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Paulo e Estevão Do Espírito: EMMANUEL Psicografado por: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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  • Paulo e

    Estevo DoEsprito:EMMANUEL

    Psicografadopor:FRANCISCOCNDIDOXAVIER

  • 2 FranciscoCndidoXavier

    PAULOEESTEVO

    DoEsprito:Emmanuel(primeiraediolanadaem 1941 pela FEB)

    Psicografada por:FranciscoCndidoXavier

    Editadopor:FEBFederaoEspr itaBrasileir awww.febnet.org.br

    Digitalizadapor:L.Neilmor is2008 Brasilwww.luzespirita.org

  • 3 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Paulo e

    EstevoRomancede:EMMANUEL

    Psicografadapor:FRANCISCOCNDIDOXAVIER

  • 4 FranciscoCndidoXavier

    ndice

    BreveNotciapag. 5

    PRIMEIRAPARTE1 Coraesflageladospag.82 Lgrimasesacrifciospag. 223 EmJerusalmpag. 324 NasestradasdeJopepag. 455 ApregaodeEstevopag. 546 AnteoSindriopag. 647 Asprimeirasperseguiespag.748 AmortedeEstevopag. 899 Abigailcristpag.10510 NocaminhodeDamascopag. 116

    SEGUNDAPARTE1 Rumoaodesertopag. 1292 Otecelopag.1453 Lutasehumilhaespag.1634 Primeiroslaboresapostlicospag.1955 LutaspeloEvangelhopag. 2336 Peregrinaesesacrifciospag. 2497 AsEpstolaspag.2618 OmartrioemJerusalmpag. 2829 OprisioneirodoCristopag. 30810 AoencontrodoMestrepag. 321

  • 5 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Breve Notcia

    No so poucos os trabalhos que correm mundo, relativamente tarefagloriosadoApstolodosgentios.justo,pois,esperarmosainterrogativa:Porque mais um livro sobre Paulo de Tarso? Homenagem ao grande trabalhador doEvangelhoouinformaesmaisdetalhadasdesuavida?

    Quanto primeira hiptese, somos dos primeiros a reconhecer que oconvertidodeDamascononecessitadenossasmesquinhashomenagense quantosegunda,responderemosafirmativamenteparaatingiros finsaquenospropomos,transferindoaopapelhumano,comosrecursospossveis,algumacoisadastradiesdoplanoespiritualacercadostrabalhosconfiadosaograndeamigodosgentios.

    Nosso escopo essencial no poderia ser apenas rememorar passagenssublimes dos tempos apostlicos, e sim apresentar, antes de tudo, a figura docooperador fiel,nasua legitima feiodehomemtransformadoporJesusCristoeatentoaodivinoministrio.

    Esclarecemos, ainda, que no nosso propsito levantar apenas umabiografia romanceada. O mundo est repleto dessas fichas educativas, comreferncia aos seus vultos mais notveis. Nosso melhor e mais sincero desejo recordar as lutas acerbas e os speros testemunhos de um corao extraordinrio,que se levantou das lutashumanas para seguir os passos doMestre,numesforoincessante.

    As igrejas amornecidas daatualidade e os falsos desejos dos crentes,nosdiversossetoresdoCristianismo, justificamasnossas intenes.Em todapartehtendncias ociosidade do esprito e manifestaes de menor esforo. Muitosdiscpulos disputam as prerrogativas de Estado, enquanto outros, distanciadosvoluntariamente do trabalho justo, suplicam a proteo sobrenatural do Cu.Templos e devotos entregamse, gostosamente, s situaes acomodatcias,preferindoasdominaeseregalosdeordem material.

    Observando esse panorama sentimental til recordarmos a figurainesquecvel do Apstolo generoso. Muitos comentaram a vida de Paulo mas,quandonolheatriburamcertosttulosdefavor,gratuitosdoCu,apresentaramnocomo um fantico de corao ressequido. Para uns, ele foi um santo porpredestinao, a quem Jesus apareceu, numa operao mecnica da graa paraoutros, foi um esprito arbitrrio, absorvente e rspido, inclinado a combater oscompanheiros, com vaidade quase cruel. No nos deteremos nessa posioextremista.QueremosrecordarquePaulorecebeuaddivasantadavisogloriosadoMestre,sportasdeDamasco,masnopodemosesqueceradeclaraodeJesusrelativaaosofrimentoqueoaguardava,poramoraoseunome.

  • 6 FranciscoCndidoXavier

    Certoqueoinolvidveltecelotraziaoseuministriodivinomas,quemestarnomundo semumministrio deDeus?Muita gente dir quedesconhece aprpriatarefa,queinscienteatalrespeito,masnspoderemosresponderque,almdaignorncia,hdesatenoemuitocaprichopernicioso.

    OsmaisexigentesadvertiroquePaulo recebeuumapelodiretomas,naverdade,todososhomensmenosrudestmasuaconvocaopessoalaoserviodoCristo. As formas podem variar, mas a essncia ao apelo sempre a mesma. Oconviteaoministriochega,svezes,demaneirasutil,inesperadamenteamaioria,porm, resiste ao chamado generoso do Senhor. Ora, Jesus no ummestre deviolncias e se a figura de Paulo avulta muitomais aos nossos olhos, que eleouviu,negousea simesmo,arrependeuse, tomouacruze seguiuoCristoataofimdesuastarefasmateriais.Entreperseguies,enfermidades,apodos,zombarias,desiluses,deseres,pedradas,aoitese encarceramentos,PaulodeTarso foiumhomemintrpido esincero,caminhandoentreassombrasdomundo,aoencontrodoMestre quese fizera ouvirnas encruzilhadasda sua vida.Foimuitomais que umpredestinado,foiumrealizadorquetrabalhoudiariamenteparaaluz.

    OMestre chamao, da sua esfera de claridades imortais. Paulo tateia natrevadasexperinciashumanaseresponde: Senhor,quequeresqueeufaa?

    Entre ele e Jesus havia um abismo, que o Apstolo soube transpor emdecniosdelutaredentoraeconstante.Demonstrlo,paraoexamedoquantonoscompeteemtrabalho prprio,a fimde iraoencontrodeJesus,onossoobjetivo.

    Outra finalidade deste esforo humilde reconhecer que oApstolo nopoderiachegaraessapossibilidade,emaoisoladanomundo.SemEstevo,noteramos Paulo de Tarso. O grande mrtir do Cristianismo nascente alcanouinflunciamuitomaisvastanaexperincia paulina,doquepoderamosimaginartospelostextosconhecidosnosestudosterrestres.Avidadeambosestentrelaadacommisteriosa beleza. A contribuio de Estevo e de outras personagens destahistriarealvemconfirmaranecessidadeeauniversalidadedaleidecooperao.E,paraverificaraamplitudedesseconceito,recordemosqueJesus,cujamisericrdiaepoder abrangiam tudo, procurou a companhia de doze auxiliares, a fins deempreender a renovao do mundo. Alis, sem cooperao, no poderia existiramoreoamoraforade Deus,queequilibraoUniverso.

    Desdej,vejooscrticosconsultandotextosecombinandoversculosparatrazerem tona os erros do nosso tentame singelo. Aos bemintencionadosagradecemos sinceramente, por conhecer a nossa expresso de criatura falvel,declarandoqueestelivromodesto foigrafadoporumEspritoparaosquevivamemespritoeaopedantismodogmtico,ouliterrio,detodosostempos,recorremosaoprprioEvangelhopararepetirque,sealetramata,o espritovivifica.

    Oferecendo, pois, este humilde trabalho aos nossos irmos da Terra,formulamosvotosparaqueoexemplodoGrandeConvertidosefaamaisclaroemnossos coraes, a fim de que cada discpulo possa entender quanto lhe competetrabalharesofrer,poramoraJesusCristo.

    PedroLeopoldo,8dejulhode1941

  • 7 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    PRIMEIRA PARTE

  • 8 FranciscoCndidoXavier

    1 Coraes flagelados

    Amanh enfeitavase demuita alegria e de sol,mas as ruas centrais deCorintoestavamquasedesertas.

    No ar brincavam asmesmas brisas perfumadas, que sopravam de longeentretanto,noseobservava,nafisionomiasuntuosadasviaspblicas,osorrisodesuas crianas despreocupadas,nemomovimento habitualdas liteirasde luxo, emseugirocostumeiro.

    Acidade,reedificadaporJlioCsar,eraamaisbelajiadavelhaAcaia,servindodecapitalformosaprovncia.Nosepodiaencontrar,nasuaintimidade,o espritohelnico em sua purezaantiga,mesmoporque,depois deum sculo delamentvel abandono, aps a destruio operada por Mmio, restaurandoa, ogrande imperador transformara Corinto em colnia importante de romanos, paraonde acorrera grande nmero de libertos ansiosos de trabalho remunerador, ouproprietrios de promissoras fortunas. A estes, associarase vasta corrente deisraelitas e considervel percentagem de filhos de outras raas que ali seaglomeravam, transformando a cidade em ncleo de convergncia de todos osaventureiros do Oriente e do Ocidente. Sua cultura estava muito distante dasrealizaes intelectuais do gosto grego mais eminente, misturandose, em suaspraas,ostemplosmaisdiversos.

    Obedecendo, talvez, a essa heterogeneidade de sentimentos, Corintotornarase famosa pelas tradies de libertinagem da grande maioria dos seushabitantes.

    Osromanoslencontravamcampolargoparaassuaspaixes,entregandose,desvairadamente,aovenenosoperfumedessejardimdefloresexticas.Aoladodos aspectos soberbos e das pedrarias rutilantes, o pntano das misrias moraisexalavanauseantebafio.Atragdiafoisempreopreo dolorosodosprazeresfceis.De quando emquando, os grandes escndalos reclamavamas grandes represses.Nesse ano de 34, a cidade em peso fora atormentada por violenta revolta dosescravos oprimidos. Crimes tenebrosos foram perpetrados na sombra, exigindoseveras devassas. O Prconsul no hesitara, ante a gravidade da situao.Expedindo mensageiros oficiais, solicitara de Roma os recursos precisos. E osrecursos no tardaram. Em breve, a galera das guias dominadoras, auxiliada porventos favorveis, trazia no bojo as autoridades da misso punitiva, cuja aodeveriaesclarecerosacontecimentos.

    Eis por que, nessamanh radiosa e alegre, os edifcios residenciais e aslojasdocomrcioapresentavamseenvolvidosemprofundosilncio,semicerradosetristes.Ostranseunteseramraros,comexceodevriosmagotesdesoldados,que

  • 9 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    cruzavam as esquinas despreocupados e satisfeitos, como quem se entregava, debomgrado,aosabordasnovidades.

    J de alguns dias, um chefe romano, cujo nome se fazia acompanhar desombrias tradies, fora recebido pela Corte Provincial, ali desempenhando aselevadasfunesdelegadodeCsar,cercadodegrandenmerodeagentespolticosemilitares e estabelecendo o terror entre todas as classes, comos seus processosinfamantes. LicnioMincio chegara ao poder,mobilizando todos os recursos daintrigaedacalnia.ConseguindovoltaraCorinto,ondeestacionaraanosantes,semmaiorautoridade,tudoousavaagora,poraumentarseuscabedais,frutodeavarezainsacivelesemescrpulos.

    Pretendia recolherse, mais tarde, queles stios, onde suas propriedadesparticulares atingiam grandes propores, esperando a a noite da decrepitude.Assim,demaneiraaconsumarseuscriminososdesgnios,inicioulargomovimentodearbitrriasexpropriaes,apretextodegarantiraordempblicaembenefciodopoderosoImprio,queasuaautoridaderepresentava.

    Numerosas famlias de origem judaica foram escolhidas como vtimaspreferenciaisdanefandaextorso.Portodapartecomeavamachorarosoprimidosentretanto,quemousaria orecursodasreclamaespblicaseoficiais?Aescravidoesperavasempreosqueseentregassemaqualquer impulsode liberdadecontraasexpresses da tirania romana. E no era s a figura desprezvel do odiosofuncionrioqueconstituaparaacidadeumaangustiosaepermanenteameaa.Seusasseclas espalhavamse em vrios pontos das vias pblicas, provocando cenasinsuportveis,caractersticasdeumaperversidadeinconsciente.

    Amanhiaalta,quandoumhomemidoso,dandoaentenderquebuscavaomercado,pelocestoquelhependiadasmos,atravessavaapassosvagarososumapraa ensolarada e extensa. Um grupo de tribunos alvejavao com ditriosdeprimentes, entre gargalhadas de ironia. O velhinho, que denunciava nos traosfisionmicosa linha israelita,demonstravapercebero ridculodequevinhasendoobjetomas,distanciandose dosmilitarespatrcios,comodesejosoderesguardarse,caminhou com mais timidez e humildade, desviandose em silncio. Foi nesseinstante que um dos tribunos, em cujo olhar autoritrio perpassava acentuadamalcia,acercousedele,interrogandooasperamente:

    Ol,judeudesprezvel,comoousaspassarsemsaudarosteussenhores?O interpelado estacou, plido e trmulo. Seus olhos revelaram estranha

    angstiaqueresumia,nasuaeloqunciasilenciosa,todososmartriosinfinitosqueflagelavam a sua raa. Asmos enrugadas lhe tremiam ligeiramente, enquanto obustosearqueavareverente,premindoalongabarbaencanecida.

    Teunome? tornouooficial,entredesrespeitosoeirnico.Jochedeb,filhodeJared respondeutimidamente.Eporquenosaudasteostribunosimperiais?Senhor,eunoousei!explicouquaselacrimoso.Noousaste? perguntouooficialcomprofundaaspereza.E, antes que o interpelado conseguisse oportunidade para mais amplas

    desculpas, o mandatrio imperial assentoulhe os punhos cerrados no rostovenervel,embofetessucessivoseimpiedosos.

  • 10 FranciscoCndidoXavier

    Toma!Toma!exclamavarudemente,aoestridordasgargalhadasdoscompanheirospresentescena,emtomfestivo Guardamaisestalembrana!Coasqueroso,aprendeasereducadoeagradecido!...

    O velhinho cambaleou, mas no reagiu. Percebiaselhe a surda revoltantima, a traduzirse no olhar chamejante, indignado, que lanou ao agressor comuma serenidade terrvel. Num movimento espontneo, olhou os braosencarquilhados na luta e no sofrimento, reconhecendo a inutilidade de qualquerrevide. Foi quando o verdugo inesperado, observandolhe a calma silenciosa,pareceumedir a extenso da prpria covardia e, colando asmos na complicadaarmaduradocinto,voltouadizercomprofundodesdm:

    Agoraque recebestealio,podesprocuraromercado,judeuinsolente!A vtima dirigiulhe, ento, um olhar de ansiosa amargura, no qual

    transpareciamasdolorosasangstiasemtodaumalongaexistncia.Emolduradonatnicasingelaenavelhicevenervel,aureoladaporcabelosbranqueadosnasmaispenosas experincias da vida, o olhar do ofendido semelhavase a um dardoinvisvelquepenetraria,parasempre,aconscincia doagressordesrespeitosoemau.No entanto, aquela dignidade ferida no se demorou muito na atitude deexprobrao,intraduzvelempalavras.Embreves instantes, suportandoosditriosdageralzombaria,prosseguiunoobjetivoque olevaraasairrua.

    O velho Jochedeb experimentava agora estranhas e amargas reflexes.Duas lgrimas quentes e doloridas sulcavamlhe as rugas da face macilenta,perdendose nos fios grisalhos da barba veneranda. Que fizera para merecer topesados castigos? A cidade fora trabalhada pelos movimentos de rebeldia denumerosos escravos, mas seu pequeno lar prosseguia com amesma paz dos quetrabalhamcomdedicaoeobedinciaaDeus.Ahumilhaoexperimentadafaziaoregressar, pela imaginao, aos perodosmais difceis dahistria de sua raa. Porquemotivo,eatquandosofreriamosisraelitasaperseguiodoselementosmaispoderososdomundo?Qualarazodeseremsempreestigmatizados,comoindignose miserveis, em todos os recantos da Terra? Entretanto, amavam sinceramenteaquelePai de justia e amor, que velava dos cus pela grandeza da sua f epelaeternidade dos seus destinos. Enquanto os outros povos se entregavam aorelaxamento das foras espirituais, transformando esperanas sagradas emexpressesdeegosmoeidolatria,IsraelsustentavaaleidoDeusnico,esforandose,emtodasascircunstncias,porconservarintactooseupatrimnioreligioso,comsacrifcioemboradasuaindependnciapoltica.

    Acabrunhado,Opobrevelhomeditavanaprpriasorte.Esposo dedicado, enviuvara quando aquele mesmo Licnio Mincio,

    questordoImprio,anosantes,instauraranefandosprocessosemCorinto,afimdepuniralgunselementosdesuapopulaodescontenteerebelada.Suagrandefortunapessoal fora extremamente reduzida e houve de amargar uma priso injusta,resultante de falsas acusaes, que lhe valeram pesados dissabores e terrveisconfiscos. Sua mulher no havia resistido aos sucessivos golpes que lhe feriramfatalmente o corao sensvel, mergulhandose na morte, ralada de acerbosdesgostosedeixandolheosdoisfilhinhosqueconstituamacoroadeesperanadasua laboriosa existncia. Jeziel e Abigail desenvolviamse sob o carinho de seusbraos afetuosos e, por eles, noacmulo dos sagrados deveres domsticos, sentia

  • 11 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    queanevedaestradahumanalhealvejaraprecocementeoscabelos,consagrandoaDeusassuasmaissantasexperincias.mentelheveioento,maisviva,asilhuetagraciosadosfilhos.Eraumlenitivoconhecerosaboragradveldasexperinciasdomundo, a benefcio deles.O tesouro filial compensavao das flagelaes em cadaacidente do caminho. A evocao do lar, onde o amor carinhoso dos filhosalimentavaasesperanaspaternas,suavizoulheasamarguras.

    Que importavaabrutalidadedoromanoconquistador,quandosuavelhiceseaureolavadosmaissantosafetosdocorao?Experimentandoresignado consolo,chegou aomercado, onde se abasteceu do que necessitava.Omovimento no eraintenso na feira habitual, como nos dias mais comuns entretanto, havia certaconcorrncia de compradores,mormente de libertos e pequenos proprietrios, queafluam das estradas de Cencria.Mal no havia terminado a compra de peixe elegumes,luxuosaliteiraparounocentrodapraaedelasaltouumoficialpatrcio,desdobrando largopergaminho.Aosinaldesilncio,que fizeraemudecer todasasvozes, a palavra da estranha personagem vibrou forte na leitura fiel do dito quetrazia:

    LicnioMincio,questordoImprioelegadodeCsar,encarregadodeabrirnestaprovnciaanecessriadevassapararestabelecimentodaordememtodaaAcata,convidaatodos oshabitantesdeCorintoqueseconsideraremprejudicadosemseusinteressespessoais,ouqueseencontraremnecessitadosdeamparolegal,acomparecerem amanh, ao meiodia, no palcio provincial, junto ao templo deVnus Pandemos, a fim de exporem suas queixas e reclamaes, que seroplenamenteatendidaspelasautoridadescompetentes.

    Lidooaviso,omensageiroretornouaeleganteviatura,que,sustentadaporhercleos braos escravos, desapareceu na primeira esquina, envolvida por umanuvemdeplevantadaemremoinhopelaventaniadamanh. Entreoscircunstantes,surgiramlogoopiniesecomentrios.Osqueixososnotinhamconta.Olegadoeseusprepostoslogode comeoseapossaramdepequenospatrimniosterritoriaisdamaioria das famlias mais humildes, cujos recursos financeiros no davam paracustear processos no foro provincial.Da, a onda de esperanas que avassalava ocoraodemuitosea opiniopessimistadeoutros,quenoenxergavamnoditoseno nova cilada, para obrigar os reclamantes a pagarem muito caro as suaslegtimasreivindicaes.

    Jochedeb ouviu a comunicao oficial, colocandose imediatamente entreos que se julgavam com direito a esperar legtima indenizao pelos prejuzossofridos noutros tempos. Animado das melhores esperanas, desandou para casa,escolhendo caminho mais longo, de modo a evitar novo encontro com os que ohaviamhumilhadorudemente.Nohaviacaminhadomuito,quandolhesurgiramfrente novos grupos de militares romanos, em conversaes ruidosas, quetransbordavamalacremente nasclaridadesdamanh.Defrontandooprimeirogrupode tribunos e sentindose alvo de comentrios deprimentes a transparecerem emrisosescarninhos,ovelhoisraelitaconsiderou:Devereisaudlos,oupassarmudoereverente,comoprocureifazernavinda?Preocupadocomoevitarnovopugilatoque gravasse as humilhaes daquele dia, inclinouse profundamente qualmseroescravoemurmurou,tmido:

    Salve,valorosostribunosdeCsar!

  • 12 FranciscoCndidoXavier

    Mal acabou de o dizer e um oficial de fisionomia dura e impassvel seacercou,exclamandocolrico:

    Queisso?Umjudeuadirigirseimpunementeaospatrcios?Chegouatantoacondenveltolernciadaautoridadeprovincial?Faamosjustiapornossasprpriasmos.

    E novas bofetadas estalaram no rosto dorido do infeliz, que necessitavaconcentrartodasasenergiasnavontadeparanoseatirar,dequalquermodo,aumareaodesesperada.Semumapalavradejustificao,ofilhodeJaredsubmeteuseao castigo cruel. Seu corao precipite, parecia rebentar de angstia no peitoenvelhecido todavia,oolharrefletiaa intensarevoltaque lheianaalmaopressa.Impossibilitadodecoordenar ideiasemfacedaagressoinesperada,nasuaatitudehumildereparouque,destavez,osanguejorravadasnarinas,tingindolheabarbabranca e o linho singelo das vestiduras. Isso, porm, no chegou a sensibilizar oagressor, que, por fim, lhe vibrou a ltima punhada na fronte enrugada,murmurando:

    Safate,insolente!Sustentando,acusto,ocestoquelhependiadosbraostrmulos,Jochedeb

    avanou cambaleante, sufocando a exploso do seu extremo desespero. Ah! servelho! pensava.

    Simultaneamente, os smbolos da f modificavamlhe as disposiesespirituais,esentianontimoapalavraantigadaLei:No matars.No entanto,osensinamentos divinos, a seu ver, na voz dos profetas, aconselhavam o revideolho por olho, dente por dente. Seu esprito guardava a inteno da represliacomoremdiosreparaesaquesejulgavacomdireitomasas foras fsicas jnoeramcompatveiscomosrequisitosdareao.

    Profundamente humilhado e presa de angustiosos pensamentos, buscourecolherseaolar,ondeseaconselhariacomosfilhosmuitoamados,emcujoafetoencontraria, decerto, a necessria inspirao. Suamodesta vivenda no demoravalongee,aindaadistncia,acabrunhado,entreviuosingeloepequeninotetodoqualfizera a edcula do seu amor. Presto, enveredou na trilha que terminava nacancelinha tosca, quase afogada pelas roseiras de Abigail, a exalarem forte edeliciosoperfume.Asrvoresverdesecopadasespalhavamfrescore sombra,queatenuavam o rigor do sol. Uma voz clara e amiga chegava de longe aos seusouvidos.Ocoraopaternaladivinhava.quelahora,Jeziel,conformeoprogramaporelemesmotraado,aravaaterra,preparandoaparaasprimeirassemeaduras.Avozdofilhopareciacasarsealegriadosol.Avelhacanohebraica,quelhesaadoslbiosquentesdemocidade,eraumhinodeexaltaoaotrabalhoeNatureza.OsversosharmoniososfalavamdoamorterraedaproteoconstantedeDeus.Ogenerosopaiafogava,acusto,aslgrimasdocorao.Amelodiapopularsugerialhe um mundo de reflexes. No havia trabalhado a existncia inteira? No sepresumiaumhomemhonestonosmnimosatosdavida,parajamaisperderottulodejusto?Entretanto,osanguedaperseguiocruelaliestavaapingarlhedabarbaveneranda sobre a tnica branca e indene de qualquer mcula que lhe pudesseatormentaraconscincia.

    Aindanotranspuseraocercadorsticodavivendahumilde,quandoumavozcariciosalhegritavaassustadiaeveemente:

  • 13 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Pai!Pai! Quesangueesse?Umajovemdenotvelformosuracorriaaabralocomimensaternura,ao

    mesmotempoquelhearrancavaocestodasmostrmulasedoloridas.Abigail, na candidez dos seus dezoito anos, era um gracioso resumo de

    todososencantosdasmulheresdasuaraa.Oscabelossedososcaamlheemaniscaprichosos sobre os ombros, emoldurandolhe o rosto atraente num conjuntoharmonioso de simpatia e beleza. No entanto, o quemais impressionava, no seutalhe esbelto demenina emoa, eram os olhos profundamente negros, nos quaisintensa vibrao interior parecia falar dos mais elevados mistrios do amor e davida.

    Filhinha,minhaqueridafilha!murmurouele,amparandosenosseusbraoscarinhosos.

    Embreve,davacontadetodasasocorrncias.E,enquantoovelhogenitorbanhava o rosto contundido, na infuso balsmica que a filha prepararacuidadosamente, Jeziel era chamado a inteirarse do acontecido.O jovemacorreusolcito e pressuroso. Abraado ao pai, ouviulhe o desabafo amargo, palavra porpalavra.Novigordajuventude,noselhepoderiadarmaisdevinteecincoanosmas o comedimento dos gestos e a gravidade com que se exprimia, deixavamentreverumespritonobre, ponderadoeservidoporumaconscinciacristalina.

    Coragem,pai! exclamoudepoisdeouviradolorosaexposio,pondonas expresses de firmeza um acentuado cunho de ternura nosso Deus dejustiae sabedoria.Confiemosnasuaproteo!

    Jochedebcontemplouofilhodealtoabaixo,fixandolheoolharbondosoecalmo, onde desejaria lobrigar, naquele momento, a indignao que lhe parecianatural e justa, dominado pelo desejo das represlias. verdadeque criara Jezielparaas alegrias puras do dever, emobedincia leal execuo da lei entretanto,nada o compelia aabandonar suas ideias de desforra, demaneiraa desafrontarsedosultrajesrecebidos.

    Filhoobtemperoudepoisdemeditarlongotempo,Jeovcheiodejustia,masosfilhosdeIsrael,comoescolhidos,precisamigualmenteexercla.Poderamosserjustos,olvidandoafrontas?Nopodereidescansar,semo repousodaconscincia pela obrigao cumprida. Tenho necessidade de assinalar os erros deque fui vtima,no presente e no passado, e amanh ireiao legado ajustarminhascontas.

    Ojovemhebreufezummovimentodeespantoeacrescentou:Ireis,porventura,presenadoquestorLicnio,esperandoprovidncias

    legais? E os antecedentes,meu pai? Pois no foi esse mesmo patrcio quem vosdespojoudegrandepatrimnio territorial, atirandovosao crcere?Novedesqueeletemnasmosasforasdainiquidade?Noserdetemernovasinvestidascomofimdeextorquiropoucoquenosresta?

    Jochedeb mergulhou no olhar do filho, olhar que a nobreza do coraoorvalhava de lgrimas emotivas, porm, na sua rigidez de carter, acostumado aexecutarosdesgniosprpriosataofim,exclamouquasesecamente:

    Como sabes, tenho contas velhas e novas a acertar, e, amanh, deconformidade com o dito, aproveitarei o ensejo que o Governo provincial nosfaculta.

  • 14 FranciscoCndidoXavier

    Meupai, suplicovosadvertiuo rapaz,entrerespeitoso ecarinhoso nolanceismodessesrecursos!

    E as perseguies? explodiu o velho energicamente e esseturbilhoincessantedeignomniasemtornodoshomensdenossaraa?Nohaverum paradeiro nesse caminho de infinitas angstias? Assistiremos, inermes, aoenxovalhodetudoquepossumosdemaissagrado?Tenhoocoraorevoltadocomessescrimesodiosos,quenosatingemimpunemente...

    A voz tornaraselhe arrastada emelanclica, deixando perceber extremodesnimotodavia,semseperturbarcomasobjeespaternas,Jeziel prosseguiu:

    Essas torturas,entretanto,nosonovas.Hmuitossculos,os farasdo Egito levaram to longe a crueldade para com os nossos ascendentes, que osmeninosdenossaraaeramtrucidadoslogoaonascer.AntocoEpifnio,naSria,mandoudegolarmulheresecrianas,norecessomesmodosnossoslares.EmRoma,detemposatempos,todososisraelitassofremvexameseconfiscos,perseguioemorte.Mas,certamente,meupai,DeuspermitequeassimaconteaparaqueIsraelreconhea,nossofrimentosmaisatrozes,asua missodivina.

    O velho israelita parecia meditar as ponderaes do filho contudo,acrescentouresoluto:

    Sim,tudoissoverdade,masajustiaretadevesercumprida,ceitilporceitil,enadapoderdemoverme.

    Ento,ireisreclamar,amanh,peranteolegado?Sim!Nessemomento,oolhardojovemdemorounavelhamesaonderepousava

    a coleo dosEscritosSagrados da famlia.Animadoporsbita inspirao, Jeziellembrouhumildemente:

    Pai,notenhoodireitodeexortarvos,masvejamosoquenossuscitaapalavradeDeusarespeitodoquepensaisnestemomento.

    E abrindo os textos ao acaso, conforme o costume da poca, a fim deconhecerasugestoquelhespudessemfacultarassagradasletras,leunapartedosProvrbios:

    Filhomeu, no rejeites o corretivo do Senhor, nem te enojes de suarepreensoporqueDeusrepreendeaqueleaquemama,assimcomoopaiaofilhoaquemquerbem.1

    Ovelhoisraelitaabriuosolhosespantados,revelandoaestupefaoqueamensagemindiretalhecausavaecomoJezielofixasselongamente,demonstrandoansioso interesse por conhecerlhe a atitude ntima, em face da sugesto dospergaminhossagrados,acentuou:

    Recebo a advertncia dos Escritos,meu filho,mas nome conformocom a injustia e, segundo tenho resolvido, levarei minha queixa s autoridadescompetentes.

    Orapazsuspirouedisseresignado:QueDeusnosproteja!...No dia seguinte, avolumavase compacta multido junto ao templo da

    Vnuspopular.Doantigocasaroondefuncionavaumtribunalimprovisado,viam

    1Provrbios,3:1112.

  • 15 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    se as luxuosas e extravagantes viaturas que cruzavama grande praaem todasasdirees. Eram patrcios que se dirigiam s audincias da Corte Provinciana, ouantigos proprietrios da fortuna particular de Corinto, que se entregavam aosentretenimentos do dia, custa do suor dos misrrimos cativos. Desusadomovimento caracterizava o local, observandose, de vez em quando, os oficiaisembriagadosquedeixavamoambienteviciadodotemplo dafamosadeusa,entupidodecapitososperfumesecondenveisprazeres.

    Jochedeb atravessou a praa, sem se deter para fixar qualquer detalhe damultido que o rodeava e penetrou no recinto, onde LicnioMincio, cercado demuitos auxiliares e soldados, expedia numerosas ordens. Os que se atreveram queixa pblica excediam tosomente de uma centena e, depois de prestaremdeclaraes individuais, sob o olhar percuciente do legado, eram um por umconduzidosparaasoluoisoladadoassuntoquelhesdizia respeito.

    Chegada a sua vez, o velho israelita exps suas reclamaes particulares,atinentessindbitasexpropriaesdopassadoeaosinsultosdequeforavtimanavspera,enquantooorgulhosopatrciolheanotavaasmenorespalavraseatitudes,doaltodesuactedra,comoquemjconhecia,delongotempo,apersonagememcausa. Conduzido novamente ao interior, Jochedeb esperou, como os demais, asoluodosseuspedidosde reparaoJustiamasaospoucos,enquantooutroseram convocados nominalmente ao acerto das contas com o Governo provincial,reparavaqueoantigocasaroseenvolviaemgrandesilncio,percebendoquesuavez,possivelmente,fora adiadaporcircunstnciasquenopodiapresumir.

    Instado nominalmente a dirigirse ao juiz, ouviu, grandementesurpreendido, a sentena negativa, lida por um oficial que desempenhava asatribuiesdesecretriodaquelaalada.

    O legado imperial, emnome de Csar, resolve ordenar o confisco dasupostapropriedadedeJochedebbenJared,concedendolhetrsdiaspara desocuparas terras que ocupa indebitamente, visto pertencerem, com fundamento legal, aoquestor LicinioMincio, habilitado a provar, a qualquer tempo, seus direitos depropriedade.

    A deciso inesperada causou intensa comoo ao velho israelita, a cujasensibilidade aquelas palavras levaramumefeito demorte.Nem saberia definir aangustiosa surpresa. No confiara na Justia e no estava procura de sua aoreparadora?Queria gritar o seu dio,manifestar suas pungentes desilusesmas alnguaestavacomoquepetrificadanabocaretradaetrmula.Apsumminutodeprofunda ansiedade, fixou no alto a figura detestada do antigo patrcio, que lhecausava, agora, a derradeira runa, e, envolvendoo na vibrao colrica da almarevoltadaesofredora,encontrouenergiasparadizer:

    ilustrssimo questor, onde est a equidade das vossas sentenas?VenhoataquiimplorandoaintervenodaJustiaemeretribusaconfianacommais uma extorso que me aniquilar a existncia? No passado, sofri adesapropriao descabida de todos os meus bens territoriais, conservando comenormessacrifciosachcarahumilde,ondepretendoesperaramorte!...Sercrvelquevs,donodeopulentoslatifndios,nosintaisremorso?Erasubtrairaomserovelhoaderradeiracdeadepo?

  • 16 FranciscoCndidoXavier

    O orgulhoso romano, sem um gesto que denotasse a mais leve emoo,retrucousecamente:

    Ponhasenaruaequeningumdiscutaasdecisesimperiais!Nodiscutir? clamouJochedebjdesvairado. Nopodereialteara

    voz amaldioando amemria dos criminosos romanos queme espoliaram?Ondecolocareis vossasmos, envenenadas como sangue das vtimas e as lgrimasdasvivasedos rfosesbulhados,quandosoarahorado julgamentonoTribunaldeDeus?...

    Mas, recordando subitamente o lar povoado pela ternura dos filhosamorosos, modificou a atitude mental, sensibilizado nas fibras recnditas do ser.Prostrandose,dejoelhos,emconvulsivopranto,exclamoucomovedoramente:

    Tende piedade demim, Ilustrssimo!... Poupaime a vivendamodesta,onde,acimadetudo,soupai...Meusfilhosesperammecomobeijodasuaafeiosinceraedesvelada!...

    Eacrescentava,afogadoemlgrimas:Tenhodoisfilhosquesoduasesperanasdocorao.Poupaime,por

    Deus!Prometoconformarmecomessepouco,nuncamaisreclamarei!...Entretanto, o legado impassvel respondeu com frieza, dirigindose a um

    soldado:Esprtaco,paraqueessejudeuimpertinenteseafastedorecinto,comas

    suaslamentaes,dezbastonadas.Oprepostoformalizouseparacumpririmediatamenteaordem,masojuiz

    implacvelacrescentou: Tenha cuidado em no lhe cortar o rosto, para que o sangue no

    escandalizeostranseuntes.De joelhos, o pobre Jochedeb suportou o castigo e, terminada a prova,

    levantouse,cambaleante,alcanandoapraaensolarada,sobasrisotasdisfaradasde quantos haviam presenciado o ignbil espetculo. Nunca, em sua vida,experimentaratointensodesesperocomonaquelahora.Quereriachoraretinhaosolhos frios e secos, lamentara desdita imensa e os lbios estavampetrificados derevolta e dor. Parecia um sonmbulo vagando inconsciente entre as viaturas e ostranseuntesqueseaglomeravamnapraa enorme.

    Contemplou com extrema e ntima repugnncia o templo de Vnus.Desejavatervozestentricaepoderosaparahumilhartodososcircunstantescomapalavradacondenao.

    Observando as cortess coroadas que o encontravam, as armaduras dostribunosromanoseaociosaatitudedosafortunadosquepassavamdespercebidosdoseumartrio,molementerecostadosnasliteirasvistosasdapocasentiusecomoquemergulhadonumdospntanosmaisodiososdomundo,entreospecadosqueosprofetasdasuaraajamaissecansaramdeprofligar,comtodasasverasdocoraoconsagradoaoTodoPoderoso.

    Corinto, a seus olhos, era uma nova edio da Babilnia condenada edesprezvel.

    De sbito, apesar dos tormentos que lhe perturbavam a alma exausta,recordou novamente os filhos queridos, sentindo, por antecipao, a profundaamarguraqueanotciadasentenalhescausariaaoespritosensveleafetuoso.A

  • 17 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    lembrana da ternura de Jeziel enternecialhe o peito galvanizado no sofrimento.Teve a impresso de vlo ainda a seus ps, suplicando desistisse de qualquerreclamaoe,aosouvidos,ecoavalheagora,commaisintensidade,aexortaodosEscritos: Filhomeu,norejeitesarepreenso doSenhor!

    Mas,aomesmotempo,ideiasdestruidorasinvadiamlheocrebrocansadoedolorido.ALeisagradaestavacheiadesmbolosdejustia.E,paraele,impunhase como dever soberano providenciar a reparao que lhe parecia conveniente.Agora,emdesolaosuprema,regressavaaolar,despojadodetudoquepossuademaishumildeemaissimples,ejnofimdavida!Comolheviriaopodeamanh?Semelementosdetrabalhoesemteto,viaseconstrangidoaperegrinaremsituaoparasitria,aoladodajuventudedosfilhos.

    Inenarrvelmartriomoral sufocavalheocorao.Dominadoporacerbospensamentos,aproximousedostiobemamado,ondeedificaraoninhofamiliar.Osol quente da tarde faziamais doce a sombra das rvores, de ramarias verdes eabundantes. Jochedeb avanou no terreno, que era propriedade sua, e, angustiadopela perspectiva de abandonlo para sempre, deu ensejo a que terrveis tentaeslhe desvairassem amente. As terras de Licnio no se limitavam com a chcara?Afastandose do caminho que o levava ao ambiente domstico, penetrou nosmatagais prximos e, depois de alguns passos, demorou o olhar na linha dedemarcao, entre ele e o seu verdugo.As pastagens do outro lado no pareciambem cuidadas. A falta demelhor distribuio da gua comum, certa secura geralfaziase sentir asperamente. Apenas algumas rvores, isoladas, amenizavam apaisagemcomasuasombra,refrescandoaregioabandonada,entreespinheiroseparasitas quesufocavamaservasteis.

    Obcecado pela ideia de reparao e vingana, o velho israelita deliberouincendiar as pastagens prximas. No consultaria os filhos, que, possivelmente,dobrariamoseuesprito, inclinados tolernciaebenignidade. Jochedeb recuoualgunspassose, recorrendoaomaterialdeservioaliguardadonasproximidades,fezofogocomqueacendeuumfeixedeervasressequidas.Orastilhocomunicouse, clere, e em rpidos minutos o incndio das pastagens propagavase com avelocidadedorelmpago.

    Terminadaatarefa,sobapenosaimpressodosossosdoloridos,regressoucambaleante ao lar, onde Abigail o inquiriu, inutilmente, dos motivos de toprofundoabatimento.Jochedebdeitouseesperadofilhomas,dentroempouco,um rudo ensurdecedor ecoavalhe aos ouvidos. No longe da chcara, o fogodestruarvoresamigasefrondesrobustas,reduzindopastosverdesapunhadosdecinzas.Grandereaardia,irremediavelmente,escutandoseosgritoslamentososdasaves que fugiam espavoridas.Pequenas benfeitorias do questor, inclusive algumastermaspitorescasdesuapredileo,construdasentreasrvores,ardiamigualmente,convertendoseemnegrosescombros.Aquieacol,oalaridodostrabalhadoresdocampo, em espantosa correria por salvar da destruio a residncia campestre dopoderosopatrcio,ouprocurando insulara serpentede fogoque lambiaa terraemtodas as direes, aproximandoSe dos pomares vizinhos. Algumas horas deansiedade espalharam as mais angustiosas expectativas mas, ao fim da tarde, oincndioforadominado,depoisde ingentesesforos.

  • 18 FranciscoCndidoXavier

    Debalde o velho judeu enviaramensagens procura do filho, dentro doscrculos de servio da sua pequena herdade. Desejava falar a Jeziel das suasnecessidadesedasituaotormentosaemqueseencontravamnovamente,ansiosopordescansaramenteatormentadanaspalavrasdulcificantesdasua ternura filial.Entretanto, somente noite, com as vestes chamuscadas e as mos ligeiramenteferidas, o jovem entrou em casa, deixando entrever no cansao da fisionomia alaboriosatarefaaqueseimpusera.Abigailnosesurpreendeucomoseuaspecto,entendendo que o irmo no deixara de auxiliar os companheiros de trabalho davizinhana, nas ocorrncias da tarde, preparandolhe aos ps cansados e smosdoloridasobanhodeguaaromatizadamas,tologooviuenotouasmosferidas,foicomespantoque Jochedebexclamou:

    Ondeestiveste,filhomeu?Jeziel falou da cooperao espontnea no salvamento da propriedade

    vizinha e, medida que relatava os tristes sucessos do dia, o pai deixava trair aprpriaangstianas fcies sombrias,emqueseestereotipavamos traos rudesdarevolta que lhe devorava o corao. Ao cabo de algunsminutos, erguendo a vozdesalentada,faloucomprofundaemoo:

    Meus filhos, custa dizerlhes, mas fomos espoliados na derradeiramigalhaquenosresta...Reprovandominhareclamaosinceraejusta,olegadodeCsardeterminouosequestrodonossoprpriolar.Ainqua sentenaopassaportedanossarunatotal.Pelassuasdisposies,somosobrigadosaabandonarachcaraemtrsdias!

    E, elevando os olhos para o Alto, como a insistir junto divinamisericrdia, exclamavacomoolharembaciadodelgrimas:

    Tudo perdido!... Por que fui assim desamparado, meuDeus? Onde aliberdadedovossopovo fiel, se,em todaparte,nosexterminameperseguemsempiedade?

    Grossas lgrimas escorriamlhe pelas faces, enquanto com a voz trmulanarravaaosfilhosospesadostormentosdequeforavtima.Abigailosculavalheasmosenternecidamente,eJeziel,semqualqueralusorebeldiapaterna,abraavaodepoisdasuadolorosaexposio,consolandoocomamor:

    Meu pai, por que vos atemorizardes? Deus nunca avaro demisericrdia. Os Escritos Sagrados nos ensinam que Ele, antes de tudo, o PaidesveladodetodososvencidosdaTerra!Essasderrotaschegamepassam.Tendesos meus braos e o cuidado afetuoso de Abigail. Por que lastimar, se amanhmesmo, com o socorro divino, poderemos sair desta casa, para buscar outra emqualquerparte,afimdenosconsagrarmosaotrabalhohonesto?Deusnoguiouonossopovoexpulsodolar,atravsdooceanoedodeserto?Porquenegaria,ento,seuapoioansquetantooamamosnestemundo?Eleanossabssolaeanossacasa.

    Os olhos de Jeziel fixavam o velho genitor numa atitude de splicaprofundamentecariciosa.Suaspalavras revelavamomaisdoceenternecimentonocorao. Jochedeb no era insensvel quelas formosasmanifestaes de carinhomas,antearevelaode tantaconfiananopoder divino,sentiaseenvergonhado,depoisdoatoextremoquepraticara.

  • 19 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Descansandona ternuraqueapresenados filhos lheofereciaaoespritodesolado, dava curso s lgrimas dolorosas que lhe fluam da alma pungida poracerbasdesiluses.Entretanto,Jezielcontinuava:

    No choreis meu pai, contai conosco! Amanh, eu prprioprovidenciarei anossaretirada,comosefazpreciso.

    Foinesseinstantequeavozpaternalseergueusoturnaeacentuou:Masnotudo,meufilho!...E,pausadamente, Jochedebpintouoquadrodesuasangstiasreprimidas,

    da sua clera justa, que culminara com a deciso de atear fogo propriedade doverdugoexecrando.Os filhosouviamnoespantados,entremostrandoador sinceraque a conduta paterna lhes causava.Depois de umolhar de infinitoamor e fundapreocupao,ojovemabraouo,murmurando:

    Meupai,meupai,porque levantastesobraovingador?Porquenoesperastesaaodajustiadivina?...

    Emboraperturbadopelasafetuosasadmoestaes,ointerpelado esclarecia:Estescritonosmandamentos:nofurtarse,fazendooque fiz,

    procurei retificar um desvio da Lei, porquanto fomos espoliados de tudo queconstituaonossohumildepatrimnio.

    Acimade todas as determinaes, porm,meupaiacentuou Jezielsemirritao ,Deusmandougravaroensinamentodoamor,recomendando queoamssemossobretodasascoisas,detodoocoraoetodoo entendimento.

    Amo o Altssimo, mas no posso amar o romano cruel suspirouJochedeb,amargurado.

    Mas,comorevelarmosdedicaoaoTodoPoderosoqueestnosCuscontinuouojovemcompadecido ,destruindosuasobras?Nocasodo incndio,notemossaconsideraronossotestemunhodedesconfianaparacomajustiadeDeus, mas os campos que nos fornecem agasalho e po sofreram com a nossaatitudeeosdoismelhoresservosdeLicnioMincio,CaioeRuflio,foramferidosdemortequandotentavamsalvarastermasprediletasdoamo,numalutaintilparalivrlas do fogo que as destruiu ambos, apesar de escravos, tm sido nossosmelhores amigos. As rvores frutferas e os canteiros de legumes de nossapropriedadedevemquasetudoaeles,nosnoconcernentessementesvindasdeRoma,mastambmnoesforoe cooperaocomomeu trabalho.Noseria justohonrarmos sua amizade, dedicada e diligente, evitandolhes a punio e ossofrimentosinjustos?

    Jochedebpareceumeditarprofundamentenasobservaes filiais,ditasemtomcarinhoso.EnquantoAbigailchoravaemsilncio,omooacrescentava:

    Nsqueestvamosempaz,nasderrotasdomundo,porquetrazamosaconscincia pura, precisamos resolver, agora, em face do que nos advir emrepreslias. Quando dava o meu esforo contra o fogo, observei que muitosafeioados deMinciome contemplavam com indisfarvel desconfiana. A estahora, j ele ter regressado dos servios da Corte Provincial. Precisamosencomendarnos ao amor e complacncia de Deus, pois no ignoramos ostormentos reservados pelos romanos a todos os que lhes desrespeitam asdeterminaes.

    Penosanuvemdetristezamergulharaostrsemsombriaspreocupaes.

  • 20 FranciscoCndidoXavier

    Novelho observavaseumaansiedade terrvel,quesemisturavadordoremorsopungentee,emambososjovens,notavase,noolhar,inexcedvelamargura,angustiosaeintraduzvel.

    Jeziel tomou de sobre amesa os velhos pergaminhos sagrados e disse irm,comtristeacento:

    Abigail,vamosrecitaroSalmoquenosfoiensinadopelamameparaashorasdifceis.

    Ambos se ajoelharam e suas vozes comovidas, como a de pssarostorturados, cantavam baixinho uma das formosas oraes de Davi, que haviamaprendidonocolomaternal:

    OSenhoromeuPastor,Nadamefaltar.Deitarmefazemverdespastos,GuiamemansamenteAguasmuitranquilas,Refrigeraminhalma,GuiamenasveredasdajustiaPoramordoseunome.AindaqueeuandassePelovaledassombrasdamorte,Notemeriamalalgum,PorqueTuestscomigo...ATuavaraeoTeucajadomeconsolam.PreparameobanquetedoamorNapresenadosmeusinimigos,Ungesdeperfumeaminhacabea,Omeuclicetransbordadejbilo!...Certamente,AbondadeeamisericrdiaSeguirotodososdiasdeminhavidaEhabitareinaCasadoSenhorPorlongosdias... 2

    Ovelhojochedebacompanhavaocnticodolorido,sentindoseopressodeamargosas emoes.Comeava a compreender que todos os sofrimentos enviadosporDeussoproveitosose justos,equetodososmalesprocuradospelasmosdohomem trazem, invariavelmente, torturas infernais conscincia invigilante Ocnticoabafadodos filhosenchialheocoraodetristezaspungentes.Lembrava,agora, a companheira querida queDeus havia chamado vida espiritual.Quantasvezes,acalentarlheelaoespritoatormentadocomaquelesversosinesquecveisdoprofeta?Bastavaquesuaobservaoamigaefielsefizesseouvirparaqueosentidodaobedinciaeda justialhefalassemaisaltoaocorao.

    Aoritmodaharmoniacaridosaetriste,queapresentavaacentosingularnavozdosfilhosidolatrados,Jochedebchoroulongamente.Dapequeninajanelaaberta

    2(1)Salmo23 (NotadeEmmanuel)

  • 21 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    noaposentohumilde,seusolhosbuscaramansiosamenteocuazul,queseencherade sombras tranquilas. A noite abraara a Natureza e, muito longe, no alto,comeavam a luzir as primeiras estrelas. Identificandose com as sugestesgrandiosas do firmamento, experimentou intensas comoes na alma ansiosa.Profundoenternecimentoflolevantarsee,sedentoderevelaraosfilhinhosquantoosamavaequantodelesesperavanaquelahoraculminantedasuavida,inclinousedebraosabertos,comsignificativaexpressodecarinhoe,quandoasltimasnotasse desprendiam do cntico dos jovens enlaados e genuflexos, abraouos empranto,murmurando:

    Meusfilhos!Meusqueridosfilhos!...Mas, nesse instante abriuse a porta e um pequenino servidor das

    vizinhanasanuncioucomgrandeassombroalhetransparecernosolhos:Senhores,osoldadoZenasemaisalgunscompanheiroschamamvos

    porta.Ovelhocolouadestraaopeitoopresso,enquantoJezielpareciameditarum

    instantetodavia,revelandoafirmezadoseuespritoresoluto,ojovemexclamou:Deusnosproteger.Da a instantes, o mensageiro que chefiava a pequena escolta leu o

    mandado de priso de toda a famlia. A ordem era categrica e irrevogvel. Osacusados deveriam ser recolhidos imediatamente ao crcere, a fimde que se lhesesclarecesseasituaonodiaseguinte.

    Abraadoaosdoisfilhos,opobreisraelitamarchoufrentedaescolta,queosobservavasempiedade.Jochedebcontemplouoscanteirosdefloreseasrvoresbemamadas juntodacasinhasingelaondetecera todosos sonhoseesperanasdasua vida. Singular emoo dominoulhe o esprito cansado. Uma torrente delgrimas flualhe dos olhos e, transpondo a cancela florida, falou em voz alta,olhandoocuclaro,agorarecamadopelosastrosdanoite:

    Senhor! Compadecetedonossoamarguradodestino!...Jeziel apertoulhe docemente a mo encarquilhada, como a lhe pedir

    resignaoecalma,eogrupomarchousilenciosamenteluzdasestrelas.

  • 22 FranciscoCndidoXavier

    2 Lgrimas e sacrifcios

    A priso que recebera as nossas personagens, emCorinto, era um velhocasaro de corredores midos e escuros,mas a sala destinadaaos trs, conquantodesprovidadequalquerconforto,apresentavaavantagemdeuma janelagradeada,quecomunicavaoambientedesoladocomanaturezaexterior.

    Jochedeb estava cansadssimo e, servindose do manto que apanhara aoacaso, ao retirarSe, Jeziel improvisoulhe um leito sobre as lajes frias. O velho,atormentado por uma aluvio de pensamentos, descansava o corpo dolorido,entregueapenosasmeditaessobreosproblemasdodestinohumano.Semsaberexternar suas dores pungentes, engolfarase em angustioso mutismo, evitando oolhardosfilhos.JezieleAbigailaproximandosedajanelasegurandolheasgradesinflexveis e abafando, com dificuldade, a justa inquietao. Ambos olharam,instintivamente, o firmamento, cuja imensidade sempre resumiu a fonte dasmaisternasesperanasparaosquechorame sofremnaTerra.

    Ojovemabraouairm,comimensaternura,edissecomovido:Abigail,lembrastedanossaleituradeontem?Simrespondeuelacomaingnuaserenidadedosseusolhosnegrose

    profundos, tenhoagoraa impressodeque osEscritosnosdavamumagrandemensagem, pois nosso ponto de estudo foi justamente aquele em que Moisscontemplava,delonge, aterradaPromissosempoderalcanla.

    Orapazsorriusatisfeitoporsentirseidentificadonosseuspensamentoseconfirmou:

    Vejo que estamos de perfeito acordo,O cu, estanoite, oferecenos aperspectiva de uma ptria luminosa e distante. L continuava apontando ozimbrio estreladoorganizaDeus os triunfos da verdadeira justia:d pazaostristesconfortoaosdesalentadosdasorte.Certamente,nossameestcomDeus,esperandoporns.

    Abigail mostrouse muito impressionada com as palavras do irmo eacentuou:

    Eststriste?Ficasteagastadocomoprocederdenossopai?Demodoalgumatalhouomooafagandolheoscabelos,estamos

    emexperinciasquedevemteramelhorfinalidadeparaanossaredeno,porque,deoutromodo,Deusnonolasmandaria.

    Nonosaborreamoscomopaitornouajovemestivepensandoque, se amame estivesse conosco, ele no chegaria a reclamaes de to tristesconsequncias. Ns no temos aquele poder de persuaso com que ela, carinhosasempre,iluminavaanossacasa.Lembraste?Semprenosensinouqueos filhosde

  • 23 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Deus devemestar prontos para a execuo das divinasvontades.Os profetas, porsua vez, nos esclarecemque os homens so varasno campoda criao.OTodoPoderoso o lavrador e ns devemos ser os galhos floridos ou frutferos, na suaobra.ApalavradeDeusnosensinaaserbonseamveis.Obemdeveserafloreofruto,queoCunospede.

    Nessaaltura,abelajovemfezumapausasignificativa.Seusgrandesolhosestavamveladosporumtnuevudepranto,quenochegavaacair.

    Entretanto,continuouela,emocionandooirmocarinhoso sempredesejeifazeralgumbem,semjamaisoconseguir.Quandonossavizinhaenviuvou,quis auxilila com dinheiro, mas no o possua sempre que me surge umaoportunidadedeabrirasmos,tenhoaspobresevazias.Ento,agora,pensoquefoitilanossapriso.Noserumafelicidade,nestemundo,podermossofreralgumacoisaporamordeDeus?Quemnadatem,indapossuiocoraoparadar.EestouconvictadequeoCunosabenoarpelanossa resoluoemservilocomalegria.

    Orapazaconchegouaaopeitoeexclamou:Deusteabenoepeloentendimentodassuasleis,irmzinha!Longa pausa estabelecerase entre ambos, enquanto mergulhavam no

    infinitodanoiteclaraosolhosternoseansiosos.Emdadoinstante,voltouajovemaconsiderar:Porqueserqueosfilhosdenossaraasoperseguidosemtodaparte,

    provandoinjustiaesofrimentos?SuponhorespondeuomooqueDeusopermiteaexemplodopai

    amorosoque,paraeducarosfilhosmaisjovenseignorantes,tomaporbaseosfilhosmaisexperientes.

    Enquantoosoutrospovosamortecemforasnadominaopelaespada,ounosprazerescondenveis,nossotestemunhoaoAltssimo,pelasdoreseamarguras,multiplica emnosso esprito a capacidade de resistncia,aomesmo tempoque osoutroshomensaprendemaconsiderar,comonosso esforo,asverdadesreligiosas.

    E,fixandooolharserenonofirmamento,acrescentou:MaseucreionoMessiasRedentor,queviresclarecertodasascoisas.

    Osprofetasnosafirmamqueoshomensnoocompreenderoentretanto,elehdevirensinandooamor,acaridade,a justiaeoperdo.Nascerentreoshumildes,exemplificar entre os pobres, iluminar o povo de Israel, levantar os tristes eoprimidos, tomar, com amor, todos os que padecem no abandono do corao.Quemsabe,Abigail,estarelenomundo,semosabermos?Deusoperaemsilncioenoconcorrecomasvaidadesdacriatura.TemosfeanossaconfiananoCuuma fonte de fora inesgotvel.Os filhos danossa raamuito tmpadecido,masDeussaberporqu,enonosenviaria problemasdequenonecessitssemos.

    A jovem pareceu meditar longamente e obtemperou, depois de algunsinstantes:

    E j que falamos em sofrimentos, como deveremos esperar o dia deamanh? Prevejo grandes contrariedades no interrogatrio e, afinal, que faro osjuzesdenossopaiedensprprios?

    No deveremos aguardar seno desgostos e decepes, mas noesqueamosaoportunidadedeobedeceraDeus.Quandoexperimentouaironiadesuamulher,nasdesditasextremas,Jteveaboalembranadeque,seoCriadornos

  • 24 FranciscoCndidoXavier

    dosbensparanossaalegria,podeenviarnosigualmenteosdissaboresparanossoproveito.Seopapaiforacusado,direiquefuieuoautordodelito.

    Eseteflagelaremporisso? perguntoueladeolhosansiosos.Entregarmeeiaoflagciocomapazdaconscincia.Seestiveresjunto

    demim,nesseinstante,cantarscomigoaprecedosqueseencontramem aflio.Esetematarem,Jeziel?PediremosaDeusquenosproteja.Abigailabraoumaisternamenteoirmo,que,porsuavez,dissimulavaa

    custo a emoo que lhe ia nalma. A irm querida constitura sempre o tesouroafetivodetodaasuavida.Desdequeamortelhesarrebataraagenitora,dedicaraseirm,comtodasasverasdocorao.Suavidapuradividiaseentreotrabalhoeaobedinciaaopaientreoestudodaleieaafeiomeigacompanheiradainfncia.Abigail contemplavao. ternamente, enquanto ele a abraava com o enlevo daamizadepura,quereneduasalmasafins.

    Depoisdemeditarlongosminutos,Jezielfaloucomovido: Se eu morrer, Abigail, hs de prometerme seguir risca aqueles

    conselhos da mame, para que tivssemos a vida sem mcula, neste mundo.LembrartesdeDeusedanossavidade trabalhosantificador,enuncaouvirsavoz das tentaes que arrastam as criaturas queda nos abismos do caminho.Recordastedasltimasobservaesdamamenoleitodamorte?

    Se recordo respondeu Abigail com uma lgrima. Tenho aimpressodeouviraindaassuasltimaspalavras:evocs,meusfilhos,amaroaDeusacimadetudo,detodoocoraoedetodooentendimento.

    Jezielsentiuosolhosmidos,comaquelasrecordaes,emurmurou:Felizdetiquenoesqueceste.E como quem desejava mudar o rumo da conversa, acrescentou

    sensibilizado:Agoraprecisasdescansar.Emboraelaserecusasseaorepouso,tomoulheomantopobre,improvisou

    umleitoluzbaadoluarque penetravapelasgradese,osculandolheafrontecomindizvelternura,advertiuafetuosamente:

    Descansa,noteimpressionescomasituao,nossodestinopertenceaDeus.

    Abigail, para lhe ser agradvel, aquietouse como pde, enquanto ele seaproximava da janela para contemplar a beleza da noite polvilhada de luz. Seucoraomoo,atufavasedeangustiosascogitaes.Agoraqueopaieairmzinharepousavam na sombra, dava curso s ideias profundas que lhe empolgavam oesprito generoso. Buscava, ansiosamente, uma resposta s interrogaes quemandavasestrelasdistantes.Esperava,comsinceridadeeconfiana,noseuDeusdesabedoriaemisericrdia,queospaislhehaviam dadoaconhecer.

    Aseusolhos,oTodoPoderososempreforainfinitamentejustoebom.Ele,queesclareceraogenitoreconsolaraairmzinha,perguntavatambm,porsuavez,dentrodesi,oporqudassuasprovasdolorosas.Comosejustificava,porcausatocomezinha,aprisoinesperadadeumanciohonesto,deumhomemtrabalhadorede uma criana inocente? Que delito irreparvel haviam praticado para merecerexpiao to penosa? O pranto correulhe copioso ao relembrar a humilhao da

  • 25 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    irm,mastambmnoprocurouenxugaraslgrimasquelheinundavamorosto,demaneiraaescondlasdeAbigail,quetalvezoobservassenasombra.Rememorava,um a um, todos os ensinamentos dos Escritos Sagrados. As lies dos profetasconsolavamlhe a alma ansiosa. Entretanto, vagavalhe no corao uma saudadeinfinita.

    Lembravase do carinhomaterno que amorte lhe arrebatara. Se presentequeletranse,amesaberiacomoconfortlos.Quandocriana,nassuaspequenascontrariedades,elaensinavaque,emtudo,Deuserabomemisericordiosoque,nasenfermidades, corrigia o corpo, e nas angstias da alma esclarecia, iluminava ocorao no desfile das reminiscncias, considerava igualmente que ela sempre oincitara coragem e alegria, fazendolhe sentir que a criatura convicta dapaternidade divina anda, no mundo, fortalecida e feliz. Edificado na f, cobrounimoe,depoisdelongasreflexes,aquietousenalajefria,procurandoorepousopossvelnosilncioaugustodanoite.

    Odiaamanheceuprenhedelgubresexpectativas.Dentrodepoucashoras,LicnioMincio,rodeadodenumerososguardase

    satlites,recebeuosprisioneirosnasaladestinadaaoscriminososcomuns,ondeseostentavamalgunsinstrumentosdepunioe suplcio.Jochedebeos filhostraamnapalidezdosemblanteaemooprofunda queosdominava.Oscostumesdapocaeram excessivamente desumanos para que o juiz implacvel e a maioria doscircunstantes se inclinassem comiserao pelo aspecto desditoso deles. Algunsesbirros perfilavamse junto dos potros de castigo, de onde pendiam aoites ealgemas impiedosos. No houve interrogatrio, nem depoimento de testemunhas,comoseriade esperarantesdeprovidnciastoodiosas,e,chamadorudementepelavozmetlicadolegado,ovelhojudeuaproximousevacilanteetrmulo:

    Jochedeb exclamou o algoz impassvel e sanhudo , os quedesacatam as leis do Imprio devem ser punidos de morte, mas eu procurei sermagnnimo,emconsideraotuavelhicedesamparada.

    Um olhar de angustiada expectao transfigurou o rosto do acusado,enquantoopatrcioesboavaumsorrisoirnico.

    Alguns operrios l da herdade continuou Licnio viramte asmos perversas na tarde de ontem, quando incendiaste as pastagens. Esse atoredundou em srios prejuzos para os meus interesses, alm de ocasionar malestalvezirreparveissadededoisservosmuiprestimosos.Comonadatensdeteuparacompensarodanocausado,recebersojustocorretivoemflagelaes,paraquenuncamaisvenhasaerguertuasgarrasdeabutrecontra osinteressesromanos.

    Soboolharangustiadoelacrimosodosfilhos,ovelhoisraelitaajoelhouseemurmurou:

    Senhor,porpiedade! Piedade? berrou Mincio com rispidez. Cometes um crime e

    imploras favores? Bem se diz que tua raa se compe de vermes asquerosos edesprezveis.

    E,designandootronco,dissefriamente aumdossequazes:Pescnio,aviate!Vergastaovintevezes.

  • 26 FranciscoCndidoXavier

    Ante a muda aflio dos jovens, o respeitvel ancio foi solidamentealgemado. O castigo ia comear quando Jeziel, rompendo a expectativa geral,aproximousedamesaefaloucomhumildade:

    QuestorIlustrssimo,perdoaiminhacovardiadehavercaladoatagoraassegurovos, porm, quemeu pai est sendo acusado injustamente. Fui eu quemincendiou os terrenos de vossa propriedade, perturbado pela sentena de confiscoexaradacontrans.Dignaivos,pois,libertloedarmeamimamerecidapunio.Aceitlaeidebomgrado.

    O patrcio teve um lampejo de surpresa nos olhos frios, que secaracterizavampormobilidadeextrema,eacentuou:

    Mas,noauxiliasteosmeushomensasalvarumapartedastermas? NofosteoprimeiroamedicarRuflio?

    Assimfizlevadopeloremorso,ilustrssimoretrucouorapaz,ansiosopor isentar o pai do suplcio iminente quando vi a extenso do fogocomunicandose s rvores, temi as consequncias do ato praticado, mas, agora,confesso tersidooseuautor.

    Nessenterim,receosopelasortedofilho,Jochedebexclamou, intimamenteatormentado:

    Jeziel,noteinculpesporumafaltaquenocometeste!...Mas, pontilhando as palavras com extrema ironia, o legado replicou,

    dirigindoseaomoohebreu:Estbem:poupeiteatagora,baseadonas falsas informaesqueme

    deram a teu respeito contudo, ters tambm o teu quinho de disciplinaindispensvel.Teupaipagarpelocrimeemquefoivisto,demaneirainegveletupagarspeloqueconfessasteespontaneamente.

    Colhidodesurpresapeladecisoquenoesperava,Jezielfoiconduzidoaopostedetortura,emfrentedaangstiapaterna.Aseulado,postouseo companheirodePescnio,queoatousempiedadeaoselosdebronze,easprimeirasvergastadascomearamalamberlheodorso,impiedosas,iscronas.

    Uma...duas...trs...Jochedeb revelava profunda debilidade, vendoselhe o peito a arfar

    penosamente,aopassoqueo filhodemonstrava tolerarosuplciocomherosmoenobre serenidade ambos de olhos fixos em Abigail, que os contemplavaexcessivamente plida, entremostrando nas lgrimas ardentes que derramava ocruciantemartriodoseuespritoafetuoso.

    A punio terrvel ia quase a meio, quando um mensageiro entrou norecintoe,emvozalta,anunciouaolegado,emtomsolene:

    Ilustrssimo, portadores de vossa casa participam que o servo Ruflioacabadefalecer.

    Ocruelpatrciofranziuosobrolhocomocostumavafazernosmomentosdeexplosocolrica.Sentimentosrancorososlheafloraramface,queaperversidadedeegosmoexacerbadovincaradetraosindelveis.

    Era omelhor dosmeus homens bradou.Estes judeusmalditospagaromuitocaroestaafronta.

    Filcrio, aplicalhe mais vinte vergastadas e, em seguida, levao priso, deondedeverseguirparaocativeironasgaleras.

  • 27 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Entreaspobresvtimaseajovemaflitatrocouseumolhardesignificaointraduzvel. Aquele cativeiro era a runa e a morte. E ainda no se haviamrecobradodacruelsurpresa,quandoojuizinexorvelprosseguiu:

    Quanto a ti, Pescnio, renova a tarefa. Esse velho, criminoso e semescrpulos,pagaramortedomeu fiel servidor.Golpeialheasmoseospsatquefiqueimpossibilitadodecaminharepraticaro mal.

    Ante a sentena inqua, Abigail caiu de joelhos, em preces ardentes. Dopeito do irmo escapavam fundos suspiros, nevoandoselhe os olhos de lgrimasdolorosas, ao conjeturar a inexorvel desdita da irmzinha, enquanto o pai lhesbuscavaansiosamente oolhar,receosodahoraextrema.

    Asvergastadascontinuavamsem trgua,mas,deumafeita,Pescnionoconseguira equilibrarse e a aguada ponta de bronze do aoite lanhou fundo agarganta do pobre israelita, jorrando o sangue em borbotes. Os filhoscompreenderamagravidadedasituaoeentreolharamseansiosos.Emprecesdesublimado fervor,AbigaildirigiaseaDeus,queleDeus ternoeamorosoquesuamelheensinaraaadorar.Filcrioconclurasua empreitada.

    A fronte de Jeziel erguiase a custo, exibindo pastoso suor tisnado desangue. Os olhos fixavamse na irmmuito amada,mas, em todo o seu aspecto,deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as ltimas resistncias.Incapazdedefinirosprpriospensamentos,Abigailrepartiasuaatenoangustiadacomopaieoirmotodavia,embrevesinstantes,aofluxo incessantedosanguequecorria abundante, Jochedeb deixou pender, para sempre, a cabea alvejada decabelosbrancos.Osanguealagaraasvestese empastavaselhenosps.

    Sob o olhar cruel do legado, ningum ousou articular palavra. Apenas oaoite,cortandooambientemornodasala,quebravaosilncionumsilvosingular.Mas, notaram que do peito da vtima ainda se escapavam palavras confusas, dasquaissobressaiamascarinhosasexpresses:

    Meusfilhos,meusqueridosfilhos!...Ajovemtalveznopudessecompreenderquechegaraomomento decisivo,

    mas Jeziel, no obstante o terrvel sofrimento daquela hora, tudo compreendeu e,numesforoprofundo,gritouparaairm:

    Abigail, papai est expirando tem coragem, confia... No possoacompanhartenaorao...masfazesportodosns...aprecedosaflitos...

    Dandomostrasdefinvejvelemtoamarguradascircunstncias,ajovem,dejoelhos,fixoulongamenteovelhopaicujopeitojnoarfavadepois,erguendoosolhosaoAlto,comeouacantarcomvoztrmula,porm harmoniosaecristalina:

    SenhorDeus,paidosquechoram,Dostristes,dosoprimidos,Fortalezadosvencidos,Consolodetodaador,EmboraamisriaamargaDosprantosdenossoerro,DestemundodedesterroClamamosporvossoamor!Nasafliesdocaminho,Nanoitemaistormentosa,

  • 28 FranciscoCndidoXavier

    Vossafontegenerosaobemquenosecar.Sois,emtudo,aluzeternaDaalegriaedabonana,NossaportadeesperanaQuenuncasefechar.

    Suas expresses vocais enchiamo ambiente de sonoridade indefinvel.Ocantosemelhavasemaisaumgorjeiodedordeumrouxinolquecantasse,ferido,numaalvoradadeprimavera.Togrande,tosinceraselherevelavaafnoTodoPoderoso, que sua atitude geral era a de uma filha carinhosa e obediente,comunicandose com o pai silencioso e invisvel. O pranto perturbavalhe a voztrmula,masrepetiacomdesassombroapreceaprendida nolar,comamaisformosaexpressodeconfiananoAltssimo.

    Penosaemooapossarasedetodos.Quefazercomumacrianacantandoo suplcio dos seus entes amados e a crueldade dos seus verdugos? Soldados eguardas presentes mal dissimulavam a emoo. O prprio questor pareciaimobilizado, como que submetido a enfadonho malestar. Abigail, estranha perversidade das criaturas, suplicando o amparo do Onipotente, no sabia que ocnticoera intil salvaodosseus,masquedespertariaacomiseraopelasuainocncia,ganhandolhe,assim,aliberdade.

    Recobrando alento e percebendo que a cena ferira a sensibilidade geral,Licnio esforouse por no perder a dureza de esprito e recomendou a um dosvelhosservidores,emtomimperioso:

    Justino,levaestamulherparaaruaesoltaa,masquenocantemais,nemmesmoumanota!

    Diantedaordemretumbante,Abigailnoterminouaorao,emudecendoinstantaneamente,comoseobedecesseaestranhoestacato.

    Lanou ao cadver ensanguentado do pai um olhar inesquecvel e, logocontemplando o irmo ferido e algemado, com quem trocava as mais ntimasimpresses na linguagemdos olhos doridos e ansiosos, sentiuse tocada pelamocalosadeumvelhosoldadoquelhediziaemvozquasespera:

    Acompanhame!Ela estremeceu todavia, endereandoa Jeziel o derradeiro e significativo

    olhar, seguiu o preposto de Mincio, sem resistncia. Aps atravessar inmeroscorredoresmidosesombrios,Justino,modificandosensivelmenteavoz,deulheaperceberextremasimpatiaporsuafiguraquaseinfantil,murmurandolheaoouvido,comovidamente:

    Minha filha, tambm sou pai e compreendo o teumartrio. Se queresatenderaumamigo,escutaomeuconselho.FogedeCorintoatodapressa.Valetedesteinstantedesensibilidadedosteusverdugosenovoltesaqui.

    Abigailcobroualgumnimoe,sentindoseencorajadaporaquelasimpatiaimprevista,perguntouextremamenteperturbada:

    Emeupai?Teupaidescansouparasempre murmurouogenerososoldado.

  • 29 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Oprantodajovemse fezmaiscopioso,borbulhandolhedosolhostristes.Todavia,ansiosapordefendersecontraaperspectivadesolido,perguntouainda:

    Mas...emeuirmo?NingumvoltadocativeirodasgalerasrespondeuJustinocomolhar

    significativo.Abigaillevouasmospequeninasaopeito,desejandoafogaraprpriador.

    Os gonzos de velha porta rangeram vagarosamente e o seu inesperado protetorexclamou,apontandoaruamovimentada:

    Vaiempazequeosdeusesteprotejam.A pobre criatura no tardou a sentir o insulamento entre as fileiras de

    transeuntes que cruzavam, apressados, a via pblica. Habituada aos carinhosdomsticos,nolarondeoidiomapaternosubstituaalinguagemdasruas,sentiuseestranha no meio de tantas criaturas inquietas, assoberbadas de interesses epreocupaes materiais. Ningum lhe notava as lgrimas, nenhuma voz amigaprocuravainteirarsedassuasntimasangstias.

    Estavas!SuameforachamadaporDeus,anosantesseupaiacabavadesucumbircovardementeassassinadooirmo,prisioneiroecativo,semesperanaderemisso. Apesar do sol do meiodia, tinha a sensao de intenso frio. Deveriaregressaraoninhodomstico? Mas,comquefim,sehaviamsidoexpulsos?Aquemconfiarsuaenorme desdita?

    Lembrousedeumavelhaamigadafamlia.Procuroua.AvivaSostnia,muito afeioada sua me, recebeua com o sorriso generoso da sua velhicebondosa.Desfeitaempranto,ainfortunadacontoulhetodoosucedido.

    Avenerandavelhinha,acariciandolheacabeleiraanelada,faloucomovida:Nasperseguiespassadas,nossossofrimentosforamosmesmos.E dando a entender que no desejava reviver antigas e dolorosas

    reminiscncias,Sostniaacentuou:indispensvelomximodecoragemnassituaespenosascomoesta.

    No fcil elevar o corao emmeio de to terrveis escombros mas precisoconfiar em Deus nas horas mais amargas. Que contas fazer, agora que todos osrecursos desapareceram? Porminha vez, nada te posso oferecer, seno o coraoamigo, pois tambm aqui estou por esmola da pobre famlia que me agasalhoucaridosamente,naltimatempestadedaminhavida.

    SostniadisseAbigailsuspirando,meuspaismeprepararamparaumaexistnciadecorajosoesforoprprio.Estoupensandoemrecorreraolegadoesuplicarlhe um cantinho da nossa chcara para ali viver uma vida honesta, naesperanadereaverJezielesuafraternacompanhia.Quepensasarespeito?

    Notandoaindecisodavenerandaamiga,continuou: Quem sabe o questor Licnio se condoer da minha sorte? Minha

    resoluotalvezoenterneavoltareiparacasaelevarteeicomigo.Sermeiasumasegundameparaorestodavida.

    Sostniaconchegouadeencontroaocoraoeacentuoudeolhosmidos:Minha querida, tu s um anjo,mas omundo ainda propriedade dos

    maus.Viveriacontigoeternamente,minhaboaAbigailentretanto,noconhecesolegadonemasuacamarilha.Ouve,filha!precisoquefujasdeCorinto,demodoanoincidiresemmaisdurashumilhaes.

  • 30 FranciscoCndidoXavier

    A moa teve uma exclamao de abatimento e, depois de longa pausa,acrescentou:

    Aceitareiteusconselhos,mas,antesdequalquerprovidncia,necessitovoltaracasa.

    Para qu? interrogou a amiga admirada. imprescindvel quepartasquantoantes.Novoltesaolar.Aestahora,possveljestejaocupadoporhomenssemescrpulos,quetenorespeitariam.Convmteumaatitudedesincerafortalezamoral, pois vivemos uma poca emquenecessitamos fugir da perdio,como L e seus familiares, correndo o risco de sermos transformados em esttuaintil,seolharmosparatrs.

    AirmdeJezielbebialheaspalavrascomdolorosaestranheza,emface doimprevistodasituao.Passadoummomento,Sostnialevouamofronte,comoarecordarumaprovidnciaoportunaefaloucomanimao:

    LembrastedeZacarias,filhodeHanan?Aqueleamigoda estradadeCencria?Elemesmo.Fuiinformadadeque,emcompanhiadaesposa,preparase

    para deixar definitivamente a Acaia, por haver sido assassinado pelos romanosirresponsveis,nestesltimosdias,oseunicofilho.

    Confortadaporardenteesperana,concluacomansiedade:CorrecasadeZacarias!Seaindaoencontrares,falalheemmeu nome.

    Pedelheacolhimento.Ruthumcoraogenerosoenodeixardeestenderteasmosgenerosasefraternaisseiqueelaterecebercomafagosmaternos!...

    Abigailtudoouvia,parecendoindiferenteprpriasorte.MasSostniafla considerar a necessidade do recurso e, decorridos minutos de consolaesrecprocas,a jovem,sob o calorcausticantedasprimeirashorasda tarde,psseacaminhoparaCencria,dandoaimpressodeumautmatoquevagassenaestrada,aquevriosveculoseinmerospedestresimprimiamconsidervelmovimento.OportodeCencriaficavaacertadistnciadocentrodeCorinto.

    Situadodemaneiraa servirscomunicaescomoOriente, seus bairrospopulososestavamcheiosdefamliasisraelitas,fixadasdelongadatanasregiesdaAcaia, ou em trnsito para a capital do Imprio e adjacncias. A irm de Jezielchegou casa de Zacarias dominada por terrvel abatimento. Aliado viglia daltimanoiteesangstiasdodia,penosocansaofsicolhe agravavaosdesalentos.Pernastrpegas,arelembraropaimortoeoirmoprisioneiro,noreparavaemsiprpria, no msero estado do seu organismo enfermo e desnutrido. Somente aodefrontaramodestamoradadoamigo,verificouqueafebrecomeavaadevorarlheasentranhas,obrigandoaa refletirnassuasdolorosasnecessidades.

    Zacarias e Ruth, sua mulher, atendendo ao chamado, receberamnaespantadoseaflitos.

    Abigail!...O grito de ambos revelava grande surpresa, com o aspecto da jovem

    despenteada, face esfogueada, olhos fundos e vestes em desalinho. A filha deJochedeb, perturbada pela fraqueza e pela febre, rojouse aos ps do casal,exclamandoemtomlancinante:

    Meus amigos, tende piedade domeu infortnio!...Nossa boaSostnialembroumevossoafeto,notransedolorosoporquepasso.Eu,quejno tinhame,

  • 31 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    tivehojemeupaiassassinadoeJezielescravizadosemremisso.SeverdadequepartireisdeCorinto,levaime,porcompaixo,emvossacompanhia!

    Abigail abraavase agora a Ruth, ansiosamente, enquanto a amiga aacarinhavaentrelgrimas.Soluante,ajovemrelatouosfatosdavsperaeostristesepisdiosdaqueledia.

    Zacarias,cujocoraopaternoacabavade sofrertremendogolpe,abraouacomafetoeamparouasensibilizado,exclamandosolcito:

    DentrodeumasemanavoltaremosPalestina.Aindanoseibemondenosvamos fixar,masns,queperdemoso filhoquerido, teremosem tiumafilhaestremecida.Acalmate!Irsconosco,sersnossafilhaparasempre.

    Incapazdetraduzirseujubilosoagradecimento,atormentadapela febrealta,a jovem ajoelhouse, em pranto, procurando externar sua gratido carinhosa esincera. Ruth tomoua ternamente nos braos e, qual desvelado anjo maternal,conduziuaaumleitomacio,ondeAbigail, assistidapelosdoisamigosgenerosos,deliroutrsdiasentreavidaeamorte.

  • 32 FranciscoCndidoXavier

    3 Em Jerusalm

    Depoisdecontemplarangustiadamenteocadverpaterno,ojovemhebreuacompanhou a irm, de olhar ansioso, at porta de acesso a um dos vastoscorredores da priso. Jamais experimentara to profunda emoo. Ao crebroatormentadoacudiamlheosconselhosmaternos,quandoasseveravaqueacriatura,acimade tudo, devia amar aDeus. Jamais conhecera lgrimas toamargas comoaquelasquelhe fluam emtorrente,docoraodilacerado.

    Como reaver a corageme reorganizar o caminho?Desejou,numrelance,romperasalgemas,aproximarsedopaiinanimado,afagarlheoscabelosbrancose,simultaneamente, abrir todas as portas, correr no encalo deAbigail, tomla nosbraosparanuncamais seapartaremnasestradasdavida.Debaldese estorceunotroncodomartrio,porque,emretribuioaosesforos,somenteosanguemanavamaiscopiosodasferidasabertas.

    Singultosdolorososabalavamlheopeito,acujaalturaatnicasefizeraemrubros frangalhos. Abismado em si mesmo, finalmente foi recolhido a uma celamida,onde,portrintadias,mergulhouopensamentoemprofundas cogitaes.

    Ao fimdeumms,asferidasestavamcicatrizadaseumdosprepostosdeLicnio julgouchegado omomentodeo encaminharaumadasgalerasdotrfegocomercial,ondeseencontravaoquestor,interessadoemassuntoslucrativos.

    O moo hebreu perdera o vio rseo das faces e o tom ingnuo dafisionomiacarinhosaealegre.Arudeexperinciaderalheumaexpresso dolorosaesombria.Vagavalhenosemblanteindefinveltristezaenafronteapontavamrugasprecoces,nunciativasdevelhiceprematuranosolhos,porm,amesmaserenidadedoce,oriundadantimaconfianaemDeus.

    Como outros descendentes da sua raa, sofrera o sacrifcio pungentetodavia,guardaraaf,comoaauroladivinadosquesabemverdadeiramenteagireesperar.OautordosProvrbiosrecomendara,comoimprescindvel,aserenidadedaalmaemtodasasflutuaesdavidahumana,porquedelaprocedemasfontesmaispuras da existncia e Jeziel guardara o corao. rfo de pai e me, cativo deverdugos cruis, saberiaconservaro tesourodaesperanaeprocurariaa irm,ataos confins do mundo, se um dia conseguisse, de novo, o beijo da liberdade nafronteescravizada.

    Seguido de perto por sentinelas impiedosas, qual se fora um vagabundovulgar,cruzouasruasdeCorintoatoporto,ondeointernaramnoporoinfectodeumagaleraadornadacomosmbolodasguiasdominadoras.

    Reduzidomseracondiodecondenadoatrabalhosperptuos,enfrentoua nova situao cheio de confiana e humildade. Foi com admiraoque o feitor

  • 33 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Lisipo anotoulhe a boa conduta e o esforo nobre e generoso. Habituado a lidarcommalfeitoresecriaturassemescrpulos,que,noraro,requeriamadisciplinadochicote,surpreendeuseaoreconhecernomoo hebreuadisposiosinceradequemseentregavaaosacrifcio,sem rebeldias esembaixeza.

    Manejandoosremospesadoscomabsolutaserenidade,comoquemse davaa uma tarefa habitual, sentia o suor abundante inundarlhe a face juvenil,relembrando,comovido,osdiaslaboriososdasuacharruaamiga.Embreve,ofeitorreconhecianeleumservodignodeestimaeconsiderao,quesouberaimporseaosprprios companheiros com o prestgio da natural bondade que lhe transbordavadalma.

    Aidens! exclamouumcolegadesalentado.So raros os que resistem a estes remosmalditos, pormais de quatro

    meses!...Mas todo o servio de Deus, amigo respondeu Jeziel altamente

    inspirado , e desde que aqui nos encontramos em atividade honesta e deconscincia tranquila, devemos guardar a convico de servos do Criador,trabalhandoemsuasobras.

    Para todas as complicaes da nova modalidade de sua existncia, tinhauma frmula conciliatria, harmonizando os nimos mais exaltados. O feitorsurpreendiase com a delicadeza do seu trato e capacidade de trabalho, que sealiavamaosmaisaltosvaloresdaeducaoreligiosarecebidanolar.Nobojoescuroda embarcao, sua firmeza de f no se modificara. Dividia o tempo entre oslabores rudes e as sagradas meditaes. A todos os pensamentos, sobrelevava asaudadedoninhofamiliar,comaesperanade reverairmalgumdia,pormaisqueselhedilatasseocativeiro.

    De Corinto, a grande embarcao aproara em Cefalnia e Nicpolis, deonde deveria regressar aos portos da linha de Chipre, depois de ligeira passagempela costa daPalestina, consoante o itinerrio organizado paraaproveitar o temposecoetendoemvistaqueoinvernoparalisavatodaa navegao.Afeitoaotrabalho,no lhe foi difcil adaptarse pesada faina de carga e descarga do materialtransportado, manobra dos remos implacveis e assistncia aos poucospassageiros,semprequelherequisitavamprstimos,soboolharvigilantedeLisipo.

    VoltandodeCefalnia,agalerarecebeuumpassageiroilustre.Eraojovemromano Srgio Paulo, que se dirigia para a cidade de Citium, em comisso denatureza poltica. Com destino ao porto de NeaPafos, onde alguns amigos oesperavam,omoopatrcioseconstituiu,desde logo,entre todos,alvodegrandesatenes. Dada a importncia do seu nome e o carter oficial da misso a elecometida,ocomandanteSrvioCarbolhereservouasmelhores acomodaes.

    SrgioPaulo,entretanto,muitoantesdeaportaremnovamenteemCorinto,onde a embarcao deveria permanecer alguns dias, em prosseguimento da rotaprefixada, adoeceu com febre alta, abrindoselhe o corpo em chagas purulentas.Comentavase, sorrelfa, que nas cercanias de Cefalnia grassava uma pestedesconhecida.Omdicodebordono conseguiuexplicaraenfermidadeeosamigosdoenfermocomearama retrairsecomindisfarvelescrpulo.Aofimdetrsdias,ojovemromanoachavasequaseabandonado,Ocomandante,preocupado,porsuavez, com a prpria situao e receoso por simesmo, chamouLisipo, pedindolhe

  • 34 FranciscoCndidoXavier

    que indicasseumescravo,dosmaiseducadosemaneirosos,capazde incumbirse detodaaassistnciaaopassageiroilustre,OfeitordesignouJeziel,incontinenti,e,namesma tarde, o moo hebreu penetrou no camarote do enfermo, com o mesmoesprito de serenidade que costumava testemunhar nas situaes mais dspares earriscadas.

    SrgioPaulo tinhao leitoemdesalinho.No raro,levantavasedesbito,noaugedafebrequeofaziadelirar,pronunciandopalavrasdesconexase agravando,comomovimentodosbraos,aschagasquesangravamemtodoo corpo.

    Quem s tu? perguntou o doente em delrio, logo que enxergou afigurasilenciosaehumildedojovemdeCorinto.

    Chamome Jeziel, o escravo que vos vem servir. E a partir daquelemomento,consagrouseaoenfermocomtodasasreservasdasuaafetividade.

    ComapermissodosamigosdeSrgio,utilizoutodososrecursosdequepodiadisporabordo,imitandoamedicaoaprendidanolar.Diasseguidose longasnoites, velou cabeceira do ilustre romano, com devotamento e boavontade.Banhos,essnciasepomadaserammanipuladoseaplicadoscomextremadedicao,comoseestivesseatratarumparententimoemuitocaro.Nashorasmaiscrticasdaenfermidadedolorosa,falavalhedeDeus,recitavatrechosantigosdosprofetas,quetraziadecor,cumulandoode consolaese carinhofraternal.

    SrgioPaulocompreendeuagravidadedomalqueafastaraosamigosmaiscaros e, no convvio daqueles dias, afeioouse ao enfermeiro humilde e bom.DepoisdealgunsdiasemqueJezielconquistaraplenamenteasua admiraoeoseureconhecimento, pelos atos de inexcedvel bondade, o doente entrou em rpidaconvalescena, com manifestaes de geral alegria. E contudo, na vspera deregressar ao poro abafado, o jovem cativo apresentou os primeiros sintomas damolstiadesconhecidaquegrassavaem Cefalnia.

    Aps entenderse com alguns subordinados de categoria, o comandantechamouaatenodopatrcio,jquaserestabelecido,elhepediuaprovaoparaoprojetodelanarojovemaomar.

    Ser prefervel envenenar os peixes, antes que afrontar o perigo docontgioearriscartantasvidaspreciosasesclareciaSrvioCarbocommaliciososorriso.

    OpatrciorefletiuuminstanteereclamouapresenadeLisipo,entrando ostrsatratardoassunto.

    Qualasituaodorapaz? perguntouo romanocominteresse.O feitor passou a esclarecer que o jovem hebreu lhe viera com outros

    homens capturados por LicinioMincio, por ocasio dos ltimos distrbios daAcaia.Lisipo,quesimpatizavaextremamentecomomoodeCorinto,procuroupintarcom fidelidade a correo da sua conduta, suas maneiras distintas, a benficainflunciamoralqueeleexerciasobreoscompanheirosmuitasvezesdesesperadoseinsubmissos.

    Depoisdelongasconsideraes,Srgioponderoucomprofundanobreza: No posso admitir que Jeziel seja atirado ao mar com a minha

    aquiescncia. Devo a esse escravo uma dedicao que equivale minha prpriavida.ConheoLicnio e, se necessrio, poderei esclareclomais tardesobre estaminha atitude. No duvido que a peste de Cefalnia esteja trabalhando o seu

  • 35 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    organismoe,porissomesmo,quelhespeoacooperaonecessria,afimdequeessejovemfiquelibertoparasempre.

    Masissoimpossvel... exclamouSrviorelicenciosamente.Porqueno?revidouoromano.Emquediaatingiremosoporto

    de Jope?Amanh,noitinha.Poisbemesperoquevocsnoseoponhamaosmeusplanos,eto logo

    alcancemosoporto,levareiJezielnumboteatsmargens,pretextandooensejodeexercciomuscular,queprecisorecomear.A,ento,lhedaremosliberdade.umfeitoquesemeimpe,emobedinciaaosmeusprincpios.

    Mas,senhor... obtemperouocomandanteindeciso.No aceito quaisquer restries,mesmoporqueLicnioMincio um

    velhocamaradademeupai.Econtinuou,depoisderefletirummomento:Noiasatirarorapazaofundodomar?Sim.PoisfaseconstarnosteusapontamentosqueoescravoJeziel,atacado de

    maldesconhecido,contradoemCefalnia,foisepultadonomar,antesqueapestecontagiasse os tripulantes e passageiros. Para que o rapaz no se comprometa,instruloeiarespeito,dandolheumastantasordensterminantes.Almdisso,notoo bastante enfraquecido para resistir com xito s crises culminantes damolstiaaindaemcomeo.Quempodergarantirqueele resistir?Quemsabemorreraoabandono,nosegundominutode liberdade?

    Ocomandanteeofeitortrocaramumolharinteligente,deimplcitoacordomtuo.

    Depoisdelongapausa,Srvioconcordou,dandoseporvencido:Estbem,seja.Omoopatrcioestendeuamoaosdoisemurmurou:Poresteobsquioaomeudeverdeconscincia,poderosempredispor

    emmimdeumamigo.Daainstantes,Srgioacercousedojovem,semiadormecidojuntodoseu

    camaroteejtomadodafebreemcomeodeexploso,dirigindolheapalavracomdelicadezaebondade:

    Jeziel,desejariasvoltarliberdade?Oh!Senhor...exclamouo jovemreanimandoo organismocomum

    raiode esperana.Quero compensar a dedicao queme dispensaste nos longos dias da

    minhaenfermidade.Souvossoescravo,senhor.Nadamedeveis.Ambos falavamogregoe,refletindosubitamentenasituaodefuturo,o

    patrciointerrogou:SabesoidiomacomumdaPalestina? Sou filho de israelitas, queme ensinaram a lnguamaterna nos mais

    verdesanos.Ento,noteserdifcilrecomearavidanessaprovncia.

  • 36 FranciscoCndidoXavier

    Emedindoaspalavras,comosetemessealgumasurpresacontrriaaosseusprojetos,acentuou:

    Jeziel, no ignoras que te encontras enfermo, talvez to gravementequanto eu, h alguns dias. O comandante, atento possibilidade de um contgiogeral, dadaa presena denumerosos homens a bordo, pretendia lanarte aomarcontudo,amanhdetardechegaremosaJopeeheidevalermedessacircunstnciapara devolverte vida livre. No desconheces, todavia, que, assim procedendo,estouainfringircertasdeterminaesimportantesqueregemosinteressesdemeuscompatriotas,ejustopedirte sigilodomeufeito.

    Sim,senhorrespondeuorapazextremamenteabatido,tentandocomdificuldadecoordenaras ideias.

    Sei que dentro em pouco a enfermidade assumir graves propores,prosseguiuobenfeitor.Darteeialiberdade,massoteuDeuspoderconcederteavida.Entretanto,casoterestabeleas,deversserumnovohomem,comumnomediferente. No desejo ser inculpado de traidor dos meus prprios amigos e devocontarcomatuacooperao.

    Obedecervoseiemtudo,senhor.Srgiolanoulheumolhargenerosoeterminou:Tomareitodasasprovidncias.Darteeialgumdinheiroparaatenderes

    as primeirasnecessidades e vestirs umademinhas velhas tnicasmas, to logosejapossvel,vaitedeJopeparaointeriordaprovncia.Oportoestsemprecheiodemarinheirosromanos,curiososemaleficentes.

    Oenfermofezumgestodeagradecimento,enquantoSrgioseretiravaparaatenderaochamadodealgunsamigos.

    Nodia imediato,horaesperada,ocasariopalestinenseestavavista.Equando luziamosprimeirosastrosdanoite,pequenobatelaproximavasedelocalsilencioso das margens, tripulado por dois homens cujos vultos se perdiam nasombra. Derradeiras palavras de bom conselho e despedida, e o moo hebreuosculou, comovidamente, a destra do benfeitor, que voltou galera apressado, deconscinciatranquila.

    Mal no dera os primeiros passos, Jeziel sentouse premido pelas doresgeraisquelhetomavamtodoocorpoepeloabatimentonatural,consequentefebrequeoconsumia.Ideiasconfusasdanavamlhenocrebro.Queriapensarnaventuradalibertaodesejavafixaraimagemdairm,quehaveria deprocurarnoprimeiroensejomasestranhotorporinfirmavalheasfaculdades,acarretandolhesonolnciainvencvel. Olhou, indiferente, as estrelas que povoavam a noite refrescada pelasbrisasmarinhas.Reparouquehaviamovimentonascasasprximas,masdeixouse,ficar inerte no matagal a que se recolhera, junto da praia. Pesadelos estranhosdominaramlheorepouso fsico,enquantooventolheacariciavaafrontefebril.

    De madrugada, acordou ao contacto de mos desconhecidas, que lherevistavam atrevidamente os bolsos da tnica. Abrindo os olhos, estremunhado,notouqueosprimeirosclaresdaalvoradalistravamoshorizontes.Umhomemdefisionomiasagazinclinavase paraele,procurandoalgumacoisa,comansiedade queo moo hebreu adivinhou de pronto, convencido de haver topado um dessesmalfeitores comuns, vidos da bolsa alheia. Estremeceu e fez um movimento

  • 37 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    involuntrio, observando que o assaltante inesperado alara a mo direita,empunhandoum instrumento,naiminnciadeexterminarlheavida.

    Nomemates,amigobalbucioucomvoztrmula.A essas palavras, ditas comovedoramente, o meliante susteve o golpe

    homicida.Darvoseitodoodinheiroquepossuo rematouorapazcomtristeza.E,vasculhandoaalgibeiraemqueguardaraoescassodinheiroquelhe dera

    o patrcio, tudo entregou ao desconhecido, cujos olhos fulguraram de cobia eprazer. Num relance, aquela fisionomia contrafeita transformavase no semblanterisonhodequemdesejaaliviaresocorrer.

    Oh! Sois excessivamente generoso! murmurara, apossandose dabolsarecheada.

    Odinheiro semprebomdisseJezielquandocomelepodemosadquirirasimpatiaouamisericrdiadoshomens.

    Ointerlocutorfingiunoperceberoalcancefilosficodaquelaspalavraseasseverou:

    Vossabondade,entretanto,dispensaoconcursodequaisquerelementosestranhosparaaconquistadebonsamigos.Eu,porexemplo,dirigiameagora paraomeutrabalhonoporto,masexperimenteitantasimpatiapelavossasituaoqueaquiestouparaquantovospreste.

    Vossonome? Irineu de Crotona, para vos servir respondeu o interpelado,

    visivelmentesatisfeitocomodinheiroquelherefertavaobolso.Meuamigoexclamouorapazextremamenteenfraquecido,estou

    enfermo e no conheo esta cidade, demodo a tomar qualquer resoluo. Podeisindicarmealgumalbergueoualgumquemepossaprestaracaridade deumasilo?

    Irineuesboouumafciesdefingidapiedadeerespondeu: Pesamenada ter para colocar disposio de vossas necessidades e

    tambmnoseiondepossaexistirumabrigoadequadopararecebervos,comosefazpreciso.Averdadeque,paraaprticadomal,todosestoprontos,masparafazerobem...

    Depois,concentrandosepormomentos,acrescentou: Ah! Agora me lembro!... Conheo umas pessoas que vos podem

    auxiliar. SooshomensdoCaminho.3Mais algumas palavras e Irineu prontificouse a conduzilo ao conhecido

    mais prximo, amparandolhe o corpo enfermo e vacilante. O sol caricioso damanhcomeavaadespertaraNaturezacomosseusraiosquenteseconfortadores.Feitaa reduzida caminhada por umatalhoagreste, sustido pelomeliante arvoradoembenfeitor,Jezielparavaportadeumacasadeaparnciahumilde.Irineuentroue de l regressou comumhomem idoso, de semblante agradvel, que estendeu amo,cordialmente,ao moohebreu,dizendo:

    Deondevens,irmo?

    3PrimitivadesignaodoCristianismo.(NotadeEmmanuel)

  • 38 FranciscoCndidoXavier

    Orapazadmirousedetantaafabilidadeedelicadeza,numhomemaquemviapelaprimeiravez.Porquelhedavaottulofamiliar,reservadoaocrculomaisntimodosquenasciamsobomesmoteto?

    Por que me chamais irmo, se no me conheceis? interrogoucomovido.

    Masointerpelado,renovandoosorrisogeneroso,acrescentava:SomostodosumagrandefamliaemCristoJesus.Jezielnocompreendeu.QuemseriaaqueleJesus?Umnovodeusparaos

    quedesconheciamalei?Reconhecendoqueaenfermidadenolhedavaensanchasacogitaesreligiosasoufilosficas,respondeusimplesmente:

    Deus vos recompense pela generosidade da acolhida. Venho deCefalnia, tendo adoecido gravemente em viagem, e assim e que, neste estado,recorrovossacaridade.

    Efraim disseIrineudirigindoseaodonodacasa,nossoamigo temfebre e o seu estado geral requer cuidados.Voc, que umdos bons homens doCaminho,hdeacolhlocomocoraodedicadoaosque sofrem.

    Efraimaproximousemaisdojovemenfermoeobservou:NooprimeirodoentedeCefalniaqueoCristoenviaminhaporta.

    Aindaanteontem,outroaquisurgiucomocorpocrivadodeferidasdemaucarter.Alis,conhecendoagravidadedocaso,pretendologotardelevlo paraJerusalm.

    Mas,necessrioirtolonge? perguntouIrineucomcertoespanto. Somente l, temosmaior nmero de cooperadoresesclareceu com

    humildade.Ouvindooquediziameconsiderandoanecessidadedeausentarsedo porto

    em obedincia s recomendaes do patrcio que se lhe mostrara to amigo,restituindooliberdade,JezieldirigiuseaEfraimnumapelohumildee triste:

    Porquemsois!LevaimeparaJerusalmconvosco,porpiedade!...Oirterpelado,evidenciandonaturalbondade,anuiusemmaiorestranheza:Irscomigo.AbandonadoporIrineuaoscuidadosdeEfraim,odoenterecebeucarinhos

    de um verdadeiro amigo. No fosse a febre e teria travado com o irmo umconhecimento mais ntimo, procurando conhecer minuciosamente os nobresprincpios que o levaram a estenderlhe amoprotetora.Contudo,mal conseguiumanterse de pensamento vigilante sobre si mesmo, a fim de elucidar as suasinterrogaescarinhosas,medicandoseconvenientemente.

    Ao crepsculo, aproveitando a frescura da noite, uma carroa,cuidadosamente velada por um toldo de pano barato, saa de Jope com destino aJerusalm.

    Caminhando cuidadoso para no esfalfar a pobre alimria, Efraimtransportava os dois enfermos cidade prxima, buscando os recursosindispensveis.Descansandoaquieali,somentenamanhseguinteoveculoparou porta de um casaro de grandes propores, alis pauprrimo em sua feioexterior. Um rapaz de semblante alegre veio atender ao recmvindo, que ointerpeloucomintimidade:

    Urias,podersdizermeseSimoPedroest?Est,Sim.

  • 39 PAULOEESTEVO (peloEsprito Emmanuel)

    Poderschamloemmeunome?Vouj.Acompanhado de Tiago, irmo de Levi, Simo apareceu e recebeu o

    visitantecomefusivasdemonstraesdecarinho.Efraimesclareceuomotivodasuapresena.Doisdesamparadosdomundorequeriamauxliourgente.

    MasquaseimpossvelatalhouTiago.Estamoscomquarentaenove doentesacamados.

    Pedroesboouumsorriso generosoeobtemperou:Ora,Tiago,seestivssemospescando,seriajustonoseximssemosdesse

    ou daquele dever que exorbitasse a esfera das obrigaes inadiveis de cada dia,junto da famlia, cuja organizao vemdeDeusmas agora oMestrenos legou otrabalhodeassistnciaatodososseus filhos,nosofrimento.Presentemente,nossotemposedestinaaissovejamos,pois,oquepossvelfazer.

    EobondosoApstoloadiantouseparaacolherosdoisinfelizes.Desdeque vieradoTiberadesparaJerusalm,Simo transformaraseem

    clulacentraldegrandemovimentohumanitarista.Os filsofosdomundosemprepontificaram de ctedras confortveis, mas nunca desceram ao plano da aopessoal, ao lado dos mais infortunados da sorte. Jesus renovara, com exemplosdivinos, todo o sistema de pregao da virtude. Chamando a si os aflitos e osenfermos,inauguraranomundoafrmuladaverdadeirabenemernciasocial.

    As primeiras organizaes de assistncia ergueramse com o esforo dosapstolos, ao influxo amoroso das lies do Mestre. Era por esse motivo que aresidncia de Pedro, doao de vrios amigos do Caminho, regurgitava deenfermosedesvalidossemesperana.Eramvelhosaexibiremlcerasasquerosas,procedentes de Cesaria loucos que chegavam das regies mais longnquas,conduzidos por parentes ansiosos de alvio crianas paralticas, da Idumia, nosbraosmaternais,todosatradospelafamadoprofetanazareno,queressuscitavaosprprios mortos e sabia restituir tranquilidade aos coraes mais infortunados domundo.Naturaleraquenemtodossecurassem,oqueobrigavaovelhopescadoraagasalharconsigotodososnecessitados,comcarinhodeumpai.

    Recolhendoseali,comafamlia,eraauxiliadoparticularmenteporTiago,filho de Alfeu, e por Joo mas, em breve, Filipe e suas filhas instalavamseigualmente em Jerusalm, cooperando no grande esforo fraternal. Tamanho omovimento de necessitados de toda sorte, que h muito Simo no mais podiaentregarse a outromister, no concernente pregao daBoaNova do Reino. Adilatao desses misteres vinculara o antigo discpulo aos maiores ncleos dojudasmodominante.Obrigadoavalersedosocorrodoselementosmaisnotveisdacidade, Pedro sentiase cada vezmais escravo dos seus amigos benfeitores e dosseuspobresbeneficiados,ac