estórias contadas

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Page 1: Estórias Contadas
Page 2: Estórias Contadas

Contents

Ficha Técnica

Cabo Verde é o centro do mundo

Uma forma de identidade africana

Uma perspectiva da identidade cabo-verdiana

Page 3: Estórias Contadas

O nosso cônsul

O Dragão do Atlântico

A saúde de todos no ano 2000

O melhor vintage

Page 4: Estórias Contadas

O escritor meu primo

O vinho, o futebol e a poesia

Um caranguejo leonino

Os agravos de um escritor

Page 5: Estórias Contadas

A verdade de cada um

O bloco comum da CPLP

Um desagravo a Lisboa-94

Da posse útil à pesca responsável

Page 6: Estórias Contadas

A minha cadeira

Ou Queirós ou eu!!!

O grande condestável

Um cão linguiço-dependente

Page 7: Estórias Contadas

Um polícia às direitas

Os ilhéus e o mundo

Das repetições da história

Em busca do nosso imaginário colectivo

Page 8: Estórias Contadas

C’mê Deus

Horrivelmente belo

O best-seller

O quarto das visitas

Page 9: Estórias Contadas

A Schengen burocrática

Traído pela língua

A noite dos «leões»

Um homem primitivo

Page 10: Estórias Contadas

A entrevista

Os ossinhos partidos

Prò ano será de certeza!

O primeiro lugar

Page 11: Estórias Contadas

O feitiço do tabaco

Djack, o guarda-redes

Os mal-entendidos do riso

Na morte de um escritor da CPLP

Page 12: Estórias Contadas

Uma questão de palavras

As surpresas do futebol

Proibido mencionar

Nós os trouxas

Page 13: Estórias Contadas

Eu, comendador, me declaro

Vinte e um anos depois

O preço do progresso

Talentos encobertos

Page 14: Estórias Contadas

O velho Malaquias morreu

Filho de Faro

Hospedado em Jena

The teacher

Page 15: Estórias Contadas

Os el niños de Lisboa

Como Moisés no monte Sinai

Carnaval sportinguista

Barbeiro

Page 16: Estórias Contadas

Glossário

Page 17: Estórias Contadas

Ficha Técnica

Título: ESTÓRIAS CONTADASAutor: Germano Almeida

Design Gráfico e Ilustração da capa: José SerrãoISBN: 9789722121811 Editorial Caminho, SA

[Uma chancela do grupo Leya]Rua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide – Portugal

Tel. (+351) 21 427 22 00Fax. (+351) 21 427 22 01

© Editorial Caminho, SA, Lisboa — 1998Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

www.caminho.leya.comwww.leya.pt

Page 18: Estórias Contadas

Cabo Verde é o centro do mundo

Para a Argentina

Nos dias da minha infância, costumávamos ir brincar pelos lados de um túmulo que fica isolado, a cerca de dois quilómetros da vila de Sal Rei na ilha da Boa Vista, e a que chamávamos o cemitério de «Maria de Patingole». Já sabíamos ler português com relativa facili-dade, mas o cemitério de «Maria de Patingole» continuava um misté-rio fascinantemente indecifrável, porque a bonita pedra de mármore que o cobria continha um bom número de palavras completamente estranhas, não obstante escritas com letras já de nós bem conhe-cidas, mas onde apenas entendíamos Julia Maria Louisa, 1825, e, quase no final da lápide, November 21, 1845.

Afora o «cemitério», pouco mais já restava de «Maria de Patingo-le», para além da vaga memória de ser filha de um inglês que tinha vivido na Boa Vista e ter sido uma das vítimas da grande cólera de 1845. Abalado pela morte, o pai abandonou a ilha e nunca mais re-

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gressou, e constava que teria morrido louco, num qualquer lugar da distante e fantástica África.

Naquele tempo, o mundo todo resumia-se à ilha da Boa Vista. É certo que dos mapas dos livros da escola primária nós tínhamos uma confusa consciência de outras terras, cujos nomes éramos obrigados a decorar e depois salmodiar à professora, valendo uma reguada ou uma palmatoada cada serra ou rio omitidos. Porém, a sua existência resumia-se ao pedaço de papel às cores e riscas diversas fixado na parede da escola e que percorríamos rapidamente e a breves saltos do pequeno indicador. Nada comparado à imensidão da nossa ilha, que exigia um dia de jornada, fosse a pé fosse a lombo de burro, de uma povoação para outra.

«Maria de Patingole» tinha o mesmo mistério dos encantadores nomes das serras de Portugal. «Sistema luso-castelhano: Malcata, Estrela, Lousã, Sicó, Aire, Candeeiros, Montejunto e Sintra, entre os rios Mondego, Zêzere e Tejo.» Apenas a sua realidade era maior, porque sabíamos que ela estava ali sozinha e abandonada debaixo daquele mármore que muito lentamente o salitre ia consumindo.

Viria a ser o padre Higgino di Roma a avançar os primeiros passos para a nossa decifração do mistério dos hieróglifos, numa tarde em que o levei a visitar «Maria de Patingole». Ele logo estabeleceu como sendo inglesa a língua da pedra e mandou-me copiar num pedaço de papel a inscrição completa. E em casa, embora um bocado labo-riosamente e com a ajuda de um dicionário inglês-português que fui pedir emprestado, traduziu: «Aqui estão enterrados (the remains) os restos mortais, de Julia Maria Louisa (the beloved) duas vezes amada... (talvez melhor ficasse a muita amada) filha de Charles Pettingal (arbitrator, podia traduzir-se por árbitro ou juiz), de Sua Majestade Britânica na (Court...) (court tanto podia ser o tribunal como a corte dos reis ou mesmo um simples pátio ou quintal), da (Mixed Comission...) Comissão Mista, nascida em Janeiro de 1825 e falecida a 21 de Novembro de 1845....

Se por essa via ficou explicado o nome de «Maria de Patingole», nem por isso ficaria esclarecido o facto lamentável de uma moça,

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que devia ter sido bonita por falar numa língua tão melodiosa, ter morrido aos 20 anos de idade e muito menos a proveniência daquela pedra tão bela, com letras, palavras e flores tão bem talhadas.

Mas de qualquer modo a ilha da Boa Vista já não era todo o mun-do, porque lá estava «Maria de Patingole» a provar que havia outros mundos. Mas éramos, sem dúvida, o «centro do mundo», onde tudo vinha parar e morrer, desde ingleses de Sua Majestade a judeus de Rabat, como se podia confirmar pelo pequeno cemitério, a 500 me-tros do túmulo de Maria, onde repousavam Isaak Ben’Oliel e seus descendentes.

Conta-se que Deus já tinha acabado de fazer o mundo e distribu-ído as riquezas que deveriam alimentar os seus filhos que nele ia co-locando, negros na África, brancos na Europa, amarelos nas Ásias e Américas, quando reparou nas suas mãos, ainda sujas de restos de barro. Sacudiu-se ao acaso no espaço, mas, pouco depois, viu pe-quenas ilhas brotando algures perto da África. Ah!, disseram-lhe os seus ajudantes, você já criou por aí mais umas terras, só que já não tem nem mais riquezas nem mais gente com que as dotar e é muito natural que no futuro venha a questionar-se sobre o seu sentido de equidade.

Deus não tinha pensado nisso, não tinha sido sua intenção criar mais nada, aquilo tinha sido um gesto distraído, mas nem por isso se atrapalhou: «Não tem qualquer importância», terá respondido. «Com tanta terra que já espalhei por aí, por mais empenho e vigor que os meus filhos venham a meter no rigoroso cumprimento da minha ordem de crescerem e se multiplicarem até encher a terra, nin-guém vai ter necessidade de habitar essas ilhas.»

Bem, desconhecendo ou mesmo propositadamente desobedecen-do ao comando Superior, os portugueses transformaram Cabo Ver-de num entreposto de escravos, de onde os distribuíam para as Amé-ricas e a Europa. Quando a escravatura deixou de ser um negócio rendoso, entregaram as ilhas a donatários, depois de nelas meterem negros de diferentes etnias e brancos europeus na maioria portu-gueses. E depois «esqueceram-se» delas, esquecimento que, diga-se

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francamente e em boa verdade, se entroncava directamente na divina distracção: não havia riquezas a explorar!

Mas também é muito natural que Deus tivesse tido em vista um outro projecto bem mais complexo e que de imediato não quis re-velar aos seus colaboradores: criar um laboratório experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea pode-ria sair. E saiu o homem cabo-verdiano.

A 5 de Julho, comemora-se a independência de Cabo Verde. E dizia-me, há tempos, um cabo-verdiano convencido de que a data coincidia com a dos Estados Unidos da América: «Dois grandes pa-íses: Cabo Verde e América!»

Claro que traduzido para o português a frase perde grande parte do seu pitoresco sabor, perde mesmo toda a ingénua mas deliciosa bazofaria nacional, sobretudo porque é completamente indescritível o solene e absolutamente convincente menear de cabeça que a acom-panhou. Mas é assim o cabo-verdiano: orgulhoso do centro da terra onde vive, sofre e labuta contra a permanente estiagem, os olhos no estrangeiro, o coração nas ilhas.

E nem a emigração teve poder suficiente para fazer perigar esse «eixo» dolorosamente nascido do isolamento. Porque sendo um país que conta no exterior com mais do dobro da sua população interna, muito facilmente poderia sofrer efeitos erosivos catastróficos a nível cultural e de identidade. Mas o cabo-verdiano continua carregando consigo a sua cultura, vivendo nas sete partidas a cachupa, o gro-gue e a morna, e nunca hesitando em evidenciá-la, porque nada no mundo será capaz de o fazer aceitar que Cabo Verde não continua o centro do mundo.

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Uma forma de identidade africana

Foi quando frequentava a 4.ª classe da instrução primária que fi-quei a saber que além de cabo-verdiano da Boa Vista também era português de Portugal.

Mas foi uma descoberta extremamente gratificante. Em primeiro lugar, porque estávamos justamente aprendendo que Portugal era dono de muitas e imensas terras de aquém e além-mar em África e outras partidas do mundo, e isso queria dizer que na qualidade de portugueses éramos igualmente ricos em ouro, diamantes e outras preciosidades que íamos conhecendo dos livros, embora sem saber muito bem que valor tinham ou para que serviam.

Em segundo lugar, porque essa excitante revelação coincidiu com a meteórica visita do Presidente Craveiro Lopes à Boa Vista. Nós já sabíamos que o Presidente da República estava para chegar, o velho pontão de madeira estava sendo urgentemente reparado para o de-sembarque de Sua Ex.ª com a dignidade que se impunha, mesmo a rua por onde o cortejo deveria passar estava já toda engalanada com ramos de tamareira e diversas fotografias de gente importante, mas foi só no próprio dia da chegada do homem que nos vimos surpre-endi dos com a agradável novidade, escrita em enormes letras negras numa grande tira de pano branco esticada entre dois postes enfeita-dos com ramos de tamareira, de que «AQUI É PORTUGAL».

É certo que poderíamos ter tido consciência desse importante por-menor há muito mais tempo. Entre outros sinais, havia a fotografia de António Oliveira Salazar dependurada em todas as repartições

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públicas por cima da legenda «mais fácil é obedecer que mandara, e também a velha e já esfarrapada bandeira que todos os domingos era cuidadosamente içada no edifício da Câmara Municipal. Mas acontecia que para nós essa era apenas mais uma das obrigações do tonto Nené de Chalau a juntar às suas funções de varredor de vila e tocador nos dias de festa.

Mas se ficámos entusiasmados, quer com o aparato do desembar-que de tanta gente fardada de branco, saltando da lancha da mesma forma como imaginávamos os maçongos saindo do mar em noite de lua cheia, quer com a afirmação do administrador do concelho de que na Boa Vista «todos labutam em prol de um Portugal cada vez maior», a visita presidencial em nada colidiu com a questão da nossa identidade. Porque, afora o Sr. José Mateus, um deportado de mais de 80 anos que tinha aportado à ilha com dois pequenos barcos de pesca e três mesas de matraquilhos, a presença portuguesa resu-mia-se ao carpinteiro naval Virgílio (que quando com uns vinhos gostava de cantar: «Quando era pequenino o meu pai mandava-me à merda; agora que sou grande ele manda-me é pró caralho!») e ao gerente da Ultra, Sr. Patrício Correia, que além de dirigir a fábrica de conservas de peixe também se ocupava de experiências de agricul-tura e pecuária, tendo introduzido na Boa Vista não só duas bombas eólicas como também um touro de uma raça tão descomunal que nunca conseguiu cruzar com nenhuma vaca da terra devido à des-conformidade do seu tamanho.

Vivíamos, pois, na tranquila segurança de sermos cabo-verdianos, com a inofensiva circunstância adjuvante de sermos também por-tugueses, quando essa pacatez foi abruptamente sobressaltada nos anos 60-70, com a agitada revelação de que Cabo Verde também era África, e da mais pura, e nós outros apenas deserdados filhos arrancados ao seio materno por ferozes negreiros nos idos de 1480 e seguintes.

Justamente essa revelação coincidia com a activa conversão da maior parte da nossa jovem intelectualidade à condição de africa-nos, e por isso, muito às pressas, tivemos que aprender que também

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fazíamos parte dos condenados da terra, que igualmente pertencí-amos à grande massa humana meio gente meio besta chamada de «indígena», como ensinava um livro qualquer, embora fosse certo, para nosso grande desgosto intelectual, que as tropelias descritas quer em Chora Terra Bem-Amada quer em O Filho Nativo nada ti-vessem a ver com a nossa realidade de ilhéus perdidos no Atlântico.

De modo que essa «pertença africana» configurou-se sobretudo como um tremendo esforço de solidariedade para com desconheci-dos irmãos de sofrimento, a simples situação de colonizados obriga-va-nos a estar sempre e em todos os tempos ao lado dos oprimidos do mundo inteiro, muito embora fosse verdade que o colonizador em Cabo Verde estivesse representado quase exclusivamente por funcionários cabo-verdianos.

Mas se a assunção da condição de «africanos» veio permitir si-tuarmo-nos no mundo, infelizmente provocou também em nós um grande sentimento de esvaziamento. É que, enquanto simples cabo--verdianos, afirmávamo-nos detentores e portadores de uma iden-tidade cultural que nos caracterizava e distinguia. Tínhamos um crioulo comum, a morabeza era uma característica isoladamente ca-bo-verdiana, a morna apenas nós sabíamos fazer e cantar e mesmo o grogue e a cachupa em nada se confundiam com o vinho de palma ou o funche. Mas, «africanos. de uma África que não conhecíamos, uma África para nós «sem história» e sem heróis, porque Gungu-nhana era apenas um negro rebelde e sanguinário vátua de Moçam-bique em boa hora aprisionado e humilhado pelo glorioso Mouzi-nho de Albuquerque, acabámos por ficar numa situação de grande perplexidade e desnorteamento face a todos os heróicos portugueses que tínhamos sido obrigados a conhecer desde a escola primária.

É claro que nos meados dos anos 60 já tínhamos heróis africanos. Amílcar Cabral, Patrice Lumumba, Sekou Touré, Kwame Nkrumah e outros eram nomes de formidáveis africanos que empolgavam a nossa imaginação, embora muito mais por extrapolação que por co-nhecimento: quanto mais eram detestados pelos europeus, mais e melhores heróis eles ficavam. Mas nem por isso o nosso vazio ficava

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preenchido, entre outras razões, sobretudo pelo facto de «os nossos irmãos» falarem em línguas que nós não entendíamos.

Ora, muito provavelmente terá sido Ovídio Martins a resolver-nos esse grave problema de identidade com a publicação do seu poema Os Flagelados do Vento Leste. Porque com ele a nossa especificidade nacional começou outra vez a aclarar-se: nós éramos os flagelados do vento leste, aqueles a quem as cabras tinham ensinado a comer pedras para não perecermos. Assim, a nossa luta não era tanto con-tra a exploração, mas sobretudo contra o abandono a que estávamos votados, contra as secas e as fomes que de cada vez dizimavam cerca de um terço do nosso povo. E, do mesmo modo, fazíamos parte dos oprimidos da terra, porque se os outros o eram por acção, nós éra-mos por simples e criminosa omissão.

Aliás, já em meados de 1967, Baltasar Lopes da Silva tinha ree-quacionado o problema de forma lapidar e convincente: não éramos nem africanos nem europeus, apenas cabo-verdianos.

E sem dúvida que criar essa terceira possibilidade onde nos situar-mos é bem do cabo-verdiano. Porque a questão continua sendo mal colocada. Da Europa conhecíamos os portugueses, os franceses, os italianos, os espanhóis, os alemães... Mas para toda a África havia apenas a genérica expressão quase pejorativa de «africanos», e é na-tural que logo nos rebelássemos a entrar nesse imenso saco sem que ao menos um rótulo nos identificasse.

Porque nós sabíamos de ouvir contar as negras do que acontecia por toda essa África: pretos acorrentados, açoitados com chicote de cavalo-marinho, marcados a ferro em brasa e forçados a trabalhar sem nada receber e que, no fim, se rebaixavam diante dos brancos e diziam de joelhos: «Obrigado patrão.. Sabíamos que quando um branco caminhava num passeio todo o preto espontaneamente saía do caminho para que ele pudesse passar livremente e sem empeci-lhos...

Ora, em Cabo Verde era tudo completamente diferente. Nós tí-nhamos a funda consciência de estarmos na nossa terra, se alguém estava a mais eram os poucos «mondrongos» que aqui viviam, as

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ruas, os passeios e até as manobras eram nossas, se alguém devia acautelar-se ou desviar-se teriam de ser eles e não nós, e por isso nas ruas recebiam propositados encontrões de que não se pediam des-culpas, se queriam ser entendidos que aprendessem a falar crioulo... Não senhor, a simples designação de «africanos» não se adequava a nós.

E viria a ser muito aos poucos que acabámos por entender que os europeus, por malícia ou simples ignorância, tinham fomentado a nossa relutância na aceitação da condição de africanos. Porque falavam de «africanos» como se a identidade africana fosse uma única e exclusiva. E tivemos que aprender que há tantas identida-des culturais quantos os povos africanos, e bem perfeitamente que poderíamos pertencer à África desde que levássemos uma etiqueta a assinalar-nos como senhores de uma identidade que nos particulari-za como cabo-verdianos.

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Uma perspectiva da identidade cabo-verdiana

Por volta do ano de 1957 chegou à Boa Vista um português que le-vava como objectivo reactivar uma antiga indústria de produção de peixe salgado e seco destinado a ser exportado para o Congo Belga.

A ideia em si era excelente. Desde 1934 que a Fábrica As Gatas estava encerrada e sem dúvida que a zona era rica em peixe de boa qualidade e rara beleza. Porém, e como logo se disse, o Sr. Rego desembarcou na Boa Vista com o pé esquerdo. Porque chegou logo com atitudes de mandão, tratrando por «tu» grandes e pequenos, mas infelizmente não aquele «tu» fraternal, caricioso, de velhos amigos, mas sim o «tu» superior e áspero do patrão, do ricaço, dis-tribuindo ordens a torto e a direito e sobretudo adorando emitir opiniões sobre coisas de que não entendia patavina como logo a ex-periência demonstrou.

Pode dizer-se que a ilha se orgulhava de uma grande experiên-cia de convívio com estrangeiros. Sem já falar daqueles que num passado distante tinham sido nossos residentes e cuja mítica ainda conservávamos através dos macongos e pateados, de vez em quando éramos alvoroçados por grupos de visitantes, normal mente através dos frequentes encalhes de navios, levas de náufragos que, dados à costa, eram conduzidos para a Vila onde chegavam taciturnos e pe-rigosamente equilibrados nos burros em que vinham montados.

Mas vê-los assim cabisbaixos sobre os nossos burros e em perma-nente ameaça de queda, era por si só suficiente para estabelecer entre nós uma comunicação familiarmente protectora, coitadinhos deles,

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nem montar um burro eles sabem, e se não sabiam fazer essa coisa tão simples que nós aprendíamos quase na mais tenra infância então era porque não poderiam representar qualquer perigo para nós, em tudo muito diferente de um juiz indiano que uma vez passou pela ilha e deixou toda a gente aterrorizada quando o vimos, vestindo um fato que parecia de escafrandro, saltar como um deus alado para cima de um cavalo meio arisco que mesmo com carícias no peito nunca se conservava sossegado.

Os náufragos tinham para todos a vantagem de estarem de pas-sagem e por isso numa espécie de férias entre nós. Os espanhóis, por exemplo: tinham conseguido salvar e trazer com eles uma abundante quantidade de isqueiros de pederneira, que nós conhecíamos pelo nome de «f’zil», e garrafas e mais garrafas de brandy Pedro Domecq. Conseguiram vender algumas poucas ao desbarato e quando mais ninguém quis comprar distribuíram para quem quis ficar. E sem dú-vida por causa disso o convívio com eles foi tão intenso que, quando finalmente chegou um barco para os levar, nós já dominávamos o espanhol com toda a facilidade (la casa Pedro Domecq tiene por norma desde su fundaction en 1730 non cuncurrir con sus productos a ninguna exposion nacional ou estrangera) e eles já arranhavam algumas frases em crioulo (u’m ta q fome; bá c’me fora).

Mas assim habituados à sã e igualitária convivência com os estran-geiros que de vez em quando apareciam, o Sr. Rego e os seus mo-dos provocaram logo a geral antipatia. Um fulano sem maneiras, foi logo o que se disse dele. E por causa de uns incompreensíveis gatafu-nhos com que tinha preenchido um papel qualquer, decidiu-se logo que também era analfabeto, não sabia ler nem escrever, imagine-se agora um homem com toda aquela impostura e nem sabe arranhar o seu nome num pedaço de papel, e isso numa ilha onde qualquer pé-descalço tinha estudado com proveito até à 4.ª classe da instrução primária. E porque falava sempre de uma maneira nervosa e mui-to rápida e engolindo metade das sílabas, foi definido como tendo sido tropa, soldado raso, evidentemente, em tudo muito contrário do bonacheirão Correia que poucos dias depois de chegar tinha uma

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boavistense de casa posta e muito bem tratada ou mesmo do José Mateus que, embora já velho de mais de 80 anos, viria a granjear o geral respeito ao emprenhar, sem margem para qualquer espécie de dúvidas devido às bastas semelhanças e ainda por cima em vezes repetidas, uma mocinha de menos de 20 anos e que, para além disso, nos oferecia um jogo de borla por cada duas matraquilhadas.

Mas não obstante os grosseiros modos do Sr. Rego, a morabeza terá levado a melhor e ele foi convidado para aquele mínimo social e que era comer uma cachupa. O Sr. Rego aceitou, de facto, o convite, mas quando viu de que comida se tratava escusou-se, já diante da mesa posta, e sem mesmo fazer o gesto cortês de fingir que comia, declarou superior que na sua terra gente não come milho, milho é comida apenas para gado, e recusou sentar-se à mesa e abandonou a sala.

Esse foi o seu fim na Boa Vista. A partir daí foi completamente ostracizado, banido, à uma todas as pessoas deixaram de fazer o mínimo esforço quer para compreender o seu português quer para aportuguesar o crioulo de forma a haver uma mínima parcela de comunicação.

Rego passou a viver dias amargos. Logo que se atrasou no paga-mento de uma pequena factura foi taxado de caloteiro, de homem sem palavra, ninguém mais quis trabalhar para ele e viria a abando-nar a ilha sem nunca ter conseguido obter um único peixe salgado e seco. E nem depois que passou a comer cachupa e a viver de cama e mesa com uma natural da ilha ficou totalmente reabilitado. Teve que se mudar para São Vicente onde fundou a Pastelaria Algarve.

Há tempos atrás um italiano da Sicília que viveu alguns anos en-tre nós falava da sua integração na nossa vivência. Quando cheguei, disse ele, constatei que o cabo-verdiano me olhava com um misto de curiosidade e desconfiança, indeciso entre aproximar-se e afastar--se, mas a verdade é que logo me reconheci nessa forma de ver os outros porque é a mesma forma como nós olhamos os estrangeiros que chegam à nossa ilha. Para o ilhéu o estrangeiro é sempre um invasor, como que representa ainda o inimigo que chegava do mar,

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porque para nós o fascínio do mar não tempera nem conjura todos os perigos que dele podem advir. E assim o estranho que chega tem primeiro que ser observado, analisado, submetido a exame e só é aceite se pode ser assimilado, normalmente via cachupa, grogue e morna. De outra maneira é simplesmente rejeitado porque tudo que é muito diferente de nós é no mínimo indício de maluqueira.

Claro que não apenas a cachupa, o grogue e a morna respondem pela nossa identidade, sendo embora facto que ela passa, e não po-derá ser entendida, sem a constância desses elementos. Mas a ten-tativa de assimilação do estrangeiro pela via da crioulização não é senão uma maneira de trazer o «outro de fora» para «dentro de nós», e acho que é isso que é normalmente conhecido pelo nome de «morabeza»,.

O nosso cônsul

Estando há uns tempos atrás numa pequena cidade da Europa, uma amiga que me servia de cicerone fez muita questão de que, en-tre as maravilhas da cidade, eu visitasse e conhecesse o cônsul de Portugal.

Era tão pouco o tempo de que dispunha que a visita ao cônsul de Portugal estava francamente a mais. Vocês esquecem-se de que sou independente há já 16 anos, que já não tenho nada a ver com o cônsul de Portugal, dizia-lhe, mas ela apenas sorria diante da minha relutância. Vai ver que vale a pena, insistia.

Tinha-lhe contado da confusão que eu e um simpático polícia tí-nhamos estabelecido logo à minha chegada. Porque tendo eu chega-do com atraso e sem endereço, dirigi-me a um polícia perguntando-

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-lhe como poderia chegar à Universidade. Qual delas?, perguntou, mas eu não me lembrava, apenas sabia que era qualquer coisa com um «Departamento de Português». E aí, com muita simpatia mas exagerada obstinação, ele insistiu com os colegas da Central que te-lefonassem para a Embaixada de Portugal, para o Consulado, para lhes dizer que estava ali um senhor que... não obstante os meus inú-teis protestos no sentido de que já nada tinha a ver com Portugal, que desde 1975 Cabo Verde era independente...

Mas finalmente a minha amiga acabou por explicar que conhecer o cônsul era sobretudo um acto de cultura porque se tratava de um indisfarçável e pitoresco mestiço cabo-verdiano, mas que gostava de se apresentar como português dos quatro costados, quase descen-dente de Vasco da Gama...

Tínhamos hora marcada, mas o cônsul fez-nos esperar uma boa meia hora. Impaciente, eu dizia vamos mas é embora, depois você explica que tinha que apanhar o comboio, mas ela sorria brejeira, as coisas boas custam sempre caro, vai ver que vale a pena esperar... E finalmente acabámos por entrar num gabinete atafulhado onde, numa pequena e desconjuntada secretária, pontificava um homem dos seus sessenta anos, com ar mais de judeu que de cabo-verdiano.

Ele levantou-se para nos cumprimentar, melhor, para cumprimen-tar a minha amiga. E enquanto lhe falava do prazer, do verdadeiro prazer, que tinha em a reencontrar depois de muitos meses, esten-deu-me uma mão distraída. Como não olhava para mim não me dei ao trabalho de lhe dizer o meu nome e fiquei ali especado ouvindo o cônsul gabar a beleza, a beleza, sim, mas não apenas a beleza, tam-bém a inteligência da minha amiga, da admiração que tinha pelos seus trabalhos, que infelizmente nem sempre os seus inúmeros afa-zeres lhe permitiam acompanhar como seria o seu desejo de sincero admirador...

E assim falando ele apontou-me uma cadeira e disse que me sen-tasse um bocadinho, que nos sentássemos um bocadinho embora ele na verdade estivesse cheio de pressa, tinha que sair imediatamente para tratar de um assunto urgente, o consulado só lhe dava despesas

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e chatices...Foi nessa altura que a minha amiga achou necessário voltar a rea-

firmar ao nosso cônsul a minha condição de cabo-verdiano e escritor de algum sucesso, convidado a fazer uma palestra na Universidade. Ele olhou para mim e sorriu sem mais comentário, pelo que tomei a palavra.

Disse-lhe que infelizmente era verdade, que não tínhamos tempo para nos sentarmos e, aliás, era evidente que ele também estava sem tempo. Que me perdoasse o incómodo dessa visita, mas que tinha feito muita questão de o conhecer pessoalmente porque desde Cabo Verde que sabia que o representante de Portugal naquela cidade era um distinto patrício Aliás, disse-lhe, todos em Cabo Verde, adultos e crianças, conhecem o seu nome e a sua obra, o povo inteiro está orgulhoso de si, o senhor é falado em todas as ilhas como sendo um dos mais ilustres cabo-verdianos vivos e até já se fala em erigir--lhe uma pequena estátua numa das nossas ilhas para edificação dos turistas que precisam saber que Cabo Verde, para além do mar e das praias, tem gente importante espalhada pelas quatro partidas do mundo.

O rosto a princípio hermético do nosso cônsul já sorria largo diante do meu discurso, dito com moderada convicção. Tem que se sentar um bocadinho, insistiu ele, falar-me um pouco mais da nos-sa terra, da nossa gente, porque, eu não sabia disso, não sabia que soubessem de mim porque perdi um bocado o contacto, fui levado muito cedo para Portugal mas toda a minha gente é de Cabo Verde, da ilha da Boa Vista, do Rabil, onde aliás ainda tenho familiares...

E aí, de facto, eu sentei-me. Desta vez estávamos em terreno fa-miliar. Da Boa Vista! Ele e eu! Ainda por cima do Rabil, portanto quase vizinhos de porta. E começámos a falar da nossa ilha, da nos-sa gente, dos velhos cujos nomes ele ainda recordava, das corridas de cavalo no largo da Salina...

Inclusive, tínhamos um apelido comum e por isso e de mútuo acordo decidimos que se calhar até éramos parentes e provavelmen-te próximos. Ele indicou ascendentes, eu também declinei os meus,

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mas infelizmente não coincidiam, eu sabia os nominhos, ele apenas os nomes próprios. Acabou por lamentar ser fraco em genealogias. Mas em compensação o irmão mais velho é bom nessas coisas de família, conhece a história de todos os antepassados. E pediu e es-creveu o meu nome completo e mais o dos meus pais e avós para que o irmão pudesse determinar com precisão o eventual parentesco e depois comunicar connosco por escrito, é bom encontrar patrícios nesses lugares distantes da nossa terra.

E assim esquecidos da nossa amiga, por mais de meia hora delici-ámo-nos um ao outro, ele com o Cabo Verde que herdara da família, eu com o que vivia. E quando nos separámos foi com os abraços dos amigos de longos anos.

O Dragão do Atlântico

Toda a estória pode ser resumida a uma única frase, que nem che-garia a ser inquietante não fossem os seguintes e preocupantes an-tecedentes vividos há pouco mais de dois anos. Estávamos em plena campanha eleitoral para as legislativas quando um dia, em hora de tempo de antena e período digestivo do almoço, as nossas casas fo-ram sobressaltadas por uma rouca e sedutora voz que directamente dos estúdios da Rádio Nacional nos comunicava a ruidosa novidade de que o nosso pacato arquipélago estava em breve destinado a ser o «Hong Kong de África».

Assim surpreendidos por tão afrontosa ameaça, a nossa imagi-nação entrou em imediato pânico colectivo. Porquê Hong Kong se já somos Cabo Verde?, perguntávamos. E por isso, da primeira vez optámos por pensar a frase como força de expressão, desvio de ima-

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gem ou lapsus linguae, até que finalmente decidimos que devia ter sido defeito de gravação ou coisa parecida. Porém, ela viria a ser de tal modo repetida e em tão altos e triunfantes tons que lá pelos fins da longa campanha já vivíamos no terror constante de vermos os olhos uns dos outros a virarem-se em bico, as nossas sobrancelhas a ficarem pontiagudas e as nossas peles da cor da margarina. Mas o mais grave de tudo foi termos começado a ver o nosso tamanho a escassear.

Isso vai ser muito pior que todo o custo de implantar o crioulo como lingua oficial, comentavam os meios literatos. Pensava-se, é claro, em todo o trabalho que iria significar encurtar e estreitar as roupas, nas mudanças das colheres para pauzinhos e na aprendiza-gem da babilónia de línguas chinesas, para além do inglês. Quanto ao jogo e o resto estava-se tranquilo: no que se refere a tudo quanto seja vício nós temos uma imensa e rápida capacidade de aprendiza-gem.

Mas, felizmente, dessa vez tudo correu pelo melhor. O partido que apresentava essa grave ameaça perdeu as eleições e logo suspirá-mos aliviados, a nossa identificação mantinha-se incólume e fora de todo o perigo, o resultado eleitoral confirmava encontrar-se a nossa identidade nacional na segurança da idade adulta e livre de toda a dúvida.

E, passados mais de dois anos sobre o incidente, já pensávamos o perigo de todo esconjurado e já voltávamos à modorra das nos-sas ilhas, de novo teluricamente enraizados na firmeza do nosso eu cabo-verdiano, quando há poucos dias os ecrãs da nossa televisão nos mostraram a imagem de um sorridente rosto que alegremente nos transmitia a «boa nova» de que Cabo Verde está finalmente pre-destinado a em breve passar a ser «O Dragão do Atlântico».

Muitos de nós não estamos conseguindo esconder a nossa cons-ternação diante desta insidiosa notícia e uma substancial franja da nossa população intelectual está neste momento e de novo como que atravessando uma indesejável crise, se não ainda de identidade, pelo menos de identificação. E a pergunta que todos fazem uns aos ou-

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tros é: «Se obrigatoriamente temos que ser alguma coisa ou algum bicho, porquê escolher justamente o dragão?»

Essa desorientação é compreensível. Nas nossas ilhas o dragão é fera, e das mais cruéis, e todos nós temos ainda presentes os terríveis dragões da nossa infância. Basta ver como uma qualquer das esto-riazinhas contadas pela boca da noite está a decorrer normalmente, cada personagem desempenhando com competência o seu papel, Ti Lobo e Chibinho trapaceando um ao outro sempre na maior frater-nidade, Ti Ganga pode ou não entrar, conforme as conveniências de quem conta ou inventa mas nada está perturbando a harmonia...

Nada, bem entendido, até entrar o horrendo Dragão. Porque mal ele aparece, põe tudo em polvorosa. Chega sempre de cauda irrita-damente eriçada e vomitando fogo, destruindo tudo que o encon-tra pelo caminho com o seu ódio desvairado, as suas escamas pré--históricas, os seus olhos cujas chispas venenosas cegam e matam a qualquer distância.

Mas o mais horrível de tudo era o seu vício incorrigível de se ali-mentar apenas da carne fresca de virgens donzelas que, com manhas inconcebíveis, que iam desde transformar-se em jovem príncipe en-cantado a potros brancos arreados de ouro, seduzia-as pela calada da noite e transportava-as para os enormes palácios de pedras pre-ciosas que possuía no fundo do mar, onde as mantinha em engorda até ao jantar final.

O próprio nome «Dragão» era por si só medonho e premonitório. Uma vez entrou-nos pelo quintal adentro um bebé rafeiro. Estava já meio morto de fome e tão desgostoso de existir que tivemos que o forçar à vida alimentando-o a gotas de leite de cabra que lhe atiráva-mos pela goela abaixo com a ajuda de uma seringa, porque mesmo a engolir ele obstinadamente se recusava. E por isso foi mesmo de brincadeira que o baptizámos com o nome absurdo de «Dragão».

Pois bem, quando adulto ele viria a revelar-se um cão de tão rara e demoníaca ferocidade, tão perfeitamente, ou abusivamente, incapaz de destrinçar os donos dos estranhos quando se decidia a fechar os olhos para morder à toa, que foi mesmo necessário condená-lo à

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morte. Mas ainda assim resistiu e conseguiu sobreviver a três tenta-tivas de enforcamento e só com uma caçadeira de dois canos acabou por ser definitivamente executado.

Compreende-se, pois, que a ideia de sermos os «dragões» da Áfri-ca ou mesmo do Atlântico não seja coisa simpática e que agrade por aí além a muitos cabo-verdianos. Em primeiro lugar, porque não só temos fama como somos conhecidos no mundo inteiro como sendo um povo pacífico e amorável e que não hesitou mesmo em criar uma palavra própria para qualificar a sua maneira encantatória de lidar com os outros.

Refiro-me à palavra «morabeza», tão nascida da secura das nossas terras, que não das nossas gentes, que nenhum dicionário a traduz sem risco de encher páginas e páginas e mais páginas, pelo tanto que já traduz de nós em termos de afirmação cultural e demais porme-nores interligados.

Assim, um bicharoco tão horrível como o dragão nunca poderá servir para caracterizar o homem cabo-verdiano, podendo mesmo correr o risco de nos provocar, senão uma verdadeira e própria crise de identidade, pelo menos uma grave perturbação de identificação, porque os destemperos do dragão nada têm a ver connosco.

Mas se temos mesmo obrigatoriamente que ser um bicho ou um monstro, há que ser mais comedido e escolher um animal mais nosso. E nem temos que procurar muito, existe um que nos calha a matar. Refiro-me à tartaruga, à humilde mas sempre perene tartaruguinha, que depois de por longos anos nos ter alimentado com as suas sabo-rosas carnes e seus deliciosos ovos descobrimos, precipitadamente, que estava em vias de extinção e em sua intenção lançámos o apela-tivo slogan de efeito mais poderoso e prolongado que «o verão da ca-bo-verdianidade» de triste memória: Deixemos viver as tartarugas.»

Francamente, nenhum outro animal é melhor para nos caracteri-zar do que a tartaruga. É um bicho pachorrento e de rara longevida-de. Carrega com ela não apenas a paciência dos séculos como a sua própria esperança. E em termos de beleza, entre ela e o dragão que venha o diabo e escolha.

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Com esforço e trabalho pode ser que cheguemos a uma identifi-cação tão completa e perfeita que quando se encontrar escrito «dei-xemos viver as tartarugas» se comece a ler «deixemos viver os cabo--verdianos».

A saúde de todos no ano 2000

Tudo começou há alguns anos atrás, quando numa qualquer ma-nhã da nossa história a pachorrenta rotina quotidiana das ilhas foi subitamente alvoroçada por enormes e coloridos cartazes que cobri-ram de ponta a ponta as nossas ruas e as nossas casas, anunciando alegremente a dádiva que os altos e magnânimos poderes nos reser-vavam como brinde de início do próximo século: «Saúde para todos no ano 2000.; «Educação para todos no ano 2000».

Dado que semelhante ideia nunca antes tinha sido por nós conce-bida, de imediato não quisemos acreditar em tal maravilha, sobretu-do porque tinha duas características que logo nos fizeram desconfiar da sua seriedade: era de graça e era para todos. E por isso foi logo uma correria aos cartazes, as pessoas atropelando-se em frente às paredes coloridas para com os seus próprios olhos lerem a verdade de quanto diziam e dessa forma confirmarem, por elas mesmas, que os que já tinham visto e contado não estavam a inventar.

Enquanto o vento e mãos invejosamente daninhas deixaram os nossos olhos espraiar-se pelos cartazes, vivemos bastantes dias de completa e deliciosa euforia, antecipando o ainda distante ano 2000 em que todos teríamos a saúde e a educação conforme a nossa ne-cessidade, o que o mesmo é dizer que todos passaríamos a viver em natural estado de saúde e bom comportamento.

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Pelos cartazes não ficava claro se essas duas abundâncias eram já a consecução parcial do estádio desde há muito previsto e sonhado de «de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade», mas isso não passava de um pormenor, o que im-portava é que se passava finalmente das palavras aos actos, em vez de discutir, realizava-se.

E por isso, seja qual for a doença que nesses dias nos acometeu, quer tenha sido uma simples alergia, ou gripe ou mesmo falta de dinheiro, ou então qualquer atitude de falta de cortesia, bastou um simples olhar aos cartazes para logo nos tranquilizarmos e mesmo rirmos satisfeitos, troçando das doenças e dos malcriados, sentin-do crescer em nós o alento e a força vital para tudo estoicamente enfrentarmos porque o limite de todos os achaques e de todos os desaforos encontrava-se já cientificamente calculado e por isso valia a pena esperar com paciência pelo ano 2000.

Por antecipação vivemos grandes momentos de euforia: no ano 2000 poderá ainda faltar emprego para todos, poderá faltar comida para todos, poderão mesmo faltar casas para todos, mas pelo menos teremos bens muito mais valiosos, e que são a saúde e a educação para todos.

É certo que durante o breve tempo de vida dos cartazes nunca nos detivemos a pensar no que faríamos com a nossa saúde e a nos-sa educação quando finalmente as possuíssemos por conta própria. Sabíamos que talvez não fossem bens em si comerciáveis, mas, na pior das hipóteses, poderiam ao menos proporcionar um grande e colorido cartaz de belo efeito turístico. E eu, pessoalmente, já imagi-nava uma enorme praia de areia ensolarada, 3 ou 4 moças deitadas dormindo na ourela do mar, meia dúzia de crianças rindo na água, um par de óculos de sol perdido na areia e por baixo a legenda: «Vi-site Cabo Verde, o país que oferece de graça saúde e educação para todos.»

Mas fixados nas paredes com cola de má qualidade, depressa os cartazes desapareceram das nossas vistas e, assoberbados pelas do-encinhas e safadezas do dia-a-dia, acabámos por completamente es-

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quecer o ano 2000 e as suas benesses.Mas eis que numa reunião com os deputados, quando da última

Assembleia Nacional, o ministro da Saúde veio relembrar-nos a pro-messa antigamente feita pelo seu colega. Mas apenas para lançar um doloroso balde de água fria sobre o povo através dos seus represen-tantes: infelizmente tinha havido um engano, as contas tinham sido mal feitas, mundialmente dava-se o dito por não dito, não ser ainda no ano 2000 que teremos a saúde para todos.

Não obstante a displicência com que o ministro lançou a boutade, para muitos deputados aquele foi um momento de grande conster-nação e houve um que não se conteve e disse, embora em voz baixa: «S. Ex.º o senhor ministro já arriou cagada, S. Ex.º já arriou mesmo uma grande cagada.»

De facto, o ministro não terá achado necessário entrar em grandes explicações sobre essa decisão da não distribuição da saúde para todos já no ano 2000, mas muitos pensam que é natural que seja um acto político de efeito calculado, talvez mesmo uma verdadeira conspiração maleficamente combinada e planeada entre os minis-tros de Saúde do mundo inteiro.

E o argumento que justifica a conspiração é de peso. Porque en-quanto ministros de Saúde, na verdade administram doenças e, por isso, o seu poder é imenso.

Mas que aconteceria no dia em que a saúde passasse a ser um bem ao alcance de qualquer gato-pingado, e por isso mesmo sem qualquer valor contabilizável? Então é perfeitamente plausível que, diante desse espectro ameaçador de «saúde a cada um conforme a sua necessidade», tivessem os interessados lançado mão do grito de guerra «Ministros da Saúde de todo o mundo, uni-vos. no combate à saudável praga que ameaça destruir o vosso poder de curar ou não curar.

Agora resta apenas a esperança da educação para todos no ano 2000. E como o respectivo ministro ainda não se pronunciou, ainda não se sabe se eles também estão mancomunados nessa aleivosia a todos os títulos perversa. Mas como não há uma sem duas...

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O melhor vintage

Para José A. Salvador

Antes de ele aportar a São Vicente nós já bebíamos algum vinho, mas o nosso paladar estava treinado e só se realizava no verde, sem-pre branco, e tão gelado que mais parecia sorvete de uva.

A princípio ele apreciou-nos sem palavras, mas com manifesto desagrado, perguntando todas as vezes: «Mas não há nenhum ou-tro, maduro, tinto?» Nunca havia, mas à medida que o nosso en-tendimento crescia, ele começou a corrigir-nos e a ensinar-nos e a falar-nos das castas de uva, da robustez dos vinhos, dos lampejos de cor rubi ou de casca de cebola, dos vinhos vigorosos e de bouquet inebriante, até que um dia não se conteve e declarou em resumo de-finitivo que vinho só há um: o tintol e mais nenhum!

Nenhum de nós gostava de vinho tinto. Mas de há muito que o tínhamos aceite como o grande mestre, do mesmo modo que ele re-conhecia nada entender de grogues. E assim lá começámos a fechar os olhos e a engolir o tintol, tanto mais que um dia ele apareceu com a novidade de que numa lojeca, uma tasca de uma ruazinha perdida, tinha encontrado um tinto alentejano de grande qualidade, um vi-nho excelente, redondo, macio, mas — imaginássemos! — ao preço da chuva. Estava em crer que teria havido algum engano porque nem na adega original aquele preço poderia ser real...

De imediato adquirimos todas as caixas disponíveis, tendo em vis-ta um treinamento em condições de qualidade. E a seguir entrámos numa amargurada fase de vinho tinto, em que o bebemos às canecas,

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aos copos e garrafas, mas sempre com o pensamento teimosa e sau-dosamente fixado nas agulhas do verde branco. Até que uma noite entro por acaso num restaurante. E quem vejo? Ele! Pachorrenta-mente sentado a uma mesa, já em fim de jantar, à sua frente uma garrafa ainda meia de... branco.

Eu não quis acreditar no que estava vendo. «Tu estás a beber vi-nho branco?», perguntei-lhe admirado. Mas ele, já esquecido das suas lições anteriores, ali mesmo fez a apologia de um bom branco fresquinho, sobretudo num clima quente como o nosso. «Um bom peixe de forno puxa por um bom branco», acabou por sentenciar acariciando o estômago.

Mas eu continuava varado. «Mas não foste tu que nos ensinaste que o vinho, o grande, o verdadeiro vinho, é o tinto, apenas o tinto, e não é senão à tua responsabilidade que aqui andamos todos de boca amarga?» Ele deu uma gargalhada e depois acabou por expli-car: «Um bom apreciador, ou então qualquer pessoa com pretensões enófilas, abre sempre uma boa refeição com um branco, acompa-nha-a com um tinto e finalmente fecha-a com outro branco.. E era o que ele tinha feito, concluiu.

Mas o sofrimento tinha sido longo e por isso as justificações não foram consideradas suficientemente satisfatórias. E logo no dia se-guinte promovemos o seu julgamento sumário em tribunal ad hoc, acusado de sonegação e viciação de informações em matéria de uso e consumo de vinhos. Como arma do crime foram apresentadas as muitas garrafas sobrantes dos alentejanos.

Embora defendido com brio por uma estagiária de Baco, que che-gou mesmo a invocar a favor do réu um artigo qualquer da Declara-ção Universal dos Direitos do Homem que, afirmou, confere a todos o direito de beber o vinho da sua escolha, sem outras limitações que não sejam as do seu paladar e do seu bolso, foi na mesma conde-nado. O agravo tinha sido grande. Mas beneficiou da suspensão da pena, com a condição de, numa única semana, consumir sozinho toda a arma do crime.

E passou-se o tempo e ele regressou à sua pátria e foi ficando um

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grande vinhista. Pelo nosso lado, mantivemo-nos fiéis amadores, mas já com algum discernimento, porque persistimos e acabámos por nos habituar ao tinto, mas também a amar o branco — depen-de sempre da oportunidade, tinha ele dito — e mesmo o verde, que tinha sido completamente proscrito logo nos primeiros dias do seu apostolado, passou de novo a ocupar um embora pequeno lugar. O que importava e ficou para sempre retido era fugir das marcas bana-lizadas e com nomes vulgares, escolher sempre os vinhos das gran-des casas de marca registada. Esses nomes esquisitos e sem fama normalmente significam vinho a martelo, um veneno, um verdadeiro veneno, preferível água, qualquer água, pelo menos é inofensiva...

Anos depois, ele veio a Cabo Verde em férias e fomos à Boa Vista. Logo à chegada esperava-nos uma bela lagosta suada que fez luzir os seus olhos. Mas quando viu o jarro sobre a mesa o seu entusiasmo arrefeceu um pouco. De facto, o vinho devia ter pertencido à clas-se dos brancos, mas agora mais parecia um escuro e gelado chá da Índia.-Não há outro?», perguntou apreensivo. Não, havia só Bom-barral. Ele provou um gole, torceu o nariz, foi cuspir para a casa de banho. «Não há cerveja? Havia. «Então prefiro uma cervejola.»

No dia seguinte, fomos almoçar no ilhéu. Peixe, lá mesmo pescado e grelhado. Como bebidas tínhamos levado água, algumas cervejas e um garrafão de Bombarral gelado. Mas um sol de rachar fê-lo beber as cervejas antes de tempo e ao almoço já não havia. «Vais ter de comer peixe grelhado com água», avisei-o. «Sim, certamente», respondeu de pronto. «Aquela coisa ali, Deus me livre e guarde!»

Mas a meio da refeição concluiu que não funcionava, um peixe assim pedia qualquer coisa diferente e decidiu-se contrafeito por um golinho de Bombarral, um pouquinho de nada, só para tirar da boca o sabor a peixe. E acabou bebendo meio copo, depois um copo e mais e mais, comentando sempre com displicência que até que nem está muito mau, assim fresquinho...

Eu ria-me. «Bem se diz que soberba, se a gente não a almoça, aca-ba por jantá-la,» gozava-o. «Quem alguma vez haveria de dizer que tu, o grande Baco português, o expert dos vinhos, o fino conhecedor,

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acabaria bebendo Bombarral no ilhéu de Sal-Rei da ilha da Boa Vis-ta?» Bebendo e apreciando e estalando a língua, dizia-lhe, enquanto ele enchia novos copos: Já viste o que seria publicar num jornal a tua fotografia despejando um garrafão de Bombarral?»

Dessas férias guardo um livro dos vinhos com a seguinte dedica-tória: «... no final destas férias bacanas em Cabo Verde, depois de no ilhéu da Boa Vista... em pleno isolamento, ter ingerido alguns tragos de um líquido chamado Bombarral, também conhecido por Lusitano, Pintarroxo, Vale da Parra, Cepa Velha e outros cognomes que a abstinência obriga a calar, no recato do ilhéu, como na beleza de Santa Mónica, reaprendi quanto fazem falta os grandes vinhos, indispensáveis ao louvável convívio que temos mantido ao longo dos anos. Erga-se, pois, o copo à nossa amizade, cheio do melhor vinta-ge».

O escritor meu primo

Quase desde a nossa infância que o meu primo Natal foi rapaz que gosta da sua escrita e lembro-me de que na nossa adolescência ele andava sempre de bolsos atafulhados de canetas de diversas co-res, azul, vermelho, preto, para além de um lápis que transportava engatado atrás da orelha como tinha aprendido com os carpinteiros.

Habituou-se também a andar sempre e em toda a parte com um livro debaixo do braço e essa sua faceta intelectual era conhecida de toda a vila e mesmo de outras gentes do interior que amiúde o procuravam pedindo-lhe para escrever cartas e outras mensagens para fora das ilhas, porque não apenas ele gostava muito de aplicar aquele português de dicionário como também porque caprichava na

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caligrafia que tinha particularmente bonita e por isso era por todos admirado e gabado, o Natal não só é rapaz atencioso e prestável como também é homem da sua pena e dos seus livros, ninguém o apanha sem um livro na mão, a continuar assim aquele rapaz há-de ir longe, etc., e, embora nunca tivesse havido um preço determinado para os serviços, todos tinham o maior prazer em oferecer-lhe uma garrafa de leite, meia dúzia de ovos, um queijo ou qualquer outro produto da terra.

Mas para nós ele só viria a ser herói literário quando recebeu do irmão que estudava em São Vicente o maravilhoso livro As Cem Mais Lindas Cartas de Amor. Naquela época estávamos todos apai-xonados, mas havia uma dificuldade que nenhum de nós sabia como ultrapassar: escrever uma carta de amor. O sistema preferencial para arranjar namorada era através de uma carta, mas a única coisa que sabíamos de certeza era que não podia ser uma carta igual às que pediam ao Natal para escrever e nenhum de nós sabia como escrever uma carta de amor. Eu pessoalmente tinha-me inutilmente fartado de pedir às minhas irmãs que me mostrassem alguma que tivessem recebido, mas essas cartas eram tratadas como verdadeiras relíquias porque eram o documento que selava o namoro e para o distrate só funcionava a sua devolução em mão própria. E assim eram tidas como objectos quase sagrados, infeliz aquela que tivesse a má sorte de a perder porque para sempre ficava amarrada ao namorado que por causa da carta não devolvida adquiria sobre ela uma espécie de direito potestativo exercido em termos de «ela tem ainda a minha carta, nunca chegou a devolvê-la e por isso ainda temos»... «Temos» era uma abreviatura de «ter namoro» e bastava dizer fulano e fulana «é que têm» para se saber «têm» o quê.

E assim, quando Natal surgiu com o livro e nos mostrou, ficámos todos completamente deslumbrados perante palavras tão bonitas e frases com tanto sentimento e que traduziam todas elas quanto nós suspirávamos e aplicámo-nos a copiá-las uma por uma e foi aí que começámos a acreditar que ele de facto tinha à sua frente um bri-lhante futuro literário.

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Já nessa época ele almejava dedicar-se à ficção e foi por volta dos nossos 16 anos que a sua primeira e única obra de fôlego viria à luz do dia. Porque já andava desesperado com a pacatez de uma ilha onde nada acontecia digno de ser passado para o papel, quan-do um dia deflagrou um pequeno mas desagradável incêndio numa das divisões da enfermaria da vila, praticamente o primeiro a que assistíamos nas nossas vidas e ainda por cima na aziaga hora do almoço. E de facto, dias depois Natal apareceu com a estória com-pletamente escrita num caderno escolar de papel pautado, mas sem dúvida muito mais dramática do que na realidade tinha acontecido, porque, embora tivesse sido uma pequena ameaça logo dominada com quatro baldes d’água, ele tinha preferido colocar quase todos os homens da vila em desorientadas correrias através do fogo, que na estória ameaçava alastrar e consumir todo o edifício, enquanto as mulheres transportavam latas d’água à cabeça no meio de gritos de arrepiar o coração. Ele, Natal, observador atento, assistia impávido «aos desesperados esforços daquela luta sem quartel contra a fúria de um dos elementos da natureza».

Infelizmente esse promissor início literário viria a desaparecer pia abaixo, graças à culposa distracção de seu irmão Miguel que, tendo ido de São Vicente para Boa Vista precisamente numa altura em que a ilha atravessava uma crise de papel higiénico, recebeu o caderno para ler, apreciar e comentar a estória, mas inadvertidamente o foi levando folha a folha para a retrete.

Foi o próprio Natal quem me contou o incidente. Mas, curiosa-mente, nem ele era um autor ofendido nem estava zangado com o ir-mão. Quando muito, pode dizer-se que ficou moderadamente abor-recido, lamentando que a falta de atenção do irmão fosse obrigá-lo a outra vez tudo reescrever, agora sem a certeza de produzir obra de igual vulto.

Ele não voltou a escrever senão metade da estória do incêndio, mas em compensação nem com a idade adulta viria a perder o ví-cio da escrita. É da tradição da ilha os jovens aprenderem a tocar um instrumento qualquer, normalmente o violão, mas Natal não se

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contentou com a monotonia de um único instrumento e de uma as-sentada iniciou-se no violão, no violino, no cavaquinho e na viola. A par disso e nas horas vagas, dedicou-se a escrever um tratado sobre os seus diversos sons musicais, com o objectivo de facilitar o ensino aos futuros instruendos.

Mas infelizmente foi chamado para a tropa. Enquanto prestava o serviço militar como furriel de infantaria, decidiu-se a escrever um livro sobre as artes da guerra, assim uma espécie de Arte de Bem Ca-valgar Toda a Sela, título que muito o impressionava embora desco-nhecesse em absoluto o seu conteúdo. Viria, porém, a ser desmobili-zado sem ainda ter passado das primeiras linhas, e chegado a Cabo Verde logo começou a sofrer a influência do irmão que, entretanto, tinha abandonado o curso de Medicina para se dedicar ao espiri-tismo. Natal entusiasmou-se com esse assunto, criou o seu próprio centro espírita e dedicou-se a aprofundar essa área do conhecimento da vida fora da matéria com vista a escrever um catecismo doutriná-rio a respeito.

Essa disponibilidade espiritual do meu primo tem-no, porém, im-pedido de produzir obras de grande fôlego e só agora, já perto dos 50 anos, acabou por sentir que está correndo o risco de morrer sem prestar o sonhado tributo à sua terra para a qual se sente com deve-res particularmente especiais.

E assim, há dias, após prévio telefonema a marcar encontro, ele deslocou-se ao meu escritório. Chegou carregando uma enorme pas-ta e disse logo que era uma visita oficial, de negócios, que não estava lá enquanto primo mas sim enquanto escritor, pelo que eu deveria colocar-me na minha posição de sócio da Ilhéu Editora e com ele discutir. E em resumo, propôs-me a publicação de uma obra em 3 volumes: Cabo Verde: Ontem, Hoje e Amanhã.

E a seguir falou-me da excelência do livro, um total de cerca de 1200 páginas dactilografadas, absolutamente necessário para as ge-rações vindouras conhecerem o pais e a sua história. Tinha-o conce-bido em 3 partes: Ontem, dos primórdios à independência; Hoje, da independência até 13 de Janeiro de 1990; Amanhã, o nosso futuro

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radioso tendo em vista o turismo.Chamada de urgência para conhecer a obra, a nossa gerente logo

ficou entusiasmada com o título, nenhum melhor para iniciar a nova colecção que tinha em vista. Sorrindo, Natal confirmou que na ver-dade diversas pessoas tinham já achado o título excelente, um verda-deiro achado literário, e lá mesmo e de cor recitou para nós diversas passagens do livro.

Decidimos pela imediata assinatura do contrato, ficarmos logo na posse dos originais. Mas aí o Natal refreou-nos: Bem, estávamos a ser um bocadinho precipitados, disse, porque aquele tinha sido ape-nas um primeiro contacto exploratório, saber do nosso interesse. De facto, tinha já falado a dezenas de futuros leitores e todos eram unâ-nimes em achar o título belo, mas na verdade ainda não tinha o livro completamente pronto, estava tudo ainda na sua cabeça, apenas a capa estava garantida. E abriu a imensa pasta e puxou uma folha de papel desenhada à mão, onde sobre uma imensa praia sobressaíam os dizeres: Cabo Verde: ontem, hoje e amanhã, por Natal Almeida. Por enquanto é só o que tenho, disse, mas logo que estiver escrito venho ter convosco. E despediu-se.

O vinho, o futebol e a poesia

À memória do

Fernando Assis Pacheco

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Não posso gabar-me de sempre ter tido com o vinho uma relação pacífica e cordial, nem que a minha iniciação nas lides enófilas seja fácil e desprovida de incidentes. Lembro-me de que em todos os 13 de Junho dos anos da minha infância o meu pai mandava abrir um barril de 50 litros de vinho tinto em comemoração do seu aniversá-rio, e como era o único dia do ano em que ele bebia (e fuscava), nesse dia era-nos igualmente permitido meter o copo por baixo da tornei-ra, tanto mais que o barril ficava no quintal à disposição de quem quisesse, de forma a rapidamente se esvaziar para depois ser serrado ao meio e transformado em duas selhas de lavar roupa.

De ano para ano fui persistindo nesse esforço de habituação ao vinho, mas apenas para constatar que era impossível engolir aquele purgante amargo e com sabor a babosa e que além do mais tinha o inconveniente de deixar violáceas manchas na língua de cada um. E acabei finalmente por desistir e pôr o vinho de parte porque nem mesmo quando assumi as funções de ajudante de padre essa minha aversão viria a atenuar-se. De facto, duas ou três tentativas que fiz com pequenos golinhos dos doces vinhos de missa provaram-me que, embora melhores que o dos barris, nem por isso justificavam o cometimento de um pecado quase mortal de arriscada confissão, por razões mais que óbvias.

Mas já na idade adulta, e sobretudo por motivos sociais, fui a pouco e pouco entrando no vinho branco, primeiro misturado com laranjada em proporções iguais, anos mais tarde já em estado puro, mas com a condição de a sua temperatura estar próxima do grau zero.

Ora, foi tendo em conta todos esses antecedentes e o importante papel desempenhado pelo meu amigo português na minha posterior conversão à enofilia que achei interessante conceber a minha crónica de Julho passado como a primeira de uma série em que pretendia analisar, e também homenagear, o estreitamento das relações entre lusos e cabo-verdianos, tendo agora não a palavra como ponto de partida mas antes o olfacto e o paladar.

E, nesses particulares, sem dúvida que o vinho já vastamente me-

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receu uma medalha de mérito, pois continua representando um pa-pel do maior relevo. Basta dizer que, não obstante a nossa quotidia-na abertura à inovação, que nos faz embarcar em toda e qualquer aventura, desde que ela signifique ou tenha em vista uma qualquer mudança, pelo menos em duas coisas nos mantivemos fiéis aos por-tugueses: no futebol e no vinho. Quando Portugal ou uma das suas equipas defronta outro pais ou clube «estrangeiro», torcemos e deli-ramos com os seus golos e as suas vitórias, como se nós mesmos fôs-semos minhotos ou algarvios. A única excepção conhecida é quando o adversário é o Brasil, situação em que os apoios acabam por ficar dolorosamente divididos.

Mas no que se refere ao vinho, mantivemo-nos de um conservado-rismo inabalável, teimosa e indefectivelmente portugueses, de boca fechada e trancada a todo e qualquer outro vinho de qualquer ou-tro país. Uma única tentativa com uns vinhos italianos demonstrou quão inútil é todo o esforço no sentido de amainar a nossa canina fidelidade ao Baco lusitano.

E justamente porque a nossa já antiquíssima cooperação continua fecunda e exemplar, pareceu-me que enaltecer as virtualidades de um saudável convívio enofílico poderia ser uma contribuição posi-tiva no sentido do desencorajamento das empresas luso-palopianas da sua persistente conspiração de nos ligar exclusivamente através de vinhos a martelo.

Mas infelizmente esse meu nobre objectivo viria a ser erradamente interpretado como despudorada defesa de pessoais e inconfessáveis interesses etílicos. De facto, aconteceu nesse mesmo mês de Julho a abertura em Mindelo da IX Feira do Livro Português em Cabo Ver-de e que, por azarada coincidência, trouxe com ela o poeta e ficcio-nista Fernando Assis Pacheco, ao que parece com a especial missão de fazer para nós uma palestra.

Conhecia o Assis Pacheco desde há muitos anos e temos mesmo alguns amigos comuns. Mas depois que ele teve a amabilidade de de-clarar na revista de O Jornal que o Sr. Napumoceno é «um dos mais bem logrados dramas de amor das letras crioulas», a minha vaidade

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de novel autor que se vê subitamente em página de jornal fez de mim um seu amigo de peito, disposto a por e com ele enfrentar qualquer palestra, por mais chato que fosse o tema. E logo fiquei ansioso por o encontrar.

Assis Pacheco tinha lido «O melhor vintage» e se calhar por isso mesmo trazia-me duas garrafas de vinho. Mas não achei a prenda estranha, nem mesmo por pouco avultada. Eu também, quando vou ao exterior, costumo levar frasquinhos de grogue para os amigos.

Porém, durante toda a palestra Assis Pacheco viria a demonstrar--me que eu tinha incorrido num tremendo erro ao escrever aque-la crónica, que o vinho que enganadamente tinha aceitado como «expressão de pura amizade luso-cabo-verdiana» tinha sido para ele apenas «piedosa saciação de um crioulo alcoólico».

Por qualquer maquiavélica razão não explicada, ele chamou à sua palestra «os meus poetas». E falou com graça e eloquência da sua difícil relação inicial com a poesia, das confusas rimas e decassílabos e outras coisas arrevesadas, do tio amante de versos que debalde insistia com ele para ler, para continuar a ler, e prosseguiu assim devagarinho até chegar ao dia em que recebeu de presente um livro do poeta Drummond de Andrade. E disse do alumbramento seguin-te à leitura dos belos poemas, do despertar da paixão pelas musas, do encher de versos os inúmeros cadernos, e assim suavemente foi entrando nos poetas e leu-lhes os versos e enquadrou-lhes a poesia.

Mas, desgraçadamente, há poesia de vinhos e poetas de copos. E assim, de cada vez que ele falou de um deles ou leu um seu poema, perversamente sobressaltou a minha concentração na sua prelecção lembrando e mencionando o meu nome, sempre em dionisíaca in-timidade com os seus vates, e indicando-me lá mesmo uma adega ou tasca portuguesa com vinhos de grande performance e qualidade garantida. E eu, ali acabrunhado, remexendo na cadeira, vendo a minha careca bacante assim despudoradamente publicitada no meio de uma palestra de cultura.

No final da poética orgia de Assis Pacheco, sentia-me como que psicologicamente traumatizado pelo público desnudar de uma má-