entrevista: carlos beppler, presidente da associação de ciclismo de balneário e camboriú

4
Balneário Camboriú, 3 de março de 2012 32 Entrevista Nome – CARLOS ALBERTO BEPPLER. Idade – 62. Natural – Caçador (SC). Em Balneário – Desde 2001. Formação – Superior em Telecomunicações. Profissão – Militar reformado. É o presi- dente da Associação de Ciclismo de Balne- ário Camboriú e Camboriú. Estado civil – Casado com Maria de Lour- des França. Filhos – Carlos, 33, Christian, 31, Tathiana Valentina, 3 e Carla Christina, 1. Lazer – Andar de bicicleta. Comida predileta – Feijão com arroz. Livros – ‘Diário de um Mago’. Filme – ‘Dr. Jivago’. Música – Beatles. Um momento bom – Meu casamento e o nascimento dos filhos. Um momento ruim – A perda do meu pai. Religião – Católica. Planos – Viajar muito. Perfil – Prático, objetivo, persigo os sonhos, gosto da vida simples e estou sempre exer- citando mais o ser do que o ter. Em breve a bicicleta deve ser o veículo principal não por opção, mas por contingência” Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de BC e Camboriú nossa gente Caroline Cezar [email protected] Marlise Schneider [email protected] Caroline Cezar A bicicleta definitivamente faz parte da vida do militar reformado Car- los Beppler desde a sua infância. Ele conta que quando recebeu a primeira bicicleta sentiu como uma espécie de ‘grito de liberdade’, porque então podia ir sozi- nho para a escola. Tornou-se um defensor incondicional dessa ‘liberdade’ que a bici- cleta é capaz de proporcionar. Depois que aposentou-se, a dedicação passou a ser mais intempestiva. E conta que os lucros para a vida, para sua saúde, para a família são incontáveis, porque a bicicleta já promoveu muitas mudanças e segue promovendo, já que a família toda é adepta. Ele conheceu a segunda esposa, Malu, andando de bici- cleta. Os dois sempre viajam juntos e numa dessas viagens, a Santiago de Compostela, Malu, que tinha extrema dificuldade para engravidar, fez um pedido e foi atendida, hoje o casal leva na carona as duas filhas. Como presidente da Associação, promove passeios para mostrar à comunidade que a cidade é boa para andar de bicicleta e que muitos problemas de trânsito podem ser amenizados, trocando o carro pela bike. Na segunda-feira, na redação do Página3, falou por quase duas horas sobre a impor- tância da bicicleta na vida moderna das cidades e das pessoas. Acompanhe.

Upload: jornal-pagina3

Post on 05-Mar-2016

219 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Publicada originalmente no Jornal Página3, 03.03.2012

TRANSCRIPT

Page 1: Entrevista: Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de Balneário e Camboriú

Balneário Camboriú, 3 de março de 201232 Entrevista

Nome – CARLOS ALBERTO BEPPLER.Idade – 62.Natural – Caçador (SC).Em Balneário – Desde 2001.Formação – Superior em Telecomunicações.Profissão – Militar reformado. É o presi-dente da Associação de Ciclismo de Balne-ário Camboriú e Camboriú.Estado civil – Casado com Maria de Lour-des França.Filhos – Carlos, 33, Christian, 31, Tathiana Valentina, 3 e Carla Christina, 1.Lazer – Andar de bicicleta.Comida predileta – Feijão com arroz.Livros – ‘Diário de um Mago’.Filme – ‘Dr. Jivago’.Música – Beatles.Um momento bom – Meu casamento e o nascimento dos filhos.Um momento ruim – A perda do meu pai.Religião – Católica.Planos – Viajar muito.Perfil – Prático, objetivo, persigo os sonhos, gosto da vida simples e estou sempre exer-citando mais o ser do que o ter.

Em breve a bicicleta deve ser o veículo principal não por opção, mas por contingência”Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de BC e Camboriú

n o s s a g e n t eCaroline Cezar

[email protected] Schneider

[email protected]

Caroline Cezar

A bicicleta definitivamente faz parte da vida do militar reformado Car-los Beppler desde a sua infância.

Ele conta que quando recebeu a primeira bicicleta sentiu como uma espécie de ‘grito de liberdade’, porque então podia ir sozi-nho para a escola. Tornou-se um defensor incondicional dessa ‘liberdade’ que a bici-cleta é capaz de proporcionar. Depois que aposentou-se, a dedicação passou a ser mais intempestiva. E conta que os lucros para a vida, para sua saúde, para a família são incontáveis, porque a bicicleta já promoveu muitas mudanças e segue promovendo, já que a família toda é adepta. Ele conheceu

a segunda esposa, Malu, andando de bici-cleta. Os dois sempre viajam juntos e numa dessas viagens, a Santiago de Compostela, Malu, que tinha extrema dificuldade para engravidar, fez um pedido e foi atendida, hoje o casal leva na carona as duas filhas. Como presidente da Associação, promove passeios para mostrar à comunidade que a cidade é boa para andar de bicicleta e que muitos problemas de trânsito podem ser amenizados, trocando o carro pela bike. Na segunda-feira, na redação do Página3, falou por quase duas horas sobre a impor-tância da bicicleta na vida moderna das cidades e das pessoas. Acompanhe.

Page 2: Entrevista: Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de Balneário e Camboriú

Balneário Camboriú, 3 de março de 201233Entrevista

JP3 - Semana passada tivemos um acidente com vítima fatal, o assunto ciclovias está em alta, como o senhor, como presidente da Associação de Ciclismo, vê essa questão?Carlos - As ciclovias na verdade são uma necessidade, a cidade de Balneário Camboriú hoje não tem mais espaço para auto-móveis, por mais que se construa e amplie essas vias, a demanda é muito grande. Se construísse outro sistema em cima desse, dentro de poucos anos seria pouco, então é o momento de mudar o jeito de andar na cidade, as pes-soas precisam começar a andar a pé, as distân-cias são peque-nas, a cidade é plana, quando é um pouco mais longe vai de bicicleta. Para isso, precisa ter uma estrutura, que vem sendo construída, bem ou mal, mas pelo menos agora já tem alguma coisa e podemos ajudar a aperfeiçoar.

JP3 - A Associação é procurada para opinar, aperfeiçoar o que está sendo feito?Carlos - Na verdade a Associa-ção que procura, já procurou várias vezes, enviamos ofícios, fizemos uma ou duas entrevis-tas com o engenheiro respon-sável pelas mudanças na pre-feitura... Tudo que é feito para melhorar a vida das pessoas que andam a pé ou bicicleta é bem vindo, às vezes erram, mas não podemos partir para uma crí-tica simplesmente destrutiva, usando o exemplo da Terceira Avenida, do acidente que acon-teceu, dá para dizer que hoje é mais seguro andar na ciclovia. Tem problemas, tem, temos feito críticas, muitas vezes públicas, como é a questão do estaciona-mento que “entra” na ciclovia, e que tem que ser resolvida. Fica-mos em cima para que as coisas

possam melhorar. Tem um sis-tema cicloviário bastante ambi-cioso para ser implantado aí.

JP3 - ...agora em março começa na Avenida Atlântica.Carlos - O projeto da Atlân-tica é bem interessante, porque ele tira os carros da beira mar, todo aquele estacionamento que hoje fica do lado direito passa pro lado esquerdo e um número bem menor de vagas, isso é bastante importante, tem que começar a dificultar a vida

do automóvel, foi por aí que as coi-sas aconteceram nos países onde hoje a bicicleta é um ícone. Na ver-dade não foi bem assim sempre, tem um exemplo, a Holanda, que passou por um

processo de desenvolvimento depois da Segunda Guerra Mun-dial que levou ela a um patamar que estamos hoje, e antes eles eram um país que usava muito a bicicleta, 90% das pessoas andavam. No desenvolvimento econômico as pessoas começa-ram a usar carro, carro, carro, como agora no Brasil que as pes-soas estão tendo mais acesso- e passaram a derrubar prédios históricos, abrir avenidas, fazer estacionamentos e nada disso adiantou, em pouco tempo eles tinham um caos urbano e não conseguiam mais se movi-mentar. E já tinham destruído uma boa parte da história para abrir novas avenidas, que era a moda do pós guerra, os ameri-canos colocaram essa idéia. Aí de repente eles lembraram como era e começaram esse retorno, dificultando pro automóvel, e facilitando pra bicicleta. Eu digo que o Brasil é hoje o que a Holanda foi no pós-guerra, só que não tem cidade que resista a isso, pretendemos ser o que a Holanda é hoje, num prazo mais acelerado. JP3 - Esse movimento surgiu do

povo, do governo, de onde? Porque quando se fala em mudança de hábitos é com-plicado... anos atrás quando falaram em mexer no estacio-namento na Av. do Estado para implantar ciclovias e foi um escândalo dos comerciantes...Carlos - Usando de novo a Holanda, os planejadores urba-nos da época começaram a dificultar o uso do carro, pla-nejar o sistema de maneira que para ir de A pra B de automó-vel eles passaram a circular e não atravessar a cidade, era bem longe, e as ciclovias, e ôni-bus, -que é muito importante falar também-, iam direto, cortando caminho.

JP3 - Os ônibus são importantes aliados da mobilidade urbana.Carlos - Sim, nós somos muito voltados para bicicletas, mas o ônibus é ainda o modal de transporte mais importante para nós. Lá foram as autorida-des, o governo, que viram que não tinha mais solução, e procu-raram alternativas para mobi-lidade urbana. Dificultar o uso do carro é a receita básica e fun-ciona bem em qualquer cidade. Na medida que a pessoa vê que quem vai de ônibus, bicicleta ou até mesmo a pé, chega mais rápido, ela muda.

JP3 - A falta de vagas de esta-cionamento já é um fator inibi-dor aqui na cidade não?Carlos - Nos países onde a bici-cleta domina praticamente não existem mais locais públicos para estacionar automóveis, porque é um espaço público usado por uma pessoa física, veja bem, UMA pessoa. Os automóveis ocupam muito espaço, tanto em movimento, quanto parados, a gente pode citar como exemplo aqui em BC e Camboriú, eu converso muito com as pessoas que trabalham entre essas cidades. Trabalhado-res da construção civil, domés-ticas, que hoje já têm renda para ter um automóvel, não

trocam porque não tem onde deixar, não podem levar para dentro da empresa, na garagem da obra, moto não pode, carro muito menos. A bicicleta leva ele da porta de casa até o local de trabalho, e nesse sentido é até melhor que o ônibus -aqui temos ônibus bons, mas sistema ruins, sem privilégio, competem de igual com os automóveis- e mesmo se funcionasse melhor, haveria o deslocamento, de casa pro terminal, do terminal pro trabalho. Eu vejo na bicicleta a melhor solução pra essas nossas distâncias, 8, 9 km, é perfeito.

JP3 - Às vezes a pessoa se assusta quando escuta “9 qui-lômetros”, mas mesmo seden-tária, em pouco tempo ela se adapta não?Carlos - Exatamente, as pes-soas que começam a pedalar percebem a diferença no dia a dia, vai gradativamente aumen-tando, até que ela pedala 50, 60 km sem nenhuma dificuldade. Tem inúmeros benefícios que podia facilmente enumerar, basi-camente saúde, menos poluição, custo mais baixo, a natureza toda agradece, da pes-soa e a que está em volta.

JP3 - ...tem a questão da inte-ração com a cidade, a pé ou de bici você passa mais devagar, vê as pessoas, efetivamente.Carlos - Eu diria que a cidade sem automóveis se torna uma cidade humana, onde as pessoas se reencontram. Uma cidade só de automóveis é desumana, as pessoas ficam encarceradas dentro dos seus carros, até com medo do que se passa fora, mas quando essas barreiras caem, e elas estão andando a pé, pela rua, é muito mais fácil a intera-ção. Eu sinto saudade daquele tempo que a gente andava pela rua, conversava, dava bom dia...hoje vai até buscar o filho

na escola de carro, ele também não cria o hábito de interagir com as pessoas... As cidades, historicamente, foram constru-ídas para as pessoas e não para os automóveis, foi praticamente nos últimos 60, 70 anos que isso mudou, precisamos resgatar, sob pena de entrar num caos, que já vivemos algumas vezes aqui, com as pessoas dentro dos carros, nervosas, brigando por qualquer coisa, fazendo brigas sérias..

JP3 - BC facilita, é uma cidade boa para pedalar, sem muitas subidas, tudo próximo...Carlos - É, as pessoas deviam fazer um balanço, até 7 km -e isso não sou eu que estou dizendo, são as estatísticas-, a bicicleta é imbatível, não existe outro meio melhor. Aqui é difí-cil ter distância maior que essa, até de uma ponta pra outra de praia não passa disso, então não tem muito o que pensar...

ela acha que é longe hoje porque está demorando muito de carro, se talvez fizesse a pé seria mais rápido.

JP3 - E o medo do trânsito?Carlos - Esse é o aspecto talvez

mais cruel da questão, que inibe as pessoas de andar. Na verdade não é assim tão perigoso, as pes-soas teriam que aprender a con-viver com os automóveis, tomar alguns cuidados, algumas medi-das de segurança, porque nós temos um grupo grande aqui que pedala, usa a bicicleta todos os dias para o trabalho, e é bem difícil de acontecer acidente na área urbana, mesmo com todas as dificuldades. Na medida que as dificuldades vão sendo supe-radas, vai ficando mais fácil, mas eu concordo que hoje para quem não está acostumado é assustador.

Com a esposa Malu, sempre pedalando juntos. O casal com as filhas Tathiana Valentina e Carla Christina, um sonho que se tornou realidade.

“É o momento de mudar o

jeito de andar na cidade”.

“O Brasil é hoje o que a

Holanda foi no pós-guerra”.

Fotos Arquivo Pessoal

Page 3: Entrevista: Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de Balneário e Camboriú

Balneário Camboriú, 3 de março de 201234 Entrevista

JP3 - As pessoas atribuem muito aos governos, mas parece que é mais uma responsabili-dade coletiva não é? Do ciclista estar devidamente identificado como um perso-nagem do trân-sito, na maneira de trafegar e se posicionar, da iniciativa pri-vada de oferecer facilidades para os funcionários...Carlos - Começa na iniciativa pública, melhorando as condi-ções de circulação, para ônibus, bicicleta, outros meios, mas passa pela educação de todos, o respeito entre as pessoas. Temos observado com preocupação, e parece que esse respeito está cada vez menor, deveria estar evoluindo no coletivo. Eu diria até por uma falta de presença do Estado para fazer cumprir as leis básicas que regem a rela-ção entre as pessoas todas, não vemos uma fiscalização mais efetiva na movimentação das pessoas, as situações de trá-fego, não respeitam porque não ouvem um apito nem vêem nin-guém anotando a placa. Não adianta toda sinalização do

mundo se não há fiscalização, isso é papel do Estado. O papel do cidadão: exercer sua cida-dania, cobrando, mas também respeitando, isso vale para o

ciclista também, para o pedestre...Principalmente o motorista, os con-dutores de veícu-los motorizados, carros e motos, a sociedade paga caro... Excesso de velocidade, convenções proi-bidas, excesso

de velocidade, em cima da cal-çada, existe toda uma norma bem estabelecida e todo mundo devia conhecer. Cada um tem sua parte. JP3 – E quanto às empresas investir nisso, abrir espaço para quem usa bicicletas?Carlos - Sobre as empresas, acredito que na medida que usar mais, elas oferecem condi-ções. Há dois anos tive um con-tato em Itajaí, pagavam auxílio transporte pra quem usava ôni-bus, e quem ia de bicicleta não ganhava nada, era uma empresa de uns 2 mil funcionários, foi feita uma aproximação com o

pessoal de Blumenau, Floria-nópolis e incentivaram o uso da bicicleta, hoje a metade dos fun-cionários já usa, melhores con-dições, remuneração, um bom local pra guardar. Em Cambo-riú também trabalhamos muito, são cidades irmãs, que integram o sistema de circulação entre as duas cidades, o convívio é diá-rio, estamos sentindo um pouco mais de receptividade na pre-feitura de Camboriú, começa-mos pelo lado turístico, e agora parece que existe a intenção de colocar paraciclos, pra quem vai fazer uma parada breve, pra ir ao banco por exemplo... e não tirar o lugar do pedestre, e sim dos carros, pegar uma ou duas vagas em locais estratéticos...

JP3 – Cada passo é um grande avanço.Carlos - A gente percebe uma corrente a nível mundial, toda a mídia, propagandas, novelas, coloca a bici como vetor básico da mobilidade urbana, a gente tem esperança que BC esteja em breve melhor, a idéia é mais que dobrar a quilometragem, Camboriú também entrando, a prefeita se comprometeu publi-camente, conversamos pesso-almente, em fazer pelo menos uma ciclovia entre o centro de Camboriú e a nova ponte do Barranco, que ali vai ser um local muito perigoso, hoje temos muitos ciclistas e automóveis, mais ou menos, com o novo acesso, o movimento de carros deve mais do que triplicar.

JP3 – O Sr. citou que é bom que temos muito mais ciclovias, mas não seria mais adequado chamar as pessoas que usam na hora de planejar? Ainda existe esse distanciamento e isso afeta o resultado final, é só perceber quando um carro quer entrar numa rua, o ciclista vem de lá, de cá, os carros tem que olhar pra mil lados antes de entrar...está inseguro.

Carlos - Já cheguei a presenciar acidentes logo que foi aberta a ciclovia na Quarta Avenida, o motociclista entrou olhando só para um lado, e quando ele per-cebeu estava em cima, freou, foi pro chão. Ajudamos ele a levan-tar, mas realmente existe um não-planejamento, quando você libera uma via para o tráfego há toda uma responsabilidade envolvida, tem que informar o público das modificações, eu vejo ainda que temos deficiência no aspecto de sinalização, infor-mação, liberação de vias que ainda não estão completamente prontas, tem que ser melhorado realmente.

JP3 - O ciclista não teria que acompanhar o fluxo do trân-sito? O que seria uma ciclovia modelo?Carlos - Não necessariamente, a ciclovia modelo tem que ter a separação física da via de tráfego de automóveis, ter sina-lização horizontal e vertical e oferecer segurança para toda a circulação de tráfego. Tem uma coisa importante, quem está de automóvel tem que tomar um certo cuidado e quem tá de bici-cleta também, se lembrar, parar, olhar... uma coisa que não é bem esclarecida é quem tem preferência nos cruzamentos: as ciclovias são sinalizadas de vermelho, quem tem preferência é a bicicleta, o próprio código de trânsito diz, se o pedestre está atravessando a rua você tem que parar, mesmo fora da faixa de segurança. Eu não sei se o centro de condutores não fala, ou se fala, é muito superficial-mente, hoje mesmo eu vi, duas meninas vinham atravessando, o cara veio buzinando, gritando pra ir pra calçada e acelerando em cima. A coisa se resume a respeito, você tá numa direção de automóvel não pode ir avan-çando em cima das pessoas, pelo contrário, você tem que cuidar dessas pessoas.

JP3 – E nas rodovias, andar de bicicleta é ainda mais perigoso.Carlos - Hoje não tem muitas diferenças, lá fora existem ciclo-vias que acompanham rodovias, são completamente isoladas, existem rodovias que você não pode acessar de bici, mas aí tem a segunda opção, e no trânsito urbano às vezes não tem muitas soluções, eu vi coisa na Europa,

muito mais difíceis do que aqui, porque as cidades são muito apertadas, antigas, como em Pamplona, na Espanha, é uma cidade medieval, um centro his-tórico, cercado de muralhas, os automóveis e pessoas circulam no mesmo espaço, não tem cal-çada, é no mesmo nível, e eles conseguem conviver. Vem um caminhãozinho de entrega, você toma um susto, mas ele para pra você passar e depois prossegue...

JP3 – O problema é que aqui o trânsito está todo direcionado para o automóvel e isso vai ser complicado mudar.Carlos - Falando em nome da Associação e em meu nome, precisa ser bastante aperfeiço-ado, mas temos que trabalhar a favor de que se faça, se erra tem que consertar, só não pode persistir no erro, seria muito ruim ver obras inacabadas ou só para constar. Está bem claro aqui que a prioridade ainda é o automóvel, a bicicleta é com-plementar, e nosso objetivo é que no futuro a prioridade seja o transporte coletivo e a bicicleta, os pedestres circularem, a aces-sibilidade... perdeu-se por exem-plo, uma grande oportunidade de fazer as canaletas de ôni-bus, eu já ouvi ene explicações de autoridades, mas nenhuma convence, talvez faltou um pouco de coragem política, a gente sabe o que move a política é muito diferente do que move a necessidade das pessoas. No projeto inicial todas essas aveni-das teriam uma faixa exclusiva pra ônibus, que foi substituída por estacionamento. Esse talvez tenha sido o pecado maior de tudo que está feito, temos toda uma infra estrutura pronta pra fazer isso rapidamente, mas é mais dinheiro público, modi-ficações que poderiam ter sido feitas agora. Não se priorizou, aquele Desafio Intermodal ano passado ficou bem claro, é bom andar de ônibus aqui em BC, os carros são todos novos, tem horários até frequentes, mas tem que compartilhar com todo esse trânsito; é cristalino, você vê naquele engarrafamento medo-nho de BC pra Camboriú às seis horas da tarde, e de repente passa um ônibus ali bem con-fortável com ar condicionado e vai embora... No dia seguinte você vê de novo, e no terceiro você estará no ônibus. Por que

Fotos Arquivo Pessoal

O caminho frances de Santiago de Compostela foi o mais marcante

Em cada viagem, muitas histórias pra guardar

“Dificultar o uso do carro é a receita básica e funciona bem em qualquer

cidade. Na medida que a pessoa vê que quem vai de ônibus, bicicleta ou até mesmo a pé,

chega mais rápido, ela muda”.

“Os automóveis ocupam muito espaço, tanto

em movimento, quanto

parados”.

Page 4: Entrevista: Carlos Beppler, presidente da Associação de Ciclismo de Balneário e Camboriú

Balneário Camboriú, 3 de março de 201235Entrevista

as motocicletas estão crescendo numa proporção assustadora? Os carros estão parados e eles estão indo, mesmo que naquela fila suicida, mas indo, andando, furando todo mundo, correndo risco, arriscando a vida dos outros, cometendo infrações corriqueiras, que já são acei-tas. Tem que ser fácil andar de ônibus, já deveriam contem-plar esse sistema, nossos velhos bondindinhos já não são mais compatíveis, são grandes, lentos, desconfortáveis e atrapalham demais o trânsito...

JP3 – A não ser que se fizesse aquele ‘retorno’...Carlos - É, se tivesse um corre-dor exclusivo, mas do jeito que estão hoje no meio do tráfego, parando em qualquer lugar, desordenadamente... eu sou fã do bondindinho, desde a época que ele era feito com caminhão de exército, quem é mais antigo lembra... um caminhão do exér-cito que puxava uma carreta...

JP3 – Quando começou a se interessar por bicicleta?Carlos - Quando eu ganhei minha primeira bicicleta eu morava no interior de SC, estu-dava próximo de casa, a uns 3 kms, mas quando fui pro giná-sio, era uns 8 km de casa, e aí meu pai me deu a primeira bici-cleta pra ir a aula todos os dias. Éramos um grupo de amigos, dali nunca mais parou... só foi modificando os modelos. Então, na época foi o que eu chamo de um grito de liberdade, quando eu vi que podia sair sozinho, ir pra onde eu quisesse sozinho... percebi...“opa, sou livre”.

JP3 – A bicicleta como ferra-menta de esporte nunca?Carlos - Não, só agora nos vete-ranos, sempre fui mais pela socialização, a bicicleta tem mais esse fator, conhece mais pessoas, faz amizades. Em 2005 teve um encontro de cicloturismo em Timbó, tinha acabado de voltar de um circuito na Europa, e fica-mos encantados aqui com o Vale Europeu, e começamos a pensar numa opção aqui para nossa região. Passou um ano, dois, até que fizemos em 2008, e foi um fiasco, porque foi no dia daquela enchente... Mas a semente foi plantada e em 2009 fomos chamados pra estabelecer esse circuito entre os 11 municípios da Amfri, e fizemos com muito sucesso. Hoje temos muitos turistas visitando, e está cada

vez mais interessante. Tudo isso começa a mostrar a cidade, BC não precisa de muitas propa-gandas... mas as outras cidades sim.

JP3 - Às vezes a pessoa se engana com a imagem da cidade, acha que aqui só tem balada e praia, comércio... em volta tem muito pra conhecer...Carlos - É, a mídia é a prin-cipal parceria nesse sentido, mostrar o que tem em volta. A iniciativa privada também tem que se mexer, que é diretamente envolvid. Temos atraído gente, o turismo rural de Camboriú era sempre uma utopia, mas está acontecendo, as pessoas estão ávidas... poderia ser melhor tra-balhado, distribuir nas agências de turismo... Muitas pessoas gostam de fazer turismo com bicicleta, mas muitas vezes ela não pode trazer... hoje não temos nenhum lugar que alugue bici-cletas, por exemplo. Não é uma coisa isolada, ela quer um local para alugar, mas quer saber os roteiros que tem pra fazer, onde pode ficar... Isso tá faltando aqui.

JP3 - Você tam-bém é um adepto das viagens de bicicleta.Carlos - As via-gens começaram em 2005, peque-nas viagens por aqui, uma coisa bem amadora, ia pra Itapema, Nova Trento, bicicleta simples, mochila amar-rada no bagageiro, depois fomos aperfeiçoando quando vimos um modelo diferente de viagem em Santiago de Compostela, e logo depois o encontro nacio-nal de cicloturismo. A partir dali viajamos bastante, todos os

anos... estamos planejando atra-vessar o deserto do Atacama nos dois passos mais altos lá, a Cor-dilheira dos Andes, saindo de Salta pelo Passo de Rama, e vol-tar pelo Passo de São Francisco onde tem o vulcão mais alto do mundo. São lugares fantásticos.

JP3 - Que local mais marcou?Carlos - O deserto. O Caminho de Santiago fizemos o caminho francês, o caminho da costa norte e o caminho português. O francês é o mais marcante, mexe um pouquinho com a gente, conseguiu mexer com o Fernando (Baumann), chegou diferente...e vocês conhecem a figura, uma das pessoas mais organizadas, agendadas que a gente conhece. “São 13 dias, e não pode passar”...no terceiro dia percebemos, “a gente não vai terminar...”. “Não tem pro-blema”, ele disse. Mudou bas-tante... o caminho faz isso com as pessoas, e não tem nenhuma mágica ou misticismo, é a vida mais simples mesmo, você tem que se preocupar com o que vai

comer, onde vai dormir, e a sua bagagem. E com as dificuldades, lógico.

JP3 – O Sr. mudou sua vida depois que voltou?Carlos - Eu estava morando na praia, aparta-

mento, tinha aquela vida tran-quila, dar uma voltinha de bici-cleta...Quando voltei as paredes apertaram, em 2006 fomos morar em Camboriú numa casa, isso foi consequência direta... Tem uma história, a Malu e eu estamos casados há 16 anos, até 13 anos não tivemos filhos, não

que estivéssemos tentando evi-tar...ela tinha problemas sérios...em 2007 trabalhamos como hospitaleiros num albergue em Compostela e depois fize-mos uma parte do Caminho, e quando a gente estava no Fran-cês, de manhã cedo apareceu um peregrino espanhol com 2 meninas numa bicicleta, uma cadeirinha na frente, uma atrás, um reboque. A Malu olhou pras meninas e saiu lágrimas dos olhos, olhou pra mim e disse: “Será que nunca vou ser mãe”. E eu falei, pede pra Santiago. Ela pediu com muita fé, ele atendeu na medida, isso era setembro de 2007, em junho de 2008 ela ficou grávida da Valentina, e um ano depois ela estava grávida da Carla Christina, não toma-mos cuidado porque era tão difícil... Vamos lá agora, agra-decer, porque foi uma resposta. Um susto, dois sustos, hoje esta-mos criando duas meninas que parecem quase gêmeas, foi o evento mais importante que a bicicleta trouxe pra nossa vida, e eu conheci a Malu andando de bicicleta.

JP3 - Quantas horas por dia dedica pra bicicleta?Carlos - Pra andar de bicicleta às vezes nem consigo, mas ela tá sempre na agenda, tem ocupado muito a vida desse aposentado, ao invés de jogar dominó na praia, lendo jornal, sentado em

casa... Tem tornado a vida dinâ-mica, me sinto muito bem.

JP3 - Bicicleta sempre foi con-siderada uma coisa de pobre, e aqui tem a questão do status dos carros... Carlos - Veja bem, BC é uma cidade tipo uma vitrine para as vaidades humanas, todos esperam uma grande festa que acaba nunca acontecendo, veja na virada do ano, usam a Atlântica para desfilar carrões, roupas de marca, é uma coisa um pouco vazia, acredito que à medida que vamos evoluindo como ser humano vai perce-bendo que isso é muito relativo... o automóvel pode ser um bom parceiro, pode ser usado, mas ele como símbolo de status, pra minha geração não representa mais nada, e olha que quem não tinha carro tava fora do contexto... a tendência é isso se dissolver. A Associação está vol-tada para isso, turismo e mobi-lidade urbana, mostrar que pode ser um bom instrumento, como veículo no dia a dia e pra se divertir. Em breve a bicicleta deve ser o veículo principal não por opção, mas por contingên-cia, diante do caos urbano...seria legal trabalhar que isso não chegasse a acontecer. Tem um grupo grande que já está praticando isso, mostrar que existe um outro caminho.

“A cidade sem automóveis

se torna uma cidade

humana onde as pessoas se

reencontram”.

“O que move a política é muito diferente do que move a necessidade das pessoas”.

O espaço sinalizado é ferramenta essencial na vida do ciclista

O casal está programando voltar a Santiago de Compostela, com as filhas

Fotos Arquivo Pessoal