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Curitiba, Vol. 2, nº 2, jan.<jun. 2014 ISSN: 2318<1028 REVISTA VERSALETE BORGES NETO, J. E se Pierre Menard... 320 E SE PIERRE MENARD ESCREVESSE UMA GRAMÁTICA? WHAT IF PIERRE MENARD WROTE A GRAMMAR? José Borges Neto 1 RESUMO: O texto propõe que as gramáticas contemporâneas, e boa parte dos trabalhos dos linguistas, não conseguem se livrar da tradição e ficam reproduzindo o pensamento gramatical da antiguidade clássica. Nesse sentido, o trabalho de gramáticos e linguistas pode ser aproximado da tarefa Pierre Menard, personagem de Jorge Luís Borges, que pretendia escrever o Quixote. Palavras<chave: filosofia da linguística; Pierre Menard; gramática. ABSTRACT: The text proposes that contemporary grammars, and much of the work of the linguists, fail to get rid of tradition and are reproducing the grammatical thought of classical antiquity. In this sense, the work of grammarians and linguists can be approximated from Pierre Menard’s task, a character from Jorge Luis Borges, who intended to write the Quixote. Keywords: philosophy of linguistics; Pierre Menard; gramar. 1. JORGE LUÍS BORGES E PIERRE MENARD. O escritor argentino Jorge Luís Borges, dentre as inúmeras obras primas que produziu, escreveu um pequeno conto chamado Pierre Menard, autor del Quijote 2 . O conto trata do escritor Pierre Menard e de sua obra mais importante: o Dom Quixote. A proposta de Menard é de produzir o livro de Cervantes, idêntico ao original, linha por linha, palavra por palavra, sem, no entanto, copiá<lo. Segundo o narrador do conto, Menard não queria escrever outro Quixote, mas pretendia escrever o Quixote. 1 UFPR/UNIOESTE/CNPq. 2 Sirvo<me das Obras Completas de Jorge Luís Borges, volume 1 (Buenos Aires: Emecé, 1989). O conto está nas páginas 444<450.

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!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 320!

!

!

E!SE!PIERRE!MENARD!ESCREVESSE!UMA!GRAMÁTICA?!

WHAT)IF)PIERRE)MENARD)WROTE)A)GRAMMAR?)

!

José!Borges!Neto1!

!RESUMO:! O! texto! propõe! que! as! gramáticas! contemporâneas,! e! boa! parte! dos! trabalhos! dos!linguistas,!não! conseguem!se! livrar!da! tradição!e! ficam!reproduzindo!o!pensamento!gramatical!da!antiguidade! clássica.!Nesse! sentido,! o! trabalho!de!gramáticos! e! linguistas!pode! ser! aproximado!da!tarefa!Pierre!Menard,!personagem!de!Jorge!Luís!Borges,!que!pretendia!escrever!o!Quixote.!!Palavras<chave:!filosofia!da!linguística;!Pierre!Menard;!gramática.!ABSTRACT:!The!text!proposes!that!contemporary!grammars,!and!much!of!the!work!of!the!linguists,!fail!to!get!rid!of!tradition!and!are!reproducing!the!grammatical!thought!of!classical!antiquity.!In!this!sense,! the!work! of! grammarians! and! linguists! can! be! approximated! from! Pierre!Menard’s! task,! a!character!from!Jorge!Luis!Borges,!who!intended!to!write!the!Quixote.!Keywords:!philosophy!of!linguistics;!Pierre!Menard;!gramar.!!

!

1. JORGE!LUÍS!BORGES!E!PIERRE!MENARD.!

!

O! escritor! argentino! Jorge! Luís! Borges,! dentre! as! inúmeras! obras! primas! que!

produziu,!escreveu!um!pequeno!conto!chamado!Pierre)Menard,)autor)del)Quijote2.!!

O!conto!trata!do!escritor!Pierre!Menard!e!de!sua!obra!mais!importante:!o!Dom!

Quixote.!A!proposta!de!Menard!é!de!produzir!o!livro!de!Cervantes,!idêntico!ao!original,!

linha!por!linha,!palavra!por!palavra,!sem,!no!entanto,!copiá<lo.!!Segundo!o!narrador!do!

conto,!Menard!não!queria!escrever!outro!Quixote,!mas!pretendia!escrever!o)Quixote.!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1UFPR/UNIOESTE/CNPq.!2!Sirvo<me!das!Obras)Completas!de!Jorge!Luís!Borges,!volume!1!(Buenos!Aires:!Emecé,!1989).!O!conto!está!nas!páginas!444<450.!!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 321!

Jamais!pensou!em!simplesmente!reproduzir!o!livro!de!Cervantes,!nem!em!escrever!um!

novo!Quixote.!!

O!primeiro!modo!que! imaginou!de!alcançar!seu! intento!era!o!de!ser!Miguel!de!

Cervantes:! “[c]onhecer! bem! o! espanhol,! recuperar! a! fé! católica,! guerrear! contra! os!

mouros! ou! contra! o! turco,! esquecer! a! história! da! Europa! entre! os! anos! de! 1602! e!

1918”3 .! Mas! logo! descartou! esse! método,! considerando<o! fácil! demais.! Segundo!

Menard,! “[s]er,)de)alguma)maneira,)Cervantes) e) chegar)ao)Quixote) lhe)pareceu)menos)

árduo) —) por) conseguinte,) menos) interessante) —) que) seguir) sendo) Pierre) Menard) e)

chegar)ao)Quixote,)por)meio)das)experiências)de)Pierre)Menard”.!!

Ainda!segundo!o!narrador,!Menard!não!escreveu!o!livro!todo:!a!obra!de!Menard,!

tratada!pelo!narrador!como!“talvez)a)mais)significativa)de)nosso)tempo”,)consta)apenas)

“dos) capítulos) nono) e) trigésimo) oitavo) da) primeira) parte) do) Dom) Quixote) e) de) um)

fragmento)do)capítulo)vinte)e)dois”.!!

Como!diz!o!conto!

!É!uma!revelação!cotejar!o!Dom!Quixote!de!Menard!com!o!de!Cervantes.!Este,!por!exemplo,!escreveu!(Dom!Quixote,!primeira!parte,!capítulo!nono):!...)a)verdade,)cuja)mãe)é)a)história,)êmula)do)tempo,)depósito)das)ações,)testemunha)do)passado,)exemplo)e)aviso)do)presente,)advertência)do)porvir.)Redigida! no! século! dezessete,! redigida! pelo! “engenho! leigo”! Cervantes,! essa!enumeração! é! um!mero! elogio! retórico! da! história.! Menard,! em! contrapartida,!escreve:!...)a)verdade,)cuja)mãe)é)a)história,)êmula)do)tempo,)depósito)das)ações,)testemunha)do)passado,)exemplo)e)aviso)do)presente,)advertência)do)porvir.)A! história,!mãe! da! verdade:! a! ideia! é! assombrosa.! Menard,! contemporâneo! de!William!James,!não!define!a!história!como!uma!indagação!da!realidade,!mas!como!sua!origem.!A!verdade!histórica,!para!ele,!não!é!o!que!aconteceu;!é!o!que!julgamos!que!aconteceu.!As!cláusulas! finais!—!exemplo)e)aviso)do)presente,)advertência)do)porvir!—!são!descaradamente!pragmáticas.!Também!é!vívido!o!contraste!entre!os!estilos.!O!estilo!arcaizante!de!Menard!—!estrangeiro,!até!—!padece!de!alguma!afetação.!O!que!não!se!dá!com!o!precursor,!que!maneja!com!desenvoltura!o!espanhol!corrente!de!sua!época!(BORGES,!1989,!p.!449).!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3!As!traduções!são!todas!de!minha!responsabilidade.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 322!

Em! suma,! apesar! de! consistir,! rigorosamente,! do! mesmo! texto,! o! Quixote! de!

Menard!é!outra!obra.!As!condições!de!produção,!como!dizem!os!analistas!do!discurso,!

fazem!do!mesmo! texto!dois! textos!distintos.!A!proposta!de!escrever!o!Quixote!como!

obra!inédita!e,!no!entanto,!fazer!a!escritura!coincidir!pontualmente!com!o!Quixote!de!

Cervantes!é,!no!mínimo,!curiosa.!E,!de!certo!ponto!de!vista,!é!um!“achado”!genial!de!

Borges.!

Mas,!de!qualquer!maneira,! trata<se!de!um!texto!de! ficção.!Borges!cria!o!evento!

da! produção! do! Quixote! por! Menard.! Borges! não! quer! descrever! algo! que!

eventualmente!tenha!existido!no!mundo,!embora!disfarce!isso!dizendo!que!seu!texto!é!

apenas! um! comentário! sobre! um! texto! crítico! que! aborda! as! obras! de! um! suposto!

Pierre!Menard.!

Quero,!no!entanto,!abordar!um!conjunto!de!obras!que!—!sem!serem!ficcionais!—!

resultam!de!um!comportamento!semelhante!ao!de!Menard:! falo!aqui!das!gramáticas!

em!geral!e!de!um!bom!número!de!estudos!linguísticos!que!se!consideram!científicos.!

!

2.!A!GRAMÁTICA!GRECO<LATINA!COMO!TEORIA!DAS!LÍNGUAS.!

!

Os! filósofos! gregos! da! antiguidade! clássica! tiveram! a! língua! como!um!de! seus!

objetos!favoritos:!boa!parte!deles!disseram!algo!à!respeito!da!língua!grega,!sobre!sua!

estrutura!ou!sobre!seu!uso.!Esses!filósofos!criaram,!e!desenvolveram,!uma!teoria!sobre!

a!estrutura!da!língua!grega!(conhecida!como!“gramática”)!e!criaram,!e!desenvolveram,!

uma!teoria!sobre!o!uso!da!língua!(conhecida!como!“retórica”).!!

A! teoria! sobre! a! estrutura! da! língua! —! não! vou! tratar! aqui! da! retórica! —!

consistia! no! reconhecimento! de! que! as! línguas! consistem! de! elementos! atômicos!

(palavras)! que! são! articulados!para! resultar! em!expressões!maiores! (orações).! Cada!

palavra! é! a! representação! externa! de! uma! ideia! e! cada! oração! é! a! representação!

externa!de!um!pensamento!completo.!!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 323!

As!palavras!são!agrupadas!em!classes!(“partes!do!discurso”),!no!mais!das!vezes,!

à!partir!do!tipo!de!ideia!que!representam.!Assim,!teremos!palavras!que!representam!

coisas!(substâncias)!e!palavras!que!representam!ações!(eventos):!as!primeiras!serão!

nomes!e!as!segundas!serão!verbos.!Algumas!palavras!representam!coisas,!mas!não!as!

identificam!diretamente,!mas!apenas!como!pessoas!do!discurso!(o!falante,!o!ouvinte!e!

o!assunto):!essas!palavras!serão!pronomes.!E!assim!por!diante.!!

Ainda,! como! cada! ideia! pode! sofrer! detalhamentos,! as! palavras! podem! ser!

subclassificadas.!Por!exemplo,!as!ideias!representadas!pelos!nomes!podem!ser!ideias!

que!têm!existência!no!mundo!material!(como!“pedra”!ou!“mesa”)!ou!podem!ser!ideias!

“abstratas”! (como! “educação”! ou! “liberdade”).! Logo,! teremos! nomes! concretos! e!

abstratos.! Da! mesma! forma,! os! nomes! podem! nomear! entidades! singulares! (como!

“Sócrates”)!ou!conjuntos!de!entidades!(como!“cavalo”!ou!“mesa”),!levando!à!distinção!

entre!nomes!próprios!e!nomes!comuns4.!!

O!estudo!das!palavras!vai!resultar!no!que!conhecemos!hoje!como!Morfologia!e!o!

estudo!das!possibilidades!combinatórias!das!palavras!na!constituição!das!orações!vai!

resultar!na!Sintaxe.!Para!os! filósofos!e!gramáticos!gregos!nada!há!abaixo!da!palavra!

(exceto!elementos!não!significativos,!como!as!sílabas)!e!nada!há!que!interesse!para!a!

gramática! acima! das! orações! (exceto! os! conjuntos! de! orações! que! constituem! o!

discurso,!objeto!da!retórica).!Nada!há,!também,!entre!a!palavra!e!a!oração.!

As!palavras! são!entendidas!—!do!ponto!de!vista! formal!—!como!conjuntos!de!

formas!alternativas.!Assim,!a!ideia!de!ser!humano!pode!ser!representada!pela!palavra!

“homem”,!que!apresenta!duas!formas!alternativas:!homem!e!homens.!Trata<se!de!uma!

mesma!palavra!(e!de!uma!mesma!ideia)!só!que!acrescida!de!uma!ideia!secundária!de!

número:!a! forma!homem! contém!a! ideia!principal!e!a! ideia!secundária!de!singular;!a!

forma! homens! contém! a! ideia! principal! e! a! ideia! secundária! de! plural.! A! palavra!

“menino”! se! manifesta! por! uma! de! quatro! formas! alternativas:! menino,! menina,!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4!A!distinção!entre!nomes!próprios!e!comuns!foi!proposta!no!séc.!III!a.C.!pelo!estóico!Crisipo!de!Solis.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 324!

meninos! e!meninas.! Ou! seja,! à! ideia! principal,! acrescentam<se! ideias! secundárias! de!

número! e! de! gênero.! A! forma!meninas,! por! exemplo,! contém! a! ideia! principal! e! as!

ideias!secundárias!de!feminino!e!plural.!!

É! importante! destacar! que! essas! formas! alternativas! são! sempre! formas!

alternativas! de! uma! mesma! palavra! (e! de! uma! mesma! ideia! acrescida! de! ideias!

secundárias).!Este!modo!de!entender!as!palavras!recebeu,!modernamente,!o!nome!de!

modelo!morfológico! “palavra<e<paradigma”,! em! que! o! termo! “paradigma”! designa! o!

conjunto!de!formas!alternativas!de!uma!palavra5.!

As! palavras,! segundo! os! primeiros! gramáticos,! curvavam<se! diante! de! alguns!

usos;! flexionavam<se,! segundo! os! gramáticos! do! latim.! O! termo! flexão! passou! a! ser!

usado!para!indicar!a!oposição!entre!as!formas!alternativas!de!uma!mesma!palavra.!!

Ao!mesmo! tempo,!os!primeiros!gramáticos!observaram!a!possibilidade!de!que!

criássemos! novas! palavras! a! partir! de! outras.! Do! verbo! “cantar”,! por! exemplo,!

podemos!criar! “cantiga”!ou! “cantador”! (formas!que!não!pertencem!ao!paradigma!de!

“cantar”);!da!palavra!“menino”!podemos!criar!“meninice”.!A!este!processo!de!criação!

de!novas!palavras,!chamaram!derivação.!!

A! distinção! entre! flexão! e! derivação! corresponde,! então,! à! distinção! entre! as!

oposições!entre!formas!alternativas!de!uma!mesma!palavra!(flexão)!e!a!oposição!entre!

duas!palavras!distintas,!uma!primitiva!e!uma!derivada!(derivação).!!

! !

3.!A!GRAMÁTICA!GRECO<LATINA!E!OS!ESTUDOS!LINGUÍSTICOS!CONTEMPORÂNEOS.!

(

Esta! teoria! morfológica! está! pronta! já! no! século! II! e,! desde! lá,! vem! sendo!

reproduzida!por!quase! todos!os!gramáticos.!Tenho!absoluta!certeza!de!que! todos!os!

leitores! que! um! dia! estudaram! com! nossas! gramáticas! escolares! reconheceram! a!

teoria! morfológica! que! apresentei! acima:! os! nomes! designam! seres! e! os! verbos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5!Os!termos!“palavra<e<paradigma”!e!“item<e<arranjo”!foram!cunhados!pelo!linguista!americano!Charles!Hockett!(ver!Hockett,!1954).!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 325!

designam! ações;! as! palavras! se! flexionam! em! gênero! e! número! e! temos! palavras!

primitivas!e!derivadas.!

A! questão! é! que! a! distinção! entre! flexão! e! derivação,! clara! nas! gramáticas! da!

antiguidade!clássica,!tornou<se!um!problema!para!a!linguística!contemporânea.!!

E! tornou<se! um! problema! porque,! em! primeiro! lugar,! a! distinção! foi!

naturalizada,!isto!é,!deixou!de!ser!uma!distinção!teórica!(própria!de!uma!teoria!sobre!

as! línguas!—! a! teoria! da! gramática! clássica! grega)! e! passou! a! ser! considerada! uma!

distinção! do! próprio! objeto! de! estudos.! Ao! invés! de! pensar! que! algumas! teorias!

reconhecem! nas! línguas! fenômenos! ditos,! por! elas,! flexionais! ou! derivacionais,! os!

linguistas! agem! como! se! as! línguas,! de! fato,! apresentassem! fenômenos! de! flexão! e!

fenômenos!de!derivação.!Em!outras!palavras,!a!distinção!originalmente!teórica!passou!

a! ser! empírica.! Dessa! forma,! as! línguas! (ao! menos! línguas! como! o! português,! por!

exemplo)!apresentam,!inegavelmente,!casos!de!flexão!e!de!derivação.!!

Em! segundo! lugar,! porque! as! teorias! morfológicas! contemporâneas! não!

entendem!mais!as!línguas!da!mesma!perspectiva!pela!qual!os!gramáticos!clássicos!as!

entendiam.! Isto!é,! as! teorias!modernas!não! compartilham!dos!princípios! teóricos!da!

gramática!clássica,!mas!querem!(precisam)!ver!as! línguas!da!mesma!forma!pela!qual!

eram!vistas!na!antiguidade.!É!como!se!um!químico!tentasse!refazer!a!tabela!periódica!

dos!elementos!levando!em!conta!os!elementos!básicos!da!natureza!reconhecidos!pelos!

filósofos!gregos:!terra,!ar,!água!e!fogo.!

E!o!que!acontece?!

Parte<se! do! princípio! de! que! línguas! como! o! português! distinguem! flexão! de!

derivação! e! que! é! preciso! estabelecer! um! critério! suficientemente! claro! e! eficiente!

para!fazer!a!distinção.!Há!muitos!candidatos!a!critério.!Gonçalves!(2011),!por!exemplo,!

analisa!17!(dezessete)!critérios!diferentes!e!considera! todos! inadequados6.!Vou! ficar!

só!com!um!deles:!o!critério!da!visibilidade!sintática.!!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6!Borges!Neto!(2012)!traz!uma!resenha!do!livro!de!Gonçalves.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 326!

Este!critério!estabelece!que!serão!consideradas! flexão! as!alterações!da!palavra!

que!precisam!ser!vistas!pela!sintaxe.!Por!exemplo,!o!gênero!e!o!número!do!substantivo!

são! flexionais! porque!o!processo! sintático!de! concordância!precisa! ter! acesso! a! eles!

para!estabelecer! a! concordância!nominal! (concordância! entre! substantivo!e! adjetivo!

ou!substantivo!e!artigo,!por!exemplo).!O!grau,!por!outro!lado,!nunca!está!envolvido!em!

processos!sintáticos!e,!portanto,!não!é!flexional7.!

O!critério!me!parece! interessante,!na!medida!em!que!estabelece!uma!distinção!

relevante!entre!fenômenos!resultantes!de!processos!apenas!morfológicos!e!fenômenos!

resultantes! de! processos! sintáticos.! Ou! seja,! entre! fenômenos! que! se! dão!

exclusivamente!no!nível!da!palavra!e!fenômenos!que!se!dão!quando!se!articulam!mais!

de! uma! palavra.! Creio! que! uma! teoria! linguística! poderia! ter! ganhos! descritivos! e!

explicativos!se!adotasse!um!critério!como!esse.!

Mas,!ao!adotar!os!termos!da!gramática!clássica!(flexão!e!derivação),!corre<se!o!

risco!de!“contrabandear”!para!dentro!da!teoria!moderna,!além!dos!termos,!as!noções!e!

os!resultados!descritivos!associados!ao! termo!na! teoria!antiga.!Particularmente,! se!a!

teoria!antiga!estiver!naturalizada.!

Quando! lemos!a!crítica! feita!por!Gonçalves!ao!critério!da!visibilidade!sintática,!

temos!certeza!de!que!o!“contrabando”!se!deu!e!que!o!critério!foi!descaracterizado:!

!Apesar!de!dar!conta!de!muitas!categorias!tradicionalmente!caracterizadas!como!flexionais,! o! critério! ora! em! exame! não! se! mostra! inteiramente! adequado,! em!virtude! de! nem! todos! os! aspectos! da! morfologia! flexional! serem! diretamente!relevantes! para! a! sintaxe.! Por! exemplo,! classes! de! conjugação! e! de! declinação,!embora! consideradas! flexionais! pelo! próprio! Anderson! (1985),! independem!da!atuação!de! fatores! sintáticos.!De! fato,! nenhuma! regra! sintática! é! acionada!para!estabelecer! que! um! verbo! como! “tingir”! pertence! à! terceira! conjugação;! na!verdade!não!há!contexto!sintático!que!determine!a!conjugação!(1ª,!2ª!ou!3ª)!de!um!verbo!da!língua!portuguesa!(GONÇALVES,!2011,!p.!15).!

!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!7!Apesar!de!as!pessoas!dizerem!“concordo!em!gênero,!número!e!grau”,!não!há!—!em!nenhuma!língua!que!eu!conheça!—!concordância!de!grau.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 327!

A! crítica! de! Gonçalves! ao! critério! da! visibilidade! sintática! consiste! em!

reconhecer!que!embora!dê!conta!de!muitos!fenômenos!tratados!como!flexão!(e/ou!de!

sua!oposição!à!derivação)!pela!gramática!tradicional,!não!dá!conta!de!todos.!Em!outras!

palavras,!o! critério!estabelece!novos!conceitos!de! flexão!e!de!derivação.!Ao! invés!de!

acreditar!no!critério!—!supor!que!a!visibilidade!sintática!tem!consequências!teóricas!

relevantes!—!Gonçalves!prefere! abandonar!o! critério!porque!ele)não)permite)chegar)

aos)mesmos)resultados)a)que)a)gramática)tradicional)chegava.!

É!notável! como!a! crítica!do! critério! toma!como!ponto!de!partida!as!noções!de!

flexão! e! derivação! exatamente! como! estabelecidas! pela! gramática! grega! clássica.!

Gonçalves!sabe,!de!antemão,!o!que!é!e!o!que!não!é!flexão!—!certamente!a!partir!de!seu!

conhecimento! da! gramática! tradicional! —! independentemente! do! critério.! E! como!

essa! noção! está! naturalizada,! o! critério! só! será! adequado! se! o! resultado! de! sua!

aplicação!na!teoria!morfológica!contemporânea!coincidir!com!o!resultado!da!aplicação!

na!teoria!tradicional.!!

Gonçalves!se!assemelha!a!Pierre!Menard:!seu!trabalho!não!é!uma!reprodução!ou!

cópia!da!gramática!clássica,!mas!deve!coincidir!pontualmente!com!ela.!!

Não!quero!ser!injusto!com!Gonçalves.!Sua!postura!não!é!diferente!da!postura!de!

9! entre! 10! linguistas! que! tratam! de! morfologia.! Ao! apontar! esse! problema! em! seu!

trabalho,!de!alguma!maneira,!destaco!a!clareza!das!análises!assumidas:!uso!Gonçalves!

(2011)!como!exemplo!porque!o!livro!é!claro.!O!“erro”!apontado!é!muito!mais!geral!do!

que!gostaríamos!de!admitir.!

Alguns!estruturalistas!—!como!André!Martinet,!por!exemplo8!—!abandonaram!a!

noção!de!palavra! como!unidade!de! análise! e! a! substituíram!pela!noção!de!morfema!

(formas!significativas!menores!do!que!a!palavra).!O!morfema!passa!a!ser!o!elemento!

atômico!e!as!palavras!passam!a!ser!entendidas!como!arranjos!de!morfemas.!Ao!invés!

de! dizer! que! a! palavra! “homem”! tem! duas! formas! alternativas! (homem! e! homens),!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!8!Ver!Martinet,!1972.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

!!

BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 328!

passa<se! a! dizer! que! as! palavras! “homem”! e! “homens”! são! constituídas! por! dois!

morfemas:!uma!raiz!(homem)!e!um!morfema!de!número!(<s!para!o!plural!e!∅!para!o!

singular)9.!Seguindo!o!mesmo!raciocínio,!as!palavras!“menino”,!“menina”,!“meninos”!e!

“meninas”!poderiam!ser!representadas!numa!tabela!como!a!seguinte:!

!

RAIZ! GÊNERO! NÚMERO!

menin=! <o10! ∅!

! <a! <s!

!

Para!os!estruturalistas,!uma!abordagem!como!essa!traz!vantagens!para!a!análise!

da! estrutura! das! palavras! ao! evitar! alguns! problemas.! No! entanto,! cria! novos!

problemas.!Por!exemplo,!se!a!palavra!passa!a!ser!um!arranjo!particular!de!morfemas,!

“menin+a+s”!e!“menin+o+∅”,!na!medida!em!que!são!arranjos!de!distintos!morfemas,!

devem!ser!entendidas!como!duas!palavras!diferentes!(e!não!mais!como!flexões!de!uma!

mesma!palavra).! Da!mesma! forma,! os! casos! que! eram! tratados! como!derivação! não!

podem! mais! ser! distinguidos! facilmente! dos! casos! tratados! como! flexão.! A! palavra!

“meninices”! seria! analisada! como! “menin+ice+s”! e! a! palavra! “menininhas”! como!

“menin+inh+a+s”.!Ou!seja,!a!distinção!flexão/derivação!desaparece11.!

Mas,!nosso!Pierre!Menard!gramático!não!pode!deixar!isso!assim.!Os!fenômenos!

de! flexão! e! derivação! naturalizados! devem! subsistir.! E,! em! consequência,! os!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9!∅! é! símbolo!para! a! ausência!de! sinal! (zero).!A! ideia! é! que! a! ausência!de! sinal! também!pode! ser!significativa.!Por!exemplo,!se!o!carro!que!vai!na!minha!frente!acende!a!seta!da!direita,!eu!sei!que!ele!vai!virar!à!direita;!se!não!acende!nenhuma!seta,!eu!sei!que!ele!vai!em!frente.!Em!termos!ideais!(os!motoristas! nem! sempre! agem! assim,! infelizmente),! a! ausência! de! seta! é! tão! significativa! quanto! a!presença!de!seta!à!direita!ou!à!esquerda.!10!Há!um!debate!sobre!a!natureza!do!morfema!de!masculino:!para!alguns!linguistas!ele!também!é!um!zero!(o!“<o”!seria!uma!vogal!temática);!para!outros,!assim!como!para!o!senso!comum,!ele!seria!um!–o!em!oposição!ao!–a!de!feminino.!Vou!ignorar!esse!debate!aqui.!11!Esse!novo!modo!de!entender!a!morfologia,!que!se!contrapõe!ao!modelo!“palavra<e<paradigma”,!é!conhecido!como!modelo!morfológico!“item<e<arranjo”.!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

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BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 329!

gramáticos! passam! a! estipular 12 !que! alguns! morfemas! (gênero! e! número,! por!

exemplo)! são! flexionais! enquanto! outros! (grau! e! casos! como! o! de! –ice)! são!

derivacionais.!

O!notável!é!que!o!que!era!flexão!na!teoria!da!gramática!grega!clássica!continua!

flexão! e! o! que! era! derivação! continua! derivação,! apesar! da! teoria! morfológica!

estruturalista!ser!radicalmente!distinta!da!teoria!clássica.!!

Pierre!Menard!consegue!novamente!fazer!coincidir!sua!obra!com!a!de!Cervantes.!

Embora! estejam! aparentemente! dizendo! coisas! distintas,! o! resultado! descritivo! da!

morfologia! estruturalista! é! exatamente! o! mesmo! que! se! obteria! com! a! gramática!

tradicional.!

Pior! do! que! o! que! vemos! em!Gonçalves! (2011)! ou! o! que! encontramos!nos!

trabalhos! dos! estruturalistas! é! o! que! podemos! ver! em! algumas! gramáticas.! Na!

Gramática)da)Língua)Portuguesa!de!Celso!Cunha!(1983)13!temos!a!seguinte!passagem:!

!As)desinências)são)morfemas)flexionais)ou)flexivos)que)servem)para)indicar:)a)))...)b))Nos)verbos,)o)número)(singular)ou)plural))e)a)pessoa)(1.ª,)2.ª,)ou)3.ª).))(...))Os)morfemas)gramaticais)chamados)morfemas)derivacionais)correspondem)ao)que)tradicionalmente)se)conhece)pelo)nome)de)afixos.)(...))Os) sufixos,) como) as) desinências,) unem]se) à) parte) final) do) radical.)Mas,) enquanto)estas) caracterizam)apenas)o)gênero,)o)número)ou)a)pessoa)da)palavra,)os) sufixos)podem)ter)dois)valores)distintos:)a))um)flexional,)quando)exprimem)a)categoria)de)tempo)e)modo,)ou)caracterizam)uma)forma)nominal)do)verbo;)b)) outro) derivacional,) quando) alteram) substancialmente) o) sentido) ou) a) classe) do)radical)a)que)se)juntam)(CUNHA,!1983,!p.!91<92).!

!

Para!Cunha,!teríamos!nos!verbos!morfemas)flexionais!(desinências)!e!morfemas)

derivacionais,!que!corresponderiam!ao!que!tradicionalmente!se!chama!de!afixos.!Sem!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12!A! estipulação!é!uma!decisão! arbitrária,! sem! fundamentação!empírica,! feita!pelos! linguistas!para!acomodar!determinados!fatos!a!uma!proposta!teórica!precedente.!13!Com!o!nome!de!Gramática)de)Base,!essa!gramática!foi!distribuída!a!todas!as!escolas!no!Brasil.!!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

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BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 330!

apresentar!nenhuma!justificativa!plausível!(além!da!mudança!da!classe!da!palavra!ou!

de!uma!vaga!“mudança!substancial!de!sentido”14),!Cunha!ainda!subclassifica!os!sufixos!

como!flexionais!e!derivacionais.!Cunha!não!nos!diz!quais!seriam!os!“valores!distintos”!

que! os! sufixos! apresentam.! Seu! critério! —! suponho!—! está! baseado! no! papel! que!

teriam! no! interior! do! velho!modelo! “palavra<e<paradigma”:! serão)afixos) flexionais)os)

afixos)que)eram)tradicionalmente)tratados)como)desinências.!A! confusão!causada!pela!

classificação!de!Cunha!é!brutal.!

Eu!poderia! levantar! inúmeros! outros! exemplos!na!morfologia,! na! sintaxe! e! na!

fonologia.!Mas,!seria!apenas!para!reforçar!o!argumento.!O!que!temos!nas!gramáticas!

escolares! e! em! boa! parte! dos! trabalhos! de! linguistas! são! tentativas! de! dizer!

exatamente!o!que!os!primeiros!gramáticos!disseram!há!dois!mil!anos!atrás.!!

Em! princípio,! não! há! nenhum! problema! em! reconhecer! que! os! velhos!

gramáticos! gregos! estavam! certos! e! que! suas! noções! e! análises! eram! precisas! e!

adequadas.!Parece,!no!entanto,!que!se!eles!estavam!certos!não!precisaríamos!de!novas!

teorias! morfológicas! ou! sintáticas! —! poderíamos! continuar! fazendo! a! velha! e! boa!

gramática!tradicional.!Seria!também!surpreendente!que!os!velhos!filósofos!gregos!só!

tivessem! acertado! nas! coisas! que! disseram! sobre! a! estrutura! das! línguas,! já! que! na!

física,! na! química,! na! medicina,! na! biologia! e! mesmo! na! lógica,! suas! teorias,! e! os!

resultados!de!suas!teorias,!já!foram!revistas!há!muito!tempo.!!

!

4.!CONCLUSÃO:!O!MENARD!DO!QUIXOTE!VERSUS!O!MENARD!GRAMÁTICO.!

(

Pierre! Menard! queria! escrever! um! Quixote! que! reproduzisse! letra! a! letra! o!

Quixote!de!Cervantes,!mas!que!fosse!—!dadas!as!distintas!condições!de!produção!—!

uma!obra!inédita.!Enunciando!o!mesmo!texto,!Menard!pretendia!dizer!algo!novo.!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!14!Quem,! hoje,! diria! que! a! mudança! de! gênero! entre! menino! e!menina! não! traz! “uma! alteração!substancial!de!sentido”?!Isso!nos!levaria!a!considerar!o!gênero!como!um!sufixo!derivacional?!

!Curitiba,!Vol.!2,!nº!2,!jan.<jun.!2014!!!!!!!!!!!!!ISSN:!2318<1028!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!REVISTA(VERSALETE!

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BORGES!NETO,!J.!!E!se!Pierre!Menard...! 331!

O!Menard!gramático,!por!outro!lado,!busca!novos!textos!—!novas!noções,!novas!

relações,!nova!fundamentação!científica!—!mas!procura,!com!seus!novos!textos,!dizer!

exatamente!o!que!diziam!os!antigos.!Enunciando!um!novo!texto,!o!Menard!gramático!

está!reproduzindo!o!que!dizia!o!texto!antigo.!O!Menard!gramático!adapta!as!condições!

de!produção!para!que!seu!novo!texto!signifique!exatamente!o!que!o!texto!antecedente!

significava.!!

E!essa!atitude!é,!certamente,!um!imenso!empecilho!para!o!desenvolvimento!dos!

estudos!linguísticos.!

!

!

REFERÊNCIAS!!BORGES!NETO,! J.! Flexão! e!Derivação:! será! que! os! tratamentos! dados! a! esta! distinção! não! adotam!uma!perspectiva!‘eniaesada’?.!Cadernos)de)Estudos)Linguísticos.!54(2).!Unicamp,!2012.!p.!307<317.!!BORGES,!Jorge!Luis.!Obras)completas.!Buenos!Aires:!Emecé,!1989.!!CUNHA,!C.!F.!Gramática)da)Língua)Portuguesa.!9!ed.!Rio!de!Janeiro:!MEC<FAE,!1983.!!GONÇALVES,! C.! A.! Iniciação)aos)estudos)morfológicos:) flexão! e! derivação! em!português.! São! Paulo:!Contexto,!2011.!!HOCKETT,!C.!F.!Two!models!of!grammatical!description.!Word,!10,!1954,!p.!210<254.!!MARTINET,!A.!Elementos)de)Linguística)Geral.!4!ed.!Lisboa:!Sá!da!Costa,!1972.!