edição 414 - de 3 a 9 de fevereiro de 2011

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 3 a 9 de fevereiro de 2011 Ano 9 • Número 414 ISSN 1978-5134 Dafne Melo Beto Almeida Wikileaks e vetos imperiais Dois telegramas divulgados pelo Wikileaks revelam que os EUA organizam vetos e boicotes a pelos menos duas atividades estratégicas brasileiras, visando impedir o desenvolvimento nacional soberano e independente. O primeiro fala do veto estadunidense ao Programa Espacial Brasileiro. O embaixador dos EUA comunicou que “os EUA não apoiam o programa nativo de veículos para o lançamento do Brasil”. Pág. 3 Silvio Mieli Pirâmide invertida O cartunista Latuff desenhou Moubarak desplugando o mundo do Egito, representado por um mapa de onde saía a tomada de um modem ligado ao Globo. Só que do mapa surgia um braço forte que desplugava o presidente do Egito. O Egito e sua cultura já conheceram vários tipos de redes sociais. Só que agora falamos de um país com 67% da população abaixo dos 30 anos e 90% de jovens desempregados. Pág. 3 Leandro Konder A ideologia A ideologia, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro. Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce nenhuma apreensão da realidade. Nós, neste valente semanário, reunimos e transformamos realidades empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los. Pág. 3 Pág. 9 Mundo árabe Só faltava uma faísca Os povos árabes estão rompendo décadas de silêncio, em protestos contra a opressão política e o caos social criados, segundo eles, por regimes autocráticos apoiados pelas potências ocidentais. Págs. 10 e 11 Subdesenvolvimento Vale devasta bairro maranhense Pág. 4 Entrevista – Oswaldo Sevá Território, a prioridade das corporações Págs. 6 e 7 Luciano Arruga Desaparecido em tempos de democracia Luciano Arruga Desaparecido em tempos de democracia Subdesenvolvimento Vale devasta bairro maranhense Pág. 4 Entrevista – Oswaldo Sevá Território, a prioridade das corporações Págs. 6 e 7 Messay/CC

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 414 - de 3 a 9 de fevereiro de 2011

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 3 a 9 de fevereiro de 2011Ano 9 • Número 414

ISSN 1978-5134

Dafne Melo

Beto Almeida

Wikileaks e vetos imperiaisDois telegramas divulgados pelo Wikileaks revelam que os EUA organizam vetos e boicotes a pelos menos duas atividades estratégicas brasileiras, visando impedir o desenvolvimento nacional soberano e independente. O primeiro fala do veto estadunidense ao Programa Espacial Brasileiro. O embaixador dos EUA comunicou que “os EUA não apoiam o programa nativo de veículos para o lançamento do Brasil”. Pág. 3

Silvio Mieli

Pirâmide invertidaO cartunista Latuff desenhou Moubarak desplugando o mundo do Egito, representado por um mapa de onde saía a tomada de um modem ligado ao Globo. Só que do mapa surgia um braço forte que desplugava o presidente do Egito. O Egito e sua cultura já conheceram vários tipos de redes sociais. Só que agora falamos de um país com 67% da população abaixo dos 30 anos e 90% de jovens desempregados. Pág. 3

Leandro Konder

A ideologiaA ideologia, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro. Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce nenhuma apreensão da realidade. Nós, neste valente semanário, reunimos e transformamos realidades empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los. Pág. 3

Pág. 9

Mundo árabe

Só faltavauma faísca Os povos árabes estão rompendo décadas de silêncio, em protestos contra a opressão política e o caos social criados, segundo eles, por regimes autocráticos apoiados pelas potências ocidentais. Págs. 10 e 11

Subdesenvolvimento

Vale devasta bairro maranhense Pág. 4

Entrevista – Oswaldo Sevá

Território, a prioridade das corporações Págs. 6 e 7

Luciano Arruga

Desaparecido em tempos de democracia

Luciano Arruga

Desaparecido em tempos de democracia

Subdesenvolvimento

Vale devasta bairro maranhense Pág. 4

Entrevista – Oswaldo Sevá

Território, a prioridade das corporações Págs. 6 e 7

Messay/CC

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Napolitano e Berlusconi, Brasília não é Addis Abeba

O DISCURSO DE Obama sobre o Estado da União desencadeou na Europa uma tor-rente de elogios.

Portugal não foi exceção. Nos canais de televisão, nas rádios e nos jornais, os analistas da burguesia reagiram com en-tusiasmo à fala do presidente dos EUA. Identifi cam em Barack Obama o estadista providencial que ao leme da Casa Branca vai salvar a humanidade. Registram que foi interrompido 75 vezes pelos aplausos dos congressistas e que o esboço da sua nova estratégia impressionou favoravel-mente a oposição.

É compreensível a satisfação dos repu-blicanos que dispõem agora de maioria na Câmara dos Representantes. E também os elogios dos magnatas de Wall Street e das grandes empresas. O discurso de Obama assinalou uma acentuada guinada à direita da sua política. O balanço e as promessas do presidente justifi cam o temor de que na segunda metade do seu mandato não so-mente renuncie aos projetos sociais de ma-tiz humanista que geraram esperança em milhões de estadunidenses como favore-ça mais ostensivamente o capital fi nancei-ro e radicalize uma politica externa marca-da pela agressividade e a ambição de hege-monia planetária.

Despojado da sua retórica populista, o que sobra do discurso presidencial – um exercício de hipocrisia – de uma hora so-bre o Estado da União?

Cito alguns itens importantes:Propõe-se a manter a “liderança que fez

dos EUA não somente um ponto no mapa, mas a luz do mundo”.

Euforia porque “a bolsa se recuperou com fervor e os lucros das grandes empre-sas são mais elevados”.

O desejo de “fazer dos EUA o melhor lu-gar do mundo para negócios”.

Muita preocupação por a China ter cons-truído “o mais rápido computador do mun-do” e fabricar “comboios mais rápidos” do que os estadunidenses.

Temor do desenvolvimento econômico da Índia e da China.

Intenção de reduzir os impostos pagos pelas grandes empresas.

Escalada de agressões no mundoO conceito dos EUA como “luz do mundo”

retoma o mito da nação predestinada, a úni-ca capaz de salvar a humanidade.

Obama, na síntese do que se fez e não fez no terreno da política internacional clarifi ca bem esse conceito ao manifestar orgulho pe-la missão cumprida no Iraque “onde quase 100 mil dos nossos homens e mulheres saí-ram com a cabeça alta”. Omitiu obviamente que dezenas de milhares de soldados esta-dunidenses continuam a ocupar aquele país saqueado e vandalizado.

Aliás, no mesmo dia em que pronunciava o seu discurso, mais de 50 iraquianos mor-riam em Bagdad em consequência da explo-são de uma bomba. Nas vésperas morreram outros tantos. Imagens da pax americana.

Orgulho idêntico expressa pelo rumo das coisas no Afeganistão, uma das prioridades da sua política externa, país agredido on-de um exército de mais de 100 mil soldados e mercenários estadunidenses (apoiado por 60 mil da Nato) travam uma guerra geno-cida responsável pela morte de dezenas de milhares de civis afegãos.

É de satisfação igualmente o sentimen-to do presidente por “termos revitalizado

a Nato e aumentado a nossa cooperação em tudo, desde o antiterrorismo à defe-sa antimíssil”.

Traduzido para linguagem comum, que não distorça a realidade, Obama alegra-se pelo novo conceito estratégico da Nato lhe permitir atuar em escala planetária onde e quando Washington quiser. Militarizar o espaço sob hegemonia estadunidense é para ele outro objectivo que encara como projeto merecedor da gratidão dos seus compatriotas.

Não falou das sete novas bases que os EUA vão instalar na Colômbia nem da presença da IV Frota da US NAVY em águas sul-americanas, repudiada pelos po-vos da região.

Anunciou para março deste ano viagens ao Brasil, Chile e El Salvador para “forjar novas alianças em todo o continente ame-ricano”, mas não esclareceu que tipo de alianças, expressando, porém, satisfação pelos acordos bilaterais assinados com o Panamá e a Colômbia, dois países semico-lonizados pelos EUA.

A leitura do discurso sobre o Esta-do da União confi rma que o presidente Obama dará continuidade a uma políti-ca externa menos ruidosa, mas não me-nos perigosa para a humanidade do que a de George Bush.

Falta sublinhar que muitos minutos do seu discurso retórico e grandiloquente fo-ram dedicados à evocação de êxitos indi-viduais de desconhecidos jovens estaduni-denses que apontou como exemplos da su-perioridade do american way of life.

O fecho não destoa do espírito messiâ-nico da mensagem. Inspirado pelos pais da Pátria, Barack Obama, invocando o seu exemplo, afi rma a sua convicção de que é “graças à nossa gente que o nosso futuro está cheio de esperança”. E conclui: “Obri-gado, que Deus os abençoe e que Deus abençoe os Estados Unidos da América”.

Estranha é a concepção do divino perfi -lhada pelo presidente dos EUA, glorifi cado pela grande burguesia europeia.

Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.

opinião Miguel Urbano Rodrigues

Obama e o messianismo imperialista

artigo Rogério Almeida

FINDA A GUERRA fria, “o perigo comunista” já não mais funcionava como instrumento de submissão dos povos aos EUA. Logo, porém, fabri-cou-se um novo fl agelo: o “terroris-mo internacional”, cujo lançamento envolveu grande pirotecnia. No dia 11 de setembro de 2001, o mundo amanheceu sob o impacto da derru-bada das Torres Gêmeas, o que per-mitiu, já no mês seguinte, a invasão do Afeganistão; do Iraque, em 2003; as atuais ameaças ao Irã e uma série infi ndável de desmandos dos EUA mundo afora.

Toda a diplomacia desenvolvida pela chefe do Departamento de Es-tado, Condoleezza Rice, e hoje le-vada adiante pela senhora Hillary Clinton, tem como alicerce e jogo de cena “o combate ao terrorismo”.

São considerados terroristas to-dos os que se oponham às regras do grande capital. Em nosso país, os desdobramentos mais visíveis dessa política são a criminalização e mas-sacre dos movimentos sociais, dos pobres, em geral, e a ofensiva contra aqueles que resistiram ao golpe de 1964 e ao regime por ele implanta-do, antes que os liberais – na segun-da metade dos anos 1970 – resolves-sem desmontar a ditadura que eles próprios haviam construído.

Sim, somos todos “terroristas”.

Sobre Cesare BattistiEm termos legais, as acusações

contra Battisti e o pedido de sua ex-tradição já tiveram sua improcedên-cia sufi cientemente comprovada. Battisti não cometeu os atos pelos quais Roma tenta condena-lo e exe-crá-lo enquanto exemplo para todo o povo italiano e o mundo.

Está mais que certo, também, que nos anos 1960-1970 a Itália não era sequer uma democracia, conforme entende e diz propor ofi cialmente o establishment capitalista – exceto se quisermos criar ad hoc o estatuto das “democracias excepcionais”, ou da “democracias emergenciais”.

No entanto, Battisti não é um ino-cente. É fundamental fi car claro. Battisti era sujeito de um projeto po-lítico que – com erros e/ou acertos – se batia contra as injustiças sociais e no qual a igualdade entre os homens não se subordinava à liberdade. Toda sociedade, em que a liberdade se construa às custas da negação da igualdade, será sempre uma socie-dade em que a exploração e opres-são dos mais fracos pelos mais fortes serão os alicerces da sua legalidade.

Ou seja, do nosso ponto de vista, mais que ilegal, é ilegítima a entre-ga de Battisti à Itália dos senhores Giorgio Napolitano e Silvio Berlus-coni que, hoje, incapazes de invadir

Addis Abeba, como o fi zeram seus ancestrais políticos em 1935, tentam sitiar Brasília.

As condenações de Cesare Battis-ti, Alfred Dreyfus (1894), Mata Ha-ri (1917), Ethel e Julius Rosenberg (1951) pertencem todas a uma mes-ma estirpe de crimes: a criação de bodes expiatórios (seguida de “pu-nição exemplar”) que justifi quem os fracassos das políticas da direita. Os resultados perseguidos e induzidos são sempre as nacional-patriota-gens, as ondas de xenofobia, de fas-cismos etc.

Battisti não é apenas Battisti. Sua condenação e extradição, mais que necessidade do neofascismo italia-no, será marco da ascensão da ultra-

direita em todo o mundo, espetáculo capaz de unifi car e fazer crescer essa ultradireita que emerge dos escom-bros do neoliberalismo.

Extraditar Battisti ou não lhe con-ceder sua condição plena de asila-do (com direito, portanto, à garan-tia da sua segurança), será mais um modo de legitimar todo esse vergar-se radicalmente para a direita que experimentamos hoje e que nos traz sempre à lembrança os anos 1930.

A xenofobia varre a Europa e os EUA, assumindo expressões aparen-temente diferenciadas. Seja através da aprovação pelo Parlamento ita-liano de rondas de cidadãos (milí-cias paramilitares) para denunciar e sequestrar estrangeiros com entrada ou permanência ilegal no país e en-trega-los em seguida à polícia; seja pelas medidas decididas na França, que permitem (ordenam e consu-mam) a expulsão dos ciganos; ou o muro construído pelos EUA em sua fronteira com o México. Em Portu-gal, Espanha, Grécia – como na Itá-lia e em toda a Europa Meridional e EUA –, a progressiva perda de pos-tos de trabalho e de direitos sociais dos assalariados tem como contra-partida o ódio aos imigrados.

Mas não apenas de xenofobia se alimenta o neofascismo. Há poucos anos, o Congresso dos EUA “fl exibi-

lizaram” o conceito de tortura e pas-saram a indicar seu uso em “deter-minadas circunstâncias”.

Nas eleições suecas de 2010, pe-la primeira vez desde 1945, a ultra-direita elegeu representação no Par-lamento e, na Holanda, a mesma ul-tradireita ameaça formar maioria entre os parlamentares. A Itália, no entanto, segue na vanguarda. O Par-lamento de Roma fez o senhor Silvio Berlusconi primeiro-ministro, pro-vando que a Liga Norte, famosa pela sua origem fascista, mas hoje consi-derada de centro-direita (!), retoma seu antigo prestígio e rumo.

Na América Latina, apesar da eu-foria que despertam governos de centro-esquerda, o Haiti permane-ce ocupado há quatro anos; o gol-pe contra o presidente Manuel Ze-laya, de Honduras, foi absorvido e naturalizado pela comunidade in-ternacional, do mesmo modo que a não distante invasão do território do Equador por tropas do narco-esta-do colombiano; as tentativas de gol-pes contra os governos da Venezue-la, Bolívia, Paraguai em anos recen-tes e, este ano, no Equador. Tam-bém a nova política de militariza-ção da Zona do Canal, no Panamá, é “natural”.

Battisti não é apenas Battisti. E só não enxerga quem não quer.

de 3 a 9 de fevereiro de 20112editorial

Offi cial White House Photo/Chuck Kennedy

Tensão no Oeste do Pará

Os grandes projetos e as tragédias que a insta-lação deles acarreta no interior da Amazônia têm ajudado a colocar na pauta nacional e internacio-nal municípios como Anapu, Juruti, Nova Olinda, Jacareacanga e Castelo dos Sonhos, localizados no oeste do Pará.

A disputa pelo território e as riquezas existentes possuem um xadrez nítido: grandes corporações e madeireiros versus comunidades consideradas tradicionais. A execução de Dorothy Stang, em fe-vereiro de 2005, alertou sobre a delicada situação desta parte da Amazônia.

A região tem abrigado a tensão entre madeirei-ros e as populações locais desde o início do sécu-lo 21. Além da execução da missionária estaduni-dense, foram assassinados os dirigentes sindicais Alfeu Federicci (Dema) e Bartolomeu dos Santos (Brasília). Tem-se ainda o registro de uma chaci-na.

Além de cidades como Anapu e Nova Olinda, a situação de confl ito tem se acirrado no município de Juruti. É nele que a mega corporação estadu-nidense, do setor de alumínio, Alcoa, explora uma mina de bauxita, matéria-prima para a produção de alumínio.

Além da tensão entre a Alcoa e os quilombolas que lá residem, existem situações de risco pela ex-ploração ilegal de madeira. Em janeiro, já ocorreu uma execução de trabalhador rural. O dirigente sindical Gerdeonor Pereira dos Santos denuncia novas ameaças de morte.

Na comunidade de Galiléia, trabalhadores rea-lizaram um “empate”. A prática começou no Acre, como forma dos seringueiros enfrentarem a ex-ploração ilegal de madeira. Na comunidade de Galiléia, em Juruti Velho, moradores retiveram um caminhão com toras de madeira. O local abri-ga o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE).

A Associação das Comunidades de Juruti Ve-lho (Arcojuve) já encaminhou documento para a superintendência regional do Incra de Santarém, Ministério Público Estadual e Polícia Federal in-formando sobre a situação.

O futuro para a região não parece muito pro-missor. Ela integra um dos eixos de integração do governo federal. Há projetos de construção de um conjunto de hidrelétricas no rio Tapajós, projeto de uma hidrovia e o asfaltamento da BR 163. Sem falar na exploração de outras áreas para a mine-ração. E a concessão de exploração de reservas fl orestais para a iniciativa privada.

O cenário sinaliza que a região pode experimen-tar o que o sudeste do estado passou na década de 1980, o que a imortalizou como a mais violen-ta na disputa pela terra do país. (Com informa-ções de Isabel Cristina – Juruti Velho – oeste do Pará)

Rogério Almeida é jornalista, colaborador da rede Fórum Carajás, articulista do IBASE e Ecodebate.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Battisti não é apenas Battisti. E só não enxerga quem não quer

O cenário sinaliza que a região pode experimentar o que o sudeste do estado passou na década de 1980

O conceito dos EUA como “luz do mundo” retoma o mito da nação predestinada, a única capaz de salvar a humanidade

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de 3 a 9 de fevereiro de 2011

greve, denunciar os abusos da polícia e proteger juri-dicamente os ameaçados.

Movimentos como o do “6 de abril” foram potenciali-zados pelo levante tunisino. E por mais que os seus fun-dadores digam o contrário, as chamadas “redes sociais” não nasceram para instigar sublevações. Facebook, Twitter foram subvertidos pela base da pirâmide social egípcia para este fi m. O resultado é um movimento pro-fundamente marcado pelo anarquismo digital: a inter-net ajudou a encher as ruas, que por sua vez se auto-or-ganizam sem lideranças e hierarquias palpáveis (ain-da que forças político/religiosas queiram instrumenta-lizá-las). A própria população cerca a biblioteca de Ale-xandria e o museu do Cairo para protegê-los de saques. Diante deste novo cenário ciberpolítico, censurar os egípcios seria como impedir a troca de arquivos mp3.

As pirâmides estão de cabeça para baixo. E Guy De-bord, um dos artífi ces de maio de 1968, estava certo quando dizia que é um momento belíssimo aquele no qual se dá vida a um assalto contra a ordem do mun-do. Desde o seu início, quase imperceptível, já sabemos que dentro em breve, o que quer que aconteça, nada se-rá como antes.

Pirâmide invertidaO CARTUNISTA Carlos Latuff, sempre muito inspira-do, desenhou o presidente Hosni Moubarak desplugan-do o mundo do Egito, representado por um mapa de on-de saía a tomada de um modem ligado ao Globo. Só que do mapa surgia um braço forte que, por sua vez, desplu-gava o presidente do Egito.

O Egito e sua cultura milenar já conheceram vários ti-pos de redes sociais. O império dos faraós e seus escri-bas; as passagens de Homero, Alexandre, César, Mar-co Antônio, Augusto, Pitágoras, Napoleão; a infl uência muçulmana; as confi gurações desenhadas pelo nefasto colonialismo britânico e pela delicada situação geopolí-tica com Israel.

Só que agora estamos falando de um país com 67% da população abaixo dos 30 anos e 90% de jovens de-sempregados. É dentro desse contexto que Ahmad Maher organizou, na primavera de 2008, um grupo de discussões na internet para apoiar a paralisação dos trabalhadores da cidade industrial de El-Mahalla El-Kubra. O coletivo pediu a todos que no dia 6 de abril, data da greve, usassem a cor preta e fi cassem em casa em apoio aos grevistas. Facebook, Twitter, Flickr, blo-gs e outros recursos entraram em ação para cobrir a

instantâneo

Silvio Mieli

la uma posição também de veto dos EUA ao progres-so do Programa Nuclear Brasileiro. Um físico cearen-se, Dalton Girão, do Instituto Militar de Engenharia, do Exército, despertou a ira estadunidense por ter publica-do em livro o resultado de suas simulações de experiên-cias nucleares que, praticamente, se equivalem a mais importante bomba atômica dos EUA, a W87. Tamanha é a precisão do físico que os gringos logo suspeitaram de espionagem. Deram ordens para o recolhimento do li-vro (censura!) e ainda extrapolaram afi rmando que ter-roristas poderiam ter acesso às fórmulas de Girão. Co-mo se não estivesse gravado para sempre na memória da humanidade o maior atentado terrorista conhecido, a incineração da população de Hiroxima e Nagazaki. Sabemos quem são os terroristas.

Os militares brasileiros resistiram ao recolhimento do livro. Mais que isto, há resistência ofi cial, louvável, à assinatura do Acordo Aditivo ao Tratado de Não Proli-feração de Armas Nucleares (TNP). Ele permite inspe-ções a qualquer tempo, sem aviso, a instalações milita-res brasileiras. Tal como o TSA, o TNP foi assinado por FHC. É signifi cativo o avanço trazido pela política exter-na brasileira a partir de Lula. Os telegramas do Wikile-aks o demonstram.

Wikilieaks e vetos imperiaisDOIS TELEGRAMAS divulgados recentemente pelo Wikileaks revelam que os EUA organizam vetos e boi-cotes a pelos menos duas atividades estratégicas brasi-leiras, visando impedir o desenvolvimento nacional so-berano e independente.

O primeiro telegrama fala do veto estadunidense ao Programa Espacial Brasileiro. O embaixador dos EUA comunicou ao embaixador da Ucrânia, no Brasil, que “os EUA não apoiam o programa nativo de veículos pa-ra o lançamento do Brasil”. A ingerência e o veto alcan-çam a Ucrânia, que possui uma empresa estatal bina-cional com o Brasil, a Alcântara Cyclone Space. Aliás, sempre alvo da imprensa colonizada, que defende os in-teresses da metrópole visando o não desenvolvimento tecnológico da periferia. Querem que o seleto e fecha-do clube de potências espaciais permaneça impermeá-vel ao desenvolvimento da ciência espacial pelo mundo afora. Com a eleição de Lula, o Acordo de Salvaguardas entre Brasil-Eua (TSA), fi rmado por FHC, foi engaveta-do, após ter sido rejeitado no Parlamento por afrontar a soberania nacional. A parceria com a Ucrânia é uma das maneiras encontradas para encurtar o caminho para o desenvolvimento espacial brasileiro.

O outro telegrama divulgado pelo Wikileaks reve-

Beto Almeida

comentários do leitor

Casseta & PlanetaDecepcionante o ensaio sobre o

Casseta & Planeta, na coluna de Le-andro Konder (edição 408), com to-do respeito à sua notória competên-cia. Não consegue analisar quase na-da em relação ao tipo de humor e sua repercussão na sociedade. O grupo teve muitos bons momentos e gran-des saques de criatividade, criação de personagens emblemáticos, mas nunca deixou de reproduzir o pre-conceito, o machismo, a homofobia etc. em seus quadros. A nota mais triste foi o esculacho aos nordestinos na reeleição de Lula, em 2006, quan-do eu deixei de assistir ao programa. O quadro criado pelos fofos era tão desqualifi cador e preconceituoso co-mo as manifestações tão criticadas da infeliz Mayara.

Mariângela Portela da Silva, por correio eletrônico

Regulação da comunicaçãoA entrevista com os pesquisadores

Sivaldo Pereira e Ramenia Vieira da Cunha, do Intervozes (edição 407), vem ratifi car a sensatez daqueles que percebem a necessidade urgente de dar um jeito na mídia brasileira, sem que tal signifi que a volta à lei da mor-daça. O nível de qualidade dos nossos meios de comunicação tem caído ver-tiginosamente. Tudo com o escopo de aumentar a tiragem ou o Ibope. A pre-ocupação primeira dos meios de co-municação deveria ser o bem-comum. Afi nal, há vários modos de se veicular uma mesma realidade. Matérias co-mo essa nos dão a certeza de que, de fato, há muita gente “acordada” nes-te Brasil.

Maria Inês Prado, São João da Boa Vista (SP),

por correio eletrônico

Cesare BattistiE mais uma vez o STF, encabeçado

por Cezar Peluso, se revela ultradirei-tista e golpista com o caso Battisti, co-mo se não fosse sufi ciente a decisão tomada em abril de 2010 de absolver, por 7 votos a 2, os crimes de lesa-hu-manidade cometidos pelos assassinos e torturadores do regime militar há al-gumas décadas. Tais decisões compro-vam explicitamente que, mesmo após 26 anos do término da ditadura, as forças reacionárias e os militares exer-cem grande domínio sobre nossa so-ciedade, especialmente no subservien-te STF, que deixa impune monstros e persegue comunistas.

Lucas Freiria, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

3

A IDEOLOGIA, como sabemos, é uma distorção noconhecimento do outro. Minha mente, conformesustentam pensadores dogmáticos, não distorce ne-nhuma apreensão da realidade.

O que eu vejo é o que todo mundo devia estar ven-do. O que eu ouço é o que os outros deviam estar ou-vindo. Não preciso mudar nada no meu conhecimen-to da realidade.

Os antigos romanos criaram a palavra alter, queem português passou a signifi car outro. Se formos fi -éis à história dessa palavra, veremos que o termo ori-ginal já nos diz com clareza que só podemos conhe-cer de fato o outro, alterando-o. Quer dizer: para en-tender o que é diferente, é necessário ir ao outro. Vi-ver a aventura de se modifi car.

Nós, neste valente semanário, que é o Brasil deFato, reunimos e transformamos realidades empíri-cas que precisamos usar contra as mentiras contadaspelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar ailusão de que vamos convencê-los.

Não sei da existência de nenhum banqueiro, denenhum latifundiário, de nenhum milionário, quese ponha realmente à disposição dos grandes movi-mentos sociais. Eles alegarão que estão sempre soba pressão plebeia, cercados por adversários implacá-veis; dirão que, se não se defenderem, com energiaacabarão tendo seus bens confi scados e, eventual-mente, suas vidas tolhidas.

A força de Marx está no fato de ele ter mostradocomo a história humana tem se realizado através dasduas coisas: de um lado, o desenvolvimento econô-mico, o avanço tecnológico, o “progresso”. De outro,a divisão que os privilegiados mantêm a qualquercusto, reprimindo os movimentos dos de “baixo”.

Nesse segundo sentido, a educação que a burgue-sia organizou e proporciona ao povo ensina os traba-lhadores a repetir velhos preconceitos e acaba des-moralizando a própria ideologia.

Nas discussões a respeito das inevitáveis distor-ções ideológicas, aparecem sempre alguns “musso-linis” que proclamam desavergonhadamente o as-sassinato da verdade pela ideologia. Para protegero caroço de verdade que a ideologia possui (ao la-do da mentira), a esquerda teve o mérito de inspirarum poeta/cantor brasileiro – Cazuza – que reivin-dicou para ele e seus camaradas a liberdade de pos-suir sua própria ideologia (Ideologia, eu quero umapra viver...).

Em Marx, a atitude em face da ideologia é afron-tosamente negativa. O poeta Cazuza, entretanto,dispõem-se a enfrentar a confusão ideológica dosseus inimigos (e, se for o caso, também de algunsamigos).

Marx e Cazuza se dão conta, por diferentes ca-minhos, do uso da distorção ideológica e tratam decombatê-la. Para o fi lósofo alemão, ideologia é umacategoria que diminui muito a credibilidade do con-ceito. Marx sustenta que a chave da ideologia está nofato de que a burguesia explora o trabalhador, dei-xando oculta a chamada mais-valia.

Cazuza é menos “radical”. Seu canto o mostra ple-namente inserido na realidade, mas sem se compro-meter com as categorias do pensamento teórico-po-lítico. Seus heróis “morreram de overdose” e seusinimigos estão no poder. Por isso, ele canta: “ideolo-gia, eu quero uma pra viver”.

Atualmente, o que se vê é a presença do pensamen-to conservador pragmático que desfaz as críticas quelhe são feitas em nome de critérios exclusivamenteutilitários e deixa de lado a análise crítica dos fenô-menos ideológicos. Para a superação da ideologia, éimprescindível abrir espaço no pensamento para aautocrítica. Não uma lenga-lenga que fi nge ser auto-crítica, contudo é apenas o autoelogio de intelectuaisa serviço da burguesia.

Sem autocrítica, é impossível aprofundar nossasideias a respeito da ideologia. Sem a ideologia, ten-demos a atrofi ar e empobrecer nossa relação conos-co mesmos.

Temos manifestado falhas e defi ciências no nossotrabalho teórico. O que nos consola é o fato de a bur-guesia não ter resolvido nenhum dos problemas queela vem enfrentando nas últimas décadas.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

A ideologia

Nós, neste valente semanário, que é o Brasil de Fato, reunimos e transformamos realidade

Sem autocrítica, é impossível aprofundar nossas ideias a respeito da ideologia. Sem a ideologia, tendemos a atrofi ar e empobrecer nossa relação conosco mesmos

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brasilde 3 a 9 de fevereiro de 20114

Márcio Zontade Açailândia (MA)

“PERIGO! ÁREA contaminada!”. Esse era um dos escritos em faixas que marca-ram o protesto dos moradores do bairro do Piquiá de Baixo, nas últimas semanas de 2010, na simpática cidade de Açailân-dia (MA).

A manifestação é contra a contamina-ção das siderúrgicas responsáveis pela produção de ferro-gusa e pelos trens de carga da Vale, que carregam inseticidas e fertilizantes, poluindo rios, contaminan-do o solo e deixando a qualidade do ar ir-respirável para os habitantes.

A história do Piquiá de Baixo, locali-zado às margens da BR 222 (km 14,5) e surgido em 1970, começou a mudar com o grande projeto dos Carajás, implanta-do na década de 1980, na construção de um grande polo siderúrgico instalado de

um lado e a Estrada de Ferro de Carajás do outro. “Estamos com uma bomba em cima da nossa cabeça, a Vale de um lado, e as siderúrgicas de outro”, assim dese-nha a geografi a da comunidade o senhor Willian Pereira de Melo, residente há 30 anos no local. Aliás, são cinco siderúrgi-cas: Fergumar, Gusa Nordeste, Pindaré, Simasa e Viena.

Hoje, as 300 famílias da comunida-de lutam para serem removidas para ou-tra área. Responsabilidade que foi di-vidida entre a Vale, Prefeitura Munici-pal, Ministério Público Estadual e gover-nos estadual e federal. Cada um entrou com uma função, mas a que mais cha-ma a atenção é a da Vale, fi cando, den-tre outras atribuições, com a incumbên-cia de ceder seus técnicos para realiza-rem um projeto que busque dinheiro pú-blico para resolver o caso. “A minerado-ra quer angariar dinheiro do Estado, de-pois de ser, junto às siderúrgicas, respon-sável pela destruição da região”, reclama o advogado da Justiça nos Trilhos, Dani-lo Chammas.

Algo que revolta o senhor Melo, pela demora no processo.“Eu creio que a Va-le não precisa de dinheiro público para nos tirar daqui. Com seus recursos pró-prios, tem condições sem depender de ninguém”, explanou, indignado, na as-sembleia pública ocorrida dias antes das festas natalinas, na igreja da comunida-de, enquanto um funcionário da área de responsabilidade social da Fundação Va-le cochilava nas primeiras fi leiras.

DestruiçãoEnquanto o impasse não se resolve,

estudos já confi rmam que é impossível manter as famílias na região. Segundo a engenheira de recursos hídricos e ciên-cias ambientais, do Centro de Defesa da

Vida e dos Direitos Humanos de Açailân-dia (CDVDH), Mariana de la Fuente Gó-mez, nas amostras de água, do solo e das plantas estudadas durante seis meses por sua equipe, os resultados são escandalo-sos e demonstram a destruição do meio ambiente. “São índices de poluição que só tinha visto em livros. Tem a quantida-de de ferro, de poluentes metálicos no ar, que causam doenças crônicas, uma água vermelha por causa de ferro, num ecos-sistema totalmente degradado, onde as pessoas lavam roupa, se banham, pes-cam”, critica.

Gómez se assustou certos dias quando o pHmetro, que mede o ph da água, fi ca-va “louco com o alto índice de poluição. Sem contar os resíduos desprezados pe-las siderúrgicas nos arredores ou dentro da própria comunidade, o que já quei-mou dez crianças nos últimos tempos”.

MortePara a engenheira, num ambiente as-

sim, difi cilmente se vive, por isso as mor-tes por doenças respiratórias são uma constante, embora o Estado esconda. “Parece proposital que os médicos da re-gião não registrem as mortes por con-sequência da poluição do ar que pro-voca enfi sema pulmonar. Não encon-trei assinatura de médicos em relatórios, não tem nos atestados de óbitos que ti-ve acesso e nem a médica que entrei em

contato, responsável pelo posto de saúde local, me prestou esclarecimentos con-tundentes”, revela Gómez.

Soraia, uma jovem de 26 anos, casada há cinco, tem o sonho de ser mãe, algo que quase conseguiu por duas vezes, não fosse a interrupção por abortos espontâ-neos. “Fui ao médico e a solução que me deu foi eu mudar do Piquiá de Baixo, se quisesse ser mãe, mas não tenho condi-ções de sair daqui assim, meu marido trabalha na siderúrgica Viana e ganha muito pouco”. Gómez explica que o alto índice de aborto na região é “pela quanti-dade de enxofre no ar”.

PreocupaçãoDiante de todas as mazelas sofridas pe-

lo povo do Piquiá de Baixo, o que se cons-tata é que as siderúrgicas e a Vale pouco se importam com a comunidade. “A Va-le não poderia nunca cortar um povoado carregando produtos tóxicos. Já as side-rúrgicas, eu as visitei por dentro, me de-parei com controles nulos, medidores de poluição desligados ou instalados, mas não funcionando direito”, revolta-se a engenheira.

Para Chammas, o que elas têm deixado “é apenas sujeira, destruição e morte. O Piquiá de Baixo representa bem o desca-so com a questão dos direitos humanos, pois já estão aí há mais de 20 anos e não se vê projetos ou atividades desenvolvi-dos para a comunidade, além do traba-lho precarizado imposto aos seus funcio-nários”, protesta.

Sem muita esperança de sair rapida-mente do bairro, José Pedro, professor,morador há mais de 15 anos, diz que,se depender da Vale e das siderúrgicas,a comunidade continuará a ser o “úni-co lugar do mundo onde se vê o ar quese respira”.

de Marabá (PA)

Com a efetivação da S11D, projeto de mineração da Vale que pode ser comparado a um novo com-plexo de Carajás, o aumento do escoamento de minério e da exportação evidenciam um modo de exaurir os recursos naturais no país, que vai contra a soberana nacional, na opinião do membro do Ins-tituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversi-dade (ICMBio), Frederico Drumond Martins.

“A Vale tem uma visão apenas de acionista, de oti-mizar, vender cada vez mais quantidades e quanti-dades do que ela extrai do solo brasileiro. Sabemos a importância econômica que tem o minério de fer-ro para o país, no entanto, não temos nenhuma re-serva, só vendemos”, analisa Martins.

O escritor Rui Nogueira, autor de Servos da moeda (Editora Nação do Sol, 2001), explicita o que já vem ocorrendo em outros países, que se aproveitam da forma de atuar da Vale no Brasil. “O minério de ferro de Carajás, com teor de mais de 60%, é exportado pelo preço do minério com 30% de teor – a sete dólares a tonelada –, com total isen-ção de impostos. Navios gigantescos estão transfe-rindo enorme quantidade de minérios para depósi-tos criados nos EUA e no Japão, estocando reservas estratégicas, que são nossas”, denuncia. Na China não é diferente, além do minério, ela estoca petró-leo e alimentos.

DisputaO maior empresário brasileiro contemporâneo,

Eike Batista, também se articula para entrar na ex-ploração mineral, “brigando contra o monopólio da Vale no mercado, que praticamente domina a ca-deia produtiva de minério com a mineradora, fer-

rovia, siderúrgica e seu porto”, segundo informa-ção do Instituto Brasileiro do Aço (IABR). Algo que futuramente acirrará ainda mais a briga pelo mi-nério e por terras, conforme noticiou, em seu blog Independência Sul Americana, o jornalista Cezar Fonseca. “A China busca garantir seu abastecimen-to na África e na América do Sul. Amplia-se a von-tade dos chineses de não apenas lançar mão das importações. Buscam, também, controle da produ-ção dessas matérias-primas”, escreve. Nesse senti-do, “um grupo empresarial chinês já detém 250 mil hectares de terras agricultáveis ao longo da frontei-ra do Piauí com o Maranhão”, alerta Fonseca.

De fato, a Vale já está tendo difi culdade, pois obstáculos como câmbio, aumento das importa-ções, guerra tributária e excesso de estoques no exterior podem atrapalhar os planos de implanta-ção de suas siderúrgicas pelo país afora, algo que lhe garantiria ainda mais poder, conforme análi-se do IABR.

Assim, “prevalecerá a briga dos mercados pelo nosso minério, exaurindo-o, apenas na busca pelo lucro, deixando à própria sorte nossa soberania”, refl ete o sociólogo e engenheiro agrônomo, Rai-mundo Gomes da Cruz Neto, presidente do Cen-tro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp).

Já o jornalista Lucio Flavio Pinto, editor do Jor-nal Pessoal no Pará, que vem acompanhando a atuação da Vale em território paraense, vai além e faz uma previsão: “Nada é repartido com o Estado no qual essa riqueza está, mas está sendo trans-ferida para o outro lado do oceano em velocidade que corresponde a uma verdadeira sangria desa-tada. Mais três décadas e só nos restará chorar no fundo do buraco em que fi caremos”. (MZ)

de Arari (MA)

O Vale Alfabetizar atendeu, de 2003 a 2009, cerca de 120 mil pessoas com mais de 15 anos no Pará, Maranhão, Sergipe, Mi-nas Gerais e Espírito Santo. O TeleSol Vale, continuidade do pro-grama de alfabetização da mineradora, certifi cou 355 alunos em Açailândia e 212 em Alto Alegre do Pindaré, em dezembro de 2010, com o objetivo de aperfeiçoar a fala e a escrita dos partici-pantes, além de tratar temas cotidianos, como saúde e qualidade de vida, segundo informações da empresa.

Recentemente foi inaugurada a Estação Conhecimento Vale em Arari (MA) para atender crianças e adolescentes entre 6 e 18 anos. Com capacidade para mil alunos, disponibilizará áreas de esporte e cursos profi ssionalizantes e de empreendedorismo. No Pará, foi recém inaugurado a Estação Conhecimento de Paraua-pebas, sendo a segunda no Estado, já que funciona uma unidade desde 2008, na cidade de Tucumã. Marabá, Barbacena e Curio-nópolis serão as próximas cidades a serem contempladas com o programa.

InteresseDiante de tantos programas voltados à educação propostos pe-

la Fundação Vale, há de se desconfi ar de algo, segundo o soció-logo Raimundo Gomes da Cruz Neto, presidente do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp). “É só observar que todos esses programas são realizados nas comu-nidades nas quais a Vale tem seus negócios”.

Em 2009, de acordo com relatório anual da empresa, o inves-timento em ações de responsabilidade socioambiental foi de 781 milhões de dólares.

Investimento contestado pelo professor de agronomia Fernan-do Micheloti, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “A Vale tem seu próprio fundo de responsabilidade social para atuar nas comunidades com seus projetos, que não resolvem os problemas, mas lhe servem muito bem de propaganda”.

Cruz Neto observa que “é explícita a tentativa de formar uma ci-vilização da mineração em seu entorno, que torne as pessoas acrí-ticas ao seu projeto e aos problemas gerados, por isso prepara os conteúdos dos cursos e escolhe seus locais de implantação”.

Seria necessário que o fundo formado pela Vale fosse geri-do por outros atores da sociedade, reclama Micheloti. “Teria quer ser um fundo controlado pelas comunidades, movimen-tos sociais e entidades públicas, averiguando suas reais ne-cessidades”. (MZ)

Soberania brasileira ameaçadaSegundo escritor, EUA e Japão construíram depósitos para estocar minério de ferro exportado do Brasil pela Vale

Civilização da mineração

“A Vale tem uma visão apenas de acionista, de otimizar, vender cada vez mais quantidades e quantidades do que ela extrai do solo brasileiro”

Um lugar do mundo onde se vê o ar que se respira

SUBDESENVOLVIMENTO Bairro do Piquiá de Baixo, em Açailândia, sofre com a poluição gerada pela Vale e por siderúrgicas

“Parece proposital que os médicos da região não registrem as mortes por consequência da poluição do ar que provoca enfi sema pulmonar”

“Estamos com uma bomba em cima da nossa cabeça, a Vale de um lado, e as siderúrgicas de outro”

Bairro do Piquiá de Baixo, em Acailândia, convive com a poluição gerada pela Vale

Antonio Soffi entini

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de 3 a 9 de fevereiro de 2011 5nacional

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

BASTARAM QUATRO dias de governo para que os boatos negativos se confi r-massem. Nos bastidores, desde a elei-ção de Dilma Rousseff (PT) à Presidên-cia, já se comentava sobre a possibilida-de de retomada, em breve, dos leilões de petróleo. No dia 4 de janeiro, o mi-nistro das Minas e Energia, Edison Lo-bão (PMDB-MA), confi rmou as suspei-tas. Os leilões de áreas de exploração de petróleo e gás no pré-sal seriam realiza-dos, segundo ele, já no segundo semes-tre deste ano. Enquanto leilões de cam-pos de petróleo em terra sob regime de concessão seriam realizados, de acordo com o ministro, já no primeiro semes-tre. O anúncio foi feito durante a soleni-dade que marcava sua posse no Minis-tério, na qual Lobão também se mos-trou otimista quanto a avanços na cons-trução da polêmica usina hidrelétrica de Belo Monte.

A possibilidade de retomada dos lei-lões de petróleo, contudo, não surgiu sem protesto de lideranças sindicais e estudantis. “Não podemos permitir que haja leilão. O governo dá todos os sinais de que quer transformar o Brasil em ex-portador de petróleo. Vamos continuar sendo exportadores de matéria-prima para o primeiro mundo? Não podemos. Temos que produzir de acordo com as necessidades internas do país e criar fontes alternativas de energia. Temos que reduzir a importância do hidrocar-boneto na matriz energética mundial”, protesta Emanuel Cancela, da direção do Sindicato dos Petroleiros (Sindipe-tro-RJ). Segundo ele, percebe-se uma sintonia nos discursos de Dilma, Lobão e José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras. Os três estariam apontando na direção da continuidade dos leilões e da exploração massiva do petróleo bra-sileiro para exportação.

“Para mim não foi nenhuma surpre-sa. Isso já estava apontado nas entreli-nhas do que vinha sendo discutido. Vão

Leilão de petróleo, tragédia anunciadaPRIVATIZAÇÃO Já no dia de sua posse, ministro Edison Lobão anuncia a realização de leilões do petróleo para muito breve. Sociedade civil organiza a resistência

dilapidar o estoque de recursos do Brasil. Muitas das concessões dos governos Lu-la e Fernando Henrique ainda estão em curso ou ainda vão ser iniciadas. O no-vo modelo aprovado [de partilha] não é bom, embora seja melhor do que o an-terior. Continuam priorizando a entrega dos recursos, enquanto nenhuma das re-

do Rio de Janeiro (RJ)

Uma declaração do presidente dos Es-tados Unidos, Barack Obama, sobre o se-tor energético, no fi nal de janeiro, surpre-endeu pela veemência. Ele criticou a sub-venção às “energias do passado”, defen-dendo o investimento nas fontes energé-ticas “do amanhã”. Signifi cativos, os sub-sídios às companhias de petróleo estadu-nidense deveriam, segundo ele, ser elimi-nados, para que se invista em novas ener-gias, infraestrutura e educação. A tese foi defendida na visita do presidente ao Con-gresso, no discurso sobre o Estado da União. O surpreendente da declaração, que ganhou centralidade no discurso, foi ter sido feita em um momento em que Obama perdeu a maioria no parlamento.

Em apenas seis anos, segundo relató-rio do Instituto Americano da Legislação Ambiental, o governo anterior, de Geor-ge W. Bush, entregou ao setor nada me-nos do que 72 bilhões de dólares em for-mas distintas de ajudas públicas. As ener-gias renováveis receberam apenas 29 bi-lhões de dólares – metade para fi nanciar

os agrocombustíveis, cujos benefícios são duvidosos. A indústria dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) investiu, apenas nas candidaturas ao Congresso em 2010, 18 bilhões de dólares. Desse to-tal, 75% foram para candidatos do Parti-do Republicano. No ano anterior, já havia sido investida quantia semelhante.

Em seus dois primeiros anos de gover-no, Obama tentou arduamente dar fi m aos subsídios. No entanto, mesmo ten-do, durante esse período, maioria nas duas casas parlamentares, ele não obte-ve sucesso. Agora, com o domínio signi-fi cativo dos republicanos sobre uma das casas, torna-se ainda mais difícil obter resultados alentadores. A opinião públi-ca estadunidense está, em sua maioria, do lado dessa posição. O derramamen-to de óleo no Golfo do México, em 2010, exerceu forte papel na consciência dos ci-dadãos dos EUA. No mesmo dia das de-clarações de Obama, uma das principais petrolíferas do país, a Conoco Phillips, anunciou a triplicação de seus lucros. As outras grandes corporações devem anun-ciar resultados semelhantes nos próxi-mos dias. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

O Banco Nacional de Desenvolvimen-to Econômico e Social (BNDES) apresen-tou, em 2010, o maior índice de desem-bolso da história. Aproximadamente R$ 168 bilhões foram gastos, em grande par-te devido à capitalização da Petrobras. O valor é 22,6% maior do que o desembol-so de 2009, de R$ 137 bilhões. O cres-cimento signifi cativo da economia bra-sileira também teria sido uma das cau-sas. Apenas a capitalização da Petrobras foi responsável por investimentos de R$ 24,7 bilhões do banco. O BNDES chegou ao fi nal do ano com uma quantia ainda maior de empréstimos aprovados ainda não liberados. Cerca de R$ 201 bilhões se enquadram nessa categoria, enquanto outros R$ 231 bilhões estariam em pro-cesso fi nal de análise. Todos estes valo-res são inéditos na história da institui-ção. A capitalização da Petrobras foi con-siderada um sucesso nos setores ligados ao governo.

Segundo informações divulgadas pelo banco, para conseguir atingir esse pata-mar foi necessária uma ajuda do gover-no federal com recursos. Desde 2009, o BNDES vinha recebendo aportes de re-cursos da União, que chegaram a cerca de R$ 180 bilhões. Esse volume de in-vestimento foi um dos pontos mais de-batidos da campanha presidencial, es-pecialmente durante o primeiro turno. A candidatura do PSDB apresentava crí-ticas ao gasto governamental, conside-rado demasiado. Também houve críti-cas de candidatos da oposição de esquer-da ao governo. Quando os valores de in-vestimento do BNDES de 2009 foram di-

vulgados, o presidente do banco, Luciano Coutinho, previa uma queda de investi-mento no ano seguinte, equivalente, em sua previsão, a 8%. Para Coutinho, o de-sembolso do banco chegaria, no máximo, a R$ 126 bilhões, valor 33,6% menor do que viria alcançar (R$ 41 bilhões a mais). O banco também evita fazer previsão pa-ra o investimento neste ano, especial-mente pela incerteza sobre a prorroga-ção do Programa de Sustentação e Inves-timento (PSI). Coutinho acredita, ainda, em uma possível diminuição.

Segundo os mesmos dados, divulgados no fi nal de janeiro pelo BNDES, se não houvesse a capitalização da Petrobras, o aumento no nível de investimento do banco seria de apenas 5%. Os números revelam que os setores da economia tive-ram um desembolso muito próximo da-quele de 2009 em termos percentuais. O setor industrial obteve 47% dos recursos destinados pelo banco, enquanto o de in-fraestrutura teve 31%. Comércio e servi-ços fi caram com 16%, em terceiro lugar. Somados, representam 94% dos recur-sos. Houve, entretanto, crescimento no empréstimo às micro e pequenas empre-sas. Enquanto, em 2009, tiveram inves-timento de R$ 24 bilhões (18% dos re-cursos), no ano seguinte alcançaram R$ 46 bilhões (27% do desembolso). Segun-do o BNDES, mais importante do que o aumento dos recursos é a otimização do empréstimo. O desenvolvimento socio-ambiental seria uma das prioridades pa-ra 2011. (LU)

Esse volume de investimento foi um dos pontos mais debatidos da campanha presidencial

Capitalização da Petrobras causa maior desembolso da história do BNDESBanco de fomento gastou, em 2010, R$ 168 bilhões, sendo só R$ 24,7 bilhões com a capitalização

Obama volta a criticar privilégio do petróleoPresidente estadunidense reivindica fi m do lobby ao setor energético, para investimento em energias renováveis

formas estruturais está sendo privilegia-da. É triste”, lamenta Ildo Sauer, ex-dire-tor de Gás e Energia da Petrobras e um dos diretores do Instituto de Eletrotécni-ca e Energia da Universidade de São Pau-lo (USP). Alguns dos sindicalistas têm lembrado que um dos setores que mais se mobilizou pela eleição de Dilma foi o dos petroleiros.

Há forte preocupação no movimento com relação à vinda do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao Bra-sil. Anunciada para março, a visita certa-mente terá como objetivo tratar de ques-tões estratégicas – incluindo o pré-sal brasileiro. Entre os assuntos anuncia-dos para a conversa com a presidenta Dilma, fi gura “a energia limpa, o cresci-mento global, a assistência ao Haiti e os esforços para o desenvolvimento”. Nesse debate, anunciado por um representante

da Casa Branca, a exploração do petróleo nacional certamente entrará em pauta –embora os agrocombustíveis devam ga-nhar projeção no diálogo. Já se esboça, no Rio de Janeiro, a iniciativa de organi-zar um grande ato de protesto durante a visita do presidente estadunidense.

ResistênciaNo dia 17 de janeiro, pôde-se ter uma

noção precisa de que a resistência aos leilões esboça se estruturar. Foi realiza-do um ato no Rio de Janeiro com mais de 800 pessoas, organizado por estudantes vinculados à oposição da União Nacional dos Estudantes (UNE). A manifestação aconteceu ao fi nal do 13º Congresso Na-cional de Entidades de Base da UNE (Co-neb), como decorrência de reuniões e de-bates entre os estudantes e sindicalistas. Entoando gritos ensaiados como “Leilão! Leilão! É privatização!”, e portando car-tazes e faixas improvisados, os jovens se dirigiram ao edifício da BR Distribuido-ra no bairro do Maracanã. Além dos pro-testos antileilão, também manifestaram o apoio às vítimas das chuvas na região serrana do Rio e reivindicaram a aplica-ção de 50% do Fundo Social do pré-sal na Educação.

As principais lideranças foram unâ-nimes em afi rmar que essa era apenas a primeira iniciativa de resistência. Oobjetivo é ampliar, por todo o Brasil, aoposição aos leilões do petróleo brasi-leiro. Para isso, já no início de fevereiro se realizará no Rio uma plenária estadu-al de planejamento da atuação do mo-vimento social. Na pauta, não apenas aconstrução de unidade em torno da re-sistência, como também a realização de um curso de formação e a organização de uma nova plenária nacional da cam-panha “O Petróleo Tem Que Ser Nosso”.“Foi um erro das entidades ter pré-esta-belecido essa plenária para março. Ago-ra, a luta está colocada, e precisaríamos já estar nos organizando”, afi rma Can-cela. “A Petrobras tem emitido docu-mentos afi rmando que nos transforma-remos em grandes exportadores, comose isso fosse bom”, lamenta.

800pessoas participaram de

ato no Rio de Janeiro contra os leilões do petróleo

“Não podemos permitir que haja leilão. O governo dá todos os sinais de que quer transformar o Brasil em exportador de petróleo”

Ao tomar posse, Edison Lobão cumprimenta vice-presidente Michel Temer

Obama saúda deputados logo antes do discurso sobre o Estado da União

Offi cial White House Photo / Pete Souza

Marcello Casal Jr/ABr

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Direita mobilizadaSemelhante ao que está aconte-

cendo com o italiano Cesare Battisti aqui no Brasil, a direita argentina também se movimenta para revogar o status de refugiado dado ao chile-no Galvarino Aplabaza, ex-integran-te da Frente Patriótica Manuel Ro-dríguez e acusado pelo assassinato do senador chileno Jaime Guzmán em 1991. Galvarino vive com a espo-sa na periferia de Buenos Aires há 12 anos e tem três fi lhos argentinos.

Luxúria criminosaFinalmente a justiça decidiu inter-

vir na mordomia do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, que deu um golpe de R$ 2,5 bilhões com o Banco Santos, está com os bens bloqueados, mas continuava usufruindo a mansão de cinco andares no bairro do Mo-rumbi em São Paulo. Ele foi despeja-do do imóvel por não pagar o aluguel e deixou para trás todos os bens pes-soais, inclusive mais de 500 ternos. Vejam bem: mais de 500 ternos!

Agenda capitalistaDe todas as reformas que o Brasil

precisa, especialmente para aprofun-dar o sistema democrático e reduzir a desigualdade econômica e social, a que mais interessa e está mobilizan-do o empresariado é a reforma tri-butária, em especial a que o governo tucanamente chama de “desoneração da folha de pagamento” das empre-sas, que nada mais é do que redução de impostos e aumento das margens de lucro. Claro, isso deve sair logo!

Para-raiosO peemedebista tucano Nelson

Jobim entrou para o governo Lula, em 2007, para preparar as Forças Armadas para a privatização ae-roportuária e eventuais mudanças nos fornecedores de equipamentos militares. Atuou com a desenvoltura de quem tem as costas largas, brigou com vários colegas de ministério e foi um dos poucos mantidos no car-go. Pergunta básica: as políticas go-vernamentais seriam diferentes sem Nelson Jobim?

Extração máximaDe acordo com a Agência Petrolei-

ra de Notícias, a campanha “O Petró-leo Tem que Ser Nosso”, integrada por sindicatos, movimentos sociais e estudantis, iniciou mais uma etapa de mobilização para impedir que o governo realize novos leilões de privatização do petróleo nos próxi-mos meses, conforme anúncio do ministro das Minas e Energia, Edi-son Lobão. Os Estados Unidos estão interessadíssimos na exportação do petróleo brasileiro.

AlternativaBrasileiros que visitaram a Bolívia

recentemente fi caram impressiona-dos com a boa programação da Te-lesur, a emissora de TV criada anos atrás pelos governos da Venezuela, Argentina e Uruguai. Na época, o governo brasileiro preferiu fi car de fora dessa rede latino-americana, que agora faz excelente cobertura jornalística do continente, promove debates e integração cultural. Aqui, a Telesur continua sendo sabotada pelas empresas de comunicação.

Luta desigualA juíza Fabíola Queiroz, da 1ª Vara

Federal de Franca (SP), acaba de proibir a queima da palha da cana-de-açúcar sem a apresentação prévia do Estudo de Impacto Ambiental pelas usinas localizadas nos muni-cípios de Franca, Cristais Paulista, Itirapuã, Jeriquara, Patrocínio Pau-lista, Pedregulho, Restinga, Ribeirão Corrente, Rifania e São José da Bela Vista. A medida é excelente para proteger a saúde da população. A aposta é saber quanto vai durar!

Falso estágioModismo neoliberal para a explo-

ração de trabalhadores com baixa remuneração, a contratação de esta-giários deixou de ser fi scalizada há vários anos pelos sindicatos e pelo Ministério do Trabalho. Agora, o Tri-bunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul decidiu que o estágio, sem a devida supervisão universitá-ria, deve ser considerado relação de trabalho com equivalência salarial aos dos outros trabalhadores. Está aí a dica para os sindicatos!

Paraíso tropicalO Banco Central informa que além

de enviarem lucros de 26 bilhões de dólares, em 2010, as empresas estrangeiras que operam no Brasil também emprestaram 3,7 bilhões de dólares para suas matrizes, prin-cipalmente bancos, montadoras de veículos e empresas de telefonia. Isso explica porque os preços dos serviços e produtos dessas empresas aqui no Brasil são os mais altos do mundo. Quem paga a conta?

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Spensy Pimentel e Joana Moncau

da Cidade do México

ENGENHEIRO E DOUTOR em geogra-fi a, o professor Oswaldo Sevá tem sido, nas universidades brasileiras, um dos principais aliados dos movimentos so-ciais em suas lutas contra os grandes pro-jetos de “desenvolvimento”, como usi-nas hidrelétricas, minas e estradas. Tra-ta-se de empreendimentos que ele, em seus cursos na Universidade de Campi-nas (Unicamp), chama de “confl itos atu-ais da acumulação primitiva”.

A maior luta em que está envolvido atualmente é contra a megausina de Be-lo Monte, no rio Xingu, paraíso da bio e da sociodiversidade em plena Amazônia, agora ameaçado por esse projeto dos tem-pos da ditadura civil-militar que foi atu-alizado e desengavetado pelo ex-presi-dente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde os anos 80, Sevá publica estudos críticos ao projeto, demonstrando suas falhas e in-consistências.

Na entrevista a seguir, o professor mos-tra que o atual cenário de confl itos socio-ambientais tem, na realidade, uma am-plitude global, representando um desa-fi o para os movimentos sociais de todo o mundo. E adverte: “A ameaça também é muito grave quando os intelectuais e po-líticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e fl exibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à ex-propriação”.

É possível perceber na atualidade uma ofensiva de alcance latino-americano desses projetos de exploração de recursos naturais em terras comunitárias (camponesas/indígenas)?Oswaldo Sevá – Sim, é uma ofensiva com grande preferência pelas américas Central e do Sul, mas que também as-sola várias regiões da África, da Ásia e da Oceania. Mas é uma ofensiva global, pois envolve agentes econômicos e po-líticos de muitos países, agentes que ra-ciocinam e decidem com o “mapa mun-di” aberto numa grande mesa ou numa grande tela digital. É uma ofensiva capi-talista, e não podemos omitir nem esque-cer esse nome, porque se trata de tentar superar mais uma das grandes crises es-truturais do sistema capitalista. No caso, dizem os estudiosos como Harvey e Ar-righi, é uma crise de super-acumulação, uma crise fi nanceira, uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda ten-dencial das taxas de lucro”.

Por isso, os alvos preferenciais da ofen-siva são as localidades e regiões com re-cursos naturais considerados estraté-

gicos. E aí se criam projetos de investi-mentos considerados capazes de gerar ta-xas de retorno altas – o que obviamente depende de custos econômicos e de cus-tos sociais, e depende da possibilidade de concretizar, novamente, o “velho” meca-nismo da acumulação primitiva, que nun-ca deixou de atuar.

Os grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os equipamentos elétri-cos, os minérios e a metalurgia, o agro-negócio, o petróleo e o gás, a celulose e papel, estão há algumas décadas estu-dando minuciosamente as possibilida-des de novas fontes desses materiais e energias e esquadrinhando com méto-dos sofi sticados os novos territórios on-de produzir tais mercadorias. Anunciam investimentos similares ao mesmo tem-po em todos os lugares, por exemplo, hi-drelétricas para barrar todos os rios ain-da barráveis em muitos países, incluindo até mesmo alguns dos países mais anti-gos e mais ricos, como os europeus. Por exemplo, anunciam a abertura de novas minas de ferro, manganês, ou de níquel, cobre, zinco, cromo, mas principalmen-te minas de ouro, prata, platina e metais mais raros como o nióbio, em várias re-giões do mundo ao mesmo tempo.

O primeiro passo para conseguir con-cretizar cada um desses investimentos – ao contrário do que muitos argumen-tam, não é o fi nanciamento, pois de al-gum modo sobra capacidade de inves-tir no sistema global – é a conquista dos territórios. Que, em geral, já têm ocu-pantes, donos e usuários anteriores, em alguns casos, muito antigos, grupos hu-manos secularmente estabelecidos. Suas terras devem ser agora “liberadas” para barragens, novas minas ou grandes plan-tios de eucaliptos ou palmeiras ou soja, e estradas e ferrovias que os conectem ao mercado mundial. Aí, os moradores e os vizinhos desses locais escolhidos pelo grande capital devem ser expropriados e transformados em proletários, uma par-te deles em assalariados, que somen-te conseguirão sobreviver no mercado e para o mercado. Essa é a ofensiva.

Como classifi ca o grau dessa ameaça?

É muito grave, pois o sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritá-rias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança do patrimônio, dos exe-cutivos e dos homens de campo, empre-gam cada vez mais intermediários da co-ação sobre os povos, informantes que na prática fazem contrainformação, rastre-ando os movimentos legítimos e libertá-rios, agem por meio de capangas para ras-trear e intimidar esses dissidentes e resis-tentes. O capital se apossa ainda mais dos postos de governo nas três esferas – Exe-cutiva, Legislativa e principalmente no Judiciário.

Enquanto aumentar o poderio das grandes empresas, as duras conquistas democráticas serão corroídas e derruba-das, restando para a sociedade uma into-

xicação de propaganda institucional, as empresas se autovangloriando, alarde-ando “responsabilidade social”, “susten-tabilidade”. As mesmas corporações que dependem da expropriação e da violên-cia usam o dinheiro público, isenções de impostos para exercer o mecenato, pa-trocinar e usufruir da promoção de sua imagem nas atividades culturais, espor-tivas, musicais, cinematográfi cas etc.

Quais os casos mais graves, em sua avaliação?

Considerar situações sociais mais ou menos graves depende muito do acesso à informação sobre o que ocorre, o que é difi cultado pela própria ofensiva comen-tada, e depende, claro de escalas de valor ético. Acho que são mais graves os casos em que as pessoas estão sendo desaloja-das à força, em que os antigos moradores, sejam indígenas, ou afrodescendentes, ou simplesmente famílias rurais e até mes-mo pequenos proprietários, são removi-dos contra a vontade e vão para a diás-pora, para “reassentamentos” quase pri-sionais, vão para as novas favelas das ci-dades.

São muito graves os casos em que o suprimento de água da população, ou o “Riego” secularmente compartilhado en-tre vizinhos, fi cou ou vai fi car comprome-tido em quantidade e qualidade. É fatal-mente o que se passa na região onde são abertas minas de ouro, pois a mineração e a concentração do metal usam muita água, secam os lençóis, contaminam o so-lo e o subsolo e destroem ou envenenam os cursos d’água, diminuindo ou acaban-do com a pesca. E são igualmente graves os casos em que haverá fome porque se perdeu a terra de plantio, ou a mata de co-lheita e caça, o rio onde se pesca.

Essa insistência dos governos em realizar grandes projetos hidrelétricos justifi ca-se na conjuntura atual de crise climática/econômica?

A insistência que você pergunta existe, mas não é dos governos, é por meio dos governos. Ou seja, é uma insistência que tem origem na grande dependência que têm alguns setores industriais em rela-ção à eletricidade para uso em seus pro-cessos produtivos, é o caso do alumínio, do cobre, do níquel, dos metais em geral, da celulose e seus produtos, de alguns ramos da química, como cloro-soda. Mais do que isso, é a insistência das em-presas desses setores em reduzir na sua planilha de custos o grande peso que tem a energia elétrica, e aí vão atrás de novasfontes que sejam “baratas”, ou seja, nas quais os custos fundiários, sociais, am-bientais sejam reprimidos para baixo; e, principalmente, vão atrás de condições propícias à celebração de contratos lesi-vos aos países “anfi triões” desses proje-tos. Foi o que ocorreu há quase 30 anos com a eletricidade de Tucuruí no Brasil, e que está delineado agora com a eletri-cidade do rio Madeira.

Conquistar territórios:a prioridade corporativaENTREVISTA “Ofensiva do capital contra os povos indígenas e camponeses é global”, observa Oswaldo Sevá

“O sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança”

“Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é ‘gerada’ como dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados”

Indígenas protestam em audiência sobre a usina de Belo Monte

Lucivaldo Silva/Agência Pará

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brasil de 3 a 9 de fevereiro de 2011 7

Anita Leocadia Prestes

OLGA BENARIO Prestes nasceu em Munique (Alemanha) a 12 de fevereiro de 1908. Aos quinze anos de idade, sen-sibilizada pelos graves problemas so-ciais presentes na Alemanha dos anos de 1920, Olga viria a aproximar-se da Juventude Comunista, organização po-lítica em que passaria a militar ativa-mente. Aos 16 anos, apaixonada pelo jo-vem dirigente comunista Otto Braum, Olga sai da casa paterna e junto com o companheiro viaja para Berlim, onde ambos irão desenvolver intensa ativi-dade política no bairro operário de Neu-kölln. Embora vivendo com nomes fal-sos, na clandestinidade, Olga e Otto aca-bam sendo presos em outubro de 1926. Ainda que Olga tenha fi cado detida ape-nas dois meses, Otto permaneceu preso, acusado de “alta traição à pátria”. Em abril de 1928, Olga, à frente de um gru-po de jovens comunistas, lidera assalto à prisão de Moabit para libertar Otto. A ação foi coroada de êxito total, pois além de o prisioneiro ter escapado da prisão de “segurança máxima”, Olga e seus ca-maradas conseguiram fugir incólumes. A cabeça de Olga é posta a prêmio pelas autoridades alemãs.

Tarefa internacionalPor decisão do Partido Comunista,

Olga e Otto viajaram clandestinamen-te para Moscou, onde a jovem comunis-ta de apenas 20 anos se torna dirigen-te destacada da Internacional Comu-nista da Juventude. No fi nal de 1934, já separada de Otto, Olga recebe a tare-fa da Internacional Comunista de acom-panhar Luiz Carlos Prestes em sua via-gem de volta ao Brasil, zelando pela sua segurança, uma vez que o governo Var-gas decretara sua prisão. Prestes e Olga

partiram de Moscou no fi nal de dezem-bro de 1934, viajando com passapor-tes falsos, como marido e mulher, ape-sar de estarem se conhecendo naqueles dias. Durante a longa e acidentada via-gem rumo ao Brasil, os dois se apaixo-nam, tornando-se efetivamente marido e mulher.

Em março de 1935, Prestes é aclama-do, no Rio de Janeiro, presidente de honra da Aliança Nacional Libertado-ra (ANL), uma ampla frente única, cujo programa visava a luta contra o impe-rialismo, o latifúndio e a ameaça fascis-ta, que pairava sobre o mundo e tam-bém sobre o Brasil. Prestes e Olga che-gam ao Brasil em abril desse ano, pas-sando a viver clandestinamente na ci-dade do Rio de Janeiro. O “Cavaleiro da Esperança” torna-se a principal lideran-ça do movimento antifascista no Bra-sil e, assessorado o tempo todo por Ol-ga, participa da preparação da insurrei-ção armada contra o governo Vargas, a qual deveria estabelecer no país um go-verno Popular Nacional Revolucionário, representativo das forças sociais e polí-ticas agrupadas na ANL.

Repressão e prisãoCom o insucesso dos levantes de no-

vembro de 1935, desencadeia-se violen-ta repressão policial contra os comunis-tas e seus aliados. Em 5 de março de 1936, Prestes e Olga são presos no su-búrbio carioca do Méier por ordem do famigerado capitão Filinto Muller, en-tão chefe de polícia do governo Var-gas. A ordem expedida aos agentes po-liciais era clara – a liquidação física de Luiz Carlos Prestes. No momento da prisão, Olga salvou-lhe a vida, interpon-do-se entre ele e os policiais, impedin-do o assassinato do líder revolucioná-rio. Uma vez localizados e presos, Pres-tes e Olga foram violentamente separa-dos. Ele, conduzido para o antigo quar-tel da Polícia Especial, no morro de San-to Antônio, no centro do Rio. Olga, após

uma breve passagem pela Polícia Cen-tral, foi levada para a Casa de Detenção, situada então à rua Frei Caneca, onde fi -cou detida junto às demais companhei-ras que haviam participado do movi-mento da ANL.

ExtradiçãoPrestes e Olga nunca mais se veriam.

Em setembro de 1936, Olga, grávida de sete meses, era extraditada para a Ale-manha hitlerista pelo governo de Getú-lio Vargas. Junto com Elise Ewert, ou-tra comunista e internacionalista ale-mã que participara da luta antifascis-ta no Brasil, foi embarcada à força, na calada da noite, no navio cargueiro ale-mão “La Coruña”, viajando ilegalmen-te, sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. O comandante do navio re-cebeu ordens expressas de cônsul ale-mão no Brasil para dirigir-se direto a Hamburgo, sem parar em nenhum ou-tro porto estrangeiro, pois havia prece-

dentes de os portuários franceses e es-panhóis resgatarem prisioneiros de-portados para a Alemanha, quando taisnavios aportavam à Espanha ou à Fran-ça. Após longa e pesada travessia, asduas prisioneiras foram conduzidas in-comunicáveis para a prisão de mulhe-res de Barnimstrasse, em Berlim, ondeOlga deu à luz sua fi lha Anita Leocadia,em novembro de 1936.

Numa exígua cela dessa prisão, sub-metida a regime de rigoroso isolamento, Olga conseguiu criar a fi lha até a idade de 14 meses, graças à ajuda, em alimen-tos, roupas e dinheiro, que recebeu damãe e da irmã de Prestes. Ambas se en-contravam em Paris dirigindo a campa-nha internacional de solidariedade aospresos políticos no Brasil. Com a depor-tação de Olga, a campanha se amplia-ra em defesa da esposa de Prestes e desua fi lha. Várias delegações estrangeiras foram à Alemanha pressionar a Gesta-po, obtendo afi nal a entrega da criançaà avó paterna – Leocádia Prestes, mu-lher valente e decidida, a quem o gran-de poeta chileno Pablo Neruda dedicou o poema Dura Elegia, que se inicia como verso : “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América...”

Assassinada numa câmara de gásA campanha internacional, que atin-

giu vários continentes, não conseguiu,contudo, a libertação de Olga. Logo de-pois ela seria transferida para a prisãode Lichtenburg, situada a cem quilôme-tros ao sul de Berlim. Um ano mais tar-de, Olga era confi nada no campo de con-centração de Ravensbruck, onde junta-mente com milhares de outras prisio-neiras seria submetida a trabalhos for-çados para a indústria de guerra da Ale-manha nazista. A situação de Olga seria particularmente penosa, pois carregava consigo duas pechas consideradas fatais– a de comunista e a de judia. Em abril de 1942, Olga era transferida, numa le-va de prisioneiras marcadas para mor-rer, para o campo de concentração deBernburg, onde seria assassinada numacâmara de gás.

O exemploOlga, segundo os depoimentos de to-

dos que a conheceram e conviveram com ela, nunca vacilou diante das grandes provações que teve que enfrentar. Até o último dia de sua trágica existência, manteve-se fi rme perante o inimigo e so-lidária com as companheiras. Ao despe-dir-se do marido e da fi lha, antes de ser levada para a morte, escreveu: ”Lutei pe-lo justo, pelo bom e pelo melhor do mun-do”; “até o último momento manter-me-ei fi rme e com vontade de viver”.

A vida e a luta de uma revolucionáriacomo Olga, comunista e internaciona-lista, não foi em vão; seu heroísmo serve de exemplo e de inspiração para os jo-vens de hoje.

Anita Leocádia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em

História Comparada da UFRJ e Presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.

Um exemplo para os jovens de hojeOLGA BENARIO PRESTES A revolucionária, até o último dia de sua trágica existência, manteve-se fi rme perante o inimigo e solidária com as companheiras

Trata-se, realmente, de “energia limpa”, como se costuma dizer?

Bem, sou professor na área de Energia há mais de 20 anos, me formei em En-genharia Mecânica. Posso responder de modo simples, fundamentado apenas na ciência da Termodinâmica, que é um ramo importante da Física, que estuda o calor e o frio, as máquinas que trans-formam as energias naturais em traba-lho útil. Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é “gerada” como dizem os economistas, os políticos e jornalis-tas desinformados. A energia é apenas transformada de um tipo em outro, su-cessivamente. O montante total se con-serva e em cada transformação uma boa parte se perde, se degrada, não poden-do ser novamente obtido o mesmo total de trabalho útil. Portanto, não existem energias “renováveis”.

De modo similar, existe a lei da con-servação da massa e dos fl uxos de mas-sa, das vazões: tudo que entra num sis-tema tem que sair, de um modo ou de outro; se sair menos é porque se acumu-lou lá dentro, se sair mais é porque ha-via um estoque que foi usado.

Portanto, não há como produzir nada de forma “limpa”; toda operação produ-tiva produz resíduos sólidos, líquidos ou gasosos. Mesmo uma hidrelétrica cons-truída em cima de um solo estéril emiti-rá vapor d’água por causa da insolação e da evaporação e gases da fermentação da matéria orgânica trazida pelo rio. Se a represa de uma hidrelétrica tiver vege-tação na área alagada, produzirá muitos gases de fermentação, do apodrecimen-

to dessa vegetação, inclusive o gás meta-no, que é um dos gases que desequilibra o efeito-estufa natural do planeta.

Insisto na resposta: não há nada reno-vável, nada limpo.

E vou além: mesmo que tecnicamente fosse possível, esses valores nunca nor-tearam o capitalismo. Se assim fosse, nunca teriam existido na proporção de hoje os depósitos de lixo urbano, o lan-çamento de esgoto bruto nos rios e lito-rais, a poluição do ar, a contaminação do solo com resíduos perigosos.

Quais interesses estão, geralmente, ocultados aí?

Transformar o interesse dos oligopó-lios e a luta deles pela sua permanência e crescimento em um valor geral, em in-teresses de toda a sociedade. A meta pri-vada travestida em objetivo público. A não explicitação do vínculo íntimo entre os “políticos” e os “ empresários”, entre a Política e a Economia; e por aí vamos nesse período histórico que mais parece uma “Idade Média” obscurantista: Esta-do fi ca sob o foco o tempo todo, e as em-presas estão “fora do alvo”... No caso bra-sileiro, a eletricidade, a mineração, a si-derurgia, o petróleo, dentre outros, são os setores civis onde a ditadura militar continua, se aperfeiçoa, renova os qua-dros e a mentalidade dominadora, anti-democrática.

O discurso em favor desses empreendimentos (mineração/energia/transportes) que afetam terras de populações camponesas/tradicionais em geral opõe um “interesse nacional” à resistência de uma “minoria que não pode prejudicar o desenvolvimento para uma maioria” – sem falar em recorrentes componentes xenófobos/conspiratórios que apelam a uma “suposta ameaça estrangeira”. Esse discurso se sustenta?

Isso tem a ver com o que eu dizia. É uma tentativa obsessiva de dissimula-ção, uma espécie maligna de autodes-

construção: acusar os outros de faze-rem aquilo que as próprias corporações fazem. Numericamente são, sim, mino-rias que moram nos territórios escolhi-dos para os projetos de investimento; mas os benefi ciários não são a maio-ria do país, e sim as minorias mais ri-cas, os grandes proprietários, o siste-ma fi nanceiro. Porque o sistema não desconcentra com esses investimentos e, sim, concentra terras, patrimônios, rendas, tudo.

Conhecemos no Brasil esse tipo de discurso maligno: é o dos dirigentes da nossa Agência Nacional de Energia Elétrica, do nosso Ministério de Minas e Energia, da tropa de choque da “dam industry”. Ficam difundindo essa coi-sa de “investimento estruturante”, “es-tratégico”, falam em “segurança ener-gética” – expressão que vem dos EUA, com sua dependência de petróleo im-portado. E daí preparam o terreno pa-ra uma desregulamentação total,para o licenciamento acelerado e garantido de qualquer obra, ou melhor ainda, pa-ra que se possa qualquer coisa sem li-cenciamento.

O “componente xenófobo” que vo-cê menciona acho que é a hipocrisia ao extremo, uma manobra retórica in-teligente a curto prazo, funciona para a opinião pública de tendência direitista e uma parte dos patriotas mesmo de es-querda. No caso da Amazônia brasilei-ra, os territórios já estão sendo inter-nacionalizados pelo capital e pelas For-ças Armadas e de inteligência dos paí-ses mais fortes, que tudo monitoram. E também pelos biopiratas, pelos com-

pradores de terras e de fl orestas. Masnão se pode negar que atuam tambémONGs e missionários de igrejas que, defato, fazem o jogo das multinacionais.

Quais os cenários que se descortinam em relação ao quadro?

A situação futura será mais grave on-de a população está hoje mais desinfor-mada, desmobilizada, manipulada porcoronéis à moda antiga, ou então, ame-drontada por um passado de repressão.Mas a ameaça também é muito gravequando os intelectuais e políticos con-siderados de esquerda rezam a cartilhado capital, repetem os mantras ideoló-gicos do capitalismo, e usam o seu ca-pital político e cultural para amainar ascríticas e fl exibilizar os que pensam demodo autônomo, para isolar aquelesque simplesmente continuam resistin-do à expropriação.

Aí o Brasil da década de 2010 será um antiexemplo, o Brasil que foi presidido durante oito anos por um ex-sindicalis-ta, eleito pela esquerda, embora não te-nha feito um governo de esquerda, um país que agora elegeu presidente – ape-sar de uma grande soma de abstenção e voto nulo e branco – a “mãe do PAC”, a senhora-propaganda da “Aceleração do Crescimento”.

É incrível o realismo da linguagem, pois nem se coloca mais o desenvolvi-mento como conceito-chave, e sim o crescimento. Crescer somente não basta, como se 3 ou 4 % ao ano não fosse já uma vitória num mundo em crise, isso tem que ser “acelerado”. A ideia da acelera-ção é exatamente o que o sistema busca desesperadamente – contrariar a queda da taxa de lucro, obter retornos, lucros extraordinários.

Voltamos assim à primeira respos-ta: a ofensiva é para tentar desafogaro excesso de capital. Por causa da de-sigualdade, do dogma antidistribuição,da despesa crescente do próprio ato decomandar e preservar privilégios, o ca-pital encontra cada vez mais impossibi-lidade de se realizar fechando o ciclo daacumulação. (Desinformémonos)

“É uma tentativa obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de autodesconstrução: acusar os outros de fazerem aquilo que as próprias corporações fazem”

“Mas não se pode negar que atuam também ONGs e missionários de igrejas que, de fato, fazem o jogo das multinacionais”

ARTIGO

Olga, à frente de um grupo de jovens comunistas, lidera assalto à prisão de Moabit para libertar Otto

Ao despedir-se do marido e da fi lha, antes de ser levada para a morte, escreveu: ”Lutei pelo justo, pelo

bom e pelo melhor do mundo”; “até o último momento manter-me-ei

fi rme e com vontade de viver”

Olga Benário Prestes, que completaria 103 anos no dia 12

Reprodução

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culturade 3 a 9 de fevereiro de 20118

Danilo Augusto e Solange Engelmann

de Guararema (SP)

AO SOM DE VIOLA caipira, violão, tambor e outros instrumentos musi-cais, e entoando em coro a música Ca-lix Bento, canção do folclore mineiro, músicos e poetas abriram o 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacional Flores-tan Fernandes (ENFF), do Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-ra (MST).

O evento, que é um encontro de ce-lebração e resgate da cultura popular com poetas e cantadores de várias re-giões do país, aconteceu em Guararema (SP), no auditório da ENFF, dia 28 de janeiro. O mutirão, que durou dez ho-ras, contou com cerca de 20 apresenta-ções de artistas que, através da sua ar-te, festejam a cultura popular brasilei-ra. Os poetas e violeiros fi zeram apre-sentações que foram da música sul-ma-to-grossense e gaúcha missioneira até as músicas e poesias do Pará.

Estiveram presentes Zé Mulato e Cassiano, que representam a essência da música caipira no Brasil, Pereira da Viola, de Minas Gerais, entre vários grupos e cantadores. A escola de sam-ba Unidos da Lona Preta, de São Pau-lo, participou apresentando o enredo do carnaval deste ano.

Para Felinto Procópio, o Mineiri-nho, integrante do coletivo de cultura do Movimento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST), o evento foi uma mostra de que a arte deve ser tratada como elemento central na formação da consciência. “Esse Mutirão fortalece o zelamento da cultura popular. É zelar pela musicalidade dos violeiros, dos poetas e, acima de tudo, zelar por nos-sa cantoria de resistência e luta. E es-te evento está cumprindo com uma das missões da Escola, que é ser formadora a partir da arte”. Para ele, outro detalhe importante é que esse mutirão é amplo. “Aqui cabe o violeiro, o sanfoneiro, o poeta e o cantador”, afi rma.

União para fortalecerO cantador Levi Ramiro, 45, de Pira-

juí (SP), que acompanha o MST desde a década de 1990 e participa do Encon-tro dos Violeiros, salienta que a parce-ria do Mutirão de Cantoria é funda-mental para fortalecer tanto o MST co-mo o movimento de violeiros no Bra-sil. “Como é um movimento de resis-tência, o MST acaba sendo um símbolo dela e ajuda a romper a aversão em re-lação à cultura popular e à música cai-pira, pois a viola caipira no Brasil tam-bém é um movimento de resistência” argumenta.

Na perspectiva de musicalidade da viola, Milton Araújo, outro violeiro que também se apresentou, afi rma que o encontro de artistas de várias partes do Brasil evidencia a riqueza da cultura popular. Para ele, o mutirão tem iden-tidade com a questão da terra, do cam-ponês e cumpre um papel fundamen-tal, que é formação a partir da arte. “É fantástico. Os violeiros têm estilos dife-rentes e essa combinação formada por todos juntos cria uma coisa muito inte-ressante, na perspectiva da própria vio-la. Isso mostra as possibilidades de lin-guagem que a viola pode apresentar. Ela resgata, reforça e divulga a identi-dade do trabalhador do campo.”

de Guararema (SP)

“O nome ‘mutirão’ está relacionado à essência da ENFF, construída a par-tir de mutirões de solidariedade e tra-balho voluntário. É através de um mu-tirão que cantadores e poetas também trazem presente a cantoria e poesia po-pular. Consolidando assim esse sonho de trazer presente a musicalidade a es-te espaço de formação”, explica Felinto Procópio, o Mineirinho, integrante do coletivo de cultura do MST, sobre o 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacio-nal Florestan Fernandes, realizado em Guararema (SP).

A maioria dos violeiros participa to-dos os anos do Encontro dos Violei-ros, que acontecem em parceria entre o MST e a Associação Nacional de Violei-ros (ANVB). Dessa forma, o Mutirão de Cantoria na ENFF é mais uma oportu-nidade para que esses músicos conhe-çam melhor o MST.

Julio Santin, violeiro e médico que também se apresentou, faz uma relação entre a luta para se manter forte a cul-

tura caipira e a ENFF. Para ele, a esco-la e esse mutirão são frutos de resistên-cia de trabalhadores e artistas popula-res de todo o Brasil. “É muito interes-sante. A escola e o próprio MST são for-ças de resistência. Olha só, a escola foi construída em um mutirão, com a força de trabalho dos trabalhadores rurais.

E a viola, hoje, não deixa de ser um movimento de resistência também. Ela estava incipiente até um tempo atrás, mas, agora, começou a pegar força no-vamente. Estamos fazendo vários mu-tirões e encontros como este. Estamos lutando para manter viva a cultura cai-pira. Ou seja, um mutirão, nesta esco-la, é perfeito.”

Para Geraldo Gastarim, da coorde-nação pedagógica da ENFF, a Escola

constrói coletivamente atividades quedão uma nova percepção da arte e cul-tura, que são elementos fundamentaispara a formação. Para ele, a históriamostra que o ser humano eleva seu co-nhecimento através da arte e que mo-mentos culturais como o do Mutirãosão fundamentais.

Gastarim acredita que o mutirão éimportante para integrar os músicos eartistas de todo o país. “O evento arti-cula os artistas que também têm seussentidos políticos de apoiar a luta e acausa da reforma agrária. Esse evento éum ato de resistência, rebeldia e forma-ção por excelência. Isto aqui é um en-contro e casamento da formação polí-tica com a luta e resistência da culturapopular”. (DA e SE)

Cantando a resistênciaMÚSICA Celebração e resgate da cultura popular com poetas e cantadores de várias regiões do país no 1º Mutirão de Cantoria da Escola Nacional Florestan Fernandes do MST

Escola Nacional, o palco perfeito

Os poetas e violeiros fi zeram apresentações que foram da música sul-mato-grossense e gaúcha missioneira até as músicas e poesias do Pará

“Os violeiros têm estilos diferentes e essa combinação formada por todos juntos cria uma coisa muito interessante, na perspectiva da própria viola. Isso mostra as possibilidades de linguagem que a viola pode apresentar”

Construída em forma de mutirão, a ENFF é apontada como o local perfeito para abrigar um evento que resgata a música caipira

Músicos iniciam encontro com a canção Calix Bento, do folclore mineiro

Violeiros tocam suas composições no palco principal do encontro

Sob a coordenação de Mineirinho, (alto e à esquerda), músicos como Pereira da Viola, Zé Mulato e Cassiano, entre outros, animaram o público em Guararema

Fotos: Douglas Mansur

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de 3 a 9 de fevereiro de 2011 9américa latina

Dafne Melode La Matanza (Argentina)

COMO QUALQUER adolescente da sua idade em uma sexta-feira à noite, naque-le 30 de janeiro de 2009, Luciano Ar-ruga, 16 anos, queria sair com os ami-gos. Um pouco mais cedo, havia pedi-do algum dinheiro para sua mãe, Móni-ca, que lhe deu o que tinha no bolso: 25 centavos.

Luciano comprou uns cigarros soltos, foi à casa de uns amigos e depois fi cou um pouco na rua com eles jogando con-versa fora. Entre meia-noite e uma da manhã, Luciano voltou a sua casa, onde vivia com a mãe e dois irmãos menores, Mario e Mauro, que já dormiam. Pegou uma jaqueta branca, um boné e despe-diu-se de Mónica. “Olha lá por onde an-da”, disse a mãe. “Relaxa, vou à casa da minha irmã”, respondeu o adolescente.

Luciano caminhou dez quadras, mas a irmã mais velha, Vanesa Orieta, não es-tava. Na volta, de acordo com testemu-nhas, foi abordado por um carro da po-lícia estadual, a chamada “bonaerense” (força policial que atua nas regiões da província de Buenos Aires, com exceção da capital). As testemunhas afi rmam que os policiais bateram no adolescen-te e, em seguida, o deixaram ir embora. Entretanto, seguiram-no e a quase uma quadra de sua casa, e outras testemu-nhas afi rmam que viram um garoto de jaqueta branca ser forçado a entrar em um carro da polícia.

O cenárioMônica conta que, por volta das três da

madrugada, acordou de um sobressalto, com uma sensação ruim, como se esti-vesse se afogando. Foi ao quarto do fi lho, não o viu. Foi até a rua, passou pela casa dos amigos, mas não o encontrou. Vol-tou para casa, fumou um cigarro e ten-tou se tranqüilizar, dizendo a si mesma que o menino logo voltaria. Mas Luciano nunca voltou. A mãe conta que chegou a ir à delegacia naquela mesma madruga-

Desaparecimento de jovem expõe corrupção policial

da, mas lhe informaram que seu fi lho não estava lá, que ninguém havia sido detido naquela noite e que o menino “deveria estar por aí com alguma menininha”.

O sequestro e desaparição de Lucia-no ocorreu no bairro de Lomas del Mi-rador, no município da La Matanza, Grande Buenos Aires, um dos mais po-pulosos de toda Argentina. Mais preci-samente, o cenário foi o da favela 12 de Octubre, que ocupa pouco mais de um quarteirão dentro do bairro.

Na região, as ameaças e abusos por parte da polícia contra os jovens fazem parte da rotina. E também faziam par-te da vida de Luciano. “Sempre que eu via meu irmão, ele contava que a polícia o tinha ameaçado. Era algo habitual que infelizmente a gente tinha naturaliza-do porque sempre era assim”, conta Va-nesa, irmã de Luciano. O jovem já havia apanhado e até mesmo levado à delega-cia uma vez, acusado de roubar um celu-lar, o que nunca se comprovou. “Quando

de La Matanza (Argentina)

Na madrugada de 31 de janeiro de 2009, dois presos na delegacia de polícia de Lo-mas del Mirador, bairro de La Matanza onde ocorreu o desaparecimento de Lu-ciano Arruga, afi rmaram ter visto o jovem bastante ferido e golpeado.

Essas duas testemunhas não se conhe-cem, não estavam juntas e o viram em momentos diferentes; e os testemunhos são coerentes um com o outro”, expli-ca Pablo Pimentel, militante da Assem-bleia Permanente pelos Direitos Huma-nos (APDH). Um deles afi rma que o ra-paz estava todo ensanguentado, algema-do e que chegou a dar a ele outra camisa e algo para comer.

Os testemunhos dessas duas pesso-as, considerados chave, foram ignorados pela Procuradoria, que afi rma que as de-clarações seriam interessadas, no senti-do de obter algum tipo de favorecimen-to. “É todo o contrário. Eles agora estão sendo perseguidos sistematicamente no sistema penitenciário por conta dessas declarações. Estão pagando por ter fala-do a verdade, nunca estarão tranquilos, e estão em regime de proteção especial, o que é complicado porque faz com que eles estejam isolados, sozinhos por muito tempo”, relata Pimentel. Outras pessoas que poderiam testemunhar no caso, co-mo amigos e vizinhos, não o fazem, pois sabem que serão alvo de represália poli-cial, o que também prejudica o andamen-to do processo.

Mais ameaçasNão são somente as testemunhas que

o viram na delegacia que sofrem perse-guições. Amigos e familiares de Luciano, que tocam a luta pela punição dos culpa-dos de seu desaparecimento, também so-frem ameaças, bem como integrantes de organizações que se envolveram com a causa. Para Pablo Pimentel, todo o caso revela como há setores da polícia da pro-víncia de Buenos Aires que praticamen-te formam uma máfi a. Os oito policiais que estavam em serviço naquela madru-gada do dia 31 chegaram a ser afastados por um par de meses em 2009, mas lo-go foram reincorporados à polícia e hoje atuam em outras cidades da província de Buenos Aires.

De acordo com estatísticas feitas pela Coordenadora Contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi), no ano em que Arruga desapareceu houve um recorde do número de homicídios cometidos pela po-lícia: 252 vítimas. O número mais alto era o de 2001, ano marcado no país pelos di-versos protestos sociais cuja repressão vi-timou inclusive militantes sociais. Naque-le ano, 241 pessoas foram assassinadas no país. Em 2010, o país manteve o faixa de homicídios cometidos pela polícia do ano anterior, sendo que quase metade deles ocorreu na província de Buenos Aires.

Investigações A primeira investigação feita pela Pro-

curadoria logo após o desaparecimento praticamente não existia pouco mais de um mês depois da denúncia. Foi quando a família de Luciano procurou a APDH,

de La Matanza (Argentina)

No dia 29 de janeiro, diversos movi-mentos sociais e organizações políticas juntaram-se na organização de um fes-tival para marcar os dois anos do desa-parecimento de Luciano Arruga.

As atividades – entre shows de ban-das locais e ofi cinas de arte – começa-ram às dez horas da manhã e somente terminaram por volta das onze da noi-te. Ao todo, cerca de três mil pesso-as passaram no festival durante o dia, apesar do forte calor. Entre uma apre-sentação e outra, as organizações, ami-gos e familiares de Luciano fi zeram fa-

Festival pede justiça por Luciano

e a investigação passou para outra pro-curadora, quando alguns avanços foram obtidos.

Comprovou-se que Luciano esteve no destacamento, em um carro da polícia, e que duas viaturas, que deveriam estar fa-zendo rondas, estiveram paradas durante horas em um prédio municipal com mui-tas árvores, lugar onde, depois, outra pe-rícia mostrou que o corpo de Luciano ha-via estado. A procuradora solicitou ao juiz que toma conta do processo, ainda em 2010, que a causa fosse levada a um tribu-nal federal e que fosse alterado o motivo de abertura do processo, hoje tido como um desaparecimento comum, e não um forçado. O juiz não acatou o pedido, ale-gando falta de provas. Desde então, pou-co caminhou.

Pablo Pimentel explica que neste ano a família, as organizações e advogados que acompanham o caso decidiram pe-dir uma investigação independente a uma

Suspeitos continuam atuando na políciaInvestigações caminham lentamente; testemunhas que viram Luciano na delegacia são ignoradas e perseguidas

ARGENTINA Polícia da província de Buenos Aires é apontada como autora do crime contra Luciano Arruga ocorrido há dois anos

percebemos que ele estava desaparecido, suspeitamos logo de cara da polícia, por-que sabíamos que ele era ameaçado sem-pre”, lembra a irmã.

Convite para roubarOs abusos da polícia contra Luciano

haviam piorado após o jovem recusar-se a roubar para a polícia. Sua irmã conta que, em setembro de 2008, Luciano ha-via lhe confi denciado que um policial lhe havia feito uma proposta para roubar e dividir os ganhos. Prometeu-lhe dar co-bertura e armas, além da garantia de que

nada lhe aconteceria. “É uma prática co-mum nos bairros mais pobres da Gran-de Buenos Aires”, revela Vanesa. “Em pe-lo menos três bairros de La Matanza, nós temos certeza de que essa é uma prática recorrente e que muitos aceitam, inclusi-ve porque têm medo de rejeitar o pedido da polícia”, afi rma Pablo Pimentel, mili-tante da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH), uma das or-ganizações que ajudam a família de Lu-ciano no caso. Pimentel ainda afi rma que o caso de Luciano não é o único, mas é paradigmático. “Nós temos 99% de certe-za de que a polícia o torturou, espancou, matou e desapareceu com seu corpo”.

Pimentel conta que os menores de ida-de são os preferidos da polícia para esse tipo de operação porque é mais fácil ti-rá-los da cadeia, caso algo saia mal. Além disso, pela inexperiência e pelo medo, acabam cedendo às investidas dos poli-ciais. “Isso também acontece com tráfi co de drogas”, diz Pimentel.

Outras testemunhas afi rmam que viram um garoto de jaqueta branca ser forçado a entrar em um carro da polícia

Na região, as ameaças e abusos por parte da polícia contra os jovens fazem parte da rotina. E também faziam parte da vida de Luciano

perita privada. “A ideia é ter uma perícia que apresente um panorama geral do ca-so, desde o início até agora. O que nós que-remos é colocar os responsáveis pela desa-parição de Luciano na cadeia”, afi rma.

Pimentel acredita que esse modus ope-randi da polícia bonaerense remonta àestrutura repressiva consolidada na úl-tima ditadura militar (1976-1983), queaté hoje perpetua seus métodos e des-mandos. “Há pesquisas que apontam quehoje há nove mil efetivos que foram po-liciais na ditadura. Então, é óbvio quehá uma permanência”. Mas, apesar dis-so, Pimentel afi rma que é necessário en-contrar os responsáveis políticos de ho-je, grupo no qual, em seu ponto de vista,também se encontra o atual governadorda província, Daniel Scioli, que já ocupa-va essa função quando Luciano desapare-ceu. “A polícia não tem condução políti-ca e se sente à vontade para fazer o quequer”, fi naliza. (DM)

las nas quais pediam pela “apariçãocom vida e castigo aos culpados”, res-gatando um dos lemas mais conhecidosdas Mães da Praça de Maio, organiza-ção que agrupa as mães dos despareci-dos políticos durante a última ditaduramilitar argentina.

O lugar do festival, na chamada “Ruta 3” (rodovia federal número 3) não foi es-colhido por acaso: ao lado, estava a dele-gacia de Lomas del Mirador, onde acre-dita-se que Luciano foi torturado e deti-do ilegalmente. Durante a ditadura mi-litar, o lugar funcionou como um centro clandestino de detenção das forças ar-madas, para onde eram levados militan-tes de organizações populares. (DM)

“Há pesquisas que apontam que hoje há nove mil efetivos que foram policiais na ditadura. Então, é óbvio que há uma permanência”

Manifestação na capital argentina Buenos Aires, em 2010, pede justiça para Luciano Arruga: segundo testemunhas, polícia provincial estaria por trás de seu desaparecimento

Reprodução

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internacionalde 3 a 9 de fevereiro de 201110

Eduardo Sales de Lima e Renato Godoy de Toledo

da Redação

OS POVOS ÁRABES chegaram a seu li-mite. Os protestos contra os respectivos governos extrapolaram a região do Ma-greb (norte da África) e ganharam pro-porção em boa parte do mundo árabe. Em vários países, multidões estão indo às ruas como resposta à opressão políti-ca, à falta de acesso à alimentação plena e ao desemprego cujos responsáveis, di-zem, são os regimes autocráticos apoia-dos pelas potências ocidentais.

Em recente artigo, o professor de re-lações internacionais da Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Reginaldo Nasser, informa que um relatório do Banco Mundial publicado em 2009 mostrava que os países árabes importam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores im-portadores de cereais no mundo. Em relação ao desemprego, no caso do Egi-to, por exemplo, dois terços da popução é formada por jovens abaixo de 30 anos, dos quais 90% estão desempregados.

“Todos os levantes populares têm em comum o esgotamento da paciência e da espera que durou décadas, durante as quais os poderes locais se apropria-ram das instituições às custas do bem-estar social em todos os sentidos”, de-fende o egípcio Mohamed Habib, pró-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Ica-rabe (Instituto da Cultura Árabe).

Faltava uma faíscaREVOLTAS NO MUNDO ÁRABE Onda de protestos por justiça social e democracia que vem assombrando o planeta é apenas a explosão de uma longa luta até então silenciosa

“Não retorno”O sociólogo José Farhat defende que

está em jogo na região uma luta que até há pouco era estritamente silenciosa, à qual faltava um acontecimento, uma faísca. “Essa centelha veio na forma da imolação de protesto de um pobre des-conhecido vendedor de rua chamado Mohamed Bouazizi, que, ao atear fogo em si mesmo, iniciou uma revolta em toda a Tunísia, que se estendeu para o Egito e, dali, seguirá o caminho do não retorno e se transformará na revolução de todo um povo árabe oprimido con-tra os seus algozes opressores e estúpi-dos, clientes do colonialismo selvagem impositor de seus interesses nas costas dos povos de todos os recantos”, dispa-ra (leia a entrevista na íntegra com o sociólogo no endereço www.brasildefato.com.br). Os primeiros protestos ocorreram em Argel, capital da Argélia, no início de janeiro, contra a elevação do custo de vida no país.

da Redação

Quase todos os países árabes oprimi-dos por regimes não democráticos são tutelados por Washington (EUA). Há análises, como a do sociólogo Sami Naïr, de que os Estados Unidos e outras potên-cias, como Inglaterra e França, são atores que querem que os países árabes tenham estabilidade e, para isso, necessitam de regimes fortes, ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em pri-meiro lugar, que essas pessoas não emi-grem e, em segundo, que as fontes de re-cursos petrolíferos sejam garantidas.

“Todos os países onde as revoltas já co-meçaram e aqueles onde ela acontecerá, são dominados por ditadores e seus as-seclas. Todos têm regimes apoiados por uma, outra ou todas as potências, ex ou atuais colonizadoras: Grã Bretanha, França, Espanha, e a União Europeia”, afi rma o sociólogo José Farhat.

Em artigo, o economista canaden-se Michel Chossudovsky cita o exem-plo da presença estadunidense no Egi-to. “No Egito, em 1991, foi imposto um devastador programa do Fundo Mone-

Opressão dos “fantoches” de Washington

tário Internacional (FMI) na época da Guerra do Golfo. Ele foi negociado em troca da anulação da multimilionária dívida militar do Egito com os Estados Unidos, bem como de sua participação na guerra”, escreve. A resultante disso, como lembra, foi a desregulamentação dos preços dos alimentos, a privatização geral e medidas de austeridade maciças que levaram ao empobrecimento da po-pulação egípcia e à desestabilização da sua economia.

Silêncio das potênciasNo caso da Tunísia, como lembra o

jornalista Igor Fuser, na sua coluna pu-blicada na edição 412 do Brasil de Fa-to, o ditador Zine el Abidine Ben Ali nunca foi repreendido pelos estaduni-denses por violações aos direitos hu-manos e, mesmo quando ordenou que

suas forças repressivas abrissem fogo contra manifestantes desarmados, ma-tando dezenas de jovens, o presidente Barack Obama e sua secretária de Es-tado, Hillary Clinton, permaneceram em silêncio. “Não abriram a boca nem mesmo para tentar conter o massacre. Só se manifestaram depois que Ben Ali fugiu do país, como um rato, carregan-do na bagagem mais de uma tonelada de ouro”, pontuou Fuser.

O sociólogo José Farhat acrescenta que os Estados Unidos apoiaram o re-gime de Ben Ali “desde o seu nascedou-ro e até quando não havia mais esperan-ça”. “Só aí, cinicamente, os Estados Uni-dos, e , com maior desfaçatez ainda, se-guidos pelo Estado sionista, pediram cal-ma. A França não se fez esperar e reco-mendou moderação, e também se achou no direito, mesmo sem ser chamada, de

dar conselhos ao primeiro-ministro de-signado”, lembra.

PetróleoSegundo Farhat, todo o comporta-

mento das referidas potências com rela-ção aos países árabes tem o petróleo co-mo “móvel” desse interesse. “A procura da exploração do petróleo ou do cami-nho para obtê-lo exige o conluio de go-vernantes locais por elas (potências) co-locados no poder; corruptos, lenientes e que relevam o interesse de seus povos às favas”, critica.

Pobre em petróleo, a importância doEgito, por exemplo, reside no fato de possuir a passagem do transporte dessa matéria-prima através do canal de Suez,que liga a Europa ao Oriente Médio.“Além disso, é um país importante pa-ra os interesses internacionais, porqueé capaz de infl uenciar os demais países árabes. Daí terem infl uenciado o Egito a assinar um acordo de paz com o Esta-do sionista, o gendarme colocado desde o tempo do Império Britânico, não so-mente para garantir o trânsito do petró-leo, mas também para assegurar o cami-nho à Índia”, analisa Farhat.

Por isso tudo, o economista canadense Michel Chossudovsky conclui em seu ar-tigo que o movimento de protesto no Egi-to, por exemplo, deveria se atentar a al-vos políticos, como a Embaixada dos Es-tados Unidos, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Ban-co Mundial. (ESL e RGT)

As grandes manifestações da Tunísia, mesmo reprimidas com crueldade pe-la ditadura de Zine el Abidine Ben Ali, tiveram êxito. Ali fugiu do país, mas a Justiça tunisiana emitiu uma ordem de detenção internacional contra o presi-dente deposto. Entretanto, as manifes-tações permanecem e pedem a saída de todos os ministros ligados ao ex-dita-dor. Até o fechamento desta edição (no dia 1°), 219 pessoas foram assassinadas no país, segundo a ONU.

Onda de revoltasO povo egípcio também decidiu desa-

fi ar o poder tirano de um regime corrup-to e subserviente, de Hosni Mubarak, na presidência há três décadas, que se pre-parava para designar como seu sucessor o fi lho Gamal Mubarak.

Como uma onda, os iemenitas toma-ram as ruas de sua capital Sana. Em Marrocos, o rei impediu a subida do preço dos alimentos e de bens essen-ciais, temendo pelo futuro da monar-quia feudal, mas de nada está adian-tando. Lá, protestos por democracia es-tão sendo organizados via internet, as-sim como na Síria. Também há relatos de tensão na Arábia Saudita, em Omã e na Jordânia.

O movimento que ocorre nestes paí-ses árabes não tem direção, nem orga-nização partidária clara; são espontâne-os. A organização vem ocorrendo prin-cipalmente por via das redes sociais da

internet. A maior parte dos manifestan-tes em todo o mundo árabe é formadapor jovens, desde as classes pobres atéas classes médias que foram empobreci-das nos últimos anos.

O sociólogo José Farhat reforça que areligião nada tem com as revoltas, comoapontam alguns jornais do ocidente. “O islamismo foi trazido à baila como argu-mentação inválida dos neocolonizado-res, os mesmos que inventaram o cho-que das civilizações e o perigo islâmico contra o Ocidente”, reitera.

O que vai acontecer a partir de ago-ra? “Se as revoltas puserem um fi m a es-sas autocracias árabes, estaríamos viven-do uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa con-cepção dos sistemas políticos mundiais”, afi rmou o sociólogo e fi lósofo Sami Naïr, presidente do Instituto Magreb-Europa da Universidade de Paris VIII, em entre-vista ao jornal argentino Página/12.

90%dos egípcios abaixo dos 30 anos

estão desempregados

“Todos os levantes populares têm em comum o esgotamento da paciência e da espera que durou décadas, durante as quais os poderes locais se apropriaram das instituições às custas do bem-estar social em todos os sentidos”

O movimento que ocorre nesses países árabes não tem direção, nem organização partidária clara; são espontâneos

Regimes ditatoriais árabes há tempos são apoiados por potências imperialistas

José Farhat acrescenta que os Estados Unidos apoiaram o regime de Ben Ali “desde o seu nascedouro e até quando não havia mais esperança”

Pobre em petróleo, a importância do Egito, por exemplo, reside no fato de

possuir a passagem do transporte dessa matéria-prima através do canal de Suez,

que liga a Europa ao Oriente Médio

Protestos pela saída de Ben Ali, no centro de Túnis, capital da Tunísia

Polícia tunisiana disparou diversos tiros; dezenas de manifestantes foram mortos

Nasser Houri

Nasser Houri

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internacional de 3 a 9 de fevereiro de 2011 11

Eduardo Sales de Lima e Renato Godoy de Toledo

da Redação

A REVOLTA DO POVO egípcio contra o ditador Hosni Mubarak pode inau-gurar um novo período de correlação de forças no mundo árabe e no Oriente Médio. Período daqueles marcados por algum tipo de ruptura e mudança sig-nifi cativa de peças no xadrez geopolíti-co. Tais momentos já foram vistos na região em 1979, com a Revolução Islâ-mica no Irã, a derrota militar do mun-do árabe para Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967, a invasão estadunidense ao Iraque, em 2003, e, no próprio Egi-to, com a revolução de Gamal Abdel Nasser em 1952.

Se a chamada “Revolução de Jas-mim” na Tunísia parecia um impor-tante marco na luta contra ditaduras no mundo árabe, o desenrolar dos fa-tos na cidade do Cairo, principalmen-te, acabaram até ocultando o processo tunisiano, dada a tamanha importância do Egito na geopolítica mundial.

País que controla o canal de Suez – que liga a Europa ao Oriente Médio – e, consequentemente, o fl uxo de gran-de parte do petróleo mundial, o Egito tem se alinhado sistematicamente aos EUA desde que Mubarak assumiu o po-der em 1981. O país norte-africano é um dos principais mediadores das re-lações confl ituosas entre Israel e Pales-tina. Mesmo sendo árabe, o Egito não condena com veemência as ações israe-lenses contra o povo palestino, ao con-trário do que fazem outras repúblicas infl uenciadas pelo islã, como a Síria.

Para o egípcio radicado no Brasil, Mohamed Habib, pró-reitor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Uni-camp) e diretor do Icarabe (Instituto da Cultura Árabe), seu país de origem tem sido a porta de entrada do imperialis-mo na região. “Quando eles querem en-tender alguma crise no Oriente Médio, qual é a porta? O Egito. Foi na questão do Iraque em 1991 e 2003, no confl ito Palestina-Israel etc.”, explica.

Ciente da passividade da gestão Mu-barak diante de suas violações, Israel foi uma das únicas repúblicas que sa-íram em defesa da permanência do di-tador no poder, posição que nem a Ca-sa Branca ousou assumir.

O governo dos EUA, aliás, foi pres-sionado pela imprensa local a posicio-nar-se mais claramente em relação aos acontecimentos no Egito. A secretária de Estado Hillary Clinton se pronun-ciou favorável a uma transição demo-crática no país. Mas o porta-voz da Ca-sa Branca, Robert Gibbs, não soube di-zer ao certo porque os EUA defendem agora mudanças em um país que há 30 anos, segundo ele próprio, tem sido “um aliado importante”.

Laicos e religiososParte da imprensa internacional e

brasileira enxerga os acontecimentos no Egito como parte de uma escalada de violência promovida por fundamen-talistas islâmicos. O que, segundo ana-listas do mundo árabe, não condiz com a realidade.

O sociólogo José Farhat explica qual é a composição da maioria dos mani-festantes no Egito. “Os ativistas da atu-alidade, que chegaram a ser chamados de ‘bin-ladens’ por seus adversários nos Estados Unidos e na Europa, não são is-lâmicos fundamentalistas usando a re-ligião para adquirir poder. Os atuais ‘bin-ladens’, os motores da revolta, são os injustiçados, os khobzistas (‘pãozis-tas’, aqueles que têm fome), os mahru-min (os miseráveis – Les misèrables à la Victor Hugo), os eternos sem-empre-go, privados de moradia, que veem a co-mida cada vez mais cara, que são víti-mas da autocracia. São os marginaliza-

O povo contra Mubarak

dos de hoje na Argélia e Tunísia, ama-nhã no Egito, Palestina, Iêmen e Jordâ-nia”, avalia.

Há sim grupos importantes de isla-mitas nos protestos, como a Irman-dade Muçulmana, mas este e demais grupos cerram fileiras lado a lado com movimentos sociais laicos. Outra ver-são que é combatida por especialis-tas é a de que os movimentos estariam sendo convocados apenas pela juven-tude de classe média do Egito, que tem acesso às redes sociais como o Twitter e o Facebook.

“Inicialmente, os protestos foram convocados por estudantes de classe média contra a tortura policial. Mas os protestos ganharam a massa e foi ela quem fez a diferença. É uma revolta so-bretudo dos despossuídos”, aponta Ar-lene Clemesha, professora de história da Universidade de São Paulo (USP).

Clemesha afi rma, no entanto, que de fato há um recrudescimento da religio-sidade no Egito. Em sua última viagem ao país, no ano passado, a historiadora constatou em escolas e universidades que muitas mulheres optam esponta-neamente por sentar nas últimas fi lei-ras das salas de aula e que o uso de véu nas ruas está cada vez maior.

Para a historiadora, esse é um fenô-meno não apenas do Egito, mas de toda

a região do norte da África, e é uma ma-neira que os povos locais encontraram de reafi rmar sua cultura diante das in-vestidas contra sua soberania.

Outro fator que teria levado a esse fortalecimento religioso foi o chamado “Efeito Golfo”. Nos últimos anos, mui-tos trabalhadores da região do norte da África foram trabalhar nos países do Golfo Pérsico, tradicionalmente com maior afi nco religioso, e voltam seguin-do mais fortemente os preceitos do is-lamismo.

No entanto, Clemesha afi rma que o processo em curso não é uma revol-ta religiosa. “O aumento da religiosi-dade pode ser importante no resulta-do deste processo, mas não é o que o tem fomentado. O processo está disso-ciado da religião. Os protestos no Egito estão acima de qualquer religião ou et-nia”, analisa.

Grupos clandestinosDe acordo com o historiador e ara-

bista Lejeune Mirhan, muitos grupos postos na clandestinidade pela ditadu-ra egípcia estão organizando o levante. Há inclusive partidos comunistas com bastante poder de infl uência entre os manifestantes, segundo Mirhan.

Para o arabista, o “apoio” de Hilla-ry Clinton às mudanças no Egito tra-ta-se de um “oportunismo”, já que os EUA nunca fi zeram nada nos últimos 30 anos para impedir as violações do regime egípcio. “Eles regaram a a dita-dura do Egito com dois bilhões de dó-lares anuais, ou seja, 60 bilhões de dó-lares em 30 anos. O país tem sido o se-gundo maior benefi ciário de ajudas fi -nanceiras dos EUA, atrás apenas de Is-rael”, explica Mirhan.

A estratégia de Washington agora é elencar qual dos grupos insurgentes tenderia a um maior diálogo e buscar alçá-lo ao poder, com a eventual derro-

cada de Mubarak. Um Egito anti-EUAtraria um cenário desfavorável à maiorpotência político-militar do planeta naregião.

Isso porque os EUA já contam coma “inimizade” de Irã e Síria. Ainda háincertezas sobre o Líbano, onde o bi-lionário Najib Mikati tornou-se pre-miê recentemente com o apoio do He-zbollah, grupo considerado terroristapelos Estados Unidos.

Nesse cenário, a “perda” do Egito po-de ter consequências desastrosas parao país na região. O maior temor é deque a nação norte-africana se aproxi-me politicamente do Irã. Grupos comoa Irmandade Islâmica, no entanto, nãodão sinais de que pretendem um en-frentamento com os EUA.

O grupo, fundado na década de 1920,tem feito trabalho de base constante noEgito e conta com simpatia de grandeparte da população. O prêmio Nobel daPaz, Mohamed Elbaradei, é um oposi-tor do regime que tem tido grande ex-pressão nos protestos e projeção inter-nacional. Elbaradei é apoiado pela Ir-mandade Muçulmana e tem uma posi-ção moderada em relação aos EUA.

da Redação

Após o assassinato do presidente Anwar Al Sadat em 1981, pela Jihad Is-lâmica Egípcia, o vice-presidente Hos-ni Mubarak assumiu o comando do Egi-to e, quase 30 anos depois, permanecia no posto até o fechamento desta edição (no dia 1°).

Algumas fontes conservadoras trata-ram de aliviar a imagem de Hosni Mu-barak. Um deles foi o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, que afi rmou não ser justo tratar o presidente egípcio co-mo “ditador”.

Antes de todo o processo de revolta no Egito, Mubarak já falava em se reeleger no pleito marcado para setembro. Ago-ra, afi rma que desistiu da ideia. Mas es-pecula-se que ele possa indicar seu fi lho

para substituí-lo. Os processos eleito-rais no Egito são marcado por fraudes e coação de eleitores por grupos armados apoiadores de Mubarak, que já chegou a patamares de “votação” acima dos 90%.

Repressão O egípcio Mohamed Habib, pró-rei-

tor da Unicamp e e diretor do Icarabe, afi rma que o governo do país norte-afri-cano já trabalhava em uma candidatu-ra de Gamal Mubarak. Informações ex-traofi ciais davam conta de que Gamal, no entanto, teria fugido do país no dia 26 de janeiro. “O trabalho político pre-paratório para o lançamento de candi-

dato já está em curso. De um lado, o go-verno do Egito investe no fi lho de Muba-rak. E, ao mesmo tempo, oprime qual-quer tentativa de organização da socie-dade civil de tentar investir em um ou-tro candidato. Esses grupos que tentam criar um nova agenda, que pensam emoutro candidato, estão sendo oprimidose levados às prisões. Há um crime du-plo. O primeiro crime é lançar a candi-datura de um fi lho, isso já é nepotismopuro, com dinheiro público. O segundo crime é oprimir movimentos sociais que tentam apresentar um outro projeto. É esse modelo que levou o Egito ao caos”, explica. (ESL e RGT)

“O segundo crime é oprimir movimentos sociais que tentam

apresentar um outro projeto. É esse modelo que levou o Egito ao caos”

Ditadura, simGestão de Mubarak acumula fraudes, nepotismo e repressão

REVOLTAS NO MUNDO ÁRABE Convulsão social no Egito, aliado fundamental dos EUA, pode signifi car um desastre para a Casa Branca

O desenrolar dos fatos na cidade do Cairo, principalmente, acabaram até ocultando o processo tunisiano, dada a tamanha importância do Egito na geopolítica mundial

“Inicialmente, os protestos foram convocados por estudantes de classe média contra a tortura

policial. Mas os protestos ganharam a massa e foi ela quem fez a

diferença (...)”

A estratégia de Washington agora é elencar qual dos grupos insurgentes tenderia a um maior diálogo e buscar alçá-lo ao poder, com a eventual derrocada de Mubarak

Polícia reprime manifestantes durante protesto no Cairo

Hosni Mubarak recebe cumprimento de Barack Obama

Nasser Rouri

Muhammad Ghafari

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Sergio Ferraride Genebra (Suíça)

O FÓRUM SOCIAL Mundial (FSM) é quase o único marco de convergência dos movimentos sociais a nível plane-tário e, portanto, é fundamental conti-nuar fortalecendo-o. Hipótese essencial de Eric Toussaint, historiador e cientista político belga e presidente do Comitê pe-la Anulação da Dívida do Terceiro Mun-do (CADTM).

Agudo analista do altermundialismo, conhecedor a partir de dentro do Fó-rum social Mundial, Toussaint partici-pa desde sua criação do Conselho Inter-nacional, órgão facilitador do evento. O CADTM, com ativa presença em nume-rosos países, particularmente em vários africanos, é um dos atores que dinami-zam a preparação da próxima edição, que será realizada em Dacar, no Sene-gal, entre 6 e 11 de fevereiro.

Como o senhor caracteriza o presente do Fórum Social Mundial?Eric Toussaint – Acho que devemos reforçar o processo do FSM, pois ele é quase o único marco planetário ao qual convergem os movimentos sociais, ON-Gs, organizações políticas de esquerda e até governos progressistas. Não exis-te outro lugar orgânico de convergência. Não podemos esvaziar o FSM apesar das críticas que possamos ter a ele. Tampou-co seria correto pensar em criar algo al-ternativo. Porque seria impulsionar uma proposta competidora e muito limitada. Hoje, o FSM é o que existe. Mas isso não quer dizer que não existam elementos preocupantes em sua evolução.

Preocupantes em que sentido?Há vários aspectos. Um deles é a deci-

são de uma maioria de dirigentes ou ani-madores do FSM de não querer avançar mais além de um Fórum, ou seja, de não querer modifi car a Carta de Princípios a fi m de permitir ao Fórum discutir planos de ação, plataformas, estratégias de ação. E de se situar no estrito marco da Carta de Princípios, que não permite, enquan-to Fórum, adotar declarações fi nais e pla-nos de ação. Um segundo aspecto: o êxito do FSM faz com que haja poderes públi-cos e fundações privadas que estão mui-to decididos a apoiá-lo signifi cativamen-te. Assim, ocorre a tendência de se fazer eventos muito custosos, com orçamentos muito elevados, e isso me preocupa. Com o agravante de dois riscos bem presentes. Um é o de criar uma “indústria do FSM”, já que há Organizações Não Governa-mentais muito poderosas que estrutu-ram grandes projetos em torno do FSM. Vivem disso. O outro risco é o do nasci-mento de uma espécie de “burocracia al-termundialista”. É uma camada de diri-gentes que, a partir de suas funções, ob-têm certo poder e privilégios e se perpe-tuam desde há anos.

Quais seriam os meios ou os “antídotos” políticos que permitiriam desbloquear essas tendências ou sinais preocupantes?

Felizmente, há elementos positivos. O Conselho Internacional propõe que se tome medidas para que não se repitam em Dacar os mesmos erros que se come-teram em 2007 em Nairóbi, no Quênia, que foi talvez a edição mais fracassada do FSM. Tenho um certo nível de confi ança de que em Dacar não se produzirão es-ses erros, como o de outorgar o monopó-lio das comunicações, no espaço do FSM, a uma transnacional do setor e o de im-por preços das entradas muito elevados, quase impossíveis de serem pagos pelos participantes locais. Acho que o funda-mental para o êxito de Dacar é fortalecer a presença dos movimentos sociais afri-canos e do resto do mundo. Nesse senti-do, sopra um vento positivo. Na primei-ra semana de novembro, organizamos na mesma capital do Senegal um encon-tro preparatório de movimentos sociais, a partir de um mandato que recebemos da Assembleia dos Movimentos Popula-res. Aconteceu justamente antes de uma

nova reunião do Conselho Internacional, que se encontrou para ultimar detalhes do evento deste ano.

Qual é o balanço desse seminário preparatório?

Exitoso, em termos de participação. Estiveram presentes muitos movimen-tos sociais de Senegal. Mais de 60, in-cluindo os grandes sindicatos rurais e ur-banos, que são muitos. E representantes de movimentos de pescadores, agricul-tores, de bairro, de mulheres. Isso mos-tra uma boa dinâmica e se converte em um sinal realmente esperançoso. Existe um entusiasmo em relação ao apoio que o FSM pode ter nos bairros populares da capital senegalesa e de zonas afastadas e sobre a recepção da mensagem do FSM. Haverá atividades nos bairros durante os dias prévios e durante o próprio Fórum. Nós, enquanto CADTM, preparamos um espetáculo político-cultural de hip-hop, com grupos musicais reconhecidos, mas que se opõem a ser objetos de mercanti-lização. Interpretarão músicas inéditas, com um enfoque forte sobre a dívida, a soberania alimentar, os acordos desfavo-ráveis entre Senegal e Europa etc. A ní-vel regional, o apoio decidido de setores da juventude é sentido como um fato im-portante. Chegará a Dacar uma carava-na de ônibus que percorrerá centenas de quilômetros, proveniente da Nigéria – de onde saíram na terceira semana de janei-ro – e que passará por Benin e Togo pa-ra depois ir a Burkina Faso. Lá, se encon-trarão com outras delegações provenien-tes de Guiné-Conacri. A caravana, por

fi m, entrará em Senegal pela região de Kaolack. Esperamos várias centenas de participantes nessa iniciativa, mulheres, homens, e especialmente jovens. É uma proposta que impulsionamos juntamen-te com o Fórum Social Africano e redes como No Vox e Attac. O CADTM faz um papel de estimulador, mas não quer se apropriar de nada nem hegemonizar ou monopolizar. Buscamos uma real con-vergência. Organizaremos também um seminário sobre as lutas feministas nos dias 2, 3 e 4 de fevereiro, no Senegal, mas com a participação de representantes de todos os continentes. Esse tipo de inicia-tivas, inclusive se o próprio FSM de Da-car tiver resultados limitados, já ratifi ca-ria o valor da convocatória. É essencial fortalecer as dinâmicas sociais.

Tenta-se lançar uma dinâmica participativa na região?

Sim. A Nigéria está a cerca de 2.500 quilômetros de Dacar. Passar por esses diferentes países nos dá a possibilidade de tomar e fazer com que se tome conhe-cimento do processo do Fórum. Em ca-da parada importante serão feitos even-tos para explicar o que será o FSM de Da-car. Por conta de tudo isso, eu diria que vivo um entusiasmo prudente.

Seria uma dinâmica diferente da que você considera como a edição fracassada de Nairóbi

É a esperança. Ainda que devamos ser cautelosos sobre os resultados de Da-car, já que um mês antes do FSM a po-pulação local não está nem informada sobre o evento, o que é muito diferente do que aconteceu em Belém em 2009 ou

em Porto Alegre em 2005 e nas edições anteriores. Porém, objetivamente se dão condições para uma participação ampla do povo senegalês e dos movimentos so-ciais do país e da região. Veremos se esse espaço aberto, esse convite amplo e faci-litado para as pessoas do lugar, vai pro-vocar uma boa participação popular. Mi-nha dúvida é: segundo as avaliações de colegas sindicalistas, que os movimen-tos sociais do Senegal atravessam ho-je um de seus piores momentos dos úl-timos 20 anos no que diz respeito à ca-pacidade de mobilização. Não é a me-lhor conjuntura, mas isso não depen-de só de certos movimentos, mas sim de condições políticas globais. Sem esque-cermos outro elemento muito importan-te: o primeiro dia – e em dias anterio-res – do FSM, colocará uma tônica parti-cular sobre os 50 anos da independência da África, com atividades na ilha de Go-rée, próxima a Dacar, de onde partiram mais de um milhão de escravos nos sécu-los 16, 17 e 18. Uma denúncia forte para o escravismo de ontem e para o sistema de hoje. Num nível simbólico e da me-mória coletiva, vai ser um momento im-portante, trazendo uma ponte entre pas-sado e futuro… São os desafi os de con-frontar as crises mundiais nas distintas vertentes e momentos históricos.

Se, muitas vezes, fala-se de crises mundiais, de propostas hegemônicas dominantes, novamente o FSM de Dacar deverá observar também o que aconteceu em Davos, Suíça, durante o Fórum Econômico Mundial, que se realizou entre 26 e 30 de janeiro…

De fato. Vivemos uma crise do siste-ma onde tudo está interconectado. A cri-se é fi nanceira, econômica, climática, ali-mentícia, migratória. Uma crise que toca a gestão mundial, porque não há nenhu-ma instituição mundial que goze de re-al credibilidade. O G20 não é mais legí-timo do que o G8. E a ONU de forma al-guma cumpre o papel previsto pela sua Carta. É verdade que esta crise é produ-to do avanço da desregulamentação, e, no entanto, está também ligada ao mes-mo sistema. A mensagem do FSM deverá ser ainda mais clara do que quando nas-ceu há 10 anos. Deve salientar a necessi-dade de uma resistência global e também das alternativas para propor um sistema alternativo ao sistema capitalista patriar-cal globalizado. Os que se reúnem em Davos seguem momentaneamente com a capacidade de lançar ofensivas contra os “de baixo”. Estes estão pouco a pou-co superando a sua fragmentação – ain-da que com difi culdades – para progre-dir em direção a oferecer uma alternati-va global que é mais do que necessária. E penso que a solução não passa por refor-mar o atual sistema, mas sim ir contra ele mesmo. (Alai)

O desafi o de uma alternativa globalFÓRUM SOCIAL MUNDIAL Na opinião do cientista político belga Eric Toussaint, um dos integrantes do Conselho Internacional do evento, edição de Dacar tende a ser melhor do que a do Quênia, em 2007, considerada a mais fracassada

“Não podemos esvaziar o FSM apesar das críticas que possamos ter a ele. Tampouco seria correto pensar em criar algo alternativo. Porque seria impulsionar uma proposta competidora e muito limitada”

“O êxito do FSM faz com que haja poderes públicos e fundações privadas que estão muito decididos a apoiá-lo signifi cativamente”

“Acho que o fundamental para o êxito de Dacar é fortalecer a presença dos movimentos sociais africanos e do resto do mundo”

“Os que se reúnem em Davos seguem momentaneamente com a capacidade de lançar ofensivas contra os ‘de baixo’”

Militantes assistem à abertura do Fórum Social Mundial de Nairóbi no Quênia

Senegalesas na Ilha de Goree, próxima a Dacar, de onde partiram mais de um milhão de escravos entre os séculos 16 e 18

Cordelia Persen

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