eric wolf - o comércio de peles

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  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    1/42

    6

    o COMERCIO

    DE

    PELES

    Ate

    0

    final

    do

    seculo XVI as frotas ibericas dominavam

    0

    Atlantico restrin

    gindo a expansao de outras potencias europeias na America do Norte.

    A

    medida que

    se desvaneceu

    0

    poderio espanhol os estabelecimentos europeus situados

    ao

    norte

    ao longo do litoral prosperaram rapidamente e com essa prosperidade desenvol

    veu-se

    0

    comercio de peles. Na busca da riqueza por parte dos europeus as peles

    nao eram artigos de maior prioridade. a ouro a prata 0 a

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    A EUROPA E OS POVOS

    S M

    HIST RlA

    glaterra (Jones, 1968: 1 6 1 - 1 6 ~ : No inicio do seculo X, os vikings rus vendiam peles

    de zibelina, esquilo, arminho, raposa branca e preta, marta e castor, alem de'escravos,

    aos bulgaros dos meandros do rio Volga. No ana de 922 0 arabe Ibn Fadlan descreveu

    graficamente a viagem dos mercadores rus, que desceram 0 Volga com zibelinas e

    escravas destinadas aos mercados do Levante isHlmico. Apos os vikings, a Liga Ran

    seatica, do Norte da Alemanha, criou dificuldades ao comercio de peles nas regioes

    setentrionais. A part ir de urn posto de trocas situado em Bergen, eles exploraram im

    piedosamente os noruegueses, fon;;ando-os a entregar e limpar grandes quantidades

    de peles e peixes como

    r e t r i b u i ~ a o

    a pagamentos adiantados, realizando assim uma

    especie de servidao internacional por dfvidas (Wallerstein, 1974: 121).

    No que hoje e a Russia, as

    o p e r a ~ e s

    dos vikings rus promoveram

    0

    desenvol

    vimento de Kiev e Novgorod, nos seculos IX e X. Para esses Estados, bern como para

    seus sucessores, as peles tornaram-se 0 mais valioso artigo de comercio desde os pri

    meiros tempos ate

    0

    final doseculo XVIII e para alem dessa data (Kerner, 1942: 8).

    Com efeito, toda a trajet6ria da expansao russa tern sido retratada como uma busca pro

    longada no sentido de dominar as sucessivas bacias hidrogr::ificas por meio do controle

    do transporte que se realizava entre elas, sendo a velocidade da expansao determinada

    pela e x t i n ~ a o

    dos animais em cada bacia (Kerner, 1942: 30). Os russos, a exemplo de

    Ottar antes deles, coletavam

    s

    peles por meio do tributo

    iasak)

    imposto as

    p o p u l a ~ o e s

    nativas como urn todo e de urn dfzimo sobre todas as peles obtidas por indivfduos. Es

    sas peles constitufram mais tarde urn item de grande importancia nos rendimentos do

    Estado russo, passando de 3,8% de todas as rendas obtidas em 1589 para 10% em 1644.

    Somente quando Pedro,

    0

    Grande pas a Russia no caminho

    da i n d u s t r i a 1 i z a ~ a o

    e que

    o tributo sobre as peles diminuiu de importancia. Ainda assim, ele continuou sendo a

    principal c o n t r i b u i ~ a o da Siberia para a economia russa ate 0 seculo XIX.

    comercio de peles nao era, portanto, urn fenameno norte-americano, mas in

    ternacionaL A l i g a ~ a o entre 0 Velho e 0 Novo Mundo se dava por meio da Compa

    nhia das fndias Ocidentais, sediada na Rolanda. Ate a conquista inglesa do Canada,

    Amsterda recebeu uma elevada porcentagem de peles obtidas na America do Norte

    e reexportou pele de castor para a Russia a tim de que fosse mais bern curtida, como

    parte de seu comercio de

    e x p o r t a ~ o e s

    para

    0

    Baltico. A rede internacional de reexpor

    t a ~ 6 e s impedia frequentemente a superabundancia nos mere ados europeus, sobretudo

    durante as guerras travadas no seculo XVII, e manteve os p r e ~ o s estaveis atraves do

    sistema internacional (ver Rich, 1955). No seculo XIX, a pele de castor tornou-se me

    nos importante e foi substitufda pela lontra marinha e pela foca, exportadas sobretudo

    da America do Norte

    para

    a China. A Russia tambem perdeu seu papel dominante

    no metcado europeu de peles ao findar

    0

    seculo

    XVII

    e procurou escoadouros para

    suas peles na hina e em outros pafses da Asia (Mancall, 1971: 12).

    2 2

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    o COMERCIO

    E

    PELES

    Pequena effgie de castor, em cobre, procedente da bafa de Hudson, usada como marca no infcio

    do

    co

    mercio de peles. Seu valor equivalia a uma pele de castor (foto cedida pelo Museum

    of

    the American

    Indian, Heye Foundation).

    o principal alvo do comercio norte-americano era 0 castor, sobretudo ap6s 0

    decl1nio desse animal na Europa, no final do seculo XVI. Ele era procurado nao s6

    pela pele como tambem pOI uma camada de Ia composta de pelos crespos e macios

    que crescem pr6ximo da pele e que tinha de ser separada da pele propriamente dita

    e de outros peios mais compridos e rijos. Essa

    Ia

    era entao transformada em feltro,

    usado para a confeq:ao de chapeus e tecidos. 0 emprego da la de castor para chapeus

    tornou-se especialmente importante. Na Ingiaterra, pOI exemplo, os imigrantes espa

    nh6is e holandeses popularizaram

    0

    hiibito de usaI' chapeus em vez de capuzes de la

    j no

    inicio do seculo XVI. A partir de entiio, nenhuma legislagao sobre a suntuliria

    conseguiu deter 0 declfnio da confecgao de capuzes. Usa-los tornou-se a marca que

    distinguia as classes mais baixas. Para os de status mais elevado,

    0

    formato e

    0

    tipo

    de chapeu passou a ser um barometro das filiag5es polfticas. Os Stuarts e seus par-'

    tidarios deram preferencia ao castor espanhol , chapeu de copa alta, abas largas e

    formato ligeiramente quadrado. Os puritanos introduziram

    0

    chapeu em formato de

    cone, de feitro ou de castor. No perfodo da Restauragao tornou-se moda 0 chapeu de

    abas largas, levemente achatado, desabado, usado na Corte frances a, enfeitado com

    uma pluma. A Revolugao Gloriosa langou a moda do chapeu clerical , de abas lar

    gas e reviradas, de copa baixa, cedendo lugar ao chapeu de tres pontas. Esse estilo

    durou ate a Revolugao Francesa, que produziu 0 chapeu de copa alta . Apenas no

    inicio do seculo XIX chapeu de peio de castor caiu de moda em favor dos chapeus

    feitos de seda e outros materiais.

    2 3

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    EUROP E OS POVOS SEMHIsr RIA

    Inicialmente, porem, nan foi a procura das peles, mas a do peixe que levou os

    marinheiros europeus a navegar nas aguas

    do

    AtHlntico norte. 0 peixe era urn dos

    ar-

    tigos comerciais estrategicos na Europa medieval. Depois de seco e salgado, fornecia

    as proteinas essenciais durante aqueles dias de preceitos religiosos obrigat6rios e rigo

    rosos invernos. Nosseculos. XV e XVI a pesca do arenque no Baltico dedinou e

    os

    pescadores come9aram a explorar. os abundantes cardumes de bacalhau, ao largo das

    costas do Labrador, Terra Nova e Nova Inglaterra. Os pescadores portugueses foram

    talvez os primeiros a apresentar reivindicagoes oficiais sobre todo 0 litoral, embora nao

    conseguissem sustenta-Ias diante do mimero crescente de competidores da Normandia,

    Bretanha e Oeste da Inglaterra. No infcio os pescadores ancoravam esporadicamente

    suas embarca90es no litoral e voltavam para

    os

    portos natais com peixe fresco pronto

    para ser vendido

    no

    mercado. Mais tarde, porem, comC9aram a passar 0 verao na costa,

    remendando suas redes e preservando 0 peixe, secando-o e defumando-o. Assim, as

    praias do litoral da Terra Nova tornaram-se os acampamentos regulares e sazonais de

    uma comunidade pesqueira resistente, cosmopolita e independente (Parry, 1966: 69).

    o

    comercio norte-americano de peles teve infcio quando esses pescadores co

    me9aram a fazer permutas com os algonquinos locais. A possibilidade de explorar

    as terras novas em busca de peles nao deixou de interessar os agentes da Coroa

    e os colonos que exploravam litoral

    da

    America do Norte. A coloniza9ao efeti

    va da cOsta pelos europeus do Norte, entretanto, teve de aguardar declfnio da

    hegemonia maritima iberica no AtHintico, que sobreveio com a morte de Filipe II,

    em 1603. Logo depois estabeleceram-se varias colonias: Jamestown, fundada em

    1603 pela Virginia Company, sediada na Inglaterra; Quebec, base

    da ompanhia

    da Nova Fran9a, implantada nesse mesmo ano; Forte Nassau, em Albany (1614)

    e Nova Amsterda (1624), ambas fundadas pela Companhia das fndias Ocidentais,

    sediada na Holanda; New Plymouth (1620) e Massachusetts Bay (1630).

    Entre esses estabelecimentos, Quebec e Nova Amsterda haveriam de exercer urn

    papel primordial no crescimento do comercio. Cada uma dessas cidades localizava-se

    nos dois lados de uma import ante estrada que ia ate a regiao das peles,

    no

    interior, onde

    estavam as grandes riquezas. Quebec controlava 0 curso do rio Sao Louren90, que levava

    it cadeia dos Grandes Lagos e seus sucessivos varadouros. Nova Amsterda controlava

    rio Hudson, em dire9ao a Albany, e 0 trajeto para oeste, a caminho de Oswego, no lago

    Ontario. Assim, a rota setentrional foi controlada durante muito tempo pelos interesses

    franceses, enquanto acesso meridional foi mantido primeiramente pelos holandeses

    e

    ap6s 1644, pelos ingleses. Desde 0 infcio, portanto, 0 comercio de peles

    foi

    praticado

    no contexto da competi9ao entre duas na90es. Ela afetou nao apenas os comerciantes

    europeus mas tambem as popula90es indfgenas que Ihes forneciam peles.

    Uma das principais caracteristicas do comercio foi seu nipido deslocamento

    2 4

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    o OMER IO

    DE

    PELES

    para 0 oeste

    it

    medida que sucessivas p o p u l ~ o e s de castores eram

    c ~ d s

    e exter

    minadas; os c ~ d o r e s

    de peles tinham de penetrar cada vez mais

    no

    interior it pro

    cura de novas regioes habitadas P f esses animais. Isso significava inevitavelmente

    que

    as

    pessoas que sentiram 0 primeiro impacto

    do

    comercio de peles foram deixadas

    para tras ap6s esse acontecimento enquanto novos grupos procuravam participar

    dele. Em todos os lugares 0 advento do comercio teve consequencias ramificadoras

    para

    as

    vidas de seus participantes. Ele desarranjou r e l a ~ o e s sociais e habitos cul

    turais tradicionais e promoveu a f o r m ~ o de novas

    r e a ~ o e s

    tanto no plano interno

    na vida cotidiana dos varios povos quanta no plano externo nas

    r e l a ~ 6 e s

    entre eles.

    medida que os comerciantes solicitavam peles a sucessivos grupos pagando por

    elas com artefatos europeus cada grupo repadronizava

    os

    seus habitos e m f u n ~ o das

    manufaturas europeias. o mesmo tempo as

    s o l i c i t a ~ o e s

    dos europeus em torno das

    peles aumentaram a

    c o m p e t i ~ o

    entre

    os

    grupos indfgenas

    c o m p e t i ~ o

    por novos

    territ6rios de c ~ para satisfazer it crescente demanda europeia e tambem compe

    t i ~ a o por acesso aos bens europeus que em breve haveriam de tornar-se nao apenas

    componentes essenciais da tecnologia dos nativos como tambem signos de urn

    status

    diferenciado. 0 comercio de peles modificou assim

    0

    carater da guerra entre

    as

    po

    p u l a ~ o e s amerfndias e aumentou sua intensidade e alcance. Levou ao extermfnio de

    povos inteiros e ao deslocamento de outros que abandonaram seus habitats anterio

    res. s peles nao eram 0 unico artigo fornecido pelos indios. 0 crescente comercio

    de peles tambem exigia

    0

    fornecimento de alimentos e

    it

    medida que se expandiu

    para

    0

    oeste alterou e intensificou

    os

    padroes mediante os quais

    0

    alimento era pro

    duzido para os cagadores e comerciantes.

    Vma reBexao sobre

    0

    comercio de peles como urn todo engloba portanto va

    rias dimensoes. Os franceses e os ingleses interagiram entre si e com varios grupos

    indigenas. Sucessivas p o p u l ~ o e s amerindias por sua vez se viram sob pressao para

    fazer novos ajustamentos aos europeus e entre si mesmas. 0 alvo detodos esses con

    Bitos e ajustamentos era 0 lucro a ser obtido quando se peg ava em uma armadilha

    urn

    animalzinho peludo que pesava cerca de meio quilo.

    Povos do Nordeste

    Abenaki

    Entre

    os

    primeiros povos indfgenas com que

    os

    europeus mantiveram urn co

    mercio de peles prolongado estavam os abenaki do Leste de fala algonquina e que

    habitavam

    0

    litoral do Maine. Seu exemplodemonstra dois efeitos recorrentes de se-

    2 5

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    milh s

    Rotas do comercio de pele norte americano.

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    o

    COMERCIO E PELES

    melhante contato.

    Urn

    deles foi a vertiginosa

    d i m i n u i ~ a o da o p u l a ~ a o

    nativa.

    0

    outro

    foi uma m u d a n ~ a na c o m p o s i ~ a o das atividades econ6micas praticadas pelos grupos

    indfgenas e as

    m u d a n ~ a s em

    suas

    r e l a ~ o e s

    sociais que daf resultaram. Nos primeiros

    anos doseculo XVII, os abenaki do Leste ocupavammais de vinte aldeias, cada qual

    com urn chefe e uma

    o p u l a ~ a o

    total de

    10

    mil indivfduos. Em 1611 apenas 3 mil de

    les sobreviviam; os demais sucumbiram as d o e n ~ a s trazidas pelos europeus, as quais

    os nativos nao eram imunes. Os sobreviventes passaram a a dedicar-se cada vez mais

    Ii

    c a ~ a aos castores para fazer trocas

    com

    os europeus. Continuaram a plantar algum

    milho, mas devido acurta epoca de crescimento e ao fracasso frequente das colheitas

    eles se dispuseram cada vez mais a t rocar peles por alimentos, como fizeram com a

    Plymouth Colony ap6s 1625.

    Abandonaramo

    litoral, onde anteriormente pescavam

    e

    c a ~ a v a m

    aves marinhas, e se refugiaram

    em

    territorios de

    c a ~ a

    no interior, onde

    habitava urn pequeno mlmero de

    fammas.

    A

    c a ~ a

    para essas

    fammas,

    tornou-se

    principal esteio de seu novo ajustamento (Snow, 1976).

    Nessa

    m p l a n t a ~ a o

    do territ6rio de

    c a ~ a da

    famma, os abenaki de modo algum

    estavam

    s6s.E

    bern possfvel que antes da chegada dos europeus os c a ~ a d o r e s nativos

    favorecessem determinados territ6rios de

    c a ~ a

    onde a praticavam durante inverno.

    No entanto territorio

    de c a ~ a

    mantido e defendido exclusivamente

    por

    pequenos

    grupos familiares contra outros possfveis usuarios, foi uma consequencia

    da

    nova e

    individualizada e l a ~ a o de trocas entre

    0

    c a ~ a d o r de peles e

    0

    comerciante (ver Lea

    cock, 1954). Os missionarios catolicos que vieram depois dos primeiros exploradores

    tambem se beneficiaram dessa dispersao dos grandes grupos, pois ela facilitava sua

    conversao na medida

    em

    que cada familia

    se

    assenhoreava

    de

    seu proprio territo

    rio de

    c a ~ a

    sem seguir

    rumo

    tornado

    por

    seus vizinhos

    Relat6rios dos Jesuitas,

    1632,cit.

    em

    Bailey, 1969: 89).

    Huron

    Subindo rio Sao

    o u r e n ~ o

    os exploradores e comerciantes franceses logo es

    tabeleceram

    r e l a ~ 5 e s com

    os huron,

    de

    fala iroquesa. Os huron (derivado do termo

    frances hure, que querdizerdesgrenhado, briguento, selvagem) se autodenominavam

    wendat e formavam

    uma o n f e d e r a ~ a o de

    20 a

    30 mil

    individuos com ml11tiplas ori

    gens,

    organizada

    talvez

    ja

    no infcio do seculo XV. Dedicados primitivamente

    Ii

    agri

    cultura, haviam se estabelecido na orIa

    da

    Georgian Bay, no Iago Huron, e puseram-se

    a comerciar

    com

    os

    c a ~ a d o r e s

    e coletores que habitavam ao norte. Trocavam milho,

    fume e canhamo indfgena

    por

    peles, c a m u r ~ a peixe, cobre e equipamentos de

    c a ~ a

    e

    viagem.Os

    huron encontravam-se, assim, numa

    p o s i ~ a o

    estrategica para expandir

    ocomercio

    de

    peles, fazendo-o chegar aos habitantes das fiorestas setentrionais.

    207

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    EUROP EOS POVOS SEM HlST RIA

    A medida que aumentava a dedicas;ao ao comercio, seu envolvimento com a

    horticultura diminuiu e eles recorreram a urn fornecimento cada vez maior de milho

    por parte de seus aliados, os petuns (tiontati), que habitavam a oeste, e os neutros

    (attiwandaron, que significa aqueles que falam uma lingua ligeiramente diferente ),

    moradores da faixa de terra situada entre os lagos Ontario e Erie. Dos habitantes das

    florestas do Norte eles recebiam a eficiente canoa feita com a casca

    da

    betula, que se

    tornou meio preferido de transportar grandes quantidades de pele rio abaixo para

    as feiras anuais de Montreal. m certa epoca a lingua huroniana tornou-se a lfngua

    franca dos Altos Grandes Lagos e de certas regioes do Canada. Ate serem dizimados

    pelos iroqueses em 1648, os huron foram os principais agentes e beneficiarios do co

    mercio frances com

    0

    interior e

    0

    principal suporte das operas;oes militares frances as

    empreendidas na regiao:

    Houve varios motivos que explicam 0 sucesso dos huron nesse papel. Eles ocu

    pavam uma regiao estrategica para as trocas, situada entre a zona bi6tica ao suI, que

    favorecia cultivares como milho, feijao, a ab6bora e furno, e a zona ao norte,

    ocupada pelos cas;adores e pescadores. Tais trocas antedataram de varios seculosos

    contatos

    com

    os europeus, remontando talvez ao estfmulo proporcionado pela hor

    ticultura praticada por volta do ana 1200 de nos sa era (McPherron, 1967). Quando

    o comercio de peles penetrou na regiao,

    ja

    existiam mecanismos que permitiam e

    facilitavam as trocas de mercadorias, as quais se poderia acrescentar a pele do cas

    tor e de outros animais. a padre Jean de Brebeuf, escrevendo em 1636, afirmou que

    certos circuitos de troca eram dominados por determinadas linhagens familiares e

    tinham de ser ativados

    por

    urn mestre , cujo papel era hereditario.

    Transas;5es de todos os tipos foram acompanhadas por trocas

    de

    presentes como

    sinais de amizade. Tais dtidivas faziam parte das cerimonias de cura e das festas di

    plomaticas (ver Wright, 1967). a mais notavel

    e

    que a troca de presentes em grande

    escala acompanhava a

    Festados

    Mortos, realizada mais ou menos a cada decada, com

    o objetivo de enterrar os restos dos que tinham morrido desde a ultima festa. Nessas

    ocasioes eram empossados os sucessores dos chefes mortos e nomes destes transferidos

    para aqueles.

    s

    rituais serviam assim para garantir a continuidade

    da

    liderans;a dos

    grupos locais de descendencia e ao mesmo tempo proporcionavam a oportunidade de

    trocar presentes entre os chefes desses grupos. Eles enfatizavam a identidade e

    0

    que

    havia de caracterfstico nesses grupos, ao mesmo tempo em que estabeleciam simulta

    neamente las;os de alians;a entre eles. Nessas ocasiOes poderiam juntar-se membros de

    diferentes grupos lingtiisticos e polfticos, a exemplo da festa presenciada pelo missiona

    rio frances Lalemant

    em

    1641

    em

    Georgia Bay, quando os nipissing 10cais convidaram

    duas mil pessoas procedentes de regi5es remotas (Sault, no extremo oeste, e Huronia,

    no extrema leste). Foi consideravel a quantidade de bens ofertados: peles, indumenta-

    2 8

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    o

    COMERCIO E PELES

    ria, contas e mi((angas, armas. Nessa ocasiao,diz Lalemant, so os presentes que os

    nipissirianos deram as outras na 5es teriam custado na Fran((a quarenta ou ate mesmo

    cinqlienta mil francos (cit. em Hickerson, 1960: 91). Essa troca de presentes, que en

    carnava la os de alian((a e reconhecimento do status de chefia, tornou-se amplamente

    difundida e concomitante ao comercio de peles, a medida que este avan((ava para as

    regi5es do interior, por iniciativa dos huron. Adotada primeiramente pel9s povos de

    fala algonquina dos Grandes Lagos, chegou ate os cree, a oeste do lago Superior,e dos

    cree passou para as Grandes Planicies no final do seculo XVII (Nekich, 1974).

    Jroqueses

    Os

    holandeses de Nova Amsterda e os ingleses que lhes

    sucederamem

    1644

    encontraram, na bacia de drenagem do rio Hudson, outros povos horticultores que pas

    saram a ser conhecidos dos europeus pela designayao de iroqueses , versao francesa

    de urn termo algonquino que significa serpente verdadeira . Os iroqueses estavam

    organizados em uma confederayao que eles denominaram Ganonsyoni ( A cabana de

    extensao longitudinal ). As cinco na((5es ou conjuntos de matrilinhagens que inte

    gravam essa confederayao eram as seguintes: os mohawk (de Uma palavra algonquina

    que designa

    0 canibal ), os quais se autodenominavam ganiengehaga ou povo

    da

    pederneira ; os oneida; os onondaga; os cayuga e os seneca, termo derivado de

    sin-

    neken a equivocada interpretayao holandesa de uma versao mahicana do termo iro

    ques que designava os oneida. Logo no inicio do seculo XVIII os oneidapermitiram

    o ingresso dos tuscarora na ~ o n f e d e r a a o . Para os de fora, a confeder 0 pas sou a

    ser conhecida como as SeisNa((oes , embora os tuscarora jamais tivessem direito

    de participar de seus conselhos. Os dados disponiveis indicam que os iroqueses ti

    nham residido havia muho naquela regiao. m epocas historicas, cada uma das cinco

    nayoes controlou seus proprios agrupamentos, campos, florestas e territorios de cal(a.

    Embora ligadas por uma organizayao politica, havia entre elas diferenl(as culturais e

    lingiiisticas. As linguas dos varios aglomerados eram mutuamente ininteligiveis, e os

    neg6cios da confederal(ao eram conduzidos unicamente por chefes poliglotas.

    A confedera((ao iroquesa surgiu provavelmente no seculo XV, como

    um

    meio

    de reduzir conflito e a guerra entre os vlirios agrupamentos.

    m

    breve, porem,

    crescente comercio de peles proporcionou a esses agrupamentos urn interesse con

    vergente que se sobrepunha a tudo. Embora castor nao fosse comum no territorio

    iroques e tenha se tornado cada vez mais raro, como real(ao ao

    aumentoda

    caya, os

    iroqueses em breve se deram conta de que seu futuro, separado e coletivo, dependia

    daquele animal. A fim de aumentar seu proprio acesso as peles, entretanto, eles tive

    ram antes de mais nada de reduzir ou eliminar a competiyao deseus vizinhos. Apoia-

    209

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    10/42

    A EUROPA E OS POVOS SEM HlST RlA

    dos pe10s holandeses e, mais tarde, pelos ingleses,promoveram uma serie de guerras

    dizimadoras contra seus rivais, apoiados pelos franceses. Depois que uma epidemia

    de variola debilitou os huron em 1640,

    os

    iroqueses atacaram e destrufram Huronia

    como entidade separada em 1648.

    m

    1656 arrasaram a

    Nalao

    Neutra e os erie.

    m

    1675 os

    mowhak atacaram a confederalao dos algonquinos, formada para se opor aos

    colonos ingleses da Nova Inglaterra. Nesse mesmo ana os seneca, coligados aosco-

    lonos ingleses de Maryland e Virgfnia, puseram fim as amealas dos susquehannock,

    que controlavam 0 vale central da Pensilvilnia. Em 1680 as Cinco Naloes declararam

    guerra aos illinois, visando impedir-lhes os contatos com os franceses.

    Apesar da escala das operaloes militares dos iroqueses, 0 mlmero de guerreiros

    envolvidos nessas

    aloes

    nao era muito elevado.

    m

    1660 um sacerdote jesufta estimou

    que os mohawk podiam mobilizar quinhentos guerreiros, os oneida menos de cem, os

    onondaga; trezentos, os cayuga, trezentos e os seneca menos de mil cit.

    em

    Trelease,

    1960: 16). 0 que possibilitou a capacidade militar dos iroqueses foi 0 acesso cada

    vez maior as armas de fogo, comerciadas com

    des

    principal mente pelos ho1andeses

    e ingleses. Em

    1660 cada guerreiro provavelmente tinha seu pr6prio mosquete, e 0

    poder de fogo superior, juntamente com 0 recurso a proezas individuais nas guerras

    de guerrilha, garantia-lhe superioridade sobre seus vizinhos Otterbein, 1964)

    . 0

    ingresso no comercio de peles e a guerra intensificada provocaram outras

    mudanlasna ecologia e na organizalao social dos iroqueses. A base economica da

    vida iroquesa antes do crescimento do comercio de peles era a horticultura e a

    cala

    A primeira estava sobretudo nas maos das mulheres, embora os homens ajudassem

    a limpar 0 lCrreno durante 0 cicIo das queimadas. Ate hoje se desconhece qual a

    composilao social desse grupo que preparava 0 terreno, mas outras tarefas ligadas

    ao cultiyo eram desempenhadas pelo conjunto das mulheres

    da aldeia, guiadas pela

    principal matrona da linhagem dominante; as matronas de outros ramos da linha

    gem agiam. como suas auxiliares imediatas. Os direitos ao uso da terra, bem como

    os implementos empregados no cuItivo e no processamento dos alimentos, eram her

    dados

    atravesda

    linha feminiria. Do mesmo modo, a distribuilao da produlao estava

    nas maos das mulheres. 0 peso desses papeis econ6micos conferia as mulheres uma

    autoridade considenivel, ja que podiam usar sua capacidade de fornecer alimentos e

    mocassins para vetar as atividades guerreiras que nao aprovassem Randle, 1951: 72).

    Esse peso tambem lhes conferia 0 exercfcio da hospitalidade por ocasiao dos festejos,

    atividade considerada importante para solidificar alianlas entre os agrupamentos fa

    miliares Brown, 1975: 247-248; Rothenberg, 1976: 112). Alem do mais, as mulheres

    eram

    as proprietarias das cabanas onde residiam varias famflias

    eexerciam 0

    direi

    to de nomear conselheiros que participavam do Conselho das Cabanas Compridas.

    cala

    e a guerra competiam aos homens; e essas atividades se tornaram cada

    21

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    11/42

    o OMER IO

    E

    P L S

    vez

    mais importantes a medida que

    os

    iroqueses se

    envoIvi

    am mais profundamente

    no comercio de peles e ficavam cada

    vez mais dependentes dele. As mercadorias que

    faziam parte do comercio europeu, presumivelmente trocadas por peles, surgiram nas

    localidades iroquesas

    j

    em

    1570,

    e um seculo mais tarde

    os

    iroquesesapoiavam-se

    quase completamente no comercio e nas dadivas diplomaticas a fim de obter armas,

    artefatos de metal, panelas, roupas, j6ias e bebidas alc06licas. Por volta de

    1640

    0

    castor

    j

    estava quase extinto no territorio iroques, e foi necessario penetrarcada vez

    mais nos territorios dos vizinhos e de seus inimigos para obter os recursos que lhes

    permitiriam pagar as

    commodities

    europeias ou entao para guerrear com 0 fim de

    recompensar as dactivas diplomaticas que Ihes eram feitas. A

    s e p a r a ~ a o

    dos papeis

    masculinos e femininos aumentou com 0 crescimento do comercio de peles e a inten

    s i f i c a ~ o

    dos envolvimentos dos estrangeiros; freqtientemente os homens ficavam fora

    durante anos, a procura de peles e inimigos, enquanto as mulheres permaneciam rnais

    fortemente ligadas a suas

    r o ~ a s

    E possivel que os iroqueses se tenham tornado cada

    vez

    mais matrilocais ap6s 0 infcio do seculo XVII (Richards, 1957), como

    r e a ~ a o

    a

    esse crescente b i f u r c a ~ a o

    de

    atividades.

    Tambem parece provavel, segundo Richards, que as mulheres assumissem gra

    dualmente 0 direito de adotar cativos nas matrilinhagens locais,

    f u n ~ a o

    que se tornou

    vital a medida que os iroqueses procuravam substitutos para os homens mortos na

    guerra. Em

    1657

    dizia-se dos seneca que eles abrigavam mais estrangeiros do que

    naturais da regiao . Em

    1659

    jesuita Lalemant escreveu: Se alguem computasse

    o

    lI mero

    de iroqueses de sangue puro, teria dificuldade de encontrar mais de

    1 200

    deles em todas as Cinco N a ~ 5 e s pois em sua maioria eles sao apenas um agregado

    das diferentes tribos que conquistaram . Dois t e r ~ o s dos oneida eram algonquinos

    e huronianos em 1669. Os jesuftas chegaram a queixar-se de que se tornara diffeil

    pregar aos iroqueses em sua propria lingua (Quain,

    1937: 246-247).

    Esse fato tem algumas notaveis

    i m p l i c a ~ 5 e s .

    Ele aponta para a possibilidade de

    que, ao longo do comercio de peles e quando as guerras aumentaram, as formas de

    f i l i a ~ a o

    relativas ao parentesco permaneceram as mesmas, porem seu significado e

    f u n ~ a o

    passaram por grande

    m u d a n ~ a .

    Quando os europeus chegaram a America,

    0

    Conselho das Cabanas Compridas constituia basicamente uma liga de grupos locais

    que cuidavados interesses locais no que se referia as terras cultivadas e a outros re

    c u r s ~ s bem como impedia que as disputas locais se transformassem em rixas e em

    guerra.

    No

    entanto, cada vez mais a

    c o n f e d e r a ~ a o

    dos iroqueses se viu atuando como

    uma

    a s s o c i a ~ a o

    de comerciantes de peles e de guerreiros, algumas vezes de.origens

    muito diferentes,

    em

    r e l a ~ a o aos imperativos translocais do comercio de peles e

    as

    lutas politic

    as

    entre sistemas de Estado europeus e rivais. William Fenton referiu-se

    a Liga como um Estado baseado no parentesco , ligando assim dois conceitos fre-

    2

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    A EUROPA E OS POVOS SEM HIST RIA

    qiientemente tratados como incompatfveis. A c o n f e d e r ~ o dos iroqueses talvez se

    caracterizasse melhor como uma

    s s o c i ~ o

    que tentou usar as formas de parentesco

    tendo em vista

    u n ~ o e s

    associativas. Poderia inclusive ser encarada como

    um

    paralelo

    indfgena

    a

    estrutura das companhias de comercio europeias, que tambem combinavam

    f u n ~ o e s

    economicas com u n ~ o e s polfticas. Quanto a essa caracteristica, os iroqueses

    podem ser comparados aos aro, habitantes da regiao do baixo Niger na Africa ociden

    tal, que tambem utilizavam os mecanismos de parentesco e

    0

    ritual para organizar

    e dominar tnlfico de escravos local ver Cap. 7). A exemplo dos aro, os iroqueses

    nao formavam um Estado, mas uma

    s s o c i ~ o

    baseada em f i l i ~ o e s de parentesco

    que se desenvolveu como

    r e ~ o

    a pressoes polfticas e economicas translocais.

    A continua base de parentesco da confederaC ao era a fonte de sua forC a e tambem

    de sua fraqueza. Vimos que as iroquesas detinham

    0

    direito de nomear os membros

    masculinos de suas matrilinhagens para o s i ~ o e s no Conselho, entre os onondaga. Essas

    posiC oes

    estavam associadas a cinqiienta titulos ou nomes que eram controlados pelos

    ramos maternos. E mportante notar que os conselheiros sempre foram grandes porta

    vozes dos interesses e sentimentos locais. Quando falavam no Conselho faziam-no nao

    em seu

    proprio nome, mas no interesse dos que eles .representavam com base no paren

    tesco. AconfederaC ao, portanto, nao

    era

    jamais um instrumento polftico monolitico.

    Ela funcionava sobretudo para reduzir os conftitos internos e as rixas entre conjunto

    de aldeias e obteve alguma u r i s d i ~ o em se tratando das negociaC oes com os embai

    xadores e agentes estrangeiros. Ela podia declarar guerra no interesse da confederaC ao

    como

    um

    todo, porem as decisoes Hnham de ser unanimes. Um caso em torno do qual

    houvesse desacordo tinha de ser posto de lado e resolvido pelas aC oes de uma ou outra

    aldeia. Muitas das atividades da confederaC ao eram cerimoniais, como os conselhos

    de condolencia, quando os conselheiros mortos eram pranteados e se nomeavam novos

    conselheiros.

    GraC as

    a esses rituais os titulos e a unidade do Conselho eram perpetu

    ados no plano ideologico, mesmo quando interesses divergentes passavam a dividir os

    representados em

    r e l ~ o

    a questoes economicas, sociais, polfticas e religiosas.

    As dissenC oes no Conselho aumentavam

    a

    medida que a guerra se intensifica

    va. Como observou Quain,

    quando a guerra, sob 0 estfmulo do contato europeu, tomou-se parte da rotina diaria, os Jfderes guerreiros

    transformavam a popularidade militar em uma vantagem poiftica que os beneficiava e assumiam 0 principal

    papel governamentaL 0 equilibrio do poder entre os caciques e os chefes guerreiros, que, anteriorruente,

    parece ter pes ado fortemente a favor dos primeiros, foi alterado de tal modo que os intuitos de cooperas;ilo

    do governo dos caciques deixaram de ser significativos 1937: 267).

    Em ultima

    analise nao

    existiu mecanismo algum que cancelasse uma dissiden

    cia real ou potencial. Assim eque as e l ~ o e s entre os mohawk, habitantes do Leste,

    2 2

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    o OMER IO

    E

    PELES

    e os seneca, do Oeste, eram freqiientemente tensas, a tal ponto que quase eclodiu

    uma guerra entre as duas

    nar.:cles

    em 1657. Os seneca e

    os

    onondaga muitas vezes

    se rejubilavam com os ataques dos franceses aos mohawk

    eestes

    por sua vez,abs

    tinham-se de ajudar

    os

    seneca e

    os

    cayuga em suas guerras contra os susquehanna.

    Ocasionalmente urn

    ou outro grupo de aldeias assinava com os representantes fran

    ceses e ingleses acordos em separado que nao inclufam as demais aldeias. S6 rara

    mente havia uma agao unificada por parte daconfederagao, e por esse motivo ela

    nao conseguiu formar uma frente comum que se dispusesse a romper 0 equilfbrio

    dos franceses, que lutavam contra os ingleses. Como observou Allen Trelease (1960:

    342), a dificuldade estava no fato de que os conselheiros nao tinham nem a deci

    sao nem poder de provocar coerentemente essa ruptura . A mesma incapacidade

    de formular e seguir uma polftica comum tamMm prejudicou os iroqueses durante a

    Revolu9ao Americana. Os mohawk e

    os

    onondaga dividiram-se internamente; alguns

    deram apoio aos rebeldes americanos e outros aos anti-separatistas pr6-ingleses. Os

    cayuga e os seneca foram a favor dos ingleses, enquanto os oneida e os tuscarora

    ajudaram os american os, apesar da declara9ao oficial de neutralidade.

    Convem portanto nao superenfatizar a unidade politica

    da

    confederagao iro

    quesa ou imputar-Ihe qualquer estrategia de monop6lio do comercio de peles. II

    claro que

    0

    acesso ao castor era de importancia primordial para

    os

    iroqueses, mas

    eles obtiveram esse acesso ou ocupando os territ6rios de caga de seus vizinhos ou

    se apoderando das peles coletadas e transportadas por outros, Embora despojassem

    os huron de seu papel de intermediarios no comercio de peles,

    os

    iroqueses foram

    incapazes de impedir a transferencia desse papel para

    os

    ottawa, vizinhos dos huron

    ao oeste. Seu potencial militar era consideravel, mas talvez nilo tivesse sido suficiente

    para frear uma invasao europeia caso

    os

    franceses e os ingleses nao compartilhassem

    urn interesse comum em permitir que os iroqueses desempenhassem 0 papel de urn

    amortecedor entre eles. Ao armar os iroqueses, os ingleses podiam impedir

    0

    acesso

    dos franceses aos ottawa e aos territ6rios

    e

    caga dos Grandes Lagos. Por sua vez,

    os

    franceses perceberam que era de seu interesse enfraquecer os iroqueses, mas

    nao ve-Ios inteiramente derrotados , como declarou

    0

    barao de Lahontan por volta

    de 1700 (cit. em Trelease, 1960: 246, n. 44). 0 relacionamento entre os franceses e

    os iroqueses era extremamente paradoxal na medida

    em

    que, embora

    os

    iroqueses

    constitufssem a maior ameaga economica e militar ao Canada, eram tambem 0 unico

    fator que impedia Albany de estabelecer

    urn

    relacionamento direto com

    os

    ottawa e

    assim, impossibilitar

    0

    comercio canadense de peles (Trelease, 1960: 246).

    Com efeito, se acaso tivesse sido aberto urn caminho direto entre Albany e 0

    Oeste, a Nova Franga poderia ter competido com Nova York. Os ingleses tinham

    a vantagem de contar com custos mais baixos no que se referia

    a

    manufatura e ao

    213

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    EUROPA

    E OS POVOS SEMHIST6R A

    despacho de mercadorias, taxas mais baixas de impostos, mercadoria de melhor qua

    lidade e aces so ao rum

    barato procedente das fndias Ocidentais.

    m

    1689

    eram

    ne

    cessarias cinco peles de castor para obter

    uma

    espingarda em Montreal, mas apenas

    uma delas para obter a mesma arma em Albany; duas peles de castor para conseguir

    urn cobertor vermelho ou branco em Montreal, mas apenas uma em Albany. Uma

    pele de castor vendida em Albany rendia seis litros de rum indfgena, ao pas so que

    em Montreal, com 0 produto da venda dessa mesma pele, nao se poderia comprar

    nem mesmo urn litro de conhaque (Trelease, 1960:

    217

    n. 27). 0 mesmo diferencial

    ainda se fazia notar no seculo XVIII, quando Cadwallader Colson 0 resumiu dizendo

    que os comerciantes de Nova York podem vender suas mercadorias nos territorios

    dos indios

    por

    metade do

    p r e ~ o

    que povo do Canada vende, e seu lucro e duas

    vezes maior (ver Washburn, 1964: 153). A p r e s e n ~ a dos iroqueses protegia assim 0

    comercio com 0 Oeste, apesar de eles serem habitualmente inimigos.

    Por outro lado, os iroqueses podiam jogar os franceses e os ingleses uns contra

    os outros. No entanto esse jogo diplomatico raramente ocorreu no nivel da confedera

    ~ a o . m vez dis so, alguns grupos apoiavam ora os franceses, ora os ingleses. Apenas

    os mohawk se mostraram coerentemente solidarios com a causa inglesa. Outros, como

    os seneca, chegaram a lutar pelos franceses no seculo

    XVIII

    e, apoiados por estes,

    tomaram parte do lev ante de Pontiac, direcionado contra os ingleses (1763-1764).

    Esses diferentes envolvimentos com os estrangeiros acabaram prejudicando a

    unidade dos iroqueses. A Guerra da Independencia jogou urn grupo contra outro. As

    f a c ~ 6 e s no interior de cada grupo, tambem opunham parentes entre si. Isso deixou

    a

    c o n f e d e r a ~ a o

    debilitada e dividida; ela prosseguiu em uma base cerimonial, mas,

    com a vitoria americana, perdeu suas principais

    f u n ~ e s

    militares e polfticas. Os

    iroqueses partidarios dos ingleses mudaram-se para Canada, onde seus descen

    dentes ainda vivem.

    A confederayao dos iroqueses revelou assim suas fraquezas essenciais. la foi

    capaz de dirimir os conflitos entre os grupos enquanto eles nao se tornavam insu

    peraveis. Revelou-se capaz de opor uns contra os outros os interesses das potencias

    estrangeiras rivais, juntamente com seus aliados indios, mas nao conseguiu desenvol

    ver

    uma

    estrategia conjunta diante do adversario dominante. Os layos que a ligavam

    eram os do parentesco e do cerimonial. Ao promover

    0

    ritual dos conselhos de con

    dolencia, a confederayao recorria ao padrao, difundido entre as tribos vizinhas, de

    comemorar a morte dos chefes e anunciar seus sucessores. Para os huron, a Festa

    dos Mortos atendia ao mesmo objetivo, colocando os participantes

    em uma

    relayao

    de alianya. Reencontraremos esse padrao entre. os ottawa e os grupos aliados. m

    casos

    como

    esse, a coesao

    era

    criada por mei.Qs rituais. 0 ritual podia engendrar

    layos polfticos viaveis enquanto os interesses polfticos atuassem

    em

    uma direyao

    214

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    15/42

    o COMERCIO E

    PELES

    comum. Nao podia, entretanto, fornecer a esses povos, envolvidos nas c o n t r a d i ~ o e s

    do comercio e da politica, quaisquer mecanismos que tornassem 0 consenso tempo

    nirio algo que os unisse. Sofisticados como eram em questoes ligadas ao conselho e

    a

    guerra, os iroqueses nao conseguiram criar urn Estado

    e

    ao competirem com en

    tidades politicamente mais centralizadas, viram-se em desvantagem.

    as

    Povos dos Grandes Lagos

    Embora jamais conseguissem monopolizar 0 comercio de peles a oeste do bai

    xo

    rio Sao L o u r e n ~ o os iroqueses exerceram enorme influencia sobre os povos que

    habitavam a regiao dos Grandes Lagos.

    Os

    huron que nao foram mortos U absorvi

    dos pelos iroqueses fugiram em

    d i r e ~ a o

    ao oeste. Os iroqueses tambem expulsaram

    de suas terras os potawatomi, os sauk,

    os

    fox os kickapoo, os mascouten e parte

    dos illinois, todos eles habit antes das pradarias e plantadores de milho. Esses povos

    foram deslocados da regiao do baixo Michigan e Ohio, ao norte do rio Ohio, para

    o lado ocidental do lago Michigan. Ali eles ingressaram no comercio de peles por

    meio e intermediarios potawatomi e ottawa, no posto comercial frances estabelecido

    em Green Bay em 1634. Nenhum desses povos era nativo daquela regiao, e nenhum

    deles, como se sugeriu, se fixou ali para se aproveitar basicamente da ocorrencia

    do

    arroz silvestre. 0 ima que os atraiu para Green Bay

    foi

    0

    comercio de peles;

    a f o r ~ a

    que os expulsou de seu habitat original foram os iroqueses (Wilson,

    1956).

    o

    papel de intermediarios, desempenhado pelos huron, passou sobretudo para

    os ottawa, assim denominados a partir do termo algonquino adave. Esse termo, fa

    miliar para muitos individuos de fala algonquina e de f i l i ~ o e s diversas, serviu de

    camuflagem para muitos grupos de fala algonquina que abandonaram suas proprias

    atividades de subsistencia em favor do comercio de peles, mudando-se para

    0 oeste

    em busca de territorios de c a ~ a e chegando em

    1660 a

    ongfnqua bafa de Chequame

    gon. Em

    1683,

    dois

    t e r ~ o s

    de todas as peles que chegaram aos franceses passaram

    pelas maos dos ottawa (Peckham,

    1970:

    6).

    Outros grupos tambem c o m e ~ a r a m a se deslocar para 0 oeste em busca das

    peles.

    J6

    em 1620, grupos de indivfduos de fala algonquina, que usavam nomes de

    animais como Urso ou Grou, c o m e ~ a r a m a convergir para 0 rio Sault Sainte Marie,

    que liga 0 lago Huron ao Superior por meio de cachoeiras. Os franceses chamavam

    essas cachoeiras de

    sault

    e os habitantes da regiiio,

    saulteursou salteaux.

    Essa re

    giiio era 0 ponto de encontro ideal para os comerciantes de peles, ja. que fornecia

    recursos alimentares abundantes e de facil aces so, tais como peixes. Em breveaos

    grupos de saulteur juntaram-se fugitivos dos iroqueses e contingentes de indivfduos

    215

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    16/42

    A EUROPA E S POVOS SEM HIST6RIA

    identificados de modo variavel como potawatomi, cree, algonquino e winnebago. Aos

    poucos

    0 termo

    saulteurs

    foi sendo substitufdo pelo nome de urn dos grupos locais,

    outchibous

    ou ojibwa.

    Essas fus6es e mudanr;as de identidade sao casos ilustrativos de urn processo

    mais geral desencadeado pela intensificar;ao do comercio de peles na regiao do Leste

    subartico. Pequenos grupos locais, com nomes localizados,

    deslocaram-se, a maioria deles em

    dire

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    17/42

    o COMERC1 DE PELES

    reproduzia, em cada aldeia,

    0

    poder da a s s o c i a ~ a o como urn todo. o mesmo tem

    po, mito fundador d associat;ao proclamava que ela havia side formada antes dos

    emblemas ou totens do grupo de descendencia e, assim, tinha priori dade sobre qual

    quer grupo de descendencia locaL A associat;ao baseava-se em uma graduat;ao, e os

    membros passavam de graus mais baixos a graus mais elevados e dos nfveis mais

    baixos aos nfveis mais altos do conhecimento sagrado mediante pagamento a indi

    viduos devidamente autorizados.

    A riqueza era assim urn pre-requisito para a promot;ao na associat;ao. A desig

    nat;ao para a liderant;a implicava e s f o r ~ o s bem-sucedidos na guerra e no comercio

    de peles. Alem do mais, a sociedade era translocaL Seus lfderes e sacerdotes eram

    ao mesmo tempo os portadores do mais elevado tipo de conhecimento sagrado e os

    arbitros das r e l a ~ o e s sociais e juridicas

    nag

    aldeias recem-implantadas. TamMm tra

    tavam com os forasteiros - comerciantes, funcionarios do governo e missiomrrios. Na

    esteira do comercio de peles, os sfmbolos caracterfsticos dos grupos de descendencia

    apoiavam-se assim no desenvolvimento de uma igreja translocal, fornecendo urn

    mecanismo para controle social e ideo16gico de grandes populat;oes agregadas que

    se reuniam durante os meses de inverno.

    A Expansao para Oeste

    Ate ultimo tert;o do seculo XVII as peles da America do Norte chegavam

    a

    Europa basicamente atraves das rotas dos rios Sao

    o u r e n ~ o

    e H u o ; ~ Em 1668,

    porem, abriu-se nova rota de comercio, dessa vez pelo norte, quando a The Governor

    and Company and Adventurers of England, que desenvolvia suas atividades comer

    ciais na baia de Hudson, construiu urn estuario no rio Rupert, que desagua na bafa

    de James. 0 forte passou a ser conhecido como Rupert's House, e a companhia como

    a Hudson Bay Company. Seguiram-se rapidamente outros postos, que atrafram

    os

    cree os assiniboin, de fala dos sioux. Num perfodo anterior eles estavam em guerra

    com os cree, mas agora se aliavam a eles contra seus pr6prios parentes, os yanktonai.

    A grande atrat;ao oferecida pela Hudson Bay Company eram as espingardas, sendo

    que mais de quatrocentas foram comerciadas anualmente entre

    1689

    e

    1694

    (Ray,

    1974: 13). Muito embora os armamentos fornecidos se revelassem inuteis depois de

    quebrar, sua posse conferiu aos cree e aos assinibon uma vantagem declarada sobre

    seus competidores, os sioux dakota ao sui,

    os

    gros ventres e

    os

    blackfoot a sudoeste

    e os grupos de fala atabasca ao norte.

    Os franceses, que agora receavam ser vftimas de urn cerco, procedente nao

    s6

    d

    baia de Hudson como tambem de Nova York e da Nova Inglaterra,iniciaram

    217

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    18/42

    EUROP E OS POVOS SEMHIsr RIA

    uma guerra feroz pel a posse dos fortes situados

    ao

    longo da baia e tentaram jogar

    os dakota contra os postos de comercio ingleses. Em

    1713

    porem 0 Tratado de

    Utrecht concedeu a baia Inglaterra. Equipados com armamento ingles os cree e

    os assiniboin aumentaram sua pressao sobre os dakota. Os franceses por sua vez

    c o m e ~ a r a m

    a abrir postos de comercio e miss5es religiosas no oeste e a estabelecer

    contatos diretos com as

    p o p u l a ~ 5 e s

    indigenas dos novos territ6rios de

    c a ~ a

    numa

    tentativa de contrapor-se ao a v a n ~ o da Hudson Bay Company ao norte bern como

    o v i m e n t a ~ a o dos comerciantes da colonia de Louisiana ao suI. Assim agindo os

    franceses simples mente despertaram as suspeitas dos ojibwa de que estavam pres

    tes a perder seu papel de intermedilirios para os dakota. Os ojibwa inc1uindo os de

    Chequamegon uniram-se aos assiniboin e aos cree em uma guerra sanguinolenta

    contra os dakota expulsando-os das regi5es que ocupavam em Minnesota e no Norte

    de Wisconsin. Os cree e os assiniboin por sua vez expandiram-se no territ6rio dos

    atabasca chegando ao rio Churchill ate que a abertura do Forte Churchill em 1717

    possibilitou a estes liltimos

    0

    acesso a armas pr6prias.

    Os conflitos entre os dakota e os ojibwa cree e assiniboin nao eram simplesmen

    te disputas entre povos indigenas mas uma

    m a n i f e s t a ~ a o

    norte-americana do conflito

    global entre a r a n ~ a e a Inglaterra. Na India a Companhia das Indias Orientais fran

    cesa e a Companhia das Indias Orientais inglesa travavam uma guerra nao-dec1arada

    ate que a i r r u p ~ o da Guerra dos Sete Anos em 1756 acarretou urn confronto direto

    entre as duas potencias e seus aliados. 0 Tratado de Utrecht garantia Inglaterra a

    posse da baia de Hudson mas no intervalo entre

    1713

    e 1756 os franceses haviam

    fortalecido

    i>ua

    p o s i ~ a o solidificando a 1 i a n ~ a s com grupos indigenas fundando Nova

    Orleans para abrir 0 rio Mississipi a v e g a ~ a o pelo mar e construindo 0 Forte Du

    quesne em Pittsburgh a fim de consolidar 0 seu dominio sobre Ohio. A tentativa dos

    ingleses em

    1775

    de tomar 0 forte fracassou totalmente. Durante

    s

    sete anos de

    guerra que se seguiram os ingleses derrotaram decisivamente

    os

    franceses em tres

    continentes. Na India Clive pos os franceses e seus ali ados em debandada em 1757.

    No ana seguinte os ingleses se apoderaram do Forte Duquesne mudando seu nome

    para Forte Pitt em homenagem ao primeiro-ministro ingles. Em 1759 a marinha in

    glesa causou pesados danos marinha frances a

    ao

    largo do litoral da F r a n ~ a . Em

    1760 os ingleses tomaram a cidade de Quebec. Com 0 Tratado de Utrecht em

    1763

    a

    F r a n ~ a entregou 0 Canada aos ingleses e a regiao do alto Missouri aos espanh6is.

    Mudanfas no Comercio de Peles

    Ao longo da segunda metade do seculo XVIII 0 comercio de peles difundiu-se

    na regiao drenada de Saskatchewan. Isso acarretou uma serie de m u d a n ~ a s todas elas

    218

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    19/42

    o COMERCIO E PELES

    interligadas. Houve uma modificas;ao da logistica do comercio e em conseqiiencia,

    mudans;as na estrutura intern a dos grupos indfgenas nele envolvidos e m u d a n ~ a s no

    relacionamento entre comerciantes e

    c a ~ a d o r e s

    Antes dessa epoca, as rot as

    do

    co

    mercio de peles haviam seguido as linhas naturais de penetras;ao, partindo do litoral

    leste ate os rios, ao longo das cadeias de lagos e atravessando os mares interiores.

    Os

    principais fortes e entrepostos comerciais foram implantados nas cabeceiras dessas

    rotas mariti mas ou ftuviais. Agora se faziam esfors;os no sentido de abrir certas rotas

    que ultrapassassem a linha divis6ria situada entre as regioes drenadas do Atlantico

    e

    do

    Pacifico. Essas tentativas tambem deixaram para tnis as bases de suprimento

    do baixo rio Sao

    L o u r e n ~ o

    bern como os territorios de pesca e as areas onde se cul

    tivava milho, nas margens dos Grandes Lagos, para penetrar em uma regiao que

    exigia novos meios de transporte.

    Juntamente com essas novas exigencias ecologicas, houve m u d a n ~ a s na organ -

    z a ~ a o do comercio. Ate meados

    do

    seculo XVIII, as companhias de comercio haviam

    se contentado, no que dizia respeito a entrega das peles, em apoiar-se na cooperas;ao

    dos intermediarios indfgenas. Essa cooperas;ao, entretanto, satisfazia somente em

    parte as necessidades das companhias, pois enquanto os grupos de intermedhirios

    fossem aut6nomos as companhias poderiam exercer apenas urn controle marginal

    sobre suas relas;oes politicas e sociais, incluindo suas

    alianSfas

    e conflitos. As com

    pan hi as procuravam assim descartar-se dos intermediarios, estabelecendo contato

    direto com produtor basieo, isto e os caSfadores e coletores de peles. Assim, os

    comerciantes penetraram cada vez mais diretamente no interior para controlar

    for-

    necimento de peles em sua fonte.

    Revolta

    e

    Pontiac

    Essas mudans;as no comercio, coincidindo com a Guerra Franco-inglesa, re

    sultaram em uma grande rebeliiio indfgena, a revolta de Pontiac, em

    1763.

    Pontiac

    era urn indio ottawa, membro

    do

    principal grupo de intermediarios da regiao dos

    Grandes Lagos. Em meados do seculo XVIII os ottawa passaram a depender enor

    memente dos comerciantes europeus, tendo em vista 0 prosseguimento de seu papel

    como intermediarios e fornecimento das manufaturas europeias. Ao mesmo tempo,

    a

    penetraSfao

    direta

    do

    interior pelos comerciantes de pele europeus estava

    ameaSfan-

    do

    sua posiSfao privilegiada. Tornava-se cada vez mais claro que os europeus tinham

    chegado para ficar, nao mais como hospedes dos indfgenas, mas como moradores

    permanentes, prontos para apoderar-se da morada inteira. Esse dilema , dependen

    cia em r e l a ~ a o aos pr6prios agentes que tambem estavam minando suas possibili

    dades de sobrevivencia, produziu vigorosas correntes

    e

    resistencia ideo16gica entre

    219

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    20/42

    A EUROPA E OS POVOS SEM

    HlST RlA

    os p V S

    indigenas das regioes de floresta do Leste. Profetas pregavam a reforma

    moral, juntamente com apelos para expulsar os colonizadores intrusos. 0 levante de

    Pontiac foi

    ao

    mesmo tempo uma

    r e a ~ a o

    mfstica a mensagem do Senhor da Vida e

    uma

    e a ~ a o

    militar a decisao dos ingleses de que os ottawa, dali por diante, teriam de

    sustentar suas farrn1ias por meio de 'urn meio industrioso de vida', sem qualquer outra

    assistencia (Jacobs, 1972: 81; ver tambem Peckham, 1970; Wallace, 1970: 120-121).

    Arevolta aderiram os shawnee, os ojibwas, os huron, os miami, os potawatomi e os

    seneca. Apos os triunfos iniciais, 0 movimento fracas sou quando os rebeldes nao con

    seguiram apoderar-se dos principais fortes ingleses em Detroit, Niagara e Pittsburgh.

    Insuficientemente abastecidos de armas e

    m u n i ~ a o

    abandonados pelos franceses, que

    celebraram uma paz

    em

    separado com a Inglaterra naquele ano,

    os

    rebeldes se viram

    as voltas com dissidencias e d e f e c ~ 6 e s internas

    Os Atabascas o Noroeste

    Enquanto grupos de intermediarios estavam sendo exc1uidos de seu papel estra

    tegico no comercio de peles, novas

    p o p u l a ~ 6 e s

    que moravam a oeste da baia de Hu

    dson ingressaram diretamente nesse comercio. Os comerciantes de peles contataram

    os

    chipeweyan, de fala atabasca, entre

    0

    Forte Churchill e os lagos Great Slave e

    Atabasca. Os bandos de chipeweyan, agora armados com espingardas,

    c o m e ~ a r a m

    a expulsar as

    n a ~ 6 e s

    beaver e slave da regiao

    do

    lago Atabasca e

    do

    rio Slave e a

    apoderar-se das peles dos yellowknife e dos dogrib, que habitavam ao norte. Houve

    tambem atritos entre os chipeweyan e

    os

    cree da floresta, ao

    suI

    e a leste. Os cree,

    que atuavam anteriormente como intermediarios, agora perdiam essa o s i ~ a o . Alguns

    bandos de cree e assiniboin aos poucos mudaram-se para a regiao limitrofe entre a

    floresta suba.rtica e a pradaria, onde c o m e ~ a r a m a c a ~ a r

    0

    bisao. Adquiriram cavalos

    ap6s

    1730

    e desde entao tornaram-se pastores amplamente especializados.

    Os comerciantes de peles tentavam agora levar 0 comercio ate os

    c a ~ a d o r e s ,

    em

    vez de deixa-los adotar a atitude contraria. As exigencias de pescar e

    c a ~ a r 0

    caribu

    entravam em conflito com a tarefa de aprisionar castores. Em vista disso, os comer

    ciantes de pele tentaram cada vez mais transformar os comedores de caribu em

    carregadores

    d i s t i n ~ o e s

    estabelecidas pelos chipeweyan), fornecendo em adianta

    mento alimentos, armas e

    m u n i ~ o e s

    armadilhas, roupa, cobertores, bebidas a1co6li

    cas e fumo aos chefes e aos indivfduos. Durante

    0

    seculo XVIII

    0

    fornecimento de

    determinados generos, como a farinha,

    0

    toicinho e

    0

    cM, levou a urn declfnio das

    atividades autonomas de

    c a ~ a

    das

    p o p u l a ~ 6 e s

    que se dedicavam ao apresamento de

    animais de pele. medida que as pessoas

    c o m e ~ a r a m

    a depender cada vez menos da

    c a ~ a ao caribu em larga escala e a pesca em grupo,

    0

    grande homem a quem todos

    22

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    21/42

    o COMERCIO

    E

    PELES

    nos seguimos , que organizava os grandes bandos de c ~ ao caribu, perdeu sua fun

    ~ a o . Agora os comerciantes de pele contratavam

    c ~ d o r e s

    para fornecer carne a seus

    fortes ou tratavam com chefes comerciantes , que

    tinh m

    l c n ~ d o certo grau de

    infiuencia sobre seus seguidores, recorrendo a adiantamentos em equipamentos de cava

    e alimentos, ambos fornecidos pelos entrepostos comerciais. Alguns grupos baseados

    no parentesco c o m e ~ r m a c ~ r e a comerciar por conta propria, sobretudo quando

    a c o m p e t i ~ o entre os comerciantes de peles multiplicou 0 mimero de chefesansiosos

    por estabelecer a l i a n ~ a s com eles, bern como

    0

    confiito entre esses chefes. Assim,

    0

    relacionamento entre

    0

    comerciante e

    0

    c ~ d o r de peles tornou-se individualizado,

    favorecendo a o r m ~ o de pequenos bandos baseados em pares conjugais interligados,

    em detrimento dos grandes agregados de c ~ d o r e s das epocasanteriores.

    Novas Companhias

    Em 1797 a Hudson Bay Company enfrentou urn novo competidor: a Northwest

    Company, patrocinada para remover de Albany os mercadores de pele que haviam per

    manecido leais

    a

    Coroa inglesa durante a Guerra da Independencia. Ela se constituiu

    a partir

    d

    experiencia adquirida pelos comerciantes de peles franceses e empregou

    sobretudo voyageurs franco-canadenses e veteranos de guerra escoceses que haviam

    lutado por ocasiao da conquista inglesa do Canada ou da luta contra os americanos.

    A nova companhia promoveu a

    e x p l o r ~ o

    e

    0

    comercio com grande vigor em todos

    os lagos e varadouros situ ados nas regioes que se estendiam ate as Montanhas Ro

    chosas e para alem delas. Seus homens foram muitas vezes os primeiros europeus a

    pisar

    os

    novos territorios do interior do Noroeste.

    A expansao para

    0

    oeste das duas companhias baseadas no Canada a t i ~ o u a

    c o m p e t i ~ o

    dos americanos, que queriam garantir

    0

    controle do continente para a

    republica recem-formada. Em 1803 os Estados Unidos adquiriram

    0

    territorio da Lou

    isiana, e em 1804-1806 Lewis e Clark exploraram 0 Oeste no interesse do Congresso

    americano. Em 1808 John Jacob Astor incorporou a Companhia Americana de Peles

    com a p r o v ~ o tacita do presidente Jefferson, e em 1811 a companhia construiu

    0

    Forte Astoria na foz do rio Columbia. Embora Astoria caisse nas maos dos ingleses

    dali a dois anos, a American Fur Company conseguiu desalojar as companhias fran

    cesas mais anti gas que operavam fora de Saint Louis e competir com exito com as

    companhias canadenses ate falir em 1842.

    Viajantes. Em f r a n c ~ s no original N. do T.).

    221

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    A EUROP E OS POVOS SEM

    HIST RIA

    Os Pastores Eqiiestres das Planicies

    Em todas as regioes a oeste dos Grandes Lagos os comerciantes de peles

    apoiaram-se cada vez mais, no que se referia aos alimentos, na carne que Ihes era

    fornecida pelos c ~ d o r e s de bUfalos das planicies, que c ~ v m montados em ca

    valos. 0 desenvolvimento do pastoreio eqiiestre nessa regiao foi urn acontecimento

    hist6rico recente, em seguimento a n t r o d u ~ o do cavalo pelos espanh6is durante a

    conquista do Mexico, em

    1519.

    Os primeiros indfgenas a montar cavalos foram os

    chichimecas coletores de alimentos das fronteiras setentrionais da Nova Espanha,

    que oscapturavam ou roubavam dos postos v n ~ d o s espanh6is. Sucessivos povos

    obtiveram entao cavalos, usando-os para atacar vizinhos mais fracos, aprisionando

    os e vendendo-os como escravos para os franceses e espanh6is.

    Os

    apaches adquiriram cavalos dos chichimecas por volta de

    1630;

    os ute e os

    comanches obtiveram-nos dos apaches em torno de

    1700.

    Os shoshoni orientais

    do

    Leste

    de Montana e Wyoming, inc1uindo os snakes, adquiriram montarias no primeiro

    t e r ~ o

    do seculo XVIII; em breve os snake se tornariam os principais traficantes de cavalos e

    os

    lfderes de aprisionamento de escravos nas planfcies setentrionais. Os shoshoni, por

    sua vez, forneciam cavalos aos blackfoot. Outra rota da difusao

    do

    cavalo se dirigia para

    o nordeste. Os comanches, por volta de 1730 os forneceram aos kiowa, que habitavam

    mais ao norte. Os kiowa foram provavelmente a principal fonte de abastecimento de

    cavalos para os pawnee, arikara, hidatsa e mandan, que se dedicavam

    a

    horticultura.

    o cavalo dotou seus novos proprietarios de maior capacidade militar. Melho

    rou tambem sua capacidade de

    c ~ r

    bUfalo e de transportar equipamentos e pro

    visoes. A maior mobilidade, por sua vez, permitiu maior envolvimento nas

    redesde

    comercio que se alargavam, e em breve comercio permitiu acesso a uma nova

    fonte militar, a espingarda.

    Os primeiros indfgenas a combinar a caval aria com emprego das armas foram

    os dakota. Conforme vimos, os dakota tin ham sido horticultores e c ~ d o r e s pedestres

    nas fiorestas e pradarias que se estendiam a oeste

    do

    Lago Superior ate 1730 quando

    tiveram de enfrentar v n ~ o dos cree, assiniboin e ojibwa, abastecidos com armas

    fornecidas pela Hudson Bay Company. Os dakota, por sua vez, obtiveram armas dos

    franceses, que queriam refrear os aliados dos ingleses. Ainda

    ape

    eles usaram es

    sas armas para repelir ataques vindos do norte, deslocar outros povos, tais como os

    cheyenne, e atacar as aldeias que praticavam a horticultura, situadas ao longo do rio

    Missouri, para aprisionar seus habitantes e vende-Ios como escravos para os europeus.

    Estes, entretanto, que haviam adquirido cavalos dos kiowa,

    l n ~ r m

    sua cavalaria

    sobre os dakota, ate que eles conseguiram obter cavalos dos arikara, por volta de

    1750.

    Em 1775 os dakotas

    ja

    eram os senhores das planfcies do Nordeste e se distin-

    222

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    o

    OMER IO

    E

    P L S

    guiam por ser cavaleiros e detentores de armas. Realizaram t r a n s a ~ 6 e s comerciais

    diretas com os mercadores europeus de Saint Louis superando assim os mandans

    que haviam a ~ a m b a r c a d o boa parte do comercio realizado entre as planicies e as ci

    dades do rio Mississippi. Os dakota derrotaram os cheyenne isolaram os kiowa dos

    arikara e interromperam os contatos entre os

    crowe

    os mandan.

    Nas planicies do Noroeste um papel semelhante passou a ser desempenhado

    pelos blackfoot. Coletores de alimentos que haviam sido expelidos de seu antigo

    ha-

    bitat a leste da bafa de Hudson pelo

    a v a n ~ o

    dos cree e dos assiniboin os blackfoot

    obtiveram cavalos por volta de 1730 e armas na segunda metade do seculo XVIII.

    Em breve conseguiram superar seus antigos competidores os snake bem como os

    kutenai e os flathead nenhum dos quais tinha acesso a armas.

    o advento do cavalo nao s6 alterou os padr5es militares e aumentou a mobili

    dade; permitiu tambem um acesso muito mais eficaz ao bUfalo que agora podia ser

    c a ~ a d o em grande mimero nos arredores das tribos. A a t r a ~ a o exercida pela nova

    vida levou muitos povos a se tornarem c a ~ a d o r e s de bUfalos em periodo integral. Os

    horticultores marginais abandonaram suas

    p l a n t a ~ e s ;

    alguns exemplos sao os gros

    ventre os dakota os cheyenne e os arapaho. Em outros exemplos grupos dissidentes

    separaram-se de povos horticultores como fizeram os crow um ramo dos hidatsa.

    Mesmo as aldeias que se dedicavam permanentemente ahorticultura situadas

    ao

    longo dos rios Missouri e Platte e habitadas pelos mandan arikara hidatsa e pawnee

    sentiram impacto dessas novas oportunidades. Essas grandes aldeias baseavam-se no

    cultivo do milho praticado pelas mulheres em terras de posse das matrilinhagens. Os

    homens faziam a guerra e a ~ a v a m mas 0 plantio e 0 ritual da horticultura dominavam

    o ciclo anual que incluia a

    c a ~ a

    anual ao bisao. As matrilinhagens estavam estratifi

    cadas em famflias de elite e de plebeus. Uma linhagem fornecia chefe

    d

    aldeia e

    outra 0 lider cerimonial.

    0

    chefe da aldeia mantinha a ordem e controlava a guerra; 0

    Hder

    cerimonial juntamente com outros membros da elite cuidava dos fardos sagrados

    das matrilinhagens mantendo-os em uma cabana que ocupava um lugar central em

    cada aldeia. A elite retirava excedentes da horticultura altamente produtiva; tambem

    recebia presentes oferecidos durante as cerimonias taxas pagas para a admissao nas

    a s s o c i a ~ e s de homens hierarquicamente estruturadas e bens dos coletores de alimen

    tos vizinhos em troca de produtos horticolas. A riqueza assim obtida era redistribufda

    de acordo com status dos receptores. A o n f i g u r a ~ a o geral parece ter-se baseado no

    modo de parentesco. Embora a

    r e d i s t r i b u i ~ a o

    se baseasse no parentescoe na partici

    p a ~ a o cerimonial e possivel que ela estivesse assumindo caracteristicas tributarias

    a

    medida que a elite c o m e ~ o u a usar os excedentes de milho para efetuar trocas cada

    vez maiores com os assiniboin - estes comerciavam armas de fogo e manufaturas ob

    tidas da Hudson Bay Company - e com os comerciantes europeus.

    3

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    EUROP E OS POVOS SEMHISr RIA

    Mulher nez perce preparando

    pa

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    o COMERC o

    E

    P L S

    As novas oportunidades para urn empreendimento individual oferecidas pela

    ca9a ao bisao tiveram 0 efeitode questionar 0 controle da elite sobre a guerra, as

    atividades associativas e a aquisi9ao dos poderes sobrenaturais. Amedidaque os jo

    yens guerreiros ou rapazes tentavam ca9ar, comerciar e fazer a guerra por conta

    pr6pria, eles come9aram a desafiar a autoridade dos lfderes de suas aldeias. Assim e

    que, quando membros da ala jovem da Sociedade dos Caes, pertencente aos pawnee,

    roubaram carne sagrada enquanto policiavam a aldeia, eles defenderam sua atitude

    dizendo que haviam estado no Oeste, onde todas as pessoas a compartilhavam (Hol

    der, 1970: 133). Entre os arikara, rapazes maus , que tomaram 0 partido dos sioux,

    tiveram de ser expulsos (Holder, 1970: 129).

    o

    mais importante de tudo e que 0 aumento dacapacidade de matar bUfalos

    forneceu urn novo artigo de grande imporHincia para 0 comercio com os europeus.

    Quando 0 comercio de peles se expandiu na bacia do rio Mackenzie, na segunda meta

    de do seculo XVIII, os comerciantes de peles puderam obter nova fontes de alimentos

    dos pastores equestres. Tratava-se da pa90ca, carne de bisao cortada em fatias, seca

    ao sol ou ao fogo, pilada e misturada com gordura derretida, tutano e uma pasta de

    cerejas silvestres secas. A mistura era embrulhada em sacos de couro que pesavam

    cerca de 45 quilos. Avaliou-se que urn viajante, ao participar do comercio de peles, ne

    cessitava de uma media de 750 gramas de pa90ca por dia; assim, cada saco era capaz

    de fornecer alimento a urn viajante frances durante sessenta dias (Merriman, 1926:

    5 7). Em

    1813

    a Northwest Company precisou de cerca de 29 mil quilos de pa90ca

    ou

    6

    sacos para abastecer suas 219 canoas (Ray, 1974: 130, 132). Os nomades das

    planfcies tornaram-se os principais fornecedores de pa90ca para os postos da Regiao

    das Florestas, do Territ6rio das Charnecas e dos povos ribeirinhos dos rios Churchill,

    Columbia e Fraser. Tambem come9aram a fornecer-Ihes cavalos, necessarios para 0

    transporte no territ6rio setentrional que se estendia para alem do ancoradouro das

    canoas,

    em

    Forte Edmonton.

    0

    bufalo tambem ofere cia outros produtos. Desenvol

    veu-se urn animado comercio com Saint Louis

    em

    torno de lingua e sebo de bUfalo

    e, a medida que 0 castor teve sua importancia diminufda ap6s 0 primeiro quartel do

    seculo XIX, mantas de couro de bufalo tornaram-se artigo de grande importancia

    no comercio de peles. Entre

    1841

    e 1870, 20 mil mantas foram recolhidas ao Forte

    Benton apenas na regiiio dos indios blackfoot (Lewis, 1942: 29),

    Assim, a combina9iio do cavalo e das armas, no contexte das rela90es de co

    mercio em extpansao, compos 0 cenario para a emergencia

    da

    configura9iio dos in

    dios das planfcies durante alguns breves anos. Essa configura9ao foi adotada sem

    demora por ca9adores, coletores e agricultores que nao dispunham de cavalos. Alem

    do mais, essas divers as popula90es passaram a assemelhar-se umas as outras social

    e culturalmente, a despeito de suas variadas origens. Alguns dos motivos dessa con-

    5

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    26/42

    EUROP E OS POVOSS M HISTORI

    vergencia eram inerentes

    ao

    novo modo de

    adaptar;;:ao

    ecologica. As manadas de bisao

    dispersavam-se durante 0 inverno, deslocando-se em pequenos grupos para abrigar-se

    nas montanhas; na primavera os animais voltavam para as planicies onde

    0

    capim

    abundava, juntando-se novamente em grandes manadas durante a estar;;:ao

    do

    acasa

    lamento, em julho e agosto. A car;;:a ao bisao tinha de acomodar-se a esse ritmo. As

    pessoas dispersavam-se em pequenos bandos ou grupos familiares durante 0 inver

    no e depois voltavam a reunir-se para 0 grande encontro anual do veriio. Os lugares

    onde se acampava tambem tinham de ser escolhidos para satisfazer as necessidades

    de pastagem e

    proter;;:ao

    das manadas de cavalos.

    Outros motivos do desenvolvimento convergente da cultura das planicies de

    rivavam dos requisitos apresentados pelos grandes bandos que tinham de unir-se e

    manter-se juntos no que se referia a

    ar;;:a

    e aguerra, embora mantendo a flexibilida

    de, ao se adaptarem a solicitar;;:oes sazonais e cambiantes. 0 grande encontro anual

    exigia que grupos i s p e r s ~ s e freqiientemente distintos se unissem em um acampa

    mento circular e comum. Em resposta a essa

    requisir;;:ao

    os pastores eqiiestres recor

    reram a formas organizativas com funr;;:oes centrfpetas, adotadas pelos horticultores

    sedentarios e vizinhos como os mandan e os pawnee. Entre essas formas estavam

    as confrarias masculinas, que serviam de elubes de

    danr;;:a

    associar;;:oes militares e a

    polfcia do bUfalo , que coordenava a

    car;;:a

    anual ao bisao. Outro mecanismo unifi

    cador estava no uso de sfmbolos que podiam unir os diferentes bandos, como pa

    cote medicinal e tribal dos pawnee, as flechas sagradas dos cheyenne e 0 cachimbo

    e rod sagrada dos arapaho. De particular importilncia a esse respeito era a grande

    cerimonia anual da Danr;;:a do Sol, que se originou de

    nar;;:oes

    anteriormente formadas

    por horticultores, como a dos arapaho, cheyenne e dakota. Determinados elementos

    desse ritual tem prototipos ou analogias entre os mandan, arikara e pawnee, mas,

    em sua ador;;:ao pelos pastores eqiiestres, as funr;;:oes unificadoras do ritual coletivo

    se combinaram com 0 padrao de estruturar;;:ao do merito individuaL Usualmente esse

    acontecimento se realizava em

    conjunr;;:ao

    com a

    car;;:ada

    anual ao bisao. Centraliza

    va-se na autotortura individual, mas invocava uma promessa de renova9ao do mundo

    para todos. Esse novo cerimonial espalhou-se das planfcies do Nordeste por virtual

    mente todos os povos que se deslocaram para as planfcies.

    Enquanto nas aldeias a terra, os privilegios e os pacotes medicinais eram de

    propriedade das matrilinhagens ou elas, nas planfcies as unidades corporativas de

    parentesco ficaram atenuadas ou desapareceram. A propriedade dos meios de pro

    dU9ao

    como os cavalos e as armas, bem como 0 direito 't0s pacotes medicinais, aos

    dl.nticos, dan9as e nomes, foi individualizada. A terminologia do parentesco, asso

    d d a linhas de descendencia, deu lugar a uma enfase mais bilateral, encarecendo

    a filia9ao atraves de ambos os pais de um indivfduo. Alem do mais, a aplica9ao de

    226

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    27/42

    o COMERC o

    E PELES

    termos que design am

    0 rm o

    a pessoas que niio

    eram

    parentes fortaleceu a unidade

    igualitaria do setor dos guerreiros a expensas

    da

    unidade das linhas

    de

    descendencia.

    Nas aldeias, a lideran{:a havia sido a prerrogativa hereditaria das famflias

    de

    elite,

    que exigiam obediencia de toda a popula{:ao da aldeia. Entre os pastores eqtiestres,

    porem, a lideran{:a passou a depender basicamente dos exitos obtidos na guerra e no

    comercio. 0 lfder recebia agora seu principal apoio mais do seu proprio banda do

    que do conjunto

    da

    tribo. Assim, embora recorresse a elementos centrfpetos das al

    deias que praticavam a horticultura, a configura{:iio das planicies tambem afrouxou

    os

    la{:os

    do parentesco e

    da

    autoridade.

    A descentraliza{:iio

    da

    tomada de decisoes e

    0

    aumento

    da

    mobilidade, nas pla

    nicies, dos grupos mont ados tambem teve suas raizes nos requisitos de urn comercio

    em

    expansao. A fim

    de

    obter mais armas e muni{:iio, panelas e artefatos

    de

    metal,

    roup as de

    Iii

    fumo e bebidas alcoolicas, os pastores eqiiestres tiveram de conseguir

    mais pa{:oca e cavalos para os vender aos comerciantes

    de

    peles. Houve assim

    uma

    demanda crescente

    de

    cavalos e urn aumento concomitante do apresamento e do rou

    bo de cavalos, 0 que, por sua vez, intensificou a necessidade da posse desses animais

    para usa-los

    na of

    ens va e na defensiva. Aumentou

    0

    mlmero de cavalos que deveriam

    compor urn dote matrimonial, elevando assim a demanda desses animais, ja que 0

    acesso a eles permitia aos homens adquirir mais esposas e, portanto, aumentar a for

    {:a

    de trabalho no preparo

    da

    pa{:oca.

    Quanto maior a quantidade

    de

    pa{:oca que urn homem pudesse encaminhar

    para 0

    comercio, maior

    sua

    capacidade de adquirir as armas e implementos neces

    sarios para equipar

    uma

    expedi{:ao guerreira, e igualmente maior sua capacidade

    de

    liberar seus parentes e dependentes do sexo masculino para a guerra. Assim,

    os empreendedores e chefes mais bem-sucedidos - os que tin

    ham

    liga{:oes

    com

    os

    postos de comercio - tambem se

    tornaram

    lfderes guerreiros muito considerados.

    o

    resultado foi

    uma

    concentra{:ao

    de

    cavalos e de bens valiosos nas maos dos que

    eram

    ricos e bem-sucedidos, produzindo

    uma

    diferenciac.;ao entre os mais ricos e os

    mais pobres, entre os chefes e seus dependentes. 0 modo

    de

    alcan{:ar

    uma

    posic.;ao

    social era algo que

    exigia

    uma distribui{:ao generosa da riqueza; 0 pagamento de

    taxas para ingresso e promo{:ao

    na

    associa{:ao,

    0

    pagamento dos pacotes medicinais

    e de prerrogativas quanto i dan{:a e despesas

    com 0

    dote

    da

    noiva o acesso aos

    cavalos e as armas significavam,

    em

    ultima analise, sucesso nas rela{:oes sociais

    e sobrenaturais. Mesmo

    0

    desenvolvimento de associa{:oes

    entre

    os blackfoot, os

    arapaho e os gros ventre pode nao ter sido

    0

    result ado do recurso a antigos ele

    mentos das tribos das aldeias. Esse fato provavelmente ocorreu tarde,

    por

    volta de

    1830. A associa{:ao propiciou urn mecanismo ideal para expressar e canalizar a

    mobilidade vertical que sobreveio

    com

    0

    aumento

    d.a

    riqueza (Lewis, 1942: 42).

    227

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    28/42

    A EUROPA E

    OS

    POVOS

    S M

    HIST6R1A

    Os Mestir :os do Rio Vermelho

    Os indios das planicies nao mantiveram durante muito tempo a sua posi9aO de

    fornecedores de

    p a ~ o c a

    para comercio de peles e nem a sua

    a d a p t a ~ a o a

    ecologia

    foi exelusiva dos indigenas em geral. No inicio do seculo XIX imigrantes escoceses

    estabeleceram-se na

    regUio

    do rio Vermelho em Manitoba e em breve voltaram-se

    para a ca9a com a finalidade de complementar uma agricultura precaria. Juntaram

    se

    aeles os

    chamados mesti90s cruzamento de europeus com indios muitos dos

    quais foram deslocados enquanto c a ~ a d o r e s e intermediarios na r a c i o n a l i z a ~ a o do

    comercio de peles bern como entre os band os de indios cree e ojibwa. Quando a

    Northwest Company procurou equipar suas brigadas de Saskatchewan e Atabasca

    estas se voltaram para os c a ~ a d o r e s da regiao do rio Vermelho como fornecedores de

    p a ~ o c a

    Ao

    longo do rio Vermelho surgiu portanto urn cielo de atividadesque nao

    deixava de assemelhar-se ao dos habitantes das aldeias de Missouri. Os povos do rio

    Vermelho viviam em aldeamentos estaveis em cabanas de madeira pr6ximas

    as suas

    p l a n t a ~ 6 e s

    durante a maior parte do ano recebendo adiantamentos das companhias.

    Na epoca das

    c a ~ a d a s

    mudavam-se para tendas perseguiam bUfalo e transportavam

    seus despojos em

    c a r r o ~ a s

    de duas rodas capazes deconter 450 quilos de carne desse

    animal. Ocasionalmente lutavam contra os dakota. Durante uma

    c a ~ a d a

    que durou

    dois meses em 1840 os m e s t i ~ o s do rio Vermelho obtiveram quase 5 mil quilos

    de carne de bllfalo. Essa carne foi vend ida

    a

    Northwest Company para saldar divi

    das e comprar objetos necessarios as familias. No entanto muitos

    c a ~ a d o r e s

    tiveram

    de c a ~ a r uma segunda ou terceira vez naquele ano para obter carne sufieiente para

    alimentar suas pr6prias familias durante inverno. Quando 0 governo canadense

    concedeu reservas aos grupos indfgenas e aos seminativos filiados a esses grupos

    os

    m e s t i ~ o s foram .exelufdos. Sua

    i n s a t i s f a ~ a o

    resultou em duas grandes rebeli6es

    em

    1869

    e

    1885

    sob a

    l i d e r a n ~ a

    de Louis

    RieL

    o

    Litoral do Noroeste

    No ultimo quarteldo seculo XVIII abriu-se uma nova fronteira para

    come r-

    eio de peles

    no

    litoral noroeste da America do Norte. Os navios do capitao Cook

    o

    Resolution

    e 0

    Discovery

    fundearam em 1778

    no

    estreito de Nootka onde foram

    adquiridas varias peles de lontra marinha.

    Ao

    serem vendidasna China as melhores

    peles a c a n ~ a r a m 120

    d61ares.

    As notfeias desse fato se espalharam e em 1792 havia

    21

    e m b a r c a ~ 6 e s europeias empenhadas em obter mais peles de lontra marinha. 0

    comercio maritimo atingiu 0 apogeu entre 1792 e 1812. Logo ap6s 0 seu infcio os

    228

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

    29/42

    o

    OMER IO E

    PELES

    comerciantes de peleda Northwest Company chegaram por terra ao litoral, e 0

    p r ~

    meiro posto de comercio de peles a oeste das Montanhas Rochosas foi estabelecido

    em 1805.

    No

    final da Guerra Anglo-americana de 1812, a Northwest Company exercia

    urn controle total sobre a vertente do Pacifico. Somente quando ela se fundiu com a

    Hudson Bay Company, em 1812, e que teve intcio 0 comercio sistematico baseado

    em terra. Os mais importantes fortes da Companhia foram 0 Forte Simpson, cons

    trufdo entre os indios tsimshian, pr6ximo ao grande emp6rio , na foz do rio Nass,

    em 1831, e 0 Forte Rupert, implantado entre os kwakiutl, em 1849.

    o

    Comercio de Peles Siberiano

    Quando os europeus penetraram nas aguas do litoral noroeste, seus navios de

    dicados ao comercio depararam com

    os

    russos, que haviam come

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    A EUROP EOS POVOS SEM HIsr6RIA

    feito para Pedro, 0 Grande, em

    1673

    mostrava a distribui

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    31/42

    o

    OMER IO E PELES

    de peles de lontra marinha voltou-se desde entao para a costa noroeste da America do

    Norte. Esse comercio do qual os ruSSOS foram grandemente excIuidos ficou em sua

    maior parte na mao dos ingleses e dos navios americanos cuja base era Boston.

    Os Povos d osta Noroeste

    Ao chegar ao litoral os europeus penetraram em urn meio arnbiente muito d i ~

    ferente do da America do Norte boreaL 0 c1ima e temperado; urn ar umido e quente

    desprende-se

    d

    Corrente Japonesa e condensa-se sob a forma de chuva e neblina nas

    cadeias de montanhas vizinhas acosta. A grande r e c i p i t ~ o pluviometrica permite

    a forma9ao de espessos bosques de coniferas - varias especies de abeto cedro teixo

    e sequ6ia. Os habitantes da costa noroeste eram basicamente pescadores dependendo

    em

    grande medida do salmao e do arenque e pescando-os durante seus deslocamen

    tos anuais rio acima

    a

    procura da agua fresca onde esses peixes podiam desovar. A

    pescaria era complementada pela pesca nas aguas litoraneas pela c a ~ a a aves sel

    vagens e pela coleta de moluscos e raizes comestiveis. Urn grupo dos nootka es

    pecializou-se na c a ~ a abaleia. Os recurs os alimenticios d costa eram abundantes

    embora perfodos de mau tempo e flutua90es anuais no numero de peixes em epoca

    de des ova provocassem ocasionalmente a escassez.

    o

    primeiro encontro que se registrou de navegantes europeus e habitantes do

    litoral ocorreu

    em

    1774

    quando a nave espanhola

    Santiago

    comerciou com urn gru

    po de haida dando-lhes roupas mi9angas e contas aIem de facas em troca de peles

    de lontra mantas e caixas de madeira esculpida e outros artefatos. Quatro anos mais

    tarde as naves do capitao Cook aportararn no estreito de Nootka e ali comerciaram

    peles de lontra marinha.

    Os recem-chegados em breve se derarn conta de que estavam lidando com par

    ceiros comerciais tao astutos e calculistas quanta todos os que tinham encontrado em

    suas viagens. Na verdade eles ingressaram em uma regiao de extenso comercio nativo.

    Como os recursos da costa noroeste eram freqiientemente localizados ha muito se

    praticava comercio entre os ilheus e os habitantes do continente bern como entre

    os moradores do litoral e as p o p u l a ~ e s do interior. Uma determinada especie de

    peixe existia apenas em areas restritas como Nass e certos rios e enseadas ao lon

    go do estreito da Rainha Carlota; as pessoas vinharn de lugares distantes para trocar

    suas mercadorias pelo 6leo de peixe monop61io que estava nas maos de grupos com

    direitos sobre a pesca. A ca9a aos animais terrestres era especialIIlente importante

    para as comunidades nas cabeceiras dos rios. Os tlingit setentrionais faziam mantas

    chilkat com la de cabrito montes e tingidas com casca de cedro mas como essas ar

    vores nao crescemem seu habitat a casca e a madeira tinham de vir do suL 0 cobre

    231

  • 7/24/2019 Eric Wolf - O comrcio de peles

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    EUROP E OS POVOS SEM

    HlSWRl

    era transportado da regiao do rio Copper ate os chilkat, e dessa localidade era leva

    do para SuI. Os haida e os nootka eram conhecidos sobretudo por suas canoas, de

    grande qualidade, e pelas mantas tingidas com a casca do cedro amarelo produzidas

    pelos nootka e pelos kwakiutl; as mantas dos salish,

    reitas com la de cabrito montes,

    pelo de cachorro e verso com penas de aves selvagens, eram comerciadas em toda

    a extensao do litoral. Os ilheus abasteciam os moradores do continente com carne

    de veado seca, oleo

    de

    foca, peixe seco, moluscos, certas pedras para fabricac,;ao de

    implementos, casca de cedro, cestos tranc,;ados com a casca dessa mesma arvore,

    madeira de cedro para artefatos cerimoniais, madeira de teixo para a confecc,;ao de

    ftechas e caixas para armazenar generos alimentfcios. Os moradores do continente

    forneciam aos ilheus couro e peles, roupas e tecidos, oleo

    depeixe

    uvas-do-monte,

    colheres de chifre, cestos tecidos com rafzes de abeto e mantas chilkat.

    Embora as viagens comerciais do