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ESTADO LAICO, POVO RELIGIOSO Reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal

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ESTADO LAICO, POVO RELIGIOSO

Reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal

ESTADO LAICO, POVO RELIGIOSO

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ESTADO LAICO, POVO RELIGIOSO

Reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal

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PAULO VASCONCELOS JACOBINAProcurador Regional da República.

Mestre em Direito Econômico.

ESTADO LAICO, POVO RELIGIOSO

Reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal

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Editora Ltda.

© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP — BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.br

Fevereiro, 2015

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: GraPhiEn DiaGramação E artEProjeto de Capa: Fabio GiGlioimpressão: GraPhium GráFiCa E EDitora

versão impressa — ltr 5200.7 — iSbn 978-85-361-8284-1versão E-book — ltr 8581.4 — iSbn 978-85-361-8293-3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jacobina, Paulo Vasconcelos

Estado laico, povo religioso : reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal / Paulo Vasconcelos Jacobina. — São Paulo : ltr, 2015.

bibliografia.

1. Direito constitucional 2. liberdade de religião — brasil 3. religião e Estado i. título.

14-13041 CDu-342.731

Índice para catálogo sistemático:

1. liberdade religiosa : Direito constitucional342.731

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Índice

Apresentação — Paulo Gustavo Gonet Branco ........................................ 7

Ensaio:

A razoabilidade da fé ..................................................................................... 13

Artigos:

O paradoxo do ateísmo e a palavra “Deus” ................................................... 31

Ética, Estado, Religião e Razão ...................................................................... 34

As escolas católicas e a perenização das lendas negras antieclesiais ............. 38

Quando um agente estatal exige que uma freira não reze, ainda há liberdade religiosa? ............................................................................................... 42

Laicismo e clericalismo: os dois desafios ao leigo católico na vida política .. 45

A dignidade da pessoa humana e a Constituição Federal ............................. 48

A tentativa de criação do crime de homofobia no Brasil por meio do Judiciário ............................................................................................... 51

Projeto para reformar o sistema eleitoral brasileiro é uma armadilha........... 54

A lei cavalo de troia — uma análise jurídica da sua nocividade ................... 58

A importância política da verdadeira noção de liberdade ............................. 61

As eleições, a família estável e reprodutiva e o aborto .................................. 64

As crescentes dificuldades de um cristão leigo comprometido para viver a fé ......................................................................................................... 67

A relação e a opressão no diálogo político contemporâneo .......................... 70

O perigo do ataque à razão em nome do laicismo estatal ............................. 73

A dignidade da pessoa e as políticas estatais sobre reprodução humana ...... 76

As mulheres merecem o direito de continuar sendo as únicas mulheres ...... 79

Índice

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Criminalizar discordâncias majoritárias sob o rótulo de fobia não é demo-crático .................................................................................................... 82

Proibição de fazer “qualquer discriminação em razão da orientação sexual” no Brasil................................................................................................. 85

Ideologia do Gênero no Plano Nacional de Educação: proibição de discrimi-nar pessoas por sua “orientação sexual” ............................................... 88

A proteção constitucional do matrimônio sacramental ................................ 91

Quando o pudor e a castidade podem se tornar ilícitos no Brasil ................. 94

Eliminar o símbolo religioso dos espaços públicos pode levar a uma sub-missão incondicional ao príncipe .......................................................... 97

“Pobres cãezinhos” do laboratório da Royal ................................................. 100

Presidente Dilma Roussef promulga lei que pode facilitar o aborto na rede pública de saúde no Brasil ..................................................................... 103

Fornecer segurança adequada a um chefe de Estado estrangeiro em visita ao país é o dever mais óbvio do Estado Brasileiro ..................................... 106

O corrupto é aquele que foi um passo além: perdeu a noção do bem e do mal ......................................................................................................... 109

Mais uma tentativa de impor o casamento homoafetivo por meios antide-mocráticos ............................................................................................. 112

Pessoa, cidadania e dignidade ....................................................................... 115

O casamento e a homoafetividade ................................................................. 118

Estranha pressa para aprovar o Anteprojeto do Código Penal Brasileiro ...... 121

Um projeto de Código Penal para escravos ................................................... 124

Quem ama não mata? .................................................................................... 127

Não se pode dar a César o que é de Deus ..................................................... 130

Os anencéfalos e a dignidade intrínseca da vida ........................................... 133

A ideia de “pecado” e o debate político público ........................................... 137

A fé e a razão no debate contemporâneo ....................................................... 140

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Apresentação

Se você, que tem este livro em mãos e está agora considerando se passará a lê-lo, aceita uma sugestão, siga esta: busque um café, sente-se num lugar con-fortável e prepare-se para não se desgarrar deste maço de páginas absolutamente fascinantes.

A cada artigo que compõe esta coletânea de perfeito bom-senso, seguramente você haverá de sentir os olhos brilharem mais, a inteligência se aguçar e perceber as suas convicções e dúvidas em torno de temas essenciais convocados ao con-fronto direto e sem pieguices com ideias bem assentadas, expostas com entusiasmo e lucidez. Este é um livro de um jurista consumado, que é também um cristão exemplar. Independente da fé ou da falta dela que caracterize o leitor, porém, este livro há de lhe ser instigante. Seja o leitor versado, ou não, no Direito, este livro lhe proporcionará acessíveis coordenadas para uma avaliação crítica no momento brasileiro.

O livro recolhe evidências de que a alta cultura que a tradição cristã estabe-leceu nos dois últimos milênios tem, sim, substrato em boas razões, não é avessa — ao contrário! — à ciência, nada tem de intolerante — mesmo quando sofre a intransigência de tantos que a ela querem opor-se —, é bela e tem muito a contri-buir no desenleio das mais intrigantes perplexidades do nosso tempo. E tudo isso o leitor recebe em linhas escritas com superior expressão linguística, bom humor e encanto de estilo.

Como um outro homônimo do autor, que há dois mil anos nos fortalece e ensina, o Paulo deste livro escreve com o sentido da urgência em viver a coerência com a verdade. Escreve, mais ainda, com os olhos voltados para questões práticas do nosso quotidiano social. E o faz sem o desalento niilista de tantos e sem se perder tampouco, como outros, na ingenuidade do olhar basbaque pregado num futuro imaginoso. O leitor que conhece Chersterton, vai se deliciar com os para-doxos que também são explorados nestes artigos, sempre a mostrar que o absurdo está em sítio oposto ao da retidão saudável que a noção da verdade como adequa-ção da inteligência à realidade propicia. O leitor verá confirmada a conclusão a que o autor britânico chegou, ao publicar a sua autobiografia: “a Verdade pode

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entender o erro, mas o erro não tem como entender a Verdade”.(1) Isso decerto se deve a que não se acomoda em Paulo Jacobina a descrição que o mesmo arguto observador dos costumes ingleses fazia do típico modernista do seu tempo e que vale para o nosso — alguém “que parece estar sempre vindo de algum lugar, e nunca indo a lugar algum”(2).

Paulo Jacobina sabe de onde vem e os seus estudos persuadem dos fins que merecem ser buscados. O primeiro ensaio que abre esta coletânea que a inteligên-cia nacional fica a dever à benemérita Editora LTr, é uma penetrante narrativa de conversão. Sem nenhum sentimentalismo, num relato perfeitamente viril, tem-se ali exibido o que levou Paulo Jacobina à Descoberta do Outro (para lembrar o título do livro de outro genial pensador católico, Gustavo Corção, em cuja linhagem de vigor expositivo e de bom gosto literário, Jacobina se realça, ainda que do anteces-sor divirja no tocante às convicções políticas). A emoção que sentimos não provém de um arranjo de palavras melodramático; este não é o estilo do Paulo. Muito diferentemente, o que nos comove é a exposição de uma aventura vital, desenro-lada em fatos que nos relembram que Deus nos espera a cada quadra da nossa vida, nem sempre no extraordinário dos acontecimentos, mas sobretudo na urdiduras do comum de cada dia. Quanto das experiências ali retratadas não espelham situa-ções nossas próprias! Quanto do que ali se expõe também não nos afastou da fé! E quanto do que ali se descreve nos ajuda à reaproximação com o Bem definitivo!

Os demais estudos enfrentam diferentes problemas atuais, sob a perspectiva do perene, que marca a lógica de Jacobina. Paulo indaga se não haverá deuses insuspeitados por trás das convicções dos ateus, e investiga em que se funda o direito de proclamarmos e ensinarmos a nossa fé.

Outras variadas questões são esquadrinhadas. Em que bases deve-se fundar uma ética civilizada e a própria legitimidade das leis? Que verdade há nos ensina-mentos que nossos filhos recebem nas escolas, quando a Igreja se torna objeto do currículo da História do Brasil e do Mundo? Que significa Estado laico, laicismo, clericalismo? Que desafios se aprontam para o leigo católico que atua na vida pública, que trabalha para o Estado, que se dedica ao Direito? Que significa a fórmula dignidade da pessoa na Constituição da República? Que pensar de temas como o aborto, homofobia, ideologia de gênero, casamento no direito constitu-cional e na jurisprudência? Qual o status jurídico e moral do anencéfalo? Qual o papel do Judiciário em controvérsias de cunho moral? Como se compreende o uso de símbolos religiosos nos espaços públicos? Que armadilhas propõem as últimas propostas de reforma do sistema eleitoral? Que significa liberdade e em que medida ela se conforma com compromissos e escolhas responsáveis? Em que termos se

(1) Gilbert K. Chersterton. The Autobiography of G. K. Chersterton. Nova York, Sheed & Ward, 1936. p. 268.

(2) Id., p. 228.

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põem as dificuldades do cristão leigo num mundo em que tolerância tem sido equi-parada à exclusão de razões morais e religiosas do campo das decisões políticas? Que tem a ver a corrupção com as noções do bem e do mal?

Todas essas provocadoras indagações merecem abordagens neste livro, favo-recidas pela solidez da formação jurídica, filosófica e teológica do autor. Não é surpresa. Paulo tem o grau acadêmico de Mestre em Direito e é respeitado mem-bro do Ministério Público Federal, exercendo o cargo de Procurador Regional da República em Brasília. Tem, além disso, grau acadêmico superior em Teologia e é versado em Filosofia e em Bioética. Em todos esses campos, a sua privilegiada inteligência o faz sobressair, tornando-o protagonista em debates públicos, pales-tras e aulas em que esses saberes se mesclam. Quem conhece pessoalmente Paulo Jacobina fica logo cativo do seus múltiplos talentos (a propósito, ele também é excelente músico), arrebata-se pelo rigor lógico das suas proposições e — virtudes que nem sempre se somam a estas — maravilha-se com a sua simplicidade de trato, despojamento de toda pretensão arrogante, além do franco interesse e respeito pelo outro, quem quer que ele seja.

O leitor deste livro haverá de encontrar essas e outras qualidades refletidas nos escritos que se seguem.

Paulo é meu amigo, e acredito que o leitor também o terá assim, antes mesmo de chegar à última página. Como eu, certamente que se orgulhará de um amigo tão completo; como eu, haverá de ser-lhe grato pelas suas notáveis apreciações, que nos revelam ângulos pouco explorados nas polêmicas centrais dos dias que cor-rem, e que se mostram, afinal, cruciais para o cidadão consciente e para o cristão de hoje.

Paulo Gustavo Gonet BrancoDoutor em Direito (UnB). Coordenador do Mestrado em Direito Constitucional

do Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Subprocurador-Geral da República

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Ensaio

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A Razoabilidade da Fé — um ensaio

1.  Palavras iniciais

Sou um católico que perdeu a fé. E que teve a felicidade de reencontrá-la na meia idade. Esta é uma história mais comum do que parece, e nada mais chato do que história de convertido, nada mais cansativo do que aquelas longas narrações que começam com aquela citação meio banal, atribuída a tanta gente, de que “as palavras convencem, mas os exemplos arrastam”. Não é tão simples. Quer dizer, é certamente um bom chavão para começas uma palestra “motivacional”, ou do tipo “new age”, dessas que as empresas oferecem a seus empregados, ou os clubes aos seus atletas, ou as entidades de empreendedorismo aos candidatos a empresários. Não é necessariamente um princípio cristão: qualquer cristão verdadeiro que não comece sua fala, ou seu texto, com a frase “nosso exemplo é Jesus Cristo” é um empulhador. Mesmo o grande apóstolo São Paulo, quando teve que exortar os rebeldes coríntios a imitá-lo, disse claramente: “sejam meus imitadores, como eu sou de Cristo!”.

Mas o meu sentimento é outro. Embora tendo redescoberto a fé, e a sua pre-ciosidade única, continuo lutando com o péssimo temperamento que tenho, com os vícios longamente carregados, e principalmente contra uma acídia que todos os dias me ameaça sufocar ainda na cama, quando toca o despertador, mesmo antes do sol nascer. Ter redescoberto a fé não me transformou num missionário impetuoso da Amazônia, nem num desses “apóstolos sociais” de anel de tucum no dedo e ótimas intenções “comunitárias” no coração, nem tampouco num fer-voroso adepto das longas orações, das missas intermináveis e das musiquinhas religiosas enjoadinhas. O milagre da minha conversão foi outro, bem diferente: foi contemplar e descobrir a maravilha que é a fé, a preciosidade única que é a Igreja e a realidade concreta e amorosa da Trindade Santa, com quem, descobri agora, posso me relacionar apesar da infinita desproporção que pende do meu lado! Vale dizer, o milagre foi descobrir que a maioria das coisas que eu pensava saber sobre Jesus, sobre a Igreja e sobre a minha própria relação com ambos estava tão pro-fundamente errado que só podia decorrer de um deliberado autoengano, não des-

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contextualizado de uma estrutura social, educacional e política deliberadamente empenhada em me conduzir e me manter num erro assim.

Não que eu fosse uma pessoa especialmente antirreligiosa, ou que eu fosse um declarado ateu, ou mesmo agnóstico. Na verdade, sempre tive uma piedade domi-nical “inercial” e herdada, via a Igreja como um espectro esvaziado, um fantasma que sobrevivera como uma casca de rituais esvaziados pelas críticas aparentemente irrefutáveis que sofrera ao longo de todos estes séculos.

Vivia uma piedade, digamos, social. Que se limitava à frequência dominical à Igreja com a família. Por outro lado, vivia uma experiência de desafio baseada na sensação de que a Igreja estava basicamente errada. Meus referenciais teóricos eram um darwinismo mal compreendido, uma leitura da “idade média” e da “colo-nização brasileira” como provas de que a Igreja podia fazer muito mal à humani-dade, se fosse fomentada, e uma espiritualidade meio “new age”, meio panteísta e muito reencarnacionista — a exata sensação de que, no fundo, Deus era tudo e, portanto, não era nada.

Posso agora fazer uma confissão nada fácil aqui: eu certamente era capaz de ler um livro de Paulo Coelho sem perceber concretamente quais os equívocos e contradições que se escondiam ali, sob o rótulo de “espiritualidade”. Cito Paulo Coelho apenas como exemplo de uma literatura que está disponível a muita gente, e que se esconde sob um manto de uma vaga religiosidade que envolve e empolga muito cristão desinformado por aí. É claro que minha arrogância intelectual me levava a criticá-lo por uma suposta falta de densidade literária que parecia consen-sual entre os mais metidos a intelectuais com quem eu convivia, mas certamente a indigência espiritual da doutrina que ele muito habilmente esconde nas suas tramas me descia alegremente pela garganta como se fossem profundas verdades religiosas. Junto, por exemplo, com um kardecismo que tive oportunidade de res-ponder num livro que publiquei chamado “Cartas a Probo”.

Por outro lado, os exemplos de “piedade” que me cercavam em nada favore-ciam uma mudança de ideia da minha parte. Eu olhava para algumas manifestações de uma parte “mais politizada” do clero católico e mal podia distingui-los dos meus colegas de trabalho filiados a partidos de esquerda e a este sindicalismo marxista e militante que toma ares de “vanguarda sociológica” do passado. Gente que parecia transigir, ou melhor, empolgar-se com todo tipo de “militante” ou “manifestante” vanguardista, como se o engajamento social, mesmo nas causas mais delirantes, fosse o verdadeiro paradigma do bom cristão, “adulto” e “libertado” do pietismo das “velhinhas de sacristia”. Ou ao menos era assim que, certa vez, eu vi um padre “engajado” referir-se aos seus fiéis “piedosos” durante uma missa “social”.

Ou então eu olhava para alguns colegas “evangélicos” (coloco entre aspas por-que tenho amigos evangélicos de verdade, muito queridos, que sempre me foram referência de santidade) e os via citando a Bíblia como uma espécie de livro de autoajuda para o sucesso empresarial, com aquele ar de leve superioridade sobre os

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que não pareciam “conhecer a Bíblia” como eles. Uma certa arrogância que olhava meu catolicismo residual como uma rota certa para o inferno, no meio da idolatria católica e do que parecia ser um imperdoável desconhecimento bíblico por parte de nós católicos mornos. Éramos, para estes “evangélicos” e “biblistas”, aquilo que os americanos chamam de “sitting ducks”, ou seja, alvos facílimos para uma prédica cheia de versículos decorados que visavam demonstrar-nos quão falsa era a fé católica. E quão absurda a Igreja romana. Restava-me apenas a vaga culpa por não conhecer a Bíblia como eu era levado a acreditar que deveria, e não admitir que, fora da missa, ela me parecia um livro velho e chato, talhado para ser manipulado irracional e fundamentalisticamente por quem fosse mais hábil em fazê-lo.

Ou era surpreendido, em alguma missa dominical por aí, com um grupo que se identificava vagamente como da “Renovação” e via uma piedade derramada e infantilizada, mãozinhas balançando na missa junto com os respectivos quadris, gente caindo para trás desmaiado ou “falando em línguas” numa algaravia que, confesso, me parecia pouco “cristã”. Claro que depois conheci o movimento caris-mático católico e pude respeitar sua seriedade e seu compromisso seriíssimo, mas naquele momento ocorria comigo aquilo que São Paulo já profetizara: quando entra alguém “de fora” durante o calor de certo entusiasmo extático no culto cris-tão, ele muitas vezes pensará que aquelas pessoas estão loucas (1Cor 14,23), e é por isso que São Paulo nos recomenda oferecer a Deus um “culto razoável” ou “lógico” (Rom 12, 1), porque cristianismo é seguimento do logos, não uma religião do transe irracional. Uso a palavra “cristã”, aqui, não no sentido religioso, mas no sentido moralista mesmo, de decência e pudor, porque, mesmo antes deste pro-cesso de retorno à fé, sempre me feriu muito a falta de pudor de quem derrama em transe sua piedade por aí, sempre me pareceu até mais pornográfico do que as foto-grafias mais lascivas daquelas pobres meninas vítimas da indústria sexual. Pudor religioso parece mercadoria em baixa nos dias correntes, até mesmo na Igreja.

2.  A interpelação da fé à minha razão

A minha confusão a respeito da fé aguçou-se por três experiências:

1. a catequese dos meus filhos, que me interpelavam com perguntas que eu julgava há muito respondidas por outras instâncias de pensamento. A maior parte que eles traziam de lá parecia-me então apenas um “sociologismo” barato impreg-nado de marxismo mal digerido e piedade medieval ressignificada para dominar os mais ignorantes ou consolar os fracos, em nome de uma sede teocrática de poder: no fundo, eu pensava, alguns padres se aliavam a uma esquerda marxista e usavam a “piedade popular” para promover suas próprias posições políticas. Parecia-me uma mera instrumentalização de um medievalismo litúrgico, coisas como “a via sacra dos oprimidos e excluídos” e outras pérolas da mesma estirpe, pela facilidade com que se transformava a liturgia e a piedade católicas em “teatro popular” ou

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popularesco sob pretexto de “inculturação”. Mesmo aquilo que sempre me pareceu profundamente digno na liturgia católica, a simplicidade e a profundidade do seu rito eucarístico, eram descritos no material de catequese de uma certa maneira que parecia as reuniões de política estudantil que aconteciam no diretório acadêmico da minha faculdade em meus tempos de estudante.

Não posso negar, no entanto, que fiquei mexido por algumas coisas que eles conversavam sobre a catequese, e que não se encaixavam direito no esquema que eu usava para negar a fé. Havia densidade ali, havia verdade, uma espécie de ver-dade tranquila e permanente, embora bem diluída em sociologismos e superficia-lismos. Voltarei ao assunto adiante.

2. O “encontro de casais” ao qual fui levado pela minha esposa, e que me pare-ceu o extremo oposto do sociologismo da catequese dos meus filhos. O movimento de casais da paróquia parecia-me um desfile de conservadorismos pouco consen-tâneos com a “abertura de mente” propagada pelo que eu achava ser o melhor pensamento contemporâneo: a ciência e a psicanálise. Para mim, estes dois ramos da ciência já haviam demonstrado sem sombra de dúvidas a origem anticientífica e recalcada de todo aquele discurso do tipo “meus filhos não veem TV, ou a Globo, ou este ou aquele programa, ou não deixo que façam isto ou aquilo”, ou “lá em casa a gente desliga a TV e reza todo dia”, ou gente com dezenas de filhos protestando contra anticoncepção e aborto, e similares. Tudo me soando meio medieval. Não posso negar que fiquei, por outro lado, bastante impressionado pelo testemunho silencioso de tantos casais vivendo o matrimônio e ajudando num retiro assim, bem como por alguns testemunhos bastante sinceros de lutas e vitórias realmente milagrosas trazidas por casais com experiências e dificuldades bem parecidas com as nossas.

3. Sou músico amador. Assim, acabei conhecendo, por meu amor pela música, algumas pessoas que tocavam na missa e me levaram, silenciosamente, a conhecer suas próprias vidas de fé e oração vividas no silêncio dos seus lares, numa confiança tranquila e firme perante todas as contradições que suas famílias podiam viver. Conheci, também, alguns jovens consagrados, músicos, que viviam com muita maturidade seus próprios votos de castidade e obediência, e me davam exemplos tranquilos de sabedoria muito madura. Eu os admirava em segredo, pensando que, quando eu próprio tinha a idade deles, só tinha testosterona saindo pelos ouvi-dos... Estas pessoas acolheram meus dons musicais escassos, convidaram-me para tocar com eles na missa e receberam-me serena e fraternalmente em sua convivên-cia numa época em que a minha carreira me fizera vir morar em Brasília, e eu sentia toda a dificuldade de trazer minha própria família a uma cidade tão peculiarmente diferente de onde eu vinha.

Tudo isto me interpelou, e me forçou a reavaliar a posição que eu tinha com relação à fé. Eu sempre fui extremamente racionalista, e sempre vi qualquer manifestação de piedade com extrema desconfiança. Sempre me pareceu de uma imbecilidade acima de qualquer motivo ajoelhar-se diante de um pedaço de pão,

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proclamar celibato e castidade, proibindo padres e freiras de casar, e imaginar poder fazer qualquer discurso intelectualmente coerente depois de confessar a pró-pria fé. Por outro lado, isto parecia confirmar-se pela insistência, que me parecia inadequada, de parte do clero num discurso sociologista que parecia confundir responsabilidade social com religiosidade, ou mesmo marxismo com cristianismo. Na minha mente, isto parecia uma confissão pública de que a fé nada mais era do que o pretexto para impor ideologias políticas — no caso específico, ideologias de esquerda. Sendo sincero: padre com discurso “social” sempre me cheirava a “teo-cracia com boas intenções”.

A própria necessidade de “salvação” parecia-me uma confissão pública de fra-queza. Eu conhecia as propostas místicas “orientais” panteístas, que equiparavam fé à paz de espírito: como se “religião” fosse algo assim como uma grande “aula de ioga” individualista, a busca de uma “paz interior” individualista e desencarnada, que eu não conseguia jamais sentir na missa.

A sobrevivência individual, independentemente de Deus, estaria cada vez mais próxima para a espécie humana, tanto pelas experiências que, me pareciam, esta-vam cada vez mais próximas da prova científica das “vidas passadas”, ou da cura definitiva da morte pelas experiências genéticas e robóticas que eu conhecia por meio de “revistas científicas” como a Superinteressante e a Galileu, que eu muitas vezes li como ciência séria. Esse misto de reencarnação e cura científica da morte me parecia uma solução bem razoável, que deixava nas mãos dos homens todos os problemas relacionados com a questão da “salvação”, enquanto as missas da “ala social” da Igreja me pareciam mais reuniões de diretório acadêmico universitário ou de ong social ou partidinho “popular” de esquerda, e as missas “carismáticas”, com sua insistência em “brandir Bíblias”, falar “línguas” e fazer milagres pareciam- -me a prova de que a Igreja Católica definitivamente se rendera aos “crentes” e sua fixação no “nome de Jesus tem poder”.

Isso para não mencionar os interditos “clássicos” contra a Igreja: a inquisição, a perseguição às mulheres, a proibição do lucro e da usura, a tortura, a queima de livros, a tendência teocrática do papado, a fogueira de Galileo Galilei, a insistência medieval de que a terra era chata e o geocentrismo, a venda de indulgências para “ganhar o céu”, o Papa Bórgia, a escravidão e o massacre de indígenas e negros encoberta por pretextos religiosos, a idolatria de imagens e a ocultação da Bíblia, a demonização do sexo, a misoginia do clero, e a lista poderia seguir mais e mais. Está certo que eu descobri, depois, que as informações que eu tinha sobre cada um desses assuntos estavam inteiramente equivocadas. Isso foi mais tarde, e depois de um imenso esforço intelectual, que envolveu retomar inclusive meus estudos de língua estrangeira para poder comprar livros importados sobre o assunto, já que as livrarias católicas brasileiras estão repletas de tudo, mas ainda são carentes de boa apologética. Mas como começar a intuir que todas as informações que nos são passadas a respeito desses temas pelos nossos professores desde o ensino funda-mental, médio e superior, pela mídia, pelo cinema, pelas conversas de botequim e

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pela subliteratura pop, com toda a sua estrutura de reforço recíproco, podem não ser verdade?

Como tudo isto, todo este lixo anticristão que acompanhou minha formação educacional e cultural como verdade indiscutível, poderia permitir-me relacionar a fé católica com a razão?

Por outro lado, ainda que de algum modo a salvação dependesse de uma espé-cie de julgamento final perante Deus, depois da morte, que tipo de Deus malvado colocaria como condição, para me dar a “vida eterna”, a de sair-me bem numa espécie de julgamento para saber se eu obedeci direitinho a ele durante o tempo que eu estive na terra? Ora, se Deus é amor, será que a única coisa que ele poderia me cobrar não seria uma espécie de “autenticidade”, ou seja, meu julgamento final consistiria em que eu tivesse vivido em honesta coerência com aquilo em que eu acreditava? Se o teste, como eu acreditava, era apenas um teste de autenticidade, então eu deveria construir minha própria “filosofia de vida” com margens bem amplas, de modo a que ela se ajustasse à minha vida concreta, e que a minha vida concreta não tivesse que mudar para ajustar-se a ela; o que, como eu entendia então, seria cair na “hipocrisia” cristã de pregar a pureza e viver no pecado, e ser “salvo por Jesus” no final. Tudo isto me parecia muito irrazoável.

3.  Estudar e aprofundar

Minha resistência, assim desafiada, aflorou como uma necessidade muito aguda de estudar profundamente aquelas questões religiosas que me interpela-vam, porque eu não conseguia entender como, após tantas refutações racionais tão irrespondíveis, a fé daquelas pessoas podia ter a pretensão de apresentar-se como justificável racionalmente. Na verdade, eu não podia sequer intuir, também, que aquilo que eu imaginava que era “fé” não passava de uma noção infantilizada da fé, já que eu me satisfizera com aquilo que aprendera sobre ela em minhas catequeses de infância.

Mas, se o que eu falava quando mencionava a palavra “fé” era a noção de uma criança de dez anos sobre Deus, o que eu estava falando quando falava de “razão”? Minha estrutura intelectual de jurista baseava-se em três pressupostos:

1. Quando eu falava em “razão”, estava querendo dizer “ciência positiva”. O cientificismo estabelecia os limites daquilo que eu considerava irracional. Irracio-nal, então, seria aquilo que não se pudesse submeter ao método científico, tal como o definiram Descartes, Bacon, Comte, dentre outros. Portanto, falar em “fé”, por definição, significava, para mim, colocar-se além dos limites da razão.

2. Quando eu falava em “ética”, estava pensando, na verdade, em relativismo. “Tudo é relativo”, era o meu lema, em matéria moral. Ou seja, eu acreditava (sem ter razão para tanto, como espero demonstrar adiante) que, salvo para fanáticos e