espiritualidade subversiva

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Trecho da obra de Eugene H. Peterson

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capítulo 1

Marcos: o texto fundamentalpara a espiritualidade cristã1

INTRODUÇÃOAlgo bastante extraordinário tem ocorrido nesta cidade nos últimos 25 anos;

a teologia espiritual vem sendo citada e reconhecida, valorizada e procura-

da. A teologia espiritual é uma preocupação antiga, respeitada e central da

igreja cristã. Mas nos últimos duzentos anos, com a ascensão imperialista

do racionalismo, acompanhada das várias reações do romantismo, a teologia

espiritual praticamente saiu de cena. O racionalismo e o romantismo luta-

ram pelo coração da raça humana e entre eles basicamente dividiram os

espólios. A teologia espiritual, impelida para as margens, sobreviveu aca-

demicamente nos esconsos pouco iluminados de várias bibliotecas ao re-

dor do mundo. A teologia espiritual, sobretudo desconsiderada, mas às vezes

subestimada tanto na igreja quanto no mundo, passou a ser a especialidade

de clubes fechados, pequenos e não raro excêntricos, de entusiastas.

Ao mesmo tempo, aqui em Vancouver, algo muito diferente tem acon-

tecido: a teologia espiritual foi recuperada como disciplina e como interes-

se fundamental a todo o empreendimento cristão conforme é pensado e

estudado na sala de aula, orado e praticado em casa e no local de trabalho,

crido na igreja e proclamado no mundo. Tanto a indispensabilidade quanto

o poder de atração da teologia espiritual têm sido desenvolvidos e demons-

trados entre nós — um imenso presente, tanto para a igreja quanto para o

mundo. E um presente mais que oportuno, uma vez que não há dúvidas de

1Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 29, n.o 4, dez. de 1993. Este artigo baseia-sena aula inaugural do dr. Peterson como professor da cátedra James M. Houston de Teologia Es-piritual da Regent College, ministrada em 17 de out. de 1993.

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que nossa cultura, intoxicada com o racionalismo e com o romantismo,

está em maus lençóis e só piora. Aqueles de nós que oram pela salvação do

mundo não podem dispensar o mar de sabedoria, introspecção, oração e

maturidade em que a teologia espiritual desemboca.

O nome mais comumente associado a essa recuperação e demonstra-

ção é James M. Houston. Ninguém chega aos pés da façanha histórica e

cultural que esse homem conquistou por si só. Teve e tem colegas, amigos

e familiares que fizeram e fazem parte disso em maior ou menor escala.

Mas seu nome — sua visão focada, sua fidelidade sacrificial, a clareza de

seu pensamento, a paixão de suas orações —, seu nome, mais que o de qual-

quer outro, identifica essa recuperação da teologia espiritual neste momen-

to crítico em que nos aproximamos do terceiro milênio.2

Por causa de tudo o que tem acontecido nesta cidade nos últimos 25

anos, a teologia espiritual não está mais circunscrita às buscas acadêmicas

dos medievalistas. Por causa de tudo o que tem acontecido nesta cidade

nos últimos 25 anos, a teologia espiritual agora carrega a conotação de saúde

espiritual sólida e madura, em vez de ser tratada com suspeita, como se

fosse uma neurose religiosa.

E, como o nome de James Houston está tão completamente associado

a tudo isso, nada mais justo que identificar esta cadeira pelo título “Cáte-

dra James M. Houston de Teologia Espiritual”, o que torna bem visíveis os

objetivos da disciplina.

MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTALO evangelho de Marcos é o texto fundamental para a espiritualidade cristã.

Uso o artigo definido intencionalmente: o texto fundamental. O cânon da

Escritura como um todo é o nosso texto mais amplo, a revelação que deter-

mina a realidade com a qual lidamos como seres humanos criados, salvos

e abençoados pelo Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito

Santo. Mas Marcos, sendo o primeiro evangelho, desfruta de certa primazia.

2A publicação original deste artigo data de 1997. A data deve ser levada em conta para que oleitor se situe em relação às referências temporais do autor. (N. do T.)

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 15

1. A forma do textoNinguém jamais tinha escrito um evangelho cristão antes de Marcos es-

crever o seu. Ele criou um novo gênero. No final acabou sendo uma forma

de escrita que rapidamente passou a ser não apenas fundacional, mas

formativa para a vida da igreja e do cristão. É nossa convicção de fé já de

muito tempo que o Espírito Santo inspirou o conteúdo das Escrituras

(2Tm 3:16), mas é igualmente verdade que a forma é também inspirada,

essa nova forma literária a que chamamos evangelho. Simplesmente não

existia nada que se assemelhasse ao gênero evangelho, embora Marcos

contasse com excelentes professores hebreus na arte de contar histórias,

os quais nos legaram os livros de Moisés e Samuel.

A Bíblia como um todo chega até nós em forma narrativa, e é inserido

nessa narrativa grande e de certo modo esparramada por toda parte que

Marcos escreve seu evangelho. “Vivemos principalmente por formas e

padrões”, afirma Wallace Stegner, um dos grandes contadores de histórias

de nossos tempos, “... se as formas são ruins, vivemos mal”.3 O evangelho

é uma forma boa e verdadeira, pela qual vivemos bem. A narrativa cria um

mundo de pressuposições, de suposições e relações no qual ingressamos.

As histórias convidam-nos para adentrar um mundo fora de nós mesmos,

e, se forem histórias boas e verdadeiras, um mundo maior que nós. As his-

tórias da Bíblia são histórias boas e verdadeiras, e o mundo para o qual elas

nos convidam é o mundo da criação, da salvação e da bênção de Deus.

Dentro do vasto contexto da história bíblica, que tanto comporta, apren-

demos a pensar de forma precisa, a nos comportar moralmente, a pregar

apaixonadamente, a cantar alegremente, a orar honestamente, a obedecer

fielmente. Mas não nos atrevemos a abandonar a história como abandona-

mos qualquer dessas coisas ou todas elas, pois, no instante em que aban-

donamos a história, reduzimos a realidade às dimensões da mente, dos

sentimentos e das experiências. O momento em que formulamos nossas

doutrinas, organizamos nossos códigos morais e nos lançamos numa vida

3When the Bluebird Sings to the Lemonade Springs. New York: Random House, 1992,p. 181.

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16 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de ministério sem fazermos uma contínua reimersão na história em si, sim-

plesmente estamos nos afastando da presença e da atividade de Deus para

montar nosso próprio negócio.

A singularidade da forma “evangelho” reside no fato de que ela traz em

si séculos de narrativa hebraica, sendo Deus o narrador de sua própria his-

tória de criação e salvação por meio de seu povo, para a história de Jesus,

a conclusão madura de todas aquelas histórias, e isso de uma forma que

claramente consiste em revelação — ou seja, a autorrevelação divina — e

convida nossa participação, insiste em que participemos.

Temos aqui uma contraposição com a preferência antiga pela constru-

ção dos mitos, que em maior ou menor grau nos torna espectadores do

sobrenatural. Também com a preferência atual pela filosofia moral, que

nos põe como encarregados da própria salvação. A “história do evangelho”

é uma maneira verbal de explicar a realidade, que é, assim como a encar-

nação que é seu assunto, simultaneamente divina e humana. Ela revela, ou

seja, mostra algo que jamais poderíamos ter criado por conta própria, seja

pela observação, pela experiência ou pela especulação; e ao mesmo tempo

ela prende, puxa-nos para dentro da ação como alvos e participantes, mas

sem nos despejar a responsabilidade de garantir que tudo dê certo.

Há enormes implicações nisso para a nossa espiritualidade, pois a for-

ma em si nos protege de duas das principais direções que costumamos

tomar sempre que descarrilamos: a de tornar-nos espectadores frívolos,

exigindo dos céus um entretenimento novo e mais exótico; ou a de tornar-

nos moralistas ansiosos, fazendo das tripas coração e assumindo o peso do

mundo. A própria forma do texto faz nascer respostas em nós que tornam

difícil sermos meros espectadores ou meros moralistas. Não se trata de

um texto que dominamos, mas de um texto pelo qual somos dominados.

Parece-me significativo que, na presença de uma história, quer sejamos

seus narradores quer seus ouvintes, jamais tenhamos o sentimento de que

somos os peritos: há muito que ainda não sabemos, muitas possibilidades

à disposição, muito mistério e glória. Mesmo as histórias mais complexas

tendem a evocar a criança que há em nós — expectante, maravilhada,

responsiva, encantada —, razão por que, naturalmente, a história é a for-

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 17

ma favorita de expressão para a criança, razão também por que é a forma

dominante de revelação do Espírito Santo e por que nós, adultos, que gos-

tamos de bancar os peritos e gerentes da vida, tão frequentemente preferi-

mos a explicação e a informação.

2. O teor do textoNão precisamos avançar muito na leitura de Marcos para perceber que o

texto é sobre Jesus Cristo, e antes de concluirmos isso fica mais que evi-

dente. Marcos é sobre o Deus revelado em Jesus Cristo. Temos aqui algo

que parece demasiadamente óbvio, mas quero me deter no óbvio por um

instante.

Denominei o evangelho de Marcos o texto fundamental para a nossa

espiritualidade. Espiritualidade é a atenção que dispensamos a nossa alma,

ao interior invisível de nosso viver que constitui o cerne de nossa identida-

de, essa alma feita à imagem de Deus que compreende nossa singularidade

e glória. Espiritualidade é a preocupação que temos pela invisibilidade ine-

rente a cada visibilidade, pelo interior que fornece o conteúdo de cada ex-

terior. Necessariamente, ela lida e muito com a interioridade, com o silêncio,

com o isolamento ou solitude. Leva extremamente a sério, o mais que pode,

todas as questões da alma.

Isso poderia parecer algo maravilhoso, e nossa exclamação inicial muito

possivelmente seria: “Quem dera todo o povo de Deus estivesse igualmen-

te engajado!”. Mas os vinte séculos de experiência na área da espiritualida-

de faz arrefecer consideravelmente o nosso entusiasmo. Na prática, na

realidade dos fatos, ela acaba por se mostrar não tão maravilhosa. Quando

você examina toda a nossa história, não é de admirar que a espiritualidade

seja tantas vezes tratada com suspeita, e não raro com absoluta hostilida-

de. Pois na prática a espiritualidade muitas vezes se desenvolve em neuro-

se, degenera-se em egoísmo, torna-se pretensiosa, passa a ser violenta.

Como isso acontece? Para responder de forma resumida, acontece quando

pomos o pé para fora da história do evangelho e colocamos a nós mesmos

no lugar como o texto fundamental e abalizado para a nossa espiritualida-

de; procedemos à exegese de nós mesmos na qualidade de textos sagrados.

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18 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Normalmente não jogamos o evangelho fora; apenas o guardamos na es-

tante e pensamos que o honramos por consultá-lo de tempos em tempos

como indispensável obra de consulta.

Nossos guias espirituais dizem: “Vocês são seres maravilhosos, glorio-

sos, almas preciosas. São esplêndidas as aspirações que você têm por san-

tidade, bondade e verdade. Mas vocês não são o conteúdo da espiritualidade;

Deus revelado em Jesus é esse conteúdo. Vocês precisam de um texto para

ler e estudar e do qual aprender — aqui está o seu texto: o evangelho de

Jesus Cristo; comecem pelo evangelho de Marcos como seu texto funda-

mental”.

Abrimos o texto e lemos a história de Jesus. É um tipo estranho de his-

tória. Conta muito pouco do que nos interessa nas histórias. Não ficamos

sabendo de Jesus praticamente nada do que de fato queríamos saber. Não

há nenhuma descrição de sua aparência. Nada sobre sua origem, amigos,

instrução, família. Como devemos avaliar ou entender essa pessoa? E há

pouquíssima referência ao que ele pensava, a como se sentia, suas emo-

ções, suas lutas interiores.

Numa altura ou noutra, percebemos que se trata de uma história sobre

Deus — e sobre nós. Embora Jesus seja a pessoa mais mencionada na his-

tória, há uma surpreendente lacuna de informações referentes a ele. Jesus

é a revelação de Deus, e assim sempre deparamos em Jesus com aquilo

que se nos depara em Deus: não captamos, não enxergamos, não com-

preendemos a maior parte do que está em jogo ali. Não explicamos Jesus,

não situamos Jesus, não enquadramos Jesus em nossas perspectivas. Se-

gue-se que nem Deus enquadramos em nossas perspectivas. Como histó-

ria, o evangelho simplesmente deixa muito a desejar.

É quando percebemos que nossa atenção foi desviada de sobre nós e agora

repousa em Jesus, em Deus revelado em Jesus. A verdadeira espiritualida-

de, a espiritualidade cristã, desvia a atenção de nós e a concentra em ou-

tro, em Jesus.

Há outros na história, naturalmente, muitos outros: os doentes e famin-

tos, as vítimas e os forasteiros, amigos e inimigos. Mas Jesus é sempre o as-

sunto. Nenhum acontecimento e nenhuma pessoa aparecem nessa história

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 19

independentemente de Jesus. Jesus fornece tanto o contexto quanto o con-

teúdo para a vida de todo mundo. A espiritualidade — a atenção que dis-

pensamos a nossa alma — na prática (quando deixamos que Marcos confira

forma a nossa prática) acaba sendo a atenção que dispensamos ao Deus

revelado em Jesus. O texto treina-nos nessa percepção e nessa prática. Linha

após linha, página após página: Jesus, Jesus, Jesus. Nenhum de nós fornece

o conteúdo para a nossa própria espiritualidade; recebemos esse conteúdo;

é Jesus quem o dá. O texto não dá margem a nenhuma exceção.

3. A tônica do textoAo lermos esse texto, logo descobrimos que toda a história se afunila, che-

gando à narração dos acontecimentos de uma única semana da vida de Jesus,

a semana de sua paixão, morte e ressurreição.

E, desses três elementos, é a morte que recebe o tratamento mais de-

talhado.

Se nos pedissem para resumir o máximo possível em que consiste o

evangelho de Marcos, devemos dizer: “na morte de Jesus”.

A resposta não soa muito promissora, especialmente para aqueles de

nós que estão à procura de um texto pelo qual viver, um texto por meio do

qual nutrirmos nossa alma. Mas aí está ele. Há dezesseis capítulos na his-

tória. Nos primeiros oito capítulos, Jesus está vivo, percorrendo sem pres-

sa as aldeias e estradas da Galileia, dando vida a pessoas, libertando-as do

mal, curando seus corpos mutilados e enfermos, alimentando pessoas fa-

mintas, demonstrando sua soberania sobre a tempestade e o mar, contan-

do histórias maravilhosas, recrutando e treinando discípulos, anunciando

que estão no limiar de uma nova era, o Reino do Deus, que naquele exato

momento está invadindo o mundo deles.

E é nesse momento, exatamente quando ele tem a atenção de todos,

exatamente quando se vê o auge do impulso para a vida e mais vida, que

ele começa a falar de morte. Os últimos oito capítulos do evangelho são

dominados por assuntos de morte.

O anúncio da morte também sinaliza uma mudança de ritmo. Quando

a história é narrada nos oito primeiros capítulos, há uma qualidade na

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20 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

narrativa em que os acontecimentos vão se desdobrando quase que de modo

sossegado, tranquilo. Jesus não parece estar se dirigindo a nenhum lugar

em especial — basicamente transita de aldeia em aldeia, retira-se sozinho

nos montes para orar, adora nas sinagogas, dá a impressão de que tem tem-

po para ter refeições com qualquer um que o convide para sua casa, sai de

barco com seus amigos no lago. Não interpretamos esse ritmo descontraído

como indolência ou falta de propósito, pois energia e intensidade estão

sempre visivelmente presentes. Mas, nesses anos na Galileia, Jesus parece

ter todo o tempo do mundo, o que, é claro, ele tem mesmo.

Mas com o anúncio da morte isso muda: agora ele se dirige diretamente

para Jerusalém. Agora a narrativa é caracterizada por uma urgência, por

uma circunspecção, por um ponto de chegada. Muda a direção, muda a

cadência, muda o estado de espírito. Três vezes Jesus é categórico: ele so-

frerá, será morto e ressuscitará (8:31; 9:31; 10:33).

E então acontece: morte. A morte de Jesus é narrada de modo acurado

e preciso. Nenhum episódio de sua vida é narrado com tantos detalhes assim.

Dificilmente pode haver qualquer dúvida sobre a intenção de Marcos: a

trama, a ênfase e o significado de Jesus é sua morte.

Não que esse realce na morte fosse uma idiossincrasia de Marcos, uma

obsessão mórbida que deturpava a história básica, uma vez que a mesma

sequência e a mesma proporção são mantidas pelos narradores do evan-

gelho que sucederam Marcos: Mateus e Lucas. Eles desenvolvem o texto

fundamental de Marcos de várias maneiras, mas preservam a proporcio-

nalidade. João, que aborda a história de um ângulo totalmente diferente,

deslumbrando-nos com imagens de luz e vida, na realidade acaba por in-

tensificar o destaque que confere à morte, destinando metade do espaço

que tinha à semana da Paixão. Todos os quatro escritores do evangelho fazem

basicamente a mesma coisa; contam-nos a história da morte de Jesus, e

escrevem suas apresentações respectivas a ele. E Paulo — o exuberante,

apaixonado, hiperbólico Paulo — pula completamente a narrativa e sim-

plesmente desfere a conclusão: “Cristo morreu em nosso favor” (Rm 5:8);

“decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucifica-

do” (1Co 2:2).

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 21

Mas há muito mais em jogo aqui do que o simples fato da morte, embo-

ra isso esteja presente de forma muito enfática — trata-se de uma morte

cuidadosamente definida. É definida como voluntária. Jesus não tinha de

ir para Jerusalém; foi por vontade própria. Deu seu assentimento à mor-

te. Não era uma morte acidental; era uma morte inevitável.

É definida como sacrificial. Aceitou a morte para que outros pudessem

receber a vida: “... sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45). Ele definiu

sua vida categoricamente como sacrificial, ou seja, como meio de vida para

outras pessoas, quando instituiu a Eucaristia: “... tomou o pão [...] ‘Tomem;

isto é o meu corpo’ [...] tomou o cálice [...] ‘Isto é o meu sangue da alian-

ça, que é derramado em favor de muitos...’” (Mc 14:22-24).

E é definida acompanhada da ressurreição. Cada um dos três anúncios

explícitos da morte conclui com uma declaração sobre a ressurreição. A

história do evangelho como um todo encerra-se com um testemunho so-

bre a ressurreição. Isso não torna essa morte menos morte, mas é uma morte

definida de modo totalmente diferente daquele com o qual estamos acos-

tumados a lidar.

Tragédia e procrastinação são as palavras que caracterizam a atitude da

nossa cultura diante da morte.

A morte concebida como algo trágico é um legado dos gregos. Os gregos

escreveram com elegância sobre mortes trágicas — vidas que se viram to-

madas pelo desenrolar de grandes forças impessoais, vidas levadas adiante

com as melhores intenções, mas depois emaranhadas em circunstâncias

que cancelavam as intenções, circunstâncias indiferentes ao heroísmo hu-

mano ou à esperança.

A morte de Jesus não é trágica.

A morte procrastinada é um legado da medicina moderna. Numa cul-

tura em que a vida é reduzida a pulsações do coração e ondas cerebrais, a

morte jamais pode ser aceita pelo que é. Uma vez que a vida não pode ser

mais do que aquilo que é capaz de ser explicado pela biologia — nenhum

significado, nenhuma espiritualidade, nenhuma eternidade —, são feitas

tentativas cada vez mais desesperadas de adiar a morte, de fazer que de-

more a chegar, de negá-la.

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22 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

A morte de Jesus não é procrastinada.

É vital que desafiemos nossa cultura, deixando que a narrativa de Marcos

modele nossa compreensão da morte e por fim venhamos a entender nossa

própria morte dentro das ricas dimensões e relações da história de Jesus.

4. A teologia espiritual do textoJá ressaltei aqui que uma das qualidades inconfundíveis da “história do

evangelho” é que ela nos convida a participar. A primeira metade do evan-

gelho de Marcos faz exatamente isso — todos os tipos de pessoas são atraí-

dos para a vida de Jesus, experimentam sua compaixão, suas curas, sua

libertação, seu chamado, sua paz. Achamo-nos implicitamente incluídos.

Na segunda metade do evangelho, essa experiência de participação pes-

soal torna-se explícita.

Bem no centro do texto de Marcos, está uma passagem que designarei

a “espiritualidade” do texto. Ao usar o termo “espiritualidade” neste pontocrítico, pretendo chamar a atenção para o lugar onde convergem nossa

preocupação por nossa alma, nossa vida, e a preocupação de Jesus por nossa

alma, nossa vida. Com espiritualidade, quero me referir à maneira especí-

fica em que Marcos escreveu seu evangelho para ajudar a nós que o lemos

a experimentar verdadeiramente a mensagem que ele escreve. Nem é pre-

ciso dizer, imagino eu, que Marcos não era um jornalista, escrevendo in-

formes diários das atividades de Jesus no primeiro século. Tampouco era

alguém com interesses propagandistas escusos, tentando levar-nos a ade-

rir a uma causa que queria se dar bem na história. Trata-se de teologia es-

piritual em ação, uma forma de escrita que nos impele a participar do texto.

Marcos 8:27—9:9 é a passagem. Está situada no centro da história do

evangelho, de modo que uma metade dele — as múltiplas tentativas gali-

leias de trazer a vida à mente e à imaginação — fica simetricamente de um

lado, e do outro, a outra metade: a viagem sem distrações rumo a Jerusa-

lém e a morte.

A passagem consiste em duas histórias. A primeira história, o convite

lançado por Jesus para que se abraçasse a renúncia agora que ele e seus

discípulos estão começando a percorrer a estrada para Jerusalém, fornece

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 23

a dimensão ascética da espiritualidade. A segunda história, a transfiguração

de Jesus no monte Tabor, fornece a dimensão estética da espiritualidade.

As histórias contêm em suas duas extremidades afirmações sobre a

verdadeira identidade de Jesus como Deus entre nós: primeiramente, Pe-

dro, declarando: “Tu és o Cristo”; em segundo, a voz saída do céu, que de-

clarou: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!”. Testemunho humano em

uma extremidade, confirmação divina em outra.

Antes de examinarmos as duas histórias, gostaria de insistir em que as

mantenhamos no contexto e preservemos a relação existente entre elas.

Essas histórias nunca podem ser retiradas de seu contexto. O contexto delas

é a vida e a morte do Jesus que revela a Deus. O evangelho de Marcos tem

Jesus como seu assunto. Fora de contexto, essas histórias não podem de

forma alguma ser bem interpretadas. Eles não se sustentam por si sós. Não

nos entregam uma teologia espiritual com a qual podemos retirar-nos para

assim explorá-la como bem entendemos.

E há uma relação orgânica entre essas histórias. Não podem ser arran-

cadas uma da outra. Elas compõem o ritmo binário de uma única teologia

espiritual, não duas maneiras alternativas de fazer teologia espiritual. As

duas histórias reúnem os movimentos ascético e estético, o Não e o Sim

que trabalham conjuntamente no âmago da teologia espiritual.

O ascético. Primeiramente, o movimento ascético. Temos aqui o Não

de Deus em Jesus. As palavras de Jesus são sucintas e extremas: “Se al-

guém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-

me” (8:34). A vida ascética lida com a vida na estrada.

Os verbos que saltam da frase e nos atingem são “negue-se a si mesmo”

e “tome a sua cruz”. Renúncia e morte. Parece uma agressão, um ataque.

Recuamos.

Mas então percebemos que essas duas ações de contornos negativos estão

situadas entre duas ocorrências do verbo “seguir” (ou “acompanhar”).

Primeiramente um infinitivo (“acompanhar-me”), depois um imperativo

(“siga-me”). “Se alguém quiser acompanhar-me” (akolouthein) abre a fra-

se; “siga-me” (akoloutheito) a encerra. Jesus está dirigindo-se para algum

lugar; convida-nos para o acompanharmos. Não há nenhuma hostilidade

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24 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

nesse convite. Soa, aliás, altamente maravilhoso. Tão maravilhoso e radian-

te, aliás, que o grande verbo “seguir” esparge glória nos verbos negativos

que indicam renúncia e morte.

Há sempre um forte elemento ascético na verdadeira teologia espiritu-

al. Seguir a Jesus significa não seguir nossos impulsos, apetites, caprichos

e sonhos, todos os quais tão prejudicados pelo pecado que passam a ser

guias pouco confiáveis para definir qualquer lugar para onde valha a pena

seguir. Seguir a Jesus significa não seguir as práticas de procrastinação e

negação da morte de uma cultura que, por obsessivamente lutar pela vida

sob a égide de ídolos e ideologias, acaba com uma vida tão contraída e

apoucada, que mal se pode chamar de vida.

Da perspectiva gramatical, a negação, nossa capacidade de dizer “não”,

é uma das características mais impressionantes de nossa língua. A negação

é nosso acesso à liberdade. Somente os humanos podem dizer “não”. Os

animais não podem dizer “não”. Os animais fazem o que o instinto lhes dita.

“Não” é uma palavra de liberdade. Não preciso fazer aquilo que me orde-

nam, sejam minhas glândulas, seja minha cultura. O “não” judicioso, bem

colocado, liberta-nos de muitos becos sem saída, muitos desvios perigo-

sos, liberta-nos de distrações debilitantes e seduções sacrílegas. A arte de

dizer “não” liberta-nos para seguirmos Jesus.

Se nos ativermos com cuidado ao texto de Marcos, jamais associare-

mos o ascético com a negação da vida. A prática ascética dissipa a bara-

funda do eu que se arroga status de deidade, e abre um espaço amplo para

o Pai, o Filho e o Espírito Santo; ela nos envolve e prepara para um tipo de

morte do qual a cultura não tem nenhum conhecimento, abrindo espaço

para a dança da ressurreição. Sempre que estamos perto de alguém que

esteja fazendo isso bem, percebemos a suavidade dos passos, a presteza de

espírito, a facilidade de rir. H. C. G. Moule escreveu que essas negativas pro-

postas pelo Senhor Jesus “talvez tenham de entalhar linhas profundas no

coração e na vida; mas o cinzel nunca deve desfigurar o brilho do material”.4

4Veni Creator. London: Hodder & Stoughton, 1890, p. 104.

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 25

O estético. Ao lado do elemento ascético em Marcos, está o seu elemento

estético. Trata-se do “sim” de Deus em Jesus. Pedro, Tiago e João veem

Jesus transfigurado diante deles no monte, imerso em nuvem e brilho, na

companhia de Moisés e Elias, e ouvem a bênção de Deus: “Este é o meu

Filho amado. Ouçam-no!” (Mc 9:7). O estético lida com a vida no monte.

A palavra “beleza” não ocorre na história, mas beleza é o que os discípu-

los experimentaram, e o que nos vemos experimentando: a beleza de Jesus

transfigurado, da lei e dos profetas, de Moisés e Elias integrados à beleza

de Jesus, a bela bênção: “... meu [...] amado...”: tudo encaixando-se, com o

interior iluminado de Jesus extravasando para o monte, para a história e

para a religião, belamente pessoalizado e harmonizado de maneira profun-

da e ressoante, numa declaração de amor.

Há sempre um elemento fortemente estético na verdadeira teologia

espiritual. Subir o monte com Jesus significa encontrar uma beleza de ti-

rar o fôlego. Permanecer na companhia de Jesus significa contemplar sua

glória, interceptar essa vasta conversa entre gerações tão distantes entre si

— gerações que abrangem desde a lei até o evangelho, passando pelos pro-

fetas —, uma conversa que se dá em torno de Jesus, e depois ouvir a con-

firmação divina da revelação corporificada em Jesus. Quando o Espírito

de Deus faz sua aparição, para nós é uma aparição repleta de beleza.

Mas há o seguinte a respeito do Jesus transfigurado. Jesus é a forma da

revelação, “e a luz não recai nessa forma vinda de cima ou de fora; antes,

ela irradia a partir do interior da forma”.5 A única resposta adequada que

se pode dar à luz é manter os olhos abertos, prestar atenção ao que está

iluminado: adoração.

O impulso estético na teologia espiritual está relacionado com uma ins-

trução que nos ensina a perceber e a desenvolver um gosto por aquilo que

está sendo revelado em Jesus. Não somos bons nisso. Nossos sentidos fo-

ram embotados pelo pecado. O mundo, apesar de toda a celebração da

sensualidade que alardeia, é implacavelmente antiestético, eliminando o

5Hans Urs von BALTHASAR. The Glory of the Lord. San Francisco: Ignatius Press, 1984, vol. 1, p. 151.

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26 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sentimento pela imposição da feiura e do ruído, exaurindo a beleza das

pessoas e das coisas para que sejam funcionalmente eficientes, ridiculari-

zando o estético, a menos que possa ser contido num museu ou num jar-

dim. Nossos sentidos precisam de cura e reabilitação para que tenham

condições de receber as visitações e as aparições do Espírito, do Santo

Espírito de Deus, e a elas corresponder, pois, como afirma Jean Sulivan:

“O insight mais fundamental da Bíblia [...] é que o invisível só pode falar

por meio do perceptível”.6

Esse nosso corpo, com seus cinco sentidos, não é impedimento para uma

vida de fé; o fato de termos sentidos não é uma barreira para a espirituali-

dade, mas nosso único acesso a ela. Tomás de Aquino estava convencido

de que a negação dos sentidos, assensualidade, como ele a chamava, era

um vício, a rejeição dos próprios sentidos, muitas vezes levando ao sacrilé-

gio.7 Quando João quis assegurar a alguns cristãos primitivos a autentici-

dade da experiência espiritual, ele o fez invocando o testemunho de seus

sentidos: visão, audição e toque: “... o que ouvimos, o que vimos com os

nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam — isto

proclamamos a respeito da Palavra da vida” (1Jo 1:1). Em sua frase de

abertura, ele invoca sete vezes o testemunho de seus sentidos.

Marcos coloca essa história de afirmação gloriosa imediatamente ao lado

de sua história de estrita negação. Na companhia de Jesus, esse nosso cor-

po, tão magnificamente equipado para ver, ouvir, tocar, cheirar e provar,

sobe o monte (em si um ato físico extenuante), onde, em arrebatada ado-

ração, aprendemos a enxergar a luz e ouvir as palavras que nos revelam

Deus.

Parece suficientemente simples, e é. Marcos não se perde em sutilezas

— deixa tudo bem claro diante de nós. Mas sabe também que, por mais

simples e óbvio que seja, é fácil entender tudo errado. A resposta inicial de

Pedro tanto na história da estrada ascética quanto na história do monte

estético estava errada.

6Morning Light. New York: Paulist Press, 1988, p. 18.7Citado por Beldon LANE. Landscapes of the Sacred. New York: Paulist Press, 1988, p. 81.

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MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 27

Na estrada, Pedro tentou evitar a cruz; no monte, ele tentou possuir a

glória. Pedro rejeitou o caminho ascético oferecendo a Jesus um plano

melhor, um caminho de salvação em que ninguém precisa ser incomoda-

do. Jesus, na repreensão mais severa jamais registrada nos Evangelhos,

chamou-o Satanás. Pedro rejeitou o caminho estético oferecendo-se para

construir monumentos no monte, uma forma de adoração na qual ele po-

dia tomar o comando das mãos de Jesus e oferecer algo proativo e prático.

Dessa vez Jesus simplesmente deu de ombros.

A propensão de Pedro de entender tudo errado mantém-nos de sobrea-

viso. Século após século, nós, cristãos, continuamos a entender tudo erra-

do — e de diversas formas. Entendemos mal o ascético; entendemos mal o

estético. Nossos livros de história estão cheios de aberrações ascéticas,

cheios de aberrações estéticas. Sempre que deixamos de ler esse texto de

Marcos como deveríamos e saímos da companhia de Jesus, entendemos

tudo errado.

CONCLUSÃOMais uma coisa. Essas duas histórias, cuidadosamente colocadas no cen-

tro da história do evangelho, não são o centro da história. A história de

Marcos, lembre-se, é uma história sobre Jesus, não sobre nós. Por sinal, se

apagássemos essa seção da história, a história ainda seria a mesma histó-

ria. Nada nessa narrativa da estrada e do monte é essencial para o entendi-

mento da história que mostra Jesus vivendo, sendo crucificado e ressurgindo

dentre os mortos. Sem esse relato da estrada e do monte, ainda sabería-

mos tudo o que é necessário saber. Marcos escolheu apresentar Jesus como

a revelação de Deus, um relato pleno da obra de salvação de Jesus.

O que acontece aqui é que somos convidados a nos tornar participantes

plenos da história de Jesus e descobrimos como nos tornar esses partici-

pantes. Não apenas somos informados de que Jesus é o Filho de Deus; não

apenas nos tornamos beneficiários de sua expiação; somos convidados para

morrer sua morte e viver sua vida com a liberdade e a dignidade de parti-

cipantes. E aqui está algo maravilhoso: entramos no centro da história sem

nos tornarmos o centro da história.

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28 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

A espiritualidade corre sempre o risco da autoabsorção, de se tornar

tão fascinada com as questões da alma que Deus passa a ser tratado como

mero acessório da minha experiência. Precisamos ser muito vigilantes.

A teologia espiritual é, entre outras coisas, o exercício dessa vigilância. A

teologia espiritual é a disciplina e a arte de nos treinar para uma participa-

ção plena e madura na história de Jesus, mas nos impedir ao mesmo tem-

po de assumirmos o comando da história.

E para isso Marcos fornece nosso texto fundamental. As duas histórias

no centro, as histórias da estrada e do monte, são claramente prolépticas

— elas anteveem a crucificação e a ressurreição de Jesus. Elas nos imergem

e nos treinam nas negações ascéticas e nas afirmações estéticas, mas não

nos deixam ali; lançam-nos para adiante, em fé e em obediência, para a

vida que só é completa de forma plena no “não” definitivo e no “sim” glo-

rioso de Jesus crucificado e ressurreto.

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