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56 Proposta N o 98 Set/Nov de 2003 Economia Solidária e Autogestão Luigi Verardo* *Técnico da Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas Autogestionárias - ANTEAG

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56 Proposta No 98 Set/Nov de 2003

Economia Solidária e AutogestãoLuigi Verardo*

*Técnico da Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas Autogestionárias - ANTEAG

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Economia solidária e autogestão constituem-se, antes de tudo, como projeto e ao mesmo tempomovimento social. Não se trata simplesmente deutopia porque, de uma forma ou de outra, já serealiza como alternativa não só econômica, mastambém social e cultural. O caráter alternativo, doponto de vista cultural, é marcante porque sedesenvolve num mercado e numa sociedadeessencialmente avessos à solidariedade entre oshomens; e apesar disso tem sobrevivido.

Além disso, alternativa pressupõe, nomínimo, a existência de dois elementos básicos:negação do modelo existente e afirmação deuma perspectiva diferenciada. A solidariedade,por sua vez, subentende a existência de nexoque estabeleça cumplicidade ou coerência deuma coisa com a outra.

As reflexões aqui apresentadas são frutoda experiência que acumulamos na ANTEAG –Associação Nacional dos Trabalhadores emEmpresas de Autogestão. Com atividadesiniciadas em 1991, nasceu do esforço de reunire representar projetos de autogestão e econo-mia solidária em nível nacional. Vem prestandoassessoria e capacitando trabalhadores nosentido de garantir o desenvolvimento dosprojetos de gestão coletiva e como negóciosviáveis no mercado vigente.

Economia X solidariedade oueconomia solidária?

No mundo em que vivemos, “economia”significa economia de mercado. Mercado significaviver da exploração voltada exclusivamente aobter cada vez mais lucro, baseando-seessencialmente na competição, concorrência e,conseqüentemente, na exclusão dos menoscompetitivos e perdedores. Assim, de certaforma, as palavras “economia” e “solidariedade”representam duas áreas antagônicas.

Por conseguinte, distinguir “solidariedade”de “economia” permite definir, demarcar aqualidade do relacionamento entre os própriostrabalhadores, da atitude deles para com omercado (através do relacionamento com osclientes, fornecedores etc.). O primeiro espaçoé o lugar das relações solidárias; o segundo,reservado ao comportamento agressivo da

concorrência e competição. Distinguir querdizer algo mais do que separar as partes:significa ter comportamento adequado paracada uma das esferas de atuação. Nisso re-side nossa maior dificuldade: no relacionamentocom o mercado tem-se que ser competitivo eduro; já no relacionamento com os parceiros oucompanheiros, tem-se que ter um comporta-mento fraternal, não agressivo e tampouco duroe desumano.

O método de abordagem e de relacio-namento determina profundamente o conteúdodo trabalho de construção e desenvolvimentoda economia solidária. Ao contrário daconcepção de que o resultado é o que interessae não os meios utilizados, aqui os meios deter-minam (contaminam) necessariamente os fins.Isto é, quando trabalhamos no campo daeconomia solidária é imprescindível que semprehaja coerência entre o método e o conteúdo.Do contrário, poderemos estar promovendo, nomínimo, a dissociação (tão na moda hoje!) dogesto com a fala, do discurso com a prática. E,quando isso acontece, estaremos fazendoqualquer coisa, menos economia solidária.

A construção da autogestão e da economiasolidária pressupõe necessariamente práticassolidárias. Isto é, quem tiver práticas de concor-rência no nosso meio estará destruindo otrabalho proposto. Quando nos inscrevemos nocampo do trabalho conjunto, participamos de umprocesso de constituição de uma frente sociale política de atuação em que se estabelecemprincípios e normas de conduta coletivos sobos quais todos devem acordar.

Estabelecer acordo e formalizar princípiosvisa justamente organizar o trabalho deconstrução, fazendo com que o conjunto sejamaior que a soma de cada uma das partesenvolvidas. Ao contrário disso, a informalidade,longe de ser uma virtude, cria ambiente muitopropício à vaidade, à promoção pessoal e aooportunismo. Aliás, a existência de um código podegarantir que nosso trabalho seja duradouro,prevenindo contra práticas fracionistas que tantotem destruído nossa política de construção dealternativas populares, democráticas e socialistas.

No trabalho social e político é fundamentalsaber tratar das diferenças, de maneira que não

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se promova a desigualdade, tanto noordenamento hierárquico (para cima ou parabaixo na escala social), quanto pelo privilégioou pela exclusão. Vivemos imersos numacultura de dominação em que “naturalmente”transformam-se características e diferenças emdesigualdade e injustiça. Com a mesma “natu-ral desenvoltura”, como num passe de mágica,nossos pensamentos e nossas práticasseparam: os que estão do nosso lado dos queestão em trincheira oposta; os de dentro dos defora, os bons contra os maus, simplesmente;amigos versus inimigos, como se o mundo e avida tivessem apenas dois lados. Um bomexemplo disso é observar que quem criticavaFHC era visto como petista. Quem é (ou foi)contra a guerra no Oriente Médio é (ou era) dolado de Saddam Hussein ou até da Al Qaeda.Não ouvimos Bush e companhia falarem comose quem não estivesse a favor da guerra estariacontra os Estados Unidos? No passado, no finalda Idade Média, principalmente durante a SantaInquisição, ou se estava com Deus ou com oDiabo, e daí a fogueira. É bom lembrar que noséculo passado houve uma reedição da SantaInquisição através do Julgamento de Moscou:agora, ou revolucionário ou contra-revolucionário.

Diante das marcas pessoais, característicasregionais, diferenças étnicas e sexuais e formaspróprias de pensar, separar, segregar e excluir sãoa maneira mais pobre de se viver e de se

relacionar. De fato, existem inimigos, pessoas egrupos perigosos e violentos. Contudo, entre umacoisa e outra existe a possibilidade de seestabelecer acordos, parcerias, colaborações,alianças, frente de trabalho comum etc.

Solidariedade para com ossolidários

A economia solidária é avessa à realizaçãode política compensatória. Isto quer dizer quetrabalhamos pela autonomia e não pela depen-dência dos empreendimentos e, tampouco,promovemos a precarização (direta ou indireta-mente) das condições de trabalho. Diferentementeda política do Terceiro Setor, ela não deve substituiro papel do Estado em seus compromissos eobrigações sociais. Dizer que lutamos contraexploração significa que combatemos toda equalquer prática em que um empreendimento“solidário” explore outro empreendimento“solidário”, seja através da cadeia produtiva, sejaatravés de rede. Além disso, também trabalhamospela diminuição das diferenças de retiradas nointerior dos empreendimentos. Em suma, lutamospela demarcação conceitual da economia solidáriacomo forma de resgatar essencialmente adimensão humana do trabalho.

Na ANTEAG representamos empresas deautogestão e investimos para que se possa

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demarcar diferença não apenas pela palavra,mas, principalmente, pela prática. Por contadisso, consideramos empresa de autogestão osempreendimentos econômicos cuja gestão éexercida democraticamente pelos trabalha-dores, organizados sob a forma de sociedadepor cotas de responsabilidade limitada,sociedade anônima ou sociedade cooperativaque deve ainda preencher, cumulativamente, osseguintes requisitos:

• Inacessibilidade das quotas-partes ou açõesdo capital a terceiros, estranhos à sociedade;

• Direito do trabalhador de votar e ser votadopara qualquer cargo, inclusive de direção, tendocada trabalhador direito a apenas um voto;

• Controle do poder de decisão e da gestãoda empresa pelos trabalhadores, comparticipação direta e indireta nas decisões;

• Diferença entre a maior e a menor remune-ração dos trabalhadores autogestionários nãosuperior a 06 (seis) vezes. Havendo, excepcio-nalmente, necessidade de uma diferença maiordo que seis vezes na remuneração, esta não podeatingir mais do que 3% do total de trabalhadoresautogestionários, devendo esta situação seraprovada em assembléia dos trabalhadores,especialmente convocada para essa finalidade,devendo a convocação ser realizada através deedital em local de notório acesso;

• Proibição de contratação de outrostrabalhadores a não ser que o número dacontratação seja igual ou inferior a 1% do efetivodos considerados trabalhadores cooperados ouassociados. Deve-se observar ainda que: 1) quandose tratar de contratação para ocupar funçõesdiretivas nas empresas, o compromisso deve serde curta duração – não superior a seis meses; 2)quando se tratar de contratação de mão-de-obrapara atender a sazonalidade ou a período de curtaduração em que se requer aumento temporário deprodução, pode-se excepcionalmente contratarmais trabalhadores desde que por um período nãosuperior a quatro meses; 3) durante este período otrabalhador é contratado segundo a legislaçãotrabalhista em vigor (CLT).

• Existência de mecanismos democráticosde gestão e definição em assembléia dequestões como política de remuneração, políticadisciplinar, política de recursos humanos,

formas de organização da produção e destinodos resultados e excedentes;

• Adoção dos princípios autogestionários, taiscomo, tomadas de decisão democráticas ecoletivas, transparência administrativa, solidarie-dade e fraternidade entre os companheiros,valorização das pessoas e cidadania;

• Resgatar os conceito de “eficiência” e“qualidade”, mas não limitados apenas aosbenefícios materiais. Afinal, queremos eficiênciasocial e qualidade de vida;

• Desenvolvimento integral que buscasustentabilidade, justiça social e econômica,responsabilidade ambiental e democracia nãoapenas social, mas também econômica.

Construindo e consolidando aautogestão e a economia solidária

Acompanhamos há mais de dez anos a trajetóriavivida por empresas de autogestão e vimos surgiremnovas perspectivas e, principalmente, novosproblemas para a constituição e desenvolvimento dosprojetos. No começo era fundamental conhecer oselementos básicos (os alicerces) da autogestão,principalmente em suas dimensões econômicas,jurídicas, sociais e administrativas. Era questão devida ou de morte promover a construção efetiva dosprojetos e divulgar sua realização tanto para ostrabalhadores diretamente envolvidos quanto para oconvencimento dos demais e para a sociedade emgeral. Com este fim realizamos os encontros nacionaise regulares dos empreendimentos e demospublicidade às realizações.

Agora, buscamos aprofundamento teórico eprático das questões relacionadas à autogestão e àeconomia solidária e ampliação da nossa área deatuação. Neste contexto, dentre outras coisas, criamosgrupos de estudos de autogestão, ampliamos asatividades educativas e diversificamos nosso trabalhode atuação social e econômica como, por exemplo,através da constituição dos empreendimentos e deredes de economia solidária em convênio compoderes públicos. Isto é, se a ANTEAG esteve du-rante alguns anos voltada (quase exclusivamente) aosetor industrial, aspectos provenientes das demandassociais e as parcerias com instituições públicas(estaduais e municipais) promoveram e têmpropiciado ampliação do foco originário.

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Porém, dentre as novidades, a de maior desafioe também a mais instigante, é a necessidade de sedar conta da dimensão cultural e das perspectivaspolíticas que se apresentam no processo deamadurecimento (e não apenas crescimento) peloqual passa a ANTEAG. Hoje, o papel darepresentação e legitimidade, bem como, anecessidade de se combinar de forma coerente osaspectos teóricos com os práticos da autogestãosão elementos cruciais. É nesse contexto que seinsere a realização do 1º Congresso Nacionalde Trabalhadores e Empresas de Autogestãopara consolidação e efetiva legitimação daANTEAG como representativa dos trabalhadorese empresas de autogestão.

É bom lembrar que “autogestão” significaorganização de uma forma de empreendimentocoletivo em que se combinam a cooperação doconjunto dos trabalhadores nas atividadesprodutivas, serviços e administração, com o poderde decisão sobre questões relativas ao negócio eao relacionamento social das pessoas diretamenteenvolvidas. Isto é, ao investir no desenvolvimentode tecnologias adequadas à autogestão, napromoção de novos produtos, na orientação técnicavoltada à viabilidade dos empreendimentos, naampliação das relações comerciais, na constituiçãode redes de negócio, investe-se, simultaneamente,no desenvolvimento individual e coletivo dostrabalhadores. Afinal, autogestão pressupõe aexistência de autonomia. Isto é, as pessoas devemter a capacidade e o poder de definir para elasmesmas as regras, o regulamento e as normasde relação e funcionamento.

Além de autonomia, autogestão também querdizer autodeterminação. E, por conta disso, decorrentedos anos de atividades realizadas, empresas e tra-balhadores dos empreendimentos incluídos nosprojetos autogestionários vêm assumindo pro-gressivamente a direção política da AssociaçãoNacional dos Trabalhadores de Autogestão. É este osentido do que queremos dizer quando afirmamosque a construção da economia solidária e daautogestão pressupõem necessariamentepráticas solidárias e promotoras de autonomiaem suas organizações.

A ANTEAG, enquanto Associação Nacionaldos Trabalhadores, vem intensificando suaparticipação nas atividades relacionadas ao

movimento social da denominada economiasolidária e, conseqüentemente, das articulaçõese parcerias nesta área de atuação. Hoje a auto-gestão começa a ter uma dimensão nacionalpara a qual somos chamados a contribuir so-cial e politicamente. Além disso, quando se falade representar e de possuir legitimidade pretende-se, antes de tudo, que as empresas devamassumir cada vez mais o papel, não apenas degarantir o seu negócio e organizar sua unidadeprodutiva, como também o de atuar na construçãocoletiva dos interesses e ideais relacionados comcada um dos empreendimentos.

Educação para autogestão

A constituição de projetos autogestionáriossignifica tratar de propostas que são, antes de tudo,processos em construção de um modeloorganizacional de empreendimento coletivo. Investirna realização de projetos autogestionários significa,primeiramente, elaborar alternativas, o que pressupõeum incessante trabalho crítico tanto no sentido denegar (na teoria e na prática) o que se quer superar(por exemplo, competição, individualismo eexploração), quanto no de construir o novo que sepropõe (por exemplo, solidariedade, sociabilidade,integração, confiança e cooperação). O papel daeducação é central tanto na implantação quanto nodesenvolvimento das atividades autogestionárias.Normalmente somos educados para serindividualistas e competitivos, com a idéia de quecom a concorrência, vence o melhor. Com aeducação autogestionária temos a preocupaçãopermanente de desfazer o sistema de valores jácristalizado na cabeça das pessoas e reconhecer anecessidade de estabelecer novas premissas.

O nosso projeto de autogestão caracteriza-se,antes de tudo, como um processo em construção noqual o trabalho e a relação entre as pessoas devemresgatar seu dimensionamento humano enquantosujeitos que produzem e decidem. Não basta sersócio, possuir quotas-partes de uma propriedadecoletiva e participar apenas subscrevendo decisõesperiódicas. Quando se fala em gestão democráticapretende-se que os trabalhadores possam decidirsobre tudo o que acontece na empresa: metas deprodução, política de investimentos e modernização,política de pessoal etc.

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Realizar atividades educativas para aautogestão significa investir no trabalho decapacitar e formar o coletivo para que asdecisões e o controle pertençam, de fato, aospróprios trabalhadores que integram a empresa.Isto quer dizer que se trabalha não apenas nonível das informações, mas, principalmente, naformação de novos valores sociais e culturais.

Assim, a economia solidária tem comoobjetivo criar, manter e ampliar as oportunidadesde trabalho e de acesso à renda, através deempreendimentos autogestionários de formacoletiva e participativa, pelos própriostrabalhadores e produtores.

Só é possível construir esse processobaseado no incentivo ao desenvolvimento deatividades econômicas que proporcionem umadistribuição de renda justa que seja capaz deestimular as relações sociais de produção econsumo baseadas na cooperação, nasolidariedade e na satisfação e valorização dosseres humanos e do meio ambiente.

Por fim, objetivando ampliar o espaçocomercial, social e cultural dos empreendimentosautogestionários, propomos a integração e odesenvolvimento organizacional com a participaçãoativa de todos os trabalhadores e empresas deautogestão numa perspectiva solidária.

Empresas acompanhadas pela ANTEAG de 97 a 2003Empresas acompanhadas pela ANTEAG de 97 a 2003Empresas acompanhadas pela ANTEAG de 97 a 2003Empresas acompanhadas pela ANTEAG de 97 a 2003Empresas acompanhadas pela ANTEAG de 97 a 2003Empresas por setor produtivoEmpresas por setor produtivoEmpresas por setor produtivoEmpresas por setor produtivoEmpresas por setor produtivo