estéticas do cinema de eduardo geada 1985

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Antologia de textos teóricos de cinema. Organização e prefácio de Eduardo Geada.

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Page 1: Estéticas do Cinema de Eduardo Geada 1985

ARTese sociedade

ETWAIì1iIN BELA BALAZSi'^^ASOLINI*ERIAN HENDERSON- ¡AN CHRISTIAN METZ

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ARTE e Ecinema

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. ESTÉTICAS DO CINEMA

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WALTER BENJAMIN • BELA BALAZSEISENSTEIN • PASOLINI • BRIAN. HENDERSON

DANIEL DAYAN • CHRISTIAN METZJACQUES AUMONT

ESTÉTICAS DO CINEMASelecção, Apresentação e Notas de

EDUARDO GEADA

PUBLICAÇOES DOM QUIXOTELISBOA

1985

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FICHA:

Titulo: Estéticas do Cinema. -

Organização e prefácio: Eduardo Geada.

Colecção: Arte e Sociedade, n.° 4.gditions du Seuil e Communications, para o texto de Jacques Aumont «Le Point

de Vuev.

Q Subrkamp Verlag, para o texto de Walter Benjamin eDas Kunstwerk im Zeitalierseiner Technischen Reproduzierbarkeit».

Os textos de Pier Paolo Pasolini e Christian Metz são aqui reproduzidos por amáveldeferência das Editoras Assino & Alvim e Livros Horizonte.

Capa: Fernando Felgueiras.

1 ° edição: Outubro de 1985.

Edição n.°: 4 AS 985.

Depósito legal n°: 9358/85.

Todos os direitos reservados por: Publicações Dom Quixote, Lda.,Rua Luciano Cordeiro, 119, 1098 Lisboa Codex, Portugal.

Composição, impressão e acabamento: Santelmo, Cooperativa de Artes Gráficas, C. R. L.,em Outubro de 1985.

Distribuição: Diglivro, Rua do Ataide, Pátio do Pimenta, 28, Lisboae Movilivro, Rua do Bonfim, 98, r/c, Porto.

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ÍNDICE

Depois do Cinema

Eduardo Geada ............................................................................................................... 9

A Obra de Arte na Era da sua Reprodução Técnica

Walter Benjamim ................................................................................................. ........ 15

A Face do HomemBela Balazs ........................................................................................................... ......... 51

Métodos de MontagemSergei Eisenstein ..................................................................................................... ........59

Observações sobre o Plano-SequênciaPier Paolo Pasolini .........................................................................................................71

Dois Tipos de Teoria do Filme

Brian Henderson ..................................................................................................... ........77

O Código-Matriz do Cinema Clássico

Daniel Dayan ........................................................................................................ ........97

História-Discurso

Christian Metz ........................................................................................................... 117

O Ponto de VistaJacques Aumont ..................................................................................................... 125

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DEPOIS DO CINEMA

EDUARDO GEADA'

«O real chegado aò espirito, já não é o. real. O. nosso filhar é.demasiado pensativo, demasiado inteligente. -

Duas espécies de real:

1.°) O real bruto registado tal qual pela câmara;2.?) O que nós .chamámos real e que. vemos deformado.

pela nossa memó iá_ e os falsos_ éálçulás.

Problema. Fazer ver o que tu vês por intermédio de urnamáquina que não vê como tu vês. E fazer ouvir o que tu ouvespor intermédio de outra máquina que não ouve como tu ouves.

O real 'não é . dramático, O . draga nascerá de uma certa con-jugação de elementos não dran}éticos.»

Robert Bresson,

Notes stir- le cinêmatográphe,Gallimard, Paris, . 1975: •

A relação entre a natureza da .imagem çinematográfica e a represen-tação, dá rea.Iidad - constitui a, área mais, seasfyel de qualquer teoria doiItne., Dessa relação nos falam, , de modo; digegso,. os: textos. -agora reunidos

nesta; antolo a.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

O cinema inaugura, provavelmente, uma poética da modernidade deque os intelectuais mais argutos depressa se aperceberam, apesar da resis-tência que, durante décadas, encontraram por parte dos círculos académicos.Não é por acaso que começamos com Benjamim para quem o cinema e afotografia iniciam não apenas um novo processo técnico de produçãoartística mas uma nova era na contemplação e na compreensão do fenó-meno estético.

Podemos aceitar que o filme, mais ainda do que a fotografia, seconstitua nessa fabulosa memória involuntária do presente a ponto detornar eterno tudo o que é transitório e que alguma vez foi registadopela objectiva de uma câmara. As primeiras vistas cinematográficas -- refe-ridas de passagem por Aumont— assemelham-se bastante às deambulaçõesdo olhar do passeante ocioso e curioso, sempre disponível, pelas ruas dacidade que Benjamim —noutros ensaios — tão bem descreveu a propó-sito de Baudelaire. E não era o poeta, precisamente, que referia o porte,o olhar e o gesto de cada época como tudo o que constitui a vida exteriõr

de um século susceptível de transformar o histórico em poético? É tambémisso 'que o cinema faz, no documentário, como na ficção, ao recriar e aoreproduzir nas imagens a experiência quotidiana do homem.

Benjamim nota a condição paradoxal do espectador das salas escurasque é, fundamentalmente, a de um examinador, mas a de um examinadorque se distrai. Ë sem duvida esta forma de recepção pela via do diver-timento que alguns espíritos mais circunspectos não perdoam ao cinema,não reparando que o filme não é só a travessia dos desertos povoadosque nos deslumbram no continente do . visível mas também o enigmaque interroga e funda a descoberta do inconsciente visual que seria, a bemdizer, literalmente invisível sem a existência do cinema. Não nos referimos,por exemplo, ao domínio do cinema cientifico que tanto Benjamim comoBazin defendem com bons argumentos, mas, tão somente, a um filmevulgar em que,-por vezes, o momento fulgurante de um plano chega paranos fazer adivinhar a outra realidade.

Desde os seus primeiros textos, publicados nos anos vinte, Balazsdefende a ideia de que durante séculos a imprensa tornou ilegível a facedos homens. Com o cinema, o corpo e o rosto do homem podem traduzirumas experiência espiritual visualizada sem a mediação da palavra - oindizível torna-se visível. A apologia que Balazs faz do grande plano no

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DEPOIS 'DO CINEMA

cinema mudo não perdeu actualidade nem elegância de convicção. Ë ver-dade que as coisas respondem ao nosso olhar quando as olhamos de face,vibram na inteligência do nosso olhar, ecoam na memôria das nossasvivências, incorporam-se de afecto e emoção. Balazs foi porventura umdos primeiros teóricos a sublinhar que. a fisionomia de cada objecto numfilme é o resultado' não apenas da sua própria configuração . mas;..sobretudo,da perspectiva e da articulação dos planos cinematográficos, ou seja, doponto de vista das imagens e da capacidade que estas têm para solicitara identificação do espectador — temas que encontrarão nos textos de Dyan,Metz e Aumont uma amplitude considerável.

Não é de admirar, pois, que também Benjamim encontre no grandeplano do rosto humano o último reduto cultual do cinema e a instânciamotriz do sistema do vedetismo cinematográfico. A imagem fotografadade um rosto é sempre uma imagem do passado e, portanto; virtualmente,um prenúncio de morte. Ë decerto deste pressentimento = como maistarde nos viriam lembrar textos belïssimos de Bazin, de Pasolini, deBarthes, de Sontag — que emana a aura das fotografias e dos filmesantigos e que Benjamim qualifica de beleza melancólica. E se os filmespassados fossem ruínas de humanidade tal como os provérbios são ruínasde velhas histórias? Ë talvez esta aproximação sublime que • permite aBenjamim um entendimento tão profundo do cinema e tão adequadosua concepção alegórica da cultura: a história é um amontoado de sofri-mento e de ruínas cujo imaginário o cinema revestiu de curiosidade, demagia e de operacionalidade cirúrgica a fim de penetrar no coração do real.

_Para penetrar no real não basta reproduzi-lo, porque é necessárioque a reprodução e a representação artística nos sugiram algo que a reali-dade, em si, parece não conter. O processo estético implica, por conse-quência, a criação e a aceitação de um efeito de . estranheza que . os teóricostentaram. localizar nas contingências específicas da técnica, da realização,da montagem e da projecção cinematográficas. Por exemplo, pára Arnheim,adepto indefectível da psicologia da forma, e para Shklovsky, um dosmats influentes formalistas russos, a fruição do filme seria . tanto maisintensa e interessante quanto ele nos conseguisse apresentar . os objectossob novos aspectos, inesperados, pouco familiares, enriquecendo a nossaIimitada visão do mundo.

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BST., TICAS . DO' CINEMA

Se a- estranheza deslumbrante consistia, para Balais, sobretudo naexploração da • microdramaturgia revelada pelo insólito - de grande planeno desenvolvimento• da narrativa, já Eisenstein entendia que era funda-mental dar prioridade á montagem, ao contraste entre os planos que seencontram nubla relação de contiguidade, á articulação dialéctica entreos . fragmentos de real que compõem o filme. Como assinalam Hendersone Aumont, • o excesso de Eisenstein reside na sobrevalorização das equi-valencias discursivas da imagem, como se a montagem das atracções,primeiro, e o cinema intelectual, mais tarde, pudessem formular 'o pensa-mento directamente em imagens. Não é arbitrário que no ensaio dedicadoaos método$ de montagem Eisenstein -insista tanto na analogia do cinemacom' a música, visto que a música é uma das raras práticas artísticas nãolegitimada pela representação do real capaz de desencadear fortes estadosemocionais 'a partir da sua matéria pura.

Justamente, o que está implícito nas teorias eisensteinianas da mon-tagem é uma vontade inabalável de controlar o pensamento do espectadoratravés de choques emocionais que não se prendam apenas com o níveltemático do drama ; do real representado, mas dependam radicalmente .daformalização abstracta de uma hipotética cine-língua.

Contrariando a concepção da prevalência artística da montagem nefilme, dominante até aos anos cinquenta através de realizadores e críticostão diversos como Pudovkin e Malraux além dos ensaistas anterior-mente citados — André Bazin vem defender a ideia de que a especificidadedo cinema tanto reside na capacidade de manipulação da montagem comono seu oposto, ou seja, no ajustamento plástico da imagem cinematográficaaosentido da realidade. Bazin toma o partido da realidade porque o cinemaideal:, não, fará mais dá que conservar, pela, escolha, paciente O inteligentedo cineasta, o. espaço e : o tempo que: as coisas habitam. A realidade deixatraços no filme como se fossem impressões. digitais. Os realizadores pre=feridas de Bazin . sio os: que sabem • preservar- os princípios estético e:psicológico do axioma da_ objectividade, recusando a trucágems e alinhand(itanta quanto . possível o olhar da câmara. pelo Olhar do homem. Daqui 'a.valorização- sistemática das: objectivas que: não: deformam a perspectiva,:da profundidade de: campa que permite: a liberdade da circulação do olhardo espectador e o efeito de montagem no :interior do plano; do plane--sequência que regista fielmente o tempo real da filmagem, `cio• respeite

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DEPOIS • DO CINEMA

pela unidade do espaço cénico - entendida como o. garante da -verdade -narelação da câmara_ com os actores e com o real.

Ë o axioma da objectividade que autoriza Pasolini a definir o plano--sequência como .um limite realista, como um tensor máximo do olharsubjectivo,. mostrando, -em .consequência, =que a elaboração- típica da .pla-nificação clássica mais não é do -que a pré-montagem virtual dos prováveisplanos subjectivos - dos vários pontos de - vista que deste modotransitam do presente para o -passado•e• se constituem em narrativa pre-tensamente. objectiva.. .

Como sugere Aumont, a solução de continuidade narrativa dos- mú1.tiplos pontos de vista variáveis acabará por se encontrar sobredeterminadapor um ponto de vista predicativo. -

Tomar 'o partido da realidade é pretender não 'interferir nela, comose as fronteiras de qualquer campo cinematográfico não se encontrassemsempre investidas pelo desejo do sujeito. Ora, precisamente, trata-se, naplanificação clássica, de interferir mas apagando constantemente os rastosdessa interferência: O cinema- da transparência, que procura manter aambiguidade fundamental do real iluminando as zonas escuras da raiomais com a luz do drama . do que com a luz dos projectores, • é um cinemaque anuncia a ..teorização mais rigorosa da noção de sutura entendida,sumariatnente, na proposta de Oudart -e de Dyan, como um processosimbólico de colagem imperceptível dos fragmentos do filme de modo aassegurar ao discurso cinematográfico uma coerência e uma continuidadeilusórias. Nos termos de Metz, a eficácia do sistema da sutura consisteprecisamente em apagar as marcas da enunciação e disfarçar-se em história.

Ao cinema da sutura, que desde Griffith se foi impondo como ocódigo matriz do cinema espectáculo, opôs Eisenstein o cinema da rupturafundado na descontinuidade dos cortes de montagem, na colisão entre osplanos, na heterogeneidade espado-temporal. No fundo, é a propósitodestes dois tipos de teoria do filme que Henderson contrapõe, obviamentesob outro prisma e abordando diferente problemática, as posições deBazin e de Eisenstein, deixando porém em aberto a necessidade de seavanrar no sentido de novas estéticas que possam dar conta da comple-xidade do cinema pós-moderno, ou seja, posterior a Jean-Luc Godard.

Embora os parâmetros da sutura e da ruptura contenham a maiorparte das variações discursivas que o cinema e a televisão apresentam,

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ESTËTICAS DO "CINEMA

não cabe dúvida de que outras tentativas são plausíveis e desejáveis.Os filmes de Jean-Luc Godard por um lado e o desenvolvimento da

arte-vídeo 'per outro vieram provar que as imagens e os sons t&a umacapacidade inusitada de nos fazer descobrir novos universos em perma-nente mutação. Essa capacidade centra-se, em grande medida, na distorção,se não na destruição, dos códigos que fizeram a glória do velho cinema.Godard, por exemplo, força os códigos e os materiais cinematográficóssegundo linhas de fuga imprevisíveis: escreve contrariando o real, filmacontrariando o argumento, monta contrariando a filmagem, estreia . con-trariando o público, e volta a filmar contrariando o filme anterior. Noseio de cada obra, o realizador procede ao agenciamento dos actores, edos objectos mais heteróclitos, sobrepõe géneros, ideias, vertigens, imagense sons, cria zonas de um vazio insustentável, recomeça o sonho em cadaplano. Nem sutura nem ruptura, o cinema de Godard é mais propriamenteum cinema da rasura onde tudo é precário e frágil como na , primeiranoite de amor.

Hoje, a rasura pode assumir a forma do eterno retorno ao velhocinema,. apenas com a desvantagem de que as cópias raramente partilhamo odor da beleza melancólica dos originais. E aqui voltaríamos ao textode Benjamim para celebrar as ruínas do norte contemporaneo. Depois docinema nada voltará a ser como era.

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A OBRA DE ARTENA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TÉCNICA

WALTER BENJAMIM

As nossas Belas-Artes foram instituídas, fixados os seus tipos e osseus usos, num tempo muito. distinto do nosso, por homens cujo poderde acção sobre as coisas era insignificante, se o . compararmos com aqueleque nós próprios possuímos. Mas o espantoso aumento dos nossos meios,a maleabilidade e precisão que atingem, as ideias e os hábitos que intro-duziram asseguram-nos próximas e muito profundas alteraçóes na indústriado Belo. Em todas as artes há uma parte física que já não é possívelolhar, nem considerar, como dantes, que já não pode ser subtraída à'inter-venção do conhecimento e do poder modernos. Nem a matéria, nem oespaço, nem o tempo, são, de há vinte anos para cá, o que sempre foram.Ë de esperar que tão grandes novidades transformem toda a técnica dasartes, agindo assim sobre a própria invenção; e talvez acabem por modi-ficar maravilhosamente a própria noção de arte. Paul Valéry, «La conquêtede l'ubiquité», Piéces sur Part (Paris, 1934, pp. 103-104. Pléiade, I,p. 1284). -

PRÓLOGO

Quando Marx meteu ombros à tarefa de analisar o modo de produçãocapitalista, este dava ainda os primeiros passos. Marx orientou o seutrabalho de um modo que o fez adquirir o valor do prognóstico. 'Recuou

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ESTETICAS DO CINEMA

até as relações fundamentais da produção capitalista e representou-as deforma a que revelassem aquilo que no futuro ainda se podia esperar docapitalismo. A conclusão foi a de que podia esperar-se não só uma explo-ração reforçada dos proletários, como, finalmente, a instauração de con-dições que possibilitassem a sua própria supressão. A transformação dasuperstrutura, muito mais lenta do que a da infraestrutura, precisou demais de meio século para fazer valer, em todos os domínios culturais,a modificação nas condições de produção. Só hoje constatamos as formasde que se revestiu esta modificação, e destas constatações é possível extrairalguns prognósticos. Estes' córrespõnderii "menos, apesar , de tudo, a tesessobre a arte prOlefária "deficilS–di tõináda dé poder (e ïiíërios ainda sobrea arte da sociedade sem classes) do que a teses sobre as tendências evo-lutivas da arte nas actuais condições de produção. A .diaiécticã destascondições não é menos perceptível na superstrutura do que na economia.Pôr isso seria falso` sitli stiEiiiaf ` o' -válor dessas leses em relação . 4 lutad classes. Afástai n ümá ' s rié dé Concëitós tradidoriais — côunó 'ériá d

génio, valor de eternidade e' 'inístério — conceitos cuja aplicação' decontrolada (e momento dificilnnente cônitrolável) a elaboração de dadosde facto leva a interpretaçóes fascistas. Os conceitos que, seguidameè te,

introduziremos como estatuto cie novidades na teoria da arte distinguem-sedos conceitos mais cõrrentes por serem completamente inutilizáveis paraos objectivos de um projecto fascista. Ëm contrapartida,, são utilizáveispara formular exigências revolucionárias no âmbito da política da arte..

Por princípio, a obra de arte foi sempre susceptível de reprodução;Aquilo que homens tinham feito, podia sempre ser refeito por outroshomens. Em todos os tempos houve alunos que copiavam obras de artea título de exercício, mestres que as reproduziam para as difuridi'rein;.falsários que as imitavam para obter lucro material. A reprodução técnicada obra de arte é; no' eritantd,- unt fenóniei realmente novo; que nasceué' se desenvolveu- história, através de etapas sücessivás quelongos intervalos separavati; ëmbbia a umi ritinó• cada vez mais *idô

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TECNICA

Os Gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a fun-dição, e o relevo por pressão. Os bronzes, as terracotas, e as moedasforam as únicas obras de arte que puderam reproduzir em série. As outrassó comportavam um exemplar único e não se prestavam a qualquer técnicade reprodução. Com a gravura sobre madeira foi possível, pela primeiravez, reproduzir o desenho, muito tempo antes de a imprensa permitir amultiplicação da escrita. Sabemos das imensas transformações introduzidasna literatura pela impressão, ou seja, pela reprodução técnica da escrita.Seja qual for a sua importância excepcional, esta descoberta não passade um aspecto particular do fenómeno geral que aqui consideramos aonível da história mundial. Já na Idade Média se juntam, à madeira, ocobre e a água-forte; no princípio do século xrx, a litografia.

Com a litografia, as técnicas de reprodução beneficiaram de u na pro-gresso decisivo. Este processo, muito mais fiel, que confia o desenho àpedra em vez de o entalhar na madeira ou de o gravar sobre o cobre,permitiu pela primeira vez à arte gráfica colocar os seus produtos nomercado, não apenas reproduzindo em série (como já vinha a ser feito)mas sob formas diariamente novas. Foi assim que, a partir daqui, o dese-nho pôde ilustrar a actualidade quotidi ana. Foi assim que se tornouUltimo colaborador da imprensa. Mas escassas dezenas de anos decorreram.depois desta descoberta, e eis que a fotografia, por sua vez, a ultrapassanesse papel. E com a fotografia que a mão, pela primeira vez, no quediz respeito à reprodução das imagens, deixa de ter que executar tarefasartísticas essenciais, que a partir daqui ficam reservadas ao olho fixosobre objectiva. Mas como o olho apreende mais depressa do que a mãodesenha, a reprodução das imagens pode a partir daqui fazer-se a umritmo tão acelerado que conseguiu acompanhar a própria cadência daspalavras. O fotógrafo, graças a aparelhos rotativos, fixa as imagens, emestúdio, com a mesma rapidez com que o actor pronuncia palavras. Se alitografia continha virtualmente o jornal ilustrado, a fotografia continhavirtualmente o cinema sónoro. No fina do século passado abordou-se oproblema que a reprodução de sons colocava. Todos estes esforços con-vergentes permitiam prever uma situação que Valéry caracterizava daseguinte maneira: «Tal como a água, o gás e a corrente eléctrica vêmde longe até às nossas casas pari responderem às nossas necessidadesmediante um esforço quase nulo da nossa parte, também seremos alimen-

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ESTÉTICAS DÕ CINEMA

tádós por imagens visuais e auditivas, que nascem. e desaparecem aarrifnitno gesto, quase só com um sinal.» I

Cóni, á século XX; as técnicas de reprodução atingiram um nívelta./ que lhes vai set possível a partir daqui, não só serem aplicadas atodas . as obras de arte do passado modificando-lhes, de úma forma muitóprofunda; os modos de influência; como ainda imporem =se, por si próprias,conca formas originais de arte. Sobre este ponto, nada é mais reveladordo que a forma como duas das suas manifestações diferentes — a repro-dução da obra de arte e a arte cinematográfica— actuaram sobre asformas artísticas tradicionais.

II

A mais- perfeita reprodução falta sempre qualquer còisà: -o- hic et

nuns da obra de arte — a unicidade da sua presença aqui e agora nolocal em que se encontra. iJ, no entanto, à esta preseriça- única, e a elaapenas; qúé está ligada toda a sua história. Falando de história, pensamosnão só nas alterações materiais que provavpimente sofreu como,- também;na sucessão dos seus possuidores 2 . A marca das alterações Materiais só

detectável por "análises físico química's'; impossíveis numa reprodução;para determinar as mãos sucessivas pelas quais- a obra de arte passou;. épreciso seguir toda uma tradição a partir do próprio' local em que a obrafoi criada.

O hic et nuns do original constitui aquilo a que se d airia a- suaautenticidade. Pára se estabelecer autenticidade de um bronze, é por-vezes necessário recorrer a análises químicas da sua patine; para demons-itear -a autenticidade de ti. ' manuscritã medieval., é predso por vezes:estabelecer que de facto pv:Weili- de uni arquivo século xv. A próprianoção de autenticidade não tem qualquer sentido para uma reprodução,.técnica ou não técnica 3 . Mas: face ã! reprodução feita. pela mão do hom'em',e considerada pot' prir ciPio • cOmü' falsificação; o Original conserva a. sual

plena autoridade; não acontece o mesmo. no que' diz respeito á reprodução"técnica-. E isto por . duas razões. Por uzn lado a reprodução técnica é' iraisindependente do- original. No- caso da fotografia, esta pode realçar aspectos:dó' original que escapam ao olho e- que só- são apreensíveis f através de

fg

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TÉCNICA

uma objectiva livfémente deslocável para óliter diversos ângulos de visãõ;graças á . processos como a ampliação ou o retardador pode atingir-se umarealidade que qualquer visão natural ignora. Por outro lado, a técnicapode transportar á reprodução para situações em que o próprio originaln únca poderia estar. Sob a forma de fotografia ou de disco, permiteprincipalmente aproximar a obra de arte do espectador ou do Ouvinte.A catedral abandona a localização real pára vir tòmar lugar no estúdiode um amadòr; o melómáno pode ouvir ein casa, o coro executado numasala de concerto od ao ar livre.

Ë possível que as novas condições assim criadas pelas técnicas dereprodução deixem, par outro lado; intacto o próprio conteúdo da obrade arte; desvalorizam, de qualquer forma o seu hic et nunc. O mesmo sepassa, sem dúvida, relativamente a coisas diversas da obra de arte, porexemplo em relação á paisagem representada na película cinematográfica;mas, quando se trata da obra de arte, esta desvalorização toca-a no pontomais sensível, o ponto em que ela, ad contrário dos objectos naturais,é vulnerável: na sua autenticidade. O que faz a autenticidade de umacoisa é tudo o que ela contém de origiadriamente transmissível; da suaduração material ao seu poder de testemunho histórico. Como Cite teste=munho assenta nessa duração, no caso da reprodução, em que o primeiroelemento escapa aos homens, o segundo -= o testemunho histórico dacoisa = acaba por ficar igualmente abalado. Não mais certamente; iraso que assim é abalado é a autoridade da coisa 4.

Seria possível resumir todos estes desaparecimentos recorrendonoção de aura e dizer: na era das técnicas de reprodução, o que é atingidona obra de arte; é a sua aura. Este processo tem valor de sintoma; oseu significada ultrapassa o domínio da arte. Poderia dizer-se',' de uivamaneira geral, que as técnicas de reprodução destacam o objecto repro-duzido do domínio da trad'.ção. Multiplicando os exemplares, substitueinpor um fenómeno de Massa um acontecimento que só se próduziu uinsvez. Permitindo ao objec o reproduzido oferecer-se a visão ou á audiçãoem qualquer circunstância, conferem-lhe uma actualidade. Estes dois pro-cessos levará a um considerável abalo da realidade transmitida a umabalo da tradição, que é a contrapartida da crisé que atravessa aétual-mente a humanidade, e da sua actual renovação. Estão em correlaçãoestreita com os movimentos de massa que hoje em dia se produzem.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

O seu agente mais eficaz é o filme. Mesmo que o consideremos sob a suaforma mais positiva, e precisamente sob essa forma, não podemos apreen-der o significado social do cinema se não considerarmos o seu aspectodestrutivo, o seu aspecto catártico: a liquidação do elemento tradicionalná herança cultural. Este fenómeno é particularmente sensível nos grandesfilmes históricos, e quando Abel Gance exclamava, entusiasmado, em1927: «Shakespeare, Rembrandt, Beethoven farão cinema. (...) Todas aslendas, toda a mitologia, e todos os mitos, todos os fundadores de reli-giões e mesmo todas as religiões (...) esperam pela sua ressurreiçãoluminosa, e os heróis acotovelam-se as nossas portas para entrarem» 5,convidava-nos, sem querer, a uma liquidação geral.

III

No decorrer dos grandes períodos históricos, juntamente com todo omodo de existência das comunidades humanas, transformam-se tambémas suas maneiras de sentir e de aprender. A forma orgânica que adquirea sensibilidade humana -- o meio no qual se realiza -- não dependeexclusivamente da natureza, depende também da história. Na época dasgrandes invasões, nos artistas do Baixo Império, nos autores da Genesede Viena, encontramos não só uma arte diferente da arte dos Antigos,como ainda outra maneira de apreender. Os sábios da escola de Viena,Riegl e Wieckhoff 6, opondo-se a todo o peso da tradição clássica querelegara esta arte para o domínio do esquecimento, foram os primeirosa ter a ideia de extrair dela inferências quanto ao modo de percepçãopróprio do tempo em que ocupava lugar de honra. Seja qual for o alcanceda sua descoberta, reduziu-o o facto de estes investigadores se darempor satisfeitos ao destacarem as características formais próprias da per-cepção no Baixo Império. Não tentaram — e talvez nem sequer o con-seguissem --- mostrar as transformações sociais de que estas modificaçõesdo modo perceptivo eram, apenas, a expressão. Estamos hoje em melhorposição do que eles para as compreendermos. E se é verdade que asmodificações a que assistimos no meio em que a percepção se organizapodem ser entendidas como um declínio da aura, torna-se-nos possívelindicar as causas sociais que provocaram esse declínio.

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TÉCNICA

Aplicámos, acima, a noção de aura aos objectos históricos, mas, paramelhor a esclarecermos, vai ser preciso que consideremos a aura de umobjecto natural. Poderíamos defini-la como a única aparição de uma reali-dade longínqua, por mais próxima que possa estar. Repousando no Verão,ao meio-dia, e seguindo no horizonte a linha de uma cadeia de montanhasou um ramo que lança a sua sombra sobre quem repousa — é estar asentir a aura dessas montanhas ou desse ramo. Esta evocação permitecompreender facilmente os factores sociais aos quais é imputável o actualdeclínio da aura. Este declínio prende-se com duas circunstâncias, ambascorrelativas à importância crescente das massas na vida actual. Com efeito,encontramos actualmente nas massas duas tendências igualmente fortes:por um lado exigem que as coisas se lhes tornem espacial e humanamente«mais próximas»', por outro tendem a acolher as reproduções, depredandoaquilo que é único. Cada dia que passa se vai impondo mais a necessidadede possuir o objecto na maior das proximidades possíveis, em imagem,mas ainda mais em reprodução. incontestável que, tal como a fornecemo jornal ilustrado e o semanário de actualidades, a reprodução se distingueda imagem. Nesta, a unicidade e duração estão tão estreitamente associadascomo na fotografia estão a realidade fugidia e indefinidamente reprodu-tível. Despojar o objecto do seu véu, destruir a sua aura, é o que caracterizauma percepção que se tornou apta a «sentir o que é idêntico no mundo»de forma a ser capaz de, através da reprodução, repetir aquilo que sóacontece uma vez. Assim se revela, no domínio intuitivo, um fenômenoque é análogo ao que se observa no domínio teórico com a importânciacrescente da estatística. A adequação da realidade às massas e a adequaçãodas massas à realidade é um processo de alcance imenso, tanto no quediz respeito ao pensamento como no que diz respeito à intuição.

IV

A unicidade da obra de arte é idêntica à sua integração neste con-junto de relações a que se chama tradição. Em si, esta tradição é, semdúvida, uma realidade muito viva, extremamente mutável. Uma estátuaantiga de Vénus pertencia, por exempla, a um complexo tradicional dife-rente entre os Gregos e entre os sacerdotes da Idade Média: os Gregos

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ESxVICAS DO CINEMA

faziam dela um objecto de culto, os outros consideravam-na um ídolo mal-dito. Mas entre estas duas perspectivas opostas continuava a haver umelemento comum: tanto os Gregos como os medievais consideravam aVénus no que ela tinha de cínico, sentiam-lhe a aura. Originariamente,o culto exprime a incorporação da obra de arte num conjunto de relaçõestradicionais. Sabe-se que as mais antigas obras de arte nasceram paraservir um ritual, primeiro mágico, depois religoso. Ora é um facto deimportância decisiva o de a obra de arte perder obrigatoriamente a sua auralogo que deixa de apresentar as marcas da sua função ritual 8 . Por outraspalavras, o valor da unicidade próprio ã obra de arte «autêntica» baseia-seneste ritual que foi, originariamente, o suporte do seu antigo valor deuso. Seja qual for o número de intermediários, esta ligação fundamentalpode ainda ser reconhecida, como um ritual secularizado, através do cultovotado à beleza, mesmo sob as formas mais profanas 9 . Nascido na épocado Renascimento, este culto da beleza, que foi predominante durantetrês séculos, conserva hoje, apesar do primeiro abalo grave sofrido depoisdesse tempo, a marca reconhecível da sua origem. Quando surgiu a pri-meira técnica de reprodução realmente revolucionária — a fotografia, porsua vez contemporânea dos princípios do socialismo—, os artistas pres-sentiram a aproximação de uma crise, que ninguém, cem anos mais tarde,pp4e já negar. Reagiram professando «a arte pela arte», isto é, uma teo-logia da arte. Esta doutrina conduzia directamente á urna teologia negativa:acabou-se, efectivamente, por conceber uma arte «pura», que se recusa nãosó á desempenhar qualquer papel essencial, como até a submeter-se àscondições que impõe, sempre, um projecto objectivo. (Em literatura,Mallarmé foi o primeiro a ocupar esta posição).

Para estudar a obra de arte na era das técnicas que permitem a suareprodução, é preciso ter absolutamente em conta este conjunto de rela-ções. Elas fazem surgir um facto verdadeiramente decisivo e que vemosaqui aparecer, pela primeira vez, na história do mundo: a emancipaçãoda obra de arte em relação à existência parasitária que lhe impunha oseu papel ritual. Reproduzem-se, cada vez mais, obras de arte que foramfeitas exactamente para serem reproduzidas N . Do negativo fotográfico,por exemplo, pode tirar-se um grande número de provas; seria absurdoperguntar qual é autêntica. Mas, logo que o critério de autenticidade

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TECNiCA

deixa de se aplicar à produção artística, toda a função da arte é subvertida.Em vez de repousar sobre o ritual, funda-se a partir daqui sobre outraforma de praxis: a politica.

V

A recepção da obra de arte faz-se de diversos modos, e do is deles,na sua polaridade, destacam-se dos outros. Um diz respeito ao valorda obra de arte como objecto de culto, o outro ao seu valor de exposi-ção u . A produção artística começa por imagens que servem para culto.Podemos admitir que a presença, em si mesma, dessas imagens tenha maisimportância do que o facto de serem vistas. O veado que o homem fazfigurar nas paredes de uma gruta, na idade da pedra, é um instrumentomágico. Está, evidentemente, exposto aos olhares dos outros homens,mas destina-se, antes de mais nada, aos espíritos. Mais tarde, é precisa-mente este valor de culto, como tal, que leva a guardar a obra de arteem segredo; algumas estátuas de deuses só são acessíveis ao padre naceifa. Algumas Virgens ficam cobertas durante o ano quase todo, algumasesculturas de catedrais góticas são invisíveis quando se olha para elas debaixo. A medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual,tornam-se mais numerosas as ocasiões para as expor. Um busto pode serenviado para qualquer parte; por isso, pode ser mais exposto do que umaestátua de Deus, que tem lugar reservado no interior de um templo.O quadro pode expor-se muito mais do que o mosaico ou o fresco queo precederam. E embora seja possível que uma missa se possa expor tantocomo uma sinfonia, a sinfonia surgiu ,num tempo em que podia prever-seque se tornaria mais capaz de ser exposta do que a missa.

As diversas técnicas de reprodução reforçaram este caracter em taisproporções que, por um fenómeno análogo ao que se verificou nas origens,a modificação quantitativa entre as duas formas de valor próprias à obrade arte transformou-se numa modificação qualitativa, que afecta a suaprópria natureza. Originariamente, a preponderância absoluta do seu valorde exposição atribui-lhe funções completamente novas, entre as quais podeacontecer que aquela de que temos consciência — a função artística ---surja, depois, como acessória 1Z . Mas pelo menos é certo que actualmentea fotografia, e mais ainda, o cinema, testemunham claramente neste sentido.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

VI

Com a fotografia, o valor de exposição começa a remeter para segundoplano, a todos os níveis, o valor de culto. Este último, no entanto, nãocede sem resistência. O seu último reduto ë o rosto humano. Não é deforma alguma um acaso o facto de o retrato ter desempenhado um papelcentral nos primeiros tempos da fotografia. No culto da recordação dosentes queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagemencontra o seu último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humanonas fotografias antigas emana pela última vez a aura. R isso que lhesempresta uma beleza melancólica, que não se pode comparar a mais nada.Mas a partir do momento em que o homem está ausente da fotografia,o valor de exposição supera, decididamente, o valor de culto. A excepcio-nal importância dos clichés realizados por Atget 13, no século xzx, nasruas vazias de Paris, decorre justamente do facto de ele ter fixado essaevolução. Diz-se, e está certo, que ele fotografou as ruas como se foto-grafasse o local do crime. O local do crime é também deserto. Fotografá-lonão tem outro objectivo além do de descobrir indícios. Para a evoluçãohistórica, os «clichés» que Atget deixou são verdadeiras provas documen-tais. Também possuem um secreto significado politico. Exigem, desdelogo, uma recepção num sentido determinado. Já não se prestam a umaconsideração desinteressada: inquietam aquele que os contempla; parachegar a eles, o espectador pressente que deverá seguir determinada via.Ao mesmo tempo, os jornais ilustrados começam a surgir ao leitor comoindicadores de um itinerário. Verdadeiro ou falso, pouco importa. Comeste tipo de fotografias, a legenda torna-se pela primeira vez necessária.E as legendas têm, evidentemente, um carácter muito diferente daqueleque tem o título de um quadro. As direcções que o texto dos jornaisilustrados impõe a quem olha as imagens vão tornar-se ainda mais pre-cisas e mais imperativas com o filme, onde não é possível apreender, aoque parece, nenhuma imagem isolada sem que se considere a sucessãode todas as imagens que a precedem.

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VII

A polêmica que se elevou, no decorrer do século xtx, entre os pinto-res e os fotógrafos quanto ao valor respectivo das suas obras, dá-noshoje a impressão de responder a um falso problema, e de se fundar numaconfusão. Longe de lhe contestar a importância, esta circunstância antesa sublinha. Esta polémica traduzia, de facto, uma subversão, de significadohistórico, à escala mundial, da qual nenhum dos dois grupos de adver-sários tomara consciência. Libertada das suas bases cultuais através dastécnicas de reprodução, a arte, a partir daqui, já não podia sustentar assuas aparências de independência. Mas o século que assistia a esta evolu-ção foi incapaz de perceber a modificação funcional que ela imp licavaem relação à arte. Esta consequência escapou, até, durante muito tempo,an século xx, que no entanto viu nascer e evoluir o cinema.

Já se tinham gasto inúteis subtilezas para decidir se a fotografiaera ou não uma arte, mas ainda não tinha sido colocada a questão préviade se saber se essa invenção, em si mesma, não transformava a ideia geralde arte; os teóricos do cinema acabariam por incorrer no mesmo erro.Mas os problemas colocados pela fotografia à estética tradicional nãoeram mais do que brincadeiras de crianças, comparados com os que iriamser colocados pelo filme. Daí essa violência cega que caracteriza os pri-meiros teóricos do cinema. Abel Gance, por exemplo, compara o filme auma escrita hieroglífica: «Eis — escreve — que com um prodigioso recuoao passado, regressámos ao nível de expressão dos egípcios... A linguagemdas imagens ainda não se desenvolveu plenamente porque ainda não somosfeitos para ela. Ainda não há respeito e culto bastantes para o que elaexprime.» 14

Séverin-Mars escreve: «Qual foi a arte que teve um sonho maiselevado (...) mais poético e simultaneamente mais real? Considerado assim,o cinematógrafo tornar-se-ia um meio de expressão absolutamente excep-cional, e na sua atmosfera deveriam mover-se apenas as personagens domais superior pensamento, nos momentos mais perfeitos e mais miste-riosos da sua evolução.» 15

Alexandre Arnoux, por sua vez, a finalizar uma fantasia sobre ocinema mudo, não receia concluir assim: «Em suma, todos os termos

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EST'TICAS DO CINEMA

audaciosos que acabamos de utilizar não definem a oração?» 1fi É muitosignificativo que o desejo de conferir ao cinema a dignidade de uma arteobrigue estes teóricos a introduzir-lhe, através de interpretações próprias,e com uma temeridade inultrapassável, elementos de carácter cultual.E no entanto, nessa mesma época em que publicavam as suas especulações,já era possível ver-se nos «écrans» obras como A Opinião Pública [Chaplin,1923] e A Quimera do Ouro [Chaplin, 1925]. Isso não impediu AbelGance de adiantar a comparação com os hieróglifos, nem Severin-Marsde falar do cinema no tom que convém às pinturas de Fra Angelico!E característico que, ainda hoje, autores particularmente reaccionários ten-tem interpretar o cinema numa perspectiva do mesmo género e continuema atribuir-lhe, senão um valor exactamente sagrado, pelo menos urn sen-tido sobrenatural. A propósito da adaptação cinematográfica de Sonhode Uma Noite de Verão [1935] feita por Max Reinhardt, Franz Werfelafirma que, sem quaisquer dúvidas, apenas a estéril cópia do mundoexterior, com as suas ruas, os seus interiores, as suas estações, osseus restaurantes, os seus carros e as suas praias, impediu aqui o cinemade se elevar ao nível da arte: «O filme não captou, ainda, o seu verdadeirosentido, as suas possibilidades verdadeiras. (...) Estas consistem no poderque o filme possui de exprimir por meios naturais, e com um incompa-rável poder de persuasão, o feérico, o maravilhoso, o sobrenatural.» 17

VIII

Definitivamente, é o actor em pessoa que, no teatro, apresenta peranteo público a sua própria actuação artística; a do actor de cinema exigea mediação de todo um mecanismo. Daqui resultam duas consequências.O conjunto de aparelhos que transmite ao público a actuação do artistanão é obrigado a respeitá-la integralmente. Sob a direcção do «camera-man», ã medida que o filme se executa, as máquinas tomam posiçãorelativamente a essa actuação. Estas sucessivas tomadas de vistas cons-tituem os materiais com os quais, posteriormente, será feita a montagemdefinitiva do filme. Contém um certo número de elementos móveis, quea câmara deve reconhecer como tais, já para não falarmos dos dispositivosespeciais como os grandes pianos. A actuação do intérprete está, assim,

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submetida a uma série de testes ópticos. Esta é a primeira das duasconsequências que resultam dá necessária mediação dos aparelhos entrea actuação do actor e o público. A segunda decorre do facto de o intér-prete do filme, por não apresentar em pessoa a sua actuação, não ter,como o actor de teatro, a possibilidade de se adaptar, ao longo da repre-sentação, às exigências dos espectadores. O público encontra-se, assim,na situação de um especialista cujo julgamento não é perturbado pornenhum contacto pessoal com o intérprete. Só penetra intropaticamenteno actor penetrando intropaticamente no aparelho. Assume, portanto, amesma atitude que esse aparelho: submete-o a um teste t8 . E não se podemsubmeter os valores de culto a esta atitude.

IX

No cinema, o que é importante não é o facto de o intérprete apre-sentar ao público um personagem diferente de si próprio; é antes o factode se apresentar, ele próprio, ao aparelho. Pirandello foi um dos primeirosa sentir esta modificação que a prova do teste impõe ao intérprete.O facto de as suas observações (que podem ser lidas no romance Si gira)se limitarem a sublinhar o aspecto negativo do facto não lhes diminuio valor; e também não são prejudicadas pelo facto de dizerem respeito,apenas, ao filme mudo. Até porque o filme sonoro, sobre este ponto,não implica nenhuma modificação fundamental: «Os actores de cinema,escreve Pirandello, sentem-se como se estivessem no exílio. No exílionão apenas do palco, mas também de si próprios. Percebem confusamente,com uma sensação de despeito, de indefinível vazio e mesmo de fracasso,que o seu corpo quase desaparece, é suprimido, privado da sua realidade,da sua vida, da sua voz, do ruído que faz quando se move, para se trans-formar numa imagem muda que estremece por um instante no écran paradepois desaparecer em silêncio. (...) A pequena máquina irá representarpara o público com as suas sombras, e eles devem contentar-se em repre-sentar diante dela.» c9

Eis uma situação que se pode caracterizar assim: pela primeira vez— e isto é obra do cinema — o homem deve agir, certamente com todaa sua pessoa viva, e no entanto privada de aura. Porque essa aura depende

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ESTÉTICAS DO CINEMA

do hic et nunc. Não suporta qualquer reprodução. No teatro, a aura deMacbeth é inseparável da aura do actor que desempenha esse papel, talcomo a sente o público vivo. A filmagem em estúdio tem uma peculia-ridade, a de substituir o público pela cãmara. A aura dos intérpretesdesaparece, necessariamente, e com ela a dos personagens que eles repre-sentam.

Que tenha sido precisamente um dramaturgo como Pirandello, nasua análise do cinema, a tocar sem querer naquilo que é fundamentalna actual crise do teatro, não é surpreendente. Nada se opõe mais radi-calmente ao teatro do que a obra inteiramente concebida através dastécnicas de reprodução ou melhor, a obra que, como o filme, nasceudestas próprias técnicas. Isto pode ser confirmado por qualquer estudosério do problema. Já há muito tempo que bons conhecedores admitemque, como escrevia Arnheim em 1932, em cinema «é quase sempre repre-sentando menos que se obtém mais efeito. (...) O último dos progressosconsiste em reduzir o actor a um acessório, que se escolhe por ser carac-terístico (...) e que se coloca no Iugar próprio 2p . A esta circunstância,liga-se outra, estreitamente: embora o actor de teatro entre na pele dapersonagem que representa, é raro que o actor do filme possa tomar amesma atitude. Não representa um papel de uma forma contínua, repre-senta-o numa série de sequências isoladas. Independentemente das circuns-tâncias acidentais — aluguer do estúdio, ocupações dos actores que sólhes permitem estar disponíveis em certos momentos, problemas decenários, etc. —, as necessidades elementares da técnica operacional dis-sociam a representação do intérprete numa rapsódia de episódios, quetêm que ser montados posteriormente. Pensamos, sobretudo, na ilumina-ção, cuja instalação força o cineasta, para representar uma acção queirá desenvolver-se no «écran» de maneira continua e rápida, a fragmentá-laem tomadas de vista cuja preparação pode durar, cada uma, às vezes,longas horas. Sem falar em certas montagens cujo caso é mais chocante;se um actor tem que saltar por uma janela, faz-se com que ele salte emestúdio através de um caixilho, mas a fuga que se sucede a esse saltotalvez só seja filmada, em exterior, muitas semanas mais tarde. Facilmentese encontrariam exemplos ainda mais paradoxais. Se acaso, segundo oguião, o actor deve estremecer de medo ao ouvir bater à porta, e orealizador não está satisfeito com a forma como ele representa a cena,

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pode aproveitar a presença ocasional do actor no estúdio e, sem o pre-venir, fazer com que disparem um tiro por trás dele; a câmara registao seu movimento de terror, depois é só introduzir na montagem do filmea imagem obtida pela surpresa. Nada demonstra melhor que a arte aban-donou o domínio da «bela aparência», fora do qual, durante muito tempo,se acreditou que estava condenada a desaparecer.

X

Como fazia notar Pirandello, o intérprete do filme estranha a suaprópria imagem que a câmara lhe apresenta. Este sentimento assemelha-seimediatamente aquele que qualquer homem experimenta quando se vêao espelho. Mas agora a sua imagem no espelho separou-se dele, tornou-setransportável. E para onde a transportam? Para diante do público". Eisum facto do qual o actor cinematográfico está sempre consciente. Diantedo aparelho que regista, sabe que, em última análise, é com o públicoque se defronta. Este mercado, no qual não vende apenas a sua forçade trabalho, mas também a pele e os cabelos, o coração e os rins — nomomento em que executa para ele um trabalho determinado deixa deo poder imaginar, tal como sucede com qualquer objecto produzido numafábrica. É, sem dúvida, esta uma das causas dessa opressão que se apoderadele frente à câmara, dessa nova forma de angústia que Pirandello assina-lava. A medida que restringe o papel da aura, o cinema constrói artifi-cialmente, fora do estúdio, a «personalidade» do actor: o culto da vedeta,que favorece o capitalismo dos produtores de filmes, protege essa magiada personalidade, que, desde há muito tempo já, se reduz ao encantoapodrecido do seu valor mercantil. Enquanto o capitalismo continuar aditar as regras do jogo, o único serviço que se deve esperar do cinemaem prol da Revolução é o facto de permitir uma crítica revolucionáriadas antigas concepções da arte. Ao dizer isto, não contestamos que, emcertos casos particulares, possa ir ainda mais longe e favorecer uma críticarevolucionária das relações sociais, ou até do próprio estatuto de proprie-dade. No entanto, não é este o principal objectivo do nosso estudo, nemo contributo essencial da produção cinematográfica na Europa ocidental.

A técnica do cinema parece-se com a do desporto, no sentido em quetodos os espectadores são, em ambos os casos, semiespecialistas. Para nos

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ESTLTICAS DO CINEMA

convencermos diSsò i basta que tenhamos ouvido um dia um grupo dejovens ardinas, apoiados nas suas bicicletas, a comentar os resultados deuma corrida de ciclistas. Não é por acaso (pie os editores de jornal orga-nizam provas reservadas aos seus jovens empregados. Estas corridas sús-citam grande interesse entre os que nelas participam. Porque o vencedortem uma hipótese de abandonar a entrega de jornais para se consagrarà carreira de corredor profissional. Do mesmo modo, graças aos documen-tários de actualidades, qualquer transeunte ocasional tem possibilidadesde aparecer no «écran». Até pode ser que apareça numa verdadeira obrade arte —basta pensarmos, por exemplo, em Três Cânticos sobre Lenine[1934], de Vertov, ou em Borinage [1933], de Ivens [e Storck]. Hojenão há ninguém que não possa alimentar a esperança de ser filmado:Para melhor compreendermos esta situação, é preciso que consideremosa actual situação dos escritores.

Durante séculos, um pequeno número de escritores esteve confron-tada com vários milhares de leitores. No final do século passado ã situaçãoalterou-se. Com a extensão da imprensa, que não cessou de pôr à dispo-sição do público novos órgãos, politicos, religiosos, científicos; profissio-nais; regionais vê-se urn número crescente de leitores passar — primeirode forma ocasional-- para o lado dos escritores: Isui começou quando osjornais abriram as suas páginas a um «correio dos leitores», e hoje eni dianão existe üm Europeu, seja qual for a sua profissão, que não esteja, emprincípio; certo de poder encontrar, quando quer; uma tribuna para contar`a sua experiência profissional, ori para apresentar nina queixa, para publiéaruma reportagem ou outra estudo dó mesma género. Entre o autor e opúblico, a diferença está, assim, em vias de se tornar cada vez menosfundamental. Só é, por isso; funcional, e pode variar . conforme as cir-cunstancias. O leitor está preparado; a qualquer momento, para se tornarescritor: Com a especialização crescente do trabalho, cada ifidiVíduo podetransformar-se; melhor ou pior; nurn especialista na sua matéria — aindaque ela não tenha muita importância = e esta qualificação confere-lheuma certa autoridade. Na União Soviética, o próprió mundo do trabalhopode tomar a palavra. E a sita representação verbal constitui urna partedo póder requerido pelo seu próprio exercício. A competência literáriajá não assenta numa formação especializada; mas sim numa multiplicidadede técnicas; e torna-sei assim, um bem comum zz

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Tudo isto é válido sem reservas para o cinenïa, onde as deslocaçõesde perspectiva, que precisaram de séculos no dòmínio literário, se reali•zaram em dez anos. Na prática cinematográfica — principalniente naRússia—, a evolução já foi parcialmente realizada. Vários intérpretesdos filmes soviéticos não são actores no sentido que a palavra tem paranós; são pessoas que desempenham o seu próprio papel, principalmentequanto à actividade profissional. Na Europa ocidental a exploração capi-talista da indústria cinematográfica recusa-se a satisfazer as pretensõesda homem contemporâneo de ver a sua imagem reproduzida. Nestas con-dições, os produtores de filmes têm vantagem em estimular a atenção dasmassas através de representações ilusórias e especulações equívocas.

XI

Uma filmagem, principalmente no case do filme falado, fornece úniespectáculo que dantes não seria imaginável. Representa um Conjunto deactividades que é impossível coordenar, seja qual for a perspectiva, semque se imponham ao olhar todas as espécies de elementos estranhos,enquanto tais, ao desenrolar da acção: câmaras de filmar, aparelhos deiluminação, equipa de assistentes, etc. (Para que o espectador se pudesseabstrair, seria necessário que o seu olho se confundisse com a objectivada câniárá). Esta circunstância mais do que qualquer (Aura — tornasuperficiais e sem importância todas as analogias qua poderiam ser obser-vadas entre a filmagem de uma cena em estúdio e à sua execução noteatro. Pôr princípio, o teatro conhece o local adequado, no qual bastasituar-se para qúé o espectáculo assegure a ilusão. Nada disto existe numestúdio cinematográfico. O filme só pode assegurar a ilusão em segundograu, depois de se ter procedido à montagem das sequências. Por outraspalavras: a aparelhágém, no estúdio, penetrou tão profundamente a pró-pria realidade que, para Ihe restituirá pureza, para á despójár desse cóxpoestranho que a aparelhagem constitui, é preciso recorrer a um conjuntode procedimentos específicos: variação dos ângulos de filmagem, montagemque reúna várias sequências de imagens do mesmo tipo. Despojada detudo o cqüe a aparelhagem lhe acrescentou, a realidade torna-se aqui á maisartificial de todas, e, no mundo da técnica; a captação imediata da reali-dade enquanto tal não passa de uma ingenuidade:

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A especificidade do cinema, que tão nitidamente se opõe à do teatro,conduz a conclusões ainda mais fecundas se a compararmos com a da pin-tura. Coloca-se, aqui, a seguinte questão: qual é a relação entre o operadorde câmara e o pintor? Para responder, teremos que recorrer a umacomparação esclarecedora, extraída da própria ideia de operação, tal comoé utilizada em cirurgia. No mundo operatório, o cirurgião e o magoocupam dois pólos opostos. A atitude do mago, que cura um doentepela colocação das mãos, difere da atitude do cirurgião, que pratica sobreele uma intervenção. O mago conserva exactamente a distância naturalque existe entre ele e o paciente; ou melhor, embora a diminua umpouco, pela colocação das mãos, aumenta-a ainda mais, graças à suaautoridade. O cirurgião, pelo contrário, diminui-a consideravelmente, vistoque intervém no interior do doente, e depois só a aumenta ligeiramentecom a prudência com que a sua mão se move entre os órgãos do paciente.Em suma: a diferença, aqui, entre o mago (do qual se conservam algunstraços no médico) e o cirurgião é a de que o cirurgião, no momentodecisivo, renuncia a instalar-se, frente ao doente, numa relação de homempara homem; em vez disso, é operativamente que penetra dentro dele.Entre o pintor e o operador de câmara encontramos a mesma relaçãoque entre o mago e o cirurgião. Um observa, ao pintar, uma distâncianatural entre a realidade dada e ele próprio; o operador de câmara pene-tra, em profundidade, a própria trama do dado 23 . As imagens que ume outro obtêm diferem a um ponto extraordinário. A do pintor é global,a do cineasta fragmenta-se em grande número de partes, cada uma delasobedecendo às suas leis próprias. Para o homem de hoje, a imagem doreal fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, porque, seatinge esse aspecto das coisas que escapa a qualquer aparelhagem --- eesta é a exigência legítima de qualquer obra de arte — só o consegueprecisamente por usar aparelhos para penetrar, do modo mais intensivopossível, no próprio coração deste real.

xzz

• A possibilidade técnica de reproduzir a obra de arte modifica a ati-tude das massas perante a arte. Muito reaccionárias em relação, porexemplo, a um Picasso, as massas mostram-se progressistas em relação,

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por exemplo, a um Chaplin. A característica de um comportamento pro-gressista reside no facto de o prazer do espectáculo e a experiência vividacorrespondente se ligarem, de forma directa e íntima, à atitude do conhe-cedor. Esta ligação tem uma importância social. A medida que diminuio significado social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio cres-cente entre o espírito crítico e o comportamento de fruição da obra.Frui-se, sem criticar, aquilo que é convencional; critica-se com aversãoaquilo que .é verdadeiramente novo. No cinema o público não separa acrítica da . fruição. O elemento decisivo, aqui, é que, mais do que emqualquer outra parte, as reacções individuais, cujo conjunto constitui areacção maciça do público, são aí determinadas, à partida, pela imediatavirtualidade do seu carácter colectivo. Ao mesmo tempo que se mani-festam, estas reacções controlam-se. mutuamente. Aqui também, o contrastecom a pintura é muito significativo. Os quadros nunca pretenderam sercontemplados por mais do que um espectador ou um pequeno numerode espectadores. O facto de a partir do século xIx um público importantepoder contemplá-los em conjunto corresponde a um primeiro sintoma destacrise, que não foi provocada apenas pela invenção da fotografia, mas, deuma maneira relativamente independente desta descoberta, pela pretensãoda obra de arte de se dirigir às massas.

Ora acontece precisamente que é contrário à própria essência da pin-tura o facto de ela se poder oferecer a uma recepção colectiva simultânea,como foi o caso, desde sempre, da arquitectura, e durante certo tempo,da poesia épica, como é hoje em dia o caso do cinema. Ainda que nãose possa extrair nenhuma conclusão quanto ao papel social da pintura, écerto que aí reside um inconveniente muito sério, a partir do momentoem que, na sequência de circunstâncias particulares, e de um modo quecontradiz até certo ponto a sua natureza, ela é directamente confrontadacom as massas. Nas igrejas e claustros da Idade Média, nas cortes princi-pescas até cerca do fim do século xvrli, o acolhimento dado às pinturasnão tinha nada de simultâneo; só se transmitiam através de um grandenúmero de intermediários hierarquizados. A modificação que ocorreu aeste respeito traduz o conflito . particular no qual a pintura se encontraenvolvida pelas técnicas de reprodução aplicadas à imagem. Era possíveltentar apresentá-la às massas nos museus e nas exposições, mas as mas-sas não podiam, por si próprias, organizar nem controlar a sua própria

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recepção z3 . E é precisamente por isso que o mesmo público que peranteum filme burlesco reage de uma maneira progressista acolhe o surrealismo_

com espirito reaccionário.

XIII

O que caracteriza o cinema não é apenas a maneira como o homemse apresenta ao aparelho, é também a forma como ele se representa,graças a esse aparelho, o mundo que o rodeia. Um exame de psicologiada performance revelou-nos que o aparelho pode desempenhar um papelde teste. A psicanálise fornecer-nos-á outra ilustração. De facto, o cinemaenriqueceu a nossa atenção por métodos que vêm confirmar a análisefreudiana. Há cinquenta anos, não se prestava nenhuma atenção a um lapsoque escapasse durante uma conversa. Que este lapso pudesse abrir, deuma só vez, profundas perspectivas para uma conversa que parecia desen-rolar-se de uma forma completamente normal, era algo que se considerava,talvez, excepcional. Mas depois da Psicopatotogia da vida quotidiana 2',as coisas mudaram muito. Ao mesmo tempo que as isolava, o métodode Freud permitiu a análise de realidades que até aí se perdiam, sem quefossem levadas em consideração, no vasto fluxo daquilo que era percep-tível. Ao alargar o mundo dos objectos que passamos a levar em consi-deração, tanto na ordem visual como na ordem auditiva, o cinema implica,consequentemente, um aprofundamento da percepção. Que as suas concre-tizações possam ser analisadas de uma forma muito mais exacta e numnúmero de perspectivas muito maior do que aquele que é proporcionadopela pintura ou pelo teatro, é algo que constitui apenas uma outra facedesta situação. Em relação à pintura, a superioridade do cinema está emque este permite analisar melhor o conteúdo dos filmes e fornece, assim,um inventário incomparavelmente mais preciso da realidade. Em relaçãoao teatro, essa superioridade na análise reside em poder isolar um númeromaior de elementos constituintes. Este fato — e da£ decorre a sua impor-tância capital — tende a favorecer a mútua compenetração entre arte eciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamenteajustada a uma situação determinada (como o músculo no corpo), não sepode determinar se o seu interesse diz respeito, principalmente, ao valor

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TËCNICA

artístico ou á exploração científica que dele se pode fazer. Graças aocinema --- e esta é uma das suas funções revolucionárias — poder-se-á,de aqui em diante, reconhecer a identidade entre a exploração artísticada fotografia e a sua exploração científica, até agora frequentemente diver-gentes 26.

Procedendo ao inventário das realidades através dos grandes planos,realçando os pormenores ocultos nos acessórios familiares, explorando meiosbanais com a engenhosa direcção da câmara, o cinema, se por um ladonos faz perceber melhor as necessidades que dominam a nossa vida, leva,por outro, a abrir um campo de acção imenso e insuspeitado. Os nossoscafés e as ruas das nossas grandes cidades, os nossos escritórios eos nossos quartos mobilados, as nossas estações e as nossas fábricas pare-ciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Chegou então o cinema,e graças ao dinamite dos seus décimos de segundo, explodiu este universoconcentracionário; de forma que agora, abandonados no meio dos des-troços projectados ao longe, empreendemos viagens como os aventureiros.Graças ao grande plano, é o espaço que se torna maior; graças á câmaralenta, é o movimento que ganha novas dimensões. Do mesmo modo quea ampliação não tem como única finalidade tornar mais claro aquilo que«sem isso» teria continuado a ser confuso — graças a ela vemos, aliás,aparecerem novas estruturas da matéria —, também a câmara lenta nãose limita a colocar simplesmente em relevo formas de movimento quejá conhecíamos; descobre outras formas, perfeitamente desconhecidas, «quenão representam, em absoluto, movimentos rápidos tornados lentos, antessurgem como movimentos fluidos, aéreos, supraterrestres.»

Ë por conseguinte bem claro que a natureza que fala à câmara écompletamente diferente da que se dirige aos olhos. Ë diferente, sobretudo,porque substitui o espaço em que o homem age conscientemente porum espaço em que a acção do homem é inconsciente. Se é banal analisar,pelo menos globalmente, a forma de andar dos homens, por outro ladonão sabemos de certeza nada sobre a sua atitude na fracção de segundoem que um homem dá um passo. Conhecemos de uma maneira geral ogesto que fazemos para agarrar num isqueiro ou numa colher, mas igno-ramos 'quase tudo daquilo que realmente está em jogo entre a mão e ometal, e, ainda mais, as modificações que introduz nestes gestos a flutuaçãodos nossos diversos humores. Ë neste domínio que a câmara penetra, com

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ESTÉTICAS DÒ CINEMA

todos os seus meios auxiliares, com as subidas e descidas, os cortes eseparações, as extensões de campo e as acelerações, as ampliações e asreduções. Pela primeira vez, abre-nos a experiência do inconsciente visual,tal como a psicanálise nos fornece a experiência do inconsciente instintivo.

XIV

Desde sempre que uma das tarefas essenciais da arte consistiu emsuscitar uma procura, num tempo que não estava preparado para a satisfa-zer completamente 2g . A história de cada forma de arte comporta épocascríticas, em que ela tende a produzir efeitos que só poderão ser livrementeobtidos depois da modificação do nível técnico, ou seja, por meio de umanova forma de arte. E por isso que as extravagâncias e os exage ros quese manifestam nas épocas de pretensa decadência nascem na realidadedaquilo que constitui historicamente o centro de forças mais rico na arte.Muito recentemente ainda, vimos os dadaístas comprazerem-se nestas mani-festações bárbaras. Só hoje compreendemos para onde tendia esse esforço:o dadaismo tentava produzir, através dos meios da pintura (ou da lite-ratura) os mesmos efeitos que o público agora pretende do cinema.

Sempre que aparece uma exigência radicalmente nova, abrindo cami-nho ao futuro, ela acaba por ultrapassar os seus propósitos. Foi o queaconteceu no caso dos dadaístas, que sacrificaram, em proveito das inten-ções —das quais não estavam evidentemente conscientes sob a formaem que aqui as descrevemos —, valores comerciais que adquiriram, desdeentão, uma importância relevante para o cinema. Os dadaístas davam muitomenos apreço á utilização mercantil das suas obras do que ao facto deque elas não pudessem transformar-se em objectos de contemplação. Umdos meios que mais utilizaram para atingir este objectivo consistiu noaviltamento sistemático da própria matéria das suas obras. Os poemas são«saladas de palavras», contêm obscenidades e todos os detritos verbaisimagináveis. Tal como os quadros, em que colavam botões ou bilhetes deingresso. Chegaram, assira, a despojar radicalmente de aura produções àsquais infligiam o estigma da reprodução. Perante um quadro de Arp ouum poema de Stramm não se pode, como perante uma tela de Derainou um poema de Rilke, ter o tempo necessário para o recolhimento e a

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reflexão. Para uma burguesia degenerada, a interiorização tinha-se tornadouma escola de comportamento associai; com o dadaísmo, a diversão tor-nou-se um exercício de comportamento social'. As suas manifestaçõesproduziram, efectivamente, uma diversão muito violenta, transformandoa obra de arte em objecto de escândalo público. O seu objectivo era,principalmente, chocar a opinião pública. De espectáculo atraente para avista, ou de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, com odadaísmo, tornou-se choque. Projecta-se contra o espectador ou ouvinte.Adquire um poder traumatizante. E favorece assim o gosto pelo cinema,que também possui a característica da diversão graças aos choques provo-cados no espectador pelas modificações de lugar e de cenário. Basta pen-sarmos em toda a diferença que separa o «écran», sobre o qual se desenrolao filme, da tela, sobre a qual se fixa o quadro. A pintura convida e con-templação; na sua presença, abandonamo-nos a associações de ideias. Nadadisto acontece no cinema; assim que o olho capta uma imagem, esta jáfoi substituída por outra; o olhar nunca consegue fixar-se. Duhamel emboradetestasse o cinema e não compreendesse nada do seu significado, aperce-beu-se bem de diversos traços da sua estrutura, e sublinha este carácterquando escreve: «Já não posso pensar o que quero. As imagens em movi-mento substituem os meus próprios pensamentos.» 30 Efectivamente, asucessão das imagens interdita qualquer associação no espírito do espec-tador. Daí decorre a influência traumatizante dessas imagens; como tudoaquilo que choca, o filme só pode ser captado graças a um esforço maisintenso da atenção". Através da sua técnica, o cinema libertou o efeitode choque físico da ganga moral em o dadaísmo, de certo modo, otinha encerrado 32.

XV

A massa é uma matriz de onde surge, actualmente, todo u m . conjuntode atitudes novas face à obra . de arte. A quantidade tornou-se qualidade.O crescimento- maciço do número de participantes transformou o seu mod e,

de :participação. Que esta participação surja primeiro sob forma deprecia-tiva, é ;algo que não deve, de forma alguma, • enganar o espectador -, doprocesso: São no entanto numerosos aqueles . que, não tendo ultrapassado

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ESTÉTICAS DO CINEMA

este aspecto superficial das coisas, o denunciaram apaixonadamente. Ascriticas de Duhamel são as mais radicais. O que ele retém do cinema dizrespeito ao modo de participação que o filme suscita nos espectadores.Escreve Duhamel: «E um divertimento de párias, um passatempo de ile-trados, de criaturas miseráveis, aturdidas pelo trabalho e preocupações (...),um espectáculo que não exige qualquer esforço, não supõe qualquer conti-nuidade nas ideias, não levanta qualquer questão, não aborda seriamenteproblema nenhum, não desperta qualquer paixão, não faz brilhar nenhumaluz no fundo dos corações, não desperta nenhuma esperança a não seruma, ridícula: a de ser um dia "star" em Los Angeles.» 33

Como facilmente se percebe, afinal, aqui reencontramos o velho quei-xume: as massas procuram o divertimento, mas a arte exige o recolhimento.É um lugar comum. Mas resta perguntar se este Iugar comum ofereceuma boa perspectiva para compreender o cinema; é preciso olhá-lo maisde perto. Para traduzir a oposição entre o divertimento e o recolhimento,poder-se-ia dizer o seguinte: aquele que se recolhe face a uma obra dearte é envolvido por ela, penetra nela, tal como esse pintor chinês que,segundo a lenda, se perdeu na paisagem que acabava de pintar; no casodo divertimento, pelo contrario, é a obra de arte que penetra na massa.Nada de mais significativo, sobre esta questão, do que um edifício. Emtodas as épocas a arquitectura nos apresentou modelos de uma obra dearte cuja recepção se faz no divertimento e de uma forma colectiva. Asleis desta recepção são as mais ricas em ensinamentos.

Desde a pré-história que os homens são construtores. Muitas formasde arte nasceram e depois desapareceram. A tragédia apareceu com osgregos para morrer com eles e só reaparecer longos séculos mais tarde soba forma de «regras». O poema épico, que data do tempo em que os povoseram jovens, desapareceu da Europa no fim do Renascimento. O quadronasceu na Idade Média e nada garante que dure indefinidamente. Mas anecessidade que os homens têm de se alojarem é permanente. A arqui-tectura nunca esteve desempregada. A sua história é mais longa do quea de qualquer outra arte e não se deve perder de vista o seu modo deacção se se quiser dar conta da relação que liga as massas à obra de arte.Há duas formas de recepção a um edifício: pode-se urilizá-lo, ou pode-secontemplá-lo. Em termos mais precisos, a recepção pode ser táctil ouvisual. Desconhece-se inteiramente o sentido desta recepção se se apreciar

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apenas a atitude recolhida que adopta, por exemplo, a maioria dos via-jantes quando visita monumentos célebres. Na ordem táctil não existe,de facto, nada que corresponda àquilo que é a contemplação no domíniovisual.. A recepção táctil faz-se menos pela via da atenção do que pelavia do hábito. No que diz respeito à arquitectura, este hábito determinaigualmente, em larga medida, a recepção visual. Esta última consiste muitomenos num esforço de atenção do que numa tomada de consciência aces-sória. Mas, em certas circunstancias, este tipo de recepção ganha umvalor de regra. Com efeito, das tarefas que se impõem aos órgãos recep-tivos do homem durante as grandes viragens da história, nenhuma é resol-vida por via visual, ou seja, através da contemplação. Para as resolver,pouco a pouco, é necessário recolher à recepção táctil, ao hábito.

Ora quem se diverte pode também habituar-se; esclareçamos: é claroque o homem não pode executar certas tarefas enquanto se distrai— anão ser que essas tarefas se lhe tenham tornado habituais. Através destaespécie de divertimento que tem por finalidade proporcionar-nos a arteconfirma-nos, implicitamente, que o nosso modo de percepção é hoje capazde responder a novas tarefas. E como o indivíduo conserva a tentaçãode recusar essas tarefas, a arte enfrentará as mais difíceis e as maisimportantes, a partir do momento em que puder mobilizar as massas.E o que actualmente faz graças ao cinema. Esta forma de recepção pelavia do divertimento, cada vez mais sensível hoje em todos os domíniosda arte, e em si própria sintoma de importantes modificações nos modosde percepção, encontrou no cinema o seu melhor campo de experiência.Pelo seu efeito de choque, o filme corresponde a essa forma de recepção.Se rejeita para segundo plano o valor cultural da arte, não é apenas portransformar todos os espectadores em especialistas; é porque a atitudedesse especialista não lhe exige qualquer esforço de atenção. O públicodas salas escuras é certamente um examinador, mas é um examinadorque se distrai.

EPÍLOGO

A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importánciacrescente das massas são dois aspectos do mesmo processo histórico. O fas-cismo pretende organizar as massas sem alterar o regime de propriedade,

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ESTÉTICAS DO CINEMA

que as massas tendem, no entanto, a rejeitar. Acredita que supera estadificuldade permitindo ás massas não que façam valer os seus direitos,mas que possam exprimir-se

34. As massas têm o direito a exigir uma

transformação do regime de propriedade; o fascismo quer permitir quese expressem, mas conservando esse regime. O resultado é que tende,naturalmente, a uma estetização da vida política. A esta violência quese faz às massas quando se lhes impõe o culto de um chefe correspondea violência que sofre uma aparelhagem quando é colocada ao serviçodesta religião.

Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto.Esse ponto é a guerra. A guerra, e só a guerra, permite fornecer um objec-tivo aos maiores movimentos de massa sem tocar, no entanto, rio estatutoda propriedade. Eis como as coisas podem traduzir-se em linguagem polí-tica. Em linguagem técnica, formular-se-ão assim; só a guerra permitemobilizar todos os meios técnicos do tempo presente sem alterar emnada o regime da propriedade. Nem é preciso dizer . que o fascismo, nasua glorificação da guerra, não utiliza estes argumentos. E, no entanto,muito instrutivo dar urna vista de olhos aos textos que servem para estaglorificação. No manifesto de Marinetti 35 sobre a guerra da Etiópia, lemos,com efeito: «Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos insurgimoscontra a ideia de que a guerra seria antiestética. (...) Ë por isso (...) queafirmamos o seguinte: a guerra é bela, porque graças as máscaras antigás,ao terrífico megafone, aos lança-chamas e aos pequenos carros de assalto,funda a soberania do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é belaporque realiza pela primeira vez o sonho do homem com corpo metálico.A guerra é bela porque enriquece um prado . florido com as orquídeaschamejantes que são as metralhadoras. A guerra é bela porque reúne, paracompor uma sinfonia, a fuzilaria, o fogo dos canhões, a pausa entre ostiros, os perfumes e os cheiros de decomposição. A guerra é bela porquecria novas arquitecturas, como a dos tanques, das esquadrilhas aéreascom formas geométricas, das espirais de fumo que sobem das cidadesincendiadas e muitas outras ainda. (...) Escritores e artistas futuristas, (...)lembrai-vos destes princípios fundamentais de uma estética de guerra, paraque assim se esclareça (...) o vosso combate por uma nova poesia e umanova, escultura!»

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Este manifesto tem a vantagem de dizer claramente o que pretende.A sua forma de colocar o problema merece ser retomada pelo dialéctico.Eis como se lhe apresenta a estética da guerra hoje: quando o uso naturaldas formas produtivas é paralisado pelo regime da propriedade, o cresci-mento dos meios técnicos, dos ritmos, das fontes de energia tende a umuso contranatura. Este uso contranatura é a guerra, que, pelas destruiçõesque arrasta, demonstra que a sociedade não tem a maturidade suficientepara fazer da técnica o seu órgão, que a técnica não está suficientementeelaborada para dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista,com os seus aspectos atrozes, tem como factor determinante a desfasagementre a existência de poderosos meios de produção e a insuficiência do seuuso para fins produtivos (por outras palavras, o desemprego e a faltade mercados). A guerra imperialista á . uma, revolta da técnica que reclamasob forma de «material humano» aquilo que a sociedade lhe arrancoucomo matéria natural. Em vez de canalizar os rios, dirige o caudal humanopara o leito das trincheiras; em vez de usar os seus aviões para semeara terra, espalha as suas bombas incendiárias sobre as cidades; no usobélico do gás, encontrou um novo meio de acabar com a aura.

Fiat ars, pereat mundus 36, é esta a palavra de ordem do fascismo,que, como Marinetti reconhece, espera da guerra a satisfação artísticade uma percepção sensível modificada pela técnica. Aí reside, evidente-mente, a perfeita realização da arte pela arte. Na época de Homero ahumanidade oferecia-se em espectáculo aos deuses do Olimpo; agora, con-verteu-se no seu próprio espectáculo. Tornou-se bastante estranha a simesma para conseguir viver. a sua própria destruição como uma fruiçãoestética de primeira ordem: Esta é a estetização da política que o fascismopratica. A resposta do comunismo ' é politizar a arte.

[1936

NOTAS

' «Conquête de l'ubiquitéu, Piêces sur l'art, Paris, 19. 34, p. 105. Pléiade, I,pp. 1284-1285.

2 A. história de uma obra de arte -não se limita, como é evidente, a esteselementos: a da Gioconda, por exemplo, deve também levar em conta a forma comofoi copiada nos séc. xv=n, XVIII e- xix, bem cromo a qualidade dessas cópias.:

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ESTËTICAS DO CINEMA

a É precisamente por a autenticidade escapar a. qualquer rep rodução que odesenvolvimento intensivo de certos processos técnicos de reprodução permitiu esta-belecer diferenciações e níveis na própria autenticidade. O comércio da . arte desem-penhou, neste ponto, um papel importante. Com a descoberta da xilogravura podedizer-se que a autenticidade das obras era atacada na sua raiz, mesmo antes de teratingido uma florescência que a enriqueceria mais ainda. Na realidade, na época emque foi . feita, uma Virgem medieval ainda não era «autêntica»; tornou-se autênticano decorrer dos séculos seguintes, e principalmente talvez no século xtx.

A: mais lamentável representação de Fausto num teatro de província é já supe-rior a um filme sobre o mesmo tema, pelo menos no facto de rivalizar idealmentecom a representação original de Weimar. Toda a substância tradicional que nos é

sugerida pelo desempenho dos actores (o facto, por exemplo de Mefistófeles remeterpara Merck, um amigo de juventude de Goethe, perde, no écran, todo o valor).

Abel Gance: «Le temps de I'image est venu» (L'art cinématographique, II,Paris 1927, pp. 94-96).

Alois Riegl (1858-1905) — foi um dos mais importantes e originais historiadoresde arte austríacos. Antes de ser professor titular na Univesridade de Viena, a partirde 1897, Riegl foi director do departamento de têxteis no Osterrreichisches Museumno qual sucedeu a Franz Wieckhoff em 1886. (N. Org.)

Que as coisas se tornem «humanamente mais próximas» das massas podesignificar que deixa de se levar em conta a sua função social. Nada garante que umartista contemporâneo, ao representar um célebre cirurgião a tomar o pequeno, almoço,ou em convívio com a família, capte mais exactamente a sua função social do queum pintor do séc. xvi que, como Rembrandt na Lição de Anatomia, apresenta aopúblico do seu tempo médicos a exercerem, realmente, a sua arte.

s Ao definirmos a aura como «a única aparição de uma realidade longínqua,por mais próxima que ela possa estar», limitámo-nos a transpor para as categoriasdo espaço e do tempo a fórmula que designa o valo r. cultural da obra de arte.Longínquo opõe-se a próximo. Aquilo que é essencialmente longínquo é inaproxi-mável. Efectivamente, a qualidade principal de uma imagem que serve para o cultoé a de ser inaproximável. Pela sua própria natureza, é sempre «longínqua, por maispróxima que possa estar.» Podemos aproximar-nos da sua realidade material, massem que se altere o carácter longínquo que conserva desde a sua aparição.

' A medida que se especulariza o valor cultural da imagem, representa-se deuma forma mais indeterminada o substrato daquilo que dela faz uma realidade quesó é dada uma vez. Cada vez mais o espectador tende a substituir a unicidadedos fenómenos reinantes na imagem cultural pela unicidade empírica do artista ouda sua actividade criadora. A substituição nunca é, evidentemente, integral; a noçãode autenticidade remete sempre para algo mais do que uma simples garantia deorigem (aqui, o exemplo mais significativo é o do colecionador, que se parecesempre um pouco com o adorador de fetiches, e que, pela própria posse da òbrade arte, participa do seu poder cultural). Apesar de tudo, o papel que desempenhao conceito de autenticidade no domínio da arte é ambíguo; com a secularização daarte, a autenticidade torna-se o substituto do valor cultural.

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TÉCNICA

10 Diversamente do que se passa na literatura ou na pintura a técnica de repro-dução não é, relativamente ao filme, uma simples condição exterior que permitiriaa sua difusão massiva; a sua técnica de produção funda directamente a sua técnicade reprodução. Não se limita a permitir, da forma mais imediata, a difusão massivado filme: exige-a. Os custos de produção são tão elevados que se o indivíduo aindapode, por exemplo, pagar um quadro, está fora de questão poder comprar um filme.Algumas estimativas mostraram que em 1927 a amortização de um grande filme exigiaque ele fosse mostrado a nove milhões de espectadores. No início a invenção dosonoro diminuiu provisoriamente, é certo, a difusão dos filmes, por causa da fronteiralinguística; exactamente durante a época em que o fascismo insistia nos interessesnacionais. Esta recessão, que depressa foi atenuada através do uso da pós-sincronização,deve reter menos a nossa atenção do que a sua relação com o fascismo. Os doisfenómenos são simultaneos porque estão ligados à crise económica. As mesmas per-turbaçáes que em geral levaram à procura dos meios de salvaguardar pela força oestatuto da propriedade apressaram, nos capitalistas do cinema, a realização do cinemafalado. Esta descoberta trazia-lhes um alívio passageiro, por contribuir para devolveràs massas o gosto pelo cinema, mas principalmente por ligar aos capitais destaindustria novos capitais oriundos da indústria eléctrica. Assim, visto de fora, osonoro favoreceu interesses nacionais, mas visto do interior, provocou uma maiorinternacionalização dos interesses.

" Esta polarização subtrai-se, necessariamente, a uma estética idealista, visto queo seu conceito da beleza só a admite, em princípio, individida (e exclui-a, portanto,se for dividida). No entanto, Hegel apercebeu-se do problema, tanto quanto o seuidealismo lhe permitia. Escreve, nas suas Lições sobre a Filosofia da História: «Asimagens ve"m de longa data. A piedade já as exigia há muito como objectos de devoção,mas não tinha qualquer necessidade de imagens belas. A imagem bela contém, também,um elemento exterior, mas é enquanto bela que o seu espirito fala aos homens; ora,na devoção, é essencial que exista uma relação com uma coisa, porque, em si mesma,ela não passa de uma paralisia da alma. (...) A bela arte nasceu da própria igreja(...), se bem que a arte já tivesse sido extraída do princípio da arte.» Uma passagemdas Lições sobre a estética indica igualmente que Hegel pressentia a existcncia deum problema: «Já não estamos na época em que se presta um culto divino às obrasde arte, em que lhes podíamos dirigir preces; a impressão que nos causam é maisreservada, e aquilo que em nós elas ainda comovem exige uma pedra de toque deuma ordem superior.»

A passagem do primeiro modo para o segundo condiciona, em geral, todo oprocesso histórico da recepção às obras de arte. Quando não se leva em conta estapassagem acaba-se, em princípio por oscilar em relação a cada obra em particular,entre estes dois modos opostos de recepção. Desde os trabalhos de Hubert Grimmque se sabe, por exemplo, que a Virgem da Capela Sistina foi em princípio pintadapara ser exposta; Grimm interrogou-se sobre a função da base de madeira queserve de apoio, no primeiro plano do quadro, a duas figuras de anjos; perguntava-seo que teria podido Ievar um pintor como Rafael a munir o céu de duas cortinas.A sua investigação mostrou-lhe que essa Virgem fora encomendada para o enterro

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solene do papa. Esta cerimónia desenrolou-se numa capela lateral da Basílica deS. Pedro. O quadro estava instalado ao fundo da capela, que formava uma espéciede nicho. Rafael representou a Virgem saindo, por assim dizer, desse nicho, delimitadapor cortinas verdes, para se aproximar, sobre as nuvens, do caixão que continhaos restos mortais do . papa. Destinado á cerimónia funerária do papa, o quadro deRafael tinha, antes de mais nada, valor de exposição. Um pouco mais tarde foi colocadoabaixo do altar-mor da capela dos Frades Negros, em Piacenza. A razão deste exílioestá no facto de o ritual romano proibir honrar, num altar-mor, imagens previamenteexpostas durante funerais. Esta prescrição retirava uma parte do valor comercial âobra de Rafael. No entanto, para poder vendê-la por justo preço, a Cúria decidiu tolerartacitamente que os compradores pudessem expõ-la num altar-mor. Para que não sefizessem grandes comentários sobre o assunto, o quadro foi enviado para um con-vento de uma longínqua cidade de província.

n A outro nível, Brecht apresenta considerações análogas: «Logo que a obrade arte se transforma em mercadoria, deixa de se lhe poder aplicar a noção de obrade arte; é então que devemos, com prudência e precaução, mas sem . temor, renunciará noção de obra de arte, se quisermos conservar a função da própria coisa quequeremos designar. Ë uma fase que é preciso atravessar, e sem preconceitos; essedesvio não é gratuito, leva a uma transformação fundamental do objecto, que apagaa tal ponto o seu passado que, se a nova noção reencontrar o uso anterior. —eporque não? — deixará de evocar as recordações associadas ao significado antigo.»(in Der Dreigroschenprozers). -

" jean Eugene Atget (1857-1927) — francês, é considerado o principal iniciadorda fotografia pura e de reportagem. (N. Org.)

" Abel Gance, op. cit., pp. 100-101.13 _ Séverin-Mars, cit. por Abel Gance, op. cit., p. 100." Alexandre Arnoux, Cinérea, Paris, 1929, p. 28."T Franz Werfel: «Ein Sommernachtstraum, Neues Wiener Journal, nov. 1935." «O filme (...) fornece (ou poderia fornecer), inclusivamente em pormenor,

tireis conclusões sobre os comportamentos humanos. (...) Do carácter de um homem,não é possível deduzir nenhum dos motivos que o Ievam à acção, a vida interiordas pessoas nunca é o essencial, e raramente é o resultado mais importante da suaconduta.» (Brecht, Versuchte, «der Dreigroschenoperprozess»). Ampliando o camposubmetido aos testes, o papel dos aparelhos na apresentação dos filmes desempenhaum papel análogo àquele que é realizado, no respeitante ao indivíduo; pelo conjuntode circunstâncias económicas que aumentaram, de uma forma extravagante, os domí-nios em que pode ser testado. Assim, as provas de orientação profissional ganhamcada vez maior importância. Consistem num certo número de cortes efectuados nasactividades do indivíduo. Tanto as tomadas de vistas cinematográficas como as provasde orientação profissional decorrem perante um aerôpago de técnicos. O directorde montagem encontra-se, no seu estúdio, exactamente na mesma situação que overificador de,. testes, no exame de orientação . profissional.

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA .?EPRODUÇAO• ;TÉCNICA

• Luigi Pirandello, On bourne, cit. por Léon Pierre-Quint, «Signification ducinéma», (L'art cinématographique, II, Paris 1927, pp. 14-15). (On Tourne, trad. fr.de Si gira, 1915).

• Rudolph Arnheim: der Film als Kunst, Berlim 1932, pp. 176-177 (Ed. Por-tuguesa: A Arte do Cinema, Lisboa, Aster). Nesta perspectiva, estas particularidadesaparentemente secundárias que distinguem a realização cinematográfica da práticacénica tornam-se mais interessantes, por exemplo a tentativa de . certos realizadores,como Dreyer na sua Joana d'Arc, de suprimirem a maquilhagem nos actores. Dreyerlevou meses a reunir os quarenta intérpretes que deviam representar os juizes noprocesso de inquisição. A sua busca era semelhante á busca de acessórios difíceis deencontrar. Dreyer fez os maiores esforços para evitar que houvesse, entre os intér-pretes, a mínima semelhança de idade, de estatura, de fisionomia. Quando o actorse torna acessório da cena, não é raro que, em contrapartida, acessórios desempenhemo papel de actores.. Não é em todo o caso insólito que o filme lhes confie um papel.Em vez de invocarmos exemplos extraídos da grande massa que temos à nossa dis-posição, fixemo-nos num só, particularmente demonstrativo. A presença em cena deum relógio a funcionar será sempre incomodativa. Não há lugar no teatro para oseu papel, que é o de o tempo. Até numa peça realista o tempo astronómico estariaem discordância com o tempo cénico. Nestas condições, é da maior importãncia parao cinema poder dispor, quando isso for necessário, de um relógio para marcar otempo verdadeiro. Este é um dos traços que melhor indicam que, numa circunstânciadeterminada, cada acessório pode desempenhar um papel decisivo. Aproximamo-nosaqui da afirmação de Pudovkin, segundo o qual «o desempenho de um actor ligadoa um objecto e dependente dele (...) constitui sempre um dos mais eficazes métodosde que o cinema dispõe.» O filme é, portanto, o primeiro meio artístico capaz demostrar a reciprocidade de acção entre a matéria e o homem. Sob • este aspecto, podemuito eficazmente servir um pensamento materialista.

x' Pode verificar-se, no plano da política, uma modificação análoga do modode exposição, que depende igualmente das técnicas de reprodução. A crise actual dasdemocracias burguesas implica uma crise das condições que determinam a própriaapresentação dos governantes. As democracias apresentam directamente os governantes,em carne e osso, diante dos deputados. O Parlamento é o seu público. Com o pro-gresso dos aparelhos, que permite fazer ouvir a um número infinito de auditoreso discurso do orador exactamente no momento em que ele fala, e difundir poucodepois a sua imagem diante de um número infinito de espectadores, o essencialpassa a ser a apresentação do homem político diante do próprio aparelho. Estanova técnica esvazia os Parlamentos, tal como esvazia os teatros. Rádio e cinemanão modificam apenas a função do actor profissional, modificam também a de qualquerpessoa que, como o governador, se apresente diante do microfone ou da câmara.O intérprete do filme e o homem de estado, apesar da diferença dàs objectivos quepretendem atingir, sofrem neste caso transformações paralelas. Estas transformaçõesconduzem, em certas condições sociais determinadas, a aproximá-los do público: Daluma nova selecção diante do aparelho; os vencedores são a- estrela e o ditador. •

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ESTÉTICAS DO CINEMA

22 0 carácter privilegiado das técnicas correspondentes encontra-se, assim, des-truído. Aldous Huxley escreve. «Os progressos técnicos (...) levaram à vulgariza-ção. (...) As técnicas de reprodução e o uso das rotativas nas gráficas da imprensapermitiram uma multiplicação da escrita e da imagem que ultrapassa todas as pre-visões. A instrução obrigatória e o relativo aumento dos níveis de vida criaramum público muito vasto, que pode ler e obter Leitura e imagens. Para satisfazeresta procura, foi necessário constituir uma indústria importante. Mas o talento artís-tico é uma coisa rara; daqui resulta que (...) em todas as épocas e em toda a partea maioria da produção artística tenha sido de reduzido valor. Mas hoje, a percentagemdos resíduos no conjunto da produção artística é maior do que nunca. (...) Trata-sede um simples problema aritmético. Ao Iongo do século passado, a população daEuropa ocidental aumentou para mais do dobro. Mas pelo que se pode calcular, omaterial de leitura e imagens aumentou, no mínimo, dez vezes, talvez tenha aumen-tado mesmo cinquenta ou cem vezes. Se admitirmos que uma população de x milhõesde habitantes comporta um número n de pessoas artisticamente dotadas, os talentosserão de 2n para uma população de 2x milhões. Ora a situação pode resumir-seassim. Onde, há cem anos, se publicava uma página impressa de texto ou de ima-gens, publicam-se hoje em dia vinte, senão cem. Onde, por outro lado, existia umtalento artístico, hoje existem dois. Admito que na sequência da instrução obrigatóriaum grande número de talentos virtuais, que antes nunca teriam podido desenvolveros seus dons, se possam hoje exprimir. Suponhamos, assim, (...) que hoje em diaexistem três, ou mesmo quatro talentos, para apenas um, outrora. De qualquermodo, é indubitável que o consumo de textos e de imagens ultrapassou a produçãonatural dos escritores e dos desenhadores dotados. Acontece o mesmo no domíniodos sons. O bem-estar, o gramofone e o rádio criaram um público cujo consumo debens sonoros é desproporcionado em relação ao crescimento da população, e, porconseguinte, ao número dos músicos de talento. Assim, em todas as artes, tantoem números absolutos como em valores relativos, a produção de resíduos é maiordo que outrora; e será assim enquanto as pessoas continuarem a consumir, fora de.qualquer proporção, textos, imagens e discos.» E claro que o ponto de vista que,aqui se exprime não tem nada de progressista.

23 As habilidades do «cameraman» são, efectivamente, comparáveis às do cirur-gião. Caracterizando proezas manuais cuja técnica pertence especificamente à ordemdo gesto, Luc Durtain fala das que certas intervenções difíceis exigem em cirurgia.Dá como exemplo um caso extraído da otolaringologia, a que se chama processoperspectivo endonasaL Remete, também, para as verdadeiras acrobacias impostas aocirurgião da Iaringe por ter que usar um espelho em que vê a imagem reflectidaao contrário. Assinala igualmente o trabalho de precisão da cirurgia auricular, com-.pagável ao de um relojoeiro. O cirurgião deve exercitar os seus músculos até umgrau extremo . de precisão acrobática, quando precisa de corrigir ou salvar um corpohumano. Basta pensarmos, recorda Duran, na operação da catarata, em que o aço doinstrumento tem que lutar com tecidos quase fluidos, ou nas importantes intervençõesna região intestinal (laparotomia).

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TEÇNICA

" Este modo de considerar as coisas pode parecer grosseiro. Mas como mostrao exemplo do grande teórico Leonardo da Vinci, estas considerações grosseiras podemmuito bem ter o seu lugar ao longo das respectivas épocas. Comparando músicae pintura, Leonardo escreve: «A superioridade da pintura sobre a música reside emque, a partir do momento em que é chamada a viver, deixa de haver razão paraque morra, como é o caso, pelo contrário, da pobre música. (...) A música evapora-selogo que é tocada; perenizada através do uso do verniz, a pintura subsiste.»

25 Publicado em 1901. Edição Portugucsa de Estúdios Cor, Lisboa, 1969.(N. Org.).

26 A este respeito, a pintura do Renascimento fornece-nos . uma analogia muitoinstrutiva. Também aí encontramos uma arte cujo incomparável desenvolvimento eimportância reside, em grande parte, no facto de integrar um grande número deciências novas, ou pelo menos de dados novos, adquiridos a partir das ciências. Elareivindica a anatomia e a perspectiva, as matemáticas, a metereologia e a teoria dascores. Como fez notar Valéry, nada está mais distante de nós do que essa espantosapretensão de Leonardo, que via na pintura o objecto supremo e a mais alta demons-tração do saber, por estar convencido de que a pintura exigia a ciência universal;ele próprio não recuava perante uma análise teórica, cuja profundidade e precisãoainda hoje nos desconcertam.

17 Arnheim, op. cit., p. 138.23 Segundo a expressão de André Breton, a obra de arte só tem valor na medida

em que é. atravessada por reflexos do futuro. De facto, qualquer forma de arteacabada encontra-se no cruzamento de três linhas evolutivas. Em primeiro Iugar, atécnica prepara laboriosamente a aparição de uma forma de arte determinada. Antesdo cinema, conhecemos aquelas colecções de fotografias que, sob a pressão do polegar,se sucediam rapidamente em frente dos olhos e nos davam a ver um combate deboxe ou um jogo de ténis; vendiam-se nas lojas jogos automáticos em que o desen-rolar das imagens era provocado pela rotação de uma manivela. Em segundo 'lugar,as formas de arte tradicionais, em certos estados do seu desenvolvimento, trabalhampenosamente na produção de efeitos que, mais tarde, se obtêm sem dificuldadescom a nova forma de arte. Antes de o cinema se impor, os dadaistas, com as suasmanifestações, procuravam introduzir no público um movimento que Chaplin, a seguir,viria a provocar de uma forma mais natural. Em terceiro lugar, as transformações,muitas vezes pouco aparentes, da sociedade, provocam no modo de percepção umamodificação que favorece a nova forma de arte. Antes de o cinema ter começadoa formar o seu público, já se reunia um público no Kaiserpanorama para fruir ima-gens (que já tinham deixado de ser imóveis). Este público colocava-se frente a umbiombo onde eram instalados estereoscópios, estando cada estereoscópio orientadopara um espectador. Diante desses aparelhos surgiam automaticamente imagens suces-sivas que paravam um instante e imediatamente cediam lugar á seguinte. Foi aindacom meios análogos que Edison revelou a um pequeno grupo de espectadores aprimeira fita filmada (antes da descoberta do écran e da projecção); o público olhavaespantado para um aparelho em que se sucediam as imagens. Além disso, o espectáculoapresentado no Kaiserpanorama traduzia, de uma forma particularmente clara, uma

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ESPtTICAS DO CINEMÁ

dialéctica do desenvolvimento. Pouco tempo antes de o cinema permitir a visãocolectiva dás imagens animadas, graças a este sistema de estereoscópios —logoabandonado --- o que dominava ainda era a visão individual, com a mesma forçaque a contemplação da imagem divina pelo padre na sua "celta.

O arquétipo teológico desta interiorização 6 a consciência de se estar a sóscom Deus. Nas grandes épocas da burguesia, esta consciência tornou o homem sufi-cientemente forte para sacudir a tutela da Igreja; na época da sua decadência, amesma consciência devia favorecer no indivíduo uma secreta tendência para privara comunidade das forças que ele accionava na sua relação privada com Deus.

Duhamel, Scènes de la vie future, Paris 1930, p. 52." O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa

a que o homem, hoje em dia, está votado. A necessidade de se oferecer efeitosde choque é uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam. O cinema cor-responde a modificações profundas do aparelho perceptivo, modificações que hoje, àescala da vida privada, vive hoje qualquer transeunte numa grande cidade, e à escalada história, qualquer cidadão de um Estado contemporâneo.

n Se o cinema se esclarece à luz do dada£smo, também se esclarece de formasubstancial à luz do cubismo e do futurismo. Estes dois movimentos surgem comotentativas infrutíferas da arte para levar em conta, à sua maneira, a intrusão dosaparelhos na realidade. Diversamente do cinema, não utilizaram estes aparelhos paradar uma representação artística do real: o que fizeram foi, de certo modo, aliar arepresentação do real à da aparelhagem. Assim se explica o papel preponderante quedesempenha, no cubismo, o pressentimento de uma construção desta aparelhagem,repousando num efeito óptico, e no futurismo o pressentimento dos efeitos destaaparelhagem, tais como o cinema os evidenciará graças ao desenrolar rápido dapelícula.

Duhamel, op. cit., p. 58." E necessário sublinhar aqui — com referência, principalmente, aos jornais

de actualidades filmadas, cujo valor de propaganda não pode ser subestimado—uma circunstância técnica de particular importância. A reprodução em massa corres-ponde, efectivamente, uma reprodução das massas. Nos grandes cortejos festivos,nos comícios gigantesCos, nas manifestações desportivas que reunem multidões, naguerra, finalmente, ou seja, em todas essas ocasiões em que intervém hoje o aparelhode tomada de vistas, a massa pode ver-se a si própria face a face. Este processo,cujo alcance é inútil reiterar, está muito estreitamente ligado ao desenvolvimento dastécnicas de reprodução e registo. Em geral, o aparelhocapta melhor . os movimentosde massa do que o olho humano o pode fazer. Imagens de milhares de homenssó podem captar-se bem de uma perspectiva" aérea. E mesmo que o olhar humanopossa captar imagens tão bem como o aparelho, não pode ampliar, como faz o apa-relho, a imagem que se lhe , oferece. Por outras palavras, os movimentos de massa,incluindo a guerra, representam uma forma de comportamento humano que corres-ponde-muito particularmente á técnica dos aparelhos:

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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUÇÃO TÉCNICA

' Filippo Tomnaaso Marinetti (1876-1944) — foi o fundador do Futurismo, cujoprimeiro manifesto apareceu no Le Figaro em 1909. 0 texto citado por Benjamim foioriginalmente publicado em La Stampa de Turim. Edição portuguesa in Antologia doFuturismo Italiano, Editorial Vega, Lisboa, 1979. (N. Org.)

36 «Que se faça arte, mesmo que o mundo pereça.»

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A FACE DO . HOMEM

BËLA BALASZ

Todas as artes falam exclusivamente do homem. São manifestações,representação do homem: Parafraseando Marx:: «A raiz de toda a arte éo homem.» Mesmo quarido levantam o véu que a nossa vista.. imperfeitae a fraqueza das nossas sensações colocam sobre as pequenas coisas, osgrandes planos não nos mostram -nada a não ser o homem! Porque é aexpressão huinaria Tie é projectada sobre os objectos e que lhes confereuni carácter exprèssivó. As Coisas fëspondeni ao nosso olhar. E é isto,precisatrienfe, que faz nascera arte e distingue este processo dò cònhe-cimento científico, por mais determ inada que a arte seja pela súbjectividadë:Quando olhamos a face das coisas, cónferiniás-lhes um aspecto antropo-trtórfico, tal como, na mitologia, ós deuses fotatn criados a partir dómodelo do homeín. Os grandes plariós são instrumentos que criam essapoderoso antropomorfismo .visual.

A descoberta do rosto humano pelo cinema foi muito mais impor-tante do que a descoberta da face das coisas. A expressão da fisionomiae os gestos são as formas de expressão mais subjectivas do homem. Sãomais subjectivos do que a linguagem porque o vocabulário e a gramáticaestão submetidos a regras transmitidas, que nós seguimos, enquanto amímica — já o dissemos — apesar de ser, em grande parte, aprendida,

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ESTETICAS DO CINEMA

não é uma manifestação que dependa de regras codificadas. Esta forma— a mais subjectiva — da expressão humana, é o objecto dos grandesplanos.

A NOVA DIMENSÃO

Quando o grande plano isola um objecto qualquer, ou o fragmentode um corpo, daquilo que os rodeia, nem por isso deixamos de saberque tanto um como outro se situam no espaço. Em momento nenhumesquecemos que aquela mão, em grande plano, pertence a um ser humano.E esta relação que dá sentido a todos os seus movimentos. No entanto,quando Griffith pela primeira vez projectou, genialmente, uma gigantesca«cabeça cortada» sobre um écran, não se limitava a aproximar de nós,no espaço, um rosto humano; transpunha-a das dimensões espaciais parauma outra dimensão.

Ao dizer isto, não me refiro ao écran e ao jogo de sombras que nelese movem: são pára e simplesmente coisas visíveis, só podem represen-tar-se no espaço. Estou a referir-me á expressão do rosto. Como disseatrás, uma mão isolada perde o seu sentido, e portanto a sua expressão,se eu não puder imaginar o homem a quem ela pertence. Em contrapartida,a expressão de um rosto isolado é um todo intelegível em si mesmo,não temos nada a acrescentar-lhe através do pensamento, nem quanto aoespaço e ao tempo. Quando um rosto que acabamos de ver no meio deuma multidão é destacado daquilo que o rodeia, separado dos outros,sentimos que de repente estamos a sós com ele, face a ele. E se o tivermosvisto anteriormente em plano geral, deixaremos de pensar nisso quandovirmos o rosto em grande . plano. Porque a expressão de um rosto e osignificado dessa expressão não têm qualquer relação ou ligação com oespaço. Face a um rosto isolado, não percepcionamos o espaço. A nossasensação do espaço é abolida. Passamos a outra dimensão: a dimensãoda fisionomia. O significado espacial do facto de vermos as feições ladoa lado, portanto, o facto de elas existirem no espaço, de os olhos estaremem cima, as orelhas dos Iados e a boca em baixo, deixa de` ser impor-tante quando deixamos de ver formas de carne e sangue para passarmosa ver uma expressão, isto é, um sentimento, um estado 'de alma, uma

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A FACE DO HOMEM

intenção, um pensamento. Vemos, com os nossos olhos, algo que nãoexiste_ no espaço. Os sentimentos, os estados de alma, as intenções, ospensamentos, não são coisas espaciais, mesmo que sejam mil vezes indi-cadas através de signos espaciais.

O MONÓLOGO MUDO

O teatro contemporâneo utiliza pouco o monólogo. Mas sem monó-logo, o herói emudece no momento em que é mais sincero, mais livre,mais intenso: no momento em que está só. O monólogo repugna aonaturalismo que presume que o monólogo «não é natural». Ora o cinematornou possível um monólogo mudo em que o jogo fisionómico fala comgradações mímicas delicadas, que não irritam o espectador porque produ-zem um efeito natural. A alma solitária toma, aí, a palavra com maissinceridade, mais liberdade, do que em qualquer monólogo falado; maisespontânea, é também mais inconsciente. O homem não pode reprimirnem controlar os jogos da sua fisionomia. Em grande plano, o rosto maisdisciplinado, mais apto á dissimulação, o de um hipócrita, mostrará tam-bém, além da expressão de hipocrisia, com a precisão de um microscópio,que esconde algo, que mente. Porque também aqui há uma mímica espe-cífica. Ë muito mais fácil mentir com palavras. O cinema também mos-tra. isso

Em cinema, o monólogo de um rosto não exige que o herói estejasó. Esta é também uma das suas possibilidades de representar o homem.Pela sua importância poética, o monólogo não é a expressão de umasolidão física, mas de uma solidão moral. No teatro, no entanto, o heróisó monologa se ninguém estiver perto dele, mesmo que se possa sentirmil vezes mais só no meio de uma grande assembleia. O monólogo dasolidão pode nascer dentro da personagem, mesmo que esta esteja afalar com outras personagens. O monólogo mais profundamente humanonão pode ser claramente mostrado em palco mas o cinema pode mostrá-lo:porque o grande plano permite destacar um rosto perdido na multidãoe mostrar a que ponto ele está verdadeiramente só, e aquilo que exprimeafogado nessa multidão.

O cinema tem a capacidade de separar as palavras de um homemque conversa com outros dos seus jogos fisionómicos. Enquanto fala,

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ESThTICAS DO -CINEMA

nós vemos o seu monólogo mudo e apercebemo-nos da diferença entre essemonólogo e a conversa. No teatro, dado o afastamento do palco, o actorpode, na melhor das hipóteses, fazer-nos compreender através da suaexpressão que as suas palavras não são sinceras, mas incomoda-nos estara pensar que os outros actores também podem reparar nisso. No cinema,pelo contrário, graças ao grande plano totalmente separádó do resto,posso ver o actor interpretar, até ao fundo da alma, esse delicado jogode sombras, de mímica; o outro personagem, por mais atento que esteja,não notará nunca.

O romancista pode escrever um diálogo e misturar-lhe aquilo queos interlocutores pensam para si próprios. Mas ao fazê-lo, quebra a uni-dade — cómica e trágica, críadora de «suspense» - entre o que se dize o que se pensa. E através dessa unidade que tal contradição se mani-festa nos traços de um rosto; e foi o cinema o primeiro a mostrá-la, emvariantes de uma riqueza perturbante.

O JOGO DE FISIONOMIA POLIFÕNIÇA

Torna-se possível um jogo de fisionomia polifônica quando expres-sões opostas surgem num rosto. Uma síntese de sentimentos, paixões, epensamentos diferentes surge naquilo a que se poderia chamar um acordofisionómico — síntese que exprime perfeitamente a complexidade da natu-reza humana.

Um dia, Asta Nielsen' interpretou o papel de uma mulher subornadapara seduzir um jovem rico. O homem que a obrigou a isso observa-a,escondido por detrás de uma cortina, à espera do resultado. Conscientede estar a ser espiada, Asta Nielsen simula sentimentos amorosos. Simula-osde uma forma convincente, o seu rosto reflecte toda a gama da mímicaamorosa. Vemos que isso é representado, que é falso — é só uma más-cara. Ao longo da cena, Asta Nielsen apaixona-se realmente pelo jovem.Os seus traços alteram-se de maneira imperceptível, porque até aí tam-bém tinha mostrado amor — e na perfeição! Agora que realmente afina,que poderá ela mostrar mais? É apenas uma irradiação diferente, quaseimperceptível, que faz com que a expressão daquilo que anteriormenteera_ simulado se torne a expressão de um sentimento profundo, autêntico.Mas Asta Nielsen tem, de repente, consciência de estar a ser observada.

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A FACE DO HOMEM

O homem por detrás da cortina não deve ler nos seus tragos que aquilojá não é um jogo. Ela toma, portanto, a fazer como se estivesse outravez a mentir. Uma nova variação, desta vez a três vozes, surge no seurosto. Porque a sua representação simulava, primeiro, o amor, e depoismostrava-o, sinceramente. Mas não tem direito a ele; e portanto o seurosto mostra um amor falso, simulado. A simulação tornou-se agora men-tira. Faz-nos acreditar que mente: vemos tudo isto, claramente, no rostode Asta Nielsen. Sobrepôs duas máscaras! Um rosto invisível torna-sevisível (tal como as palavras suscitam o indizível através de associações).Ao jogo de fisionomia visível associa-se outro, invisível, que só é compreendido por aquele a quem se destina.

No princípio do cinema mudo, Griffith mostrou uma cena similarnum filme em que o herói é um comerciante chinês. Li lian Gish 2 , jovemmendiga perseguida, desmaia em frente da porta desse homem. O chinêsencontra a doente, leva-a para casa e trata dela. Restabelece-se rapida-mente, mas o rosto, contraído, continua triste. «Não sabes sorrir?» per-gunta o chinês à jovem amedrontada que começa a confiar nele. «Voutentar», responde Lilian Gish. Pega num espelho e, com os dedos, puxaos cantos da boca para esboçar um sorriso. Em frente do espelho, faza careta do sorriso. Uma máscara torturada, que suscita mais o medodo que outra coisa, torna-se nessa altura visível. Volta-se para o chinês.Mas o olhar bondoso dele provoca nela um verdadeiro sorriso. Está, agora,confortada por um sentimento profundo e algo quase imperceptível trans-formou uma careta numa expressão autêntica.

No tempo do cinema mudo, um grande plano deste género era umacena completa. Uma ideia do realizador, uma «performance» do actor,e uma experiência nova e interessante para o público.

MICROFISIONOMIA

O cinema mudo separava a expressão do rosto daquilo que rodeavaesse rosto, como se o quisesse dotar de uma dimensão espiritual nova einteiramente original. Mostrava-nos o mundo da microfisionomia, ummundo que não podemos ver a olho nu, na vida quotidiana. A sua impor-tância diminuiu consideravelmente no cinema sonoro, porque — aparen-

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ESThTICAS DO CINEMA

temente — as palavras podem exprimir mais claramente aquilo que ojogo fisionómico exprime — aparentemente — de uma forma menosclara. Mas não á a mesma coisa! Há muitas experiências espirituais quejá não conseguem exprimir-se. As palavras dos maiores poetas, dos poetasmais sensíveis, não teriam conseguido exprimir aquilo que Asta Nielsennos fez sentir num grande plano de Kitty Falk. Em frente ao espelhotenta, pela última vez, maquilhar o rosto, esse rosto envelhecido, flácido,devastado pela miséria, pela doença e pela prostituição, para receber oamante que acaba de cumprir dez anos de prisão — onde permaneceujovem, porque não foi afectado pela vida.

Pálida, grave e triste, de testa enrugada, Asta fita o espelho. Aspreocupações e um terror inexprimível marcam-lhe os traços. Dir-se-iaum estratega cercado, irremediavelmente perdido, que se debruça, pelaúltima vez, sobre o mapa: que se poderá tentar fazer ainda? Não haverásaída? Com as mãos a tremer, Asta inicia o seu trabalho sobre esse rostorepugnante e decadente: maneja o baton como Miguel Ângelo manejava,talvez, o cinzel, durante a última noite. Ë uma luta de morte. O espectadorsegue, arquejante, a forma como uma mulher se maquilha em frente aoespelho. Assiste aos últimos estremecimentos de uma alma destruída quese refiecte no espelho embaciado e partido. Uma mulher tenta salvar avida maquilhando-se... Em vão! Tira tudo com um trapo sujo. Recomeça.Recomeça outra vez. Depois encolhe os ombros afasta tudo com fir-meza, apagou a vida do seu rosto — e atira com o trapo. Um grandeplano mostra o trapo a cair e a maneira como fica enrolado no chão.A- mímica do trapo também é intelegível. Ë assim que um moribundodescansa quando já não há nada a fazer.

Neste grande plano, a microfisionomia mostrou, claramente, o enormee perturbante drama de uma das mais profundas tragédias humanas. Esta-mos, sem dúvida, perante uma forma de arte nova e poderosa. O cinemasonoro sô raramente nos oferece cenas desta ordem. Não as exclui, noentanto, necessariamente: seria pena privar-nos delas sem motivo impe-rioso.

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A FACE DO HOMEM

A MfMICA DA LINGUAGEM.

Num filme mudo o actor falava, como o faz um actor de um filmesonoro. Mas não o ouvíamos. Víamos o actor em grande piano— tambémera uma expressão mimada. Quem observa um discurso vê-o de uma formadiferente, adivinha coisas diferentes de quem apenas ouve e ë obrigado aperceber dessa maneira.

Com o cinema mudo, tratava-se de expressão mimada, da formacomo os lábios se moviam. Por isso compreendemos tão bem actores denações diferentes. Quando um deles falava de lábios cerrados, deixandoescapar as palavras como se fossem punhais . aguçados, sabíamos o queisso queria dizer. Era essa a representação do actor, a mímica. Perce-bíamos quando o bêbado, com a Iíngua entaramelada, «deixava cair»palavras balbuciantes dos lábios flácidos. Era uma «performance» mimada.Percebíamos que o intriguista lançava pelo canto dos lábios palavras dedesprezo. Eram as formas mímicas das representações mais originais dogrande plano. Enquanto se viam as palavras, sem as ouvir, era possívelfalar de mil maneiras diferentes.

A IMAGEM DA LINGUAGEM NO CINEMA SONORO

O actor do filme mudo falava de uma forma inteligível ao olhar,e não ã audição. Podia fazê-lo porque não era obrigado a falar de formainteligível para o ouvido, não era obrigado a emitir com os lábios vogaisbem articuladas. Os movimentos dos lábios tinharn, na altura, apenasuma causa (o sentimento, a paixão), e não tinham qualquer objectivo (aelocução clara e distinta). No cinema sonoro, não há lugar para essaforma de mímica falada. Porque a boca que fala distintamente ao ouvidotorna-se ininteligível ao olho. já não se manifesta numa mímica espon-tânea, como as outras partes do rosto; manifesta-se como um instrumentopara formar sons. .

por isso que o cinema sonoro evita mostrar em grande plano orosto de quem fala, porque uma parte do rosto, neste caso a zona daboca, é totalmente inexpressiva. E no entanto essa zona agita-se, comum movimento intenso, que muitas vezes produz um efeito grotesco.

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ESTÉTICAS DO CÌNEMA

O inconveniente disto é renunciar-se, durante o diálogo, aos grandesplanos do rosto, tão reveladores das profundezas da alma.

Apesar de tudo, qualquer diálogo conserva ainda um resto de expres-são mimada suficiente para tornar a dobragem das línguas estrangeirasinsípida. Não só porque a tradução deve ter tantas sílabas como o textooriginal, para poder corresponder ao movimento dos lábios, o que implicatraduções artificiais, ou ridículas, mas também porque a dobragem deuma língua estrangeira é inevitavelmente falsa e inestética, visto quecada língua possui organicamente os seus gestos expressivos, caracterís-ticos para quem a fala. Não se pode falar em inglês acompanhando aspalavras com movimentos das mãos d italiana.

[1945]

{ NOTAS'

' Asta Nielsen (1883-1972)—uma das primeiras divas do cinema dinamarquêse alemão. A apálise de Balasz baseia-se no filme Tragédia da Rua (Diirnentragodie,1927) de Bruno Rahn. (N. Org.)

Z Lilian Gish (1896) — grande actriz do cinema americano, lançada porGriffith, com quem fez os seus melhores filmes do período mudo. No exemplo citado,Balasz refere-se ao filme O Lirio Quebrado (1919). (N. Org.)

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MÉTODOS DE . MONTAGEM

SERGE' EISENSTEIN

Em qualquer arte ou em qualquer descoberta, a experiénciatem sempre normas precedentes. No decorrer do tempo, um métodoé designado como pratica da invenção.

Goldoni'

Será o método de montagem harmónica independente da nossa expe-riéncia prévia, artificialmente transposto para a ou serásimplesmente uma acumulação quantitativa de um atributo que dá umsalto dialéctico e começa a funcionar corno um atributo qualitativo novo?

Por outras palavras, será a montagem harmônica um estágio dia-léctico de desenvolvimento dentro do desenvolvimento do sistema globalde métodos da montagem permanecendo em sucessiva relação a outrasformas de montagem?

São estas as categorias formais de montagem que conhecemos 2:

1. MONTAGEM MÉTRICA

O critério fundamental para esta construção é a duração precisa dosfragmentos 3 . Estes juntam-se de acordo com o seu comprimento, numesquema formal correspondente a um compasso de música. A realizaçãoconsiste na repetição destes compassos.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

A tensão é obtida através do efeito de aceleração mecânica encur-tando os fragmentos mas preservando no entanto as proporções originaisda fórmula. Origem do método: tempo a três quartos, tempo de marcha,tempo de valsa (3/4,

2/4, 1/4, etc.) como usado por Kuleshov; degeneração

do método: montagem métrica usando uma cadência de complicada irre-gularidade (

!6/ i7, '/s7, etc.).

Semelhante cadência deixa de ter um efeito fisiológico, por ser con-trária à «lei dos números simples» (relações). Relações simples, que dãouma noção de claridade, são por esta razão necessárias para obter umaeficiência máxima. Por isso são encontradas em clássicos em todos oscampos: na arquitectura; na cor de uma pintura; numa composição com-plexa de Scriabine 4 (sendo sempre limpidas como cristal nas relaçõesentre as partes); encenações geométricas; rigorosos projectos de Estado,etc. Um exemplo semelhante pode ser encontrado no Décimo Primeiro

Ano (1928) de Vertov, onde o ritmo métrico é matematicamente tãocomplexo que somente «com uma régua» se pode descobrir a lei propor-cional que o governa. Não é percebido por «impressão» mas por «cadência».

Não tenciono dar a ideia de que o ritmo deve ser reconhecível comoparte da impressão perceptível. Pelo contrário. Embora irreconhecível, éno entanto indispensável para a «organização» da impressão sensitiva.A sua clareza permite a adequação entre a «pulsação» do filme e a «pul-sação» da audiência. Sem esta adequação (que pode obter-se por muitosmeios) não pode haver contacto entre ambos.

Demasiada complexidade do ritmo métrico produz o caos nas impres-sões, em vez de uma distinta tensão emocional.

Um terceiro uso da montagem métrica encontra-se entre os seus doisextremos de simplicidade e de complexidade: alternando duas duraçõesdiferentes de acordo com dois tipos de conteúdo dos fragmentos. Exem-plos: a sequência do «Lezginka»

s em Outubro (Eisenstein, 1927) e a

demonstração patriótica em O Fim de S. Petersburgo (Pudovkin, 1927).(O último exemplo pode ser considerado igualmente clássico no domínioda pura montagem métrica).

Neste tipo de montagem métrica o conteúdo do quadro 6 é subordi-nado ao comprimento absoluto do - fragmento. Consequentemente, só adominante do conteúdo do fragmento é considerada; estes seriam planos«sinónimos».

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MÉTODOS DE MONTAGEM

MONTAGEM RÍTMICA

Neste caso, determinando o comprimento dos fragmentos, o conteúdodo quadro é um factor que possui direitos de consideração idênticos.

A determinação abstracta do comprimento dos fragmentos conduz auma relação flexível dos comprimentos reais.

Neste caso, o comprimento real não coincide com o comprimentomatematicamente determinado do fragmento de acordo com uma fórmulamétrica. Aqui, o seu comprimento prático provém da especificidade dofragmento, planeado de acordo com a estrutura da sequência.

muito possível encontrar casos de completa identidade métrica dosfragmentos e das suas cadências rítmicas, obtidas através de uma com-binação dos fragmentos de acordo com o seu conteúdo.

Uma tensão formal por aceleração é neste caso obtida encurtandoos fragmentos, não somente em conformidade com o . plano fundamental,mas também violando este plano.

A violação mais efectiva faz-se através da introdução de um materialmais intenso num tempo facilmente distinguível.

A sequência das escadarias de Odessa no Couraçado Potemkin (1925)é um exemplo claro deste caso. A marcha rítmica dos soldados descendoos degraus viola todas as exigências -métricas. O ritmo dos cortes namontagem esta dessíncrono em relação ao ritmo da marcha dos soldadose cada plano tem uma solução diferente se considerarmos todos estesaspectos.

A tensão final produz-se com a mudança do ritmo dos passos adescer para outro ritmo — um novo tipo de movimento descendente —o próximo nível de intensidade da mesma actividade -- o carrinho debebé a rolar pelos degraus. O carrinho de bebé funciona directamentecomo um acelerador em direcção aos pés que avançam.

Os passos descendentes tornam-se um rolar descendente.Podemos contrastar isto com o exemplo mencionado anteriormente,

extraído de O Fim de S. Petersburgo (Pudovkin, 1927), onde a inten-sidade é definida cortando cada um e todos os fragmentos ao mínimorequerido dentro de uma só medida métrica.

41.

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ESTÉTICAS DO CINEMA -

Esta montagem métrica é perfeitamente apropriada para semelhantessoluções de tempo de marcha. Contudo é inadequada para necessidadesrítmicas mais complexas.

Quando aplicada á força, deparamos com uma montagem falhada.Como, por exemplo, a sequência mal sucedida do baile de máscaras reli-gioso em Tempestade Sobre a Asia (Pudovkin, 1925). Executada na basede um complexo compasso métrico, desajustada ao conteüdo específicodos diferentes fragmentos, não reproduz o ritmo da cerimônia originalnem consegue .organizar um ritmo cinematográfico bem sucedido.

Na maior parte dos casos deste género, apenas a perplexidade é sus-citada no especialista, enquanto que no espectador produz uma meraimpressão confusa. (Embora um suporte artificial de acompanhamentomusical possa ser dado a uma sequência tão duvidosa -- como no exem-plo citado — a fragilidade básica continua presente).

3. MONTAGEM TONAL

Este termo é empregue pela primeira vez. Expressa tuna fase paraalém da montagem rítmica.

Na rmòntagem rítmica é o movithentó dentro dó quadro que impeleo móvitmento da montagem de uM quadro para outro. Tais tinovimêhtoãno interiór do quadro podem derivar de objectos eth niovirnentõ ou doolhar do espectador dirigido ao longo dás linhas de qualquer objectomóvel.

Em montagem tonal, o movimento é entendido num sentidò maislátô. O conceitó de rdõvií ieritó abrange todos os efeitos dos fragmentosdestinados á mointágetn. Aqui, a Montagem é baseada no som emocionaldó fragmento na sna dominante. O tom geral do fragmento. • -

Não tenciona. dizer que ò som emociònal do fragmento deverá ser

medido «impressionisticamente». As suas características podein; neste caso;ser medidas com a niesmâ exactidão como no cáso mais elementar demedição «por régua» . na montagem métrica. Mas as unidades d e- medidadiferem: E as quantias a medir são diferentes.

• Por exemplo; -o grau de vibração luminosa num fragmento não podeser avaliado por um fotômetro, embora qualquer graduação desta : vibra-

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MÉTODOS DE MONTAGEM

cão seja perceptível a olho nu. Se, comparativamente; dermos a designaçãoemocional de «mais melancólico» a um fragmento; podemos, de igualmodo, atribuir um coeficiente matemático ao seu grau de iluminação.

Este é um caso de «tonalidade luminosa». Ou, se o fragmento édescrito como possuindo um «som agudo» é possível encontrar por detrásdesta descrição, e dentro do ângulo do quadro, muitos elementos com-parativos. Este é um caso de «tonalidade gráfica».

Trabalhar com combinações de graus variáveis de focos suaves oucom graus variáveis de efeitos agudos seria um método típico da montagemtonal. Como disse; isto seria baseado no som emocional dbmiriahte nosfragmentos. Um exemplo: a «sequência da neblina» em Potemkin (pre-cedendo o velório do corpo de Vakulinchuk). Aqui a montagem foi exclu-sivamente baseada no «som» emocional dos fragmentos — nas vibraçõesrítmicas que não afectam alterações de espaço. E interessante verificar,neste exemplo, que, lado a lado com o tom básico dominante, opera tam-bém uma secundária e acessória :dominante rítmica. Isto encadeia aconstrução tonal da cena com a tradição da montagem rítmica; cujo ulteriordesenvolvimento é a montagem tonal. E, corno a montagem rítmica, istoé também uma variação especial . da montagem métrica.

Esta dominante secundária é expressa em movimentos escassamenteperceptíveis: a agitação da água; o leve oscilar dos navios e bóias; a,lenta ascensão do vapor; o suave poisar das gaivotas na água.

Estritamente falando estes também . são elementos de ordem tonal.São movimentos que se desenvolvem mais propriamente . de acordo coma tonalidade do que com as características rítmicas de espaço. Neste caso,mudanças de espaço imensuráveis estão combinadas de acordo com oseu som emocional. Mas o indicador potencial para a montagem dos.fragmentos está em conformidade com o seu elemento básico - vibrações.luminosas ópticas (graus variáveis de «neblina» e «luminosidade»). E aorganização destas vibrações revela uma identidade total com uma har-monia menor em música. Além disso, este exemplo fornece uma demons-tração de consonância na combinação do movimento como mudança edo movimento como vibração luminosa.

O aumento de tensão neste nível de montagem é também produzidopor uma intensificação da mesma dominante «musical». Um exemploparticularmente claro desta intensificação é fornecido tia segai ncia da

G3•

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EST]g'rICAS DO CINEMA.

colheita retardada em A Linha Geral (Eisenstein, 1929). A construçãodeste filme como um todo, bem como nesta sequência particular, aderea um processo construtivo básico. Nomeadamente: um conflito entre a

história e a sua forma tradicional.São estruturas emotivas aplicadas a um material não-emocional. O estí-

mulo é transferido do seu uso normal como situação (por exemplo, comoo erotismo é normalmente usado nos filmes) para estruturas paradoxaisem tom. Quando «o pilar da indústria» é finalmente descoberto — éuma máquina de escrever. O touro herói e a ,vaca heroína têm um casa-mento feliz. Não é o Santo Gral que inspira ao mesmo tempo a dúvidae o êxtase — mas uma desnatadeira'.

Por isso, a temática «menor» da colheita é resolvida pela temática«maior» da tempestade, da chuva. A própria meda da colheita — prin-cipal tema tradicional da fecundidade exposta ao sol — é 'a resoluçãodo tema menor, humedecida pela chuva.

Aqui o aumento de tensão provém do reforço interno implacáveldo acorde dominante— com o sentimento crescente inerente ao fragmentode «opressão que precede a tempestade.»

Como no exemplo anterior, a dominante tonal — movimento comovibração luminosa — é acompanhada por uma dominante rítmica secun-dária, ou seja, o movimento como mudança.

Tudo isto é expresso pela crescente violência do vento, personificadapor uma transferência de corrente de ar para temporais de chuva— umaanalogia definida de acordo com a transferência de passos a descer asescadarias e o rolar descendente do carrinho de bebé (Potemkin).

Do ponto de vista da estrutura geral, o elemento vento-chuva, emrelação à nota dominante, pode ser identificado com a união, no primeiroexemplo (os nevoeiros no porto), entre o seu balanço rítmico e a suadesfocagem reticular. Na realidade, o carácter da inter-relação é bastantediferente. Em contraste com a consonância do primeiro exemplo, encon-tramos aqui o reverso.

A aglomeração dos céus numa massa preta, ameaçadora é constras-tada com a intensificadora força dinâmica do vento, e a solidificação impli-cada na transição das correntes de ar em torrentes de água é intensificadapelos saiotes de mulher soprados pelo vento e os feixes dispersos dacolheita (A Linha Geral).

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MÉTODOS DE MONTAGEM

Neste caso a colisão de tendências — intensificação da estática eintensificação da dinâmica — dá-nos um exemplo claro da dissonância naconstrução de montagem tonal.

Do ponto de vista de impressão emocional, a sequência da colheitaexemplifica o trágico (activo) menor, em contraste com o lírico (passivo)menor da sequência de nevoeiro do porto.

É interessante que em ambos os exemplos a montagem desenvolve-secom a crescente mudança do seu elemento básico — a cor: no porto, desdecinzento escuro até branco nebuloso (analogia da vida — a alvorada);na «colheita», desde o cinzento claro até ao preto chumbo (analogia davida —aproximação de crise). Ou seja, ao longo de uma linha de vibra-ções de luz aumentando em frequência por um lado, e diminuindo emfrequência por outro. A construção em métrica simples foi elevada a umanova categoria de movimento -- uma categoria de maior significação. Istoconduz-nos a uma categoria de montagem a que chamaremos simplesmente:

4: MONTAGEM HARMÓNICA

Na minha opinião, a montagem harmónica (descrita no ensaio ante-rior) é organicamente o desenvolvimento mais elevado na linha de mon-tagem tonal. Como indiquei, distingue-se da montagem tonal pelo cálculocolectivo de todas as capacidades dos fragmentos. Esta característicaaumenta a impressão desde um colorido melódico emocional até uma per-cepção fisiológica directa. Representa um nível relacionado com níveisanteriores.

Estas quatro categorias são métodos de montagem. Tornam-se «cons-truções» de montagens distintas quando entram em relações de conflitoentre si — como nos exemplos citados.

Dentro do esquema de relações mutuas, ecoando e entrando em con-flito umas com as outras, transformam-se num tipo de montagem cadavez mais definido, cada uma distinguindo-se organicamente das outras.

Consequentemente, a transição de métricas para ritmos surge no con-flito entre o comprimento do plano e o movimento no interior do quadro.A montagem tonal deriva do conflito entre os princípios rítmicos e tonaisdo fragmento.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

E finalmente a montagem harmónica deriva do conflito entreo tom principal do fragmento (sua dominante) e a harmonia.

Estas considerações dão-nos, em primeiro lugar, um critério interes-sante para a apreciação da construção de montagem dum ponto de vista«pictórico». O picturalismo é aqui contrastado com o «cinematicismo»,isto é, o picturalismo estético com ' realidade fisiológica. Seria ingénuoargumentar sobre o picturalismo do plano cinematográfico, o que é típicode pessoas póssuindo uma cultura estética decente que nunca foi logica-mente aplicada a filmes. A este género de pensamento, pertencem porexemplo, os comentários de cinema . feitos por Kasitnir Malevich s.

Nenhum principiante de- cinema se atreveria a analisar a imagem dofilme de um ponto de vista idêntico ao da pintura de uma paisagem.

O que se segue pôde ser considerado como um critério de rpictura-lisrtro» na construção da ' montagem em sentido geral: o conflito deve serresolvido dentro de uma ou outra categoria • de montagem, sem permitirque se desvie das diferentes categorias de montagem. A verdadeira cine-matografia só começa com a colisão das várias modificações cinemáticasde movimento e vibração. Por exempla, o conflito «pictórico» de figurae horizonte (o facto de ser um conflito estático ou dinâmico não é impor-tante). Ou a alternãncia de fragmentos diferentemente iluminados, unica-mente do ponto de vista de vibrações de luz contrastantes, ou de umconflito entre a forma de um objecto e a sua iluminação, etc.

Devemos também definir o que caracteriza o impacto das váriasformas de montagém no complexo psíquico-fisiológico da pessoa tendo emconta determinados objectivos.

A primeira categoria métrica, é caracterizada por uma rude forçamotriz.

capaz de impelir o espectador a reproduzir a acção- observada doexterior. Por exemplo, a competição da ceifa em A Linha Geral é cortadadeste modo. Os diferentes fragmentos são «sinónimos» — contêm umsimples movimento de ceifa de um dos lados do plano para o outro; nãopude deixar de rir, quando vi os mais impressionáveis' membros do públicoa balançarem-se despercebidamente de um lado ,para o outro a uma velo-cidade crescente à medida que os fragmentos de filme eram aceleradospor encurtamerito. O efeito era o mesmo que o de uma banda de percussãotocando uma simples marcha.

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MLTODOS DE MONTAGEM

Designei a segunda categoria como rítmica. Pode também ser chamadaprimitiva-emotiva. Aqui, o movimento é calculado com mais subtileza,pois embora a emoção seja também um dos resultados do movimento,este não é meramente uma mudança externa primária.

A terceira categoria — tonal -- pode também ser chamada melódico--emotiva. Aqui, o movimento, deixando já de ser uma simples mudançacomo no segundo caso, transforma-se distintivamente numa vibração emo-tiva de categoria ainda mais elevada.

A quarta categoria — uma corrente fresca de fisiologismo puro —ecoa no mais alto grau de intensidade, em relação á primeira categoria,adquirindo novamente um certo grau de intensificação por meio de umaforça motriz directa.

Em música isto é explicado pelo facto de que desde o momentoem que as harmonias podem ser ouvidas paralelamente ao som básico,podem também ser sentidas vibrações, oscilações que deixam de impres-sionar como tons, mas antes como puras deslocações físicas de impressãopercebida. Isto refere-se particularmente a instrumentos com um timbrefortemente pronunciado e com grande preponderância do princípio har-mónico. A sensação de deslocação física é também, algumas vezes, con-seguida literalmente: sinos, órgão, grandes tambores turcos, etc.

Ein algumas sequências, o filme A Linha Geral é bem sucedido narealização da junção de linhas de tom e de harmonia. Por vezes, estaschegam . a colidir com as linhas métrica e rítmica. Como nos vários «enre-dos» da cena da procissão religiosa: os figurantes que caem de joelhosante os ícones, as velas que se derretem, os suspiros de êxtase, etc.

E interessante notar que ao seleccionar os fragmentos para a mon-tagem desta sequência, munimo-nos inconscientemente coin 'a prova deuma igualdade essencial existente entre ritmo e tom, estabelecendo estaunidade gradual de um modo idêntico ao que tínhamos previamente esta-belecido entre os conceitos de plano e de montagem. Consequentemente,o tom é um nível de ritmo.

Para benefício daqueles que ficam alarmados com tais reduções aum denominador comum, e com a extensão das propriedades de umnível a outro, para propósito de investigação e metodologia, lembro aquias sinopses de Lenine sobre os elementos fundamentais da- dialécticaHegeliana.

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ESTATICAS - DO CINEMA -

«Estes elementos podem ser apresentados de uma maneira mais deta-lhada:

10) um processo infinito de revelação de novos aspectos, relações, etc.11) um processo infinito de aprofundamento da percepção humana

das coisas, aparências, processos, etc., desde a aparência à essência e desdea menos profunda à mais profunda essência.

12) da coexistência à casualidade, e de uma forma de conexão einterdependência a outra, mais profunda e mais geral.

13) recorrência ao mais alto nível, a características conhecidas, atri-butos, etc. do mais baixo, e

14) retorno, por assim dizer, ao antigo (negação da negação)» ... 9Após esta cotação, desejo definir a categoria seguinte de monta-

gem — uma categoria ainda superior:

5. MONTAGEM INTELECTUAL

A montagem intelectual é uma montagem não de sons harmónicos,geralmente fisiológicos, mas de sons e de harmonias de uma categoriaintelectual, como por exemplo: conflito-justaposição tendo como resultadoum impacto intelectual.

A qualidade gradual é aqui determinada pelo facto de, em princípio,não existir diferença entre o movimento de um homem balançando-se soba influência da montagem métrica elementar (ver acima) e o processointelectual que lhe é inerente, pois que o processo intelectual é a mesmaagitação, mas no domínio dos centros nervosos superiores.

E se, no caso citado, sob a influência de «montagem de jazz», sen-timos o ritmo das mãos e dos joelhos, no segundo caso, esse ritmo, soba influência de um grau diferente de solicitação intelectual, ocorre, domesmo modo, através dos tecidos do sistema nervoso e do processo depensamento. Embora, se julgados como «fenómenos» (aparências), parecemde fa to diferentes, do ponto de vista da «essência» (processo), são semdúvida idênticos.

Aplicando a experiência do trabalho, ao Iongo de linhas inferiorespara categorias de ordem superior, isto possibilita-nos continuar a análiseaté ao cerne das coisas e dos fenómenos. Consequentemente, acategoria, constitui a harmonia intelectual.

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MÉTODOS DE MONTAGEM

Um exemplo disto pode ser encontrado na sequência dos «deuses»no filme Outubro (Eisenstein, 1927) onde todas as condições para a suacomparação dependem exclusivamente do som intelectual -- de classe —de cada fragmento na sua relação com Deus. Digo de classe, pois emborao princípio emocional seja universalmente humano, o princípio intelectualé profundamente influenciado pela classe social. Estes fragmentos forammontados de acordo com uma escala intelectual descendente — reduzindoo conceito de Deus ás suas origens, forçando o espectador a aperceber-sedesta «progressão» intelectualmente 10.

Mas isto, esta claro, não é ainda o cinema intelectual que tenhovindo a anunciar há alguns anos! O cinema intelectual será aquele queresolve o conflito-justaposição das harmonias fisiológicas e intelectuais.Construindo uma forma de cinematografia completamente nova — a com-preensão da revolução na história geral da cultura; construindo uma síntesede ciência, arte e militáncia de classe.

Na minha opinião, a questão da harmonia é de amplo significadopara o futuro dos nossos filmes. Mais uma razão para estudarmos a suametodologia e conduzirmos as nossas investigações nesse sentido.

[Moscovo -- Londres, Outono 19291

NOTAS

Memoirs of Goldoni, versão de John Black, Nem York, 1926.2 Num texto datado de 1923 Einsenstein definia a concepção de montagem das

atracções que entretanto reformulou e, em parte, ab andonou: «Atracção (do ponto devista teatral) 6 todo o factor agressivo do teatro, ou seja, todo o elemento que submeteo espectador a acções sensoriais e psicológicas, experimentalmente calculadas, com opropósito de nele produzir determinados choques emocionais que, por sua vez, per-mitam alcançar uma condusão ideológica final.» (N. Org.)

Eisenstein utiliza quase sempre a expressão fragmento para designar a unidadefilmica a que vulgarmente chamamos plano. A terminologia de Eisenstein 6 decorrenteda sua posição teórica. Um fragmento 6 parte de uma tomada de vistas filmada emcontinuidade segmentada na montgem e provavelmente reutilizada sob a forma dediversos fragmentos no decurso da sequência. A tota lidade do plano na filmagem(tomada de vistas) transforma-se assim em vários planos (fragmentos) no filme mon-tado. (N. Org.)

' Alexandre Nikolaievitch Scriabine (1872-1915) — compositor russo cuja ambi-ção era fundir a criação musical com a especulação filosófica. (N. Org.)

S Lezginka, em russo, 6 um baile nacional popular. (N. Org.)

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ESTIMCAS DO CINEMA

Eisenstein prefere utilizar a noção de quadro em vez de enquadramento prova-velmente porque o quadro pressupõe a posição fixa da câmara e a concentração dosentido no interior do espaço visual representado, enquanto o enquadramento, móvelou não, implica a existência de um espaço fora de campo que é preciso tomar emconsideração. (N. Org.)

Havia mesmo um paralelo com a- conclusão irónica de A Opinião Pública(Chaplin, 1923) no fim original previsto para a Linha Geral. A propósito, este é umfilme único quanto ao número de referências (tanto na história como no estilo)a outros filmes: a sequência do «pilar da indústria» constrói jocosamente a tuasátira a partir de um episódio semelhante mas sério de O Fim de S. Petersburgo dePudovkin; o triunfo final do tractor é uma enfatuada paródia de um Western. AtéAs Três Vidas (1923) de Buster Keaton foi conscientemente reflectido na estruturaoriginal de A .Linha Geral. (N. da ed. inglesa, de Jay Leyda).

s Casimir Malevitch (1878-1935)---pintor tusso, fundador do suprematismo queele próprio definiu como sendo «a supremacia do sentimento e da percepção puranas artes pictóricas, ou seja, a experiência da não objectividade.» Eisenstein discordade algumas trivialidades que o pintor terá pronunciado sobre as limitações fotográ-ficas e naturalistas do cinema. (N. Org.)

V. I. Lenin, Filosofskiye tetradi. [Em particular os Cadernos sabre a dia-léctica de Hegel.]

1° Parte desta sequência foi omitida das cópias americanas, cujo título — emvez de Outubro— é Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, uma vez que o filme,no essencial, se baseia no livro homónimo de John Reed, com várias edições emportuguês. (N. Org.)

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OBSERVAÇÕES SOBRE O PLANO-SEQUÊNCIA

PIER PAOLO PASOLINI

Observemos o pequeno filme em dezasseis milímetros que um espec-tador, por entre a muItidão, rodou sobre a morte de Kennedy. Trata-sede um plano-sequência; e é o mais característico plano-sequência possível.

O espectador-operador, de facto, não realizou quaisquer escolhas deângulos visuais: filmou simplesmente do lugar onde se encontrava, focandono plano a que o seu olhar — mais do que a objectiva — via.

O plano-sequência típico é, por conseguinte, uma «subjectiva»'.No filme possível sobre a morte de Kennedy faltam todos os outros

ângulos visuais: o do próprio Kennedy, o de Jacqueline, o do assassinoque disparava, o dos cúmplices, o dos outros presentes melhor colocados,o dos polícias da escolta, etc., etc.

Supondo que possuíamos pequenos filmes rodados de todos estesângulos visuais, de que coisa estaríamos em posse? De uma série de planos--sequência que reproduziriam ss coisas e as acções reais do momento emcausa, vistas simultaneamente de diversos ângulos visuais: quer dizer, atra-vés de uma série de «subjectivas». A subjectiva é, portanto, o Iimite realistamáximo de qualquer técnica audiovisual. Não é concebível «ver e ouvir»a realidade no seu acontecer sucessivo sendo de um único ángrdo visualde cada vez: e este ângulo visual é sempre o de um sujeito que vê e ouve.Este sujeito é um sujeito em carne e osso, porque ainda que nós, num

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ES ETICAS DO CINEMA

filme de ficção, escolhamos um ponto de vista ideal, e por isso de certomodo abstracto e não naturalista, mesmo esse ponto de vista se tornarárealista, e, no limite, naturalista, no instante em que a partir dele colo-camos em campo uma câmara e um magnetofone: o resultado será algode visto e de ouvido por um sujeito em carne e osso (isto é: com olhose ouvidos).

Ora, a realidade vista e ouvida no seu acontecer é sempre no tempopresente.

O tempo do plano-sequência, entendido como elemento esquemáticoe primordial do cinema, — ou seja: como um plano subjectivo infinito —é assim o presente. O cinema, por consequência, «reproduz o presente.»A filmagem em directo da televisão é uma reprodução paradigmáticade alguma coisa que está a acontecer.

Suponhamos então que possuímos não só um pequeno filme sobrea morte de Kennedy, mas uma dúzia de filmes análogos, todos eles planos--sequência reproduzindo subjectivamente o presente da morte do presi-dente. No próprio momento em que nós, que mais não seja por razõespuramente de documentação (por exempla, numa sala de projecção dapolícia que avança com as suas investigações) víssemos de seguida todosestes planos-sequência subjectivos, que coisa estaríamos a fazer? Esta-ríamos a proceder a uma espécie de montagem, embora extremamenteelementar. E que obteríamos com essa montagem? Obteríamos uma mul-tiplicaçáo de «presentes», como se urna acção em vez de se desenrolaruma única vez diante dos nossos olhos se desenrolasse várias vezes. Estamultiplicação de «presentes» abole, na realidade, o presente, esvazia-o,postulando cada um dos presentes a relatividade do outro, o seu imprevisto,a sua imprecisão, a sua ambiguidade.

Observando em função de uma investigação de polícia — interes-sada o menos possível por qualquer facto estético, e muito interessada,pelo contrário, pelo valor de documentário dos filmes projectados comotestemunhos oculares de um facto real a reconstruir com toda a exacti-dão — a primeira pergunta que faríamos é a seguinte: qual destes filmesme representa com maior aproximação a realidade real dos factos? Foramtantos os pobres olhos e ouvidos (ou câmaras e magnetofones) perante osquais passou um capítulo irreversível da realidade, que se apresentou acada conjunto destes órgãos naturais ou destes instrumentos técnicos de

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OBSERVAÇÕES SOBRE O PLANO-SEQUÊNCIA

um modo diferente (campo, contracampo, plano de conjunto, plano ame-ricano, primeiro plano, e todos os outros ângulos possíveis): ora, cadaum destes modos pelos quais a realidade se apresentou é extremamentepobre, aleatório, quase digno de dó, quando pensamos que cada um delesé apenas um, enquanto são tantos —sem fim tantos — os demais.

A partir de todos estes modos é evidente que a realidade, com todasas suas faces, se expressou: disse alguma coisa a quem estava presente(quem estava presente fazendo parte: PORQUE A REALIDADE NÃOFALA COM OUTRAS COISAS SENÃO CONSIGO PRÓPRIA): dissealguma coisa com a sua linguagem, que é a linguagem da acção (integrandoas linguagens humanas simbólicas e convencionais): um tiro de espingarda,mais tiros de espingarda, um corpo que se abate, um motor de automóvelque pára, uma mulher que grita aos uivos, muitas pessoas que gritam...Todos estes signos não simbólicos dizem que aconteceu alguma coisa:a morte de um presidente, agora e aqui, no presente. E este presenteé, repito-o, o tempo das várias subjectividades enquanto planos-sequência,operados dos vários ângulos visuais onde o destino colocou testemunhas,com os seus órgãos naturais ou os seus instrumentos técnicos incompletos.

A linguagem da acção é, portanto, a linguagem dos signos não sim-bólicos do tempo presente, e, no presente, todavia, não há sentido, ou,se o há, é subjectivamente, de um modo por isso incompleto, incerto emisterioso. Kennedy, morrendo, expressou-se através da sua acção extrema:a de se abater e de morrer, no assento de um automóvel presidencial pin-tado de negro, entre os braços débeis de uma pequeno-burguesa americana.

Mas esta extrema linguagem da acção com que Kennedy se expressouperante vários espectadores permanece, no presente —'em que é percep-cionada pelos sentidos e filmada, o que vem a ser a mesma coisa —,suspensa e irrelativa. Como todo o momenta da Iinguagem da acção,é uma busca. Busca de quê? De uma sistematização relativamente a siprópria e ao mundo objectivo e, por conseguinte, uma busca 1 de relaçãocom todas as outras linguagens da acção através de que os outros ao mesmotempo se expressam. Na circunstância, os aíltimos sintagmas vivos deKennedy buscavam uma relação com os sintagmas vivos dos que nessemomento se expressavam, vivendo, à sua volta. Por exemplo, os do seuassassin o' , ou os dos seus assassinos, que disparava ou disparavam.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

Enquanto estes sintagmas vivos não forem postos em relação entreeles, tanto a linguagem da ultima acção de Kennedy como a linguagemda acção dos assassinos, são linguagens truncadas e incompletas, pratica-mente incompreensíveis. Que deverá então acontecer para que elas setornem completas e compreensíveis? Que as relações que precisamenteprocuram, quase tacteando e balbuciando, possam ser enfim estabelecidas.Mas não através de uma simples multiplicação de presentes — como ateríamos se justapuséssemos os diversos planos subjectivos —, pelo con-trário: só através da respectiva coordenação de planos. A sua coordenaçãonão se limita efectivamente, ao contrário do que se passa na justaposição,a destruir e a esvaziar o conceito de presente (como na hipotética pro-jecção de vários pequenos filmes, passados uns a seguir aos outros nosgabinetes do FBI), mas a tornar o presente passado.

Somente os factos acontecidos e acabados são coordenáveis entre si,e portanto adquirem um sentido (como tentarei mostrar melhor adiante).

Agora façamos ainda outra, suposição: a de que entre os investi-gadores que viram os vários, e infelizmente hipotéticos, pequenos filmes,uns a seguir aos outros, se encontre um espírito de análise genial.

O seu génio não poderia consistir senão no aspecto da coordenação.Intuindo a verdade — por análise atenta dos vários fragmentos... natu-ralistas, formados pelos vários pequenos filmes — estaria à altura de areconstituir, e como? Escolhendo os momentos verdadeiramente significa-tivos dos vários planos-sequência subjectivos, e descobrindo, por isso, asua ordem de sucessão real. Tratar-se-ia, em palavras pobres, de umamontagem. A seguir a este trabalho de escolha e de coordenação, os váriosângulos visuais dissolver-se-iam, e a subjectividade, existencial, daria Lugarà objectividade; já não haveria os pares comoventes de olhos-ouvidos(ou de câmaras-magnetofones) captando e reproduzindo a realidade fugidiae pouco dócil, mas em seu lugar surgiria agora um narrador. Esse narradortransforma o presente em passado.

Daqui resulta que: o cinema (ou melhor, a técnica audiovisual) ésubstancialmente um plano-sequência infinito, como exactamente o é arealidade perante os nossos olhos e ouvidos, durante todo o tempo emque nos encontramos em condições de ver e de ouvir (um plano-sequênciasubjectivo infinito que acaba com o fim da nossa vida): e este plano--sequência, em seguida, não é mais do que a reprodução (coma já repeti

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OBSERVAÇÕES SOBRE -. O PLANO-SEQUÊNCIA

várias vezes) da linguagem da realidade: por outras palavras, é a repro-dução do preesente.

Mas a partir do momento em que intervém a montagem, ou seja:quando se passa do cinema ao filme (cinema e filme que são, por conse-guinte, duas coisas muito diferentes, como a langue é diferente da parole:2,sucede que o presente se torna passado (houve, quer dizer, entretanto,coordenações entre as várias linguagens vivas): um passado que, porrazões imanentes ao meio cinematográfico, e não por escolha estética,tem sempre o modo do presente (e é por isso . una presente histórico).

Chegado a este ponto tenho que dizer o que penso da morte (edeixo livres os leitores de se interrogarem sobre o que terá isso a vercom o cinema). Tenho dito várias vezes, e todas elas mal, infelizmente,que a realidade tem urna linguagem sua — exactamente: urna linguagem —que, para ser descrita, precisa de uma Semiologia Geral, que por enquantonos falta, até simplesmente como noção (os semiólogos observam sempreobjectos distintos e bem definidos, ou seja: as várias linguagens, signicasou não, existentes; não descobriram ainda que a semiologia é a ciênciadescritiva da realidade) .

Esta linguagem — já o disse, e sempre mal como vimos — coincide,aio que se refere ao homem com a acção animal. O homem expressa-seaqui sobretudo através da sua acção — a não entender numa acepçãomeramente pragmática ---- porque é com ela que modifica a realidade eactua sobre o espírito. Mas esta sua acção tem falta de unidade, querdizer de sentido, enquanto não se encontra concluzda. Enquanto Lenineestava vivo, a linguagem da sua acção era ainda em parte indecifrável,porque permanecia ainda em estado de possibilidade, e era assim modifi-cável por eventuais acções futuras. Em suma, enquanto tem futuro, ouseja uma incógnita, um homem permanece por expressar. Pode acontecerque um homem honesto, com sessenta anos, cometa um crime: esta acçãocondenável modifica todas as suas acções passadas, e ele mostra-se dora-vante diferente do que sempre foi. Enquanto eu não morrer, ninguémpoderá garantir conhecer-me deveras, ou seja: poder dar um sentido àminha acção, que, por isso mesmo, enquanto momento linguístico, perma-nece mal decifrável.

É assim absolutamente necessário morrer, porque enquanto estamosvivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida (com que nos expres-

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ESTÉTICAS DO CINEMA

samos e a que, por conseguinte, atribuímos a máxima importância) éintraduzível: um caos de possibilidades, uma busca de relações e de signi-ficados sem solução de continuidade. A morte realiza uma montagemfulminante da nossa vida: ou seja escolhe os seus momentos verdadeira-mente significativos (e doravante já não modificáveis por outros possíveismomentos contrários ou incoerentes, e coloca-os em sucessão, fazendo donosso presente, infinito, instável e incerto, e por isso não descritivel lin-guisticamente, um passado claro, estável e certo, e por isso bem descritivellinguisticamente (no âmbito precisamente de uma Semiologia Geral). Sógraças à morte, a nossa vida nos serve para nos expressarmos.

A montagem trabalha deste modo sobre os materiais do filme (queë constituído de fragmentos, longuíssimos ou infinitesimais, de um grandenúmero, como vimos, de planos-sequência e de planos subjectivos infinitos)tal como a morte opera sobre a vida.

[1967]

NOTAS

' 0 termo, no original, é ricerca, cuja significação oscila entre a das palavrasportuguesas «busca» e «investigação», ou as recobre, de certo modo, a ambas. (N. T.)

= Ver nota 8 no texto de Dyan. (N. Org.)

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DOIS TIPOS DE TEORIA DO FILME

BRIAN HENDÈRSON

Os filósofos consideram frequentemente útil classificar as teoriasdebruçando-se sobre um problema de acordo com um esquema tipológico.Em «Five Types of Ethical Theory», C. D. Broad refere Spinoza, Butler,Hume, Kant e Sidwick não só como teóricos morais mas também comoexemplos de estudos básicos do assunto. Num capítulo final, Broad incluiestas e outras teorias, reais e potenciais, num esquema compreensivo eclassificado. Similarmente, Ogden, Richards e Wood em «The Foundationsos Aesthetics» avançaram com um esboço esquemático das principais apro-ximações à estética. Não é difícil de ver por que razão estes esquemassão úteis. Para já, introduzem ordem na quantidade de teorias normalmenteincontrolável em campos como a ética e a estética. Contudo, de forma atornar-se útil uma classificação deve também ser exacta, e isto significaque uma grande tipologia de teorias comporta um bom número de análises.Antes de se dizer que duas ou mais teorias são fundamentalmente --- nãosó aparentemente ---- semelhantes ou diferentes neste ou naquele aspecto,já se deve ter penetrado até ao fundo da teoria, até às suas premissase pressupostos generativos. Também se deve saber intimamente como éque a teoria chega às suas conclusões e aplicações sem se deixar iludirpor estas últimas. Este trabalho analítico, bem como o esgúema de clas-sificação que é o seu complemento, são no fundo úteis à crítica e à ava-

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liação das próprias teorias, preparando o caminho para um novo trabalhoteórico.

Uma classificação das teorias fílmicas baseia-se em pressupostos dife-rentes dos utilizados em disciplinas mais desenvolvidas. Embora os esque-mas tipológicos de ética e estética vão aumentando numa abundância deteorias, uma classificação das teorias fílmicas enfrenta uma exiguidade deposições e o facto de a maior parte das possíveis abordagens do assuntonão ter sido explorada. Além disso, embora as classificações das teoriasfilosóficas normalmente não incluam fragmentos ou esboços de teorias,mas simplesmente abordagens completas do tema, é possível que nuncatenha existido uma teoria filmica completa.

O subdesenvolvimento da teoria fílmica, con tudo, pode perfeitamenteconstituir uma razão para um trabalho analítico mais específico, incluindoum esquema de classificação das principais perspectivas existentes. Tam-bém é incontestável que é necessário um novo trabalho teórico: o desen-volvimento do cinema desde os fins dos anos cinquenta está muito paraalém das capacidades explicativas das teorias filmicas clássicas. Ou osnovos desenvolvimentos são vistos em termos antiquados ou — maisfrequentemente— a tentativa para se chegar a um conhecimento teóriconão foi feita.

A revisão critica cuidadosa de teorias mais antigas é parte do trabalhopreparatório necessário para a formulação de novas teorias. Tal como aarte do filme é estimulada pela pesquisa do trabalho do passado, tambéma teoria do filme pode ser estimulada pela . pesquisa do pensamento dopassado. As limitações e fraquezas das velhas teorias indicam caminhosa serem evitados, tal como os seus êxitos revelam, cumulativamente, osproblemas e as doutrinas' que uma nova teoria deve levar em conta.

As principais teorias fílmicas existentes são de dois tipos: teoriasda relação da parte com o todo e teorias da relação com o reaI'. Comoexemplos das primeiras, temos as de Eisenstein e as de Pudcvkin, quetratam das relações entre as partes e os conjuntos cinematográficos; comoexemplos das segundas temos as de Bazin e as de Kracauer, que tratamda relação da realidade com o cinema. O nosso exame destes dois tiposde teorias limitar-se-á a Eisenstein e Bazin. Estas foram as teorias fíl-micas mais influentes, manifestamente as melhores, e — no essencial —são provavelmente as mais . completas. Também representam as teorias

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mais próximas dos filmes concretos e baseiam-se no mais completo conhe-cimento da história do cinema. A proximidade das teorias com qualquerassunto não é garantia que sejam as melhores; nos casos de Eisensteine de Bazin, contudo, assegurou-lhes que as preocupações teóricas de cadaum fossem, na maior parte dos casos, as mesmas do próprio cinema.

O fulcro deste artigo não recai tanto na verdade ou na falsidadedas teorias em discussão mas nas teorias em si mesmo. Pretende examinarnão propriamente a relação das teorias com o cinema mas a sua operacio-nalidade como teorias. Assim, para além da nossa tipologia das teorias,reside uma gama mais Iarga de questões: O que é uma teoria do cinema?Quais são as suas principais características? O que pretende explicar?

Tanto para Eisenstein como para Bazin a realidade é o ponto departida. Uma das principais diferenças entre ambos consiste em queEisenstein vai para além do real e das relações do cinema com o real,e isto não acontece com Bazin. Claro está que é de primordial impor-tância determinar com o maior rigor o que para cada um significava oreal: uma vez que este termo é o fundamento teórico para ambos, tambémdetermina, de certo modo, tudo o que vem a seguir. No entanto, nenhumdos teóricos em questão define o real nem desenvolve qualquer doutrinasobre ele. Até certo ponto; em ambos, a teoria resultante é construfdasobre um fundamento que, em si próprio, é desconhecido. No que respeitaàs relações do cinema com o real, tanto Eisenstein como Bazin são bastantemais daros.

Para Eisenstein, como para Pudovkin e Malraux, os fragmentos deum filme por montar não são mais do que reproduções mecânicas darealidade; como tal não podem ser considerados arte. Só quando os frag-mentos são devidamente articulados em padrões de montagem é que ofilme se torna arte. Eisenstein defende repetidamente esta doutrina, talvezmais sucintamente nas formulações seguintes:

«Primeiro:. registam-se fragmentos • fotográficos da natureza; segundo:

estes fragmentos são combinados de diversas formas. Portanto, o plano(ou quadro) e depois a montagem.

A fotografia é um sistema de reprodução para fixar acontecimentosreais e elementos do presente. Estas reproduções, ou foto-reflexos, podemser combinados de diversas formas.» (Film Form, p. 3) 2

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«O plano, considerado como material de composição é mais resistenteque -o granito. E uma resistência específica. A tendência do plano cine-matográfico para a imutabilidade factual completa está enraizada na suanatureza. Esta resistência tem determinado largamente a riqueza e a varie-dade das formas e estilos da montagem — porque a montagem torna-seno meio mais poderoso para uma concepção criativa, verdadeiramenteimportante, da natureza.» (Film Form, p. 5)

Mais adiante Eisenstein fala em «combinar estes fragmentos da reali-dade.:, em conceitos de montagem» (Film Form, p. 5).

Definir desta forma a arte cinematográfica implica a rejeição dosfragmentos não montados do filme, aquilo a que poderíamos chamarplano-sequência como não sendo arte; é precisamente o que faz Eisenstein.Refere-se:

«... Ao período' pré-histórico nos filmes (embora haja igualmenteimensos- exemplos nos 'filmes 'actuais [1927j, quando cenas inteiras eramfotografadas duma só vez, num único plano. No entanto, isto está forada estrita jurisdição da forma fílmica.» (Film Form, pp. 38-39)

«Em 1924-25 ponderava a ideia do retrato fílmico do homem real.Por essa altura, prevalecia a tendência em mostrar o homem real só emfilmes de cenas dramáticas, rodadas num único plano, sem recurso à mon-tagem. Pensava-se que os cortes da montagem iriam destruir a ideia dohomem. Abram Romm estabeleceu um recorde quando no filme The DeathShip filmou cenas inteiras num só plano e sem montagem urili7ando40 metros ou 135 pés de película. Considerei (e continuo a considerar)tal conceito totalmente antifílmico. [40 metros _ aprox. 2 1/2 min. ávelocidade do filme mudo].» (Film Form, p. 59)

Enquanto que Eisenstein só menciona o real precipitando-se emseguida para outros assuntos, Bazin discute detalhadamente a relação docinema com . o real. Contudo, tal como Eisenstein, Bazin não avança umateoria do real nem o define. Mesmo a sua teoria da relação do cinemacom o real é exposta não explicitamente mas através de uma série demetáforas, cada uma delas implicando uma teoria levemente diferente.Analisando a aplicação da sua teoria, no ensaio «A Evolução da Lingua-gem Cinematográfica», percebemos com mais clareza as definições meta-fóricas de Bazin. Ao aplicar a sua teoria á história do cinema, Bazincompara entre «os realizadores que acreditam na imagem» e «aqueles que

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DOIS TIPOS DE TEORIA DO FILME

acreditam na realidade.» Os 'realizadores da imagem realçam o objectorepresentado através de técnicas de montagem e/ou distorções plásticas(iluminação, cenários, etc). Um realizador «da realidade», tal como Mur-nau, «lutou por fazer sobressair a estrutura mais profunda da realidade»e «não lhe acrescenta nada, para não a deformar.» Este estilo pressupõe,parafraseando Bazin, um «auto-anulamento perante a realidade.» Ao defen-der o piano em profundidade de campo, Bazin diz: «A relação do espec-tador com a imagem está mais próxima desta do que estava com arealidade.» Mais adiante Bazin refere-se à «realidade suplementar» dosom e, mais em geral, à «vocação realista do cinema.» Em Ontologia daImagem Fotográfica', o que 'está em questão não é a natureza ou a reali-dade, mas a imagem em si mesma. Bazin investiga a natureza da imageme descobre que a imagem partilha ou participa do real. O modo precisodesta participação é ensaiado por Bazin sob diversas fórmulas:

«A moldagem das máscaras mortuárias apresenta também um certoautomatismo na reprodução. Neste sentido, podia-se considerar a fotografiacomo uma moldagem, um registo das impressões do objecto por inter-médio da luz.»

«A imagem fotográfica assemelha-se a uma espécie de decalque outransferência.»

«Gostaríamos de observar, de passagem, que o Santo Sudário deTurim, realiza a síntese entre a reliquia e a fotografia.»

«A existência do objecto fotografado participa da existência do modelocomo de uma impressão digital.»

«A fotografia e o objecto em si próprio partilham de uma existênciacomum» — Bazin nunca esclarece muito bem o que quer dizer com isto,contudo dá ao conceito algumas variantes:

«S6 a objectiva fotográfica nos dá do objecto uma imagem capazde despertar do fundo do nosso inconsciente esta necessidade de substituiro objecto por algo melhor do que um decalque aproximado: o próprioobjecto, liberto das contingências temporais. A imagem pode ser nebulosa,deformada, desfocada, sem cor, sem valor documental, mas ela provém,através da sua génese, da ontologia do modelo; ela é o modelo.»

«Apesar das objecções que o nosso espirito critico possa oferecer,somos forçados a acreditar ná existência do objecto representado, na ver-dade reapresentado, ou seja, tornado presente no tempo e no espaço.

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ESTATICAS DO `CIhTEMA .

A fotografia beneficia de uma transferência de realidade da coisa paraa sua reprodução.»

«A fotografia afecta-nos como um fenômeno natural, como uma florou um cristal de neve cuja beleza é inseparável das suas origens vegetaisou telúricas.»

Bazin limita a sua doutrina reformulando a discussão em termos dapsicologia da fotografia, mais como reagimos a ela do que (estritamente)à natureza da sua imagem; mas Bazin não se fica por aqui — o título doensaio é afinal revelador. Embora ele às vezes pareça fazer isso, Bazinnunca identifica o objecto com a imagem. Enquanto Eisenstein parecefundi-los (os fragmentos do filme são, em si, «fragmentos de realidade»)Bazin Mantém-nos separados, embora crie uma certa dependência da ima-gem sobre e sob o real — não só na sua criação como através da suaexistência. Por outro lado, para Eisenstein, a relação ou a identidade dósfragmentos do filme com a realidade é inviável: este vinculo é criado oudissolvido quando o fragmento sè combina com outros fragmentos nassequências de montagem.

Para Eisenstein, a única forma dos fragmentos do filme poderemultrapassar o seu estatuto «não fílmico», enquanto. meros «fragmentos darealidade», é pela sua combinação em padrões de montagem. Só atravésdesta relação é que a realidade filmada se torna arte. Assim, muitos dosescritos teóricos de Eisenstein são devotados às várias formas e métodosda associaçãó de 'montagem. Dedica consideravelmente menos atenção àsvárias espécies de unidades artísticas — maiores do que o plano, meno-rés do que o filme todo — que estas associações de montagem formamou 'constituem. Que espécie de unidade constitui a articulação da mon-tagem? A palavra que Eisenstein habitualmente usa para esta entidadeformal intermediária é a sequência, mas nunca desenvolve uma doutrinada seqüência nem discute a sequência como tal; na realidade parece ignórá-lacómò uma categoria no contexto da sua teoria do filme. Entra como quepela porta das traseiras, pelo desejo de encontrar um melhor termo / con-ceito; embora Eisenstein por vezes use a sequência como um termo comsignificado aceite e de uso comum. Aparece num ensaio anterior, «A QuartaDimensão Filmica» 4, no qual a sequência é sublinhada como se fosseum termo técnico, e em seguida, sem definição, desliza rapidamente parao discurso e é usada continuamente (neste e noutros ensaios). A sequência,

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ou seja, a sequência de montagem, é de facto uma categoria cen tral naestética de Eisenstein, embora não chegue a ser analisada. Por vezesEisenstein discute métodos de montagem, e outras categorias relacionadas,sem se referir sequência; como se os filmes fossem inteiramente cons-truidos a partir da montagem. Ë certo que isto não é verdade, bastavermos um filme de Eisenstein: cada um dos seus filmes provém deblocos ou segmentos narrativos, cada um dos quais é composto por umaou mais sequências de montagem. De facto, quando Eisenstein discuteos seus próprios filmes também cai frequentemente neste tipo de termi-nologia, referindo-se ã «sequência do nevoeiro» em Potemkin, á «sequên-cia dos deuses». em Outubro, etc. Por vezes usa frases alternativas, taiscomo «uma composição de montagem completamente realizada», «umasecção de filme», como sinónimo para a sequência, embora o seu conceitoestrutural e a sua indeterminação permaneçam iguais.

O curto ensaio de Eisenstein «A Unidade Orgânica e o Patético naComposição do Couraçado Potemkin» 5 cria dificuldades adicionais a res-peito da sequência e das unidades formais intermediárias entre o planoe a totalidade do filme.

Eisenstein oferece urna análise elaborada de Potemkin como umatragédia em cinco actos, incluindo a retórica clássica como a cesura, aconstrução em tempos fortes, etc. O facto de Eisenstein dividir o filmeem actos deixa claro que estes são compostos de diversos subaconteci-mentos ou sequências. Pareceria, pois, que os planos — organizados emvários padrões de montagem — compõem sequências e as sequências, porseu turno, compõem partes maiores ou actos; e a combinação destescompõe o filme inteiro. A estas entidades formais intermédias Eisensteinnão dedica quase nenhuma atenção analítica.

É da maior importãncia que a crítica de . Bazin acerca da montagemseja . de facto uma critica da sequência de montagem; e que a alternativapara a montagem, com que ele avança, seja consequentemente outro tipode sequência. Bazin refere-se aos cineastas da montagem como dissolvendo«o acontecimento» . e substituindo-o por outro, que é uma realidade sintética..

• «Kuleskov, Eisenstein e Gane- não mostram o acontecimento atravésda montagem; fazem alusão a ele... A substãncia da narrativa, seja qualfor o realismo dos planos isolados, surge essencialmente das relações de

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ÉSTETICAS DO CINEMA

montagem; isto significa que existe um resultado abstracto cujas premissasnenhum dos elementos concretos comporta.»

Falando de Flaherty, Bazin diz:«A câmara não pode ver tudo ao mesmo tempo, mas ao menos tenta

não -falhar nada do que escolheu fixar. Para FIaherty, o importante amostrar quando Nanook caça a foca é a relação entre o homem e o animal,o tempo real de espera. A montagem poderia ter sugerido a passagemdo tempo; Flaherty contenta-se em mostrar a espera, e a duração da caçatorna-se a verdadeira substância e o objecto da imagem. No filme, esteepisódio consiste num üriico plano. Poderá alguém negar que desta formaé muito mais comovente do que a montagem de atracções poderia fazer?»

De igual modo, no - que respeita a Orson Welles, Bazin defende asubstituição da montagem pelo plano-sequência.

«É evidente, para quem saiba ver, que os planos-sequência de WeIlesem O Quarto Mandamento (1942) não são de modo algum o registopassivo duma acção fotografada no interior do mesmo enquadramentomas que, pelo contrário, a recusa em fragmentar o acontecimento, a insis-tência em analisar no tempo as reverberações dramáticas é uma operaçãopositiva cujo efeito é superior àquele que poderia ter obtido com a pla-nificação clássica.»

Nestas passagens Bazin idealiza o plano-sequência mas não insistenele. O plano-sequência é a perfeição da tendência ou do estilo dos longosplanos cinematográficos, mas existem outras possibilidades. Por exemplo,Bazin defende o uso que William Wyler faz de uma inserção repetidade planos de pormenor a meio de um plano-sequência (em Os MelhoresAnos da Nossa Vida, (1946) como uma espécie de «ênfase» dramático.(Estou em desacordo: os valores fundamentais do plano-sequência per-dem-se ou empobrecem-se com tais interrupções / inserções). Bazin nãodiscute uma variante usual do plano-sequência — o uso de dois ou maisplanos longos para completarem uma sequência. A forma como os planossão utilizados, particularmente a forma como estão interligados, apresentaproblemas teóricos bastante interessantes. Ta ls considerações pertencema uma estética abrangente da sequência e do filme como um todo — algoque nem Eisenstein nem Bazin providenciaram. Quer dizer, tais proble-mas levam-nos para além do presente, para o reino de uma nova teoriaf imica.

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A sequência é o máximo a, que, ambos os; teóricos _chegam na dis-cussão das formas cinematográficas. A teoria fílmica de ambos é de factouma teoria da sequência. Nem Eisenstein nem Bazin propõem urna esté-tica completa, mesmo que seja uma estética da sequência. O problemada organização formal dos filmes num todo, ou seja, da-elaboração , daarte filmica, não é encarada por nenhum deles. Trata-se da limitação-maisséria de ambas as teorias.. Quer 'Eisenstein quer Bazin . fazem ligeirasreferências a filmes inteiros e Eisenstein tem um curto ensaio sobre eles,mas — o é crucial — ambos discutem o problema global em termosliterários e não em termos. cinematográficos. Portanto, Potemkin comouma'.tragédia..Bazin, mais acidentalmente, fala dos géneros cinenïatográ=ficos tais como os Westerns, os filmes de gangsters, os filmes de terror,etc., são os géneros que governam o . filme como totalidade e . determinama natureza da sequência que, por seu turno, requer um certo tratam_ entoespecífico.

E neste ponto que . começa a teoria f íimica . de Bazin. Bazin tem ideiasconcretas no que diz respeito a forma como a sequência, enquanto tal,poderia, ser idealmente tratada ou realizada.. A teoria dos 'géneros no cinema—hasta considerar o género mais antigo da tragédia tem sem dúvidaorigens literárias. Vejamos, a importância deste exemplo: . depois das maisdetalhadas. discussões técnicas acerca' do . plano e.da sequência em ,ter-mos puramente . cinematográficos — ambos os teóricos voltam-se para osmodelos literários para darem resposta à derradeira. questão (e provavel-velmente a mais importante) da teoria filmica: a organização formal dopróprio filme como, um ,todo, do filme como filme. De facto, as respostasque Eisenstein: e Bazin dão evitam esta questão em ,vez : , de lhe daremresposta. As: suas soluções, em termos de modelos ,literários ,(pré-cinema-tográficos)., são um fracasso na formulação .do problema. -

O que acima foi exposto levanta o difícil . :problema da, narrativa eda sua relação com a forma do filme. Sem rodeios, é possível analisar ocinema de ambas as perspectivas, . a formal 'ou , a narrativa. Isto _ significaque-podemos considerar. cada uma das categorias — o plano, a sequência,o filme como um todo— em termo, : de :narrativa (por ;vezes presente)ou em termos de forma cinematográfica; (sempre presente) ou em ambosos, termos. Eisenstein . e Bazin discutem o :plano e a sequência, :primor,dialmente ;como formas cinematográficas e-não . narrativas._ Não -sé torna

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ESTRTICAS DO CINEMA

evidente porque deveria então a narrativa surgir como a categoria centralou única da análise ao nível do filme como um todo quando não cons-titui uma categoria importante a níveis inferiores.• Com efeito, Eisenstein e Bazin mudam subtilmente de ponto devista a este nível; voltam-se" para outro problema como se fosse a conti-nuação do seu problema inicial. Consideram o piano e a sequência emtermos de forma cinematográfica e depois o filme como um todo emtermos de modelos literários e fazem no como • se tratassem dum únicoproblema do principio ao fim. Escrevem como se as partes formais fossemo acrescento ou constituissem um todo narrativo. De facto, isto não estálonge do ponto de vista tradicional: a forma cinematográfica concretizadano plano e na sequência serve a história e o seu conteúdo.

'Temo-nos preocupado fundamentalmente em resumir as teorias emquestão; é tempo de as analisar. Incidimos agora na forma como as teoriasse combinam, como agem como teorias, quais são as suas dinâmicas inter-nas. A nossa investigação apontará, entre outras;para as seguintes questões:Qual é a causa do fracasso de Eisenstein e de Bazin ao considerarem aorganização formal dos filmes como um todo? Estará intimamente deter-minada pelas premissas de cada uma das teorias? De que forma cadauma delas define o cinema como arte? Quais as relações em cada teoriaentre os dois termos essenciais do cinema (como arte) e o real? De queforma o real afecta ou condiciona o filme como arte e como é que o filmecomo arte se relaciona com o real?

Ambas as teorias começam pelo real; a partir • deste ponto comumdivergem acentuadamente. A escolha ou mudança que cada teoria faz par a.

além deste ponto é crucial para o• seu inteiro desenvolvimento. Como jánotei, Eisenstein rompe com o real de forma a tornar o filme em arte.É a montagem, a articulação de fragmentos do filme, que os transformade «fragmentos de realidade» em arte. Existe aqui um problema lógicoou ontológico, ou uma lacuna: o real, por um lado, e o trabalho fdmicoterminado, por outro lado, só com uma ligação analógica entre eles. Parasuprir esta lacuna Eisenstein realça continuamente que a montagem cons-titui (ou implica) uma alteração qualitativa do próprio fragmento do filme.«O resultado distingue-se qualitativamente de cada elemento componentevisto em separado», «o todo é algo mais do que a soma das partes»(Film Sense, p. 8). Para conseguir transformar ó mesmo material de não-

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-arte em arte, a montagem teve de adquirir poderes mágicos, quase alqui-micas. Indubitavelmente, Eisenstein deixa-se levar, neste ponto, pelamistificação. O problema poderia ser evitado se Eisenstein admitisse queos fragmentos de filme não montados são já, ou podem vir a ser emcertas circunstâncias, arte, ainda que arte menor. Mas é isto que Eisensteinnão pode aceitar. Se o plano não cortado pudesse ser arte, então a mon-tagem não seria necessária — e o estilo adoptado pelo plano-sequênciatambém poderia ser considerado arte. Eisenstein deve fazer da montagemo único sentido da arte filnrica — é esta a estratégia da sua teoria. Poroutras palavras, Eisenstein não se contenta em aceitar a montagem comouma preferência estética pessoal e adianta razões para a sua superioridade;procura fundamentar a sua preferência pela montagem numa ontologia,na natureza das coisas, a fim de assegurar a exclusividade da montagemcomo .arte fílmica. Tal facto conduz Eisenstein a certas outras distorções.Para realçar a montagem tem de secundarizar o plano e as suas possibili-dades artísticas: a composição, a iluminação, a colocação do actor, etc.Eisenstein dificilmente poderá negar a importância destes factores, porisso tenta assimilá-los à sua teoria da montagem, de diversas formas.Assim, o plano é uma célula de montagem; isto é, a unidade menor éexplicada como se fosse a maior. Noutras ocasiões Eisenstein realça a reali-dade não estruturada do plano apelidando-o de «mais resistente que ogranito» e referindo-se à sua «completa imutabilidade factual.» Destemodo Eisenstein relativiza igualmente a preparação e a planificação cui-dada dos planos antes da. filmagem (facto que é evidente nos seus própriosfilmes).

Numa tomada de posição positiva, Eisenstein apercebeu-se acertada-mente que (tendo começado com o real) tinha que quebrar essa ligaçãocom o real . para que o cinema se pudesse tornar uma arte. Na relaçãocom o real, Eisenstein valoriza a montagem. A montagem é uma teoriadas relações . da parte com o todo: diz respeito às relações entre as partescinematográficas e às relações das partes com o todo. Assim, no que dizrespeito à relação do filme com o real, ou seja, ã relação do filme comoutra coisa, Eisenstein substitui a relação com o próprio filme, as relaçõesno interior do filme, o que é a primeira condição para a arte. Falar dasrelações da parte com o todo é falar, de arte. A teoria de Eisenstein éuma teoria estética genuína e uma teoria fílmica genuína porque respeita

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as condições e as exigências . segúndò as - quais o filme- é arte. Ë este, defacto, o fulcro de todos bs escritos teóricos de Eisenstein - ésbóça cons.,tantemente paralelos e ¶diferenças entre 'o cinema e: as . outras artes, taiscomo o teatro, a pintura, a : ficção, etc. A teoria .fdinicá de Eisenstein éuiva teoria em duas instâncias, respeitando a primeira às relações docinema com o real e a segunda às relações do' cinema com o 'cinema.O principal defeito da teoria é que define esta conexão, da primeirapara a segunda instância, da realidade paia 'a' arte, de mil modo dema-siado estrito, limitando-a à doutrina da montagem.

Eis a razão porque Eisenstein .não foi •para além . da sequência.Ein princípio — estando preocupado com.. as relações: dá parte com otcido e com o cinema como arte - deveria tê-lo feito. E ele reconhecesem dúvida esta necessidade, num artigo sobre Potenikin; como tragédia.(O que ele não diz é' que a 'estrutur'a trágica que descreve tem á ver comO filme, ou com o assunto "do filme. Nem nos cànvencé 'que é isso queúnifica o filme e multo' menos explica os sei s. efeitos). 'A resposta à per-gunta deve talvez ser encontrada nò forte intéresse de Eisenstein pelos«efeitos emocionais» dó' cinema, especificamente, sem dúvida, pelos efeitosda montagem; e na sua devoção pela contagem nos seus próprios filmes.Por vezes isto parece — os vários efeitos da 'montagem `no espectador --a categoria central da estet cá de ' 'Eisenstein. Como cineasta e teórico,Eisenstein estava preoéupado, de facto obsecado, com o maior controlopossivel das emoções do espectador. A base da sua atenção concentrasseliteralmente na análise do plano a plano. Ë óbvio que não se pode falardos efeitos com esta precisão no que. diz respeito à totalidade da filme.Não se pode falar de uma única emoção em Potemkin, nem de um únicoprocesso emocional. São demasiados e demasiado complexos, ;mesmo emrelação a qualquer das principais partes do filme. A precisão e o controlode que Eisenstein . fala. surgem a nível -parcelar. Para Eisenstein, a formacinematográfica _significa o controlo preciso das- emoções do espectadore : . isto não pode- ser. concebido ou analisado excepto por períodos relativa-;mente curtos. Eisenstein é fraco na análise' das totalidades. formais devidoao seú , empenhamento nas partes complexas (a sequência) como centraestético e..fulcro teórico, e . devido ao: deu interesse pelo absolutõ controloemocional: a nível : parcelar.

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A teoria de Basin cinge-se a uma única instância. Basin começa como real mas, ao contrário . de Eisenstein, não vai para além • dele; nuncarompe com o . real em nome dá. arte. Tal facto limita seriamente a teoriafílmica de Basin mas de Lima- forma diferente daquela que limita o • pontode partida: de 'Eisennstein; -e tem implicações não menos ambíguas dasque tem á posição de Eisenstein. Pois para Basin, a arte fílmica é com-pleta, está totalmente realizada rio próprio plano cinematográfico: Se oplano mantém uma relação adequada com o real, então é porque já setrata de 'arte. Na verdade, não hi para Basin unidades .ou categorias maiselevadas da forma filmica ou da arte dó filme. O plano não dependé deunidades superiores nem de combinações com outros planos para ter oestatuto de' arte: Basin não vai para além do plano (que também podeser uma sequência)': para . a sua teoria, o plano é o princípio e o fim daarte fílmica. A teoria de , Basin é uma teoria, do plano e daquilo que oplano deve ser.

Basin não tem uma. teoria •dá relação da parte com 'o todo, emborase pudesse concluir.:alguma dás suas discussães acerca do plano e dasequência. Em primeiro lugàr; devemos relembrar que a ligação simplesé a única relação entre os planos que Basin àpròva — não vê com bonsolhos . as técnicas' expressivas da .montagem, ou seja; a relação explícitaentre os . planos. Se o plano individual demonstra fidelidade ao real, pode-mos concluir- que uma série de tais planos, "simplesmente Migados, ..devetambém ser fiel ao real. Basin não está interessado no resultado da somados. planos, nem na relação dessa soma com :o real. A sua posição . pareceser: Ser. fiel ao real em cada plano e o todo' cuidará de si próprio (sendoo todo 'considerado .a mera adição . das:. partes). Ou talvez: Partes fiéisao 'real tinidas entre 'si adicionam-se inevitavelmente numa- totalidade; fiel.Ba'zin -não tem o sentido (nem.. por certo -a doutrina) do conjunto da orga-nização :formal dos filmes. Na verdade, chegamos a pensar que em Basiné' o. real . que. é orgânico, não . a arte . excepto se arte, neste ou noutrospontos, reflecte o. real no seu sentido, derivativo,. tendo, portanto, uniaunidade orgânica reflectida. • Isto é, a arte. fílmica não tem ,uiva formaglobal própria, uma. vez que é a do' próprio :real. Basin tem uma teoriado real, -mas não é .forçoso que' tenha uma 'estética. .

Em -certo sentido a :teQria.de :Basin colide' coai as concepções :e asexperiências prévias. dá 'relação da' parte com: ,o. todo, embora não 'tenha

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ESTÉTICAS DO . CINEMA -

uma doutrina de conjunto entre a parte e o todo. Bazin critica a sequên-cia de montagem e substitui-a pelo plano-sequência. O plano longo substituia sequência de montagem -- uma parte substitui um todo (ou complexo)de partes... Visto diferentemente, o próprio plano-sequência é um todo(a nível de sequência) mas é também uma parte (a nível global de filme).Bazin não considera esta relação da parte com o . todo — a relação ou adisposição de planos-sequência no interior do filme. Nem em Bazin nemem Eisenstein existe qualquer transporte de sequência para sequência ouqualquer relação inter sequências. De igual modo, tal como Eisenstein,Bazin não tem uma teoria dos filmes como totalidade. Bazin disse comoFlaherty deveria filmar (e como filmou, de facto) a sequência da caçaà foca em Nanook (1922), mas não poderia dizer como Flaherty ou qual-quer outro cineasta deveria filmar ou construir filmes inteiros. .

É fácil de ver como a substituição teórica de Bazin do plano-sequênciapela sequência de montagem podia ter levado a uma nova compreensãoda organização formal do trabalho filmico num todo e a novas propostasteóricas. Com centenas de fragmentos de montagem, Eisenstein podiamudar de ponto de vista, sugeria que todo o filme é uma única montagemcontinua, organizado cuidadosamente em cinco actos distintos e separados,e que os fragmentos de montagem compõem as sequências no interior dofilme eno interior de cada um dos «actos»; mas um número relativamentepequeno de planos-sequência atrai a atenção e levanta o problema da suarelação mútua.

Passar da sequência para a tonalidade do filme, por mais simplesque fosse, não era admissivel para Bazin, porque o trabalho filmico vistocomo um todo formal choca com o real ou afasta-se dele, constitui umatotalidade separada e completa. Reconhecerá organização formal do tra-balho filmico como um todo é reconhecer a autonomia da arte, é reconhe-cer a sua natureza como um todo com complexas relações internas.A autonomia do trabalho filmico, o seu estatuto como uma totalidaderival do real, foi para Bazin literalmente impensável. Consequentemente,ele subvalorizaa-qualquer espécie de forma cinematográfica com excepçãoda forma subserviente ao real. Bazin realça que a sequência serve paramanter o cinema numa espécie de infância ou adolescência, sempre depen-dente do real, ou seja, de uma outra ordem que não a sua. O real eraa única totalidade que Bazin podia reconhecer. O seu «auto-anulamento

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perante a realidade» colocou sérias: limitações á complexidadé e às ambi-ções da forma cinematográfica.

A -nossa análise revelou fraquezas internas nas teorias clássicas docinema e, por conseguinte, critica-as implicitamente. Não se trata, contudo,de uma. crítica das teorias em relação aos seus períodos históricos, nemmesmo «em si próprias»; tais considerações seriam irrelevantes para asnecessidades presentes, bem como anacrónicas. Pelo contrário, o nossoobjectivo . é elaborar uma revisão crítica das teorias pela sua relevânciano presente, conduzida a partir de um ponto de vista actual, com a fina-lidade de contribuir para o aparecimento de novos trabalhos teóricos.Salientamos a concepção global dos filmes porque, recentemente, Godardrevelou a possibilidade (e a realização) de novos tipos de conjuntos formaiscinematográficos, bem como novos tipos de organização a nível parcelar.One Plus One. (Godard, 1969) não é urna tragédia nem um Western, 6,sim, uma montagem, ou seja, uma essência puramente cinematográfica,organizada, em termos puramente cinematográficos. (Ë óbvio que certosfilmes posteriores de Godard apresentam casos mais complicados — Ventodo Leste (1969) é um Western, bem como um conjunto formal de som-e-imagem). Nestes filmes (como outros fazem sem dúvida noutros filmes)Godard eleva o cinema a uma organização mais complexa, mais total, eprovavelmente a um estado superior do seu desenvolvimento evolutivo.As teorias filmicas clássicas, pelas razões acima expostas, não podem seremendadas, não podem induir nem dar conta destes trabalhos. Contudo,a comparação com as teorias clássicas é útil — em parte porque são osúnicos modelos que possuimos presentemente, em parte porque tal com-paração revela as influências das teorias mais antigas e possivelmenteaponta na direcção de uma nova teoria. (Fizemos notar que Eisensteindescurou a organização formal do filme como um todo devido ao seuinteresse pelo estrito controlo emocional das reacções do espectador anível parcelar. A liberdade de Godard em criar novos tipos de conjuntosformais deriva em parte de ele renunciar a tal controlo a nível parcelare talvez a quaisquer outros efeitos emocionais planeados. antecipadamente.Não há dúvida que o postulado de um público mais crítico do que passivoo exige. Ë por isso que os últimos filmes de Godard são cada vez maiscerebrais; .ou seja, são organizações mais intelectuais do que emocionais).

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ESTËTICAS DO. CINEMA

Começámos por frisar : a .necessidade de um novo trabalho, teórico.Será que a nossa análise das teorias fílmicas clássicas revela alguma indi-cação das direcções que tal .trabalho deveria tomar? Responder a estapergunta implica ir.. além da análise estrita das próprias teorias, ou seja,a maneira como funcionam como teorias, acrescentando necessariamenteoutras perspectivas, orientações, etc. Se a nossa análise,'foi rigorosa, deveráser adequada a várias posições estéticas, e não só a uma. O que se segue--- as nossas. conclusões acerca das teorias. clássicas encontra-se sepa-rado pela linha que. divide previamente a análise da argumentação. ouda síntese. Parece-me que a tomada em consideração da_ realidade e arelação com a realidade, em Eisenstein e Bazin, no sentido que eles lhesdão, tem.. sido fonte de .sérias confusões "e até .

mesmo

de certo atrasona compreensão . teórica do cinema. Penso que o , período seguinte deesforço teórico. dever-se-ia concentrar na formulação de melhores modelos,teoricamente " mais complexos, das relações das partes com o todo, incluindosimultaneamente , organizações sonoras e estilos visuais; e s6 depois distofeito, ou partindo daqui, avançar para as relações com. a «realidade», masnão no sentido Baziniano ou Eisensteiniano de uma realidade anterior aqual o cinema se. desenvolve. Finalmente, o fulcro da questão deveriaser : alterado da interacção. entre a realidade e á imagem para a interacçãoimagem-espectador, tal como tem sido feito noutras disciplinas críticas,nomeadamente na' aproximação psicoanalítica da arte.

Para prosseguirmos, precisamos de voltar à nossa tipologia das teoriasfílmicas, que pode'ser levada a um nível mais avançado de generalidadee abstracção.' Paia 'além ' da teoria da relação da parte com o. todo 'e darelação com o real, temos de considerar a relação-com-o-próprio' e a relação--com-o-outro, as duas categorias fundamentais segundo ás quais' qualquerobjecto pode ser • analisado. Deste modo, as relações ' da parte coai o todoincluem todas 'as relações possíveis do cinema . consigo próprio, e a relaçãocom o real, ' oú mitra, inclui todas as relações do cinema com 'o que lheé exterior. '(Portanto, os nossos dois tipos de teoria sãó escolhidos menosarbitrariamente do que poderá parecer à primeira vista ou - mais cor-rectamente uma 'vez que são as principais teorias que têrn sido desen-volvidas, o ,seu ' aparecimento e oposição na : história . .do 'pensamentocinematográfico• são. mais fundamentais do .que poderá .párecer). Ao, dizer-mos isto reconhecemos que : não pode haver escolha' entre. elas, . pois . ;são

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as duas categorias ou aspectos fundamentais da questão, não podendonenhuma delas ser ignorada ou suprimida. Mais propriamente, a questãoconsiste em saber de que modo se inter-relacionam as duas teorias. A res-pasta será diferente em diferentes momentos e em diferentes lugares. Emtermos críticos mais usuais, esta questão diz respeito à relação entre críticaintensiva e crítica extensiva.

Relativamente à crítica do cinema e á teoria fílmica (que é, afinalde contas, uma filosofia da crítica ou metacrítica) no presente momenta,parece-me que a crítica extensiva do cinema tem sido bastante mais desen-volvida do que a crítica intensiva. Contudo, este desequilíbrio não implicaqualquer actualização ou equiparação. Uma vez que as duas categorias sãocorrelativas, ou seja, dialecticamente relacionadas, implica que a críticaextensiva, embora favorecida, tem sido falsamente ftindamentada. Pois, oque pode significar a relação com-o-outro quando a relação com-o-próprio,ou a relação da parte com o todo, não é assumida? Referimo-nos aoscríticos que retiram significados sociais (ou morais) de um trabalho filmicoà primeira leitura, sem se darem ao incómodo de reconstruir as suas rela-ções formais. Temos de começar sempre pelo próprio filme. Só quando otrabalho filmico é entendido nas complexas relações consigo próprio éque se podem estabelecer relações de qualquer outro tipo. Se procurarmosanalisar as relações extensivas sem avaliar o próprio trabalho iflmico émuito provável que nos enganemos acerca deste. De qualquer forma nãohá bases para nos julgarmos do lado da razão. Muito mais importante efundamental é não nos esquecermos como é que uma obra de arte podeproduzir significação -- ou manter qualquer relação com algo que lheé exterior --- e como é que ela só existe enquanto totalidade, ou seja,como um processo complexo autónomo. Só uma totalidade pode manterrelações com uma totalidade. Existem dois termos para qualquer relaçãoextensiva: a obra de arte e o seu outro. Concentrando-se nesta relação,os críticos extensivos ignoram ou desprezam frequentemente o primeirodos termos. Uma análise eficaz e completa das relações da pa rte com otodo garante-nos que tal não acontece.

Eisenstein e Bazin representam um caso especial — algo que nãoexistiu nas outras artes (e nas suas criticas) durante muito tempo. Elesprocuram relacionar o cinema com uma realidade anterior, isto é, coma • realidade a partir da qual o cinema se desenvolve e se torna arte. Como

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ESTËTICAS DO CINEMA

vimos, Eisenstein define estas ligações muito minuciosamente e Bazinnunca admite que o cinema rompa totalmente com o real. Ë-me difícildescobrir qualquer valor actual nesta abordagem: a continuação destateoria manteria o cinema num estado de infância, dependente de umaordem anterior à sua, na qual fosse impossível conceber qualquer signifi-cado por causa da sua dependência. já não relacionamos uma pintura dePicasso com os objectos que ele usava como modelos nem mesmo umapintura de Constable com a sua paisagem original. Porque razão é quea arte do cinema é diferente? A resposta em termos de «reproduçãomecânica» assume-se como resposta sem colocar devidamente a questão.Similarmente, de um ponto de vista ideológico, só quando começamoscom a análise do trabalho flmico em vez de começar com o real, comofazem Eisenstein e Bazin e o enfrentamos nas suas relações internas, ouseja, como uma totalidade, é que o podemos projectar na totalidade socio--histórica e opor as duas. (Ou então permitir que o próprio trabalhofilmico se oponha). Ë evidente que nada menos do que • uma totalidadepode opor-se ou criticar uma totalidade. Também é evidente que- algodependente da realidade, de facto ainda ligado a ela, não pode de formaalguma criticá-la ou opor-se-lhe. Só quando a obra de arte está completa,nos seus próprios termos, é que ela quebra essa dependência e adquirea capacidade de oposição; consequentemente; compreender as condiçõesda organização e da plenitude artísticas, torna-se fundamental . para acrítica.

[1971].

NOTAS

I . Estas teorias-tipo não são nem novas nem únicas . no cinema. As teorias darelação da parte com o e as teorias da relação com o real (por vezes chamadas teoriasda imitação) têm tido uma longa vida ná história do pensamento estëtico em geral.Durante o século dezoito eram as principais abordagens - e as mais largamente defen-didas. Ver Monroe C. Beardsley em «Aesthetics from Classical Greece to the Present»(New York, 1966) e em «Aesthetics: Problems in the Philosophy of Criticism» . (NewYork, 1958). Sugere que, devido ao a traso da teoria filmica, são ainda as abordagensprincipais neste campo. Nem na estética em geral, nem na teoria ' fíimica, as teoriasda relação da parte com o todo e as teorias da relação com o real, são necessariamente,

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DOIS TIPOS DE TEORIA DO FILME

ou sempre, inconsistentes. Uma das tarefas da análise --- talvez a principal tarefa ---édeterminar em que aspectos teorias rivais são inconsistentes, onde não entram emconflito, e onde se complementam positivamente.

= Sergei Eisenstein, Film Form, Harcourt, Brace and World, Inc, New York, 1949.Versão inglesa de Jay Leyda.

a Neste artigo, Bazin procura provar que a fotografia e o cinema são descobertasque, pelas suas próprias características técnicas, satisfazem a obsessão humana dorealismo, libertando a pintura dessa tarefa. «A originalidade da fotografia em relaçãoã pintura reside na sua objectividade essencial. De tal modo assim é que o conjuntode lentes que constitui o olho fotográfico se chama precisamente objectiva. Pela primeiravez, entre o objecto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser umoutro objecto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior forma-se, automati-camente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigo roso determinismo.A personalidade do fotógrafo só entra em jogo pela escolha, a orientação, a pedagogiado fenómeno; por mais visível que seja na obra final, já não figura nela da mesmamaneira que a do pintor. Todas as artes são fundadas na presença do homem; apenasna fotografia é que fruímos da sua ausência. (...) A objectividade da fotografiaconfere-lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer outra obra pictórica.»Ambos os artigos de André Bazia citados por Henderson estão incluídos na obrafundamental Qu'est-ce sue le Cinéma?, :editions du Cerf, Paris (N. Org.).

Aquilo a que Eisenstein chama a quarta dimensão filmica, num texto de 1929(incluído em Film Farm) é, esquetematicamente, o tempo adicionado às três dimensõesseguindo o método da montagem harmónica. (N. Org.)

Neste ensaio, datado de 1939 e incluído nas Reflexões de um Cineasta (EditoraArcádia, Lisboa, 1961), Eisenstein procura fundamentar a tese de que Potemkine obe-dece ã Iei da unidade orgánica no domínio das proporções entre as partes e o todo— relação conhecida em estética pelo nome de «número de ouro» — e de que opatético do tema se encontra inserido no patético do filme. (N. Org.)

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O CÓDIGO-MATRIZ DO CINEMA CLÁSSICO

DANIEL DAYAN

A semiologia lida com o filme de duas formas 1 . Por um lado, estudao campo da ficção, ou seja, a organização do conteúdo do filme. Por outrolado, estuda o problema da «linguagem fílmica», o nível da enunciação.Os críticos estruturalistas tais como Barthes e os Cahiers du Cinema deYoung Mr. Lincoln

a mostraram que o campo da ficção está organizado

numa linguagem múltipla, é uma organização mítica através da qual seproduz e se expressa a ideologia. Contudo, igualmente importante, e bas-tante menos estudada, é a enunciação filmica, o sistema que permite oacesso do espectador ao filme -- o sistema que «fala» a ficção 3 . Esteestudo defende que este nível está longe de estar livre da ideologia. Elenão exprime, neutra e imparcialmente, a ideologia do campo da ficção.Como veremos, é construído por forma a mascarar a origem e a naturezaideológi:a dos discursos cinematográficos. Fundamentalmente, o sistemade enunciação abaixo analisado — o sistema da «sutura» --- funcionacomo um «código-matriz» 4 . Fala através dos códigos dos quais : dependea ficção. É o intermediário necessário entre eles e nós. O sistema dasutura está para o cinema clássico assim como a linguagem verbal estápara a literatura. Os estudos linguísticos param quando se atinge o nívelda frase. De igual modo, o sistema abaixo analisado só nos conduz doplano ao discurso cinematográfico. O nível da enunciação pára para alémdo discurso. O campo da ficção começa.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

A nossa pesquisa fixa-se num trabalho teórico particularmente datado,que deve ser especificado. Os acontecimentos politicos de Maio de 1968transformaram a reflexão sob re o cinema em França. Depois de um períodoidealista dominado por André Bazin, de um período fenomenológico influen-ciado por Cohen-Séat e por Jean Mitry, e de um período estruturalistainaugurado pelos ensaios de Christian Metz, vários críticos e teóricos docinema adoptaram uma perspectiva que articulava a semiologia e o mar-xismo. Esta tendência é bem representada por três grupos, fortementeinfluenciados pela revista literária Tel Quel: o colectivo cinematográficoDz ga Vertov, encabeçado por Jean-Pierre Gorin e por Je an-Luc Godard;a revista Cinéthique; os novos e profundamente transformados Cahiersdu Cinéma.

Depois de um período relativamente curto de hesitações e polémicas,os Cahiers du Cinéma estabeleceram uma espécie de frente comum comTel Quel e Cinéthique. O seu programa, durante o período que culminouentre 1969 e 1971, pretendia estabelecer os fundamentos de uma ciênciado cinema. De acordo com .Althusser, tal facto exigia um «corte episte-mológico» com os anteriores discursos ideológicos sobre o cinema 5 . Navisão pós-1968 dos Cahiers, os discursos ideológicos induiam os sistemasestruturalistas de natureza empírica. Procurando efectuar tal corte no dis-curso sobre o cinema, os Cahiers concentraram-se em autores da segundageração estruturalista (Kr!steva, Derrida, Schefer) e nos da primeira gera-ção que se opunham a ' qualquer interpretação empírica do trabalho deLévi-Strauss. A questão consistia em evitar qualquer interpretação de umaestrutura que a fizesse surgir como causa de si própria, libertando-a,portanto, das determinações do sujeito e da história. Segundo Alain Badiou:«A actividade estruturalista foi definida há alguns anos como a .cons-trução de um "simulacro do objecto"; sendo este simulacro em si nadamais do que o intelecto adicionado ao objecto. O. recente trabalho teóricoproduzido quer no campo marxista quer no campo psicanalítico .mostraque tal concepção de estrutura deveria -ser, completamente rejeitada. Talconcepção pretende descobrir dentro -do real um conhecimento 'do qualo real. só pode ser o objecto. Supostamente, este conhecimento já IA esta-ria, apenas á espera de ser revelado.» (Citado por Jean . Narboni num artigosobre Jancsó, Cahiers du Cinéma, n.°- 219).

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O CÓDIGO-MATRIZ DO CINEMA" CLÁSSICO

Incapaz de compreender as causas de urna estrutura, o que são ecomo funcionam, tal concepção considera a estrutura como uma causaem si própria. O efeito é substituído pela causa; a causa mantém-se des-conhecida ou torna-se. mítica (o autor «teológico»). O estruturalismo deCahiers defende, por outro lado, que existe mais no todo do que nasoma das partes. A estrutura não é só um resultado a ser descrito, maso traço de uma função estruturadora. A tarefa do crítico é localizar oagente invisível desta função. O todo da estrutura torna-se, assim, a somadas partes, mais a causa da estrutura, mais a relação entre elas, atravésdas quais a estrutura está ligada ao contexto que a produziu. Estudar umaestrutura é, pois, não procurar significados latentes, mas sim procuraro que causa ou determina essa estrutura.

Sendo então o projecto dos Cahiers . uma procura das causas, quaisos meios disponíveis para o realizar? Tal como Badiou assinalou, doissistemas de pensamento propõem uma concepção estrutural da causali-dade, o marxismo de Louis Althusser e a psicanálise de Jacques Lacan.As teses de Althusser influenciaram grandemente a produção teórica dosCahiers durante o período em questão. A sua influência foi constante-mente comentada e explicitada, quer nos textos dos Cahiers quer poraqueles que deles falavam. Pior compreendida foi a influência da psica-nálise lacaniana nos Cahiers, esse outro sistema do qual se poderia esperarque surgisse uma ciência do cinema através da crítica do estruturalismoempírico. Para Lacan, a psicanálise é uma ciência.

«A . primeira palavra de Lacan é para dizer: em princípio, Freudfundou uma ciência. Uma ciência nova, que é a ciência de um objectonovo: o inconsciente.

Declaração rigorosa. Se a psicanálise é verdadeiramente uma ciência,pois é a ciência de um objecto próprio, ela é também uma ciência con-forme a estrutura de todas as ciências: possuindo uma teoria e uma técnica(método) que permitem o conhecimento e a transformação do seu objectonuma prática específica. Como em . qualquer ciência autêntica constituída,a prática não é o absoluto da ciência, mas um momento teoricamentesubordinado; o momento em que a teoria tornada método (técnica) entraetm contacto teórico (conhecimento) ou prático (a aura) com o seu objectopróprio (o inconsciente).» 6

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ESTiTICAS' DO CINEMA

Tal como Claude Lévi-Strauss, Lacan distingue três níveis na realidadehumana. O primeiro nível é a natureza, o terceiro é a cultura. O nívelintermédio é aquele no qual a natureza é transformada em cultura. Estenível particular dá estrutura à realidade humana -- é. o nível do simbólico.O nível simbólico, ou ordem simbólica, inclui quer a linguagem queroutros sistemas que produzam significação, mas que são fundamentalmenteestruturados pela linguagem'.

A psicanálise lacaniana é uma teoria de intersubjectividade, no sen-tido em que regula a(s) relação(ões) entre o «eu» e o «outro» indepen-dentemente dos sujeitos que afinal ocupam esses. lugares. A ordem simbólicaé uma rede de relações. Qualquer «eu» é definido pela sua posição dentrodesta rede. A partir do momento em que um «eu» pertence à cultura,as suas relações fundamentais com o «outro» são determinados por estarede. Deste modo, as Ieis da ordem simbólica dão forma ás pulsões,determinando os itinerários obrigatórios através dos quais podem sersatisfeitas. A ordem simbólica é por seu turno estruturada pela linguagem.Este poder estruturante da linguagem explica a função terapêutica dafala na psicanálise. A tarefa do psicanalista, através da fala do paciente,consiste em re-ligar o paciente à ordem simbólica, da qual este recebeua sua particular configuração mental.

Assim, para Lacan, ao contrário de Descartes, o sujeito não é a basefundamental dos processos cognitivos. Em primeiro lugar, é só uma dasmuitas funções psicológicas. Em segundo lugar, não é uma função inata.Aparece a certa altura no desenvolvimento da criança e tem que ser cons-tituído de uma certa forma. Também pode ser alterado, parar de funcionar,e desaparecer. Estando no centro do que percebemos como sendo o nossoeu, esta função é invisível e indiscutível. Para evitar as conotações intrín-secas do termo «subjectividade», Lacan chama a esta função «o imagi-nário». Deve ser entendida no seu sentido literal -- é o domínio dasimagens.

O imaginário pode ser caracterizado através das circunstâncias dasua génese ou através das consequências do seu desaparecimento. O ima-ginário é constituído através dum processo a que Lacan chama a lase doespelho. Acontece quando o bebé tem entre seis e dezoito meses de idadee ocupa uma situação contraditória. Por um lado, ele não possui o domí-nio do seu corpo; os vários segmentos do sistema nervoso ainda . não

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estão coordenados. A criança não pode mover ou controlar todo o seucorpo, mas apenas algumas partes isoladas. Por outro lado, a criançadisfruta desde os primeiros dias de uma maturidade visual precoce. Duranteeste estádio, a criança identifica-se com a imagem visual da mãe ou dapessoa que ocupar o lugar desta. Através desta identificação, a criançapercepciona o seu próprio corpo como um todo unificado por analogiacom o corpo da mãe. A noção de um corpo vinificado é assim uma fantasia,antes de ser uma realidade. J uma imagem que a criança recebe do exterior.

Através da função imaginária, as respectivas partes do corpo sãounidas, de modo a constituir um corpo, e portanto, a constituir alguém:um eu. A identidade é uma estrutura formal que depende fundamental-mente de urna identificação. A identidade é um efeito, entre outros, daestrutura-através da qual as imagens são formadas: o imaginário. Portanto,Lacan produz uma dessacralização radical do sujeito: o «eu», o «ego»,o «sujeito» não são mais do que imagens, reflexos. O imaginário constituio sujeito através de um efeito «especular» comum à constituição de todasas imagens. Um espelho numa parede organiza os vários objectos de umasala numa imagem unificada e finita. Assim, também o «sujeito» nãoé mais que uma reflexão unificada.

O desaparecimento do imaginário provoca a esquizofrenia. Por umlado, o esquizofrénico perde a noção do seu «ego» e, mais geralmente, aprópria noção de ego, de pessoa. Perde, quer a noção da sua identidade,quer a faculdade de identificação. Por outro lado, perde a noção da unidadedo seu corpo. As suas fantasias estão povoadas por visões horríveis decorpos desmantelados, como nas pinturas de Hieronymus Boch. Final-mente, o esquizofrénico perde o domínio da linguagem; O estado deesquizofrenia esclarece o papel da linguagem no funcionamento do ima-ginário em geral. Visto que a relação linguagem-imaginário é extremamenteimportante para o nosso tema, o papel do imaginário , no cinema, retoma-remos este aspecto mais em pormenor.

O papel do imaginário na utilização da linguagem aponta para urnazona de inadequação, sem dúvida ausente nas discussões tradicionais acercada linguagem. Saussure limitou-se a reprimir ou a evitar ó problema dopapel do sujeito na utilização da linguagem. O sujeito está ausente dalinguistica saussuriana. Ë esta supressão que subentende as famosas oposi-ções entré código e mensagem, paradigma e sintagma, sistema e falas.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

Em cada caso, Saussure atribui relevância linguística a um dos termose nega-a ao outro. (O termo sintagina não é eliminado, mas é posto sobos paradigmas dos sintagmas, 'isto é; a sintaxe). 'Deste modo, Saussuredistingue um nível profundo das estruturas linguísticas de um nível super-ficial onde estas estruturas se manifestam empiricamente. O nível superficialpertence ao domínio da subjectividade, ou seja, à psicologia. «O sistemada linguagem é igual à linguagem menos a fala.» A . fala; côntudo; repre-senta a utilização da linguagem. A entidade que Saussure define é a lin-guagem menos a sua utilização. De modo contrário, a psicologia tradicionalignora a linguagem definindo o pensamento como tendo uma existênciaanterior à lingüagera. Contudo, apesar desta mútua exclusão, o mundodo sujeito e o universo da lingúágem s ão indissociáveis: O sujeito fala,percebe o que lhe é dito, lê, etc:

Em suma, o discurso estruturalista deve explicar a relação lingua-gem / sujeitos (Notar a relevância da crítica de Badiou ao estruturalismoempírico de Saússure). Neste caso,' a definição lacaniana do sujeito comouma função , imaginária é útil. A regressão esquizofrénica mostra que alinguagem não pode funcionar sem Uni sujeito. Não se trata do sujeitoda psicologia tradicional: o que Lacan mostra é que a linguagem nãopode funcionar fora do imaginário. A' cànjunção do sistema da linguageme do imaginário produz o efeito de realidade: a dimensão referencial dalinguagem. Aquilo que apercebemos como «realidade» é' definivel comoa intercepção 'de duas funções, cada uma das quais pode estar em falta.

A linguagem é um sistema de diferenças, o significado de um- enun-ciado é 'produzido pela negativa, istá é, pela eliminaçãò das outras pos-sibilidades formalmente cõnsentidás pelo sistema. O domínio do imagináriotraduz este significado negativo num' positivo. Organizando o enunciadonum todo, estabelecendo-lhe os limites, o imaginário transforma o enun-ciado numa imagem, num reflexo. Conferindo ao enunciado a sua própriaunidade e continuidade, o sujeito organiza-o num corpo, dá-lhe uma iden-tidade fantasmática. Esta identidade, qüe poderá ser chamada o «ser» ouo «ego» do enunciado, é o seu significado, da mesma forma que seu» souo significada da minha unidade corporal.

A função do imaginário não está limitada ao aspecto sintagnïáticodo uso da linguagem. Ordena também os paradigmas 9 . Uma passagemnotável de Borges, citada por Foucault em As Palavras e as 'Coisas ilustra

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O CÓDIGO MATRIZ DO CINEMA CLÁSSICO

bem este ponto. Uma enciclopédia chinesa imaginária classificou os ani-mais de acordo com ó seguinte esquema: a) pertencentes ao imperador;b) embalsamados; c) domesticados; d) cobaias; e) sereias; J) lendários;g) cães " sem trela; h) incluídos na presente classificação. De acordo comFoucault, este esquema é , «impensável», porque as alíneas onde as coisassão colocadas são tão diferentes umas das outras que se torna impossívelencontrar qualquer plataforma de entendimento comum ás coisas men-cionadas. Ë impossível encontrar um espaço comum a todos os animais,um terreno comum a todos eles. O lugar comum aqui em falta é o queune as palavras e as coisas. Os paradigmas da linguagem e da . culturasustêm-se graças ã percepção de um lugar comum, de um «topos» comumaos seus elementos. Este lugar comum pode ser definido ao nível histó-rico ou social como «epísteme» ou «ideologia». Ë este lugar comum quefalta ao esquizofrénico.

Portanto, em resumo, a função especular e unificadora do imaginárioconstitui, por um lado, o próprio corpo do sujeito, e, por outro lado,assinala os limites e o terreno comum sem os quais os sintagmas e osparadigmas linguísticos se dissolveriam num infinito oceano de diferen-ças. Sem o imaginário e o limite que ele impõe a qualquer enunciado, osenunciados não funcionariam como espelhos do referente.

O imaginário é um constituinte essencial no funcionamento da lin-guagem. Qual é o seu papel no funcionamento da linguagem? Qual é oseu papel nos outros sistemas semióticos? Os sistemas semióticos nãoseguem todos os mesmos padrões. Cada um deles utiliza de urna formaespecífica o imaginário; isto é, cada um deles confere uma função dis-tintiva ao sujeito. Passemos agora do papel do sujeito na da linguagempara o papel que o sujeito desempenha na pintura ou no cinema clássicos.Neste caso, os escritos de Jean-Pierre . Oudart; Jean-Louis Schefer e outros,servir-nas-ão de guia na definição dos fundamentos . do nosso estudo 10.

Encontramos desde o inicio uma diferença fundamental entre a lin-guagem e os outros sistemas semióticos. Uma, sentença célebre de Estalineestabeleceu o estatuto teórico da linguagem: a linguagem nem faz parteda ciência nem faz parte dá ideologia. Representa uma espécie de terceiropoder, capaz de funcionar — até certo ponto —livre de influências his-tóricas. Contudo, o funcionamento de sistemas semiôticos tais como apintura e . o cinema, manifesta claramente uma dependência directa da

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ES:MICAS . DO CINEMA

ideologia e da história. O cinema e a pintura' são produtos históricos daactividade humana. Se o seu funcionamento atribui certos papéis ao ima-ginário, devemos considerar estes papéis como resultado de escolhas (cons-cientes ou inconscientes) e procurar determinar a componente racional detais escolhas. Consequentemente, Oudart faz uma dupla pergunta: Qualé o funcionamento semiológico da pintura dâssica? Porque razão os pin-tores clássicos o desenvolveram?

Oudart avança as seguintes respostas. 1) A pintura figurativa clás-sica é um discurso. Este discurso é produzido de acordo com os- códigosfigurativos. Estes códigos são directamente produzidos pela ideologia eestão, portanto, submetidos a transformações históricas. 2) Este discursodefine, à partida, o papel do sujeito, e, por conseguinte, determina pre-viamente a leitura da pintura. O imaginário (o sujeito) é utilizado pelapintura para mascarar a presença dos códigos figurativos. Ao funcionaremsem serem percebidos, os códigos reforçam a ideologia que comportamenquanto a pintura produz uma «impressão de realidade» ou um «efeitode real». Este funcionamento invisível dos códigos figurativos pode serdefinido como uma «naturalização»: a impressão de realidade produzidacomprova que os . códigos figurativos são «naturais» (em vez de seremprodutos ideológicos). Impõe como «verdadeira» a visão do mundo deuma determinada classe. 3) Esta exploração do imaginário, esta utilizaçãodo sujeito é tornada possível pela presença de um sistema a que Oudartchama «representação». Este sistema engloba a pintura, o sujeito e a suarelação sobre a qual exerce um controlo firme. -

A posição de Oudart é largamente influenciada pelo livro de ScheferScénographie rl'un tableau. Para Schefer, a imagem dum objecto deve sercompreendida como o pretexto que o pintor usa para ilustrar o sistemaatravés do qual transforma a ideologia em esquemas perceptivos. O objectorepresentado é um «pretexto» para a pintura produzir um «texto».O objecto esconde a textualidade da pintura impedindo o espectador dea fixar. Contudo, o texto da pintura é totalmente oferecido à vista. E comose estivesse -escondido fora do objecto. Está aqui, mas não o vemos.Através dele vemos o objecto imaginário. A ideologia está escondida -nosnossos próprios olhos.

Oudart explica como funciona esta codificação, e o respectivo pro-cesso de ocultação, ao analisar Las Meninas de Velasquez 11 . Neste quadro,

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os membros da corte e o prôprio pintor olham para o espectador. Emvirtude de um espelho situado no fundo da sala (representado no centroda pintura), vemos que estão a olhar para o rei e a rainha cujo retratoVelasquez está a pintar. Foucault chama a isto a representação da repre-sentação clássica, porque o espectador — geralmente invisível -- estáaqui inscrito na própria pintura. Assim, a pintura representa o seu pró-prio funcionamento, mas de uma forma paradoxal e contraditória. O pintorestá-nos a olhar, a nós, espectadores que passamos em frente da tela; maso espelho só reflecte uma coisa, inalterável, o casal real. Através destacontradição, o sistema de «representação» aponta no sentido do seu pró-prio funcionamento. Em termos cinematográficos o espelho representa oplano de contracampo da pintura. Em termos teatrais, a pintura repre-senta o palco enquanto que o espelho representa o público. Oudart concluique o texto da pintura não deve ser reduzido à sua parte visível; ele nãose limita aos limites da tela. O texto da pintura é um sistema que Oudartdefine como «um duplo-palco». Num palco, o espectáculo é representado;no outro, o espectador olha para ele. Na representação clássica, o visívelé só a primeira parte do sistema que inclui sempre uma segunda parteinvisível (o contracampo).

Historicamente falando, o sistema da representação clássica podeser resumido da seguinte forma. As técnicas figurativas do «quattrocento»constituíram um sistema figurativo que permitiu a formação de um certodispositivo pictórico. A representação clássica produz o mesmo génerode dispositivo mas submete-o a uma transformação característica apresen-tando-o como a personificação do olhar do sujeito. O discurso pictóriconão é só um discurso que utiliza códigos figurativos. É aquilo quealguém .vé.

Assim, mesmo sem o espelho, em Las Meninas, o outro palco fariaparte do texto da pintura. Poder-se-ia ainda notar a atenção nos olhosdos personagens pintados, etc. Mesmo estes indícios psicológicos só ser-vem para reforçar uma estrutura que poderia funcionar sem eles. A repre-sentação clássica, enquanto sistema, não depende do assunto da pintura.As paisagens românticas do século dezanove submetem a natureza a umremodelamento que lhes impõe a perspectiva monocular, transformando apaisagem naquilo que é visto por um dado sujeito.

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ESTÉTICAS DO CINEMA

Este tipo de paisagem é muito diferente da paisagem japonesa comas suas múltiplas perspectivas. Esta não é a parte visível de um sistemade palco-duplo.

Embora utilize técnicas e códigos figurativos, o aspecto distinto darepresentação, enquanto sistema semiológico, é que ele transforma o objectopintado num signo. O objecto que é representado na tela de uma certaforma é o significante da presença do sujeito que está a olhar ' para ele.O paradoxo de Las Meninas. prova que a presença do sujeito deve sersignificado mas vazio, definido mas deixado em liberdade. Ao ler . ossignificantes da presença do sujeito é o próprio espectador que ocupaesse lugar. A sua própria subjectividade preenche o lugar vazio previa-mente definido pela pintura. Lacan salienta a função unificante do imagi-nário, através do qual o acto da leitura se torna possível. A pinturarepresentativa está «já unificada». A pintura propõe-se não só a si pró-pria ; mas também como leitura. O imaginário do espectador só podecoincidir com a construção em subjectividade da pintura. A liberdadereceptiva do espectador é reduzida ao mínimo — ele tem que aceitar ourejeitar a pintura como um todo. Tal facto tem consequências importantes,ideologicamente falando.

Quando eu ocupo o lugar do sujeito, os códigos que me levam aocupar este lugar tornam-se invisíveis para mim. Os significantes da pre-sença do sujeito desaparecem da minha consciência porque são os signi-ficantes da minha presença. Do que eu me apercebo é do seu significado:eu próprio. Se eu quiser compreender a pintura e não ser apenas instru-mentalizado como um catalizador da sua operação ideológica, devo evitara relação empírica que ela me impõe. Para compreender a ' ideologia quea pintura comporta, devo evitar dispor o meu próprio imaginário comoinn suporte dessa ideologia. Devo recusar essa identificação que a pinturatão imperiosamente me propõe.

Oudart salienta que a relação inicial entre um sujeito e qualquerobjecto ideológico é estabelecida pela ideologia como uma armadilha queevita qualquer conhecimento real do objecto. Esta armadilha é apoiadanas propriedades do imaginário e deve ser desconstruída através dumacrítica destas propriedades. Desta critica depende a possibilidade dumconhecimento real. O estudo de Oudart da pintura clássica mune o analista

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do cinema com dois importantes instrumentos para tal crítica o conceitode palco-duplo e o conceito do sujeito preso na armadilha. -

Notamos, em primeiro lugar, que a imagem fzilmica.-considerada iso-ladamente, o simples enquadramento ou . o plano . perfeitamente estático,é (para efeitos da nossa análise) equivalente à pintura clássica. Os seuscódigos, ainda que mais «analógicos» do que figurativos, estão organi-zados pelo sistema de representação: trata-se de uma imagem concebidae organizada não só como um objecto a ser visto, mas como a visão deum sujeito. Poderá existir uma cinematografia que não esteja condicionadapor este sistema de representação? Eis uma interessante e importantequestão que não pode ser aqui tratada. Tudo leva a crer que não hajasemelhante cinematografia. Certamente que o cinema narrativo clássico— nosso tema --- tem origem no sistema de . representação. O problemada assimilação do cinema pelo sistema de representação é bem colocadopor Jean-Louis Baudry, que argumenta que o sistema perceptual e a ideo-logia da representação são construídos pelo próprio dispositivo cinema-tográfico. (Ver «Os Efeitos Ideológicos do Aparelho Cinematográficode Base» in Cinéthique n.° 7-8, 1970). As lentes das câmaras organizamo seu campo visual de acordo com as leis da perspectiva, que, desse modo,funcionam como se fossem a percepção de um sujeito. Braudy-faz remontareste sistema aos séculos dezasseis e dezassete, durante os quais a tecnolo-gia das lentes, que ainda governa a fotografia, foi desenvolvida' z.

Claro que o cinema não pode ser reduzido aos enquadramentos fixosnem o sistema semiótico do cinema pode ser reduzido aos sistemas dapintura ou da fotografia. Na verdade, a sucessão cinematográfica dasimagens ameaça interromper ou mesmo expor e destruir o sistema derepresentação que orienta o sistema estático da pintura e da fotografia.A sucessão de planos é, pela natureza do seu próprio sistema, uma, sucessãode vistas. A identificação do espectador com a função subjectiva .propostapela pintura . ou pela fotografia é quebrada continuamente durante a visãode um filme. Assim, o cinema levanta .regular e sistematicamente umaquestão que é excepcional na pintura (Las Meninas): «Quem olha?»O ponto central da análise de Oudart reside precisamente nisto: o que éque acontece à relação espectador-imagem em virtude das mudanças deplanos peculiares ao cinema? . .

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A questão ideológica não é menos importante do que a questãosemiolôgica, uma vez que é indispensável à sua solução. A partir do pontolevantado pelo imaginário e pela ideologia, o problema é que o cinemaameaça expor o seu próprio funcionamento, enquanto sistema semiótico,bem como o da pintura e o da fotografia. Se o cinema consiste numasérie de planos que foram concebidos, seleccionados e ordenados de umacerta maneira, então tais operaçóes servem, projectam e concretizam umadeterminada posição ideológica. A pergunta do espectador, sugerida pelopróprio sistema de representação — «Quem ollma?» e «Quem está aordenar estas imagens?» -- tende a expor esta operação ideológica e . osseus mecanismos. Assim, o espectador estará consciente 1) do sistemacinematográfico enquanto produtor da ideologia e 2) por conseguinte dasmensagens ideológicas específicas produzidas por este sistema. Sabemosque a ideologia não pode funcionar desta forma. Ela deve esconder assuas operaçnes, «naturalizar» o seu funcionamento e as suas mensagensde qualquer maneira. Especificamente, o dispositivo cinematográficoenquanto produtor de ideologia deve ser ocultado e a relação da men-sagem filmica com este dispositivo também deve ser ocultada. Comoacontece com a pintura clássica, o côdigo deve estar oculto pela mensa-gem. A mensagem deve surgir como completa, coerente e inteiramentelegível em si própria. De forma a que o procedimento seja este, a men-sagem filmica deve responder, em si, pelos elementos do código queprocura ocultar — as mudanças de plano e, sobretudo, o que reside pordetrás destas mudanças, as perguntas «Quem vê?» e «Quem controlaestas imagens?» e «Com que objectivo o estão a fazer?» Deste modo,a atenção do espectador será restrita à mensagem e os códigos não sefarão notar.. Este dispositivo, através do qual a mensagem. filmica fornecerespostas ás perguntas do espectador — respostas imaginárias -- é oobjecto da análise de Oudart.

O cinema narrativo apresenta-se como um cinema «subjectivo». Oudartrefere-se não a experiências de vanguarda com câmaras subjectivas, masà vasta maioria dos filmes de ficção. Estes filmes propãem imagens quesão subtilmente designadas e intuitivamente percebidas como correspon-dendo ao ponto de vista de um ou outro personagem. O ponto de vistavària. Também existem alturas em que a imagem não representa o pontode vista de ninguém; mas no cinema narrativo clássico, estes momentos

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são relativamente excepcionais. A imagem . não tarda a -ser confirmadacomo sendo o ponto de vista de alguém. Neste cinema, a _imagem só é«objectiva» ou «impessoal» durante os intervalos da acção dos olharesdos actores. Estruturalmente, este cinema passa constantemente da formapessoal para a impessoal. De notar, contudo, que quando este cinemaadopta a forma pessoal, fá-lo de modo oblíquo, um pouco como as des-crições romanescas que utilizam «ele» em vez de «eu» para, as descriçõesda experiência do personagem central. Segundo Oudart, esta obliquidadeé típica do cinema narrativo: dá a sensação de ser subjectivo embora nuncaou quase nunca o seja. Quando a câmara ocupa o verdadeiro Iugar doprotagonista, o funcionamento normal do filme é perturbado. Oudart está,neste ponto, de acordo- com os adeptos das gramáticas fulmicas tradicio-nais. Contudo, ao contrário deles, Oudart pode justificar este tabu, aomostrar que esta obliquidade necessária da câmara faz parte de um sis-tema coerente. Este sistema é a sutura. Tem por função transformar umavisão do filme numa Ieitura do mesmo. Introduz o filme (irredutívelaos seus enquadramentos) no reino da significação.

Oudart contrasta a visão e a leitura dum filme comparando as res-pectivas experiências. «Ver» o filme não é s6 ter a consciência do enqua-dramento, do ângulo e da distância da câmara, etc. O espaço entre planosou objectos no écran é percepcionado como real, consequentemente oespectador pode assumir-se (em relação a este espaço) como fluidez, expan-são, elasticidade.

Quando o espectador descobre o enquadramento — o primeiro passona leitura do filme — o triunfo da sua anterior apropriação da imagemdissolve-sc. O espectador descobre que a câmara está a ocultar coisas,e, portanto, duvida dela e do próprio enquadramento, que ele agora com-preende ser arbitrário. Pergunta-se porque é que o enquadramento ê oque é. Este aspecto transforma radicalmente o seu modo de participa-ção — o espaço irreal entre personagens e / ou objectos deixa de serpercebido como aprazível. Ê agora o espaço que separa a câmara dospersonagens. Estes últimos perderam a sua qualidade de presença. O espaçocoloca-os entre parêntesis como para afirmar a sua própria presença.O espectador descobre que a sua apropriação do espaço só era parcial,ilusória. Sente-se despojado do que é impedido de vera Descobre que. sóé autorizado a ver o que surge no eixo da visão de outro espectador,

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que. é fantasmático e está ausente. A este fantasma, .que domina o enqua-dramento e subtrai o prazer do espectador, Oudart propõe chamar «oausente» (<d'absent»).

A descrição anterior não é nem arbitrária nem impressionista --- asexperiências esboçadas são os efeitos de um sistema. O sistema do ausentedistingue a cinematografia, enquanto sistema produtor de significado, dequalquer bocado do filme impresso (o simples negativo não montado).Este sistema depende, tal como o da pintura clássica, da oposição funda-mental entre dois campos: 1) o que eu vejo no écran, 2) o campo com-plementar que pode ser definido como o lugar a partir do qual o ausenteestá a olhar. Assim: a qualquer campo fulmico definido pela câmara, cor-responde «outro» campo do qual emana uma ausência.

Ficamo-nos, até agora, ao nível do plano. Oudart considera depoiso enunciado cinematográfico composto pelos planos de campo e contra-campo. No primeiro plano, o campo que falta impõe-se à nossa consciên-cia sob a forma do ausente que está a olhar para o que vemos. No segundoplano, o contracampo do primeiro, o campo que falta é abolido pelapresença de alguém ou de algo que ocupa o lugar do ausente. O plano decontracampo representa o possuidor fictício do olhar correspondente aoprimeiro plano.

O sistema do campo-contracampo determina a experiência do espec-tador. O prazer do espectador, dependente da sua identificação com ocampo visual, é interrompido quando ele percepciona os limites do enqua-dramento. Desta -percepção ele infere a presença do ausente e esse outrocampo para o qual o ausente está a olhar. O segundo plano revela umpersonagem que é apresentado como o possuidor da visão correspondenteao primeiro plano. Isto é, o personagem no segundo plano ocupa o lugardo ausente correspondente ao primeiro plano. Este personagem transforma,retrospectivamente, a ausência emanada do espaço cênico do primeiro planonuma presença.

Em termos `sistemáticos', é isto que acontece: o ausente do primeiroplano é um elemento do código que é atraído para a mensagem por inter-médio do segundo plano. Qu ando o segundo plano substitui o primeiro,o ausente é transferido do nível da enunciação para o nível da ficção.Como resultado disto, o código desaparece e o efeito ideológico do' filmeé, consequentemente, assegurado O código, que `produz' um . efeito. ima-

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ginário e ideológico, é oculto pela mensagem. Incapaz de ver o trabalhodo côdigo, o espectador fica -à sua mercê. O seu imaginário é selado nofilme; assim o espectador absorve um efeito ideológico sem se aperceberdele, tal como no sistema, aliás bastante diferente, da pintura clássica.

As consequências deste sistema requerem uma cuidada atenção. O olhardo ausente é o olhar de ninguém, que se torna (no plano de contracampo)o olhar de alguém (um personagem presente no écran). Estando no écrandeixa de poder competir com o espectador pela apropriação do écran.O espectador pode retomar a sua relação prévia com o filme. O planode -contracampo faz a sutura da lacuna aberta na relação imaginária doespectador com o campo fíImico, através da percepção do ausente. Esteefeito, e o sistema que o produz, liberta o imaginário do espectador, deforma a manipulá-lo para os seus próprios fins.

Além da «libertação do imaginário», o sistema da sutura tambémcomanda uma «produção de significado». A conclusão do espectador acercado ausente e acerca do outro campo deve ser descrita com maior precisão:é uma «leitura». Para o espectador que se torna ciente do enquadramento,o campo visual significa a presença do ausente como o possuidor da visãoque constitui a imagem. O campo fílmico pertence assim, simultaneamente,à representação e à significação. Como a pintura clássica, por um ladorepresenta objectos ou seres, por outro lado significa a presença dumespectador. Quando o espectador cessa de se identificar com a imagem,a imagem significa necessariamente, para ele, a presença de outro espec-tador. A imagem fíïmica apresenta-se-lhe aqui não como uma imagemsimples mas como um espectáculo, isto é, afirma estruturalmente a pre-sença de um público. O campo fí mico é então um significante; o ausenteé o seu significado. Uma vez que representa outro campo, a partir doqual um personagem fictício olha para o campo correspondente ao campodo primeiro plano, o plano de contracampo é oferecido ao público comosendo o outro campo, o campo do ausente. Deste modo, o segundo planoestabelece-se como o significado do primeiro plano:

Dentro do sistema da sutura, o ausente pode ser definido como o«artificio» intersubjectivo por meio do qual a segunda parte de um dadoenunciado representativo já não' é simplesmente o que vem depois da pri-meira parte, mas o que é significado por da. O ausente torna as diferentespartes de um enunciado em significastes de outras partes: Eis o seu estra-

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ESTLTICAS DO CINEMA

tagema: quebrar o enunciado em planos. Ocupar o espaço entre os planos.Oudart define o enunciado básico do cinema clássico como uma unidadecomposta de dois termos: o campo f ílmico e o campo do ausente. A . somadestes dois termos, palcos ou campos, produz o significado do enunciado.Robert Bresson chegou a falar de uma troca entre planos. Para Oudarttal troca é impossível — a troca entre o primeiro plano e o segundo planonão pode dar-se directamente. Entre o primeiro e o segundo planos, oespaço cénico do primeiro plano é um intermediário necessário. O ausenterepresenta a permutabilidade entre os pianos. Mais precisamente, dentro dosistema da sutura, o ausente representa o facto de nenhum plano poder cons-tituir, por si só, um enunciado completo. O ausente ocupa o lugar que faltanecessariamente a qualquer plano de forma a ganhar significação: outroplano. Isto conduz-nos à dinâmica da significação no sistema da sutura.

Dentro deste sistema, o significado de um plano depende do planoseguinte. Ao .nível do significante, o ausente destrói continuamente o equi-líbrio do enunciado fílmico tornando-o a parte incompleta de um todoainda por vir. Pelo contrário, ao nível do significado, o efeito do sistemade sutura é retroactivo. O personagem apresentado no segundo plano nãosubstitui o ausente correspondente ao segundo piano mas sim o ausentecorrespondente ao primeiro plano. A sutura é sempre cronologicamenteposterior ao plano correspondente; isto é, quando finalmente sabemos oque era o outro campo, este campo fílmico já não está no écran. O signi-ficado de uma imagem é dado retrospectivamente, não se encontra noplano que está no écran, mas tão somente na memória do espectador.

O processo de leitura dum filme (perceber o seu significado) é, por-tanto, um processo retroactivo, no qual o presente modifica o passado.O sistema da sutura desrespeita sistematicamente a liberdade do espectadorinterpretando, de facto remodelando, a sua memória. O espectador é des-pedaçado, empurrado para direcções opostas. Por um lado, um processoretroactivo organiza o significado. Por outro lado, um processo premoni-tório organiza o significante. Subjugado pelo dispositivo cinematográfico,o espectador perde o acesso ao presente. Quando o ausente aponta paraele, a significação pertence ao futuro. Quando a sutura se concretiza, asignificação pertence ao passado. Oudart insiste na brutalidade, na tiraniacom que esta siga &ficação se impõe ao espectador ou, como ele afirma,etransita . através .dele».

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O CÓDIGO MATRIZ DO CINEMA CLASSIC()

A análise de Oudart sobre o cinema clássico é uma desconstrução,não uma destruição. Desconstruir um sistema implica habitá-lo, estudaro seu funcionamento muito cuidadosamente, localizar as suas articulaçõesbásicas, tanto externas como internas. Existem, sem dúvida, outros dispo-sitivos cinematográficos além do da sutura'. Um dos muitos outros siste-mas encontra-se em filmes de Godard, tal como Vento de Leste. Dentrodeste sistema, 1) o plano tende a constituir um enunciado completo, e2) o ausente é continuamente apercebido pelo espectador. Uma vez que oplano constitui um enunciado completo, a leitura do filme deixa de estarsuspensa. O espectador não é deixado à espera na parte-restante-do-enun-dado-que-ainda está-para-vir. A leitura do plano é contemporânea do próprioplano: É imediata, a sua temporalidade é o presente.

Mas, a definição funcional do ausente não muda. Dentro do sistemaGodarniano, bem como dentro do sistema de sutura, o ausente é o queliga o plano (nível fílmico) ao enunciado (nível cinematográfico). Contudo,no caso de Godard, os dois níveis não estão desligados. O nível cinema-tográfico não oculta o nível fílmico do plano. Existe uma relação claraentre ambos.

O sistema da sutura representa exactamente a escolha oposta. O ausenteé mascarado, substituído por um personagem, consequentemente, a ver-dadeira origem da imagem — as condições da sua produção representadaspelo ausente — é substituída por uma origem falsa e esta origem falsaestá situada dentro da ficção. O nível cinematográfico engana o espectadorremetendo-o para a ficção em vez de o remeter para o nível fiImico.

Mas a diferença entre as duas origens da imagem não é só que uma(a fílmica) é verdadeira e a outra (a ficção) é falsa. A verdadeira origemrepresenta a causa da imagem. A falsa origem suprime essa causa e nãooferece nada em troca. O personagem cujo olhar se apodera da imagemnão a produziu. Ele é apenas alguém que vê, um espectador. A imagem,portanto, existe independentemente. Não tem causa. Existe.

Por outras palavras, é a sua própria causa. Por meio da sutura, odiscurso filmico apresenta-se como um produto sem um produtor, um dis-curso sem uma origem. Ele fala. Quem fala? As coisas falam por si e,sem dúvida, dizem a verdade. O cinema clássico apresenta-se como oventríloquo da ideologia.

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LSMICAS DO 'CINEMA •

'1 Brian.Henderson colaborou na redacção deste artigo a partir de um texto prévio.2 Artigo colectivo, dedicado ao filme de John Ford intitulado em português

A Grande Esperança (1936), publicado no n.q 223 (1970) dos Cahiers du Cinéma efortemente influenciado pelos trabalhos de Lacan e de Derrida. (N. Org.)

' A enunciação é o acto individual de utilização da língua,. enquanto o enunciadoé o resultado desse acto, é o acto da criação do sujeito falante. Enunciado é por vezesempregue como sinônimo de frase ou de conjunto -de frases seguidas- pelo que, naterminologia inglesa, se torna difícil distinguir com precisão entre enunciado e.discurso.Ver nota 2 ao texto de Metz., (N. Org.)

o Sutura é um termo clínico que significa a união cirúrgica dos bordos de umasolução orgânica de continuidade a fim de os manter unidos. O conceito passou pitaa teoria psicanalítica e foi particularmente trabalhado por Jacques-Alain Miller. Jean--Pierre. Oudart introduziu a noção de sutura na análise cinematográfica para descreverum dos complexos processos de planificação e montagem instaurado pelo cinema clássicoatravés do qual os códigos de representação se tornam invisíveis e . o espectador, seinscreve, enquanto sujeito, no discurso cinematográfico. É esse processo, fundamental-mente baseado no campo-contracampo e na alternância. ent re planos objectivos. e planossubjectivos, que Dyan designa por código-matriz, tutor-code no original inglês. (N. Org.)

• Sumariamente, a teoria althusseriana da ideologia pode resumir-se em_ duas tesescentrais: 1') em qualquer sociedade, dividida ou não em classes, a ideologia tem comofunção primordial assegurar a coesão do todo social regulando as relações dos indivíduoscom as tarefas que lhes são fixadas pela estrutura social; 2.*) a ideologia é o contrárioela ciência. A passagem do primeiro tipo de pensamento (ideológico) ao segundo (cien-tifico) exigiria um corte epistemológico. (N. Org.)

e Alusser, Lenira and Philosofby in Monthly Review Press, New York, 1971,pp. 198-199. [Edição portuguesa do texto citado — «Freud e Lacan» — in Estrutura-lismo (org. Eduardo Prado Coelho), Portugália Editora, Lisboa, 1968, pp. 235-236.(N. Org.)]. .

' Em Lacan, o simbólico é o registo de estrutura_ ção , do inconsciente, já que «oinconsciente está estruturado como uma linguagem.» Assim, o sujeito determina-sesempre em relação a uma lei, quaisquer que sejam as figuras imaginárias com que'seidentifique. (N. Org.) .

É Ferdinand de Saussure 1857-1913 que no Curso de Linguística Geral (D.Quixote, Lisboa) introduz a distinção entre langue e parole. A langue, (língua), repre-senta o lado social da linguagem, é um sistema estabelecido, «é ao mesmo tempo umproduto social da faculdade da linguagem - e um conjunto de convenções necessárias,adoptadas pelo corpo social, 'para permitir o exercício dessa faculdade entre os indi-viduos.» A parole (fala) representa o lado individual da linguagem, no qual • çonvésndistinguir: «11 as combinações pelas quais o sujeito falante ufili».s o código da língua,tendo em vista exprimir o seu pensamento individual; 2.°) o mecanismo psicofísicó quelhe permite exteriorizar essas combinações.» (N. Org.)

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O CÓDIGO-MATRIZ DO CINEMA CLASSICO

Qualquer frase, composta por uma sucessão de signos linguísticos, é formadapor dois conjuntos. O primeiro, sintagmático, é constituído pelos valores de con trasteentre os signos nela dispostos. O segundo, paradigmático, é constituído pela possibili-dade de substituição dos signos presentes no primeiro conjunto. Na frase, a sequênciade palavras é o sinlagma; o eixo das palavras possíveis é o paradigma. (N. Org.)

1 ° Ver «Scenographie d'un tableau» de Jean-Louis Schefer, (Paris, Seuil, 1969);e artigos de jean-Pierre Oudart, «La Suture, I e II», in «Cahiers du Cinéma», n." 211e 212 (Abril e Maio de 1969), «Travail, Lecture, Jouissance», in «Cahiers du Cinéma»,

n.° 222 (com S. Daney — Julho de 1970), «Un discours en defaut», in «Cahiers duCinéma», n.° 232 (Outubro de- 1971).

't Oudart baseia-se no capítulo I de «As Palavras e as Coisas» de Michel Foucault(Portugália Editora, Lisboa).

12 As duas teses centrais do texto de Baudry—glosadas nesta antologia por Dyan,Metz e Aumont — são: 1) o aparelho de base do cinema, herdado dos códigos ópticosda perspectiva renascentista, integrando a câmara, a montagem, a imagem p rojectada ea sala escura, produz como efeito ideológico específico: a formação do olhar do sujeito--espectador como sendo o elemento central da representação, seu princípio básico deinteligibilidade e de coerência na tradição idealista da cultura ocidental; 2) esta consti-tuição do sujeito é reforçada pelos efeitos de identificação do espectador com oolhar da câmara e as personagens a partir de uma analogia com a análise laca-niana da fase do espelho, anteriormente descrita. (N. Org.)

" De facto, os planos de campo e contracampo são uma mera figura no(s) siste-ma(s) do cinema clássico: Neste momento inicial de enunciação no filme, escolhemo-lacomo um exemplo previligiado da forma como a origem do olhar é deslocada, deforma a ocultar a produção do significado do filme.

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HISTÓRIA / DISCURSO(Nota acerca dos dois voyeurismos)

CHRISTIAN METZ

Estou no cinema. Perante os meus olhos desenrolam-se as imagensdo filme hoilywoodiano. Hollywoodiano? Não forçosamente. Podem seras imagens de um desses filmes de narração e de representação — umdesses «filmes», simplesmente, no sentido actualmente mais conhecido dotermo —, de . um dessse filmes que a indústria do cinema tem por funçãoproduzir. A indústria do cinema e também, mais amplamente, a instituiçãocinematográfica na sua forma actual I . É que esses filmes não represen-tam apenas milhões que é necessário investir, rentabilizar, recuperar comlucros e investir de novo. Eles pressupõem, além disso, quanto mais nãoseja para assegurar o circuito-retorno do dinheiro, .que os espectadorespaguem o lugar -e que, por conseguinte, tenham vontade de o pagar. A ins-tituição cinematográfica ultrapassa em muito este sector (ou este aspecto)do cinema declarado directamente comercial.

Questão de «ideologia»? Têm os .espectadores a mesma ideologia queos filmes que Ihes são fornecidos, enchem as salas e desse modo a máquinavai rodando? Com certeza? ..Mas é também uma questão de desejo e, por-tanto, de . posição simbólica. Utilizando os termos de i;mile Benveniste, ofilme tradicional apresenta-se como história e não como discurso 2 . Todavia,é discurso. se - o referirmos às intenções do cineasta, às influências que

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EST.TICAS DO 'CINEMA

exerce sobre o público, etc.; porém, o característico desse discurso, e opróprio princípio da sua eficácia enquanto discurso, é precisamente o deapagar as marcas da enunciação e disfarçar-se em história. Como se sabe,o tempo da história é sempre o «te.lizado». Do mesmo modo, o filme detransparência e de narração plenária assenta numa negação da carência, daprocura, a qual nos remete pela sua outra face (sempre mais ou menosregrediente), a sua face satisfeita e saciada: realização formulada de umdesejo não formulado.

Fala-se de «regimes» politicos, de regimes económicos, diz-se de umautomóvel, segundo a constituição da sua caixa de velocidades, que eleautoriza três, quatro ou cinco regimes. O desejo, também tem os seusregimes, os seus escalões,mais . ou menos duráveis de estabilização econó-mica, as suas posições ;de equilíbrio 'em relação,à proibição, as suas forma-ções beneficiárias (a «história», por exemplo, isto é, o narrado sem onarrador, um tanto como no sonho ou no fantasma). Trata-se de regulaçõesnada fáceis de afinar, que primeiro têm que fazer uma rodagem durantemuito tempo (desde 1895, o cinema andou muito às apalpadelas antes deencontrar a sua fórmula :hoje dominante), regulações produzidas pela, evo-lução social e que esta substituirá por outras, mas que não modifica conti-nuamente (tal como mais uma vez, nos equilíbrios políticos) visto que nãoexistem milhares delas para instaurar. à discrição e porque cada urna Baque-las que funciona efectivamente ' e ima máquina bem 'enredada sobre simesma, .que tende a perpetuar-se e se encarrega dos mecanismos da suaprópria reprodução (a recordação de cada satisfação fílmica torna-se repre-sentação de finalidade em relação à seguinte. É isto que acontece com ogénero de filmes que hoje em dia ocupa os «écrans»; écrans exterioresdas salas de espectáculo e écrans interiores do ficcional, isto é, deste ima-ginário simultaneamente protegido e consentido que a «diegese» nos oferece.

A fim de evocar esses filmes, como é que eu vou estabelecer a minhaprópria posição de sujeito? Neste momento, estou a escrever estas poucaslinhas, que são igualmente uma homenagem a um dos homens de ciênciaque melhor sentiram, a partir do enunciado, "todos - os recuos que a enun-ciação como . instancia distinta pode configurar, todas as reviravoltas *deque o. próprio enunciado pode vir a ser reinvestido. Vou pois colocar-me;durante o - tempo' deste escrito, num 'certo lugar de mini mesmo (e claroque não . é o :cínico), num lugar a partir dó qual o meu «objecto», o filme

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- :=HI576RIA / DISCURSO

de feitura vulgar, - possa despontar o melhor- possível. No psicodrama cul-tural 'das «posições», não desempenharei hoje o papel daquele que gostadesses filmes, - e também não o papel , daquele que não gosta. Deixarei quese marquem na minha folha algumas figuras daquele que gosta de os verentre aspas; que gosta de os absorver como . citações . datadas .(como umvinho cujo deleite . reside também no : milésimo exibido), na ambivalênciade uma ternura . anacrónica e de um sadismo conhecedor, . que quer quebraro brinquedo e abrir o ventre da máquina.: .

Com efeito, 'o filme em que penso possui uma forte existência (social,analítica), não pode' ser reduzido a uma artimanha de alguns produtoresde cinema ávidos de dinheiro e astutos na maneira de o obter. O cinematambém existe como obra nossa, da época que o consome, como uma'intenção da consciência, inconsciente nas suas raízes, sem a qual não sepode compreender o trajecto de conjunto que cria a instituição e dá contada sua. duração: não basta que os estúdios nos ofereçam uma mecanicazinhaaperfeiçoada, dita «filme de ficção», também é necessário que o seu jogose :cumpra, ou, simplesmente, que se efectue: que tenha lugar. E este lugarestá em cada um de nós, numa disposição económica que a história modelouao mesmo tempo que modelava a indóstria do cinema.

Estou no cinema. Assisto à projecção do filme. Assisto. -Tal como aparteira que assiste a um parto e que, ao fazê-lo, assiste a parturiente, euestou presente no filme segundo a modalidade dupla (e não obstante Zinca)do ser-testemunha e do ser-adjuvante: vejo e ajudo. Ao ver o filme euajudo-o a nascer, a viver, visto que é em mim que viverá e porque é feitopara isso: para ser vista, isto é, para não existir senão perante o olhar.O filme é exibicionista, tal como o era o romance clássico do século xrx,com intriga e personagens, esse romance que o cinema imita (semiologi-camente), prolonga (historicamente) e' substitui (sociologicamente, uma vezque o escrito tomou actualmente outra via).

O filme é exibicionista e ao mesmo tempo . não o é. Ou pelo menoshá vários exibicionismos e voyeurismos que lhe correspondem, vários exer-cícios possíveis da pulsão escópica, desigualmente reconciliados consigomesmos e que desigualmente fazem parte de uma prática calma e reabilitadada perversão. O verdadeiro exibicionismo tem dentro de si qualquer coisado triunfo e é sempre bilateral ná troca dos fantasmas quando não namaterialidade das acções: é da ordem do discurso, não da história, e assenta

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ESTkÌCAS DO CÏNAMA

inteiramente nó jogo dás identificações Cruzadas, no vai e vem assumidodó eu e do lit. O casal perverso (cite tem os seus equivalentes na históriadás produções culturais) encarrega-se, "ãtravés da encenação dos séús relan-çamentos e ressaltos, do impulso finalmente indiviso (e que também ofoi nas suas origens nãrcisicas, em toda a criança) do desejo de evidênciano torniquete infatigável das suas duas vertentes: activo/passivo, sujeito//objectivo, ver/ser visto: Se há triunfo nestas. espécies de representação,é porque aquilo que elas exibem não é exactamente o exibido mas sim,através dele, à própria exibição. O exibido sabe que é olhado, deseja queseja assim, identifica-se com o voyeur de quem é objecto (mas que o. cons-titui também como sujeito). Outro regime económico, outra regulação.Não a regulação do filme de ficção, mas aquela de que por vezes se apro-xima o grande teátro, em que o actor e o espectador estão presentes umpara o outro, em que o jogo (jogo do comediante, jogo do público) é tam-bém uma partilha lúdica dos papéis (dos hempregós»), rim consentimentoduplo e activamente cúmplice, unia cerimónia sempre iam pouco cívica quesolicita mais do que o homem privado: é "uma festividade. O teatro con-serva ainda —mesmo que seja no 'estado caricatural de réúnião mundana,quando se trata dos produtos insípidos do teatro ligeiro -- qualquer coisadas suas origens gregas, .do seu clima inicial de cidadania, de actividadedos dias feriados, em que todo um povo se olha a si niesano. (Más `haviaos • escravos, que não iam ao teatro, e cuja massa tornava possível noseu exterior o exercício de uma certa democracia).

O filme não é exibicionista. Eu vejo-o, mas ele não me vê quando euo vejo. Todavia, ele sabe que eu o vejo, 'más não quer saber isso. É estadenegação fundamental que orientou todo o cinema 'clássico nas vias da«história», que sem descanso apagou o seu suporte discursivo, que fez dele(no melhor dos casos) um belo objecto fechado cuja fruição 'só poderealizar-se sem o seu conhecimento (e, literalmente, contra sua vontade),um objecto cuja periferia não tem fendas e que por conseguinte não sepode abrir num interior-exterior, num sujeito capaz de dizer 'sim!».

O filme sabe que o vêem e não o sabe. Neste ponto "há que ser umpouco mais preciso. É que, com efeito, aquele que sabe e aquele que nãosabe não se confundem completamente (é característico de toda a negaçãoimplicar também uma clivagem). Aquele que sabe é o cinema, a instituição(e a sua presença em cada filme, isto é, o discurso que está por• detrás

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. HISTÓRIA / DISCURSO

dá história): aquele que não quer saber é o filme, o texto (o texto termi-nal): a história. Durante a projecção do filme o público está presenteperante fl actor, mas o actor ;está ausente do público; e durante a rodagem,em que `ò actor estava presente, 'é o público que está ausente. Deste modo,o cinema encontra o meio de ser simultaneamente exibicionista e segredista.A troca do ver e do ser visto vai ser fracturàda no seu centro, e os seusdois flancos separados repartidos em dois momentos do tempo: outra cli-vagem.vagem. Nunca é d meu parceiro que eu vejo, mas a sua fotografia. Nãoé por isso que deixo de ser Voyeur, mas sou-o segundo um regime diferente,o da cena primitiva e do buraco de fechadura. O écran rectangular permitetodos os feiticismos, todos os efeitos de exactamente-antes, visto que colocaà altura exacta, em que a pretende, a barra terminante e sibilante quedetém o visto e inaugura o mergulho tenebroso.

Pára este modo de voyeurismo (escalão económico actualmente estávele bem afinado), o mecanismo da satisfação assenta no conhecimento quetenho da ignorância de ser visto em que se encontra o objecto visto. «Ver»não é já enviar qualquer coisa, mas surpreender qualquer coisa. Este qual-quer coisa que é feito para ser surpreendido instalou-se e organizou-sepouco a pouco na sua função e, por meio de uma espécie de especializaçãoinstitucional (como nessas casas que se chamam «especializadas»), tornou-sea história, a história do filme: o que se vai ver quando se diz <ivou aocinema».' O cinema nasceu muito mais tarde que o teatro, numa época em quea noção de indivíduo (ou a -sua versão mais nobre, a «pessoa») marcavaMuito fortemente a vida social, em que já não existiam escravos parapermitir que os «homens livres» formassem um grupo relativamente inte-grado, participando em comum nalguns grandes afectos. e economizándoassim-0 problema da «comunicação», que supõe uma etnia dilacerada eesmigalhada. O cinema é uma questão do homem privado (como o romanceclássico mais uma vez, o qual, contrariamente ao teatro, depende da «his-tória»), e o voyeurismo do espectador não se importa nada em ele próprioser visto (a sala está às escutas, o visível está por completo - do lado doécran), não se importa nada com um objecto que saiba, ou antes, quequeira saber, com um objecto-sujeito que com ele partilha o exercício dapulsão parcial. Basta, e até é preciso — outro trajecto da fruição domesmo modo específico — que o actor faça como se 'não fosse visto (e

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ESTÉTICAS DO_ CINEMA

por conseguinte não visse o seu voyeur), que se'entregue as suas ocupaçõesordinárias :e prossiga a sua existência tal como a previa a história. do filme,que: continue . os seus ' passatempos numa sala fechada, acautelando-se . .omais possível em ignorar que um rectângulo de vidro foi colocado numadas paredes, • e que 'vive numa espécie de . aquário um pouco mais avarodos seus «dias» que os aquários verdadeiros (esta retenção faz ela mesmaparte do jogo «escópico»). - .

Aliás, os peixes .também estão do outro lado, com os olhos coladosao vidro, tal como .. os 'pobres de Balbec que viam comer -os comensais dogrande hotel. O festim, mais uma vez, não é feito em comum: festimfurtivo-e não festim festivo. Espectadores-peixes, que absorvem tudo pelosolhos e nada pelo corpo: .a instituição do cinema prescreve um espectadori môvel e silencioso, um .espectador oculto, constantemente em estado desubmotricidade e de sobrepercepção, um espectador alienado e feliz, acro-baticamente agarrado a si mesmo pelo fio invisível da vista, um espectadorque 'não se recupera como sujeito senão no último momento, por ..meiode uma identificação' paradoxal com a sua pessoa própria, extenuada no.olhar pura. Não . se trata aqui da identificação do espectador com os perso-nagens do filme • (ela já é secundária), mas da sua prévia identificação coma instância vidente (invisível) que é o próprio filme como discurso, comoinstância que cita a história 'e a dá a .ver. Se o filme' tradicional tende asuprimir todas as marcas do sujeito da enunciação é para que o espectadortenha a impressão de ser ele próprio esse sujeito, mas no estado de sujeitovazio e ausente, de pura capacidade para ver (todo o «conteúdo» está dolado do visto): com efeito, convém que o espectáculo «surpreendido» sejaigualmente surpreendente, que possua (como em qualquer satisfação aluci-natória) a marca da realidade exterior. O regime da «história» permiteconciliar tudo isso, visto que a história, no sentido de Ëmile Benveniste,é sempre (por "definição) uma história de parte alguma, que ninguémconta, mas qúe, contudo, alguém recebe (sem o que não 'existiria): emcerto sentido, é portanto o «receptor» (o receptáculo, de preferência) quea cogita e, simultaneamente, ela não.. é .contada de forma alguma, visto queo receptor não-6 exigido a não sés como lugar de ausência; em que ressoarámelhor a purezá do enunciado ' 'sem o enunciados. É bem verdade, nestesnumerosos traços, que a .identificação primária do espectador 'se opera eiavolta da própria câmara, como mostrou Jean-Louis Baudr

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HISTÓRIA/ DISCURSO

Então, estádio- de- espelho. (cõmo pretende o mesmo , autor?) Numa.larga medida, sim (no fundo, - acabamos de o dizer), e contudo não Com-_pletanente: É .qúe aquilo que a criança vê no espelho, - o que vê comouin . outrem que se . _ torna eu, é, ainda assim, -a imagem.. do seu própriocorpo: subsiste portanto uma . identificação (e "não apenas secundária) como visto. No cinema tradicional, o •espectador não se identifica senão como qúe é do vidente, a sua imagem não figura no écran, a identificaçãoprimária: já • não• se constrói em torno de um sujeito-objecto mas sim emtorno de um sujeito puro, omnividente e invisível, ponto de fuga da pers-pectiva' monocular que o cinema foi buscar à pintura. E, de maneira con-versa, todo o visto é atirado para o lado do objecto puro, objecto paradoxalque tira desse confinamento a sua força singular. E uma situação cruel-mente estilhaçada, em que a todo o custo se mantém a dupla negaçãosem a qual' não haveria história: o visto ignora que é visto (para que nãoo ignorasse, já seria preciso que fosse um pouco sujeito), e a sua ignorânciapermite- ao voyeur ignorar-se como tal. Não resta mais do que o factobruto da vidência: vidência de fora-da-lei, vidência do Id que nenhumEu assume, vidência sem marcas nem lugar, vicariante como o narrador--Deus e como o espectador-Deus: é a «história» que se exibe, é a históriaque reina.

í197s]

NOTAS•

.Metz entende por instituição cinematográfica não apenas a indústria produtorae os circuitos _ de distribuição e exibição, mas também os códigos e a maquinariamental que os espectadores habituados ao cinema histo ricamente interiorizaram e queos torna aptos para consumir os filmes. A maquina exte rior (o cinema como indústria)e a máquina interior (a psicologia do espectador) são complementares: «a instituiçãono seu todo tem por objectivo o prazer fflmico e apenas ele.» (N. Org.)

: Nos . Problémes de linguistique générale (Gallimard, Paris, 1966) Emile Benve-niste (1902-1976) introduz a distinção entre história e discurso. A enunciação históriatrata da «apresentação dos factos acontecidos acidentalmente num dado momento dotempo, sem nenhuma intervenção do locutor da narrativa (...) Apresentam-se os

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ESTÉTICAS DD' CINEMA

acontecimentos corno. se fossem produzidos a medida que surgem no horizonte dahistória. Ninguém fala aqui; parece que os acontecimentos se narram a si próprios».No discurso a enunciação <asupïíe um locutor e um receptor, tendo o primeiro aintenção de influenciar o outro seja de que modo for.» A história procura apagaro trabalho de enunciação, o discurso valoriza-o. Ver Emite Benveniste, O Homemna Z.inguagem, . Ed. Arcádia, Lisboa, 1976. (N. Org.)

' Na esteira de Baudry, Metz, Aumont e Bergala distinguem entre identificaçãocinematográfica primária, na qual o olhar do espectador se identificaria com o olharda própria rimara, constituindo-se como sujeito central e transcendental da visão, eidentificação cinematográfica secundária, na qual o espectador se identificaria com aspersonagens e as vedetas. (N. Org.)

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Ó PONTO DE ' VISTA

JACQUES AUMONT

No Quattrocento, aquilo que caracteriza um quadro é o facto de seorganizar em torno de um ponto; raramente materializado em pintura,para onde convergem as linhas que representam rectas perpendiculares aoplano do quadro. Imagem do ponto no infinito dessa família de rectas, oponto de 'fuga principal também se pode definir, geometricamente, comomarca da posição do olho do pintor: A perspectiva artificialis conjuga,assim, a imagem do infinito com a . do homem, e é a partir desse nó umbi-lical que a representação se organiza.

Este ponto geométrico também é por vezes designado — notávelmetonímia — pelo mesmo nome com 'que se designa a colocação do olhodo pintor: o ponto de vista. Uma parte considerável- da história dá pintura,tal corno tem vindo a ser , escrita de há cem- anos para -cá, tentou a' partirdai .seguir os avatares desse «pòntó de vista»: elaboração, hesitante e lenta,das regras técnicas da perspectiva com um centro; _evidencia da marca«humanista» nestes dados' técnicos, e 'da referência do quadro a um olharque o cánstitui (olhar do pintor, qual o -do espectador' deve, topologica-mente, substituir-se); dissolução de um .e outro; no findar do século.

O essencial, neste período- da história da representação, é portantoa indefectível solidariedade entre o quadro e o espectador; `e, mais precisa-

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O PONTO DE VISTA

mente a simetria entre ambos, esse impossível cruzamento de olhares entreo espectador e o pintor, cuja descrição, hoje clássica, se encontra emFoucault e em Lacan. Não é inútil recordar que, na lingua francesa «clás-sica», digamos que até ao século XV III,. a expressão «ponto de vista» tam-bém designava, e muito logicamente, o lugar em que um objecto deveser colocado para se ver melhor. Admirável ambiguidade da l agua, queconfirma a dualidade fundamental observador/observado.

No seu próprio dispositivo, a fotografia «absorveu» todos estes pon-tos de vista. Tal como a pintura, a representação fotográfica supõe a escolhade uma colocação do olho que vai realizar a tomada de vistas, e tambéma fixação de uma boa colocação do objecto visto'; aliás, a objectiva égeralmente construída de forma a produzir automaticamente uma imagemcom um ponto de fuga central. Também o cinema, por intermédio daimagem fotográfica, é dominado pela metáfora do olhar, do ponto de vista,até na forma como trata o material visual.

Não ficamos por aqui. Ao mesmo tempo que a pintura _aprendia adominar os efeitos desta representação centrada, a literatura descobria apouco e pouco fenómenos análogos, e em especial a complexidade das rela-ções entre acontecimentos, lugares, situações, personagens, e, por outrolado, o «olhar» com que a instância narradora os vê: a literatura modernaé uma literatura do ponto de vista, cada vez mais obcecada por uma par-tilha difícil entre aquilo que diz respeito ao autor e qué cimo tal é assumido,e aquilo que irá ser atribuído às personagem.

Em grande parte, é este período literário que define o cinema «dás-sico» como herdeiro de um sistema narrativo que talvez tenha alcançadoo seu ponto máximo no século passado, e que colocou, com uma 'grandenitidez, as questões do "narrador, do- seu olhar, e da sua encarnação sobas espécies do autor'e da personagem.

Aquilo que transformou o cinematógrafo (ou o cinetoscópio) , emcinema foi, essencialmente, a preocupação das articulações, do ajustamentoentre instáncias narrativas concorrentes, entre pontos de vista sobre oacontecimento. Na história da representação fílmica, o primeiro aconteci-méntó fundamental foi, sem sombra de dúvida, o reconhecimento do poten-cial narrativo da -imagem, mediante a sua assimilação a uni olhar. Sabe-se,de . resto, 'como o período clássico .do cinenia hipostasiou esse olhar tantona vertente personagem como na vertente autor 2:

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. '. .O PONTO DE VISTA

Desenha-se, assim, uma dupla linha de partilha que distingue. porum - lado . entre a figuração directa (na imagem) e: a indirecta: (na narrativa)de uin ponto de- vista — e reparte; -por outro lido; .esses pontos de vistapelos -três lugares de onde se olha: o personagem, o autor, o espectadorque os olha aos dois, e que se vê a olhar 3. • -

Finalmente, acrescente-se que — e isto não é válido apenas para alíngua francesa a expressão ponto de vista também se presta -a • umaextensão metafórica; é uma opinião, um. julgamento, que depende . do diaem que se consideram as coisas, do ponto de vista '(em sentido literal)que •em relação a elas se adopta, e que informa amplamente a própriaorganização da narração e da representação. Não há ponto de vista (nostrês ou quatro sentidos anteriores) que não seja adoptado por causa desteponto de vista.

Passemos a resumir este leque de significados da banal locução «pontode vista», tentando de certo modo especificá-los em relação ao cinema:

1. Em primeiro lugar, é o ponto o lugar a partir do qual se olha:'portanto, o lugar da câmara relativamente ao objecto olhado. O cinemaaprendeu muito ceda 4 a multiplicá-lo, através da mudança e do encadea-mento de planos, e a desmultiplicá-lo, através do movimento do aparelho.A primeira característica do cinema de ficção é a de oferecer um pontode vista múltiplo e variável.

2. Correlativamente, é a própria vista, considerada a partir de umcerto ponto de vista: o filme é imagem, organizada pelo jogo da perspec-tiva centrada. O problema maior é aqui o dó enquadramento, mais preci-samente o da contradição entre o efeito de superfície (ocupação plásticada superfície cio enquadramento) e a ilusão de profundidade s.

3. Em si mesmo, este ponto de vista 2 refere-se constantemente aoponto de vista narrativo; o enquadramento, por exemplo,-6 sempre maisou menos, " ná cinema narrativo, representação de urn 'olhar, o do autorõu o da personagem 6 , e também aqui 'a história do = cinema narrativo é.a dà aquisição e da fixação de regras de correspondência entre um PDV1,o PDVi- qúe dele resulta, e esse ponto " de vista narrativo. •

4. O todo, finalmente, é sobredeterminado por uma atitude mental(intelectual, Moral, política, etc.) ' cite traduz o juízo' do -narrador sobre . oacontecimeiito. Este ponto de vista; (ch"amar-filie-ethos. «predicativo»)informa evidentemente, 'antes de-mais nadá,. a 'ficção -sobre si própria,

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ESTÉTICAS DO .. CINEMA

(juizos do «autor» sobre as suas personagens, etc., que são o mais evidenteda crítica comum sobre os filmes)' mas aqui _vai apenas interessar-me namedida em que é também susceptivel de ter consequências sobre o tra--balho da representação, e de modelar o representante filmico (para nãocomeçar já a falar em significante).

Passemos a resumir, visto que os antecedentes histôricos desta noçãocomposta de «ponto de vista» não deixarem de ter :importância. Comojá sugeri, a história da pintura do século xv ao século xx é a da regulação,e a seguir a da móbilização do ponto de vista: da sua instituição ao des-centramento no barroco, à sua diluição nos paisagistas do século xzx eno impressionismo, à sua multiplicação e perda no cubismo «analíticó» - eé aqui que o cinema retoma a questão. -

Consideremos apenas um exemplo, o de Degas, que definia o trabalhodo pintor (ou do escultor, vejam-se as suas estatuetas, geniais, dos Estudosdos movimentos do cavalo) como uma apreensão do momento, «da fracçãode duração que' em si contém à sugestão do movimento inteiro» (Cohen,p. 28): ou seja, uma concepção da pintura como se fosse uma espéciede instantâneo (Degas, como se sabe, também era fotógrafo). Mas aomesmo tempo, não • quadros mais compostos do que os de Degas, maismontados como diz Eiseristei.n, e Menos para registar um movimento doque para exprimir um sentimento, um sentido, um efeito plástico. Esteestatuto duplo dó enquadramento que Degas exibe — um inocente, doinstantâneo que surpreende o real, e outro, composto e saturado de sen-tido, que é o da imagem montada — traduz para a própria pintura, Bazinbem o. tinha notado', a oposição fotografia-cinema, por o cinema ser umaarte do ponto de vista instantâneo mas múltiplo. _

Por outro lado, -como já recordei, o século xix e o princípio doséculo xx vêem its vanguardas literárias preocuparem-se, entre outras coi-sas, com a exposição dó processo narrativo no interior da ficção, inse-rindo-lhe, por exemplo, to= James ou- Proust, um personagem-narrador<self-conscious», an, :como Conrad, um «reflector central». Ë assim queo cinema narrativo surge precisamente no momento em que . a literaturaexperimenta a exposição, •'a diversificação e a mobilização' do ponto devista narrativo: Aquilo que o cinema narrativo ,vai-buscara estes modelosliterários não segue: depois um caminho linear; em vez disso, tern-se aimpressãet . de. que é. aO redescobrir,. através .dos seus próprios caminhos,

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O PONTO DE VISTA

a problemática do personagem e do seu ponto de vista que o cinemaconseguiu ser, no seu período «clássico», substituto do romance doséculo xix. (Entretanto, o experimentalismo que marca o cinema europeudos anos vinte alimenta, inversamente, novas gerações de escritores, deJoyce a Dos Passos 8).

O cinema, enquanto arte de representação — ou seja, precisamentea partir do momento em que se autonomiza do espectáculo, ambulanteóu sedentário, para se . tornar arte - -- liga-se a esta história dupla outripla: pintura, fotografia, literatura.

(Talvez alguns leitores se admirem por não se mencionar aqui oteatro: é' que, como este texto depois esclarecerá, o ponto de vista emcinema não tem nada a ver com um «ponto de vista» teatral, que é antesuma questão de arquitectura, e, por outro lado, a história da forma fil-mica — não digo a história do cinema — não tem praticamente relaçãonenhuma com a do teatro 9).

A questão do ponto de vista, como se vê, é tudo menos uma questão;o que se passa á que circunscreve o espaço de um nó de problemas, osproblemas centrais de qualquer teoria do cinema que considere a naturezadupla, narrativa e representativa, do filme. E limitámo-nos à gama depontos de vista do produtor, sem tentarmos avaliar o modo como cadaum deles implica, ou procura implicar, a adopção simétrica de posiçõesde visão e de leitura determinadas no espectador (esta questão do espec-tador reaparecerá, como é evidente, de uma forma mais ou menos brutal,a seguir) .

O meu problema, nestas anotações, não é propor um modelo gerale abstracto que visaria desfazer teoricamente esse nó; mesmo que tivesseessa tentação, depressa desistiria ao verificar o estado absolutamente bal-buciante de todos os estudos neste domínio, mesmo quando são empreen-didos por investigadores com uma bagagem linguística e lógica muitosuperior à minha: fico convencido da impossibilidade (talvez provisória)de construir um modelo trans-histórico 'da «linguagem cinematográfica».

O meu objectivo é portanto, e apenas, pôr em evidência, servindo-mede. alguns exemplos, a dualidade fundamental no filme entre os parâmetrosda ,representação e da narração, a propósito da noção de ponto de vista.Esta dualidade acaba por ser reabsorvida, de uma forma muito geral, no

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ESTETiIC:IS DO, CINEMA

discurso sobre: os filme.; sob: o: pretexto implícito: de- que; sendo, o; filme;na. sua concepção habit;ral; uma: história contada através: da; imagem- (ç.do- som), se, recenseiam, suficientfnuente2 os ' fenómenos:. de . representação:reconduzindo-os ., à história, ou- melhgr;, à narrativa;.

Exemplo: Em;Este , Obsçnro; OJjecto3 do_ De,sejor(197,7);, umaúnica: personagem de_ mulher- é encarnadas por- duas;açtrizes ! Bife,.rentes, de forma suficientemente complexa" pára: que; o, princípio,que rege a substituição não seja evidente; • óra; já para: não: falar,nos: numerosos.; espectadores; que • nãos se. aperceberam, de: nada,creia: que, ninguém se_ sentiu '' verdacieiranrkente- impedido , de: coo,siderar: ó. filme:' como) urna, narrativa norma]-,— ou: peio, menos-,ningué n; se ' sentiu,, impedido_, de considerar: que a, anormalidade:(o;famoso,«surrealismo»_bunueliano) não era aí;,que estava..

Outro exempla. Os filmes uprimitivós» apresentam-se;, mui,.tas ,vezes-, com0 ,uma,série: de,-, quadros .«descosidos»,;e;isso torna--nos-, difícil- o seu, funcionamento, narrativo;, no entanto,_ quandoeram exibidos : normalmente, : esses filmes, eram, acompanhados ! por,.um comentador; que._ não só _ preenchia . , as .. elipses.. da,. narrativa;,coma ,classificava_ com..ulna_palayra, caso. , fosse . necessário,, o_lugar.representada, evitandó assim que , as, pessoas confundissem o refá-gio , dos bandidos com o palácio . do rei 10:

Estes dois exemplos (e mais cem que seriam fáceis de encontrar)servem apenas para sublinhar o privilégio que a instituição, cinematográficaconcede espontaneamente ao narrativo em detrimento do representativo.Privilégio que pode ser confirmado, aparentemente sob a mesma formaespontãnea e evidénte, também na reflexão teórica e analítica recente.Basta que se , releiam a maioria das análises («textuais» ou não)' publica-das, para se ficar convencido de que quase todas, e independentemente-da qualidade que possam tër"; se- concentram- de- uma maneira «desequilï^brada» sabre- a análise dà história; em- detriinenta- da 'reflexão sobre o nivel figurativo_

. e- representativos que só . é ' convocadô- quando- ê preciso

levar- a- ao- moinho- narratológito !!: Quanto= aos= teóricoss. ase noçóoc,receritementer,propostas _ de atexto^ f1lt'nico» (Casetti), de - « dïraãtnica: cçununicativa»., (Colirt) ou. até, paradoxalmente; de análise «paramétrica»:.

13ai

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O' PONTO DE' VISTA

teau) • têm' urna, característica, comum:.sep retêm da'- imagem, • ë - pór' defiinição;o seu'• poder narrativo' (mesmo= que- seja disfàrrativo):.-

• Por . orïtrõ• 1ádó; estai grande concor'réiicia% (on-: Colaboração) -entre• nar=ração' e' representação, duplica=se: e : .á coberta: pòr; outra: a' Oposição entretodos estes-póntos de vista- parciais (representatiVos , e nárìrativos)f. que - sã fessencialmente da- ordem do

r imaginário =•e aquele. ponto de- vista- a (pie

demosl or número «Q•ir,. que- se- traduz, por uma' tentativa=. de-• ih.feriçiio= dosentido • rios-; filmes;. tentativa emir que o- ' registd-do simbólico ó mobilizado:

Muitos- dos• constituintes'• da- narrativa • e da -imagem (tanibéin auditiva)se prestam a esta codificáçãcsique os transfbtma-er expressão de-Urn poluode -vista.- Todos, os-valores=plásticds,. todos , os'parâm.etros ' icónicos- e- rïiuitosdos elementos da narração podem ser investidos, deste valor de' signifi-cado — -da inclinação da, câmara' á cor;, da escolha•- do , tipo , do-- actor àconsideração; . no filme; . de um gesto° social;12.

Já' aqui afirmeis, não 1 posso. • pretender, propor um- rriodelo,: uma solu-çãogeral liam estes problemas: O'que`é-possívelfó•apontá=los,±referindo-me^r

.

história- (histórias dós • filmes- e;. nuns• âmbito: mais=: vasto;, história ° da-representação) Naturalmente; as= dimensões , destas notas não autorizarn-qualquer pretensão a' um': trabalho histórico, e a minha: estratégiá inèluia contribuiçãó-de. uma- suposta_ história) do r cinema de gire, todos os'- dias'percebemos= isso-, sól e dstem. esboçais 43. O • que se segue' apreseiita=se;,portanto;>corno.•uma° série- de'•puirçõès .-mais, ou : meros : aibitráriag: no • vastó-«corpus»• dos:- filines~ e- das teorias' que òs- acònipanhan •= corii- d • únicd-propósito•` de: deli fitar: as'- relações;: perm'arierites'. e variáveis, destes' «pon-tos-de vista»:

Retomemos`; (no livro . magistral I de Deslaiides • por exemplo) r os • pri-•meiros r anúncios; das sessões' do F cinemàtógtafb ' Lunri&e ` (biz dos sèus % èoricorrentes):! as; filmes' são;- aí;. «fotografias- anirttadas> y; • «serias' ar s fadas»;«quadros ateimados»; ou; siinplésment :e°com múita' •frëtltiêrrcia;: (evistns•N:•Cotiio dizer melhor?- 0 : - filme- fiz' primeieo. r umá inïagen;-. um pónt ' dévistãí •-o,dá%câmara=que:produz-rum pentã de=%vistà"z; eri ártiadósriüm-éMlttaFdrantento -

Melíãor" arrtdà antes' niestnó da--t ses46 3 no Sidegi Iné1iën de- GradeCafé, Edison construíra, em 1894, no sei te fer d de Vires[: O'r'ãn e; o^

famoso' «Blaekk- Maria» estticlibt semri téetõ e i que' , as { v stá's=" chegavam aocitretóseóppo rantes-.de: à cinetõscópiõ'ché t`até'elàs i .07 «tilïiadrõ?animad'oí3°

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ESTET'ICAS DO •-r CINEMA

era ai registado, ' num enquadramento sempre idêntico . e sempre frontal(fixava-se a câmara-.e mantinha-se sempre a mesma posição), sobre umfundo de papel com alcatrão. Dois anos mais tarde (1896) Dickson, umdesertor de Edison, mandava construir num telhado de um prédio daBroadway o estildio da American Mutõscope Cie, a futura Biograph. Tam-bém era ao ar livre, mas com um melhoramento: a câmara, fechada numapesada cabine, podia deslocar-se sobre carris perpendiculares à cena, per-mitindo assim a mudança de enquadramento entre dois planos (e permi-tindo até o travelling para a frente, se bem que essa possibilidade nãotenha sido, segundo parece, utilizada na época i4).

Durante algum tempo realizar um filme . era, portanto, pôr a câmaraem qualquer sitio e enquadrar.

O resto, já se conhece: consiste, essencialmente, em mobilizar esseenquadramento. Já há muito tempo que se faz notar que essa mobilizaçãose efectuou, de forma privilegiada, muito mais a partir da invenção damontagem do que pela utilização de movimentos de aparelho 35 . E possível,a partir deste semiparadoxo, referir um exemplo definitivo, comparandoduas produções quase contemporâneas: por um lado, as «vistas» • do tipoHale's Hour, que consistem em colocar uma câmara em frente de urnalocomotiva, ou sobre a plataforma da rectaguarda de um comboio, e filmarem continuidade; por outro lado, os. primeiros, e célebres, pequenos filmesde aventuras que utilizavam uma sucessão de planos diferentes (o famosoGreat Train Robbery [ 0 Assalto ao Expresso], de Edwin S. Porter, e oseu . antecessor britânico, A Daring Daylight Burglary, [ de Frank Motter-shaw], ambos de 1903). No primeiro caso, apesar da modificação inces-sante da paisagem, e da interminabilidade da vista, continua a tratar-seapenas de uma tomada de vistas 16 . Inversamente, nos dois títulos citados,se bem que se mantenha a fixidez do enquadramento (o que conduz, neces-sariamente, ao advento da «teatralidade» do Film d'Art 17 e de Griffith--Biograph), extrai-se a consequência, capital, da própria natureza da visãocinematográfica: visto que esta inclui o tempo, visto que se desenvolve,é essencialmente (ontologicamente, diria Bazin) da ordem da narrativa:narra — e não há qualquer motivo para interromper essa narração no fimda tomada de vistas (do plano)..

0 aparecimento, nos filmes, de um ponto de vista narrativo cujasetapas se chamam Porter e, principalmente, Griffith: são nomes míticos,

I^2

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O PONTO DE '.VISTA

aureolados de lendas, não posso, aqui, referir-me a- eles, em pormenor,nem adoptar uma perspectiva crítica 18 . O que me interessa sublinhar nesteponto é, a partir desse aparecimento, e durante muito tempo, a perdada coerência doespaço . representado. Com efeito, se a montagem rapida-mente permitiu uma referenciação cronológica e causal eficaz e inequívoca,o mesmo não se pode dizer acerca do espaço representado na sucessãode planos. Conservemos os exemplos célebres já citados: de O Assalto aoExpresso (em que só as grandes articulações da narrativa se percebemfacilmente) a um Griffith qualquer de 1911 ou 1912 (An Unseen Enemy,ou The Battle, por exemplo), o progresso é decisivo: a narrativa griffi-theana . não precisa . de nenhuma intervenção, de nenhum comentário: écompletamente clara. No entanto, quanto aos mesmos filmes, pode dizer-seque a fragmentação do espaço não foi realmente reabsorvida. , Apesar dese ter estabelecido uma convenção (bastante rudimentar) que dizia respeitoà. passagem para fora de campo ultrapassando a borda lateral do enquadra'mento 19, cada espaço continua a valer por si próprio, numa semfautonomia,sem que nunca a coerência do espaço diegético

zo seja garantida, quer atra-

vés de fortes convenções como virão a ser os códigos do «raccord» clássico,quer por um acesso mais ou menos directamente adequado (por um planode conjunto, por exemplo) ao referente espacial global.

Tentemos traduzir de outra maneira estas observações. Aquilo de queo cinema toma consciência neste momento da sua história, é, antes demais nada, que o encadeamento de pontos de vista de enquadramentosem lugares diferentes produz um desenvolvimento cronológico, uma nar =

rativa cujos modos se vão aperfeiçoar rapidamente, a partir, por exemplo,desses planos da segunda versão de Enoch Arden (1911) em que Griffithexperimenta a relação entre uma «vista» e um olhar, entre uin olhar éuma personagem; em suma, esse encadeamento induz um ponto de- vistanarrativo.

Mantendo o exemplo do sistema griffitheano: nele vemos funcionarum ponto de vista narrativo relativamente diversificado. O essencial danarrativa consiste em seguir personagens, em focalização externa (muitoaparente nas sequências «obrigatórias» da perseguição ou da salvação

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ESTË? TG"^S I70 <C.TNEMA

.final); :por ..vezes,; -o .ponto . .de vista . narrativg .cóinçid .é :eõm':o lda .persp-nage;n, ,étn :focaiizaçáo :interna.

Exemple. ,Em ,ENaoh 4044% ,ç1,yandg Ateie Lee espe a naprpiá So Iregre so do m dó: de repente, ò rosto dela tem urnaexpressão horrorizada, estende os braças; no plano seguinte; vê-seo ,naufrágio de ,Enoch ,(é certo que `falar aqui de ' focalizaçãointerna implica uma certa crença na telepatia). Talvez 'aindamais concludente: em The Battle . (1911) a cena ,em que o -jovemem -pânico abãndõna o `:l iga'r 1neldi qm .plano sobre a :trincheiraonde .ele já não .está, _e .que :representa :o :seu .olhar. -

iinalxngnte, _ tri6uem-se ,;ao 4attallar _omnisciente ,qs panos .de ,con-junta, .,flgun,s;,desses grançles (planos ,çie ,Qbjeçtps ,que são .uma ,tias . marcasestiIistiças: le D. X. G:çiffith„e,ngoralmente todos os,cartões,coin _ Iegekdasque comentam, ánteçipam pu .cArácterizam a acção. O uso destes cartões(cio tipo <çEntretanto em Chipre» ou .s<Mais tarde») vai ser ¡muito Abun-dante durante todo o Cinema mudo, e e. parodiado de uma maneira exemplarem 'Uri Chien Andalou (1928).

Mas, ao mesmo tempo -que a clareza e a mestria -narrativas, a Mobi-

lização .tla tomada .de ,vistas afaz .surgir, de certo . :modo .pela negativa, ánatureza complexa d6 ,p,Qtitó ..de vista representativo ,no .-cinema. ìPórquea con trução dg espaço agiçq pligg o Itempp, porque ia 1itmpiiça.,ta_mb6mNeËaçkes..tópolágiças 1(de dnclus ,, ,de 1c9ne44acie, .per ,exemplo) e .çelaçõesde .ordem, .o ..pente ,de vista :01e111,atggrA co ,çien ,à nártida ser reláeip-t}a4o, ,t}ão çóm a pista ,imOgiv! ,vaas. 4ç9m ,a 4.4914404cia .de vistas. ,,i_3zfçrente

dó ,pgadelq Pictáricg, o pS111to fie vista. ,defere-se, ,nQ cile1P1, como .umar e; .9r4.4444 5e m lida. A, ng cinema « rimitiv9», essa ordem e essa

medida estão ainda I prlge de se encontrar. A preocupação com uma com-ptee_nsão _Coerente dó espaço na sequência surgiria, por exemplo, .comcertos momentos descritivos (sabe-se que por causa da natureza tempòraldo significante cinematográfico a noção de descrição, que imp lica umasuspensão do tempo dá "história, não e evidente no filme). Assim aconteceem O Nascimento de urna Nação' (1915), com a sequência de planos etice-deados que inclui duas grandes panorâmicas, e que descreve ° ó campo tdebatalhaPi

ïs^

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"O SPONTO DE tiVISTA

¡M ites -de 4Ifegar<mõs càs leis quase:fixas }através 'das quais o ¡cinema-clássico ttentou Jraciátializar .a ;representação lodo fiespago "(é..sobre elas anãovou dizer nada, porque têm sido abundantemente ;estudadas .pàúcopor toda a parte), este privilégio concedido à clareza da narrativa continuaa ser perceptível ao longo de todo o período mudo, .ou -quase --às -vezessob forma caricatural, como nesse filme de 1920, The Chamber 11lystery,

, em'-que -os .diálogos rsão -apresentados -em -forma de semelhantes-aos da banda -desenhada,, em que um -texto sobre fundo cinzento oculta,uma .parte ; .(às vezes =tudo) da :personagemn -que se .supõe estar a falar a.

'Ao -mesmo .tempo uai -surgindo, -a . ,pouco e ,pouco, -uma nova ,preo-,cupa&"ao: -a 'de •e primiz, ,pela narrativa m as também pela imagem, umaponto de vista da -instância narrativa , que vá além do simples jogo com-os diversos ;graus .de coincidência .entre ,personagem e narrador.

-Deste ponto de vista «predicativo», e da sua expressão na,imagem, Jjá ,'se -encontram -germes -no cinema griffitheano. Semser preciso tálar •da -maquilhagem -excessiva utilizada, :porexem-plQ, )para 'caracterizar .Q -ago ,(e, que continua a .ser um elementode sordem profílmica) 23 citar os -esforços de -Griffithpara. tornar -si,hnificante -o -uso de -fontes ,de -luz estritamente:localizadas. :Em -The <Drunkard'.s Reformation - (1909), -a -luz queemana. .da charnipé banha e define -a elicidade familiar das per-sonagens: -no =mesmo .anó, para •Pippa -Passes, Griffith -e Bitzerestudàm ombras -e .iluminaço"es -complexas, destinadas •a -traduzira doee -luz Oa =aurora sobre ,O rasto angélico da heroína .ou, -maisexactamente, o angelismo desse rosto 24 . Griffith vai levar estes

refeitos 'tle 'luz a. uni ponto -extreino m longas rmetragens .poste-aiores, por: Lexentplo -as ¡cenas. à beira do rio erk The White Rose

'Simultaneamente, .lianalbam-se e tornam-se estereótipos,acabando :por :ser a . ;auréola de, -caracóis laúros do -rosto de MaryPiokford, ou, melhor ainda, -o nimbo obrigatório em torno -de«arbo.

Mais zlo rcitre mtrrya 'indu'stria - 1,ollywcodiana . que, -em grande :parte,idepressa rednziu a -Agudvestere6ripo's estas :aventdras ela luz ^,'é no tinemàFeitropéu dos árros vinte que se •déveln procitrã'r.`as tentativas mais èviderr-

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ESTÉTICAS DO : CINEMA

tes (não direi mais conseguidas) :de um 'discurso da imagem. Tentativasdispersas, ao sabor -das escolas e das. épocas, que não posso aqui inven-tariar. Três exemplos: :. .

O CALIGARISMO

Ou aquilo a que ainda se chama, frequentemente, expressionismo(retomando a etiqueta vaga e cómoda que foi proposta a partir dos anosvinte). Se a compararmos com o desenvolvimento de umá pintura; e maistarde de uma literatura expressionista, a designação é pouco pertinente:nem por isso deixa de ter interesse, se a quisermos relacionar com a , suaetimologia. Implica, nesse caso, uma ideia de expressão mais ou menosdirecta, e geralmente sob um modo pictural, de significações ` exactas eespecíficas de um filme.

A primeira marca desta escola, como se sabe, é o seu picturalismo,e correlativamente, o carácter extremamente particular da referência aomundo representado. Veja-se como, em O Gabinete do Dr. Caligari,(Wiene, 1920) se figura como pano de fundo uma vista da cidade ondese supõe a localização da feira: imagem manifestamente inspirada emfigurações medievais, em que a cidade é acumulação de casas, adoptandoa forma geral de uma espécie de cone sem preocupações com a perspectiva;em frente desse pano de fundo, sobre uma espécie de praticável de teatro,estão dispostos (obliquamente, claro) alguns elementos da feira, o tocadorde realejo, o carrocel, que assim se situam numa relação de exterioridade--interioridade relativamente ã cidade, não traduzível em termos topográ-ficos. Mesmo nos cenários construídos, o espaço real em que os figurantesse deslocam é determinado pelas necessidades de uma forma plástica quetende, por exemplo, a negar, a eliminar qualquer efeito potencial de pers-pectiva (cf. com os planos no interior da uroulotte» de Caligari).

Esta picturalidade contamina, pelo menos tendencialmente, toda arepresentação: da maquilhagem das personagens (os cabelos pintados deWerner Krauss, as pinturas sobre o corpo das personagens de GenuineCWiene, 1920I) aos seus gestos (o corpo, desmantelado, de Conrad Veldtem Caligari) o corpo, torturado, de Hans von Twardowski em Caligari eGenuine), de um enquadramento «sobreenquadrado» (como em O ultimodos Homens) (Murnau, 1924) ou A Escada de. Serviço [Leni, 1921] a

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O PONTO DE VISTA

uma montagem «psicótica», por fragmentos (o assassínio da usurária emRaskolnikoff (Wiene, 1923]). Assim se percebe o paradoxo " incessante-mente renovado a propósito do cinema alemão mudo, . que ao mesmotempo que pretende que todos esses filmes sejam catalogados como «expres-sionistas» (ver o exemplo sempre citado de O Último dos Homens) passao tempo a atribuir a este ou aquele o troféu de minto verdadeiramenteexpressionista» (ver Lotte Eisner . . sobre Von Morgens bis Mitternacht,(G. Kaiser, 1917]).

Seja como for, o que aqui . é importante "é que todo este trabalhoplástico visa, quase unicamente, a tradução sensível, sensorial, da ideia.Os cenários e os fatos «vegetais» de Genuine materializam a animalidadeda personagem (uma espécie de tradução da célebre frase de Baudelairesobre a mulher: «natural, ou seja, abominável»). A distorção do cenário,já muito anguloso ao natural, da escada da usurária, dá a ver o horrordo pesadelo de Raskolnikoff. E seria possível citar mais mil exemplos,todos para demonstrar esta inscrição, na própria figuração, de um signi-ficado global que qualifica o representado.

O vício do sistema é bem conhecido — e desde há muito denunciado:este significado é ambíguo, não permite por exemplo distinguir, naqueleplano de 0 Gabinete do Dr. Caligan , em que Rudolf Klein-Rogge estásentado na sua célula, no centro de uma espécie de teia de aranha, oude uma estrela branca sobre fundo negro, entre o significado, redundante,do aprisionamento, e o outro, mais equivoco, da aranha que tece os seus«complots» (à la Mabuse^ 6). As únicas ocorrências em que esta ambi-guidade se desvanece são aquelas em que a ideia manifestada c evidente,fraca. A sombra do sonâmbulo, acima da cama de Alan que ele se pre-para para estrangular, não significa nada, apesar da sua violência plástica(e da sua beleza), a não ser um horror muito genérico. Talvez seja maisgrave que esta ambiguidade ' e esta fraqueza se prestem, tanto uma comoa outra, á uma reabsorção, provavelmente fatal, sob o grande significadoda Loucura, ou mais exactamente da irrealidade malsã oposta a uma reali-dade supostamente sã. Sabe-se aliás que esta reabsorção, vivamente criti-cada logo que O Gabinete do Dr. Caligari estreou Z', foi combatida. pelospróprios cineastas, e acabou por ser imposta pelos produtores em nome deuma preocupação com : o verosímil que, aqui, me interessa sobretudoenquanto se traduz através de uma sobreposição do ponto de vista nar-

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JE=rGAS IDO :CINEMA

nativo :relação :ao predicativo, linstituindo :.um:saber:que no !final to filme• atribui :aás asilados .:e ,ao.bo,rn :médico. resto . da koperação: aa¡transfer-mação que .afecta :a Tonto [de Fvistazepresenrativo. . -

. D .IMPRESSIONISM

O

A etiqueta tem ainda menos consistência, se é possível. Provém, semtdiíviila, de --analogias muito -superficiais, ne só se aplica a muito apoucasfilmes. ' Indiibitavelnïente, .aos •de Epstein . em primeiro lugar, --que 'sabiadizem: -

«... O^tema do - filme Mriuprat : (°1•926) 'ë a recordaçáo ^^a

miriha •p:riunaéirá .compreensão -entusiasta 'é ' muito superficial

rdoromantismo. A Queda iin'Casa 77sh`ar !(1927^) , ê . -a ^fiiiriha impressãogeral de }Poe:»' 28 -

Técnicas do impressionismo: -a ,sdbreimpressão, o ':retardador, o grandePlano, -a montagem fragmentária. Imagens :célebres, to • trosCo -de 'iina MVlanès

:sobreposto às águas •c o • porto .em `Coeur f idèle ,(.Epstein, 1920, iòs momen-tos de 'velocidade pura -em la Glace %a .trois faces '(Epstein, 1927); `o'retar--dador 'ee a passagem para . negativo quando tmorre Madeleine em A fQtreda-da rasa . Usher::Õu, .neste intimo filme tanibémn, _a :passagem que .átialisaKeith Cohen: 'a aparição •do visitante de 'Roderick, primeiro •na .charneca,-onde nos •é -mostrado -em vários planos, -de .angulo e -dimensão 'diferentes,:sem •que nenhum deles ¡the' revele o rosto; -depois nó -albergue, -onde coscruzamentos..dos 'olhares .entre :as personagens .nos fazem -saber.apenasque ;partitipam 'da mesma •.cena -- dando •ao mesmo tempo 'a .sensação :de;rim • espaço iiideternìinado, iflattuaaate :(Cohen).; .e, :ainda, ;esses planos dofim do :prólogo :em que :uma • nutlher dlhá fuz`-iivanrente :por detrás 'das tja ie-las .do -albergue, -e em .,que ;o -cenário è ro ,enquadramento se conjugam .paradar .a impressão 'de que ela `foi .engolida, :apanhada, :enterrada viva .por umlugar maléfico. • • - .

O ponto -'em comum destes !três móinentos, 'bem -diferentes vlastica-mente, do filme 'de EEpstein, 'é juntarem .à ,elabóração marratiVa e ido.diegese •da :figuração ---desta vez por :intermédio 2ío (enquadramento teda • montagem -- um `ponto de vista do narrador sobie :a história- que

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• :O 110A1I0 ?DE vinyl

cónta,:que .não é .só =um ponto.-de vista. narrativo (um ijpgd (de ;correspon-dências .e ,de-:afastamentos entre :a instância márrativa :as personagens),mas também um julgamento, uma inflexão destas cenas no sentido de uma.sensaçço, ,ou se • quisermos , de =uma impressão, k

re,spectivamente _de mistério,de irrealidade .e de angústia. 'E certo "que -estes sentimentos !são mais suge-ridos :peia :representação do "que .estão :inscritos :mas mesmo quesejam «atmosféricos», nem por isso =passam :.a .estar '.menos :organicamenteintegrados no conjunto .da história i(da qual rsãó; condo se :sable, a intro-dução) e são muito menos equívocos do que a minha''.descrição talvez-faça ,presumir

Que se passa .aqui? • já não é, ;como :no :expxessionismo, a fabricaçãoex nihilo de um pseudo-espaço que visa uma :.espécie de ideoplastia, massim a manutenção., _As vezes :con.traditória, :da dupla exigêneia de fotogenia.(a luz, a ,imagem, devem ;engendrar, libertar Alma .emoção) e de pensa-mento.. 1O.0 seja, na ;linguagem de Epstein:

-Os belps filmes :são feitos :de fotografias e :céu. Chamo céude uma ,imagem ao seu :alcance moral, que é :a razão de ela ter.sido desejada. Deve .limitar-se .a acção .do •signo."-a este alcancee interrompê-Ia logo que ele distrai o pensamento e faz derivara emoção ;sobre si própria. .9 prazer ;plástico .é em :meio,- nuncaé :úm rdbje_ckivo...As ,imagens '-que :evocaram ,uha :série de senti-mentos devem ;lio itarse a aconselhar .a sua revolução :semiespon-tânea,. corno ;flechas -que induzem .o -pensamento ao :céu ^.

A :CIlVE-LINGUA

Paradoxalmente, a escóla •de -cineastas russos que desenvolveu a =ideiade que poderia haver 'uma lingua do filme — da qual se esperaria logica-mente que o sistema teórico acentuasse o poder escrittii il •do- cineasta -dar-nos-á aqui. um :exemplo mais 'annbiguo.

Observemos o livro publicado em 192-9 por Kuled ov, é que'eilectede maneira sistemática um decénio de experimentação. Mém de ..um dis-curso da pt rica -cinematográfica, hoje gero dia bastante obsoleto :e larga-mente determinado pela vontade táctica de fazer admitir tais inovações

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ESTETIC.E]S DO ' CINEMA

formais (grande plano, montagem, etc.) = ai se encontra urna concepçãodo cinema de que .o essencial se pode resumir em algumas deduções:

a) visto que o espectador de cinema tem sobre o acontecimentorepresentado um ponto de vista obrigatório (no sentido donosso PDVI), é aquilo que está representado no «écran»,e apenas isso, que significa; . -

b) um plano é, assim, assimilável a um signo (de tipo ideo-gráfico);

c) a leitura de qualquer filme, mesmo que seja um documen-táriò, supõe portanto uma organização 1.° interna ao plano,2.° entre planos;

d) donde, a promoção de um cinema de montagem curta, qúepretende preservar para cada plano o seu valor de- signosimples; donde, a insistência no cálculo de um sistema demovimentos internos ao enquadramento, segundo direcçõesprivilegiadas (paralelas ao enquadramento, diagonais), e porconseguinte de uma representação dos actores de tipo analí-tico, segundo os princípios da designação de tipos.

Curiosamente, este autor de quem a posteridade reteve, principal-mente, os contributos em favor da tine-língua e do tine-ideograma, foide facto o inspirador e o instigador daquilo que, no experimentalismomaciço dos anos vinte europeus, mais se aproxima da lição do cinemaamericano: filmes nos quais o trabalho do narrador consiste essencial-mente em mostrar -- e menos em formar um juízo sobre aquilo quemostra; são filmes nos quais o essencial da narrativa se desloca no corpodo actor, mecanizado (biomecanizado) para uma maior segurança narrativa.V isto que se encontra nos filmes actualmente conservados de Koulechove o seu atelier, As Aventuras Extraordinárias do Sr. West na Terra dosBolcheviques (1924), 0 Raio da Morte (1925), e até Dura lex (1926):filmes em que, para simplificar o trabalho de . leitura, se evacua tudo o-que«enche» inutilmente a narrativa.

É certo que, em alguns dos seus contemporâneos, se dá mais atençãoàs possibilidades predicativas . do cinema. Em Eisenstein, claro, de quemem breve nos ocuparemos. Até no seu discípulo Pudovkine, cujos filmes

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O PONTO DE VISTA

se caracterizam também pela linearidade e limpidez da. narrativa, mas quese permite, de vez em quando, a utilização de grandes metáforas (ver ofinal de Tempestade sobre a Asia (1929) e de A Mãe (1926): um Griffithque . recuasse menos face ã exploração do valor .«simbólico» . do seu mate-rial. Quanto aos teóricos «formalistas», também legitimam a figura retó-rica; «no cinema, o mundo visível é configurado não enquanto tal, masna sua correlação semdntica», afirma Tynianov 30 , para quem a imagem eos encadeamentos de imagens-fragmentos devem ser calculados em funçãodo seu valor narrativo, e, potencialmente, metafórico.

A concepção da tine-língua é portanto, sem dúvida, menos simplistado que o conceito. esboçado por Kulechov; inclui a possibilidade de umaintervenção da instância narrativa directamente sobre o material represen-tado, de um modo análogo àquele que era praticado pelos cineastas ale-mães ou franceses. A metáfora, a figura retórica em geral, passa a terlugar reservado na poética do cinema 31 , como um dos níveis possíveis designificação da imagem-signo. No entanto, se recensearmos as actualizaçõesdeste princípio nos filmes de Pudovkine e dos Feks

32 veremos que, apesar

da inegável beleza de 'algumas delas, as metáforas se restringem, um poucotimidamente, ao jogo com o angulo de filmagem, à montagem encurtada,a comparações intradiegéticas

33 (aquilo a que Mitry chama «símbolos impli-

cados») e que, no conjunto, surgem como suplementos pouco decorativosde uma ideia que a narrativa está incumbida de veicular, principalmente.

Os meus três exemplos são tudo, menos inocentes; passam atravésdas manifestações mais importantes do espírito de experimentação quegeralmente marca o cinema mudo durante o seu apogeu na .Europa. Visa-vam, portanto, destacar a presença, nas amostras mais conscientes destacorrente experimentalista, de um trabalho de significação directa da ima-gem segundo regimes bastante diversos, mas que acabam todos . por marcarna própria representação uma qualificação do representado.

Além da sua variedade, estes exemplos têm dois traços comuns: aimposição de um ponto de vista predicativo, que a imagem está encar-regada de traduzir, provoca um tratamento do espaço representado que,sem prejudicar fatalmente a constituição de um «bom» espaço, o marcacom um selo indelével: o da insanidade, da Unheimlichkeit, ou. o da lite-rariedade 34. Por outro lado, a espécie de colusão que operam, entre umponto de vista (representativo) sobre o acontecimento e o ponto de vista

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E.OËTICAS 1]04 GINEMA

(predicativo); que: aí' se inscreve, só:- se realiza= lance. a- lance (kW- a-. impre-cisão: dos rótulós e:•.das escolas); sem nunca set sustentado por urna• teorizaçáo - geral= desta= relações . entre o' espaço; a> representação; e a instituiçãode: isotopias conotátiVas;

Ë aqui que; encontramos- Eisensteint.Não sejamos-. fetichistas: Eisenstein: não é realmente. um- génio tão

solitário» como- às= vezes- se' diz:. A-. sua: reflexão: radica em todo, um= terreno

teórico e- prático;- que aliás, acabamos= de evocar,, e: de: que. é. largamente.tributária. Se me parece: natural, considerar.. o seu. trabalho neste pontoexacto-- da minha exposição;, 6 unicamente. porque foi. ele: quem- nos deua formalização- mais, acabada- desta: problemática.= dar figura- e- do-.sentido:

Primeiro; já- no período. final= dos, anos: vinte,.. cotn= a reflexão= sabre:os: princípios de montagem . que; ele: empreende paralelamente à r realizaçãode! Outubro (1927) e de A- Linha- Geras (1929) :• Ponto limite desta, refle-xão: a,: noção • de- montagem «intelectual»- que visai promover- um- cinema--ensaio . em- que a, ficção, fosse . apenas um . sttpórte pretexto para- encadear:representações, que valem: principalmente. pela. sua= carga associativa— e- otrabalho.-do cineasta:consiste,. neste. caso;. em.estabelecér a correlaçãoesimu1:,tânea: dos- elementos, ficcionais : e, entre • as «associações»- possíveis, as quoo: discurso; a- tese„ irá-. reterr mais utilmente. Segundts, a: formulação, um.pouco-'extrema=que Eisenstein: não:-teme. produzir. (p:ara,si=próprio; é certo,em, apontamentos-. de. trabalho); . trata-se de-- «pensar directamente :. em- ima:gens»;. a. fórmula. é. excessiva- e,. aliás ; , não. completamente- lúcida, e-- umadás-. críticas.. mais - irrefutáveis:. que se pode. fazer- a.: esta . teoria. diz. certa=mente respeito . à sobrevalorização.- das:- equivalências: discursivas_• da.- ima-gem P.. Na_ verdade; . o cinema. «intelectual.»- não passa. • de- uma-. defesa,.radical - mas -ainda assim :puramente ° teórica;-das. infinitas possibilidades- pro-dutivas. da.. montagem; além . disso, segundo. o . próprio. Eisenstein,- a - mon-.

tagem intelectual..não.é,.diferente, -por..natureza,.,dá montagem..«harmónica»,:ou sejai,de um..jpgo:de agenciamentos e- de relações_ capaz-- de:estabelecer,por. exemplo,, a - seguinte - cadeia:..

V'ësho--triste--F Vela que- se' brixa--f' tenda-info re-+ dédos`grcetorcem urna- boina'-F lágrimas nos' olhos"

para dizer o; luto; mobilizando assim:' tanto elementos: diegéticos corna,parâmetros_ da. representação: Nos termos , que estabelecemos., deparamos;,

142:.

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Ob' PONTO DE VISTA

evidentemente, comi úmai concepçãoldq cinema:.que'aumentac desmesuradà-..mente o ponta de vista predicativo; aos ponto/ de a- transformar., tenderF

no '- único motor; .e- único' princípio: de: oáesáo: da, um discursofflmico; erm que o. próprios discursivas é=. hipertrofiado:. .•

- São estes «excessos»-- que' Eisenstein insiste'em; corrigir;. uns: dez-anos:maist tarde, n a sua- série de' textoss. sobre' a montagem;. através: do • conceito:central, de «emaginicidad '» Não • posso- aqui debruçar:me. pormenorizada=-•mente , sobre , esses . textos que já: comentei .em . outro lugar; e•-que muito: emsbreve seeks'.publicados, em= tradução .. francesas. norma-' estética; que aí: sepropa submete» o- filine a uma exigência/ duplas'

---o•filine deve figurar, (representar) areal = de uma--maneira tverosimil;que—não, choque visa°•- «normal3>; quotidiana, que dele se" pode • ter; • exi-gêhcia, vagas mas- que insiste nas- prod>]çãó; por umi fade .; de um «bom»,espaço-tempo cénico, por' outro de , uma. narrativa irazoavelmente'linear; este:trabalho - de representação • (de denotação)'- é sempre primeiro; nãò. podeser- esquecido;

— o filme deve veicular; a partir - desta representação-' e sobre - ela;uma imagem- glõhal; concebida' tanto como-«esquema», tanto como- «gene-ralìzaçãõ»•metafórica; • e que- é` de- facto ,o aspecto,- puramente predicativosdeste cinema:

Esta: revisãõ - um: pouco: esquelética= des- grandes-- principias' expostosao •longo-do tratado--de' 19 =37='sobre a-montagem ,escamoteia

, excessivamente;

sem- duvida; os meandros, as- hesitações; as , contradições:---para' melhorsalientar , a. conjúnçãô,- levada-- aqui' ao • seu' ponto--dê fúsão"ideal, do t ponto'de vista representativo -e' do discursivo 36`' Remeto -a•-leitor--ao--texto=eisensteineano; para' que • -a í aprecie a farmajcomo estes? princípiosse'encarnamnuma reflexão.-- sobre , o • enquadramento; sobre o -som; oú - até sobre o tra= •bato do actor, e .limito=me aqui =a• sub'linhar•-úma'questão 'que esta aproaimação -da. forma: e dó•-sentida- fílmicosilevanta-"de-um'- modo' privilegiado:a, questão da- verdade:

A ixnaginicidade, constituição-- de- uma imagem' abstracta- sobreposta- àrepresentação', e' quem a • interpreta; só'' tem-- efeetivamente• . sentide-• sei estaautoleitura do filme • fer 1;°` única; 2 ° legítima. - Ora ,. estas, dúas exigéiiciàs;para. Eiiensteity constituem=-uma ‘ exigêhcia'untcar• é'por .• a•-imagem>glebal-sers-verídica? que. ele: é; além disso;= inequívoca: L `possível dizê"IO". (de 'uma.a.maneirao mais ': elegante) 3 como'Barthest

., «Ar arte- dé'Lisenstein'- rráb ; é 5 pala=-

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ESTÉTICAS DO CINEMA

sémica (...); o texto eisensteineano fulmina a ambiguidade. (...) O decora-tismo de Eisenstein tem uma função económica: profere a verdade.»

Não é sem dúvida indiferente que esta «verdade» com que Eisensteinse preocupa encontre um critério últime, numa pragmática da luta de clas-ses — portanto no exterior do próprio filme enquanto discurso. Recor-damo-nos das violentas criticas proferidas pelo próprio Eisenstein contrao final de A Greve (1924) por causa da sua ineficácia concreta, e deoutros casos do mesmo género, que deveriam bastar para lembrar que nãoé realmente a verdade dos lógicos que aqui se visa. No entanto, se osistema eisensteineano me parece, ainda hoje, inultrapassado em algunsdos seus pontos, é precisamente neste, atendendo a que determina quea forma fílmica (po rtanto, entre outras coisas, qualquer tomada de vistas,qualquer instituição de um ponto de vista representativo) é determinad a .pelo sentido que se atribui ao representado, para obter .determinada efeitoem determinado contexto. O que está em primeiro lugar nesta concepçãoé o sentido, que informa literalmente todo o trabalho de produção — soba garantia de bom funcionamento fornecida por um critério de verdade.

Ora esta teoria, que não teria grande peso se desse conta apenas dosfilmes de Eisenstein, esclarece sem contestação as relações entre a formae o sentido no cinema «adversário» deste. Que se passa se não se dispõede um critério de verdade deste tipo, ou, o que vem a dar no mesmo, sese diz que este critério não tem que ser explicitado porque é o conteúdodas próprias coisas (sob a garantia última de um Deus leibniziano)? Sabe-mos com o que se parece a teoria do cinema correspondente: pretende queo sentido seja múltiplo, abundante, análogo, na sua ambiguidade, (Bazin)

própria vida — e daí que o trabalho formal consista, antes de mais nada,em «investir o mundo», em fazer do cinema uma «reprodução da reali-dade, ininterrupta e fluida . como a realidade» (Pasolini).

Dizendo-o nos termos deste artigo, o que Eisenstein demonstra, directae indirectamente, é a indivisibilidade da relação entre a representação, oponto de vista ', e o ponto de vista4, a significação imposta. Eisensteinesforçava-se por traduzir em metáforas plásticas os seus «parti pris»; defen-sor de um «parti pris das coisas», Bazin pedirá que não se entrave odiscurso do «mundo» disposto a falar mudamente; além das significaçõesque a realização implica 37 , a exigência baziniana de uma mais-percepção,de um alargamento, de um aprofundamento, de um alongamento, em .suma,

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O PONTO . DE _ VISTA

de um incessante : a-mais quantitativo, . tem - valor , genérico: visa apresentarna imagem, em toda . a imagem, . essa ideia de ambiguidade que implicaum . juízo essencial sobre a realidade. Paradoxo, se . quisermos, mas nãosó: A .recusa mais `obstinada de escrever, cede sempre ---Davey demons-trou-o perfeitamente como exemplo de' Hawks -- á necessidade de escre-ver essa recusa de uma maneira ou outra, e o extremismo . mac-mahoniaiioque, em muitos pontos, diz a verdade . do bazinismo, inclui em si próprioessa necessidáde na sua . definição da encenação langiana 39.

Assim, _e sem entrar mais -a partir daqui na descrição das atitudesdiversas. historicamente adoptadas contra esta ideia de um discurso daimagem, o que na fase actual da nossa reflexão se inscreve é a colusãoinstitucional em grande parte da história dos filmes (talvez em todos osfilmes) entre duas funções, ou melhor, entre duas naturezas da imagem.A primeira é dar a ver, segundo diversas modalidades mais ou menoslegitimadas pelo estabelecimento de convenções próprias. A imagem mos-tra. Faz-se muitas vezes a observação que, perante o filme (que nissose parece com o sonho), não . se escolhe, ou pelo menos não completa-mente, o que lá se vê. Já retomarei este ponto, para voltar a falar bre-vemente da espinhosa questão do espectador do filme — limitando-me, demomento, a salientar esta definição primeira e essencial da noção daimagem fümica: dá a ver algo que não está lá, mas que se supõe queexista em qualquer parte, e que representa. Estrutura-se primeiro, por-tanto, em anterioridade lógica, como mimo de um ponto. de vista, comoponto de , vista representativo definido por uma relação entre presença eausência (é o sentido primeiro da questão do enquadramento: que .mos-trar? e, sendo assim, que produzir fora de campo?). Não é demais repeti-lo,nesta função de «monstração» a imagem é soberana, mesmo que a mestrianela não se assinale tão materialmente como na pintura (em que a pince-lada é sempre a metonfmia mais directa do' pintor).

Simultaneamente, a segunda função ou natureza: faz sentido. Mobilizatoda• a espessura da' matéria icánica, e também todos os traços da repre-sentação, . para construir significado. Este ' sentido construído, conotado,talvez magro (a ambiguidade baziniana, o «não-toco-em-nada» rosselliniano,são disto, talvez exemplos extremos);. pode i pelo contrário, invadir .o campocoma ' uma , erva daninha, , como . as' flores de escuridão e : : de retórica do

I4510

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ESTÉTICAS DO CINEMA

caligarismo: ténue òu opaco, lábil ou consistente, está sempre lá: A. imagemdo filme, pelo menos tal como até agora produzida, é 'sempre predicativa.

Naturalmente,. esta colusão entre o dar . a ver e o :dar a compreender(ia dizer .dar a ouvir»: lapso de protesto, sem dúvida, contra o silêncioem que me mantenho a propósito da representação sonora), por maisuniversal que me surja nos filmes, não existe,: sem dúvida, fora do' nar-rativo. Se podemos ler na imagem uma qualificação do representado, équase sempre por intermédio da coincidência entre ponto ide vista repre-sentativo e ponto de vista narrativo, por um lado, e por outro, .correlati-vamente, por intermédio da instituição de esquemas narrativos e de funçõesactanciais '(de personagens) : que mobilizam mais directamente o registodo simbólico. O narrativo, e mais especialmente o ponto de vista nar-rativo, seria assim o que, inscrevendo-se ao mesmo tempo em . termosicónicos (especialmente sob os tipos de enquadramento) e em termos designificações; e de juízos, operaria a mediação necessária a qualquer valorpredicativo da imagem. No entanto, a narração flimica, segundo me parece,tem pouco a ver, em si, com a imagem. É muito mais o retomar demecanismos gerais e abstractos, aliás abundantemente estudados de -háuns decénios para cá, e diversamente reincarnados no cinema. A dificul-dade. está, evidentemente, em ; que é impossível atribuir algum lugar, nodiscurso filmic°, aos processos narrativos:: -deslizam através das figurasde montagem, mas também se imobilizam em . enquadramentos, insinuara-se«dentro» do próprio representado. E por isso .que• os melhores trabalhassobre a narrativa filmica não podem — leia-se o livro de Vanoye —senão visar a narrativa dentro do filme, e nunca, realmente, o filme (todoo . filme) como narrativa.

Antes de retomar, pela última vez, este entrelaçar dos pontos devista que, da imagem, se oferecem ao espectador, permitir-me-ei, numaúltima digressão, tentar delimitar ainda esse suporte falso do narrativo nofilmic°, que o transforma simultaneamente na mais segura peça do

'

tra-lialho cio dom, e na menos específica das operações do discurso filmic°.

Vou considerar, não isento de uma certa arbitrariedade ligada ascontingências da disponibilidade das cópias dos filmes, o princípio -de gim.filtre de Hitchcock realizado em 1935, Os 39 Degraus

4°.. Mais precisa-

mente, considerarei os cinquenta e um primeiros planos ' depois do genérièo,que formam uma espécie de prólogo do filme: com excepção do primeiro,

-x0

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o PONT •O VISTA

que esquecerei,, estes planos formam uma única sequência, cujo papel naeconomia: narrativa do filme é o de organizar, o encontro entre o herói,

_Hannay, e o agente secreto Annabella' Smith, que morrerá um pouco.mais tarde nos seus braços, comprometendo-o assim na aventura; esteencontro ocorre no final da sequência em questão, de forma «natural»-no caso de um encontrão. Ora, toda a . 'sequência, orientada para estefinal que_ permite «engatar» o resto do filme, é de facto subterraneamentedeterminada por outra necessidade, diversa: mostrar o frente a frente entreHannay e Memory, o homem com memória fenomenal que é, como seperceberá _na última, sequência do filme, a m alha' essencial de uma redede espiões.

Assim, nesta sequência, o trabalho da instância narrativa é duplo:trata-se, por um lado, de conduzir o espectador dos primeiros planos emque, no início, e de um modo fragmentário, o. herói é apresentado, ao seuencontro com Annabella, insistindo sobre o carácter aleatório, portantonatural, da sucessão dos acontecimentos; por. outro Iado, mas «sem dizer»,é . necessário marcar a relação entre Hannay e Memory, o herói e o agentesecreto, que toda a narrativa vai precisamente implicar na mesma históriaem que serão inimigos. É este «sem dizer» que é. problemático, evidente-

• mente: porque se eu posso afirmar, sem margem para dúvidas, que -oprólogo do filme contém este frente a frente, é por ele ser efectivamente«dito» num determinado nível.

Especifiquemos este «dizer». A sequência-prólogo comporta, em traçosgerais, três «momentos» que correspondem a três tipos de enquadramentos:

os planos anónimos, no sentido em que Nick Browne fala . denobody's shots [planos de ninguém], ou seja, de enquadramentos atribuí-veis, enquanto olhar, à instância narrativa e a ela, apenas; são os seteprimeiros planos, ao longo dos quais nos mostram, sem nos revelaremo seu rosto por enquanto, o herói que entra 'e se instala no music-hall,depois o conjunto da sala;

—uma série de campos-contracampos- entre a sala -e o palco, emconjuntos de sete ou oito planos, relativamente pouco regulares (poucosenquadramentos são re-utilizados de uma forma idêntica, 'em- particular ospontos . de vista da sala variam continuamente — talvez para melhor colara esse olho - múltiplo que 'o. público é, » talvez, também, para melhor con-

.fundir); - . ... .

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ESTÉTICAS DÓ ' CINEMA

finalmente; Os -planos tin que se articula o "encontro Hannay-Meínory; constit iëm um dispãsitivo bastante complicado, que' melai • 1) ' a

'ápiesentação de' Memory, eni-vários' tempos, até ser brutalmente projectadopara primeiro plano, rio plano 23, em que saúda o público, e a nós tam-bém ao mesmo tempo, graças .a um fugidio mas nítido olhar-cámara, 2). aapresentação de Hannay, também difusa; incluindo, além dos primeirospianos em que só 'o vemos de costas e parcialmente, o plano " "31 em queele tenta, em vão, fazer a sua pergunta pela primeira vez (um comparsamobiliza imediatamente a atenção de Memory e do espectador); e, mediantenova manifestação arbitrária do narrador, o plano 41, em que ele surgede repente, de frente, no fim de uma panorâmica, onde já não se esperava,finalmente 3), -o face a face propriamente dito, em que o vemos dialogarcom Memory.

Toda a astúcia deste encontro -- ou melhor, o verdadeiro logro queaí se instaura-- reside no facto de actualização do face a face• (plano 43)ser • tratada de forma completamente ariódina, tal corno se fosse- um planoa ligar, entre outros, à vasta série palco-sala. Inversamente; nos planos 23e '31

. (peço desculpa' por numerar), o face a face vê-se inscrito simb^olica-

inente — nomeadamente através da complementaridade muito nítida elasdirecções dos olhares — sem ser diegeticamente actualizado, portanto" "éilegível' para o espectador, más surge numa representação infinitamentemais adequada da realidade da relação entre os dois homens ' (afrontamentodirecto).

Talvez "seja difícil, a quem não tem o filme presente, aceitar tal equal a minha descrição-- mas, analisando o filme, parece-me impossívelque" não salte à vista esta relação entre dois planos que são, ern todo oéxcerto, os ünicos.'que mostram os personagens de perfil e a olhar osten-sivamente para' fõra de campo.

• Como resumir tudo isto? Em primeiro lugar, súbliíi.hándo a astúciada . narração, que apresenta esta primeira sequência como prólogo e arran-que da segunda (conversa Hannay-Annabella) via um acontecimento aci-dental (o tiro de revólver), -permitindo assiM recalcar =a primeira com aseguida — donde, a instituição de um logro narrativo pelo esquecimentoda personagem -de Memory, e o' disfarce do seu papel chave. Depois,repetindo que aquilo que, ria primeira sequência, está apesár • de" tudoarticulado quanto ã relação Hannay-Memory, o está num registo''direttá-

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O PQNTQ DE; VISTA

mente simbólico ; .(afrontamento, topologia. dos olhares, dominante/dómi-nadó, encadeamento da trança- dó saber e da, verdade), e po rrtanto respeitaá leitura e não á simples . visão —e por . outro , lado se encontra insçritoem dados •exclusivamente visuais. -

Espero que à falta,de'uma descrição perfeita pelo menos se reconheçaque o meu exemplo surge. no lugar certo, nesta escansão de relações, donó, entre o representativo, o narrativo e o «simbólico». (Que seja_ apre-sentado a, partir de. Hitchcock, ou . seja, de um cineasta em que a preo-cupação com a mestria e a, . articulação , não ficam_ a dever nada_ a ..umEisenstein, não deve surpreender, mas antes ser um indício de que nestsmatéria, as fronteiras, se é . que existem, entre a . escrita e a transparência,são _ sempre permeáveis):

Através deste último exemplo se volta a dizer, assim, o jcigo . reciprócodas ,diversas instancias: filmicas, dos diversos «pontos de vista»; paraterminar, gostaria apenas de situar essas instancias, esses dados flrniços,em relação ao seu destinatário: o espectador. Aquilo que acabamos desublinhar, depois de muitos outros o terem feito, e . que demonstra todaa travessia da história. dos filmes, é que, como qualquer obra, de arte, ofilme é doação. Aquilo que o filme dá ao seu espectador, é .certo que deformas muito diferentes, é sempre:

a) a . vysta sobre um espaço' imaginário coerente, que é - construídoatravés . de . um sistema 'de vistas parciais, (não contraditórias, salvo excep-cão); este primeiro estado da relação do, filme .com o seu espectador foi',desde há,. muito tempo, reconhecido . e delimitado .enquanto. tal. Para nãoirmos mais longe, Souriau e à escola filmológica, depois Mitry, em especial,destacaram, entre outras, essa :«grande carácterfstica do universo. fíimica».que é a ,constituição de um espaço

41. E .claro que estes cineastas, ou `estas

épocas, insistia n mais na ápárição.«filmofánica» (Souriau). dos .Objectos'----é o sentido, da; noção de «fotogenia» em Delluc Ou Epstein, ou dó grandeplano'einsteineano; mas nem o telefone de La glace à trois faces (Epstein,1927) nem o ,-«lorgnon» do Potemlk n (Eisenstein, 1925) (ou . a chaleirade Muriel [Resnais,. 19631) escapam totalmente ã apreensão espacial.:

_Em termos de psicologia; ou de metapsicologia, do espectador, o filmeé antes' de. mais nada .acto,: de «moi stração»,. a instituição, do enquadra-mento,' as suas -modificações, a . sua mobilização _ substituem-se, ao olhardo sujeito-espectador; muitas vezes se descreveu esta-futição de substituição;

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ESTthCA DÓ : 'CINEMA

nos seus 'alcances diversos 'e u só gostaria de 'adiantar tim eselareamento . Sobre' - a` relação

entrefilMica .e o exercício da pulsão

eseciPiCa relação tendo sido colocada no : centro das teorizaç'óesrecentes do dispositivo cinematográfico, .:nãci nie -Parece claramente ligadaao esquema . preciso com que Lacan, " tia sua releitura de Freud, descreveá pulsão. Não tenho a certeza, em especial; de que a ideia de uma «iden-tificação» do sujeito-espectador com a câmara se extraia, realmente,' daperspectiva empírica (fenomenologii, se quiserMós) em nome da qual umMilniterberg podia, desde 1916, assimilar a panorâmica ao movimentodo olho "dentro 'da sua órbita. Não 'contesto ,a • ideia de que se estabeleçauma relação de identificação, no disPOsitivo cinematográfico, entre umespectador «oranividente» (Metz) e o feixe do projector, 'figurante meto-nimico- do olhar «projectado» pela câmara sobre o mundo. Mas 'no cinema,tal' . como .nas outras artes da vitãO, (quer se organizem ou hão .. em espec-táculos); o espectador é também; e talvez o 'seja antes de mais • nada, aquelea quem «dão em cheio ' nos olhos.» Recordamo-nos que, na sua análiseda' pulsão estápica, Lacan marca (de . modo lacunar, como é seu hábito)a verdadeira suspensão. do olhar que opera o 'quadro (clássico). «O' pintor,•Aquele que deve estar em frente do seu quadro, dá algo que, pelo menosem parte, em pintura, se poderia resumir assini — «Queres olhar? Entãovê . isto»: Dá qualquer coisa cp. e serve' de alimento ao 'olho; mas convidaaquele a quem o 'quadro é apresentado a depor ali o seu olhar, 'coM° sed 'ePeSeni armas 42 . «Ë certo que o cinema não é a pintura, Meimo a pinturadé paisagens Ë certo ainda 'que aquilo que no dispositivo cinetriatá

evoca o espelho primordial não foi erradamenie valorizado ". Emborao filme apesar . de tudo, uma contemplação, complicada e contro-vertida pela mecânica narrativa,' mas que supõe sempre s, antes de maisnada, a existência -de um espaço ico revelado ao 'espectador sujeito«Omnividente», Mas também, inseparavelmente, sujeito apenas 'vidente;cujo olhar é carialindo; 'Como que bloqueado, pela representação filmica;Oudart assinalou 'com pertinência, parece-me, esta -<xdialéCticai> entre umarelação hrnl,identifitatória, e a ' apreensão significante, ' mostrando suces-sivamente como o sujeito espectador «com júbilo e vertigem apreende oespaço irreal» (é o tempo do omnividente, da relação dual); e depois como«esse espaço red . -tine era, bé 'Um instante, o campo da sua fruição setraniforimiu na distância que separa a câmara da S personagens, que' não

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• .0 PONTO DE VISTA

estão .ali, que já .não dispõem-dó «estar. ali» inocente de bá_pouco,,.mas,sim- do «estar ali para» (para significar .0 campo ausente, e a própria figuradaquilo a. que Oudart chama .o Ausente):

Sem dúvida que Oudart força demasiado as coisas ao assimilar, mesmoque seja analogicamente, esse torniquete ao modelo exteriormente elabo-rado para designar, de um modo -hipotético, a - 'relação do sujeito com oseu- próprio discurso. Por isso o que me convence nas suas intuições nãoé a . Valorização mecânica de . uma cinematografia «que submete a suasintaxe» . .à ,relação de «eclipse alternativa» do sujeito pará com o seudiscurso, mas é, muito'mais, a designação da relação tópica entre o campoe o outro-campo '(ou. «campo ausente») como `charneira móvel entre. ácontemplação .e. o olhar, entre a «satisfação» dá pulsão escópica e a súasuspensão através da vista,

b) Simultaneamente, e de forma particularmente contraditória quantoaos mecanismos psicológicos que estão em jogo, o espectador é conduzidopor uma .narrativa. O lugar desse espectador .foi, e muito bem, descrito(por Nick Browne) sob a designação de locus: esse lugar representa umafunção «habilitaste», capaz de estabelecer uma ligação entre ficção e enun-ciação, ou riais precisamente, . de assegurar entre estas duas instânciasuma passagem` um «torniquete», que nem por isso deixa de evocar 'exacta-mente o modelo estabelecido por Oudart para a vista fílmica.

Seria simplificador deduzir, a partir daqui, que o filme institui duasrelações separadas . com o seu espectador, uma enquanto dá a ver umespaço imaginário, outra enquanto faz seguir uma narrativa; estas duasrelações são, sem dúvida, uma apenas, e a aproximação metapsicológicaque iremos aflorar não poderá distingui-las melhor do que a aproximação.fenomenológica anteriormente esboçada. No entanto, esta dupla relaçãosurge-me como fortemente assimétrica, pelo menos no facto de ser nodesenvolvimento da : narrativa' que se produzem, no essencial, as identif i-cações

as em sentido estrito ,= as identificações «secundárias» de que fala

Meti (retomando o sentido 'freudiano) e que nunca são, sem duvida, maispoderosas do que quando as situações representadas são simples, abstractas,arquetípicas.. Estas «identificações secundárias» não 'são facilncnte- estu-dáveis 47 (e talvez sejam geralmente sobrevalorizadás); gostaria, no entanto,de insistir ná hipótese que acabo implicitamente de colocar: estas identi-ficações visariam essencialmente as situações narrativas arquetípicas, e as

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ESTÉTICAS DO CINEMA

situações: : representativas'' fortemente codificadas; a' presença .concreta (soba forma; por exemplo, da sobrecarga figurativa) 4 fìincionaria, relativamentea elas, como obstáculo, incitando • o espectador a olhar,.e já não a abolir-senuma-: relação : dual ' que 6 . sempre da

Ordem;

da incorporaçãá.• ' •-c) . Finalmente; _em' relação • a • este regime narrativo-representativo tra-

dicional; • e • ao jogo complexo .de sedúção%identificação que ele propõe aoespectador, a imposição de um sentido á representação fílmica, como ins-inscrição directa de. significados autonomizáveis no • analógico, já s6 podesurgir como uma perversão. Aqui encontramos, pelo menos é o . que : eúpenso; Lacan' e a enigmática: observação com que ele conclui. a sua • análiseda- função• do quadro, afirmando que numa .face .inteira da. pintura», •apintura expressionists.; «dá algo que se assemelha a uma certa satisfação»da pulsão visual, a uma certa c«satisf ação ao que o olhar pede», no sentido,portanto, da• perversão.

. Não é ocasião para encetar urna exegese desta • frase, que não me éinteiramente clara (principalmente quanto à questão do «traço pertinente»que • distinguiria a. pintura «expressionista» de que fala) . Apesar das pre-cauções com - que certamente convém 'rodear qualquer utilização do sistemaconceptual lacuniano (que não é de forma. alguma articulado em termosde uma estética), talvez agiii se esboce urna descrição • possível da relaçãosingular (relação 'de consumo, de uso; e tendèncialmente de urna formade fetichismo) que sustenta, como que paralélainente às duas primeiras,

•o filme com 'o seu espectador.[Junho, 19811

NOTAS

1 Cf: a «pose» necessária às• primeiras= fotografias (durante' meia-século) • e osaparelhos, inevitavelmente de tortura, inventados- para.- a manter. -

a Exemplos muito sintomáticos desta hipástase em.toda a literatura inspirada pela«política dos . autores» e pelo seu ' avatar mac-mahoniano. Para se ficar amplamenteconvencido, vela-se Michel Mburlet. De uma forma niio'delirante, e, orientada parauma via mais' produtiva, encontra-se a- mesma • preocupação nos' primeiros textos deRaymond Belleur;; le Monde et la Distance, e principalmente Sur Fritz Lang. ' -

'. Voltaremos a isto • no fins do artigo, porque a quantidade de trabalhos. dequalidade consagrados a esta questão permite•me, de momento, ser. rápido. Além, dosclássicos (Baudry, Meta) ver também, no livro de J. P. Simon, 'o parágrafo «Sujetde I'enonciation et double identification» (p. 113). .. ' •

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• O PONTO DE VISTA

Deixo, .aqui; completamente dé lado o debate: das '«origens», sítfidentémentereconhecido hoje como um pouco absurdo. •

A sensibilidade a esta contradição esbateu-se depois da confirmação da hege-monia do cinema e da transparência. Era ainda muito viva -no fim do período mudo,como testemunha excelentemente-o princípio do livro de Arnheim (A Arte do Cinema,Ea. Aster; Lisboa).

6 E sucede muitas vezes o mesmo aos outros parâmetros da . representação impli-cados pelo sentido «número 2». Ver, sobre este ponto, o desenvolvimento da proble-mática observador/observado em Bellour, a partir do seu artigo sobre Lang acimacitado, e de :uma forma diferente, a partir da sua análise .de Os Pássaros. (1969).Correlativamente, é instrutivo ver a que ponto, para autores. como Jost (ver o seuartigo de Thêorie du film, p. 129) ou Vanoye,. a locução «ponto de vista» _é mono-sémica: remete sempre para o ponto de vista narrativo. -

7 Em «Theatre et cinema» (1951): «Foram Degas e Toulouse-Lautrec, Renoir eManet que, compreenderam do interior, na sua essência, o fenómeno fotográfico (eaté, profeticamente: cinematográfico). Defrontando-se com -a fotografia, opuseram-se-lheda única forma válida, através de um enriquecimento dialéctico da técnica pictural.Compreenderam, melhor que os fotógrafos e muito antes dos cineastas, as leis danova imagem, e foram os primeiros a aplicá-las.»

' Ver 'o notável estudo de Keith Cohen na primeira parte do seu livro..9 E se a história do cinema encontra a do teatro, é essencialmente por inter-

médio dos actores —ou ' seja, num plano económico ou sociológico, mais do quenumplano estético.

1° Sobre a narração nos filmes «primitivos» -vex, além das histórias do cinemaconhecidas, os trabalhos de Noel Burch, especialmente o seu artigo sobre Porter, eos conjuntos de ' textos, desiguais mas insubstituíveis, propostos . em várias ocasiõespelos Cahiers de la Cirrématheque. -

" Mesmo nos melhores autores, como cada um poderâ verificar. Por isso meparece notável, nas análises de M.-C. Ropars, que no entanto são expressamente sobrea problemática da escrita, o cuidado posto no recenseamento e exploração dos dadosfigurativos.

12 Na dramaturgia brechtiana, o gesto social é o instante no qual se pode ler osentido histórico da representação. «O gesto social é o gesto que é significativo pataa sociedade, que permite tirar conclusões que apliquem às .condições dessa - socie-dade.» (N. Org.) •

27 Apesar dos progressos verificados de há. cerca -de quinze anos para cá. Mas ostrabalhos históricos, na exacta medida da sua seriedade, confirmam a dificuMíade: oslivros de l3rownlow, ou de Deslandes, por exemplo, têm o efeito --secundário masespectacular— -de designar nitidamente os «buracos» do nosso conhecimento do pas-sado histórico (cf..Deslandes•que-renuncia, por falta. de documentos -fiáveis, a ocupar-seda «guerra dos brevets» de 1898, ou. Brownlow que constata a perda definitiva de.todos os .filmes mudos da Universal.:.)

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ESTÊflCAS DO CINEMA

" Sobre . o . Black.' 'Maria; e os primeiros filmes que aï estio registados; ver oartigo de Gordon Hendricks, 1959. Sobre . o estúdio Mutoscope, ver as fotografias,p. 282 do vol. II de Desrandts e pp. 28-33 de Brownlow-, 1979.

1.5 Metz extraiu as consequências, estéticas e semiológicas no seu artigo «Montageet discours», por exemplo, que esquematiza . observações de Mitry.

16 Sobre o «Hale's Tour»: Brownlow, 1979, pp. 48-49. Poder-se-ia- igualmente,citar o célebre «primeiro travelling», efectuado pelo operador Promio.numá gôndolade Veneza: Mitry, recordemos, demonstrou magnificamente que este plano 'eìn- deslo-cação não é equivalente a um «verdadeiro» movimento de câmara, ainda menos ,auma montagem no plano (ver o seu Esthétique ..., p. 151). . -

" Film d'Art: produtora francesa fundada em 1908 com o fito de adaptar osclássicos do teatro ao cinema. (N. Org.)

" Em particular,-a famosa querela sobre a invenção, ou não, por Porter da mon-tagem alternada em Vida de um Bombeiro Americano (1902): bom, egpacionamentoda questão estabelecido por Amengual nos Cahiers de la Cinémathèque. Sobre Griffith,a literatura é ainda mais abundante: preciosas anedotas nas memórias de Linda ArvidsonGriffith e de Karl Brown.

" Tentei examinar com mais pormenor estas convenções no meu artigo sobreGriffith, para o qual remeto.

m Diegese, de origem grega, significa narração e designava -particularmente umadas partes obrigatórias do . discurso judiciário, a exposição dos factos. No cinema otermo foi revalorizado por Ëtiene Soriau e, de acordo com "Christian Metz, "designaa instância representada do filme, ou seja, o conjunto da denotação fílmica: o enredo,o tempo e o espaço implicados no e pelo enredo, personagem, paisagem, acontecimentose outros elementos narrativos ao nível da denotação. (N. Org.)

21 Na planificação realizada por Pierre Sorlin para L'Avant-Scène, estes planostam' os mimeros 310 - a 317 (ver a tábua de ilustraçães, p. 33)• Este mesmo númeroinclui ainda a planificação de The Battle, que citei um pouco mais acima.

" Ver descrição deste filme, e fotografias, no artigo de Deutelbaum. Recordemosque a crítica ao abuso destes cartões dialogados foi um dos temas maiores d e toda acrítica «intelectual» nos anos 10 e 20; ver, muito sintomático, Vachel Lindsay,.pp. 189-190.

Dizem-se proffimicos os elementos de encenação colocados à frente dá câmarae, portanto, anteriores á filmagem. (N. Org.)

" Sobre estes dois filmes e o trabalho de iluminação, anedotas esclarecedorasno livro de Linda Arvidson. .

Mesmo nos grandes criadores do cinema mudo americano, a procura de expres-sividade na imagem estará sempre submetida,

,

em última instância, a unia forte obri-gação de verosimilhança. Excelente exemplo narrado por King Vidor (entrevistado porKevin. Brownlow a propósito da sua série televisiva sobre Hollywood) da" sequéncia doataque ao bosque Belleau em A Grande Parada (1925), em que o aspecto mortal daacção se vê traduzido pela imposição de um ritmo uniforme e implacável aos movi-mentos dos soldados — Vidor justifica esta ideia referindo-se a acontecimentos reais.

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' - O PONTO DE VISTA.

-.Mabuse

'- fascinante 'e' maléfico personagem de três-célebres filmes' de Fritz

Ling: D. Mabrise . õ jogador (1:' e '2' . partes, 1922); O Testamento do Dr. Mabuse-(1932) e O Diabólico Dr. Mabuse (1961). (N. Org.)

" Ver, especialmente, a crítica de Herbert Jhering reproduzida em.Kino Debatte.• - 38 «De l'adaptation 'et' du film' parlant»- (1929, in Ecrits, tomo I, p. 201.

2' «Les images de ciei. (1928),.Écrits tomo I, p: 190.• " No .seu artigo de Poetika Kinõ (trad. fr., p:.61).•

31 E, recordemos, o titulo (Poetika Kino) da 'recolha de artigos ,sobre o cinemapublicada pelos formalistas Chklovsky, Tynianov, Eichenbaum, Piotrovski •e Kazanski.Só os textos de Tynianov e Eichenbaum -estão traduzidos em francês (sobre o conjuntdda recolha,-ver por exemplo o artigo de Christine Revuz).

Escola fundada em Leninegrado em 1921' por G. M. Kozintsev, L..2. Trauberg,S. J. Yutkevitch e G. Kryzichy, chamada Fábrica do Actor Excêntrico e caracterizadapelas suas experiências vanguardistas. (N. Org.) - . • .•

33 A comparação intradiegética (chamada lógica de implicaçio em Mitry e induçãosemântica em''Arnheim e em Metz) pressupõe um efeito de montagem no interior, domesmo plano uma vez que aproxima e faz contrastar significativamente dois ou maismotivos do espaço real filmado em continuidade. (N. Org.) •

.31 Sobre o carácter extremamente literário- das metáforas no cinema russo inspi-rado pelas teorias formalistas, ver os- exemplos fornecidos pelo próprio Tynianov, emespecial aquele, muito esclarecedor, da sequência de bilhar em .A Roda do Diabo(Chyortovo Koleso, G:' Kozintsev, 1926) em que á queda das bolas-'nas rede de-bilhar se destina a metaforizar a «queda» - do herói:

35 Permito-me remeter aqui para as páginas que consagrei a este assunto nolivro Montage-Eisenstein, onde se encontram outras referências críticas.- . -

36 Para assentar ideias, recordo apenas - o famosíssimo enquadramento de Ivan,o Terrível (1945) em que o czar (cabe ça de perfil, em grande plano, à direita) olhaa procissão do povo russo (fita negra que se destaca sobre a neve, em plano geral,à 'esquerda). Eis o que sobre isto escreve Eisenstein em 1947: «Aqui, simultaneamentecom o contraste plástico mais violento de escala e de cor entre o -czar a procissão;'estes estão unidos pelo conteúdo interno da cena (a unidade do (-Tar e do povo), peloelemento dramático (a cabeça que se inclina, marcando o assentimento) e pela con-cordância das linhas do perfil do czar e do contorno da procissão.» Estamos perante'uma verdadeira situação dramática, encenada como tal, e a sua «verdade» directamentetraduzida em termos visuais na oposição/conjunção dos diversos parêmetros.

" Porque Bazin, contrariamente a uma ideia simplista, não é partidário de umainsustentável «não-intervenção». Ver, a propósito de Welles: - A colocação de umobjecto em relação aos personagens é tal que o espectador não pode escapar à suasignificação. (...) Por outras palavras, o plano-sequência em profundidade de campodo realizador moderno não renuncia à montagem, integra-a na sua plástica», etc.

J8 Os..Mac-Mahonianos —designação proveniente do nome da sala de cinemaparisiense, cuja . fachada estava decorada com fotos de alguns dos seus realizadores pre-feridos: Lang, Losey, Preminger, Walsh— eram um grupo de cinéfilos, ligados aosCahiers du Cinéma, acérrimos defensores da política dos autores e do cinema ameri--

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ESThTICAS DO CINEMA

cano (entre os anos ''cinquenta :e os anos sessenta), cujo princlpioestético se baseavana defesa de uma adequação perfeita, nos, filmes, entre o tema, a forma e a economiade meios. (N. Org.)

n Ver Serge, Daney, Vieillesse du Mime, e Mourlet, Sur . un art ignoré."° Dëcóupage muito cómoda deste filme em L'Avant- Scène, n.° 249, Junho 1980 —

é a minha referência para a numeração dos planos." Constituição de um espaço que não tem lugar. Mitry observa, com pertinência,

que na mobilização do ponto de vista: «[Com a câmara fixa) aquilo que se sente nãoé o espaço mas apenas a extensão. O espaço, com efeito, só poderia sentir-se a partirdo • momento em que aí, nos deslocamos, ou — e vem a dar no mesmo — a partir domomento em que se consideram vários pontos de vista sucessivos.»

"Em Münstenberg, por exemplo, o objectivo encontra-se, de certo modo, inver-tido: o que o interessa essencialmente é mostrar que todas as características do cinemasão «mentais», na medida em que toda a maquinaria representativa do cinema seapoia implicitamente em leis (para ele, «grosso modo», gestaltistas) da percepção eda apreensão do mundo pelo espírito humano. .

"3 Séminaire XI, p. 93. ." Sobre a pintura de paisagens, Lacan, algumas linhas antes da citação transcrita,

faz .notar que os quadros em que não está representada: nenhuma figura humana apre-sentam apesar de tudo um olhar, implicitamente.

" Se bem que, apesar de tudo, o tenha sido com um certo exagero no detalhe,mímico, pela insistência unilateral na imobilidade, no negro da . sala, principalmentena posição do projector «atrás da cabeça» (o que está longe de ser um dado universal).

46 Ver nota 3 ao texto de Metz e nota 10 ao texto de Dyan. (N. Org.)" Ver, no entanto, os trabalhos de Main Bergala, na sua Initiation a la sémiologie

da récit en images, e no último capítulo de Esthétique du Film (Paris, 1983)." Seria possível recordarmos aqui, igualmente, as observações de Metz sobre o

bloqueamento das identificações no teatro, através da presença física, no mesmo espaçoem. que está o;. espectador,, do actor e do edécor». E também desta «presença» que Jean--Louis Scheffer se ocupa,, quando postula, em toda uma parte do cinema, uma relaçãode siderado entre o filme e o seu espectador (que, em Scheffer, é sempre, mais oumenos, um espectador infantis) está siderado, 6* porque existe algo, uma presença, no«écran» — e não : apenas uma representação.

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