe as condies apropriadas para promover a despedida do ente e tornar-se defensor veemente do ser. Isso, naturalmente, marcar o seu lugar na histria de modo significativo. Procedendo dessa forma, o homem encontrar a palavra capaz de levar a

Ibid. HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores.p. 47. 70 Ibid. p. 5069

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verdade do ser at a linguagem. Uma vez encontrada a palavra, a linguagem se encaminha para sua destinao originria: dizer o ser. Nesse particular, Heidegger diz: o pensamento do ser protege a palavra e cumpre nesta solicitude seu destino71. A linguagem que se exaure no ente experimenta somente a angstia que acossa o homem e o dispe para o abismo do nada. O texto Posfcio finaliza com a retomada da questo do nada como velamento do ser e a imperiosa necessidade de o pensamento pensar o ser como a mxima plenitude do ente: o nada, enquanto o outro do ente, o vu do ser. No ser, j todo o destino do ente chegou originariamente sua plenitude 72. Em 1949, voltou a colocar e tomar posies sobre a metafsica. Dessa feita, ele investiu na tentativa de explicitar os seus descaminhos e apontar-lhe o mais significativo problema, qual seja o de no ter ainda conquistado o seu fundamento. Ela seria assim, uma rvore sem razes. No segundo pargrafo, levantou um conjunto de perguntas que atingiram a natureza da metafsica. Logo no terceiro pargrafo, ele retoma a velha e principal questo, que vem de 1929, ou seja, o seu apego ao ente. Ela pensa o ente enquanto ente 73. A partir disso, ele fez uma constatao de que todas as iniciativas, at ento, no se deram conta: o fato de as explicaes do ente no terem percebido que ele sempre aparece luz do ser. E, por no ter percebido isso, tambm no percebeu suas formas de desvelamento. Por essa razo, no teve como pensar o ser na sua essncia: o ser no pensado em sua essncia desveladora, isto , em sua verdade 74. Ela apenas se refere, inadivertidamente, ao ser quando se debrua sobre o ente. Sem a verdade do ser, a metafsica se mantm na superfcie do solo, sem nunca adentrar no subsolo, donde pode retirar seu alimento. nessa perspectiva que Heidegger afirma: A verdade do ser pode chamar-se, por isso, o cho no qual a metafsica, como raiz da rvore da filosofia, se apia e do qual retira seu alimento 75. Dessa forma, fica mais claro ainda, que a metafsica, que quer ter razes slidas, no poder ficar satisfeita com a simples representao do ente, acreditando estar residindo na casa do ser; onde ela pode encontrar o alicerce firme. O olhar de Heidegger sobre a metafsica vigente no seu tempo percebeu esse desenraizamento ou a falta de fundamento. Ela no pensou o ser como ser, nem sua verdade. Ento, o que fez? A resposta dele foi: ela apenas fez

Ibid. p. 51 Ibid. 73 HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores. p. 56 74 Ibid. 75 Ibid.72

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representaes do ente enquanto tal. Aqui est uma razo a mais da necessidade de sua superao. Diz Heidegger:

na medida em que constantemente, apenas representa o ente enquanto ente, a metafsica no pensa o ser. A filosofia no se recolhe em seu fundamento. Ela o abandona continuamente e o faz pela metafsica. Dele, porm, jamais consegue fugir. Na medida em que um pensamento se pe em marcha, para experimentar o fundamento da metafsica, na medida em que um pensamento procura pensar na prpria verdade do ser, em vez de apenas representar o ente enquanto ente, ele abandonou, de certa maneira a metafsica76.

No exposto, est o foco principal da crtica metafsica. No se trata de uma recusa metafsica como tal, mas da busca de um sentido originrio, enraizado num solo firme e no na superfcie arenosa e movedia. nessa perspectiva que se deve compreender a idia de superao pensar somente o ser em sua verdade: No pensamento da verdade do ser, a metafsica est superada 77. curioso notar-se a preocupao de Heidegger em livrar-se dos mau-entendidos do termo superao. Ele tem o cuidado de acentuar o que ela significa: Quando se fala assim, no desenvolvimento da questo da verdade do ser, de uma superao da metafsica, isto ento significa: pensar no prprio ser 78. Esse pensar no ser, portanto, significa o ultrapassamento da metafsica que Heidegger encontrou vigente no pensamento do Ocidente. A superao, como ele a entendeu, no foi apenas uma temtica, que se apresentou para a reflexo entre tantas outras. Ela se constitui numa questo central, que se fez fio condutor de suas investigaes desde muito cedo. A magnfica obra Ser e Tempo foi o grande comeo da efetivao do seu projeto. J naquele momento de 1927, Heidegger sentiu a necessidade de colocar o primado do ser em evidncia: A necessidade, a estrutura e o primado da questo do ser79. Sentiu que a questo do ser tinha cado no esquecimento. Logo na abertura do primeiro captulo, ele diz: Embora o nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a metafsica, a questo aqui evocada

Ibid. HEIDEGGER, Martin. Que a metafsica? trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1983. col. Os Pensadores. p. 56. 78 Ibid. 79 Idem; Ser e Tempo. Petrpolis: Vozes, 1997, p. 27.77

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caiu no esquecimento80. O pior ainda no ter cado no esquecimento, mas sequer ter sido colocada de maneira adequada: A questo sobre o sentido do ser no somente ainda no foi resolvida ou mesmo colocada de modo suficiente, como tambm caiu no esquecimento, apesar de todo o interesse pela metafsica81. Por essa razo, ele pensou na necessidade de proceder a uma destruio de todo o percurso feito pelo pensamento e legado na tradio. E, somente assim, reorientar a metafsica para o caminho que a conduziria a seu destino:

Caso a questo do ser deva adquirir a transparncia de sua prpria histria, necessrio, ento, que se abale a rigidez e o endurecimento de uma tradio petrificada e se removam os entulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como destruio do acervo da antiga ontologia, legado pela tradio. Devese efetuar essa destruio seguindo-se o fio condutor da questo do ser at chegar s experincias originrias em que foram obtidas as primeiras determinaes do ser, que desde ento, tornaram-se decisivas82.

Isso deixa claro que a idia de superar a metafsica foi uma pulso original no pensamento dele, cujo comeo foi Ser e Tempo: O pensamento, tentado em Ser e Tempo, pe-se em marcha para preparar a superao da metafsica assim entendida83. O que foi posto responde pergunta que fizemos no incio: O que a metafsica esqueceu de considerar que justifique sua superao? Por que a superao necessria? J vimos que no se trata de uma simples recusa superficial ou negativa. No se trata de substituir os conceitos nucleares da metafsica e dar-lhe um novo corpo doutrinrio, muito menos ainda da possibilidade de dar-lhe um fundamento e erigi-la como cincia rigorosa. Quando, em 1949, se perguntou pela necessidade de superao, o que se queria saber era se a aproximao ou o distanciamento da verdade do ser possibilitava o encontro do homem com sua prpria essncia, a ponto de sentir-se pertencente ao ser:

O que se deve decidir se o prprio ser pode realizar, a partir da verdade que lhe prpria, sua relao com a essncia do homem ou se a metafsica,80 81

Ibid. Ibid, p. 50 82 Idem; Ser e Tempo. Petrpolis: Vozes, 1997, p. 51 83 Idem; Retorno ao fundamento da Metafsica, p. 56

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desviando-se do seu fundamento, empedir, no futuro, que a relao do ser com o homem chegue, atravs da essncia dessa mesma relao uma claridade que leve o homem pertena do ser 84.

A partir da constatao de que a metafsica ainda no tinha atingido a sua essncia; assim tambm, a essncia da relao do homem como tal. Aqui cabe-nos perguntar se o interesse maior de Heidegger foi alcanar a essncia do homem em seu ser, ou apenas, enquanto ele indispensvel para a revelao da verdade do ser. Ele mesmo d resposta se referindo ao caminho comeado em Ser e Tempo: para alcanar o interior da relao da verdade do ser com a essncia do homem85. O fato que o caminho no tem como meta a essncia do homem em si mesma, mas a verdade do ser: Neste caminho, e isto quer dizer a servio da questo da verdade do ser, torna-se necessria uma reflexo sobre a essncia do homem86. Para evidenciar a implicao da relao do ser com a essncia do homem e a possibilidade de abertura do homem para a essncia do ser, ele formulou o termo SER-A. Defendendo-se dos usos indevidos que foram feitos do termo, ele explicitou o que entendeu por isso: Com ser-a designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experimentado como mbito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser adequadamente pensado 87. Com isso, fica clara a resposta da pergunta que fizemos. No foi pura e simplesmente o homem como tradicionalmente entendido que interessou a Heidegger. Mas o ser-a como possibilidade do lugar da verdade do ser. Outra pergunta: Qual a essncia do ser-a? A resposta foi dada j em Ser e Tempo: A essncia do ser-a consiste em sua existncia88. A existncia mesma foi compreendida como um modo de ser do ente que se abre para a prpria abertura do ser e que tambm o sustenta. A sustentao o que ele chamou de preocupao89, e esclarecendo o que existncia disse: Aquilo que deve ser pensado sobre o nome de existncia, quando a palavra usada no seio do pensamento que pensa, na direo

84 85

Ibid, p. 57. Idem; Retorno ao fundamento da Metafsica, p. 58 86 Ibid. 87 Ibid, p. 59 88 Ibid. 89 Ibid.

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da verdade do ser e a partir dela, poderia ser designada, de modo mais belo, pela palavra insistncia90. Com esse esclarecimento, ele reafirmou a necessidade de se pensar seriamente o que seria o prprio da existncia: in-sistir na abertura do ser, o sustentar da in-sistncia (preocupao) e a per-sistncia na situao suprema (ser para a morte)91

. Podemos dizer

agora que Heidegger intuiu que o homem o nico ente existente capaz de in-sistir na busca do desvelamento do ser. Ainda mais, somente ele entre todos os outros entes pode ter conscincia disso. Foi nesse sentido que ele afirmou: Somente o homem existe92

. A sua

essncia dada no fato de ter existncia e ter conscincia que, na existncia mesma, pode conquistar sua essncia, medida que desvelar o ser, a partir do ser e nele mesmo. Nesse sentido, ele afirmou:

o homem existe significa: o homem aquele ente em cujo ser assinalado pela in-sistncia ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A essncia existencial do homem a razo pela qual o homem representa o ente enquanto tal e pode ter conscincia do que representado93.

Uma outra questo que Heidegger considerou como motivo da superao da metafsica foi o fato de, na sua preocupao de representar o ente e somente ele, no ter passado de uma ontologia. Alm disso, h o fato de ter representado o ente em sua totalidade como o divino, ente supremo. Essa dupla maneira de proceder representao do ente a fez ser ao mesmo tempo uma ontologia e uma teologia. Sendo assim, a metafsica, em sua essncia, se constituiu como uma ontoteologia. H, portanto, uma unidade na forma como a metafsica representou o ente, e se esqueceu da verdade do ser, o que o afastou, cada vez mais, de fazer a experincia do ser em sua verdade.

1.3 A superao da metafsica e a possibilidade da tica.

90 91

Ibid. Ibid. 92 Idem; Retorno ao fundamento da Metafsica, p. 59 93 Ibid.

30

No final do texto onde Heidegger refletiu sobre o fundamento da metafsica, recolocou a questo posta no trmino do texto de 1929, por que o ente , e no antes, o nada? Com isso, reabre o carter problemtico da metafsica, que requer uma in-sistncia no revelar o enigma. E, assim, pergunta: o que permanece mais enigmtico, o fato de que o ente ou o fato de que o ser ?94 Isso justifica a sua deciso de ter retomado a problemtica questo da superao da metafsica em 1953. O texto retoma e desdobra as mesmas questes refletidas nos anteriores. No segundo inciso, ele j expe o que imaginou ser o prprio da metafsica e como deve ser entendida a idia de superao:

[...] o homem deve errar pelo deserto da desolao da terra. Isto pode ser um sinal de que a metafsica acontece com propriedade a partir do ser ele mesmo e a superao da metafsica acontece como uma sustentao do ser [...]. Depois da superao, a metafsica no desaparece. Retorna transformada e permanece no poder como a diferena ainda vigente entre o ser e o ente 95.

No entanto, foram postos conceitos novos, e autores que, at ento, pretenderam ter superado a metafsica, foram questionados. Tais so os conceitos de vontade de querer, subjetividade, vontade de poder, acabamento, crepsculos e os nomes de Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche. Tanto os nomes como os conceitos remetem ao pensamento moderno, onde Heidegger considerou acontecido o acabamento da metafsica, cumprido no esquecimento da diferena entre ser e ente. A aurora do fim comea com Descartes, que introduz e institui, na metafsica moderna, o homem como ente supremo, enquanto o torna sujeito, diante do qual todos os entes se tornam objetos. Ao perguntar quem era o homem no seio da metafsica moderna, ele acenou para o ncleo do significado do pensamento moderno: Ser apenas um eu que, na referncia a um tu, s faz consolidar sua egoidade confirmando-se na relao eu-tu? resposta dada foi afirmativa a partir de Descartes:96

.A

que todas as cogitations, o ego cogito pra Descartes o que j se representa pro-posto e im-posto, sendo o vigente, o inquestionado, o indubitvel, o que cada vez, j est no saber, o certo e sabido em sentido prprio, o previamente consolidado, o que pe tudo em referncia a si e deste modo se contrape a todo outro 97.

94 95

Ibid, p. 63. Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 62. 96 Idem, p.63. 97 Idem, p.64.

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Nisso est a condio do pensar moderno: pensar tudo a partir do sujeito. Tudo que pode ser verdadeiro, objetivo, certo somente est condicionado ao incondicionado do sujeito. O eu portanto se constitui no fundamento de tudo aquilo que . Aquilo que, em determinado ente, , somente o , quando passar pelo eu pensante que o pode representar como ente objetivo. nesse sentido que Heidegger diz:

Em sua insistncia, a consistncia refere-se essencialmente ao pr da representao como uma posse asseguradora que pe algo diante de si, que o prope. O objeto originrio a objetividade em si mesma. A objetividade originria o eu penso; no sentido do eu percebo, que j se apresenta e j se apresentou, subiectum 98.

medida que a filosofia moderna pensa no ente como tal, visando a uma representao asseguradora, ela no se encaminha apenas para uma espcie de ontologia transcendental, mas, tambm, para uma teoria do conhecimento. Dessa maneira, todo objeto se torna dado para o conhecimento, que pode afirmar a verdade e a certeza. O feito de lanar o pensamento metafsico para o transcendental, onde, mediante o conhecimento, se decide sobre a verdade e a certeza, deve-se a Kant. Segundo Heidegger, Kant modifica a verdade em certeza e torna os entes em objetividade da percepo e da cogitatio da conscincia e do saber. Ao explicar em que medida Kant assegura a metafsica moderna, afirma: medida que a verdade se transforma em certeza e, assim, a entidade dos entes (ousia) se torma a objetividade da perceptio e da cogitatio da conscincia, do saber, empurrando o saber e o conhecer para o primeiro plano99. No julgamento de Heidegger, o esforo de Kant no significou outra coisa que constituir a teoria do conhecimento como metafsica e ontologia, que assumiu a verdade como certeza, atravs da representao. No fundo, o que conseguiu Kant foi transformar o ser em objetividade e representao proposicional100. Se h uma metafsica no nvel do conhecimento, no passa de uma metafsica dos objetos para o sujeito: Trata-se, na verdade, de uma metafsica do objeto, ou seja, dos entes enquanto objetos, objetos para um sujeito101.

98 99

Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 64. Ibid, p. 65. 100 Ibid. 101 Ibid.

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Por conta disso, os esforos de Kant ficaram longe de significar o incio do acabamento da metafsica. Contudo, ele possui um comeo. Esse comeo se materializa com Hegel, que propugnou a vontade do esprito atingir o saber absoluto: O acabamento da metafsica tem incio com a metafsica hegeliana do saber absoluto enquanto vontade do esprito102. Em Hegel, a finitude da subjetividade alcana a condio de sujeito absoluto. Aparecer, de modo absoluto, , para ele, o destino prprio do esprito. A Fenomenologia do Esprito pode ser lida como a auto-representao do esprito, que aparece nas vrias modalidades da conscincia, at reconhecer-se como esprito absoluto. Assim, o esprito, no seu movimento de determinaes finitas, se encontraria como verdade e certeza. Nesse sentido, Heidegger se perguntou: a certeza incondicionada no chegou a essa metafsica sob a forma de realidade absoluta? Ser que ainda existe uma possibilidade de ultrapassagem?103. Sua resposta negativa. Pois, a possibilidade da passagem incondicional para dentro de si mesmo enquanto vontade de viver ainda no acabou104. Da mesma maneira, a vontade de querer no apareceu na realidade por ela mesma preparada105. Porque o recolhimento para a vontade de viver permanece aberto e a vontade de querer ainda no foi efetivada, a metafsica de esprito absoluto no significou o acabamento da metafsica. Nas palavras de Heidegger: Por isso, a metafsica ainda no se acabou com a metafsica absoluta do esprito106. Dessa forma, terminou produzindo a reduo do ser a natureza. Portanto, um ente. Nisso no levou a srio a liberdade e o dever. No os pensou como ser. Apenas fez a contraposio entre ser e dever, ser e valor107. Estava estabelecido, com isso, o desvio da vontade que tornaria tambm o ser um valor: To logo a vontade alcance seu mximo desvio, tambm o prprio ser torna-se, ele mesmo, um mero valor. Pensa-se, ento, o valor da condio da vontade108. E o que se estabelece depois desse desvio? A fatalidade da dominao planetria, da metafsica, onde uma vontade entra em choque com a outra. Com a efetivao do desvio, a humanidade v-se fadada a assegurar-se no ente109. Assim, atada ao ente, ela no pode fazer uma experincia de ser do ente como dobra de ambos110.

102 103

Ibid. Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 65. 104 Ibid. 105 Ibid. 106 Ibid, p. 66 107 Ibid. 108 Ibid. 109 Ibid, p. 67

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Ora, como j foi visto, o ser s vem luz em sua verdade quando se tem clareza da diferena entre ser e ente. Diz ele mais uma vez: [...] o prprio ser apenas pode vir luz em sua verdade, na diferena resguardada entre ser e ente, e isto quando a diferena ela mesma se d e acontece com propriedade111. Fazer a experincia profunda do ser, resguardando-se da diferena entre ser e ente, foi o que Heidegger imaginou dever ser a caracterstica fundamental do acabamento da metafsica. No entanto, a experincia no foi feita, e a diferena ainda se mantm velada na Histria. Por isso, necessrio insistir na superao em funo daquilo que ela significa:

A superao da metafsica pensada na dimenso da histria do ser. Ela prenuncia a sustentao originria do esquecimento do ser. Mais antigo embora tambm mais escondido do que o prenncio o que nele se anuncia. Trata-se do acontecimento do prprio. O que, no modo de pensar da metafsica, aparece como prenncio de uma outra coisa, chega e toca como brilho derradeiro de uma clareira mais originria. A superao permanece digna de ser pensada somente enquanto se pensa a sustentao. Esse pensamento insistente ainda pensa a superao. Tal pensamento faz a experincia do acontecimento singular da des-apropriao dos entes, que se iluminam a indigncia da verdade do ser e a originalidade da verdade, e tambm transluz com desprendimento o vigor essencial do humano. A superao a trans-misso da metafsica em sua verdade112.

Podemos nos perguntar se a trans-misso da metafsica, como ultrapassamento e misso foi efetivada por Nietzsche? Heidegger respondeu que as tentativas de Nietzsche no passaram de um platonismo invertido:

A revirada do Platonismo, no sentido conferido por Nietzsche, de que o sensvel passa a constituir o mundo verdadeiro e o supra-sensvel o noverdadeiro, permanece teimosamente no interior da metafsica. Essa espcie de superao da metafsica, que Nietzsche tem em vista e tem no sentido do positivismo do sculo XIX, no obstante numa transformao mais elevada , no passa de um envolvimento definitivo com a metafsica113.

110 111

Ibid. Ibid. 112 Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 68. 113 Ibid, p. 68-69

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Atribuir ao sensvel o mbito do verdadeiro permanecer nele e negar a dimenso transcendente do meta: Nisso no faz outra coisa do que dar acabamento ao esquecimento do ser liberando e ocupando o supra-sensvel como vontade de poder114. Nesse procedimento de Nietzsche, Heidegger v uma interdio do destino, que se consolida como abertura de manifestao do ser dos entes. A falta de destino se estabelece, portanto, pela vontade de querer: A vontade de querer tudo enrijece numa ausncia de destino115. Em decorrncia disso, teve-se o mergulhar na dimenso do no-histrico. Alm do mais, para impor-se, de modo incondicional, e garantir, a todo custo, sua prpria manifestao, a vontade de querer obriga para si mesmo o clculo e a institucionalizao de tudo como formas fundamentais de manifestao116. Estvamos agora na era da metafsica acabada117. O modo como a vontade de querer se institucionaliza e calcula no mundo nohistrico, Heidegger chama de tcnica: Pode-se chamar, numa palavra, de tcnica a forma fundamental de manifestao em que a vontade de querer se institucionaliza e calcula no mundo no-histrico da metafsica acabada118. A tcnica no foi compreendida por Heidegger apenas como uma habilidade para fabricar ou produzir. Ela teve um significado mais profundo e abrangente. Para ele, engloba todos os setores dos entes que equipam a totalidade dos entes: a natureza objetivada, cultura ativada, poltica produzida, superestrutura dos ideais119. O predomnio da tcnica em dimenses to abrangentes em nvel planetrio significou, para Heidegger, o acabamento da metafsica120. Pensou ele que a vontade de querer viabilizou a vontade de poder que se plasmou como tcnica. Com isso, apareceu o limite da vontade de querer, ela quer apenas a entidade dos entes. Para conquist-las ela precisa calcular e planejar bem, a fim de que o seu desempenho tenha eficcia. Os grandes conceitos que foram privilegiados por Nietzsche, como vida, verdade, arte e eterno retorno do mesmo, serviram vontade de poder, como vontade de ente, como tcnica. Referindo-se a verdade e a arte como constitutivos da vontade de poder, ele disse:

114 115

Ibid, p. 69 Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 69. 116 Ibid. 117 Ibid. 118 Ibid. 119 Ibid. 120 Ibid.

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No conceito de vontade de poder, ambos os valores constitutivos (verdade e arte) no passam de circunscries da tcnica121. A partir do estabelecimento da tcnica, se configurou um novo modo de estar no mundo, onde nada mais tem sentido fora dela. Todas as possibilidades de pensar e agir j a tm como pressuposto. A tcnica, como expresso concreta da vontade, significou, portanto, o acabamento da metafsica, uma outra forma para a convivncia na terra e o fim das prprias possibilidades de pensar. Essa foi a convico de Heidegger:

Com a metafsica de Niestzsche, a filosofia acabou. Isso quer dizer: ela j percorreu todo o mbito das possibilidades que lhe foram presignadas. O acabamento da metafsica que constitui o fundamento do modo planetrio de pensar, fornece a armao para uma ordem da terra, provavelmente bastante duradoura. Esta ordem j no mais precisa da filosofia, porque de h muito sucumbiu. Com o fim da filosofia, porm, o pensamento no est no fim, mas na ultrapassagem para um outro comeo122.

A vontade de poder alcanou o seu status mximo e se constituiu em nico regulador e dessa forma, o correto e exato123. Na condio de incondicional, Heidegger viu o afastamento definitivo da verdade: O correto e exato denomina o verdadeiro e marginaliza a verdade124. medida que a vontade realiza aquilo que ela quer, termina banindo o seu objeto, quer dizer, a sua prpria vontade acaba-se. Por no ter mais uma meta a atingir, ela se centraliza nos meios. No fim de tudo, a vontade fica sem a sua essncia: A falta de meta essencial da vontade incondicional de querer constituiu o acabamento da essncia da vontade125. Sem ter mais o que querer, a vontade termina querendo a si mesma. Torna-se contedo para si: a vontade pura quer a si mesma, e como vontade, ser. Vendo-se a partir de seu contedo, a vontade pura e suas leis so formais. Enquanto forma, ela mesma o nico contedo126.

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Ibid, p. 71 Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 72. 123 Ibid, p. 76 124 Ibid, p. 77. 125 Ibid. 126 Ibid.

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No entanto, essa vontade de querer, s vezes se personificou nos homens, dando-lhes a impresso que eles eram a origem dessa vontade. Heidegger afirmou que acontece o contrrio. O homem que foi querido pela vontade de querer e no se apercebeu disso: Na verdade, o homem quem querido pela vontade de querer, sem se dar conta da essncia da vontade127. Assim, no o homem que detm a vontade de poder, mas o poder que detm o homem. Por causa disso, ele considerou que toda luta de poder j est possuda antecipadamente por ele. Devido ao apoderamento, o homem fica sem alternativa para sair do esquecimento do ser: o poder, entretanto, apodera-se de tal forma da humanidade que desapropria o homem da possibilidade de dispor de um caminho para sair do esquecimento do ser128. Desde essa perspectiva, ele considerou que qualquer luta seria refratria a deciso. No haveria o que decidir. No tendo o que decidir, tambm no poderia distinguir. Restarlhe-ia apenas a luta, o no destinal e a obrigao de deixar o ser. Nas palavras de Heidegger: no h o que decidir, pois ela permanece excluda de toda ciso e distino (de ser e ente) e assim de toda verdade. Pela sua prpria fora, essa luta v-se obrigada ao no destinal: v-se obrigada a deixar o ser129. Sem ter um destino para o qual se encaminhar, sem poder decidir nem distinguir, a humanidade entrou no niilismo. Agora o vazio a plenifica e a arrasta, cada vez mais, para uma servido incondicionada130. Nessa situao, todas as anunciaes de ideais, valores, formas de aes, necessidade absoluta do esprito no passam de expresses do vazio. Diante de uma tal situao, o homem torna-se um sub-homem. O que lhe resta a fazer? Ele precisa tornar-se um super-homem e tentar reafirmar o seu eu. O modo de proceder dessa afirmao se concretiza no consumo dos entes no fazer da tcnica131. Precisa, para isso, de mobilizar, regulamentar, planejar a produo e o uso dos entes. Tudo agora tem que ter utilidade, e a ela mesma intensificar. Produzir para consumir e consumir para produzir tornam-se o alento do homem, que pode fazer matria-prima de tudo em funo do uso e abuso dos entes. Nesse processo de produzir e consumir, Heidegger considerou que o homem uma matria-prima indispensvel, j que ele quem produz e consome: o homem tambm se acha includo nesse processo, no podendo mais esconder seu carter de matria-prima

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Ibid. Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 78-79. 129 Ibid, p. 79. 130 Ibid. 131 Ibid, p. 80.

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mais importante. O homem a matria-prima mais importante porque permanece o sujeito de todo e qualquer uso e abuso132. Apenas matria-prima e, ao mesmo tempo, sujeito dos usos e abusos, o homem tornase um objeto entre outros. O seu mundo passa a ser um no-mundo. o mundo torna-se semmundo133, diz Heidegger. Somente a vigncia do poder e seus ordenamentos operativos existem. Nessa circunstncia, onde o homem no tem um destino para se dirigir, poder para decidir e mundo para dar sentido a sua existncia, resta-lhe apenas seguir a errncia do uso dos entes134. Na errncia, ele segue instintivamente calculando tudo para de tudo se apoderar, como um verdadeiro super-homem. Nesse mpeto de super-homem, de tudo calcular para tudo consumir, ele no se deu conta que estava vivendo condio de sub-homem e igualando-se aos animais: Ao poder incondicional do super-homem corresponde a total liberao do subhomem. A pulso animal e a razo humana, tornam-se idnticas135. Na avaliao de Heidegger, o clculo garantiu a uniformidade e baniu as diferenas entre as naes. Alm disso, ela fundamento das disputas pela hegemonia do consumo dos entes: A uniformidade no conseqncia, mas o fundamento dos conflitos armados entre os vrios pretendentes hegemonia do abuso dos entes, com vistas a assegurar o seu ordenamento136. A uniformidade que tudo nivela obedece apenas ao Princpio de desempenho, que passa a decidir sobre o que serve e o que importante. Assim, na busca da utilidade e operatividade, o homem segue errante na terra sem mundo: A terra aparece como o sem-mundo da errncia. Na dimenso da histria do ser, a terra a estrela errante137. A errncia da terra , portanto, o destino sem destino de um mundo que abandonou o ser em funo do predomnio da vontade. Essa vontade se concretizou como tcnica e pode esgotar a terra at a exausto: S a vontade que, a toda parte, se instala na tcnica, esgota a terra at a exausto, o abuso e a mutao do artificial138. Haver ainda uma reviravolta da tcnica, que possa transformar a situao do mundo? Heidegger no acreditou nessa possibilidade e disse que nenhuma mera ao poder

transformar a situao do mundo, enquanto operatividade e operncia, o ser veda o acesso de

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Ibid. Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 80 134 Ibid, p. 81. 135 Ibid, p. 82 136 Ibid, p. 84 137 Ibid, p. 84-85. 138 Ibid, p. 85.

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todos os entes ao acontecimento do que lhe prprio139. No entanto, perguntou se a desmesura da dor pode ainda provocar o homem para uma transformao? Isso s seria possvel se o homem decidisse reencontrar a sua essncia, mediante a clareira do acontecimento do prprio. Isso lhe permitiria olhar com profundidade e enxergar o caminho de uma construo pensante140. Pois uma coisa usar a terra, outra acolher a sua beno e familiarizar-se na lei desse acolhimento de modo a resguardar o segredo do ser e encobrir a inviolabilidade do possvel141. Se uma ao operativa no poder transformar a situao do mundo, que outra modalidade de agir o poder? Em outras palavras, ainda possvel se pensar num agir tico? Um olhar superficial nas palavras iniciais da Carta sobre o humanismo, de 1945, se depara com uma constatao, que j aponta para o horizonte da compreenso de Heidegger da possibilidade de uma tica. A constatao aparece assim: Estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essncia do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito. Sua realidade efetiva avaliada segundo a utilidade que oferece142. A constatao mostra claramente que o mbito de se pensar a essncia do agir tem sido condicionado pelas armaduras da tcnica. E, enquanto o agir for pensado sob a gide da produo e da utilidade, ficar cada vez mais distante do que lhe prprio. Segundo ele, a essncia do agir o consumar aquilo que j e lev-lo at a sua plenitude143. O que , fundamentalmente, o ser. Ento, um agir que reivindica o denominativo da tica tem, como tarefa prioritria, consumar o ser. Quem realizar essa tarefa? Poderamos achar que dizer simplesmente o homem seria uma resposta satisfatria. Mas no . o pensar que tem que abraar tamanha tarefa. No no sentido de que ele vai consumar o ser e garantir a sua relao com a essncia do homem. claro, para Heidegger, que o pensar consuma a relao do ser com a essncia, mas no produz nem efetua esta relao144. O pensar apenas devolve ao ser aquilo que lhe foi confiado pelo prprio ser: ele apenas oferece-a ao ser, como aquilo que a ele foi prprio, foi confiado pelo ser145. O modo adequado de ofertar foi apontado por ele como a linguagem139 140

Ibid, p. 85-86. Idem. Superao da metafsica. In: Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Vozes, 2002, p. 86. 141 Ibid, p.85. 142 Idem. Sobre o Humanismo. In: Conferncias e escritos. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 149. 143 Ibid. 144 Ibid. 145 Ibid.

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que a casa do ser, na qual mora o homem: A linguagem a casa do ser. Nesta habitao do ser mora o homem146. O agir tico no se configura como ao do homem para com o outro homem, mas como pensar. O agir que Heidegger teve em mente foi o prprio pensar: o pensar age enquanto se exerce como pensar147. A este pensar, ele atribui os qualificativos de mais singelo e mais elevado, porque interessa relao do ser com o homem148. No so as dinmicas vivas que afetam cada indivduo nos mais variados mbitos que poderiam elevar o pensamento enquanto as considera, mas somente o ser e to somente o ser. No entrou em cogitao outra possibilidade de engajamento: Pensar o engajamento pelo ser e para o ser149. No foi, portanto, a proximidade dos homens que ele teve em vista como provocao para o pensar. O que ele entendeu como prximo foi o ser: o ser o mais prximo150. O agir que pretendesse encontrar-se mais prximo de sua verdade teria que imbricar-se nessa proximidade mesma: mais prximo que o prximo e ao mesmo tempo mais remoto que o mais longquo para o pensamento corrente, esta proximidade mesmo: a verdade do ser151. Por conseguinte, a essa verdade em que o homem deve engajar-se para alcanar sua prpria humanidade. No o homem o elemento essencial na determinao de sua prpria humanidade como ente existente. Diz Heidegger: Assim, o que importa na determinao da humanidade do homem enquanto ec-sistncia que no o homem o essencial, mas o ser enquanto a dimenso do elemento ec-sttico da ec-sistncia152. Como j foi dito, a essncia do homem reside na sua existncia, e esta, por sua vez, recebe a sua importncia do ser. Com isso, se evidencia que as possibilidades da tica esto circunscritas no domnio do ser. ele, portanto, que se constitui como a clareira do caminho do agir e, ao mesmo tempo, o ponto de chegada. Sendo assim, se cruzam, no mesmo ndulo, o pensar, o ser e a humanidade do homem: Pensar a verdade do ser significa, ao mesmo tempo: pensar a humanitas do homo humanus153. O que foi exposto impe, necessariamente, a concluso de que o pensamento como agir eminentemente ontolgico. E a tica como tal? Ele advertiu que deve dedicar-se todo o146

Idem. Sobre o Humanismo. In: Conferncias e escritos. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 149. 147 Ibid. 148 Ibid. 149 Ibid. 150 Ibid, p. 158. 151 Ibid, p. 158-159. 152 Ibid, p. 159. 153 Ibid, p. 169.

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cuidado possibilidade de criar uma tica de carter obrigatrio154, face s armadilhas do agir planejadas massivamente pela tcnica. Reconhecendo que a tica teve origem com a fsica e a lgica em Plato e Aristteles, logo se tornou cincia passvel de ser ensinada nas escolas. Com isso, ela perdeu o seu carter essencial. Por causa dessa transformao, ele retrocedeu aos pensadores mais antigos e neles percebeu o anncio da tica, de modo mais radical. Referindo-se a Sfocles, ele disse: As tragdias de Sfocles ocultam [...] em seu dizer, o thos de modo mais originrio que as prelees de Aristteles, sobre a tica155. Isso revela a sua inteno de fugir das elaboraes que pretenderam dizer o thos, e no entanto, o deixaram encoberto na sua essncia. Na busca da essncia do thos, ele se deteve na anlise do fragmento 19, de Herclito, que diz: thos antrpos damon traduzido como: o modo prprio de ser para o homem o demnio. Heidegger observou que essa traduo insere o seu significado no modo de pensar moderno e no grego. Num sentido mais radical, ele traduz:

thos significa a morada, lugar da habitao. A palavra nomeia o mbito aberto onde o homem habita. O aberto de sua morada torna manifesto aquilo que vem ao encontro da essncia do homem, assim, aproximando-se, demora-se em sua proximidade. A morada do homem contm e conserva o advento daquilo a que o homem pertence em sua essncia. Isto , segundo a palavra de Herclito, o damon, o Deus156.

Compreendido como morada, habitao se distingue de todo comportamento terico ou prtico. O habitar comporta atos simples do homem, como aquecer-se do frio, proteger-se de perigos, alimentar-se e dormir. o lugar que situa o homem no mundo e o dispe para as suas possibilidades e destino. A nica casa que o homem poderia morar e nela encontrar proteo segura foi o ser: o ser a proteo que guarda o homem em sua essncia ecsistente157. tambm a partir do ser que ele poder pensar o seu prprio destino: o ser como o destino do pensar158. Ento, pensar o ser dever apresentar-se ao homem existente

154

Idem. Sobre o Humanismo. In: Conferncias e escritos. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 169. 155 Ibid, p. 170. 156 Ibid. 157 Idem. Sobre o Humanismo. In: Conferncias e escritos. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). p. 173. 158 Ibid, p. 174.

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como a habitao mais fundamental: A ec-sistncia habita, pensando, a casa do ser159. Assim, seguro em sua morada mais essencial, cabe ao homem, to somente, esforar-se para dizer de forma apropriada o ser. medida que o pensar recolher a linguagem para a proximidade do ser, ela se converter em linguagem do ser. Dele ela receber as normas que se constituiro em leis orientadoras do agir, do pensar e do dizer. A partir dessa orientao, o pensar consuma o agir e se pe alm das operaes prticas e produtivas. Pois encontra-se com o mais originrio do homem, que o habilita para morar e cuidar da habitao do ser. Nessa morada, o homem torna-se mais homem pleno.

1.4 A Reao a Heidegger: A Emergncia do Existente

Antes da reao crtica ao pensamento de Heidegger, necessrio considerar que Levinas o acolheu e foi, por ele, influenciado. Desde cedo, muitos autores influenciaram, de forma decisiva, o pensamento de Levinas. Entre tantos outros, podemos citar Franz Rosensweig, E. Husserl, Martin Buber, Kant, Hegel, Durkheim e Bergson. No entando, necessrio indicar que a natureza da relao , fundamentalmente, diferenciada. Husserl e Heidegger fizeram parte da experincia de vida estudantil de Levinas, em Estrasburgo. Isso implica um relacionamento que contm um elemento diferenciador da pura relao intelectual, como o caso de Hegel, que uma experincia puramente terica. E, portanto, no traz em si a viso da cor da pele, o som da voz, o brilhar dos olhos e o movimento do corpo nos seus mais variados gestos. A experincia da convivncia no , decerto, a nica diferena da relao com Hegel. Um elemento que tem que ser considerado como importante, um detalhe que, a nosso ver, tambm merece ser apontado, em relao a Hegel, o fato de ser mais explcita a relao de confronto crtico do que de assimilao. Quanto influncia de Heidegger, deve-se dizer, de sada, que se trata de uma questo merecedora de um trato mais cuidadoso, haja vista a importncia conferida por ele a sua obra, principalmente a Ser e Tempo. Levinas no hesita em esbanjar elogio a essa obra, dizendo: "Muito cedo tive grande admirao por este livro. um dos mais belos livros da histria da159

Ibid.

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filosofia-digo-o aps vrios anos de reflexo. Um dos mais belos entre quatro ou cinco outros160. Foi Ser e Tempo, pelo visto, que despertou o interesse de Levinas e, certamente, se constitui, para ele, na obra representativa da sua filosofia. Essa representatividade se impe como eminente, s