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 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA  39 Editorial Franciscana BRAGA - 2010

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    CADERNOS DE ESPIRITUALIDADEFRANCISCANA

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    Editorial Franciscana

    BRAGA - 2010

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    Ficha Tcnica

    CoordenadorFr. Jos Antnio Correia Pereira, ofm

    Editorial FranciscanaApt. 12174711-856 BRAGA

    Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735E-mail: [email protected]

    Edio on line no site:www.editorialfranciscana.orgCapaDesenho de Fr. Jos Morais, ofm

    EdioEditorial Franciscana

    PropriedadeProvncia Portuguesa da Ordem Franciscana

    Depsito Legal: 14549/94I. S. B. N.: 972-9190-46-1Caderno 39 - 2010Cada nmero dos Cadernos vendido avulso

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    ndice

    I Estudos1.Jos Arregui, ofm

    A Orao diante do Crucifixo de S. DamioReleitura para uma nova espiritualidade ................................ 5

    2.Jacques Dalarum,ofm

    Francisco e Clara, masculino/feminino em Assisno sculo XIII ......................................................................... 27

    3.Maria Clara Stuchi, oscA vocao e misso das Irms Pobres ..................................... 43

    4.Papa Bento XVITrs Catequeses sobre:

    Santa Clara, Beata ngela de Folinho e Santa Isabel da Hungria ...... 61

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    IEstudos

    AORAO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S.DAMIOReleitura para uma nova espiritualidade

    Jos Arregui, ofm*

    *

    Artigo das Selecciones de FranciscanismoXXXIX (2010) 65-85.

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    AORAO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S.DAMIOReleitura para uma nova espiritualidade

    glorioso Deus altssimo,

    ilumina as trevas do meu corao,concede-me uma f verdadeira,uma esperana firme e um amor perfeita;

    Mostra-me, Senhor, o sentido (reto) e conhecimento,a fim de que possa cumprir

    o sagrado encargo que na verdadeacabas de dar-me. men1.

    Proponho um comentrio simples e livre desta Orao diante do

    Crucifixo de S. Damio de S. Francisco de Assis, que no deseja sermais que simples indicaes de uma releitura a partir das categoriasculturais e espirituais da actualidade.

    A orao chegou-nos na lngua materna de Francisco, o italianoincipiente da poca. sugestivo o facto de que as nicas oraes doPoverello que se conservam em italiano sejam esta e o cntico do IrmoSol. A primeira evoca-nos o princpio vacilante da sua busca espiritual. A

    segunda transporta-nos aos ltimos tempos da vida terrena, unindo-se atodas as criaturas num louvor ao Deus da vida, qual andorinha que nocessa de cantar enquanto voa e sobe cada vez mais alto. Ambas tm uma

    profunda relao com aquela bendita capela de S. Damio, nos arredores

    1Citaremos os Escritos de S. Francisco e Santa Clara a partir da edio da Editorial

    Franciscana: FONTES FRANCISCANAS I (FFI), Escritos, biografias, Documentos, 3ed. Ed. Franciscana, Braga 2005; FONTES FRANCISCANAS II (FFII), Escritos,

    biografias, documentos, Ed. Franciscana, Braga 1996.

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    de Assis. Fala do que ele busca e vive, do sofrimento e da alegria e f-lona sua lngua materna.

    A orao diante do Crucifixo de S. Damio remete-nos directa-mente para 1205-1206, anos em que Francisco, com 25/26 anos, busca

    um rumo para a sua vida. um tempo de indeciso e procura, num pro-cesso de discernimento. No sabe o que quer, mas vai percebendo cadavez melhor o que no quer ser: nem cavaleiro, nem comerciante. Oencontro com os leprosos tocou-o profundamente. Representam os lti-mos, mesmo que no sejam os nicos. E sente fortemente que o seudestino no pode separar-se destes abandonados. Quando contemplaJesus crucificado, v-os a eles. E quando d com os olhos neles, v Jesuscrucificado.

    Na realidade, a busca de Francisco no durou s dois anos, mastoda a sua vida, que no foi muito longa (morreu com 45 anos). Viveusempre em discernimento, na busca permanente da vontade de Deus,vontade esta que no est predeterminada e que nunca nos vem ditada defora, mas que brota da raiz mesma do prprio querer e dos quereresalheios. Formalmente um texto sumamente polido e estilizado, de uma

    preciso de vocabulrio e de um tal ritmo, que supe uma elaborao

    muito cuidada. Certamente que no a comps aos 24 anos. Sabemos quea recitou ao longo da vida e a aconselhava os seus irmos, para que arecitassem.

    Francisco viveu em cheio fins do sculo XII, princpios de sculoXIII numa poca de encruzilhada histrica, cultural, social e eclesial.Que se tornou tambm numa encruzilhada espiritual. Intuiu que um novotempo estava a nascer e busca uma forma de vida e uma espiritualidade

    para novos tempos. Busca algo diferente. Quer outra Igreja. Vislumbra

    outro mundo. E tambm outro Deus. Sente-se atrado por outra formade vida, uma outra maneira de seguir Jesus, um estilo de vida diferente dados monges e dos leicos, algo entre mosteiro e mundo, entre a vidareligiosade ento e a vida secular. E reza, pelo descampado, a cami-nho dos leprosos, na solido habitada da ermida semidestruda de SoDamio, perante o belo cone de Jesus crucificado, de estilo bizantino--mbrio. Reza com as palavras que lhe saem do corao e da mente. Aexperincia espiritual transforma-se em palavras e as palavras soam a

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    suspiros que irradiam vida, animam-nos a olhar e a sentir em profundi-dade e a buscar com a liberdade de esprito as nossas prprias palavras.

    uma orao profundamente actual, muito prpria para este tempode busca. frequente dizer-se que a nossa poca de mudana cultural,

    um cmbio de paradigma, a emergncia de uma nova era. Alguns estudio-sos falam num tempo axial. Panikkar diria que nos encontramos noepicentro de uma mutao cultural como poucas se deram na histriahumana. Alguns, inclusivamente, atrevem-se a dizer que esta mudana similar que se produziu na passagem do paleoltico ao neoltico. Outrosvo mais longe e afirmam reportando-se a Darwin que um passosemelhante ao que se produziu h dois milhes de anos, na passagem dos

    primatas ao ser humano2.

    Nesta poca, a espiritualidade no s no vai desaparecer, mas vairecobrar novo vigor e crescente actualidade. Os homens e as mulheres danova gerao necessitam e buscam espiritualidade, como necessitam e

    buscam alento, paz, interioridade, beleza, profundidade e harmonia inte-gral. Mas as profundas transformaes culturais implicam e requeremtransformaes profundas na espiritualidade tradicional, nas categoriasteolgicas, na maneira de ler a Bblia, de entender a Deus e na forma de

    olhar as outras religies.A religio tem futuro, mas no necessariamente as religies quehoje conhecemos. Muitos dados fazem pensar que a cristandade, com aviso tradicional dos dogmas, da instituio clerical e hierrquica, se esta esgotar e carece de futuro, porque se tornou incompreensvel culturaactual. Muitos grupos, muitas instituies aparecem e desaparecem. Noentanto, h um sentimento busca. Jesus no fundou nenhuma religio,deixando assim a porta aberta para que os seus discpulos criassem a reli-

    gio mais adaptada sua cultura, o que se fez inconscientemente, ou seja,sem que ningum soubesse que se estava a construir uma religio nova.Por isso, essa religio que conhecemos e praticamos formou-se dentro doImprio romano, e uma realidade histrica. Outras podem aparecer.Estamos no comeo da histria do mundo e da evangelizao. At agorao cristianismo s penetrou numa cultura (com duas variantes), a partir do

    2Cf. MARTINEZ LOZANO, E., La crisis del sujeto en un cmbio de poca, no XVII

    Frum Religioso popular de Vitoria (2009).

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    que havia no Imprio romano. Podemos considerar que seja s umcomeo, uma primeira etapa3.

    Precisamos de uma religio. Mas nada exige que seja a mesma noOcidente, na frica, na ndia, na China ou no Japo. Nesses pases h

    muita simpatia pelo cristianismo, mas pouca simpatia pelas Igrejas. umsinal para o futuro4.

    Situo-me nesta perspectiva, e a partir daqui que apresento algu-mas reflexes livres volta desta bela orao. uma orao que nos con-vida a redescobrir a paz na pergunta, a paz na busca de novas linguagense paradigmas de espiritualidade. uma orao prpria do nosso tempo,de mudana epocal e de nova espiritualidade. No me proponho ler e

    compreender Francisco a partir da sua poca, mas a partir da nossa. Nome interessa tanto descobrir a imagem de Deus e as categorias espirituaisque Francisco usou no seu tempo, mas imagens e categorias que seenquadrem na actualidade. Toda a leitura uma reinterpretao a partirde uma perspectiva nova. A questo que me interessa : que significaespiritualidade hoje? A qual espiritualidade nos chama hoje o Esprito. Aque transformaes espirituais nos chama a profunda transformaocultural que vivemos?

    1. glorioso Deus altssimo

    Assim comea Francisco a orao e assim comear muitas outras:dirigindo-se a Deus com admirao e encanto. Invocando e encantando--se. A invocao e o encanto, a fonte e a profundidade da espiritualidade,constituem o mais genuno da experincia religiosa. a dimenso msticaque, ao lado da compaixo poltica, o essencial de toda a religio. Ainvocao e o encanto so o mais importante e o mais autntico da

    orao. O que pensamos, o que dizemos e o que pedimos no toimportante.

    Francisco tem uma imagem de Deus e utiliza uns termos concretospara O designar. Serve-se de imagens e termos prprios da sua cultura.Mas isso no o essencial. Quando fala de Deus, Francisco faz falar pordentro todas as imagens e categorias. Designa a Deus alto e glorioso.3COMBLIN, J., http: //servicioskoinonia.org.relat4

    Ibid

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    Altus em latim significa alto e profundo ao mesmo tempo. Franciscofala da altura de Deus, mas impressionante que insista sobretudo nadescida de Deus, na sua proximidade humana, na solidariedade crucifi-cada. Deus para Francisco Jesuspobre e crucificado. ImaginaDeus

    nas alturas e nem podia imagin-lo de outra maneira, tendo em conta acosmoviso de ento (com o cu em cima e a terra em baixo), mas, narealidade, situa Deus sobretudo na descida, na proximidade. Numa pocaem que, tanto na sociedade feudal e imperial como na Igreja clerical(tambm ela feudal e imperial) tudo remete para o poder, muitosignificativo que Francisco nos fale to insistentemente da humildadede Deus. Deus est sobretudo na descida, no mais pequeno e no mais

    profundo de todas as criaturas.

    Deus tambm qualificado de glorioso. Que significa glorioso?Sugere-nos o sentido de celeste, excelso, espectacular, gran-dioso, importante No entanto, para Francisco a glria de Deusrevela-se sobretudo no pequeno e insignificante. A glria de Deus airradiao da sua divindade, da sua beleza e bondade no mundo. Masonde se reflecte no mundo a beleza e a bondade de Deus? Reflecte-se emtodas as criaturas, tambm nas mais humildes e insignificantes, sobretudonas mais humildes e insignificantes. Irradia sobretudo no rosto de Jesus

    pobre e amigo dos pequenos, no corpo crucificado de Jesus, irmo detodos os crucificados. Deus fez-se pobre e humilde, e a revela a suamaior glria.

    Quem Deus para ns? Que imagem fazemos de Deus? Atrevo-mea dizer que continuamos a imaginar Deus com os rasgos milenrios davelha cultura agrria e piramidal, como Deus do cu, como Senhoraltssimo, como rei soberano. Continuamos a aplicar a Deus os atributos

    clssicos que a filosofia ou teologia natural aplicava ao Senhor supremo,ao ente csmico superior. Continuamos a chamar a Deus de omnipotente,imutvel, impassvel. Imaginamos Deus como Pai, Legislador, e Juizsupremo, que intervm no mundo quando quer, para fazer aquilo quequer, que tem um projecto predeterminado para cada um, que se revelaquando melhor lhe aprouver, que se cala muitas vezes, que permite a dor

    por alguma razo que no se entende, que escolhe uns e exclui outros,que castiga quando quer e que perdoa quando quer.

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    Para muita gente e para muitos crentes , com razo, esse Deusno existe. J morreu. Se alguma vez existiu, morreu em Jesus, morreuna Cruz de Jesus e, muito antes, em todas as cruzes. Na realidade, nuncaexistiu, ns que o imaginamos assim. Mas j no possvel continuar a

    imagin-lo dessa maneira. Nietzsche selou a sua morte na cultura actual.O Deus da filosofia e da teologia tradicional que continuamos a imaginar

    j morreu h muito tempo: morreu na linguagem, morreu no pensamentoe morreu no imaginrio. De facto, a gente j no cr nele. At a maioriadas crianas que anda na catequese deixaram de crer nele desde os cincoanos. E normal, pois esse deus nunca existiu. O deus que os ateusnegam simplesmente no existe. Negam, porque o imaginam comoalgum incredvel. E Deus nunca como o imaginamos, nem os que

    dizem crer se compreendes, no Deus, diz santo Agostinho , pelomenos como o imaginam aqueles que no acreditam em Deus. Deus maior e mais pequeno, presena terna, corao que ama, palavrareveladora, manifestao bela, bondade transformadora, o tu detodo o eu, o eu mais ntimo de todo o ser.

    Muitos falam de espiritualidade sem Deus (Compte-Sponville oude uma espiritualidade laica (M.Corbi), e entende-se o que queremdizer. Mas parece-me prefervel restaurar a imagem de Deus. Como

    podemos afirmar a espiritualidade e negar a Deus, que Esprito quetudo anima, e renova a face da terra? Onde h espiritualidade, onde hencanto frente realidade, onde h olhar para o mistrio, sentidos para a

    beleza, onde h corao para o reconhecimento e compaixo, a estDeus. Onde est Deus, ali h esprito e espiritualidade. E est em todas asreligies, e para l de todas as religies. Todas as religies no so maisque linguagens do Esprito universal. Quando deixam de o ser, s tmuma alternativa: ou se transformam ou desaparecem.

    Como milhes de plantas e de espcies animais, muitas religies seextinguiram ao longo do tempo. Estudando este fenmeno deobsolescncia, o telogo alemo Wolfhart Pannenberg fez esta pungenteobservao: As religies morrem, quando as suas luzes falham, isto ,quando a sua doutrina j no ilumina a vida, tal como os seus membros,de facto, a vivem5.

    5

    JOHNSON, E.,La bsqueda del Dios vivo. Sal Terrae, Santander 2008, 42.

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    No queremos, nem podemos deixar de crer em Deus no nossotempo. Mas no devemos ter medo de nos desprender nas velhas ima-gens, na medida em que no nos parecem belas, credveis, sugestivas elibertadoras. No temos de nos aferrar a categorias e imagens, que no

    nos enchem o corao e a mente. Temos de inventar imagens e metfo-ras de Deus, que nos permitam respirar e que nos libertem da angstia enos deixem viver em paz. H muita gente cada vez mais que no sabese acredita ou no em Deus, porque quer acreditar em algo oualgum como parece evidente, mas no acredita num ser supremoque rege os destinos do mundo a partir do alto, segundo o seu desgnio ea sua vontade inescrutvel.

    O nosso tempo convida-nos a rever a maior parte das nossas repre-

    sentaes de Deus, tanto nas imagens como nos conceitos. Grande parteda teologia busca h muitos anos outra linguagem para Deus. Osconceitos de Deus ultrapassados, simples e obsoletos j no satisfazem.

    No entanto, novas ideias oriundas de diversos contextos culturais,recolhidas pela teologia, parecem muito mais estimulantes, escreve E.Johnson6. Ao longo dos captulos do seu livro, o autor recolhe de entre asteologias de hoje aquelas imagens de Deus que respondem melhor aosanseios espirituais do nosso tempo: o Deus crucificado da compaixo, o

    Deus libertador da vida, Deus em feminino, Deus que rompe as cadeias, oDeus que faz festa com o ser humano, o Deus generoso das religies, oEsprito criador num mundo em evoluo, a Trindade: o Deus vivo doamor. E afirma: A f crist atual no cr num novo Deus, mas, aoencontrar-se perante situaes inslitas, busca a presena activa do Esp-rito divino, precisamente implicado nelas. beleza sempre antiga esempre nova, tarde Te amei, exclamava santo Agostinho7.

    Volvamos invocao encantada e agradecida de Francisco. Nissoconsiste o mais verdadeiro da espiritualidade. a expresso de umaespiritualidade mstica. No uma f preponderantemente institucional,uma ideologia ou uma moral, mas uma f profundamente mstica, queest para alm de todas as crenas, dos ritos e das normas. O cristianismo

    apesar de muitas resistncias institucionais est a despedir-se da

    6Ibid, 18.7

    Ibid, 17.

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    figura moral e dogmtica tradicional, e a deixar-se impulsionar a ser,sobretudo, um caminho de espiritualidade mstica. Necessitamos de umaespiritualidade mstica, que no nutrida por fenmenos paranormais,mas pela experincia de Deus em todas as experincias (R. Panikar, E.

    Schillebeeckx), pela experincia do ser e do estar cada vez maisprofundamente enraizados no mistrio de Deus, como mistrio que nosenvolve e nos origina, nos fundamenta e nos regenera, nos ama terna-mente e cura as feridas e conflitos ligados a todo o que conhecemos echamamos amor.

    No o Deus da metafsica. No um Deus exterior e distante.No outro em relao a ns, como um qualquer de ns, outro emrelao aos outros. totalmente outro, e, portanto, no-outro

    (Nicolau de Cusa). o crucificado numa pequena ermida semidestrudados arredores de Assis. o Deus no mago da nossa temporalidade, danossa caducidade e finitude, da morte (E. Jngel). A est Deus. O Deusque compaixo no mago de toda a dor.

    Sublinharia, todavia, outro rasgo ao qual a cultura actual especial-mente sensvel e que considero muito verdadeiro, no sentido de revela-dor, sugestivo, fecundo e transformador: o Deus da comunho ecolgica

    de todos os seres. Deus est no corao do mundo, o corao domundo e de todas as criaturas sem distino hierrquica. Francisco intuiu--o, adiantando-se aos tempos. Ele viveu, como natural, numa cosmo-viso antropocntrica, partilhou duma cultura e de uma teologia

    profundamente geocntrica e antropocntrica, na qual o ser humano eraapresentado como cume da criao e o motivo ltimo de toda a acodivina e de toda a histria de salvao. No entanto, para l dessacosmoviso teolgica, Francisco no se sentia superior s outras criatu-

    ras, no se sentia coroa e centro da criao. Sentia-se simplesmenteirmo, profundamente irmo de todos os seres. Irmo do sol, do fogo, doar, da madre terra, do lobo, da morte que irm inseparvel da vida. Diz--nos Celano que abraava os seres criados com um amor e um entu-siasmo jamais vistos (2C 165,7) e que a fora do amor fizera -o irmode todas as criaturas (2C 175,1).

    Deus a relao, a inter-relao, o respeito e o cuidado de tudoquanto existe, desde as partculas sub-atmicas s galxias em expanso.

    bom crer em Deus que est em toda a parte, o Deus em quem viv e-

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    mos, nos movemos e existimos (Act 17, 28). Um Deus que no partedo mundo nem a totalidade, mas que tambm no algo ou algum exte-rior e separado dele. Um Deus que a Totalidade na relao entre as

    partes do todo (K. Scmitz-Morman), a forma que tudo informa, a

    alma que tudo anima, a memria que tudo mantm vivo no coraoda vida.

    Por conseguinte, uma espiritualidade do nosso tempo h-de serprofundamente ecolgica, uma espiritualidade ecolgica da comunhouniversal, do respeito e do cuidado por todos os seres. Como escreve L.Boff: Quando falo de espiritualidade penso num novo sentido de ser,num novo sonho colectivo, entrelaado de vrios infinitos, como acooperao, a solidariedade, o respeito por cada ser, o cuidado por toda

    a vida, a harmonia da natureza, o amor me terra, a pluralidade deexpresses do sagrado8.

    2. Ilumina as trevas do meu corao

    Contrariando uma imagem bastante divulgada, Francisco padeceuda amargura e do medo das trevas. Ele, jovem alegre e rico, de umacidade luminosa, situada numa colina voltada ao sol, frente a um valeesplndido experimentou a angstiada escurido. Viveu no corpo e naalma o negrume da noite. As trevas do meu corao. E isso noaconteceu s nos anos de busca vocacional, mas ao longo da sua vida,sobretudo no final da vida, quando o seu corpo era uma chaga, e quandoa sua fraternidade se afastava daquilo que tinha sonhado, e muitos irmoso abandonavam.

    Por isso, ora. No deixa de reconhecer as suas trevas, olha as som-bras de frente e aceita sentir o fundo da noite que o rodeia. E canta como

    uma andorinha, at ao ltimo suspiro.Volvamos ao nosso tempo. A nossa poca no se caracteriza pela

    tranquilidade. Daniel Innerarity fala de uma obscuridade irredutvel oudo fim das evidncias e da visibilidade, ou da falta de perspectivas darealidade no seu conjunto e da sociedade em particular9. Efectivamente,nada seguro. E Innerarity tem razo, quando afirma: Quem apresenta8Crisis y exemplos-semilla, em Atrio, a 3/4/2009.9

    INNERARITY, D.,La sociedad invisible, Espasa, Madrid 2004, introduo.

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    o que diz como algo irrefutvel e verdadeiro, ou no sincero, ou nodiz nada de interessante10.

    O que pode oferecer a espiritualidade numa poca de desorientaocomo a nossa? Dever pr luz onde h escurido. Mas no poder faz-

    -lo base de certezas doutrinais e morais. A espiritualidade autntica nooferece respostas seguras a todas as perguntas, a nenhuma pergunta. Aespiritualidade oferece, sim, a liberdade e a ousadia para voltar a questio-nar todas as respostas, para continuar na busca, para prosseguir cami-nhando na noite. A espiritualidade consiste em entrar confiadamente nomistrio que envolve toda a realidade e acolhe cada um como um sernico. A espiritualidade consiste em nos sentirmos a salvo no meio danoite, acompanhados na intemprie pela presena de Deus, como nuvem

    obscura e luminosa. A espiritualidade consiste em caminhar em paz semver nem saber, sem se deixar paralisar pelo medo e insegurana, sem que-rer aferrar-se a certezas, sabendo-nos sustentados por Deus, apesar dovazio.

    A espiritualidade saber guiar-se de noite sem outra luz nem guia/a no ser a que no corao ardia. De noite iremos, de noite, / pois paraencontrar a fonte/, s a sede nos ilumina (Luis Rosales).

    A espiritualidade partilha as obscuridades, as perplexidades einumerveis fragilidades de todos os homens e mulheres. A espiritualidaderecebe alento, precisamente, das pessoas desalentadas que connoscocaminham, e deixa-se alumiar pela lmpada preciosa que levam oculta noseu interior as pessoas desorientadas, que partilham connosco a terra da

    partida e a terra da chegada da nossa peregrinao. Desta maneira aespiritualidade infunde alento aos homens e s mulheres de hoje nummundo cada vez mais complexo, cada vez mais sensvel s ameaas, cada

    vez mais inseguro, cada vez com mais medo das trevas de tantas sombrasque o cercam.

    Uma espiritualidade assim abre muralhas e fronteiras. No permiteque nos convertamos em seitas. Cura-nos da amargura e impede que nosconsideremos superiores aos outros. Faz-nos humildes receptores da luzque oferecemos. Abre-nos ao outro e ao consolo de Deus presente em

    10

    Ibidem, 22

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    todos e faz de ns paracletos e consoladores. Acende uma chamazinha deluz e de calor nas trevas mais espessas do corao e uma bno.

    3.Concede-me uma f verdadeira, uma esperana firme

    e um amor perfeitaDa invocao e do encanto, Francisco passa suplica. Ns que nos

    sentimos to necessitados, compreendemos Francisco que pede que oilumine que lhe d. Porque pede Francisco? Porque se sente radica l-mente pobre e indigente. Quis ser mendicante e viver de esmolas, depoisde dar de esmola tudo o que possua e tudo o que poderia possuir nofuturo. Deus no somente o que d em todo aquele que d, mas tam-

    bm o que pede em todo aquele que pede.

    Francisco suplica a Deus. Toda a petio a Deus o reconheci-mento da nossa limitao, da conscincia radical da nossa indigncia.Francisco reconhece que necessita de Deus. Ao pedir que Deus o ilumine,reconhece as suas trevas interiores; ao pedir uma f recta, esperana certae caridade perfeita, reconhece que se sente inseguro na sua f, vacilantena sua esperana, imperfeito no seu amor. Por isso pede.

    Ora a Deus em forma de splica humilde, de petio confiada. Tam-bm aqui h que distinguir a forma e o sentido autntico. O sentidoverdadeiro no se encerra no enunciado. O sentido profundo da petiode Francisco nem sequer a f, a esperana e a caridade perfeita,enquanto objecto de petio nem o facto de pedir como tal.Ao sentir--se radicalmente necessitado, exprime perante Deus uma confiana aindamais radical. E, ao exprimir perante Deus uma confiana radical, a suavida abre-se, para que Deus surja, como a terra se abre para que brotemas plantas e os frutos. O essencial da petio que a vida se abra paraDeus, e manifeste e opere a sua aco transformadora.

    Que sentido tem a petio de um crente? No pede para que Deusconhea as nossas necessidades. Tambm no pede para que Deus faa oque de outra forma no faria, ou para evitar algo que de outra formaaconteceria. A orao no transforma Deus, mas o crente que reza. Reza-mos para exprimir a nossa necessidade e a nossa confiana. Oramos paraacolher e agradecer. Oramos para nos transformarmos. Oramos para dei-xar que Deus seja em ns e em todas as coisas. como se Deus estivesse

    pedindo em ns e ns sentirmos que no podemos deixar de atender a

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    chamada do Grande Esmoler. Recordemos as comovedoras oraes deEtty Hillesum, nas quais ela nada pede, antes promete humildemente aju-dar Deus, prisioneiro em todos os coraes e em todos os crceres, comoaqueles infelizes prisioneiros condenados a Auschwitz: Tu, meu Deus,

    no podes ajudar-nos. Eu te ajudarei, Senhor, e assim me ajudarei.Quando ajudamos a Deus, deixamos que Deus nos ajuda a partir de nsmesmos, pois nos tornamos providncia de Deus para ns e para todas ascriaturas.

    Concede-me uma f verdadeira (reta). Francisco viveu semprepreocupado com a f recta, com ortodoxia. Isso percebe-se a partir dasituao social e eclesial do seu tempo. Foram tempos de grandes muta-es culturais e sociais, tempo de inquietao e insegurana, de necessi-

    dade de reformas a todos os nveis. Eram frequentes os pregadoresambulantes que apelavam a reformas. Os ctaros tinham-se instalado noVale de Espoleto, perto de Assis. E havia muitos outros movimentos,alguns na fronteira da ortodoxia e do sistema vigente, e outros clara-mente condenados como hereges, como os ctaros.

    A quem seguir? Francisco, por um lado, no se identificava emabsoluto com a instituio eclesial no seu conjunto: uma Igreja clerical,hierrquica, poderosa, ora aliada, ora em guerra com o imperador. Apesardisso, Francisco no quer, nem pode distanciar-se no mnimo que sejadaquela estrutura eclesial e teolgica: no questione a doutrina oficial,nem o clero, nem a hierarquia, apesar de muitos e flagrantes abusos.Pensa e est intimamente convencido de que a f no seguimento de Jesusse joga na fidelidade aos sacerdotes, por mais indignos que sejam. Decidi-damente, ele busca outra coisa, mas a sua mentalidade no lhe permitelibertar-se daquelas formas. E parece identificar fidelidade Igreja comfidelidade ao sistema clerical, a f com a doutrina dogmtica, o segui-mento de Jesus com a doutrina sacramental tradicional.

    Hoje, o ambiente cultural e espiritual diferente do de Francisco.Muita gente, dentro e fora da Igreja crist, comea a tomar conscinciauma conscincia colectiva de que a f no se refere acrenas dogmti-cas, prtica ritual dos sacramentos, adeso institucional a um sistemaclerical. Ao contrrio de Francisco podemos e devemos pensar que arectido da f no depende da sintonia mental com umas frmulas dog-

    mticas. A f no reta, porque se acredita firmemente em todos os

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    dogmas, porque mantm umas crenas inabalveis ou porque se resume aumas frmulas seguras. No aqui que se joga a f, a rectido da f. No a este nvel que se joga a glria de Deus. A f recta quando o coraoconfia, desnudo e livre, quando se abandona como criana nos braos da

    me, quando no se tem necessidade de saber nem de explicar nada,quando no se teme pensar com liberdade, quando a confiana profunda

    permite duvidar de tudo.

    No se trata de incorrer num relativismo superficial e irresponsvel,mas de apostarmos verdadeiramente na confiana vital profunda, paraalm de todo o sistema de crenas e certezas. A f no tem objecto,como insiste o sbio e mstico R. Pannikar. Isto : o objecto da f no soas ideias ou o significado das frmulas da f. O objecto da f Deus

    como mistrio para alm das palavras, das imagens e das frmulas. A frecta consiste em aprender a confiar em Deus, mesmo caminhando novale das trevas. Por isso, como bem escreveu E. Biser, j h muitos anos,a verdadeira anttese da f no a incredulidade, mas o medo11. Aheresia autntica e perigosa no tem a ver com a doutrina, mas com aconfiana. A pior heresia a heresia emocional, isto , a falta dealegria, apesar de todas as trevas.

    para aqui que aponta a base mstica de todas as religies. issoque nos une, para alm dos credos e dos cdigos. Nisto consiste aespiritualidade integral de que fala Jger: O termo espiritualidade inte-gral refere-se busca do fundo comum, que est subjacente em todos oscaminhos espirituais autnticos, num esforo de encontrar e defendertudo o que nos une, eliminando as barreiras e indo ao mago da prtica,com a diversidade que esta apresenta. Este centro, que base comum, aexperincia mstica que se deve desenvolver como perspectiva em todos

    os aspectos e nveis da existncia humana. Por isso espiritualidade inte-gral, que no substitui nem acrescenta nada aos diferentes caminhos,antes realiza um esforo de unio e de encontro.

    Propomos uma nova forma de ver as buscas essenciais do serhumano. Partimos de uma perspectiva no dogmtica, de aceitao etolerncia do que autntico dos diferentes caminhos e tradies espiri-tuais, e que se pode incorporar na prtica de todos os nveis da vida

    11

    BISER,E.Pronstico de la fe, Herder, Barcelona 1994

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    humana: corpo, energia, emoes, esprito e mente, como um todo nicoque somos, numa convergncia transconfessional que chamamosespiritualidade integral. Para isso temos de reavaliar os pressupostos de

    base. Vivemos um momento excepcional no Ocidente. um momento de

    crise geracional, que muitos classificaram como mudana epocal. Assisti-mos a novos fundamentalismos que se misturam nas culturas, em buscade confrontao, dando lugar a dogmas e a bloqueios culturais12.

    Esperana certa. Pode a esperana ser segura? Parece um con-trassenso. E um contrassenso. A certeza da esperana no da mesmaordem das nossas certezas ordinrias. No a certeza de que algo vaiacontecer num futuro mais ou menos longnquo. antes a certeza ou adeciso ou a determinao da atitude vital, o compromisso com o futuro.

    Que futuro? O futuro que Deus para a nossa vida, e que ns devemosencarnar, actualizar e antecipar essa presena. uma forma de viver queabre sempre uma brecha de novidade no que antigo, uma antecipaodo futuro que torna presente aquilo que esperamos.

    No se trata de ser optimista ou pessimista a respeito do hipotticofuturo mais ou menos incerto. Trata-se sim de recuperar o futuro nanossa forma de ver e de viver o presente13. No podemos decidir hojesem pensar no futuro, que queremos deixar prxima gerao humana es geraes de todas as espcies. No vivemos numa poca de optimismocom respeito ao futuro. s vezes parece at que o futuro desaparece dohorizonte do presente, ele tambm ameaado.

    Francisco de Assis tinha um temperamento optimista, mas na suavida no faltaram circunstncias que purificaram o seu optimismo. Emqualquer caso, a sua esperana no consistiu no seu optimismo, mas naforma inovadora de vida, criadora de futuro.

    A espiritualidade inseparvel desta atitude de esperana antecipa-dora. Esta espiritualidade e esta esperana no nos fazem optimistas, masmais fiis e confiantes. A f no nos d um suplemento de segurana emrelao ao futuro, antes nos impele a cri-lo. Esperar isto. Esperar

    12 Cf. SAN JOS, P., Espiritualidad integral. Antecedentes y consecuencias, em

    Atrio.com (Maio de 1009).13

    Cf. INNERARTTY,D., recuperar el porvenir, emEl Pas(17-05-2009)

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    fazer que chegue o futuro que desejamos. A esperana certa encarregar--se do futuro com determinao.

    Esta determinao requer uma grande confiana e uma grandegenerosidade. A generosidade que se apoia na confiana e a aumenta, a

    confiana que nasce da generosidade e a suscita. A est a sabedoria. Asabedoria da vida que Diego Garcia exprime, citando a frase lapidar gra-vada no palcio Rajoy de Santiago de Compostela: Trabalha como sevivesses sempre, vive como se morresses amanh. assim a sabedoriada esperana.

    Nesta esperana, que confiana e determinao, no conta oxito. No importa que fracassemos na nossa aposta. Tambm Jesusfracassou e sabia que ia fracassar, mas seguiu em frente, esperando con-

    tra toda a esperana. E o essencial que no esperava nenhumainterveno milagrosa de Deus ltima hora, que mudasse a situao. Oessencial que Jesus se manteve fiel ao seu compromisso pelo reino dosCus at ao fim. Mesmo que fracassasse a causa era grande e merecia a

    pena; talvez a causa exigisse o fracasso como aconteceu com todos osmrtires. Os mrtires fracassaram? Jesus fracassou? A f pascal afirmaque Deus est com todos os mrtires e que todos os mrtires esto emDeus, que Deus esteve com Jesus at ao fim e para alm do fim, que

    Jesus vive em Deus e que, apesar do aparente fracasso, a bondade e avida so mais fortes que o sindrio e o imprio, porque Deus vida e

    bondade.

    amor perfeita. O que conta a caridade, o amor. (Caritas) atraduo latina do gape grego, enquanto amor traduz mais afilia grega;assim, caridade foi entendido como amor superior e tem uma conota-o mais religiosa que amor, mas podemos entend-los perfeitamente

    como sinnimos. Apesar de serem termos desgastados pelo uso e cheiosde equvocos, no podemos renunciar a eles. Somos o que amamos.Somos enquanto amamos. Todas as grandes mulheres e homens espiri-tuais de todos os tempos, independentemente dos seus compromissosreligiosos, souberam isso. Jesus sabia-o e ensinou-o. Francisco tambm osoube e ensinou.

    O mais importante a caridade ou o amor, sentir as feridas dooutro como a sua prpria ferida, sentir-se responsvel pelo destino do

    outro a partir da compaixo, cuidar do outro de toda a criatura por-

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    que tem necessidade de mim. E porque eu no posso ser sem o outro;no posso ser feliz sem o amar. E o outro no existe sem mim, sem queeu o ame e sem que o outro me ame tambm.

    A caridade, como no fundo tambm a tica, s pode ser concreta:

    deixar-me atrair pelo outro, por toda a criatura, pela sua maravilha epelas feridas que tem; unir o meu destino ao seu, porque quero, porquegosto, porque quero e gosto ( e muitas vezes mesmo que no goste, poiso nosso gosto ainda no totalmente divino); fazer-me prximo, sentir--me companheiro e samaritano de quem necessita de mim, alegrar-mecom aquele que est alegre e compadecer-me de toda a criatura quesofre.

    A caridade ou o amor no um comportamento que simplesmente

    responde a um imperativo tico ou a razes filosficas ou a sublimesrazes teolgicas (o valor da pessoa, a semelhana de Deus). No. Acaridade ou o amor uma praxis que se inspira na presena carnal dooutro com a sua graa e as suas feridas. A razo simplesmente o outrocom a sua realidade concreta, a sua indigncia.

    Foi assim o comportamento de Jesus. Foi bom, simplesmente. Foibom de forma criativa. A bondade criativa foi a caracterstica de Jesus(J.A.Marina). Livre e criativa foi tambm a bondade de Francisco.

    Assim ora Francisco. Assim pede. Eu no sei se a orao de petiotem sentido. O sentido, em qualquer caso, no est tanto na petio comotal, mas na atitude do que pede. No pedimos a um Deus passivo earbitrrio que intervenha. A forma de petio sugere que Deus pode darou no dar: pode dar f ou no dar, dar esperana ou neg-la, dar-noscaridade ou neg-la. Mas Deus pura e plena doao e graa, e no podeno dar-se, como ns no podemos deixar de respirar. Assim, Deusrevela-se em tudo, Deus actua em tudo, d-se totalmente em tudo. Ele dynamisque late em toda a realidade. a presena operativa, criadora,transformadora, que habita tudo quanto , desde as partculas mais nfi-mas at s galxias. E a realidade, sempre aberta, inacabada e inter--relacionada, necessita que a presena de Deus emirja e se realize desdeas suas entranhas.

    Que orar? Orar no pedir, mas expressar perante Deus, emDeus, o nosso ser mais profundo com palavras ou silncio. Orar

    aprofundar a conscincia de que existimos em Deus e de que Deus o

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    alento mais profundo do nosso ser. Orar deixar que o corao se enchade confiana, de esperana, se comova de caridade e de ternura.

    Francisco orava assim, apesar da forma de petio que usava na suaorao. A orao transformou-o, foi a forma de deixar que Deus o trans-

    formasse por dentro, foi a forma de se fazer cada vez mais livre e divino,mais confiante e bom.

    4. Sentido e conhecimento

    Ao lado das trs virtudes teologais, sugestivo que Francisco peasentido e conhecimento. Pede luz interior para discernir. Luz para distin-guir o que Deus quer. Mas a vontade de Deus no um projecto que

    Deus tenha escrito, mas um caminho que vamos fazendo entre sombras eescolhos. Deus no dita nada desde fora. Deus vai-se abrindo desde ocorao da criatura, desde o corao do tomo e de todo o organismo, detodo o ser humano. Deus abre-se como uma semente se abre desde asentranhas da terra, atrado pela luz e empurrada por um impulso miste-rioso. Quando a vida cresce, Deus que cresce na vida.

    Para isso, preciso que se desperte o sentido e o conhecimento.Hoje diramos discernimento. Francisco nose cansa de insistir nisto.

    muito actual esta insistncia de Francisco no discernimento inte-rior. Diz-se que vivemos em tempo de gnose. verdade que muitosmovimentos da nova espiritualidade apresentam elementos gnsticos:o anseio de interioridade, o acento no despertar da conscincia profunda,a busca de libertao atravs de uma maneira nova de se olhar e de olhartoda a realidade A gnose foi um poderoso movimento nos primeirosanos do cristianismo, que a Igreja no soube integrar e que reprimiu comafinco como a maior ameaa da f. Mais ou menos reprimida, a gnosesempre esteve presente no cristianismo, particularmente nas correntesmsticas. Manifestou-se poderosamente na Idade Mdia, no movimentoctaro violentamente perseguido e afogado em sangue e em outrosmovimentos da reforma espiritual do tempo de S. Francisco. O gnosti-cismo volta hoje com fora e contm muitas intuies vlidas para aespiritualidade do sculo XXI. Seria mau reprimi-las como gnsticas.

    Podemos compreender nessa linha a insistncia de Francisco nosentido e conhecimento interior. O sentido e o conhecimento como luz

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    interior que nos permite sentir o alento divino em ns e em todas ascriaturas. O sentido e o conhecimento que nos permite confiar profunda-mente em ns, no prximo e em todos os seres.

    O sentido e o conhecimento no tm a ver com uma interioridade

    espiritualista, mas com uma sensibilidade integral. De maneira especial,tem a ver com a espiritualidade de todos os sentidos. importante quecuremos do maniquesmo que maltratou em ns a sensibilidade, asensualidade, e todos os sentidos. A espiritualidade tem como metalibertar o corpo das represses da alma, das represses da moral, e dashumilhaes devidas ao dio a ns mesmos, para conseguir a verdadeirasade14. O conhecer e o sentir so inseparveis. E no somente a nvel

    psicolgico e gnoseolgico, mas tambm a nvel teolgico. Deus sente

    em todos os sentidos e todos os sentidos sentem a Deus em todas as coi-sas: a vista v Deus em todas as formas, o ouvido ouve Deus em todos ossons e todos os silncios, o olfacto percebe Deus em todos os aromas, otacto toca Deus em todas as carcias, o gosto saboreia Deus em todos ossabores da vida. A espiritualidade h-de ser, pois, necessariamente umaespiritualidade do corpo15. Amamos como corpo, confiamos comocorpo, oramos como corpo. Para sermos espirituais necessitamos de rela-xamento, para nos libertar das tenses fsicas e mentais, e respirar bem,

    sentirmos bem o nosso corpo, o que no quer dizer que tenhamos de terum corpo perfeito ou de gozar de uma sade perfeita.

    Ana Mendiola, uma mulher basca, professora de dana, longe daIgreja, mas profundamente espiritual, escreve: Neste caminhar, busqueios conceitos para lhes despertar a conscincia da natureza dos elementos,

    percebendo que cada elemento ia ligado a uma fora que o nutre, for-mando parte do nosso organismo vital, e ligado ao universo como partede um Todo. Procurei, assim, despertar uma nova conscincia ecompreenso de ns mesmos, e desse espao supostamente vazio que onosso sentir, (o visvel e o invisvel). Tendo em conta o tempo que nos dado viver, onde a produtividade parece ser o nico objectivo, onde ocio e o lazer nos amolecem, tive necessidade de buscar essa mudana,essa actividade dos nossos sentidos como renovao destes em redes14MOLTMANN, J.,El Espritu de la vida. Sgueme, Salamanca 1998, p. 110.15 MOLTMANN, J., El Esprito Santo y la teologia de la vida. Sgueme, Salamanca

    2000, p. 102

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    activas e despertas para uma nova conscincia colectiva; cada sentidoleva-nos harmonia: a minha viso, o meu tacto, o meu ouvido, o meugosto, o meu olfacto, na medida em que esto sensibilizados, levam-me aolhar o mundo com outros olhos, descobrindo e elevando a beleza inte-

    rior de cada ser humano16

    .Estas palavras tm pleno sentido para a nossa espiritualidade.

    4. Para cumprir o sagrado e encargo (mandamento)

    Tambm significativo que Francisco termine a orao falando emcumprir e em mandamento (encargo). Quem compreende mal estes ter-mos cai muitas vezes no moralismo. Naturalmente, Francisco estcondicionado pelo vocabulrio e pensamento da teologia moral do seu

    tempo, pela viso pessimista do mundo e do corpo, pela espiritualidademoralista. Mas a viso de Francisco no pessimista. A sua espirituali-dade no , nada moralista.

    Cumprir muito mais que mera praxis. Na verdade uma praxis,mas uma praxis que nasce de dentro pelo sentido e conhecimento, pelasensibilidade, pela gratuidade, pela ternura e vontade de cuidar. Podemostraduzir por viver. Trata-se de viver. Cumprir no acatar os mandamen-tos, observar as leis eclesisticas, submeter-se a uma ordem. Francisco foi

    uma pessoa extremamente livre, liberta por dentro. Ele que tanto insistiana obedincia, no se deixou atar nem sequer pela fraternidade criada porele. Passou grande parte da sua vida na solido, guiado pela luz interior,muitas vezes vacilante. Cumprir ser fiel a essa luz interior. viver noquerer de Deus a partir do sentido e do conhecimento.

    O mandamentode Deus Francisco usa o singular e no o pluralmandamentos o mandamento da vida, o mandamento do Evange -lho, enquanto boa notcia. O cristianismo no nenhuma religio o no

    fundo um conjunto de crenas, nem sequer um cd igo de conduta. Averdade do Evangelho a vida em todas as suas expresses. A vidanecessita de suportes, mas aspira a ser livre, para se dar totalmente.

    No se trata de um mandamento que vem de fora. Certamente quea alteridade indubitvel. Ningum inventa a sua prpria luz. A luz vem--nos de fora. E vem sempre atravs da interpelao do outro, do outro

    16

    Cf. revistaHemen22 (2009).

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    quando est alegre e do outro quando sofre. Mas esse chamamento deve--nos prender por dentro. De outra forma domina-nos e fecha-nos e vai--nos levando morte lenta, vai-se extinguindo em ns o esprito, o alentovital. O mandamento a chamada que nos vem do vivente, do ferido, do

    outro, do que necessita o meu cuidado. Esse chamamento deve-se enrai-zar por dentro em formas de compaixo, convertendo-se em impulso que

    brota do interior. Deus no manda nada. Deus no um senhor queimpe leis ou pede contas. O chamamento de Deus no mais que a leivital, a lei da vida que quer desenvolver-se e ser feliz.

    No fundo, para alm dos seus esquemas teolgicos mais ou menosmoralistas, isso a que Francisco chama santo e veraz mandamento.Dois adjectivos. Que significa santo. No significa moralmente intocvel,

    mas verdadeiramente so, livre, generoso, aberto, confiante. Santo so.Santo feliz. S a bondade pode ser feliz. S a bondade pode ser santa,

    boa. S assim o mandamento verdadeiro, verdico. A verdade no con-siste na adequao de uma ideia ou de uma conduta com uma normaimutvel. A verdade criativa, um caminho de libertao e de graa.

    Assim a orao termina com a palavra mandamento. Mas a ltimapalavra s adquire sentido luz da primeira expresso: . De outraforma o mandamento converte-se em jugo. O mandamento de Deus,

    vem-nos atravs do rosto do necessitado, mas surge dentro de ns mes-mos, como um impulso de vida que acompanha a admirao, a gratui-dade, a compaixo, a confiana livre. Assim a vida comprometidaconverte-se na outra face do encanto, da admirao mstica. A msticatorna-se prtica, e toda a praxis se torna mstica (dizei com obras o amorque vos vai no corao, escreveu santa Clara no seu Testamento).

    esta a espiritualidade que viveu Jesus e que no cessa de renovara histria. Essa a espiritualidade que viveu Francisco nos alvores de umanova cultura. esta a espiritualidade que estamos chamados a viver hojenum mundo em profunda transformao, procura de respirao.

    Traduo da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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    FRANCISCO E CLARA,

    MASCULINO/FEMININO EM ASSISDURANTE O SCULO XIII

    Jacques Dalarun, ofm*

    * Artigo publicado em vangile Aujourdhui, n. 215 (2007) 27-38, com o ttulo

    Franois et Claire, Masculin/Fminin Assise au XII sicle.

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    FRANCISCO E CLARA,MASCULINO/FEMININO EM ASSISDURANTE O SCULO XIII

    Entre 1210 e 1212, Assis foi palco de uma srie de encontros pri-

    vados, secretos, que, no entanto, teriam grandes repercusses na histriada santidade crist17. O jovem teria cerca de trinta anos e a jovem entredezasseis e dezoito anos. Ela pertencia classe das famlias nobres queviviam perto da catedral de So Rufino. Ele, filho de um comerciante de

    panos, procedia do povo.

    O testemunho mais completo sobre este encontro -nos dado porBeatriz, irm de santa Clara, quando deps para o Processo de Canoniza-

    o, em 1255.

    A Irm Beatriz, filha de Favarone, religiosa do Mosteiro de SoDamio, declarou sob juramento que foi irm carnal de madona Clara,de santa memria, cuja vida foi quase angelical, porque foi virgemdurante toda a vida. E as suas obras de santidade eram to evidentesque a fama das suas virtudes se divulgou entre todos os que aconheciam.

    Disse depois que, conhecendo So Francisco a fama da sua santi-dade, se encontrou com ela vrias vezes para lhe falar do Evangelho. Ede tal forma foi tocada pela mensagem, que renunciou ao mundo e atodas as coisas terrenas, entregando-se ao servio do Senhor logo que

    foi possvel.Vendeu toda a sua herana e parte da herana da testemunha, e

    deu tudo aos pobres.17

    Cf. LCL 5-6

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    Em seguida, So Francisco cortou-lhe os cabelos diante do altarda igreja da Virgem Maria, chamada da Porcincula, e levou-a igrejade So Paulo das Abadessas. Foi a que os parentes a procuraram paraa levar. Mas Clara agarrou-se s toalhas do altar e, mostrando-lhes os

    cabelos cortados, no cedeu aos seus intentos. Continuou ali, noregressando com eles a casa. Mais tarde foi levada por So Francisco,

    Frei Filipe e Frei Bernardo igreja de Santo ngelo de Panzo. Foi dalique saiu para a igreja de So Damio, lugar onde o Senhor lhe deumais irms, que se colocaram sob a sua tutela18.

    ALGUMAS QUESTES

    Esta relao entre Francisco e Clara excitou alguns espritos. Nosfins do sculo XIX, o grande historiador do franciscanismo Paulo Saba-tier no passou sem celebrar, numa exaltao romntica, os amores deFrancisco e Clara. Facilmente reduzimos o que singular ao comum, oque raro ao conhecido, o que desconcertante ao tranquilizador. Qualfoi, exactamente, a natureza da relao que, sem dvida, tiveram os doissantos de Assis? Duma maneira geral, que viso tinha Francisco dasmulheres e que viso tinha Clara dos homens? De que maneira a sua

    identidade sexuada entendida essencialmente como uma construocultural da poca influenciou a sua maneira de viver a exigncia evan-glica que ambos se propuseram seguir?

    Fundado nas fontes dignas de confiana, sem preconceitos, tentareidar resposta a estas questes. Em primeiro lugar terei em conta osEscritos de Francisco e as Legendas mais antigas que lhe foram dedica-das, tomando nota das citaes que a se fazem sobre Clara, as mulheres,

    o feminino e os movimentos feministas da poca. Depois farei o mesmonas fontes relativas a Clara. Assim podemos delimitar com mais exactidoo que une e o que distingue os dois santos de Assis.

    18

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    OS ESCRITOS DE FRANCISCO

    Ao ler os escritos de Francisco, apesar de tudo, relativamente abun-dantes e onde at encontramos cartas dirigidas a dois dos seus irmos,

    Leo e Antnio de Lisboa, surpreende-nos que no encontremosnenhuma carta dirigida a Clara. Ficar por esta observao, verificar seste silncio, no seria bom mtodo. possvel que algumas cartas setenham extraviado. Acresce que no dado nenhum tratamento especials irms de Clara, s senhoras pobres de S. Damio. Tudo se resume a

    poucas linhas escritas pelo pai espiritual e includas na Regra de Clara, eum poema no dialecto da mbria, o Audite poverella, de autenticidadediscutvel, que parece ter sido composto para elas.

    As legendas mais antigas e mais fiveis que narram a vida de Fran-cisco no so muito mais prolixas. As Legendas de Celano Primeira

    Legenda, Segunda Legenda e Tratado de Milagres o Annimo Peru-sino, a Legenda dos Trs Companheiros e a Legenda Perusina, s portrs vezes evocam a virgem de Assis.

    AS DATAS

    Como interpretar tanta discrio em relao a santa Clara?Em primeiro lugar pelas datas. Francisco nasce em 1182, em 1206

    distribui os bens pelos pobres e converte-se, morre em 1226 e canoni-zado em 1228. Clara nasce em 1194, entra na religio em 1212 e retira-se

    para S. Damio, morre em 1253 e canonizada em 1255.J notvel que Toms de Celano, na Legenda Primeira de 1228 se

    tenha referido s virtudes de uma jovem de trinta e quatro anos, ainda nafora da vida. Na realidade, Clara compartilhou alguns dias da vida de

    Francisco, mantm uma relao de quinze anos com ele e recorda durantevinte e seis anos os ensinamentos de um defunto que santo. Alm disso,temos de constatar que Francisco em 1226, segundo as fontes conserva-das, no tinha escrito uma palavra a Clara nem sobre Clara, e ela notinha escrito nem uma palavra dirigida a ele, ou sobre ele

    Em relao s mulheres em geral, os estratos sociais em que oPoverello se movia, colocavam-no em situaes contraditrias. Precisa-

    mos de pacincia para as compreender e desatar os ns e orden-las

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    cronologicamente, tanto atravs dos Escritos como atravs das Legendasque lhe foram dedicadas. No se podem deslindar todas as incoernciasdetectadas quando se trata de mulheres os homens entram sempre emcontradies. Alm disso, devemos ter em conta que muitas destas con-

    tradies, no reflectem sempre o pensamento de Francisco. Muitasvezes revelam a opinio dos autores das vrias Legendas, que, ao privile-giar um certo ponto de vista, embora pretendam evidenciar a experinciado fundador, s vezes tambm se servem da imagem do fundador paratomar partido na disputa entre as vrias tendncias, que se combatiamnuma determinada poca.

    ACULTURA CORTES

    As quatro Legendas quando recordam os seus sonhos de cavaleiro,os de um snob em busca de promoo social, colocavam em primeirolugar as solidariedades e os afectos do filho do comerciante de Assis. No

    Annimo Perusinoe naLegenda dos Trs Companheiros, conservaram arecordao mais viva: eram um grupo de soldados que assustavam mese filhas.

    Os vestgios da cultura cortes do jogral de Deus, dos quais a

    Legenda Perusina a mais fiel depositrio, incitavam-no a honrar amulher distncia, a fazer dela a sua dama para celebrar melhor, segundoas normas do modelo corteso, o amor do Senhor. Assim, a Virgem

    pobre encontra-se no corao da sua devoo, seguindo-se dos modelosterrestres, as senhoras pobres de S. Damio. O feminino era valorado porFrancisco em alegorias morais, tais como a da dama Pobreza, homena-gem rendida experincia de pobreza extrema.

    AS GRANDES FIGURAS EVANGLICAS

    Com efeito, o Evangelho tinha-se enxertado no modelo corteso,cujo descobrimento foi para Francisco uma revelao fulgurante, talcomo recorda no seu Testamento, nos ltimos anos de sua vida. As gran-des figuras evanglicas no so ignoradas: Maria certamente, mas maisainda Madalena, a pecadora arrependida, amada com ternura por Cristo e

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    na qual Francisco encontra o reflexo na nobre viva romana Jacoba deSettesoli. A Legenda Perusina19 relata uma cena de uma grande densi-dade dramtica, o privilgio de amor, de que gozou a viva de Roma,at ao momento de sua morte, muito mais do que a virgem de Assis.

    Mas,porque ser que chama a esta mulher Frei Jacoba. Ser porque osseus afectos mais ntimos s poderiam ser dirigidas a um irmo? Ou serque os companheiros, ao compilaram as memrias, vinte anos depois desua morte, reprovassem de tal forma aquela amizade to afectuosa que ofundador tinha por uma mulher, que sentiram a obrigao de lhe negar afeminilidade?

    A literatura cortes e os ensinamentos do Evangelho abriam ao

    penitente perspectivas originais. O Evangelho mostrava-lhes o caminhodos primeiros transformados em ltimos, dos ricos escolhendo a pobreza

    para aceder a riquezas mais sublimes. Dos maiores feitos menores paracrescer por causa da sua humilhao, dos chefes que aceitam governarnuma atitude de servio saudvel. Os escritos de Francisco espelham estemundo de valores totalmente invertidos. Tentava-se naturalmente seguirde perto os passos do Altssimo, que se fez Baixssimo, para usar o ttulodo livro admirvel de Christian Bobin. Francisco, contemporneo dos

    romances de Broul e de Chrtien de Troyes, canta em francs para cele-brar os louvores de Deus ou simplesmente para dar curso sua alegria.NaLegenda Perusinacompara seus irmos com os valentes cavaleiros deCarlos Magno20. Alm disso, Francisco ouviu narrar a histria de Tristoque, disfarado de leproso, de mendigo, duas das figuras que lhe eram

    particularmente queridas, no vacilou em fazer-se cavaleiro da sua dama.Isso causou escndalo, porque, por detrs da figura literria, Broul fazum discurso sub-reptcio sobre a transgresso das posturas ert icas.

    UM MOVIMENTO FEMINISTA

    Na obra do novo louco de Assis, nota-se o incio de um movi-mento feminista; no aLegenda Perusinaque foca esse aspecto, mas o

    Annimo Perusino e a Legenda dos Trs Companheiros, fiis testemu-19Cf. LP 101.20

    Cf. LP 72.

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    nhas deste sistema em que grupos de mulheres, guerreiras ou religiosas,afugentamas mulheres e s se queriam entre vares.

    A imagem da alma pecadora, simbolizada por Madalena nos escri-tos dos Padres, mas para falar da parte feminina presente em todo o

    homem, que praticamente a sua alma, alis pecadora, Francisco faz-sede mulher para aceder redeno. Tambm para imitar, evidentementeem menor escala, a este Deus que no vacilou em fazer-se homem, faz-semulher.Mulier haec erat Franciscus21, v-se obrigado a explicar o pobreToms de Celano para interpretar uma parbola onde uma mulher pobretomada pelo rei no deserto e que depois envia os seus filhos corte.

    Francisco uma mulher, porque uma me: a pobreza grvida dorei, a me galinha que junta todos os pintainhos debaixo de suas asas para

    transmitir melhor a proteco da nossa me Igreja22

    . Ao contrrio dafigura paterna personificada em Pedro Bernardone, que favorece umainterpretao esmagadora, o doce governo da me o que proporciona aFrancisco a resposta pergunta que o atormenta, desde que compreen-deu que no podia rejeitar o cuidado da comunidade que Deus fez crescer sua volta: como passar da intuio instituio, segundo o expressivottulo de Thophile Desbonnests, como dirigir sem esmagar, governarsem dominar, aceitar os cargos rejeitando o poder, o que extremamente

    aborrecido. No italiano de Francisco, governar tambm servir, soco r-rer as necessidades dos outros, como a me governa os seus filhos, comonossa irm a madre terra que nos sustenta e governa. E quando oPoverello fala do feminino, ou quando escreve aos seus irmos mais que-ridos, como a Leo, como uma me, no fala de mulheres reais, antesusa uma alegoria que diz respeito a ele mesmo.

    ACULTURA MONSTICA

    O estrato mais prximo da cultura de Francisco, aquele com o qualmais de perto teve de se confrontar para elaborar os aspectos da sua fra-ternidade, que pouco a pouco se foi transformando em ordem, a culturamonstica, a regra beneditina, e sobretudo as Vidas dos Padres dodeserto. O Annimo Perusino e a Legenda dos Trs Companheiros21Cf. 2C 16-17; TC 50-51; AP 35.22

    Cf. 2C 24; TC 63.

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    dizem-nos que os irmos faziam a sua leitura no captulo. Aqui a lio simples e brutal: desconfiana das mulheres, para quem se pr opegovernar uma comunidade de homens. Mesmo uma pacincia dearquelogo no descobre nas verses sucessivas da regra de Francisco,

    tanto na primeira como na segunda, os vestgios de um tempo ditoso ereprimido em que os irmos e as irms menores vivessem a mesma itine-rncia, levassem a cabo a mesma busca. As mulheres foram colocadasmuito rapidamente em S. Damio, inofensivas, quais damas distantes,excludas da fraternidade.

    E quando uma vez, muito contra sua von tade, como nos diz aSegunda Legenda de Celano23, Francisco decide pregar s irms de S.Damio que ansiavam pela sua palavra vivificante, entra sem pronunciar

    palavra perante a assembleia e, sem sequer olhar para elas, desenha umcrculo de cinza entre elas e ele, deita o resto da cinza sobre a cabea,entoa o Miserere e sai, deixando-as estupefactas. Depois da morte deFrancisco, s alguns dos primeiros companheiros, ngelo, Leo, Jun-

    pero, Filipe Longo, Elias, guardavam, como num jardim secreto, a nos-talgia do tempo em que irmos e irms, homens e mulheres, tinham umnico esprito, pulsavam com o mesmo corao.

    OS ESCRITOS DE CLARA

    Clara tambm guardava no seu interior a recordao deste amanhe-cer. Nos seus escritos, muito menos abundantes que os de Francisco, citanumerosas vezes o seu pai espiritual: cita-o por treze vezes, se tomarmosem conta as obras consideradas autnticas, descontando o Testamentoonde o nome de Francisco aparece em cada pargrafo, quase como uma

    jaculatria. Poderamos pensar na imagem do par mstico, ou at na

    imagem da virgem abandonada sonhando com o gal insensvel. Masobservando bem, vemos que Clara utiliza o nome de Francisco comdiscernimento, melhor dito, com habilidade.

    Na terceira carta, do ano 1228, dirigida a Ins de Praga, filha do reida Bomia, convertida ao mesmo estilo de vida religiosa de So Damio,Clara cita Francisco por duas vezes, uma atrs da outra. Nas duas primei-23

    Cf. 2C 207.

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    ras cartas, Clara no teve necessidade de se socorrer da autoridade deFrancisco para guiar esta filha de rei nos progressos da sua vida espiri-tual. Clara refere-se a Francisco unicamente para esclarecer uma questorelacionada com os dias de festa, nos quais era permitido suavizar o jejum

    seguido pelas irms, tanto em Assis como em Praga. No se sabe bem seesta carta foi escrita pouco tempo depois de Gregrio IX tentar estender Ordem de So Damio o rigor drstico dos jejuns cistercienses. Evocara Francisco nesta situao concreta, us-lo como contrapeso autori-dade pontifcia para melhor afirmar a originalidade de Clara.

    Na sua regra, redigida nos ltimos anos de sua vida e aprovada inextremispor Inocncio IV, em 1253, a virgem de Assis invoca o seu pai

    espiritual, mas s em dois lugares precisos. No primeiro captulo para lheatribuir modestamente esta forma de vida, mas na realidade escrita porela; e no sexto captulo para realar a opo pela pobreza que, em relao outra forma de vida monstica, constitua ento a originalidade absolutado convento de S. Damio, mesmo tendo em conta a Ordem do mesmonome24. At ali, a abadessa no sentiu a necessidade de recorrer a Fran-cisco para definir os detalhes da vida monstica de suas irms. S quandoo perigo vem de Roma, ela recorre autoridade de Francisco.

    O papado no tinha facilitado o seu apoio experincia de Clara.Tentou criar um modelo para o centro de Itlia e depois para outras lati-tudes, constituindo a Ordem de So Damio, mas da se demarcou omosteiro de So Damio, afirmando a sua especificidade. Esta confusode ttulos teve certamente origem no cardeal Hugolino, futuro papa Gre-grio IX, e serviu para confundir os historiadores durante muito tempo.

    24 Houve muitas tentativas de reunir as vrias comunidades de consagradas, debeguinas, numa mesma Regra, onde se inclua tambm a comunidade de S. Damio.A Regra de Hugolino, de 1218, era para todas as Monjas Pobres Reclusas (FFII, p.309). A Regra de Inocncio IV, de 1247, era dirigida s abadessas e monjas daOrdem de S. Damio (FFII, p.325). A inteno era colocar todas essas comunidadessob a dependncia espiritual de S. Damio. Clara sempre se demarcou dessa

    tentativa, afirmando a originalidade da Ordem das Irms Pobres.

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    ADIPLOMACIA DE CLARA

    Efectivamente, tanto Gregrio IX como Inocncio IV, sepreocuparam por levar a regra de S. Bento a estas comunidades de

    jovens e mulheres procedentes na sua maioria dos meios aristocrticos ede as separar o mais possvel dos Frades Menores. Destes, alguns aindarecordavam os primeiros tempos do so convvio com as irms. Masoutros comeam a protestar contra o cuidado e a solicitude para com asmulheres reclusas que os distraiam, pensavam eles, de tarefas mais meri-trias. Livrar-se das damas pobres, esquecer o Testamento do fundador ea pobreza radical, foram temas tratados na bula Quo elongatique Greg-rio IX deve ter redactado em 1230, como resposta a um grupo influente

    da Ordem masculina.

    Perante estes esforos de normalizao, para salvaguardar aoriginalidade de So Damio, Clara utiliza na sua Regra a memria deFrancisco, entretanto elevado s honras dos altares. Isto no significa queClara deturpe a sua mensagem, antes pelo contrrio. Usa as palavras dodefunto para melhor defender o que para ela era o ncleo irredutvel doseu modelo e que tinha sido confirmado a 17 de Setembro de 1228 por

    Gregrio IX noPrivilgio da Pobreza: a altssima pobreza, esta formade pobreza meritria, que realmente um privilgio. Ao inserir no textoas palavras que o santo escreveu a ela e a suas irms, Clara atribua a suaforma de vida a Francisco, aceitando consider-lo fundador de umaOrdem feminina, com a qual na realidade ele no se tinha preocupadomuito. Assim conseguia algo at ento inaudito: que uma mulher, pela

    primeira vez, escrevesse a Regra, sob a qual deveriam viver as suasirms.

    O cardeal Reinaldo, a 16 de Setembro de 1252, e depois InocncioIV, pensavam ou fingiram que aprovavam a forma de vida de S. Fran-cisco para as mulheres. Na realidade confirmaram a audcia da plantaz i-nha. Dez anos mais tarde, Urbano IV utilizava o mesmo subterfgio,mas ao contrrio: dava a todos os mosteiros que se inspiravam em SoDamio o nome de Ordem de Santa Clara, e aproveitava para escrever

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    mais uma Regra feminina sua maneira25. Na realidade foi necessrioesperar pelo Conclio Vaticano II, para que a maioria das clarissas redes-cobrisse a Regra desta mulher, que lhe deu o nome.

    AVISO ATPICA DE CLARA

    No processo de canonizao de Clara, levado a cabo no Outono de1253, do qual felizmente temos uma verso italiana, a irm Filipa relataum estranho sonho de Clara: parece-lhe que leva a Francisco uma bacia euma toalha para lhe secar as mos. Sobe at ele por uma escada muitoalta, mas sem esforo. Chegando altura de Francisco, este puxa por ummamilo do seu peito e convida-a: vem, toma e sorve. Clara obedece.

    Francisco diz-lhe que o faa outra vez, e o que ela saboreava era de umadoura deleitvel. O mamilo de Francisco, ficando na boca de Clara,

    parecia-lhe de ouro to claro que se via reflectida nele como numespelho26.

    Um episdio destes, que o autor da Legenda se abstm de reprodu-zir, presta-se a mltiplas leituras. Naturalmente que se deve ver aqui aexpresso simblica da paternidade espiritual de Francisco, contado no

    estilo da maternidade espiritual que lhe era to prprio. Mas em 1238,numa carta dirigida a Ins de Praga27, Gregrio IX tinha oposto ao ali-

    25A Regra de Urbano IV de 1263. CF. FFII, p. 343.26Cf. PCL 3,27 Trata.se da Crata Angelis gaudium de 1238 (cf. BF I, 262), dirigida A Ins de

    Praga, onde se l: Na verdade, filha da bno e da graa, quando ns tnhamosmenor responsabilidade, a dilecta filha em Cristo, Clara, abadessa do Mosteiro deSo Damio, em Assis, e outras senhoras devotas, abandonando as vaidades do

    mundo, optaram por servir o Senhor na observncia de vida numa comunidadereligiosa. O beato Francisco comps-lhes a Forma Vitae que no um pratoforte, mas leite, como convinha a quem inicia uma vida nova. H pouco tempo, oprior do Hospital de So Francisco de Praga, homem discreto e zeloso, apresentou--me uma carta a pedir humildemente que ns confirmssemos com autoridadeapostlica a Forma de Vida que tem por base a dita Forma Vitae e algunscaptulos da Regra da Ordem de So Damio. Ns, depois de sria reflexo, noachamos oportuno aceitar este teu pedido. Desta forma Gregrio IX recusava aaprovao da regra escrita por santa Ins de Praga, que seria a primeira regra escrita

    por uma mulher. Essa honra veio a caber a santa Clara.

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    mento slido, que o papado dava s irms no seu esforo de legislao,ao leite dos ensinamentos mais fluidos de Francisco. Com este sonho,Clara afirma, sem reticncias, a sua preferncia.

    CLARA,A ESPOSA DE CRISTO

    Assinalamos como aquela que est viva sonha com um defunto, quelhe abre o caminho para a felicidade no mais Alm. Ao anunciar, em1253, o falecimento de Clara por meio de uma carta encclica, as irms deSo Damio qualificam a morte de paraninfo,28que permite alma reu-nir-se ao esposo celeste. Paraninfo fidelssimo como aLegendadefinea Francisco, que introduz a jovem virgem perante o seu esposo real.

    A alma gmea, com a qual a virgem de Assis deseja unir-se, no evidentemente a de Francisco. Ele no mais que o heraldo,o embaixa-dor de um Rei, que Rei da pobreza. O rigor e a criatividade, que per-mitem dirigir tudo a Cristo numa prodigiosa reductio ad unum, so deadmirar. Os testemunhos do processo a maioria so irms com mais dequarenta anos de vida, sob a orientao de Clara nunca afirmam queClara simplesmente comungava: comungava o sacramento do Corpo doSenhor Jesus Cristo29. Quando num mesmo dia tem a alegria de receber a

    eucaristia e a visita de Inocncio IV, alegra-se de receber Cristo e seuVigrio. Cura os enfermos com o sinal da cruz, rezando a orao doSenhor, isto , o Pai-Nosso. Fiel ao esprito de Francisco, que ensinava aviver das prprias mos, tece panos para fabricar corporais, que tocavamo corpo de Senhor.

    Em relao aos msticos, que se multiplicaram nas geraes seguin-tes, Clara no a amante exaltada do Senhor, sua esposa, real e quoti-

    diana, a que assiste desde o Natal at Cruz, a esta paixo que recordasem cessar.

    28Cf. Circ. 2.29

    PC 2, 11; 9, 10;

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    OS HOMENS NA VIDA DE CLARA

    Limitar o discurso de Clara sobre os homens a Francisco e a Cristopode parecer singularmente redutor. Mas esta reduo voluntria sua.

    A Legenda de Clarano esconde que a abadessa do mosteiro material-mente nfimo de So Damio teve relaes com quatro papas: InocncioIII, Gregrio IX, Inocncio IV e Alexandre IV, que a canonizou. Claracita Fr. Elias numa carta. Alm disso tem o cuidado de se rodear de umahierarquia de irmos menores: cardeal protector, visitador, capelo e umirmo leigo.

    O processo de canonizao evoca a proximidade quotidiana dos

    irmos esmoleres, encarregados de pedir esmola para as monjas de clau-sura. Relata tambm este facto tristemente significativo: Quando uma vezse d conta da falta de azeite no mosteiro, pede a um irmo que v pedirazeite. Este responde, zangado, que bastava que lhe entregasse as bilhaslavadas, o que Clara mesmo fez30. Estes modos grosseiros, que no erammaliciosos, devem-lhe ter lembrado o comportamento dos homens dacasa paterna, cavaleiros, cuja arrogncia se podia desencadear brutal-mente contra as filhas, que reagiam ao seu poder absoluto.

    Mas, o mais profundamente revelador o facto de Clara emnenhuma situao ter classificado ou julgado estes homens, inclusiva-mente quando um conflito os pe contra ela, como aconteceu repetidasvezes com Gregrio IX31. Mesmo quando ameaaram fisicamente o mos-teiro e as irms, como sucedeu em 1240 com as tropas sarracenas deFrederico II, e no ano seguinte com as de Vital de Aversa.

    No fundo, Clara no parece ter alguma concepo particular do

    masculino, nem mesmo do feminino, apesar do plural que usa em seusescritos, que a liga indissoluvelmente a suas irms, quando Francisco lhed campo livre para afirmao do seu ego. Clara no sente, pois, nem anecessidade nem o desejo de aplicar a si mesma ou aos outros a imagemde um gnero ou do gnero inverso. Clara ignora toda a categoria rece-

    bida e todo o esforo de categorizao ideolgica, social, sexual. Trata-30Cf. PC 1, 15.31

    Cf. LCL 14.

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    -se simplesmente de pessoas, referidas a uma Pessoa, a segunda, que aspode incluir a todas.

    UMA DIFERENA EXEMPLAR

    Francisco de Assis certamente um dos que mais influenciou asrevolues mentais que fizeram que a cultura europeia seja o que . Aaudcia daquele que aLegenda Perusinadesigna como um novo loucono mundo32 extreme muito original na forma como lida com as catego-rias, tanto de classes como de sexos. Tal como quando se despiu peranteo bispo de Assis, Francisco atrai sempre os olhares e ocupa todo ocenrio.

    Clara, encerrada desde os dezoito anos atrs dos muros do mos-teiro de So Damio donde no volta a sair, infinitamente mais discreta,e o peso do tempo concedia-lhe muito menos espao para ir at ao fimcom o seu propsito. As fontes que conservam a sua memria no reve-lam muitos dos aspectos mais profundos do seu mistrio. possvel, noentanto, vislumbrar o suficiente, de forma a reconhecer-lhe uma singula-ridade menos relevante, mas to radical como a de Francisco. Nestas

    formas to diversas de viver as mesmas exigncias, vacilamos, todavia,em afirmar qual foi a participao de cada uma destas personalidades deexcepo, qual o peso das obrigaes especficas que este tempo medie-val fez recair sobre cada um de maneira especial as obrigaes excessi-vas que pesavam sobre cada sexo qual foi o encargo das identidadesfemininas e masculinas, imagens que se enfrentaram segundo o gneroque estas obrigaes ajudaram a forjar, a no ser que a obrigao princi-

    pal no tivesse estas mesmas imagens.

    No h nenhuma simetria entre a masculinidade de Francisco e afeminilidade de Clara. Ele supera as divergncias das categorias sociais,culturais, sexuais, desviando-as, desorganizando-as. Ela ignora-as. claro que, como filha de cavaleiro da mdia nobreza urbana, em relaoconstante com cardeais e papas, no conhea a sua rigidez e os seuscdigos. Mas em cada indivduo, sobretudo no seu inspirador, Clara v32

    LP 114, 6.

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    imediatamente a transparncia de Cristo. Assim a pobreza de Francisco eClara, ainda que uma seja filha da outra, no tm o mesmo sabor. Paraele, a pobreza um caminho para Deus que passa pela identificao comas categorias dos mais miserveis das criaturas. Para Clara, a sua opo

    pela pobreza uma participao directa da natureza profunda de Cristo,que a pobreza. Quando o marido pobre, a mulher no possui nada.Aqui radica tudo. Para qu perder tempo com inverses metafricas degneros, quando se tem a dupla sorte de pertencer de nascimento ao sexomais desprezado, mas que permite uma unio imediata com o Esposo doCntico dos Cnticos, e com o Filho da Virgem.

    Em feminino, no h nada, dizia Jean-Pierre Lcaud numa clebrerplica ao Masculino/Feminino de Jean-Luc Godard. Clara de Assis

    anuncia o aforismo com sete sculos de antecedncia. um nada que ocontrrio de vazio. Nada que estorve, nada que esconda, nada que oculteo outro. O feminino de Clara um nada que no o contrrio de nada.Desdenhando as categorias, nas quais se comprazem os vares, e que nasmelhores condies discutem e se guerreiam, transparncia e imediatezentre o individual e o universal, entre o indivduo e o universo. Clara,escrevia Damian Vorreux, um corao desembaraado.

    Traduo da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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    AVOCAOEAMISSODASIRMSPOBRES

    DESANTACLARANOMOMENTOACTUALDAIGREJAEDOMUNDO

    Ir. Maria Chiara Stuchi, osc*

    *Conferncia proferida pela autora no I Congresso de Presidentes das Federaes de

    Irms Clarissas, Assis 26-I-2008.

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    AVOCAO E A MISSO DAS IRMS POBRES DE SANTA CLARANO MOMENTO ACTUAL DA IGREJA E DO MUNDO

    No Espelho de Perfeioh um relato que me parece esclarecedor

    para percebermos o sentido desta exposio. Francisco descreve o verda-deiro frade menor como aquele que rene em si as qualidades prprias dealguns irmos: a f e o amor de Bernardo, a simplicidade e pureza deLeo, a cortesia de ngelo, etc1.

    Francisco apresenta um paradigma concreto do frade menor, com oqual os demais irmos se deveriam conformar. Descreve pessoas concre-tas, com talentos nicos e particulares, expressando assim que a riquezada fraternidade est na convergncia de cada um para o bem comum, o

    1E dizia que seria verdadeiro Frade Menor aquele que reunisse nele as virtudes dos

    santos frades, a saber: a f de Fr. Bernardo, to perfeita como o amor pobreza; asimplicidade e a pureza de Fr. Leo, que foi realmente um homem de corao puro;a afabilidade de Fr. ngelo, o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem, e que eraadornado de grande mansido e benignidade; a presena distinta e o bom senso deFr. Masseu, com a sua agradvel e devota conversao; a perfeitssima contemplaode Fr. Gil, sempre com o esprito arrebatado em Deus; a actividade constante e

    virtuosa de Fr. Rufino, que rezava incessantemente; at a dormir e a trabalhar, o seuesprito estava com o Senhor; a pacincia de Fr. Junpero, que atingiu um alto graude perfeio, porque ele tinha plena conscincia da evidente realidade da sua prpriabaixeza e um ardente desejo de imitar a Cristo Crucificado; o vigor corporal eespiritual de Fr. Joo dos Louvores, que foi o maior atleta entre os homens do seutempo; a caridade de Fr. Rogrio, cuja vida inteira e conversao eram inspiradaspor uma fervorosa caridade; enfim, a inquietao de Fr. Luclio, que foi sempre umapessoa de total desapego e no queria estar no mesmo lugar por mais de um ms.Quando comeava a afeioar-se a algum lugar, logo se afastava e dizia: Morada

    permanente s a temos no cu (EP 85).

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    bem que a vida segundo o santo Evangelho. Cada um tem dentro de si umachama, e todos juntos contribuem para alimentar a chama da fraternidade.

    Tenho a sensao que Clara hoje nos diz o mesmo a ns. Quem hoje a irm pobre de santa Clara? Qual a sua vocao, a sua misso no

    nosso tempo, na nossa Igreja, no nosso mundo?O papa Alexandre IV, na Bula de Canonizao, procura explicar

    quem Clara de Assis atravs da imagem da rvore com ramos que sealargam, e sob cuja sombra acudiram e continuam a acudir muitas segui-doras de muitas partes do mundo2. Podemos dizer hoje que estes ramosse alargaram aos cinco continentes, que deitaram folhas em todo omundo, onde brotaram flores e amadureceram frutos. Por isso, de qual-quer parte do mundo pode responder-se, sempre de novo, pergunta

    sobre a vocao e a misso da irm pobre de Santa Clara.Surge a necessidade vital de nos escutarmos reciprocamente. Deve-

    mos escutar a histria das origens; devemos escutar a compreenso quetemos hoje do nosso carisma e partilhar as experincias vividas e ossonhos que guardamos em ns. Na realidade, a irm pobre, hoje, tem orosto de inumerveis povos, fala muitas lnguas, exprime os calores e ossabores de numerosas culturas.

    A minha comunicao articula-se em trs partes. Na primeira, trata-

    rei de expor algumas coordenadas em que nos movemos como habitantesdeste mundo, marcado por luzes e sombras, com algumas tendncias quenos impem, s quais devemos responder evangelicamente. A questo

    poderia ser: Como o mundo em que vivemos? Precisamos de conhecero mundo em que nos movemos, para viver a nossa vocao: a Forma devidade Clara.

    Na segunda parte, comentarei em sntese os pontos cardeais daForma de vidade Clara, que para ns so as lentes com que olhamos o

    mundo, e neste a Igreja, a famlia Franciscana, as nossas comunidades e ans mesmas. Daqui tiraremos os critrios de referncia e de valorao

    para rever a nossa vida e tomar novas opes. A questo pode ser: Qualfoi a opo fundamental de Clara? AForma de vidaque nos deixou oespelho em que nos olhamos.

    Na terceira parte, quero pr em destaque os aspectos e os mbitos,onde actualmente encarna o carisma clareano. Obviamente, s alguns2

    BLC 9.

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    aspectos. A questo poderia ser: Por que vida optamos? E consequente-mente, como actuar? Trata-se da realizao, de concretizar a maneira deviver a que cada uma de ns foi chamada.

    1-O mundo em que vivemos

    Vivemos numa poca da histria do mundo e da Igreja caracteri-zada por desafios e exigncias novas. So desafios de ltima hora, comuma acelerao to descontrolada que produzem confuso e desordemgeneralizadas e se propagam de modo visivelmente crescente no mbitosocial, poltico e econmico de uma cultura secularizada e distante dasrazes de tradio crist.

    Uma das ameaas eminentes o paganismo cinzento da vidaquotidiana da Igreja, dos cristos, onde aparentemente tudo continuanormal, mas que na realidade a f se esgota e cai na mesquinhez3.

    1.1. A primeira atitude que devemos assumir com fidelidade eaudcia perante a realidade que nos rodeia com toda a sua complexidade a de voltar a comear em Cristo4, na pessoa do Senhor Jesus, pobre ehumilde, com adeso de f, que nos leva esperana, confiana e alegria.

    Seguindo a exortao de S. Paulo de no nos afligirmos como osque no tm esperana (1Ts 4, 13), podemos olhar as grandes mudanasque acontecem na Igreja e no mundo com a viso de Jesus: sem angstia,nem medo, nem perturbao.

    Esta viso da realidade, neste espao vital da nossa vocao notempo que nos dado viver, ao contrrio do sentido/sem sentido daopresso que esmaga, estimula-nos a recomear a partir de Cristo, dacontemplao do seu rosto, do acolhimento do seu Evangelho que anun-

    ciamos e proclamamos, com simplicidade e humildade, ancoradas naprofecia da esperana e do gozo: a Ressurreio.

    O Senhor pede-nos para sermos humildes e para termos um olharno fragmentado, no disperso. Devemos ser capazes de fazer a sntese,de construir e de amar a verdade; o Senhor pede-nos um corao indi-

    3RATZINGER,J.,Situacin actual de la fe y de la teologia , Conferncia pronunciada

    em Guadalajara, Mexico, 1996 (www. Aciprensa.com/Docum/rat96.htm).4

    JOO PAULO II ,Novo millenio ineunte, 28-29.

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    viso, unificado, capaz de harmonizar a partir de dentro, com a arte dacomunho, as antinomias, as contradies e os elementos que a realidadeapresenta na sua multiculturalidade de luzes e sombras.

    1.2. Nesta perspectiva, o ver implica ao mesmo tempo a solici-tude para discernir livre e responsavelmente os sinais dos tempos luz doEsprito Santo; o redescobrir confiadamente o sentido unitrio e total darealidade, superando os critrios parciais e unilaterais, ligados exclusiva-mente a interesses econmicos e/ou polticos; voltar a ter como ponto de

    partida a Cristo, Palavra e Sabedoria de Deus (1Co 1, 30), optando comaudcia pelo caminho da profecia da salvao no Ressuscitado. S aquele que reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder-lhe

    de forma adequada e verdadeiramente humana5

    , e s atravs desta com-preenso dos vrios significados e processos da realidade se far a sntesee se ter uma compreenso unitria.

    1.3. Com efeito, luzes e sombras caracterizam o nosso mundocheio de mutaes surpreendentes, que chegam de forma rpida e verti-ginosa a todos os lugares. Geralmente identificam-se com os fenmenosda globalizao, que se estende a todos os mbitos da vida social, do

    poltico ao econmico, do cientfico ao tecnolgico, e at do artstico aodesportivo.

    Limitamo-nos a analisar alguns deles, que, a meu ver, tm maiorrelevncia para a nossa reflexo.

    1.3.1. A nvel mais profundo da sociedade, emerge uma subjectivi-dade a roar o hedonismo e o narcisismo. Quando o eu se torna o pontode referncia das relaes humanas, incluso as afectivas, estas chegam aser instrumentalizadas. Efectivamente, a afirmao do prprio eu, da

    prpria felicidade, ilusria e efmera, nasce de uma indiferena cada vezmaior pelo outro, reduzindo-se a relao a momentos fugidios, sem umcompromisso verdadeiro e duradoiro. O direito individual prefere a reali-zao dos prprios desejos preocupao pelo bem comum, com pre-

    juzo da solidariedade para com os pobres e os mais vulnerveis. A

    5 BENTO XVI,Discurso inaugural da V Conferncia geral do episcopado Latino-

    -americano e das Carabas, 3 (13 de Maio de 2007).

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    indiferena causada pelo egosmo uma das feridas mais profundas infli-gidas prpria dignidade humana.

    Paradoxalmente, sem ser surpreendente, a perca da dignidade (ou aameaa de a perder) o ponto de partida para um processo positivo de

    reafirmao do valor fundamental e insubstituvel da pessoa, do sentidoda vida e da transcendncia.

    A necessidade de construir o seu prprio destino e de encontraruma razo para a prpria existncia, abre novos horizontes, que valori-zam o indivduo como pessoa, o seu desejo de se encontrar com osoutros para partilhar e confrontar as prprias vivncias, para ler juntos osacontecimentos e juntos construir a histria. A diversidade deixa de serameaa e torna-se em dom para superar os conflitos e as oposies, que

    convergem na sntese de um destino histrico comum, respeitoso da dig-nidade e da liberdade de todos e de cada um.

    1.3.2. As indicaes de Bento XVI sobre os aspectos positivos enegativos da globalizao, ajudam-nos a compreender de maneira acer-tada o processo evolutivo e regressivo provocado. Se por um lado umfenmeno de um entremeado de relaes a nvel planetrio e uma con-quista da famlia humana, por outro lado, sublinha o Santo Padre,como em todos os campos da actividade humana, a globalizao deve

    reger-se tambm pela tica, colocando tudo ao servio da pessoahumana, criada imagem e semelhana de Deus6.

    Considere-se, por exemplo, a economia, que quando privilegia osvalores da eficincia e da produtividade, do lucro e da competio, nofavorece o desenvolvimento dos bens mais importantes da vida, como averdade, a justia, a dignidade e os direitos humanos. Enquanto concen-tra o poder e as riquezas nas mos de poucos, contribui para aumentar a

    pobreza. Por outro lado, as novas tecnologias, contribuem de forma ine-

    vitvel para a excluso e a precariedade no trabalho. Assim surge umnovo analfabetismo que tem origem na ignorncia induzida.

    1.3.3.A globalizao, pois, sem uma aspirao profunda unidadee solidariedade, converte-se numa arma letal, destruidora. um mundo

    6 BENTO XVI,Discurso inaugural da V Conferncia geral do episcopado Latino-

    -americano e das Carabas,2.

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    onde se criam em cadeia condies nocivas vida humana, reguladas pelaexplorao, pela escravatura e pela excluso social.

    O mal produz o mal: milhes de pessoas e famlias sem trabalho,sem terra, na misria e fome; milhes de refugiados, perseguidos pela

    guerra, pelo terrorismo e por toda a forma de violncia 1.3.4.Tambm a natureza geme e sofre; o ecossistema contami-

    nado pelos interesses econmicos e polticos das grandes multinacionais.No obstante, nesta realidade onde o mal parece dominar, divisa-se,

    s vezes muito tenuemente, a chama dos que, em diversos mbitos,ouvem e acolhem a chamada a proteger e a conservar a natureza criada

    por Deus, no permitindo que o nosso mundo seja uma terra cada vezmais degradada e degradante7. a voz, s vezes muito dbil, e ainda

    pouco escutada e considerada, de tantas associaes e grupos de volunt-rios, e tantos movimentos e organizaes, que se afanam para que real-mente tudo volte a estar ao servio do homem e sua dignidade.

    2. Clara, o nosso espelho

    Deixemo-nos iluminar pela experincia e pela palavra de Clara. Per-guntemo-nos: De que maneira viveu Clara neste mundo, como se inseriu

    nele como um fermento de vida, qual manancial para os desertos huma-nos, e luz que ilumina as trevas8, tambm as trevas do nosso tempo?

    2.1. Vida segundo o santo Evangelho: a opo fundamental

    Clara quer viver o santo Evangelho. Este o seu propsito, esta asua forma de vida: A forma de vida da Ordem das Irms Pobres, que S.Francisco instituiu, esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor

    Jesus Cristo, vivendo em obedincia, sem prprio e em castidade9.O Evangelho Jesus. Clara entendeu muito bem, olhando Fran-

    cisco, tal como recorda no princpio do teu Testamento, no contexto deaco de graas ao Pai das misericrdias pelo dom da vocao especfica:O Filho de Deus fez-se nosso caminho, como nos mostrou e ensinou

    7Joo Paulo II,Homilia em Punta Arenas, Chile, 1987.8BLC 11-12.9

    RCL 1, 1-2.

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    pela palavra e pelo exemplo o nosso bem-aventurado Pai So Francisco,seu apaixonado imitador10. O Evangelho vivido e pregado por Franciscoest presente no incio da converso de Clara e define a sua identidade.Clara uma crist. Sem glosa.

    Jesus, caminho, verdade e vida, a Boa Notcia anunciada aospobres, aos oprimidos, aos excludos. Francisco mostra-o e ensina-o a Claracom palavras e obras, que nascem umas vezes do contacto com osmarginalizados da vida, como os leprosos, outras do silncio dos eremitrios.

    Clara esquadrinhou constantemente o essencial do rosto de Jesusque Francisco desvelou, at assumir os seus rasgos11. Com a emoo desempre, recordamos a resposta de Clara, pouco antes de morrer, falandoa Fr. Reinaldo: Querido irmo, desde que me foi dado conhecer a graa

    do meu Senhor Je