eckert cornelia, individualismo, sociabilidad y memoria
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Editoração eletrônica e capa:Paulo Capra
Arte Capa:Paul Klee, o anjo.
Individualismo Sociabilidade e Memória: Anais do Co-lóquio / Organizado por Ana Luiza Carvalho da Rocha eCornelia Eckert. Programa de Pós-Graduação em An-tropologia Social - IFCH / UFRGS – Porto Alegre: Edi-tora Deriva, 2009.
188 p; 14 X 20 cm
Título em Inglês: Individualism, Sociability and Memory:Annals of The Event.
ISBN:
1. Antropologia 2. Sociologia
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Este livro Pode ser reproduzido para fins não comerciaisno todo ou em parte, além de ser liberada sua
distribuição, preservando o nome do autor.
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Sumário
05 ApresentaçãoIndividualismo, Sociabilidade e Memória
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Cornelia Eckert
09 Memória, experiência e narrativa
Myriam Moraes Lins de Barros
29 Em busca da duraçãoUm estudo do uso do vídeo na pesquisa sobre a construçãoda memória no processo de desocupação de casas de famíliana cidade de Porto Alegre/RS
Anelise dos Santos Gutterres
39 “No tempo da Nanda, o batuko era muito bom!”
Narrativas e memórias do fazer batuko no Grupo de Batukadeirasde São Martinho Grande (Ilha de Santiago – Cabo Verde)
Carla Indira Carvalho Semedo
53 “A gente se abre para o mundo”Tornando o estrangeiro familiar e estranhando o familiarpor meio de práticas cotidias em intercâmbios culturais
Denise Silva dos Santos
73 Memória e FamíliaAs experiências intrageracionais na construçãodos projetos de vida de universitários negros
Fabiela Bigossi
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89 Experiência, Memória e GeraçãoA construção da narrativa de mulheres que praticaram aborto
Fernanda Pivato Tussi
105 Imagens da memória, documentações fotográficas possíveisA experiência de documentação da “memóriafotográfica do bairro Cristal”, Porto Alegre.
Fernanda Rechenberg
119 Um sonho de cidade e uma soma de rupturasEstudo sobre os conflitos nos processosde gestão urbana em Porto Alegre
Jeniffer Cuty
131 Memória, Experiência e Política da Comunidadede Software Livre e de Código Aberto Brasileira
Luis Felipe Rosado Murillo
153 Horizontes urbanosPaisagem e imaginação no encontro etnográfico
Mabel Luz Zeballos Videla
161 “A praça é nossa, mas aqui é o meu lugar”Sociabilidade e cotidiano entre um grupo de idososhabitués da praça Saldanha Marinho, Santa Maria, RS.
Rojane Brum Nunes
173 “As vozes da experiência”Um estudo antropológico sobre memórias e sociabilidades na
construção da paisagem da Rua da Praia, Porto Alegre/RS.
Thaís Cunegatto
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ApresentaçãoIndividualismo, Sociabilidade e Memória
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Cornelia Eckert
Quando iniciamos nossa prática de ensino no PPGAS/UFRGS,
em 1993, solicitamos à Comissão Coordenadora a criação de uma
disciplina intitulada “Individualismo, Sociabilidade e Memória”.
Nosso projeto era consolidar uma disciplina em que pudéssemos
tecer as linhas teórico-conceituais do campo de pesquisa de nossa
formação: a assim denominada antropologia urbana, o estudo das
sociedades complexas moderno-contemporâneas.
Nessa disciplina, enfatizamos três módulos de formação. No
primeiro deles, abordamos o tema do “Individualismo”, da
construção social da pessoa moderna, e destacamos as leituras
clássicas da antropologia e da sociologia sobre o mesmo, na
companhia privilegiada de Marcel Mauss, Max Weber, Louis
Dummont, Norbert Elias, Anthony Giddens, entre outros.
O segundo módulo refere-se aos estudos de “Sociabilidade”,
das formas de reciprocidade e dos processos de interação social no
contexto contemporâneo, perpassando questões centrais do
fenômeno urbano, como conflito, distinção, desigualdade, poder,
submissão e hierarquia. Ganham realce os estudos sociais que
permitem tratar desses processos a partir da perspectiva das
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trajetórias e projetos sociais, dos habitus e ethos dos grupos, dos jogos e
dramas sociais sempre aí correlacionados. Nesse ínterim, percorremos
os estudos clássicos da sociologia urbana e da antropologia social do
cotidiano, perpassando os autores da Escola de Chicago e seus mestres
de referência, como Georg Simmel e Edmund Husserl, entre outros.
Em seguida, dedicamos nossa atenção aos estudos de sociologia,
antropologia e história social, mapeando enfaticamente os paradigmas
da sociologia da forma, do interacionismo simbólico, dos estudos da
fenomenologia na sociologia da ação cotidiana, das tendências da teoria
da performance e da antropologia interpretativa.
Justamente nesse âmbito, autores como Maurice Halbwachs –
precursor da antropologia dos estudos da memória coletiva em sua crítica
aos estudos historicistas – inauguram o módulo sobre “Memória”. Nesse
módulo, seguimos com as bases da antropologia simbólica para iniciar
os alunos no estudo da memória-esquecimento, da duração e das
estruturas antropológicas do imaginário, e aprofundamos leituras que
tratam das noções antropológicas do espaço e do tempo para melhor
introduzir os autores das hermenêuticas instauradoras sobre tempo,
narrativa, memória coletiva e imaginação simbólica.
Em todos os módulos, buscamos sempre referir os estudos
antropológicos brasileiros que refletem sobre o viver urbano, a partir
de um leque de estudos etnográficos nas cidades modernas.
A exemplo de nossas experiências de ensino anteriores,
também neste ano de 2008 nós incentivamos os alunos a
apresentarem um trabalho de conclusão diferenciado: a turma
aceitou o desafio de organizar e apresentar seus artigos finais na
forma de um colóquio aberto à comunidade universitária.
Para abrilhantar o ritual de passagem, sugerimos o nome da
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colega antropóloga Myriam Lins de Barros, da UFRJ, para proferir a
conferência de abertura e debater os trabalhos. A possibilidade de
conhecermos sua experiência de pesquisa antropológica, relacionada
aos temas da memória, da sociabilidade, da trajetória e do projeto
social junto a grupos urbanos os mais diversos, publicada em livros e
periódicos, colocava-se para nós como uma oportunidade única.
Myriam não só aceitou o desafio e realizou uma brilhante
conferência de abertura, como se tornou interlocutora ímpar dos
alunos e alunas que apresentaram seus papers no dia 3 de setembro
de 2008. Nessa oportunidade, reiteramos nossos agradecimentos à
colega e nossa admiração por ela. Devemos ressaltar que sua presença
entre nós só foi possível graças ao apoio do PPGAS/UFRGS que, como
sempre, mostra-se atento ao valor dos fóruns de debate intelectual
do corpo discente, sobretudo quando se trata de oportunizar a
presença de uma palestrante tão renomada para uma aula magna.
Por fim, à turma que aceitou o desafio, o nosso agradecimento
por sua dedicação.
Através desta publicação, os leitores poderão conhecer as palavras
proferidas por Myriam Lins de Barros no Colóquio Individualismo,
Sociabilidade e Memória (www.ufrgs.br/sociabilidades), e terão acesso
aos trabalhos apresentados pelos(as) alunos(as): Anelise Gutterres, Denise
Santos, Fabiela Bigossi, Fernanda Rechenberg, Jeniffer Cutty, Mabel
Zeballos, Rojane Nunes, Thaís Cunegatto, Fernanda Tussi, Carla Indira
C. Semedo e Luis Felipe R. Murillo. Luís é também o guardião desta
memória, responsável por reunir estes papers e divulgá-los no portal do
evento e nesta publicação, em formato impresso.
Assim, convidamos aqueles que se interessam pelo tema a
compartilharem desta produção com sua leitura que nos prestigia.
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Memória, experiência e narrativa
Myriam Moraes Lins de Barros
Do ponto de vista do homem, que vive sempre no inter-valo entre o passado e o futuro, o tempo não é um con-tínuo, um fluxo de ininterrupta sucessão; é partido aomeio, no ponto em que “ele” está; e a posição “dele”não é o presente, na sua acepção usual, mas, antes, umalacuna no tempo, cuja existência é conservada graças à“sua” luta constante, à sua tomada de posição contra opassado e o futuro.
Hannah Arendt1
O storyteller, como o flâneur, se distancia do passantemassificado através da capacidade de narrar que elemantém viva. A memória recuperada pelo storyteller nãoestá relacionada à transmissão de uma tradição, mas àcomunicação entre as gerações.
Odílio Alves Aguiar2
Começo este texto com uma revisão do título. Quando fui
convidada para participar do Colóquio Individualismo, Socia-
bilidade e Memória, aceitei apresentar minha trajetória de pes-
quisa sobre memória. Propus um título: Memória e Experiência.
Algumas semanas depois, iniciando o texto desta conferência,
1. Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.2. Aguiar, Odílio Alves. “Pensamento e narração em Hannah Arendt”. In: HannahArendt. Diálogos, reflexões e memórias. Moraes, Eduardo Jardim e Bignotto Newton(orgs.), Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.215-226.
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acrescentei mais uma palavra a estas duas: a narrativa. Este ajuste é
uma precisão conceitual e uma definição mais clara dos processos de
pesquisa antropológicos sobre memória nos quais o próprio momen-
to da narrativa é, ele mesmo, momento de construção da memória. A
leitura do trabalho de Beatriz Sarlo (2007)3 que acabara de fazer nes-
ta mesma ocasião foi que me alertou para este esquecimento inicial.
Diz a autora ao se reportar à obra de Walter Benjamin: “O que cha-
mamos experiência é o que pode ser posto em relato”. (Sarlo, 2007:
p. 26). Assim o título passa a incorporar o termo ‘narrativa’ e mu-
dando então para Memória, experiência e narrativa.
Realizo, eu mesma, um relato de uma trajetória acadêmica e
a inicio com a lembrança de uma experiência recente. Há, exata-
mente, três anos atrás escrevi o memorial para o concurso de titu-
lar na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro4. O texto começava com alguns dos muitos aspectos dos
estudos de memória: sua seletividade, sua perspectiva social e indi-
vidual, seu caráter narrativo. Reproduzo aqui o parágrafo inicial:
Há muito tempo tenho trabalhado sobre memória e aidéia básica da memória como uma construção socialganha toda sua expressão no momento em que é preci-so debruçar-se sobre si mesmo e iniciar o trabalho deelaboração de uma linha narrativa que apresente umahistória de vida acadêmica. Há nesta elaboração umaseleção do que deve ou não estar inserido na história e,neste caso em particular do memorial acadêmico, a se-leção está na forma de narrar, nas prioridades que defi-
3. Sarlo, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.4. O Memorial é datado de 01 de setembro de 2005.
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nem as áreas de atuação e na intromissão de elementosexternos à trajetória acadêmica.
Retomo o texto escrito naquele momento e o reescrevo, sa-
bendo que a cada narração de uma experiência, uma nova versão
da trajetória é elaborada em função do momento, dos interlocutores,
da continuidade da própria vida. Volto mais uma vez a Beatriz Sarlo:
“A narração inscreve a experiência numa temporalidadeque não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu pró-prio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível),mas a de sua lembrança. A narração também funda umatemporalidade, que a cada repetição e a cada variantetorna a se atualizar”. (Sarlo, 2007: p.24, 25)
Minha trajetória. Velhice, família, cidade, gerações são os gran-
des temas das pesquisas que venho desenvolvendo há mais ou menos
30 anos. Estes eixos cruzam-se entre si e com o campo de estudos da
memória. Logo no início desta trajetória, em meados da década de
70, durante o mestrado, a questão da memória não se vislumbrou
como uma possibilidade analítica. Naquela ocasião outras questões
estavam em cena nas discussões da antropologia urbana.
A partir da orientação de Gilberto Velho, aproximei-me do
interacionismo simbólico e das discussões sobre desvio e estigma
com Erving Goffman e Howard Becker, assim como da análise his-
tórica de Michel Foucault sobre sexualidade e loucura que tinha
áreas de interseção com o campo teórico e de pesquisa sobre desvio
social, trazendo, para o centro das discussões, a questão do poder já
pautada por Becker e por Gilberto Velho em seus trabalhos. No caso
de Gilberto Velho, há aproximações claras com a tradição antropo-
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lógica dos estudos de Mary Douglas e de Evans-Pritchard sobre
acusação. Assim, a antropologia urbana que se desenvolvia no
Museu Nacional na década de 70, o debate sobre identidade social e
a discussão sobre desvio social e estigma estiveram no centro das
questões sobre as relações sociais nas grandes cidades. Ao mesmo
tempo, havia uma sensibilidade para novas formas de organização
social e de expressões das identidades sociais numa sociedade em
processo de franca transformação em suas mais diferentes esferas.
Neste sentido as contribuições teóricas de Raymond Firth, Alfred
Shultz, Louis Dumont, Simmel e mais proximamente Gilberto Ve-
lho eram e continuam a ser fundamentais para a construção das
referências teóricas nos debates em torno do individualismo e da
ideologia individualista da sociedade moderno-contemporânea.
A preocupação inicial do meu projeto de dissertação era tra-
balhar a identidade social de mulheres velhas. O universo entrevis-
tado era composto de mulheres católicas de camadas médias do Rio
de Janeiro. Uma das questões teóricas nos estudos sobre as cama-
das médias que estava presente no conjunto de pesquisas no Mu-
seu Nacional era a delimitação sócio-cultural deste universo social
em termos de situação e posição de classe e de ethos e visão de
mundo. Estas referências teóricas estão presentes em Max Weber,
basicamente, nas discussões sobre grupo de status, nas análises de
classe de Pierre Bourdieu, interpretações da análise cultural de
Geertz, sem contar a discussão inicial do Gilberto Velho quando
inicia este campo de trabalho da antropologia urbana com a pes-
quisa sobre os white collors em Copacabana. Estilos de vida, mundos
sociais, ethos, complexidade, heterogeneidade são algumas cate-
gorias teóricas que passam a fazer parte de um campo de estudos
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sobre as camadas médias urbanas, quando se coloca em questão a
importância relativas das classes sociais nas construções do ethos e
das visões de mundo. Às referências teóricas antropológicas neste
campo de estudos sobre camadas médias, soma-se a literatura soci-
ológica de Alfred Shultz e Georg Simmel.
Voltando à pesquisa de dissertação. As mulheres entrevista-
das para a pesquisa compunham uma rede social que se criara em
torno da figura carismática de D. Helder Câmara. O trabalho
assistencial e outras atividades ligadas à CNBB realizados paralela-
mente à vida profissional e, sobretudo após a aposentadoria, deram
o tom para a experiência de velhice ativa das mulheres pesquisadas.
Interpretei esta experiência como parte de um projeto que se cons-
tituía na velhice como o último projeto de vida.
Com o título Testemunho de vida: um estudo antropo-
lógico de mulheres na velhice, a dissertação foi publicada, em
parte, em 1981 na Coleção Perspectivas Antropológicas da
Mulher pela Zahar e tendo como organizadoras Maria Luiza
Heilborn, Maria Laura Cavalcanti e Bruna Franchetto5. A coleção
apresentava a questão da mulher como um tema eleito para o deba-
te das ciências sociais em diálogo com o movimento feminista. A
proposta teórica e política da coleção era expressa no questionamento
da naturalização do lugar da mulher na sociedade, no entendimen-
to do caráter histórico e cultural das identidades femininas e nas
múltiplas determinações presentes na construção social destas iden-
tidades e estava em ressonância com as discussões do feminismo na
academia brasileira daquela época como mostra o estudo realizado
5. Lins de Barros, Myriam Moraes. “Testemunho de vida: um estudo antropoló-gico de mulheres na velhice”. In: Perspectivas Antropológicas da Mulher 2. Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1981, p.11-70.
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por Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj sobre a trajetória dos estudos de
gênero no Brasil. (1999)6. Portanto, neste momento, o trabalho so-
bre velhice de mulheres de camadas médias acaba sendo incorporado
na publicação no campo dos estudos de gênero. E sem dúvida, inicia-
se aí uma área de interseção entre pesquisas sobre velhice e gênero.
Neste contexto acadêmico não se enunciava claramente a rela-
ção óbvia entre projeto e memória como pouco depois é elaborado.
Se tomarmos a própria noção de projeto (Velho, 1981)7, vemos que a
questão da narrativa da trajetória do indivíduo já é, desde o início,
definidora do próprio projeto, embora não seja formulado exatamente
nestes termos originalmente é, para a existência do próprio projeto
há a necessidade de sua comunicação e na sua formulação, desen-
volve-se uma narrativa de coerência em uma trajetória de vida frag-
mentada, portanto de uma vida já vivida e reorganizada neste mo-
mento para dar sentido ao projeto e mesmo, em algum grau, apon-
tar para sua possibilidade de efetivação.
A memória vai se constituir, de fato, um interesse teórico a partir
da minha pesquisa no doutorado realizado entre 1981 e 1986. A questão
que se colocava naquele momento era a das implicações das mudanças
sociais e culturais na família, nas relações de gênero na sociedade brasi-
leira, basicamente nos segmentos de camadas médias urbanas.
Os avós foram os personagens centrais desta discussão. A pers-
pectiva dos avós sobre a família permitiu a análise das mudanças so-
ciais e permanências de valores na família e da própria família como
6. Heilborn, Maria Luiza e SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil”. In: Micelli,Sergio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: EditoraSumará: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 1999.7. Velho, Giberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia daSociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
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um valor social nestas camadas sociais. Ao mesmo tempo a impor-
tância dos avós na organização familiar é pensada em função do pró-
prio panorama das mudanças na sociedade e, em particular, na famí-
lia, sobretudo, no que se refere ao lugar da mulher no mundo públi-
co e privado. Neste trabalho procuro dialogar com os autores clássi-
cos da literatura brasileira sobre família como Antonio Candido e
Gilberto Freyre, com pesquisadores de família contemporâneos, an-
tropólogos, historiadores e psicanalistas, com a tradição de estudos
antropológicos sobre parentesco e família. Durante o próprio traba-
lho de campo tornou-se fundamental a iniciação nas análises sociais
da memória individual e social. Foram os próprios avós que ao recor-
rem a seu passado na família de origem, acabaram me apontando o
percurso teórico da memória como uma instância social e coletiva
capaz de ser compreendida pela perspectiva das ciências sociais.
Alguns pontos e algumas conclusões da tese vêm sendo reto-
mados em diferentes pesquisas minhas e de outros pesquisadores.
A questão da memória é um dos aspectos que trabalhei neste mo-
mento e que retomo nos estudos sobre cidade e velhice. Outro as-
pecto trabalhado foi o das relações entre as mulheres na família,
sobretudo mães e filhas, no momento em que se questionava o lu-
gar da mulher na família e se realizava a concretização das trajetó-
rias profissionais femininas. A experiência na sociedade moderna
de uma organização familiar nos moldes de uma família extensa
parece ser, também, uma contribuição para os estudos sobre famí-
lia moderna na sociedade brasileira e sobre as experiências de rela-
ções intergeracionais na família que, hoje, alguns antropólogos e
sociólogos denominam de solidariedade intergeracional8.
Em 1989 havia publicado o artigo “Memória de velhos e fa-
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mília” na Revista Estudos Históricos9. Retomava as questões da
tese de doutorado sobre memória, aprofundando as leituras dos tra-
balhos de Maurice Halbwachs. Como parte deste projeto de estudo
sobre memória, iniciei mais francamente a interlocução com histo-
riadores e com as temáticas referentes à memória coletiva e a histó-
ria de grupos sociais.
Em 1992 publiquei com Ilana Strozenberg o livro Álbum de
Família editado pela Comunicação Contemporânea10. O livro é um
ensaio sobre fotografias de família e apresenta os resultados de pesqui-
sa realizada no final da década de 80 com o universo que denomina-
mos os guardiães da memória familiar e com o acervo fotográfico
destes indivíduos das camadas médias e altas. No ensaio procuramos
mostrar como a fotografia é apreendida pelos narradores como uma
captura do real, diferentemente da pintura, e não como uma constru-
ção deste real. Em uma linguagem que indica que as fotos represen-
tam o real e a verdade das relações familiares, os guardiães dos acervos
de fotos de família constroem a imagem da família e de sua história
referida nas imagens retratadas. O álbum é, assim, interpretado como
uma narrativa de memória e cada uma das fotos uma pista das lem-
branças e em si mesma uma versão possível da memória familiar.
O aprofundamento das questões teóricas estava ainda dentro das
discussões sobre família: são as relações familiares, os legados das lem-
branças na constituição e na importância de acervos fotográficos, a
preservação da família como um valor. Memória e família e ou memória
8. Lins de Barros, Myriam. Autoridade e Afeto. Avós, filhos e netos na família brasileira.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.9. Lins de Barros, Myriam Moraes. “Memória de velhos e família”. In: EstudosHistóricos. Rio de Janeiro, vol.2, no. 3, 1989, p. 29-42.10. Lins de Barros, Myriam Moraes e Strozenberg, Ilana. Álbum de Família. Riode Janeiro: Comunicação Contemporânea, 1993.
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da família é também a temática de uma incursão na literatura brasileira
com uma análise da obra memorialista de Carlos Drummond de
Andrade. Esta experiência prazerosa de associar literatura brasileira e
antropologia ainda está em meus projetos para atividades futuras.
A memória da cidade surge a partir das pesquisas “Memória e uso
do espaço urbano por velhos na cidade do Rio de Janeiro” e “A constru-
ção do espaço urbano ontem e hoje”. Este último título, sintético de-
mais, fala das formas e condições em que se vive na cidade do Rio de
Janeiro e trata dos significados dados à experiência de vida. A idéia de
construção remete, assim, aos significados dados pelos indivíduos com
mais de 60 anos à vida urbana, em diferentes contextos sociais.
Nos dois projetos a discussão teórica procurou abranger a li-
teratura sobre a cidade moderna, sobre memória e sobre velhice.
Complexidade urbana, heterogeneidade, mundos sociais, frontei-
ras simbólicas e os valores da modernidade compreendem um con-
junto de noções desenvolvidas na antropologia brasileira por Gil-
berto Velho e que remetem a Simmel e à tradição da Escola de Chi-
cago, como já foi apontado atrás. Nos projetos, a cidade aparece ao
mesmo tempo como espaço social constitutivo e construído pelas
relações sociais no mundo moderno e como tema para as entrevis-
tas de história de vida. As pesquisas estavam lidando com memórias
e lembranças de indivíduos moradores do Rio de Janeiro e busca-
vam entender os significados atribuídos às transformações urbanas e
aos diferentes momentos das trajetórias de vida. No tratamento das
questões relativas à cidade, a pesquisa permitiu uma viagem pelas
perspectivas históricas na análise da vida urbana, uma releitura da litera-
tura brasileira que tem o Rio de Janeiro como palco dos dramas, das
crônicas e dos personagens e, ao mesmo tempo, fazia uma busca de
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imagens da cidade que era lembrada pelas pessoas que entrevistava.
Nestas caminhadas por outros campos levava comigo as bolsistas de Ini-
ciação Científica que tiveram que ler Lima Barreto, descobrir o mapa da
cidade, as histórias oficiais registradas nas Regiões Administrativas. A
viagem literária e histórica fez a aproximação com autores brasileiros
que tinham trabalhado a constituição das metrópoles brasileiras na
modernidade como Olgária Mattos, Maria Stella Bresciani e Nicolau
Svecenko, entre outros. Procurava uma aproximação entre a antropolo-
gia compreensiva da história da vida cotidiana e a história da cultura.
Neste percurso e inspirada por esta literatura, integro às minhas leitu-
ras os trabalhos de Walter Benjamin sobre a cidade moderna, sobre seu
personagem típico, o flâneur e sobre a perda do sentido da experiência na
sociedade capitalista, apresentada por Benjamin na figura do narrador,
impossibilitado de ter a quem transmitir suas experiências. A apreensão
desta literatura não se dá pela interpretação benjaminiana da impossibi-
lidade da narrativa mas pelo que esta interpretação indica: a compreen-
são das lembranças dos indivíduos como uma construção de tempo-
espaço de memória, experiência e narrativa.
Neste momento do percurso das pesquisas, a tentação em trazer
para o debate sobre a cidade moderna duas perspectivas distintas se
concretiza no diálogo que realizo com Simmel e Benjamin e entre os
dois. Na obra dos dois pensadores, a cidade moderna é abordada atra-
vés de suas relações sociais fundamentadas na ideologia individualista
e na economia de mercado onde tudo e todos são transformados em
mercadoria e, neste contexto, o homem blasé de Simmel e o flâneur de
Benjamin são apresentados como constitutivos das metrópoles mo-
dernas. O diálogo entre os autores já estava dado de antemão: a inspi-
ração simmeliana está presente na figura do flâneur e parece uma das
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influências de Simmel na obra de Benjamin, além do caráter ensaístico
das obras dos dois autores. Influência que não se limita a Benjamin
mas que abarca um conjunto de sociólogos e filósofos alemães e soci-
ólogos americanos da Escola de Chicago.
Enquanto as pesquisas eram desenvolvidas, a docência na gra-
duação permitiu-me realizar um laboratório com os alunos sobre me-
mória da cidade, sobre heterogeneidade urbana, sobre as histórias das
transformações urbanísticas e sociais. Os trabalhos dos estudantes trou-
xeram um amplo panorama de bairros, de modos de vida e de histórias
relatadas por entrevistados ou arquivadas nas sedes das regiões admi-
nistrativas. A amplitude do cenário do Rio de Janeiro e do Grande Rio
era possível pela própria característica dos alunos de graduação, mo-
radores eles mesmos de diferentes bairros e regiões da cidade11.
Nas pesquisas sobre memória dos velhos na cidade, são reto-
mados os pontos fundamentais da análise sociológica de Maurice
Halbwachs. Como já disse, em 1989 quando publiquei em Estudos
Históricos uma interpretação das fotografias de família, desenvol-
vi uma breve análise dos trabalhos de Halbwachs. Apontando a
herança durkheimiana na conceituação de memória individual, cole-
tiva, social e oficial, mostrava, também, um certo distanciamento do
autor frente à posição de Durkheim quando coloca uma margem de
opções e de possibilidades de construção das lembranças. Para
Halbwachs, embora o homem só possa ter memória de seu passado
enquanto ser social, a memória individual é um ponto de vista da me-
mória coletiva e este ponto de vista varia de acordo com o sentimento
11. Parte desta experiência está relatada em Lins de Barros, Myriam Moraes.“Velhos e jovens no Rio de Janeiro”. In: Velho, Gilberto e Kuschnir, Karina(ors.) Pesquisas Urbanas. Desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed, 2003, p. 156-173.
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de realidade, dado pelo lugar que o indivíduo ocupa nas relações soci-
ais. São os quadros sociais de memória do grupo social que darão as
referências aos indivíduos. A memória individual é dependente, assim,
do lugar de onde se narra as lembranças. O caráter relativo da memó-
ria também vai ser congruente com a idéia da memória como uma
reconstrução do passado. Outro aspecto fundamental da memória in-
dividual e coletiva, e, ainda dentro desta mesma configuração teórica,
é o centramento na vida em sociedade, na memória vivida, construída
nas experiências de indivíduos inseridos em grupos sociais.
A partir desta apreensão da obra de Halbwachs, utilizo a idéia
de Michel Pollak, em artigo publicado no mesmo número de Estu-
dos Históricos (1989), do espaço de conflitos entre diferentes ver-
sões das memórias e da história dos grupos sociais e do uso social
das lembranças na elaboração da identidade e das fronteiras de gru-
pos e segmentos sociais. Procurando entender as narrativas de me-
mória dentro deste quadro teórico em que a memória é construída
e compreendendo que esta construção se dá em um campo sócio-
cultural específico, estou mais preocupada em entender versões, as
relações entre estas diferentes versões e os lugares sociais a partir
dos quais são compostas estas versões. Gênero, geração, situação
social são alguns dos aspectos a serem levados em conta nos estu-
dos destas diferenças. A proeminência de um dos aspectos em rela-
ção aos outros deve, também, ser avaliada nas análises destas ver-
sões. E mais, o próprio momento da narrativa tem que ser conside-
rado para que se compreenda a narrativa como uma possibilidade
entre outras da construção das lembranças. Não estou lidando, as-
sim, com a perda da figura do narrador ou de lugares da memória
na modernidade como é trabalhada por Benjamin ou por Pierre
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Nora mas com a complexidade e a heterogeneidade na vida moder-
na e as condições contemporâneas da construção de narrativas ba-
seadas em experiências que trazem a dimensão dinâmica e proces-
sual onde se entrelaçam relações de gênero, trajetórias profissio-
nais, locais de moradia, etc.
No trabalho das interpretações das narrativas de lembranças,
a perspectiva antropológica é aprofundada nas discussões
metodológicas do uso de história de vida e da análise dos depoi-
mentos de lembranças como momentos rituais como trabalha
Barbara Myerhoff (1984)12.
As preocupações teóricas sobre memória estão, assim, assimi-
ladas ao campo teórico da discussão da relação indivíduo/sociedade
nas sociedades complexas contemporâneas em uma mesma linha-
gem teórica dos estudos de Gilberto Velho. Nesta perspectiva teórica
as questões dirigem-se para as representações do indivíduo moder-
no, para a construção da realidade social como processo. Estão com-
preendidas, neste campo teórico igualmente, as reflexões sobre tra-
jetórias individuais e campos de possibilidades sócio-cultural onde se
inserem, portanto, as questões da memória e do projeto de vida.
A definição deste campo teórico iniciado há anos atrás e reavaliado
e aprofundado nos processos de pesquisa sobre memória e uso da
cidade pelos velhos configurou-se, na verdade, como um plano de es-
tudos para um prazo mais longo. Nos projetos posteriores, a proposta
de pesquisa foi no sentido de trazer novos questionamentos mas ainda
dentro deste campo de interesses teóricos e metodológicos.
12. Myerhoff, Barbara. “Rites and Signs of ripening: the intertwining ofRitual”. In: David I. Kertzer & Jennie Keith (ed.). Age & AnthropologicalTheory. Cornell University Press, Ithaca, 1984.
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Neste sentido desenvolvo no artigo “O passado no presente:
aos 70 falando do Rio de Janeiro” a idéia da construção da identida-
de de uma geração a partir das narrativas de memória e a percep-
ção dos marcos da cidade como pistas para as lembranças13. Apre-
sento, também, neste texto a discussão do direito à cidade por parte
desta geração que não consegue mais se identificar com a paisagem
urbana e com formas de interações sociais. Ainda com o material
das pesquisas sobre memória, cidade e velhice tratei das relações
entre densidade dos relatos de memória, gênero e curso da vida14. A
percepção de que a narrativa tem densidades diferenciadas em fun-
ção do momento em que se relata a trajetória, das desigualdades de
gênero e de classe foi trabalhada na análise das narrativas de ho-
mens e mulheres de diferentes segmentos sociais, examinando par-
ticularmente as memórias de mulheres das classes trabalhadoras de
suas trajetórias de vida em relação à família e ao trabalho. Algumas
idéias presentes no trabalho “Densidade da memória...” onde estes
aspecto da densidade diferenciada são estudados são retomadas e
procuro trabalhar o lugar da mulher mais velha na família e nos
espaços públicos, sua mobilidade ou não nos percursos urbanos e
no lidar com as instituições e, também, sua autonomia frente à fa-
mília nas escolhas de atividades cotidianas.
Seguindo na mesma linha de pesquisa procuro, em outro mo-
mento, trabalhar alguns pontos de uma antropologia das emoções
13. Lins de Barros, Myriam Moraes. “O passado no presente: aos 70 falando doRio de Janeiro”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. No. 4. Rio de Janeiro:Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Núcleo de Antropologia e Imagem.1995, p. 91-106.14. Lins de Barros, Myriam Moraes. “Densidade da memória, Trajetória e Projetode Vida”. In: Estudos Feministas. Vol. 5, no.1/97, p. 140-147.
23
baseada em histórias de vida e uma antropologia/sociologia dos
sentidos. No artigo “A cidade dos velhos” (1999), faço um esboço
de um caminho de análise entre o sentido da visão identificado por
alguns autores como o sentido humano que mais se associa aos
valores da modernidade e à experiência nas metrópoles, interpre-
tando o traçado de mapas urbanos feitos pelos velhos nas formas de
narrar os espaços da cidade do Rio15. Mais uma vez recorro a Simmel
e a Benjamin. O primeiro desenvolve uma sociologia dos sentidos e
atribui à visão a experiência singular que associo em Benjamin à
relação entre o olhar e o ser olhado do flâneur nas metrópoles. E
sem dúvida, assim como ocorre com a visão das fotografias pelo
narrador a paisagem urbana e seus marcos são, como já tratei atrás,
uma chave de partida para uma narrativa.
Construímos nos contextos acadêmicos questões e respostas
e retomamos algumas, fazendo uma releitura de trabalhos já reali-
zados (mais uma vez uma narrativa de memória). Em 1998 publi-
co, pela Editora FGV, a coletânea Velhice ou Terceira Idade? Es-
tudos antropológicos sobre identidade, memória e política16.
Nas reuniões da ABA de 1994 e 1996 a temática da velhice foi deba-
tida por pesquisadores de diferentes centros de pesquisa e mostrou
que novos e jovens pesquisadores estavam se somando à primeira
geração de antropólogos que se dedicam ao tema da velhice no Bra-
sil. A coletânea reúne trabalhos de autores que haviam apresentado
15. Lins de Barros, Myriam Moraes. “A cidade dos velhos”. In: VELHO, Gilberto(org.). Antropologia Urbana. Cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 43-57.16. Lins de Barros, Myriam Moraes (org.). Velhice ou Terceira Idade? Estudosantropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Editora FGV,2007, 4ª edição.
24
suas pesquisas na Reunião da ABA de 1996 e que representavam,
nas ciências sociais, aqueles que estavam produzindo mais efetiva-
mente sobre velhice e envelhecimento. O livro significou para mim
a possibilidade de tornar pública uma produção antropológica, por-
tanto, uma perspectiva das ciências sociais sobre temas que poderi-
am se tornar cativos da área médica ou da gerontologia. Diferente-
mente destas duas, minha preocupação não era e não é constituir
uma área de antropologia da velhice, embora os autores tenham
um acervo de conhecimento sobre o tema, mas trabalhar a temática
a partir dos referenciais teóricos e metodológicos da antropologia e
dentro desta tradição. É a partir desta perspectiva que entendo que
deva ser estimulada a interlocução com as diferentes áreas de co-
nhecimento e com diferentes instâncias da vida social. Como já foi
apresentado atrás, o livro trouxe para um conjunto de pesquisado-
res a oportunidade de concretizar a rede de pesquisa em torno des-
tas temáticas e desencadear outras publicações na área. Nesta pu-
blicação, o artigo derivado da dissertação de mestrado publicado
anteriormente em uma coleção de estudos de gênero está agora
inserido na parte dedicada à memória, juntamente com os traba-
lhos de Cornélia Eckert, de Alda B. da Motta e Maria Letícia M.
Ferreira. Neste momento já está clara a interseção entre estes dife-
rentes temas de pesquisa: memória, gênero, classe e velhice e, está
construída claramente uma rede de pesquisadores.
Ao longo dos trabalhos sobre velhice e cidade, trabalhei com
diferentes segmentos sociais e tratei de examinar a construção da
memória a partir de distintas perspectivas e perceber a própria cons-
tituição de situações propícias a um desencadeamento de lembran-
ças como os espaços de sociabilidade informais e formais. Quando
25
tratamos das lembranças na e da cidade há uma tentação que deve
ser sempre observada: a de sobrepor às dimensões de classe e gêne-
ro a referência geracional. Tentação movida por um movimento que
aparece em algumas ocasiões na mídia e nos espaços de sociabilida-
de de forma a marcar nostalgicamente as perdas dos lugares de
memória sob o ponto de vista geracional e, às vezes, os ganhos
permitidos pela modernização da sociedade. Esta via de interpreta-
ção das perdas e da construção de uma história sobre o espaço ur-
bano, empregada, muitas vezes, pela própria história oficial, é, ela
mesma, um objeto de pesquisa, uma vez que é uma versão entre
outras da história das cidades através de seus personagens eleitos
pela dimensão geracional.
A guinada para os estudos da juventude logo depois signifi-
cou uma mudança de perspectiva geracional. Trata-se de pesquisa
sobre trajetória de vida em outra situação geracional, ao estudar
projetos de vida de jovens universitários de segmentos diferencia-
dos das camadas médias e mesmo das camadas trabalhadoras. Esta
incursão trouxe mais claramente a importância de trabalhar traje-
tórias de vida de diferentes gerações nas perspectivas de gênero e
classe. A partir da questão das gerações, volto, assim, recentemente
aos estudos de família. A pesquisa tem como foco as mulheres de
camadas médias urbanas que estão, aproximadamente, na faixa de
idade entre 50 e 60 anos e que vivem uma experiência bastante
comum, atualmente, que é ter pais vivos e filhos jovens e jovens
adultos que, muitas vezes, adiaram sua saída da casa dos pais. Um
dos objetivos do projeto é expandir e refinar para estes segmentos
as discussões sobre redes sociais, solidariedade familiar, autonomia
e independência na família nas diferentes gerações, a responsabili-
26
dade e sentido de obrigatoriedade em relação aos mais velhos e aos
mais jovens. O trabalho de doutorado realizado na década de 80 é,
sem dúvida alguma, uma base tanto sob o ponto de vista teórico
como empírico. Tem sido desde então uma questão permanente para
a compreensão da família a coexistência de configurações de valores
tradicionais e modernos, sobretudo, da família urbana, examinada
como espaço das relações hierárquicas entre gêneros e entre gera-
ções, por um lado, e por outro, espaço de socialização de indivíduos
e da transmissão de valores igualitários. A insistência em trabalhar
estas questões parece ser interessante para a compreensão das
relações familiares em um momento do grupo doméstico em que
esta mulher de 50 a 60 anos é tomada como referência para a
pesquisa17. Estou partindo de referências de alguns trabalhos sobre
mulher, sobre trabalho da mulher, sobre envelhecimento, sobre as
relações de gênero para realizar esta escolha geracional: as mulhe-
res desta geração parecem viver uma experiência particular e dis-
tinta das gerações anteriores e da que as segue imediatamente e
esta especificidade pode ser interessante para compreender as con-
figurações das relações familiares contemporâneas.
As histórias de vida destas três gerações indicaram um novo
percurso de pesquisa que me leva a aprofundar os sentidos e as
práticas referidos ao legado de valores e dos bens materiais, à casa,
à família, de jovens adultos e de suas figuras de referência como as
mães, os pais, os avós, os amigos. Se no projeto de pesquisa anterior
as mulheres de 50 a 60 anos foram o foco da discussão sobre mu-
17. Lins de Barros, Myriam Moraes. Três gerações femininas em famílias decamadas médias: trajetórias de vida e o projeto de autonomização. SeminárioRoberto Cardoso de Oliveira, Museu Nacional. No prelo.
27
dança social e trajetória de vida, agora os jovens passam a ocupar
este lugar. Mudanças no mundo do trabalho, reorganizações da vida
doméstica, a reordenação e surgimento de novos temas sobre
sexualidade, maternidade, parentalidade, os dramas individuais nos
trânsitos entre mundos e entre opções de vida retomam e recriam
as questões sobre trajetórias, memória e narrativas.
Finalizo com Hannah Arendt:
“A primeira coisa a ser observada é que não apenas o futuro- “ a onda do futuro” -, mas também o passado, é vistocomo uma força, e não, como em praticamente todas asnossas metáforas, como um fardo com que o homem temde arcar e de cujo peso morto os vivos podem ou mesmodevem se desfazer em sua marcha para o futuro”.
Hannah Arendt
Rio de Janeiro, 26 de agosto de 2008.
Rio de Janeiro, 03 de novembro de 2008.
28
29
Em busca da duraçãoUm estudo do uso do vídeo na pesquisa sobre a
construção da memória no processo de desocupaçãode casas de família na cidade de Porto Alegre/RS
Anelise dos Santos Gutterres
“Como, se na desordem do armário embutidoMeu paletó enlaça o teu vestido
E o meu Sapato ainda pisa no teu”
(eu te amo, Chico Buarque)
Essa apresentação visa refletir sobre o uso do vídeo como técnica
para a pesquisa dos processos de construção da memória familiar, a
partir da figura do “guardião da memória” e em meio ao movimento
de desocupação das moradas que eles habitam. Espaços acolhedores
de lembranças de no mínimo duas gerações de alianças com descen-
dência de parentesco ou pelo lado materno ou pelo lado paterno.
Nominação feita por Myriam Lins de Barros (1988: p.34) o
“guardião da memória familiar” torna-se também aqui figura fun-
damental para se compreender o que M. Halbwachs chamou de
marcas visíveis do passado. Marcas que nesse estudo serão procu-
radas a luz dos conceitos de duração de Gaston Bachelard, e enten-
didas através da noção de ruptura, que segundo esse autor são os
centros decisivos do tempo onde o narrador se orienta e se guia,
num deslocamento constante e também, segundo Lins de Barros cíclico.
30
Onde esse indivíduo é capaz de, observando as suas descontinuidades
no processo vivido, estabelecer uma ordem e um contexto para elas, e,
portanto, avaliar a sua permanência no tempo. Um descobrimento que
é provocado pela experiência do processo de interação que ao obser-
varmos os trechos em vídeo que serão apresentados, se dá em meio às
diferenças, tensões e surpresas, acionadas pelas diferenças trazidas por
cada um dos indivíduos a relação.
A narradora a que assistiremos aqui reúne em sua figura, o
potencial narrativo de transmissão da sua memória do passado, e se-
gundo a orientação dos trabalhos de Walter Benjamim nesse sentido,
ela estaria evitando a sua própria morte, já que para esse autor o
passado vivido é vivido quando narrado a alguém. Neste caso, ao ob-
servarmos o desenvolvimento da narrativa nesses trechos de vídeo,
como forma de construção do próprio narrador, tendo como ouvinte
não o neto, o filho, ou o pupilo, mas o antropólogo e sua câmera,
buscaremos pensar na linha de Gilberto Velho numa comunidade de
sentido. Um sentido que compartilhado é o catalisador da narrativa e
pode nos levar a pensar sobre os papéis envolvidos nele, relativo a
gênero e a geração. Ainda sobre os trechos apresentados aqui, é im-
portante ressaltar que eles são fruto de uma metodologia de pesquisa
em vídeo desenvolvida no Banco de Imagens e Efeitos Visuais onde
segundo Rafael Devos, buscamos dar um tratamento documental a
gravações feitas durante um dia inteiro de trabalho, de forma a
“desmontá-las” em busca das “mudanças de sorte” do narrador den-
tro de um processo que é sempre maior do que o visualizado. Portan-
to para esse autor o tratamento dessas narrativas envolve “a
digitalização, a análise e a classificação dessas “falas” (Devos,2008,
no prelo) menos atrás do – segundo Geertz – “estive lá” do realizador
31
em campo, e mais, nesse caso, atrás desses re-começos, esses fecha-
mentos de sentido presentes ao logo da fala ou do percurso pela casa.
Nos dois fragmentos que serão vistos, gostaríamos de apon-
tar a escolha da câmera na mão como hipótese dessa possibilidade
de narrar a narração. De forma a dar conta do movimento provoca-
do pelos deslocamentos que a experiência dessa troca funda. Uma
opção da pesquisa que está preocupada com as mudanças de sorte,
os rompimentos, construídos a partir do percurso por essas fotos e
por esses objetos da casa. Bachelard, em A dialética da Duração,
quando está dialogando com os estudos da psicologia de Pierre Janet,
usa uma frase do neurologista: “a mudança é no fundo bastante triste.
Quase sempre, em todas as suas formas, é o desaparecimento”. Habitados
por essa afirmação nos ocuparemos, ao olhar essas imagens em vídeo,
a pensar sobre o risco de desaparecimento desse indivíduo à medida
que ele se constrói na narração desses objetos outrora dispostos
pela casa. Para Bachelard (1989: p.47) “a continuidade é apenas nossa
emoção, nosso tumulto, nossa melancolia, e o papel da emoção talvez seja
apenas o de suavizar a novidade excessivamente hostil”.
Carla Castilho, a narradora que mencionávamos até agora,
nasceu em Porto Alegre, é mãe de Claudia, Marcos e Camila, viúva
de Mauro e recentemente avó de Sofia. Dona de uma vida, como ela
coloca, que já teve “muitas esquinas”, a morte da mãe, do pai e do
marido precocemente, são sempre lembradas como marcos impor-
tantes para o reforço da sua capacidade de “virar”, “sair viva do
outro lado”. Falante e “cheia de energia”, Carla criou os filhos,
acompanhou o marido na sua trajetória acadêmica fora do estado e
para driblar a rotina sem a companhia dele, usou essa energia para
completar uma graduação em Turismo. Hoje Carla mora numa casa
32
em Canela, com seus gatos e seus cachorros preta e moleque.
Veremos agora um primeiro trecho, onde Carla embarca numa
viagem, por entre caixas e caixas de fotos, que guardavam duas
gerações da família dela e da família do marido, que cresceu e mor-
reu na casa, que na época, ela desocupava. Fotos que estavam reu-
nidas em seu quartinho-sótão a partir da categoria fotos, sem ne-
nhuma organização aparente, orientada por rituais, por datas festi-
vas ou épocas distintas. Eram fotos que misturavam momentos na
casa de praia, na casa de Gramado na serra, na antiga casa dos pais;
das férias, do álbum desmontado da sogra, da formatura do pai, dos
quartos dos filhos. Essa “desorganização”, ou essa casualidade como
colocaria Bachelard, encontrada nas caixas de fotos parecia análo-
ga aos espaços da casa que naquele momento, divididos por caixas
com as etiquetas “panelas”, “móvel da sala”, “roupas de inverno”
amontoavam os corredores e cantos da casa. Essa aleatoriedade apa-
rente, nas fotos e na ambiência da casa, impulsionou a pesquisa de
uma estética de gravação em vídeo e em captação de som que fosse
capaz: tanto de acompanhar esse momento de montagem das rela-
ções entre as fotos oriundas de momentos diferentes da vida de
Carla; como de acompanhar, o deslocamento dessa narradora pela
casa, atrás da descoberta da escolha e do esquecimento de diferen-
tes objetos compositores da morada à medida que em razão desse
momento prático – de entrega das chaves – eles tinham possibilida-
de de ir ou ficar. Uma estética e um movimento de câmera inspira-
dos no vídeo dirigido por Ana Luiza Carvalho da Rocha, em 1997,
sob o titulo de A cidade e suas Ruínas.
33
[Situação 01 – escolha das fotos – gravado em abrilde 2007 às 9h]Trecho de vídeo com 3 minutos e 10 onde Carla vai montandoatravés das fotos de diferentes momentos, relações entre paren-tes, entre o tempo e épocas diferentes vividas nessa mesma casa
Para Lins de Barros (1989: p.33), segundo Halbwachs a trans-
missão de uma história, sobretudo a historia familiar, está ligada a
transmissão de uma mensagem que se refere ao mesmo tempo “a
individualidade da memória afetiva de cada família” e a memória da soci-
edade mais ampla, expressando com isso “a importância e permanência
do valor da instituição familiar”. Nesse trecho que assistimos chamamos
atenção para um volume de diferentes vestuários, posturas, decora-
ção, representações de infância, de paternidade, irmandade, de rela-
ção com o espaço que as fotos evidenciam. Na continuidade dessa
gravação poderíamos ver Carla mostrando através de diferentes fo-
tos, três paisagens possíveis da mesma janela do quarto da filha, antes
quarto de um dos irmãos do marido, nos evocando a pensar a trans-
formação da cidade de Porto Alegre a partir desse ponto de vista. Os
momentos fixados pelas fotografias familiares na mobilidade das re-
lações articuladas pela narradora: a partir da descrição de hábitos,
itinerários, práticas; podem evocar pelo conceito de “história vivida”
a memória coletiva de uma classe média moradora de Porto Alegre.
Nessa linha, a determinação do que nominei “casas de famí-
lia” não pretende distinguir e nem excluir a diversidade de repre-
sentações sobre família que desde meados dos anos oitenta vem
sendo repensadas pela antropologia. Também não é a intenção res-
tringir uma única concepção de casa como construtora da defini-
ção de família. Trabalhamos em cima dessa terminologia a fim de
34
reunir em torno dela o contexto de uma trajetória de vida de cama-
das médias, onde “uma certa concepção de casa”, ocupa lugar cen-
tral na história de vida dessas famílias. Famílias compostas por rela-
ções de aliança clássicas entre pai, mãe e filhos, e onde a casa ocupa
um papel de solidez, de provedora das “lembranças de família” já
que são casas de áreas extensas, internas e externas, que abrigaram
ao menos duas gerações de casamentos de uma mesma família. A
intimidade e a presença da máquina fotográfica no registro dos ri-
tuais familiares e das cenas cotidianas dessas famílias contribuem
para a construção de uma infância que ocupa e explora certos espa-
ços imaginados da casa. Ou no caso das comemorações: delimita
regiões e itinerários que depois a fim de serem re-vividos em outras
casas, precisam dessas fotografias e desses objetos, pois são eles que
evocam as narrativas que durando no tempo podem compor atra-
vés de novas narrativas a permanência dessas famílias para além das
casas onde viveram por muitos anos.
Abordar a questão “da quantidade de tempo de vida numa
casa”, para pensar a construção desse indivíduo narrador, é rele-
vante à medida que ela acumula gestos de um vivido anterior. Cons-
tituindo uma “topofilia”, como chama Bachelard (2005: p.31), fun-
damental para pensarmos determinadas casas como “moradas”, uma
noção trazida por esse autor para pensar esses espaços de acomoda-
ção do tempo, que não estão relacionados ao um tempo da matéria,
mas a um tempo vivido. Dessa forma somos capazes de entender
por que a morada de Carla não estava sendo destruída com a des-
truição da sua casa. Pois a morada para Bachelard ela é imaginada,
como são os caminhos que re-imprimem o que Benjamim chama
de “rastros” que habitam o passado. Da mesma forma que o tempo
35
vivido de Bachelard não está relacionado a vida de uma só pessoa,
ou de uma só família, ele é o acúmulo de histórias, esses “instantes
de iluminação súbita” (1994: p.83) da qual fala Benjamim sobre a
força da fotografia em chamar um pedaço de “nós-mesmos” a inte-
grar o pedaço de outros, para Paul Ricoeur “a historia, seja a de nós
mesmos ou a dos outros, desenvolve-se entre um indício e um fim que não nos
pertencem, pois a história da nossa concepção, do nosso nascimento e da nos-
sa morte, depende de ações e de narrações de outros que não nós mesmos; e,
portanto não há começos nem fim absolutos possíveis nessa narração que nós
fazemos de nós mesmos” (1994: p.84).
Para Bachelard, pensar na duração do indivíduo é pensar que
“nossa história pessoal nada mais é que a narrativa de nossas ações descosi-
das” é ao contá-la, é por meio de razões não por meio de durações
que pretendemos dar-lhe continuidade. Portanto a experiência da
nossa própria duração passada se baseia para Bachelard, em verda-
deiros eixos racionais, sem os quais o arcabouço da nossa duração
se desmancharia. Na linha dos estudos de Schutz sobre as motiva-
ções que movem a experiência, e retomando a comunhão de senti-
do do qual nos ensina Gilberto Velho estamos ao realizar essa pes-
quisa em vídeo nos perguntando sobre “um grupo de decisões experi-
mentadas” (1989: p.39), onde repousa a pessoa do pesquisador e a
pessoa de Carla a fim de encontrar e evidenciar através do vídeo a
interdependência da presença do outro na construção dessas nar-
rativas orais. Num processo de gravação que é uma pesquisa em
torno da subjetivação do olhar desse pesquisador que aparece numa
certa estética de gravação: que prefere as seqüências aos cortes, não
esconde daquele que assiste o ajuste do foco, as diferenças de luz
dos espaços gravados. Estetizando a experiência não no sentido de
36
afirmar “o aquilo que se olha é aquilo que se vê”, mas justamente o
contrário, aquilo que se olha é fruto dos instantes que compõe aque-
la interação, também como parte da duração dessa relação do pes-
quisador com o outro.
[Situação 02 – escolha dos objetos – gravado em31 de maio de 2007 às 9h30]Trecho onde Carla sentada na escada da casa fala sobre umaovelha de pelúcia velha que teve pedaço da orelha comida pelocachorro, uma ovelha que comprada pelo marido tinha sidoaté agora uma “guerreira” pois sem nenhuma aparente razãoela ainda estava por ali, levando dúvidas em Carla sobre se alevava para a nova casa ou a deixava ali.
Levar ou não levar a ovelha de pelúcia?
Quando Bergson irá pensar a memória como um depósito de
lembranças, ele elegerá a matéria, diferente de Bachelard, como o
acionador desse depósito, que trazidos a consciência serão sempre
os mesmos na relação matéria-memória, não sofrendo interferên-
cia do presente no “resgate” e construção das lembranças. Já para
Bachelard é possível “conversar com os objetos”, eles não são ma-
téria inerte, funcional e consciente no acionamento da lembrança.
Para ele não temos controle sob algum objeto ao ponto de afirmar
que ele nos fará lembrar especificamente de determinada sensação
ou ocasião. Portanto trabalhando com o conceito de imaginação
desse autor, admite-se que antes da imaginação ser a capacidade de
formar imagens, ela é a capacidade de deformar as imagens, de
mudá-las, libertá-las. “Graças ao imaginário a imaginação é essencial-
mente aberta, evasiva. É ela no psiquismo humano, a própria experiência da
abertura, a própria experiência da novidade” (1990: p.1). Parafraseando
37
o poeta e pintor William Blake “a imaginação não é um estado, é a
própria existência humana”. Para tanto o que nos move a acompanhar
junto com Carla, o processo de decisão: sobre que fotos levar, que
fotos podem contar histórias, que objetos deixar, que objetos podem
e tem potencial de evocar histórias, estamos implicados não na des-
coberta de que função eles tem, e sim na descoberta de que imagi-
nação existe neles, porque é o volume dela, que apostamos, definirá
o destino da ovelha: ou ir ou ficar.
38
Referências
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MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. São Paulo: Vozes, 2008.
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GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. 1988
DEVOS, Rafael. Desmontando narrativas:sobre o tratamento documental de
acervos audiovisuais de narrativas orais 2008, no prelo.
39
“Na tempu di Lara, nós batuko era sabi!*”Narrativas e memórias do fazer batuko no Grupo de
Batukadeiras de São Martinho Grande(Ilha de Santiago – Cabo Verde)
Carla Indira Carvalho Semedo
Enquanto estava fazendo o campo, o grupo de batukadeiras de
São Martinho1 Grande se encontrava constituído por dezasseis (16)
mulheres (sendo cinco adolescentes entre a faixa etária de 13 a 16
anos) e dois coordenadores, Orlando2 e Otávio. Trago a constituição de
forma dinâmica e não estática do grupo, pois presenciei em vários
momentos, situações de desistência de um ou outro elemento e de
reentrada destes no grupo, ao mesmo tempo em que, quando as ques-
tionava sobre o número total dos elementos, elas me respondiam eva-
sivamente, sem nenhuma certeza: “Sinceramente, não sei, ás vezes apare-
cem 8, outras 12, eu não sei... eu que organizo o grupo, não sei, pois é difícil
aparecer todo mundo no ensaio...” (Solange, 30 anos), por isso não quero
dar um caráter de solidez à constituição do grupo quando tal é
inexistente. Ao invés, mostrar uma maleabilidade do grupo que vai
sendo construído em decorrência dos vários momentos de
*. Tradução do crioulo: “No tempo da Lara, o nosso batuko era muito bom”!1. São Martinho Grande fica na ilha de Santiago, na região rural da cidade daPraia (capital de Cabo Verde), aproximadamente 15 minutos de viagem de Praia.2. A fim de manter o anonimato das minhas colaboradoras de pesquisa, usopseudônimo.
40
agenciamentos das batukadeiras conforme a situação e a audiência.
“Eu nem tenho idéia de quanto somos, sei que somosmuitas, mas nos ensaios apareçam umas 4, 5 ou 6 pes-soas, não mais. Mas, se de repente formos convidadaspara participar em algum show, podes ter certeza quevai aparecer umas 12, 13 ou mais querendo ir”(Nany, 30 anos).
Este grupo, segundo minhas colaboradoras, só se constitui
enquanto um grupo coeso e articulado com a vinculação à associa-
ção da comunidade: a Associação para o Desenvolvimento de São
Martinho Grande (ADSMG) em 2007 na altura presidida pelo
Orlando, então presidente e atual coordenador delas que as incenti-
vou a trabalhar junto com a associação, argumentando que esta
precisava ter um grupo de batuko e que estando vinculado com a
associação, o grupo ganharia um caráter institucional, a fim, de
garantir retornos de apoios financeiros de outras instituições go-
vernamentais ou não governamentais.
Tanto Orlando quanto Otávio, têm formações superiores (Mar-
cos tem bacharelato e Otávio tem licenciatura) e situações
socioeconômicas acima da média das batukadeiras, pertencendo so-
cialmente à classe média. Diferente das batukadeiras cuja escolarida-
de é muito baixa, sendo que algumas nem são escolarizadas,
condicionando assim as atividades econômicas remuneradas (no-
meadamente peixeiras, venda ambulante de frango, ou vendas in-
formais ambulantes) que elas realizam e cuja filiação de classe re-
mete à classe popular, de baixa renda. E essa disparidade entre a
condição socioeconômica e escolaridade, perpassava tanto as nar-
41
rativas das batukadeiras quanto do Orlando e do Otávio, ou nas situ-
ações de tensões eminentes resultante dos acordos estabelecidos
tacitamente relativamente aos papéis de cada um, na articulação
entre o grupo de batukadeiras e a ADSMG.
“Ah, Orlando não é como nós, ele tem outra situação devida e do Otávio não sabemos quase nada, somente que éprofessor de 2º grau, do que não sabemos, nem suaformação. Nós viemos a conhecê-lo a partir do Orlando eeste nos diz sempre que Otávio não tem grupo, que ele cantasozinho, pode ter um grupo de batukadeiras a acompanhá-lo, mas ele não tem grupo algum” (Ana, 40 anos).
Este grupo de batukadeiras recém-formado em 2006 é prece-
dido de um outro que, foi durante os anos 80 e 90 foi muito aplau-
dido e isso foi sendo trazido constantemente nas narrativas das
batukadeiras e da comunidade de São Martinho Grande em geral. O
grupo atual é constituído por elementos que participaram no gru-
po dos anos 80, entre os quais Fátima, a mais velha do grupo (62
anos) e é a única que veio do antigo grupo e que era trazida sempre
nas narrativas das batukadeiras e na comunidade na sua totalidade.
“Antes nosso batuko era bom, fazíamos bom batuko, ía-mos aos concursos e ganhávamos sempre, depois, o gru-po foi abaixo e agora em 2006, levantamos de novo,espero que continuemos fortes” (Fátima).
As outras batukadeiras desse grupo atual, a faixa etária ronda
30 a 40 anos, tendo também presença de adolescentes. Para além da
Fátima, Claudia, Lúcia (filha da Fátima), Nair quando meninas par-
ticiparam do grupo durante os anos 90, fazendo ku torno3. No meio
42
desses sujeitos aparece uma outra: Lara. Durante o trabalho de cam-
po, Lara aparecia sempre para mim por meio das narrativas das
batukadeiras e da comunidade no seu todo, como um marco na prá-
tica do fazer batuko nos anos 80 a 90, junto com Fátima. Na verda-
de, só vim a conhecer Lara, meses depois de tê-la conhecida por
meio dessas narrativas e da forma como ela é produzida e produz o
imaginário social dessa comunidade. Lara é emigrante em Portugal
desde 2001 e no período que estava realizando trabalho de campo,
em Dezembro de 2007, ela foi passar um mês em Cabo Verde.
Busco através dos dados etnográficos, discutir como as narra-
tivas sobre o antigo grupo (a partir de 1975 a 1999) de batukadeiras de
São Martinho Grande são revividas pelo atual grupo formado em
finais de 2006 e pela comunidade no seu todo. Dessas narrativas des-
tacam-se duas figuras: Lara e Fátima como lugares de memória em
Halbwachs (1990), no sentido em que elas se reconstituem como
sujeitos atores nestes lugares de memória, no qual a partir da narra-
tiva, deste trabalho da memória, o saber-fazer do batuko na Comuni-
dade de São Martinho Grande é recriado a cada ato narrativo. Dado
que para a comunidade falar da Lara implica falar dos momentos
áureos do fazer batuko, ao mesmo tempo em que, falar do batuko rea-
lizado por esta comunidade implica remeter à Lara e ao tempo áureo
do batuko. Junto com esta noção de memória, incorporo a noção de
tempo narrativo em Ricoeur (1994), esse tempo Passado, Presente e
futuro que vai sendo reinventado, reapropriado pelos sujeitos sociais
nas suas práticas cotidianas e a memória é agenciada em experiênci-
as vividas. A discussão trazida por De Certeau (2003), as artes de sa-
3. Ku torno se traduz em um forte e/ou frenético requebrar das ancas, dosquadris conseguido por flexões fortes dos joelhos.
43
ber fazer inventadas, recriadas pelos sujeitos no seu cotidiano, tal
como a discussão da memória e identidade social discutida por Michel
Pollack (1992) permearão a discussão.
O batuko como produzindo e sendo produzido pela memória soci-
al da comunidade de São Martinho Grande e de como esta memória, na
linha de Pollack “(...) é um elemento constituinte do sentimento de iden-
tidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (Polack, 1992: p.5, grifo
meu), vai ganhando forma nas idas ao campo, escutando as narrativas,
as estórias4 do fazer batuko nesta comunidade. Falar do grupo atual im-
plica falar da trajetória da prática do batuko, dos vários momentos e das
suas respectivas protagonistas que deram vida à mesma.
“Eu gosto de fazer batuko. Faz muito tempo que faço.Depois da independência, com o PAICV5, começou-se afazer concursos para eleger o melhor grupo de batuko.Fomos chamadas muitas vezes e ganhamos sempre.Éramos cerca de 13 batukadeiras, uma cantadeira ecrianças / adolescentes que davam ku torno. Eu e acantadeira, Lara que depois veio a emigrar para Portugalem 2001, pensávamos as letras e depois fazíamos as‘cantigas’. Tínhamos uniforme, blusa amarela e saia
4. Estórias no sentido émico da palavra, dentro do léxico do Crioulo, dialeto deconversação em Cabo Verde. Uso estórias para tentar trazer a dimensão daoralidade, que mais que uma narrativa que elas me contam, possui um caratérde conformação de valores sociais, de (re) construção da identidade social ecultural desta comunidade, por meio das heranças socio-culturais.5. A independência de Cabo Verde foi em 5 de Julho de 1975. Após a Independên-cia, até 1990, vigorou em Cabo Verde, o sistema de partido único, sob orientaçãodo Partido Africano para Independência de Cabo Verde (PAICV). Com a aberturapolítica em 1991, entrou o partido Movimento Para Democracia (MPD).
44
marron. Foi muito bom, bons momentos aqueles. Notempo de PAICV, o batuko era bastante valorizado mascom a entrada do MPD, o batuko ficou desvalorizado.Depois que Lara emigrou, ficamos sem cantadeira enosso grupo enfraqueceu” (Fátima).
Esta narrativa que traduz uma memória vivencial do batuko,
do fazer batuko durante os anos 80 e 90 apareceu na fala da Fátima
quando a questionei sobre o fazer do batuko, a aprendizagem. Ela me
trouxe a figura da Lara como o elemento que possibilita costurar os
vários momentos experienciais do batuko, ao mesmo tempo em que,
Fátima junto com Lara é construída pela comunidade como marco
da memória do fazer batuko e em decorrência disso, ambas possuem
uma legitimidade (corporificando em forma de respeito a este saber-
fazer) conferida pela comunidade, que se traduz em uma voz que
critica, que demarca as artes do fazer, as formas diferenciadas e
legitimas do fazer batuko.
Dessa forma, essa legitimidade cria sujeitos que detendo um
saber-saber as permite à la De Certeau (2003) artes de fazer, de bem-
fazer o batuko, como fica bem visível na narrativa da Fátima, quando
ela referindo-se ao grupo atual, às tensões internas com o coordenador
e o presidente, ela resignifica seu presente, seu momento presente,
remetendo a uma passado vivido, a uma memória experiencial. Ao
mesmo tempo em que, esta memória vai sendo (re)construída nas
práticas sociais pelos sujeitos sociais, reapropriada por estes e não
uma memória coletiva à lá representação coletiva de Durkheim que
vê esta como sendo exterior aos indivíduos e coercitivo, mas analisar
esta mais na linha de uma memória social, na linha da representação
social. Na verdade, construir e experienciar sua prática do batuko hoje
45
é sempre em dialogo com essa experiência passada, que se apresenta
corporificada em forma de artes de fazer. Assim, as várias
temporalidades que vão ganhando presença: passado, presente e
futuro são (re) construídas pelos sujeitos sociais nas suas práticas
cotidianas, como tempos narrativos presente-passado, presente-
presente, presente-futuro à la Ricoeur (1994).
Lara aparece como uma guardiã da memória, em cuja
narrativa, os quadros sociais (os lugares vividos de sociabilidade, de
troca, de reciprocidade) são reinventados, pois com a criação desse
grupo novo, as batukadeiras, reiterando, se apropriam destes quadros
sociais de memória, para construir a sua trajetória do fazer batuko
nesse presente-presente, tendo em conta o contexto social e as
exigências do fazer batuko pra se enquadrar numa produção de
produção musical. Sendo que Lara é, ao mesmo tempo, objeto e
sujeito dessa apropriação, pois ela mesma retoma este e a si mesma
inscrita nessa memória coletiva para solidificar e relativizar a sua
presença no grupo. Este passado-presente que seria o tempo narrativo
da Mimese I em Ricoeur (1994) se configura nesse caso em um
passado vivido, de pré-figuração que vai sendo trazido pelas
batukadeiras na Mimese II, o momento de configuração das suas
práticas cotidianas, por meio de narrativas evocativas, o qual na
Mimese III, a todo instante este passado, este tempo pré-configurado
vai sendo reconfigurado. Na verdade, é na mimese II, esse instante
da configuração que o momento de evocação do presente-passado
e do presente-futuro se realiza.
“Agora com apoio de Óscar e Otávio levantamos de novo.Eles têm nos ajudado muito mas Otávio disse que temosque diminuir o número de batucadeiras, nós somos 18,
46
ele quer que fiquemos somente 6, mas 6 é muito poucopara fazer tchabeta6, tem que ter mais gente. Eu nãoconcordo com isso, nós sempre fomos um grupo grande,agora fazer um grupo pequeno não faz sentido. Naquelegrupo antigo, nós éramos 13, depois as pessoas forammorrendo, outras desistiram, desses que estavam nessegrupo, neste novo que apareceu agora só permaneceueu, Claudia, Nair, Lúcia e Neta. Claudia, Nair, Lúcia,minha filha, davam ku torno. Agora estamos iniciando,mas precisamos de apoio, Óscar e Otávio disseram queiam nos dar uniforme, mas até agora nada. De todomodo, vamos ensaiando com ou sem Otávio Nãoprecisamos dele”. (Fátima).
A figura do Otávio, ao mesmo tempo em que, é construída
pelas batukadeiras como um mediador que as permite um
agenciamento no mundo da musica, a sua figura nos leva a
problematizar esta relação entre ele e as batukadeiras, particularmente
quando Marcos enfatiza a presença do Otávio no grupo, com intuito
de este “educá-las, de formá-las para serem futuras artistas”. Por outro
lado, como pude ver nos ensaios, quando Otávio participa (já que
ele não tem grupo de batukadeiras que lhe possa acompanhar nos
shows), as músicas ensaiadas são exclusivamente dele (na maioria
das vezes), sem possibilitar as batukadeiras um amadurecimento das
suas próprias músicas.
“Otávio há muito tempo não aparece. Ele só aparecepra ensaiar conosco quando tem um show marcado, já
6. Um instrumento de percussão semelhante a uma almofada, feito com mate-rial de couro sintético por fora e por dentro com tecidos de jeans velhos. Asmulheres sentadas em circulo ou arco, esticam as pernas e colocam tchabetanestas e batem com as mãos, produzindo um som forte, por vezes estridente,também denominado de tchabeta.
47
que como ele mesmo diz, não tem grupo. Ele mandaavisar com Solange sempre em cima da hora e tu sabesque aqui todo mundo tem seus afazeres e às vezes temosque deixar nossos filhos, nossos companheiros, nossascasas para ir participar em shows e ele nem nosremunera. A gente vai de boa vontade, mas ele nemconsideração, tem conosco” (Nair, 29 anos).
Com a independência, por meio da ação do PAICV houve todo
um discurso e valorização das práticas culturais, populares que durante
a colonização eram proibidas, tanto o batuko, como a Tabanca7. O que
se pretendia, na verdade, era a construção desse ideário de identidade
nacional, de construção da Nação cabo-verdiana, junto com a criação
do Estado enquanto entidade jurídico-política. Vários concursos de
batuko foram organizados pela Organização das Mulheres de Cabo
Verde (OMCV8) nas várias regiões da Ilha de Santiago a fim de se
eleger o melhor grupo de batuko e o grupo de São Martinho Grande,
como narra Fátima, tinha um bom grupo, cuja performance fazia
com que elas ganhassem frequentemente. Tinham uniforme: blusa
amarela e saia castanha, o qual materializava a condição de grupo e
diferenciava de outros potencias e possíveis grupos de batuko.
“Teve uma vez fomos cantar para concorrer com um cantorde Achada Grande9 e não estávamos muito firmes de queíamos vencer, pois ele cantava bem, ele era bom. Estávamos
7. Segundo Tavares (2006:48), a tabanca é uma “manifestação cultural que tem oseu inicio por ocasião das comemorações de Santa Cruz (3 de Maio), terminando a 29 dejunho (dia de S. Pedro), data em que é mandada celebrar uma missa. Constitui umaatividade (...) organizada sob forma de desfile dançante ao som do ritmo de tambores ecornetas suportando a música uma entoação própria”.8. A organização, criada a 27 de Março de 1981, dentro do PAICV, para “dar vozàs mulheres” cabo-verdianas e lutar pela sua emancipação.9. Bairro da Cidade da Praia localizado no perímetro urbano.
48
com medo, pois talvez não conseguíssemos concorrer comele. Mas no fim sempre conseguimos ganhar. (...) Fomoschamadas para ir à Ilha do Maio10 fazer show, não quisemosque as pessoas pagassem para nos ver, queríamos que fosselivre. Foi muito bom, bons momentos, aqueles. No tempode PAICV, o batuko era bastante valorizado mas com aentrada do MPD, o batuko ficou desvalorizado”.
Por conseguinte, Fátima aparece também como guardiã da
memória da comunidade que registra as práticas tradicionais do
fazer batuko e tem legitimidade no grupo ainda que exista uma tensão
entre as formas tradicionais de se fazer batuko que esta defende e as
formas modernas que as outras batukadeiras defendem, sendo que estas
tensões são em parte desencadeadas por fatores geracionais, que se
traduzem na forma de se conceber o fazer do batuko no grupo: quando
fazer, como fazer e onde fazer e porque fazer, ao mesmo tempo em
que, estas tensões traduzem também retratos temporais de um tempo
vivido (tempo passado) que produzem e são produzidas por um
imaginário social do grupo de referência das batukadeiras. Na verdade,
Fátima para além de ser a mais velha do grupo e por fazer parte do
antigo grupo está a todo instante trazendo por meio das suas práticas e
narrativas, formas do batuko com particularidades diferenciadas das
outras que não passaram pela mesma experiência do fazer batuko.
Em meados de Janeiro, em um dia de Sol, estava na casa da
Marta, um das batukadeiras, junto com Claudia, Lúcia, Fátima e Neta,
sentadas nos dois sofás que se encontravam dispostos na varanda
da casa. Nisso, Fátima se dirigiu para mim e me perguntou se eu
não queria que elas fizessem batuko pra mim, ao que aceitei. Face
10. Faz parte do grupo das ilhas que fica geograficamente no sul do arquipéla-go, o grupo de Sotavento.
49
à minha reação positiva, como não traziam tchabeta, começou a bater
palmas e disse para as outras me fazerem batuko. Lúcia seguiu o
exemplo da Fátima e começou também a bater palmas e a cantar
junto com esta, tal como Claudia, Neta e Marta que batiam as palmas
e cantavam em uníssono a seguinte música:
“Indira nu tem 3 cusas pam flabu, é di amor, di amigonós amizade, nu ta agradeceu bu amizadi e nu ta flauma nós també nu tem cheu considerakon para bo”11
Instantes depois, elas pararam de bater as palmas e de cantar, menos
Fátima que face à desistência delas as chamou de novo para continuar
fazendo batuko ao que Lúcia retorquiu que não, que iam ensaiar no
domingo e, iam cantar para mim, que estavam cansadas para fazer tchabeta
nesse momento, ao que Fátima insistiu para que batessem somente com
as palmas das mãos. Nenhuma aceitou, reclamaram com ela, reiterando
que no domingo, dia do ensaio, iam fazer batuko.
“A Fátima tem manias de coisas antigas, agora coisas
mudaram e o batuko é diferente”.
O retrato que Fátima traz do batuko vivenciado no grupo dos
anos 80 possui outra conotação daquele vivenciado pelas outras
batukadeiras do grupo atual, dos anos 2006. “No tempo de OMCV” e
quando era mais moça, todos os dias no final da tarde, ao anoitecer,
as batukadeiras, cerca de 13, armavam o terreru12 e faziam batuko até
altas horas. Trajetória diferente das batukadeiras com as quais fiz a
11. Tradução de Crioulo: “Indira temos três coisas para te falar, é de amor, deamigo, nossa amizade. Agradecemos tua amizade e nós também temos muitaconsideração para ti”.12. Termo émico atribuído ao cenário do batuko, o formato roda ou em arco,conforme o contexto e a audiência.
50
etnografia, já que estas só no domingo ensaiam o batuko,
argumentando que voltam cansadas do trabalho e depois têm que
ocupar com tarefas domésticas, trazendo junto uma idéia de que a
dinâmica era ensaio e não batuko como sociabilidade o qual tem eco
no imaginário da Fátima e outras batukadeiras da sua geração. Mas
Fátima refuta dizendo: “Não é que agora elas têm menos tempo, nós
também. No nosso tempo, era muita lida na casa, cuidar das crianças, ir à
fonte pegar água, caminhar muitos km para apanhar lenha para cozinhar,
era muito sacrifício também, muito trabalho, mas sempre arranjávamos um
tempo para fazer batuko”.
51
Referências
DE CERTAU, Michel. A invenção do quotidiano: Artes de fazer. Volume I.
9ª edição. Editora Vozes. Petrópolis. 2003.
HALBWACHS, Maurice, A memória coletiva, Vértice, São Paulo, 1990.
POLLACK, Michel, “Memória e Identidade Social”, In: Estudos Históricos,
Vol 5, n.° 10, Rio de Janeiro, 1992, pp.200-212.
RICOEUR, Paul, Tempo e Narrativa, Tomo I, Papirus Editora, São Paulo, 1994.
TAVARES, Manuel de Jesus, Aspectos Evolutivos da Música Cabo-Verdiana,
Centro Cultural Português / Instituto Camões, Praia, 2006.
52
53
“A gente se abre para o mundo”Tornando o estrangeiro familiar e
estranhando o familiar por meio depráticas cotidianas intercâmbios culturais
Denise Silva dos Santos
Introdução
A proposta deste paper é abordar a temática de intercâmbios
culturais escolares1 , segundo alguns autores apresentados na dis-
ciplina Individualismo, Sociabilidade e Memória.2 Serão utilizadas,
principalmente, as obras em que Simmel e Schütz trabalham o tema
do estrangeiro e a teoria dos papéis sociais de Goffman, buscando,
assim, um maior entendimento antropológico dessas experiências
de intercâmbio. Cabe ressaltar que este estudo enfoca, mais preci-
samente, reflexões realizadas a partir de breve etnografia de experi-
ências de intercâmbio cultural escolar realizados por uma organi-
zação específica3 de jovens de 15 a 18 anos.
1. O termo “intercâmbios culturais escolares” será utilizado por ser o termomais encontrado em materiais de divulgação de agências e de organizações queoferecem esses programas de intercâmbio. Além dessa forma, também é utilizadoo termo “intercâmbio intercultural”, “escolar”, “high school” ou “colegial”.2. Essa disciplina foi realizada na Pós-Graduação em Antropologia Social da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul, durante o 1º semestre de 2008, ministradapelas professoras Dra. Cornelia Eckert e Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha.3. Refiro-me ao AFS Intercultura Brasil, que é uma organização filiada aoAmerican Field Service.
54
A partir das narrativas dos “atores/participantes”: estrangeiros
que vivenciaram essa experiência no Rio Grande do Sul, participantes
brasileiros que já vivenciaram essa experiência em diversas partes do
mundo e famílias brasileiras que receberam estudantes intercambistas,
buscarei contextualizar algumas reflexões e indagações que foram le-
vantadas sobre esse tema. Para a concretização deste estudo, foram
realizadas observações participantes realizadas em orientações/treina-
mentos interculturais4 , análise de materiais de divulgação sobre o pro-
grama – impressos e virtuais, e entrevistas presenciais e via Internet
com ex-participantes brasileiros e estrangeiros.
Os participantes estrangeiros que vêm para o Brasil, durante
cerca de 11 meses, moram com famílias brasileiras, freqüentam es-
colas regulares de 2° grau juntamente com jovens da mesma idade
e se inserem na comunidade local. A proposta dos programas é a de
inserir esses jovens nessas comunidades, propondo que eles apren-
dam a dominar os códigos de linguagem e de conduta do país em
que se encontram por meio das interações realizadas no cotidiano.
Seria então por meio da sociabilidade cotidiana que esses jovens
buscariam compreender os significados e sentidos dos atores com
quem estão se relacionando, assim como aprenderiam ou não como
partilhar desses signos e sentidos para se sociabilizar e se sentir par-
te desse novo contexto.
O Intercambista e o Estrangeiro: Reflexões sobre o campo e algu-
mas questões teóricas a partir de Schütz, Simmel e Goffman
Como sugere Teixeira (2000), Simmel refere que o termo
4. Encontros promovidos pela instituição AFS Intercultura Brasil para os par-ticipantes da experiência – famílias que hospedam os estudantes intercambistase os próprios estudantes.
55
stranger remete não somente ao estrangeiro, desconhecido, mas tam-
bém a alguém que é estranho, esquisito, singular. Porém esse quando
utilizado nas traduções em português e em espanhol é concebido
como estrangeiro, atendo-se mais ao significado espacial relacionado
ao termo. O texto de Simmel foi publicado em 1908 e influenciou
muitos estudos posteriores no chamado campo “sociologia do es-
trangeiro”. A autora comenta:
O que caracteriza o estrangeiro simmeliando é que eleé alguém que vem de fora, se estabelece mas não setorna membro pleno do grupo, não aspirando ser assi-milado, esta é sua condição de pertencer, sua interaçãopositiva com o grupo: estar distante e próximo simulta-neamente (p. 23).
O ser/estar estrangeiro – no sentido de sentir-se parte, estar
próximo e ao mesmo tempo distante – é abordado por Simmel
(1983): “o estrangeiro é um elemento do próprio grupo, possui uma forma
mais específica de interação” (p.183). Ao se pensar nas experiências de
intercâmbio escolares, podemos pensar que o estudante de inter-
câmbio possui uma peculiaridade, afinal ele é um estrangeiro den-
tro do contexto brasileiro, porém recebe a “incumbência” de ser
como um brasileiro, fazer parte de uma família local, dominar códi-
gos comuns de uma comunidade da qual ele nunca pertenceu an-
tes. Durante o período em que fica no país hospedeiro5 , ele ambici-
ona deixar de ser reconhecido pelo grupo como estrangeiro, mas
preservando, ao mesmo tempo, a situação vantajosa de poder ser
5. Hospedeiro é um termo utilizado pelos participantes do programa parareferir-se ao país, às escolas e famílias que recebem os estudantes estrangeirosintercambistas.
56
apreciado na condição de estrangeiro.
A condição de “observar o observador não observado” (p.16) abor-
dada por Goffman (1975) pode aplicar-se à condição do
intercambista. Esse se encontra em vantagem, pois, inicialmente,
não domina os códigos de comunicação, mas, quando passa a
compreendê-los e a atribuir-lhes sentido, costuma manipulá-los
conforme lhe seja interessante. Dependendo da situação pode ma-
nifestar que entende mais ou menos o português, valendo-se de
sua condição de estrangeiro. Como sugere Goffman (1975): “(...)
sejam quantas forem as etapas que ocorrem no jogo da informação, o obser-
vador provavelmente levará vantagem sobre o ator e a assimetria inicial do
processo de comunicação com toda probabilidade será mantida” (p.18).
Goffman (1975) traz que a capacidade de “dar impressão” envol-
veria duas espécies diferentes de atividades significativas: a expressão
que ele irá transmitir – essa abrange os símbolos verbais, ou seus
substitutos, sendo entendida como a “comunicação no sentido tradicional e
estrito” (p.12) –; e a expressão que ele emitirá – essa inclui uma ampla
gama de ações, “que os outros podem considerar sintomáticas do ator, deduzindo-
se que a ação foi levada a efeito por outras razões diferentes da informação assim
transmitida” (p.12). Então, quando uma está na presença de outras, em
geral, há alguma razão que leve a pessoa a atuar visando transmitir às
outras a impressão que ela intenta transmitir.
A proposta do intercambista seria vivenciar uma experiência,
na qual ele negociaria sua “identidade nacional” e assumiria uma
identidade estranha a sua, a de “estrangeiro”, tendo como objetivo
tornar-se como um nativo. Essa situação está explícita na fala de
uma estudante alemã, falando num português praticamente sem
sotaque, após estar há quase 8 meses morando em Porto Alegre: “Todo
57
mundo acha que eu sou brasileira, digo que sou de Igrejinha6 e todos acreditam!”.
Ela falava com um sorriso no rosto, demonstrando em sua expressão
facial orgulho por sua capacidade de “tornar-se como um nativo”.
Schütz (2003) sugere que cada pessoa, nascida ou criada den-
tro de um grupo, aceita e adquire os padrões do modelo cultural
que lhes são “passados”, e essas orientações acabam lhe servindo
como um guia absolutamente válido para as situações que se apre-
sentam habitualmente no mundo social. Essas orientações/receitas
funcionariam em parte como um preceito geral para a ação e lhe
orientariam para conseguir o que deseja. Afinal, caso se deseje ob-
ter um determinado resultado, deve-se proceder como indica a re-
ceita prevista para esse fim. Por outro lado, a receita também serve
como um esquema de interpretação: quem procede como indica
uma receita específica, pressupõe o resultado correspondente. A
função do modelo cultural seria eliminar a árdua investigação, for-
necendo condutas já prontas a serem utilizadas. Essa “habitual for-
ma de pensar”, como poderíamos chamá-lo, corresponde à idéia de
Max Sheler de uma “concepção relativamente natural do mundo”.
Quando observamos um estrangeiro, verificamos que é uma pessoa
que se encontra em um contexto onde aquele modelo cultural ao
qual ele estava habituado não pode ser utilizado. No entanto, é na-
tural e lógico que o estrangeiro comece a interpretar seu novo am-
biente social segundo os termos da sua “habitual forma de pensar”.
Dentro do sistema de referência que ele absorveu do seu grupo na-
tal, consta como idéia já pronta o modelo de referência como válido
para o novo grupo – uma constatação que, necessariamente, vai,
6. Igrejinha é uma cidade no interior do Rio Grande do Sul localizada numaregião de colonização alemã.
58
rapidamente, se confirmar inadequada.
Durante o ano de intercâmbio, os jovens têm um freqüente e
intenso contato com outros estudantes de países diferentes, que
também estão participando da mesma experiência de intercâmbio.
Nesses encontros, eles partilham suas experiências em treinamen-
tos interculturais7 , atividades de orientação e de trocas de experi-
ências, organizadas pela instituição AFS. No estado do Rio Grande
do Sul, costumam haver cerca de 20 a 35 intercambistas por ano,
alojados em diferentes cidades, como: Rio Grande, Canela, Santa
Maria, Santa Rosa, Porto Alegre, entre outras. Os estudantes cos-
tumam proceder de países, como: Nova Zelândia, Austrália, Tailândia,
Indonésia, Japão, China, Alemanha, Bélgica, Itália, Suécia, Finlân-
dia, Estados Unidos, entre outros.
No caso dos estudantes, a proposta de intercâmbio cultural
tem como questão central o contato entre pessoas por intermédio
das experiências cotidianas. Para essa imersão cotidiana, o estudan-
te de intercâmbio é inserido numa família e na comunidade local
para incorporar as práticas cotidianas do meio do qual ele passa a
fazer parte. Essa situação acaba se constituindo num cenário fértil
para muitas dificuldades de comunicação. Colocar pessoas para con-
viverem juntas sem partilharem muitos signos e símbolos comuns
acaba fazendo com que nas interações surjam muitas experiências
frustradas de comunicação. As famílias recebem os estudantes, e
7. Hammer (1999) argumenta que os treinamentos interculturais se consti-tuem de atividades que prepararam as pessoas municiando-as de instrumen-tos e condições para trabalharem e viverem efetivamente envolvidas numacultura estrangeira. (Hammer, Michell R., Cross – Cultural Training: TheResearch Connetion, page 1-17, In: Intercultural Sourcebook: Cross Cultural TrainingMethods, vol.2, ed. Intercultural Press, 1999).
59
esses normalmente sequer possuem a capacidade de se comunicar
em um idioma comum. Nos primeiros dias, a comunicação nor-
malmente é realizada por meio da comunicação não-verbal. Segue
abaixo o trecho de um diálogo de uma atividade de sociodrama8 ,
realizada durante uma atividade de orientação com um grupo de
intercambistas que estava há cerca de 2 meses no Brasil.
Intercambista: Eu entendo que eu vim para cá paraser brasileiro, mas você também tem que me entender.É difícil para mim. Eu estou muito cansado, eu tenhoque pensar muito durante todo o dia, eu tenho que es-cutar português, falar português. Isso não quer dizerque eu não goste das coisas, mas... Só é difícil para mimtudo isso.Irmão Hospedeiro: Então você não tem que fazertudo....Intercambista: Eu gostaria, mas é que muitas coisas sãodiferentes e eu não sei direito o que eu devo fazer...9
8. O Sociodrama é um método de trabalhar com questões grupais por meio daproposta de Jacob Levy Moreno, que desenvolveu o Psicodrama. O Sociodramapertence ao conjunto de estratégias utilizadas no Psicodrama, sendo um re-curso técnico a partir do qual é possível trabalhar um tema comum ao grupo.9. A situação escolhida para ser dramatizada foi: “O estudante tinha um irmãohospedeiro mais ou menos da mesma idade, e os dois dormiam no mesmoquarto. O intercambista finlandês gostava de dormir mais cedo, estava acostu-mado assim desde seu país. O irmão brasileiro gostava de dormir mais tarde.Quando o irmão brasileiro chegava no quarto, ele normalmente ficava puxan-do conversa e fazia todo o tipo de barulho para o outro. O irmão finlandêsestava começando a ficar irritado e incomodado com a situação. Porém ele nãosabia como resolver o problema, pois o irmão brasileiro não se dava conta dasituação”. Eram cerca de 20 participantes estudantes intercambistas na ativi-dade, adolescentes entre 15 e 18 anos, ambos os sexos, de diversos países (comoBélgica, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Turquia e Finlândia).
60
Ao se deparar com essa nova realidade, o jovem, mais do que
reconhecer o “outro”, passa a “se reconhecer” com seus padrões
de interação no cotidiano – “no Japão, era assim o jeito que nos
cumprimentávamos; no Brasil, é diferente”. Schütz (2003) traz que
o estrangeiro após testar a utilização do seu modelo cultural perce-
be que este “já não funciona como um sistema de receitas testadas à nossa
disposição, isso mostra que a sua aplicabilidade se limita, na verdade, a uma
situação histórica específica” (p.19)10 . Uma jovem tailandesa de 17 anos,
antes de retornar para seu país, expressou em um depoimento suas
inquietações: a sua saudade do seu cotidiano no Brasil e o receio de
como seria o seu retorno ao contexto cultural tailandês. Atualmen-
te faz cerca de um ano e meio que ela retornou, e na sua narrativa
ela demonstra seus sentimentos:
Isso porque as pessoas no Brazil vê que são coisas nor-mais, mas as pessoas aqui não. E também, às vezes que-ro beijar e dar abraço when I meet people, mas as pessoasaqui só levantar mão e sorrir gently.e achei que o jeitoque as pessoas aqui GREET eh muito frio.o que eu maissentir saudade do Brasil eh comida! No primeiro eu nemqueria comer o feijão e agora to morrendo de vontadede comer! (trecho do depoimento dado via-email da ex-participante tailandesa que realizou intercâmbio na ci-dade de Canela no decorrer no ano de 2006. Atualmen-te ela se encontra na Tailândia e tem 17 anos).
Como aborda Schütz (2003), para o estrangeiro, a cultura do
novo grupo tem a sua história particular, e essa história é mesmo
acessível. “Porém, esta cultura não consegue formar uma parte integrante
10. Tradução livre realizada pela autora do paper do texto original em francêsdo Schütz (2003).
61
da sua biografia, como tem sido feito com a história do seu grupo origem. Só
o estilo de vida de seus pais e avós se torna para um homem a base do seu
próprio modo de vida.” Será que se poderia pensar o mesmo no caso
desses estudantes adolescentes? Será que não haveria a possibilida-
de de eles adquirirem/incorporarem os sentidos dessa nova cultura
como parte de sua biografia e de seu modo de vida?
Considera-se que a rotina pode ser entendida como algo que
orienta o sujeito e, ao mesmo tempo, exige um desempenho, um
papel a ser desempenhado no cotidiano; assim como os papéis soci-
ais que o sujeito desempenha e as formas de comunicação que ele
aprende como sendo adequadas e efetivas para transmitir a sua
mensagem aos demais do seu grupo. Esses padrões, essas certezas,
passam a ser questionados e ressignificados pelos estudantes
intercambistas. Afinal seria por meio das interações cotidianas en-
tre os estudantes estrangeiros e a comunidade local que se cons-
truiriam, ressignificariam e se aprenderiam novas formas de
interações distintas das aprendidas no seu contexto nacional, regi-
onal e local. Durante a sessão de sociodrama realizada no treina-
mento, a participante que desempenha o papel do intercambista
comenta ao referir-se como está se sentindo:
Sentimento Intercambista: Agora eu estou muitoconfusa, pois ele disse coisas certas, eu estou aqui paraser brasileiro. Para aprender as coisas dos brasileiros.Eu não sei o que fazer agora (a participante faz estecomentário após o irmão brasileiro ter dito que ela pre-cisa agir como um brasileiro).
Questões como a importância do jogo dos papéis sociais, as
62
interações sociais, o jogo cênico que se dá socialmente e a presença
ou não de intencionalidade nas ações dos atores fazem com que
reflitamos se podemos pensar se haveria ou não domínio dessa
intencionalidade quando não há muitos sentidos e significados par-
tilhados pelos atores envolvidos? Quando se pensa na experiência
de um estrangeiro buscando ser como um nativo, ou seja, um
intercambista estrangeiro buscando ser como um jovem brasileiro,
buscando incorporar sentidos, entendimentos e condutas de jovens
da sua mesma idade, percebe-se pela etnografia que durante o in-
tercâmbio, muitas vezes, a identidade de intercambista torna-se mais
forte e reconhecida pelos membros da comunidade local, que rece-
be esse estudante, do que a identidade do país de origem desse.
Afinal o que pressupõe essa identidade de intercambista? Porque
essa identidade, status, acaba muitas vezes se sobrepondo à identi-
dade nacional desses jovens? Essa é uma questão que permeia qua-
se toda a dramatização do sociodrama realizado durante o treina-
mento. Percebe-se que os estudantes participantes se perguntavam
em diversos momentos da atividade: qual seria o papel que deveri-
am desempenhar?
Após a realização da dramatização e na etapa do
compartilhamento11 da experiência, a participante colocou:
11. No Sociodrama, assim como no Psicodrama, haveria três etapas da sessãocomo aborda Gonçales (1988). Essas seriam: 1º. Aquecimento: 2º. Dramatização:e 3º. Compartilhamento. Nessa última etapa, cada participante do grupo ex-pressa inicialmente o que lhe tocou ou emocionou na dramatização. Posterior-mente, são feitos os comentários sobre o que ocorreu. (Gonçalves, C., PráticaPsicodrámatica, cap. 10, (p.97-102) In: Gonçalves, C., S., Almeida, W., C., Wolfe,J., R., Lições de Psicodrama, São Paulo: Ágora, 1988).
63
Intercambista: Agora eu me sinto melhor, porque eu sei oque ele pensa. Eu sei que ele quer que eu seja como umbrasileiro, essas coisas... Eu acho que no futuro em muitassituações serão melhores porque eu sei que muitas coisasdo que ele faz não significa que ele seja rude, mas que o fatodele não perguntar não quer dizer que ele seja mal educa-do. Tudo pode ser entendido de um jeito diferente.(...)Irmão Brasileiro: Talvez na sua cultura perguntar ascoisas antes de fazer algo seja educação, talvez na suacultura... Mas na nossa cultura pode ser diferente, evocê está aqui e não poderá mudar nossa cultura. Temcoisas que você pode entender e outras que você nãopode entender na cultura, tem que tornar-se parte dela.Mesmo que você possa não entender-la, e até mesmosem entender-la.
Rotina, cotidiano, comunicação e globalização: algumas con-
tribuições de outros autores sobre a temática do intercâmbio e do
estrangeiro...
Segundo Giddens (1984):
Se o sujeito só pode ser apreendido através da constitui-ção reflexiva de atividades diárias em práticas sociais, nãopodemos entender a mecânica da personalidade separadadas rotinas da vida do dia-a-dia, através das quais o corpopassa e que o agente produz e reproduz (...) (p.48).
De acordo com o autor citado acima, a rotina faria parte do
agente e da continuidade de sua personalidade. Isso ocorre devido
ao seu percurso, nos caminhos das atividades cotidianas, e também
das instituições da sociedade. Faz-se necessário um exame da
64
rotinização, pois esse provavelmente “deve o afirmar, dota-nos de uma
chave mestra para explicar as formas características de relação do sistema de
segurança básica com os processos reflexicamente constituídos inerentes ao
caráter episódico dos encontros” (1984: p.48).
Os estudantes estrangeiros em meio à participação dos cená-
rios de famílias locais encontrariam-se desprovidos desses
referenciais da rotina cotidiana? Como poderia ser o processo do
agente em busca de se sentir parte de uma rotina de uma comuni-
dade, de uma rede de relações sociais, às quais ele ainda não se
identifica e deve, compreender, e atribuir significado? Essas famíli-
as também estão ressignificando suas práticas a partir da inserção
desse novo membro familiar, o qual pretende assumir o papel social
de filho, de irmão dentro dessa família, além do papel de jovem
estudante intercambista estrangeiro.
Berger, P., Luckmann (1983) abordam que “de fato, não posso
existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação
com os outros” (p.40). Inicialmente, essa interação com a comunidade
local se dá de forma muito precária e limitada, com muitas situações
de dificuldade de comunicação, ainda que haja boas surpresas de co-
municações consideradas com sucesso. Com a chegada da Internet,
há também a possibilidade de comunicação virtual em tempo real,
quase que instantânea com a comunidade de origem; algo que anti-
gamente não havia nos intercâmbios. Há questões presentes na
globalização que estão fazendo parte das experiências dos participan-
tes. Uma jovem de 11 anos que iria receber uma estudante de Hong
Kong me relata que já estava em contato quase diário, via Messenger e
Skype, com a irmã estrangeira que estava para chegar cerca de dois
meses antes de essa chegar. As duas já estavam estabelecendo uma
65
comunicação e um contato virtual antes da experiência propriamen-
te dita, mas afinal quando se inicia a experiência de intercâmbio?
Ortiz (1999), ao se referir à globalização em termos de
modernidade-mundo, traz que não faria sentido falarmos em “cul-
tura global” e muito menos em “identidade global”. Porém o autor
argumenta que o processo de mundialização da cultura produz
novos referenciais identitários, como a juventude. Ele diz que “nas
sociedades contemporâneas, a conduta de um estrato particular de jovens aca-
ba só sendo entendida a partir da mundialização, a partir de referências
desterritorizadas como, t-shirt, tênis, jeans, ídolos de rock (...)” (p.89).
A partir das observações, pode-se perceber que, em situações
em que se reuniam esses jovens de diferentes partes do mundo, com
esses símbolos e signos – “decantados pelo processo de globalização” (p.89)
– em situações de maior contato entre eles as identidades culturais
associadas à nacionalidade se sobressaiam nos seus discursos. Como
poderíamos entender que essa identidade nacional seja mais acessada
e reforçada, nos contextos de maior contato entre jovens em vez dos
signos e símbolos comuns à juventude globalizada?
Oliven (2007) aborda que, até muito pouco tempo, as identi-
dades sociais acabavam por ser associadas a grupos: “que ocupavam
um espaço – país, uma cidade ou um bairro – e nele projetavam valores,
memórias e tradições” (p.235). Nesse contexto, percebia-se uma grande
preocupação em se demarcar fronteiras, delimitar quem era de den-
tro, quem fazia parte, e separar o que era de fora, o estranho ao gru-
po. Poder-se-ia tradicionalmente definir uma cultura a partir dos li-
mites, a partir do que caberia ou não em determinada cultura, o que
poderia ser ou não considerado parte de determinada cultura. Para
isso, fazia-se necessária a delimitação do território, estabelecer qual
66
era o idioma, os símbolos e os costumes utilizados por esse grupo.
Porém as pessoas não se fixam diretamente a territórios; afi-
nal, as pessoas viajam e levam consigo suas idéias, valores, roupas,
idiomas, costumes, e, quando chegam em outros territórios, elas se
adaptam. Os viajantes e os imigrantes acabam aprendendo a língua
desse novo país e aceitando parte dos hábitos desse país, assim como
aprendendo uma nova forma de estabelecer relações nesse cotidia-
no (Oliven, 2007). Esses imigrantes e viajantes, enfim, estrangei-
ros, possuem características próprias na atualidade globalizada.
Sahlins (2001) sugere que a marca da diferença cultural pode-
ria ser entendida como uma resposta à globalização e ao mundo ca-
pitalista. Atualmente o mundo está cada vez mais interligado econô-
mica e politicamente, as linhas das identidades se apagam ou são
traçadas de acordo com novos deslocamentos e interesses. Hannerz
(1994) aponta a distinção entre a identidade cosmopolita e o local.
Ele traz que a perspectiva do cosmopolita “precisa envolver relaciona-
mentos com uma pluralidade de culturas consideradas entidades distintas”
(p.253). Sugere, ainda, que o cosmopolitismo seria, acima de tudo,
uma orientação, uma abertura para experiências culturais divergen-
tes, caracterizando-se por uma busca de contrastes em oposição à
uniformidade. Esses jovens e essas famílias participantes, assim como
as organizações e agências promotoras desses intercâmbios, costu-
mam associar essa experiência a uma possibilidade de se sentir parte
do mundo, de se abrir para o mundo, de aprender com o diferente;
assim como ter aprendizagem e educação intercultural associada a
essa idéia de cidadão mais cosmopolita, “cidadão do mundo”, este
último sendo o termo utilizado em materiais de propaganda.
No site do AFS Brasil, há o seguinte slogan: “estude em outro
67
país, amplie seus horizontes e descubra o mundo que cabe dentro de você”.
Mais uma vez é retomada a idéia da construção de uma “nova iden-
tidade”, o ser “cidadão do mundo”, o ser um cidadão mais cosmo-
polita, o cidadão que irá carregar o mundo dentro dele, que irá
ampliar a sua visão de mundo, que possui habilidades para lidar
com as diferenças, habilidades que seriam adquiridas por meio da
“aprendizagem intercultural”12 , na experiência de intercâmbio. Um
cidadão capaz de se desterritorizar e territorizar ao mesmo tempo.
Tornando o familiar estrangeiro e o estrangeiro familiar
O sentimento de se sentir parte da família hospedeira é mais
freqüentemente relatado por uma ex-participante de mais de 20 anos,
ao se referir à experiência: “(...) quando fui embora minha mãe america-
na me deu a chave da sua casa, disse que eu poderia levar a chave, afinal eu era
a sua filha, e poderia entrar na casa quando eu quisesse” (ex-participante
uruguaia que viajou para os Estados Unidos. Atualmente é professo-
ra, e suas três filhas também realizaram intercâmbio, assim como
sua família já recebeu um intercambista em sua casa).
Uma mãe hospedeira de Antonio Prado, que se encontrava
no aeroporto, esperando a chegada da estudante de um país orien-
tal, a qual ficaria na sua casa, comenta que se motivou muito para
receber uma estudante devido ao contato que teve com uma estu-
dante da Tailândia que estava na sua cidade. Tanto ela como a filha
12. Segundo Hansel (1993), a Aprendizagem Intercultural consiste na disponibi-lidade de absorver a experiência de uma nova cultura e responder apropriadamen-te a essa. Seu caminho: avaliar com cuidado, adaptar-se às necessidades e adotarnovas maneiras de pensar e de se comportar. Tal atividade envolve a propensãoindividual a estar disposto, apreciar e valorizar as coisas e as pessoas diferentes semdeixar de reafirmar sua própria identidade individual e cultural (Hansel, B., Theexchange student survival kit, Yarmouth: Intercultural Press, 1993).
68
de 11 anos demonstravam estar muito motivadas esperando a estu-
dante; e ela expõe seu grande desejo de estabelecer contato com
uma pessoa do outro lado do mundo, que irá fazer parte da sua
família, dizendo: “a gente se abre para o mundo”.
Compartilhar a rotina do cotidiano, durante um certo período
de tempo, poderia ser uma possibilidade de se estabelecer comunica-
ções e de buscar partilhar sentidos e significados. Caso esses não fi-
zessem parte daquele contexto específico, não iriam fazer sentido
nenhum para os atores envolvidos como as famílias hospedeiras e o
intercambista. Em relação a isso, trago do trecho de um depoimento
sobre a experiência de intercâmbio de uma ex-participante13 :
I learnt a lot in that year, cultures, adaptation, family, friendsand many things I see the world in the different way. Depoisque eu voltei pro meu pais. Me sinti que sou meia brasi-leira meia tailandesa que as vezes eu penso como os bra-sileiros ia pensar mas também entendo os pensos (pen-samentos) dos tailandeses, as vezes me deixou confusacom meu sentimentos ou pensados (trecho de depoimen-to dado via-email pela ex-participante tailandesa que re-alizou intercâmbio na cidade de Canela. Atualmente, elase encontra na Tailândia e tem 17 anos).
Schütz (2003) traz que, do ponto de vista do novo grupo, o
estrangeiro é sempre um homem sem história, e Simmel (1983)
postula que o estrangeiro pode ser entendido como um membro
orgânico do grupo, por mais que não esteja organicamente anexa-
do ao grupo. Ele partilha na sua vida regular as condições comuns
deste elemento. Apenas não sabemos como designar a unidade pe-
13. Trecho literal extraído do depoimento. Como forma de preservar a narrati-va da informante, não se traduziu e apenas parte da ortografia foi corrigida.
69
culiar de sua posição, além de dizer que se compõe de certas medidas
de proximidade e distância. Embora certas quantidades delas carac-
terizem todas as relações, uma proporção especial e uma tensão recí-
proca produzem a relação formal particular com o estrangeiro (p.188).
Fazendo alusão à idéia de tornar desconhecido o que é fami-
liar, naturalizado e considerado habitual, podemos relacionar isso à
preocupação expressa por um pai brasileiro à espera da estudante
intercambista da China, no aeroporto. Ele refere que a sua casa,
agora, estaria organizada de uma forma diferente; afinal sua família
seria diferente, pois haveria uma nova filha. A casa estava prepara-
da para recebê-la: o quarto havia sido reorganizado, ele havia colo-
cado mais um beliche no quarto das meninas (ele tem três filhas), e
elas haviam se desfeito de coisas para poder liberar espaço no guar-
da-roupa. Ele também expressou preocupação – ao se dar conta
enquanto falava comigo – em como faria para sair de casa aos do-
mingos, afinal agora seriam seis integrantes na família, e ele só ti-
nha um carro. As preocupações desse pai expressavam seu desejo
de incorporar na sua rotina essa estudante estrangeira, tornando-a
parte de sua família. Ele demonstrava ansiedade pelo seu tom de
voz, sua expressão facial, enquanto esperava a jovem no saguão do
aeroporto de Porto Alegre. Apesar de dizer que essa idéia havia par-
tido de sua filha adolescente de 16 anos, ele traz que todos os de-
mais membros também se motivaram a participar da experiência,
sendo que uns mais e outros menos. Esse pai buscaria, dessa ma-
neira, encontrar formas de tornar esse estrangeiro familiar.
Schütz (2003) traz que o estranhamento e a familiaridade
não se limitam ao campo social, mas representam categorias gerais
70
da nossa interpretação do mundo. Quando encontramos alguma coisa
desconhecida, que sai do curso ordinário do nosso saber, começaría-
mos um processo de investigação, procuraríamos antes de tudo defi-
nir o novo fato com base nos nossos conhecimentos prévios. Isso
porque buscaríamos captar o sentido; depois, iríamos transformar
passo a passo o nosso esquema geral de interpretação do mundo, de
tal maneira que esse “algo” estranho e seu significado passassem a
ser compatíveis com todos os outros fatos e significados da nossa
própria experiência e a constituir com eles um sistema coerente.
Se conseguirmos transformar um conhecimento estranho em
familiar/conhecido, o que antes era por nós considerado algo estra-
nho, até mesmo um “problema”, transformar-se-ia em algo que pas-
saria a fazer parte do nosso conhecimento seguro; dessa forma, con-
seguiríamos aumentar e ajustar a nossa reserva de experiências. O
que nós nomeamos normalmente como processo de ajustamento
social nada mais é do que um tipo especial desse processo, e por meio
desse processo que deveria se submeter o estrangeiro ao novo.
Conseguindo realizar esse processo de ajustamento social, o
estrangeiro conseguiria tornar o que era estranho inicialmente em
algo familiar e natural. Dessa forma, podemos pensar também que
as famílias que hospedam estudantes intercambistas também pas-
sariam por esse processo ao compartilharem suas rotinas e seus
cotidianos com esses jovens, podendo também exercitar o ato de
tornar o estrangeiro familiar e, até mesmo, estranhar muitas ques-
tões que pareciam familiares e naturais.
71
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/www.afs.org.br/>. Acesso em julho de 2008.
BERGER, P., LUCKMANN, T. A construção Social da realidade: tratado de
Sociologia do Conhecimento, ed. Vozes, Petrópolis, 1983. Cap. I Os
Fundamentos do Conhecimento na Vida cotidiana (p.35- 68).
GIDDENS, A. A constituição da sociedade. ed. Martins fontes, 1984.
Cap. 2. Consciência, self e encontros sociais.
GOFFMAN, Erving. Introdução, capítulo 1, In: Representações do eu
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HANNERZ, Ulf. Cosmopolitas e locais na cultura global. In:
FEATHERSTONE, Mike. Cultura global. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 251-266.
OLIVEN, R. , G. Cultura e Identidade. In: NUSSBAUMER, G., M.
(org.), Teorias e Políticas da Cultura: visões multidisciplinares. Ed.
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ORTIZ, Renato. Modernidade-mundo e identidades. In: Um outro território.
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SAHLINS, M. “Dos o tres cosas que sé acerca del concepto de cultura”. In: Revista
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SIMMEL, Georg. O estrangeiro. In: SIMMEL, Georg. Georg Simmel:
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SCHÜTZ, A. L’Étranger: un essai de psychologie sociale. Paris: editions
Allia, 2003.
72
73
Memória e FamíliaAs experiências intrageracionais na construção dos
projetos de vida de universitários negros
Fabiela Bigossi
A carreira universitária nas sociedades complexas evidencia uma
ascensão social e condições mais propícias para inserção no mercado
de trabalho e configura-se enquanto um campo de possibilidade de
aquisição de capital econômico, social e cultural. No caso de estu-
dantes negros, esta possibilidade é mais remota, mas a formação uni-
versitária, é claro, uma possibilidade concreta de ascensão para esses
jovens, conforme seus próprios relatos evidenciam.
A sociedade brasileira vive um momento de intensas discus-
sões sobre o acesso da população negra, pretos e pardos conforme a
classificação do IBGE, ao ensino superior. Conforme a Síntese de
Indicadores Sociais divulgada pelo IBGE em setembro de 2008, re-
ferente a pesquisa realizada em 2007, enquanto o percentual de
brancos entre os estudantes de 18 a 24 anos de idade no nível supe-
rior era de 57,9%, o de pretos e pardos alcançava cerca de 25%,
evidenciando a enorme diferença de acesso e permanência dos gru-
pos raciais neste nível de estudo (IBGE, 2008: p.213)
A especificidade da abordagem, através dos estudantes negros
universitários e seus projetos de vida, é fomentada também devido a
exclusão dos negros no mercado de trabalho, onde ocupam geralmente
74
os cargos de baixa remuneração, como se percebe através das emprega-
das domésticas, em que 90% destas são negras e cerca de 23% são
submetidas a jornadas de trabalho superiores a 48 horas semanais1. No
espaço acadêmico, segundo dados apresentados por José Jorge de
Carvalho, a UNB é a universidade que mais tem professores negros no
Brasil, sendo que tem um quadro de 1500 professores, dentre os quais
apenas 15 são negros. Dessa forma, cabe refletirmos também sobre o
processo de exclusão e desigualdade que muitas vezes antecedeu o pro-
jeto de vida desse estudante, ou seja, como as questões familiares estão
imbricadas na construção de um projeto de ascensão social através da
universidade e em que medida esta é percebida como possibilidade da
diminuição de disparidades entre os grupos.
Neste ínterim investiga-se o discurso em torno das experiênci-
as de ingresso e de permanência no ensino superior sem negligenci-
ar o contexto histórico das relações raciais no Brasil, as políticas afir-
mativas contemporâneas, o processo de construção da imagem do
negro em face de um mercado de trabalho restrito e determinações
sociais de discriminação e desigualdade.
Através da construção da trajetória dos estudantes, percebem-se
os aspectos subjetivos da vivência de cada um dentro de um sistema de
valores e de representações que evidenciam a constituição de um pro-
jeto de vida que envolva a universidade como meio de ascensão.
A universidade enquanto meio de ascender socialmente, im-
plica num conjunto de valores que dizem respeito ao simbólico -
capital simbólico, interesse simbólico, lucro simbólico -
1. Dados disponíveis no site http://www.ibge.org.br/ referentes ao Estudo Es-pecial sobre Cor ou Raça, divulgado em novembro de 2006.
75
Capital simbólico é qualquer tipo de capital (econômico,cultural, escolar ou social) percebido de acordo com ascategorias de percepção, os princípios de visão e de divi-são, os sistemas de classificação, os esquemasclassificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em par-te, produto da incorporação das estruturas objetivas docampo considerado, isto é, da estrutura de distribuição docapital no campo considerado. “O capital simbólico é umcapital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimentoe o reconhecimento. (Bourdieu, 1996: p.149-150)
O projeto de vida é delineado freqüentemente no seio fami-
liar, estruturado em uma perspectiva social mais ampla, onde o es-
tudante também possui as próprias percepções quanto ao seu papel
no desenvolvimento deste projeto de estudos, constituindo-se, den-
tro das famílias e na individualidade dos estudantes, como um ins-
trumento básico para negociar a realidade com os demais atores
envolvidos nesse projeto. “A noção de que os indivíduos escolhem
ou podem escolher é a base, o ponto de partida para se pensar em
projeto” (Velho, 1981: p.24). O projeto existe como meio de
comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, ob-
jetivos, sentimentos, aspirações para o mundo (Velho, 2003) e rela-
cionado com a possibilidade de ser um meio para a aquisição de
capital econômico e cultural, uma forma de distinção dos demais
atores sociais (Bourdieu, 1989), ligado à idéia de indivíduo-sujeito,
onde se tem definido qual o papel de cada ator.
Conforme Bourdieu, o ingresso no meio acadêmico é parte
de uma estratégia familiar:
76
Elas [as famílias] investem tanto mais na educação es-colar quanto mais importante for seu capital cultural equanto maior for o peso relativo de seu capital culturalem relação a seu capital econômico e, também, quantomenos eficazes forem as outras estratégias de reprodu-ção (particularmente, as estratégias de herança que vi-sam à transmissão direta do capital econômico) ou re-lativamente menos rentáveis. (Bourdieu, 1996: p.36)
O valor simbólico do diploma universitário institui uma dife-
rença social, confere um status diferenciado ao detentor do título e
este se distingue dentro da família. Nesse sentido, os agentes sociais,
universitários e a família envolvida no projeto, são, de fato, agentes que
atuam dotados de um senso prático, de um sistema adquirido de prefe-
rências, de princípios de visão e de divisão, de estruturas cognitivas
duradouras – que são essencialmente produto da incorporação de es-
truturas objetivas – e de esquemas de ação que orientam a percepção
da situação e a resposta adequada (Bourdieu, 1996).
A trajetória que levará o indivíduo a uma formação universi-
tária é percebida como um investimento que as famílias fazem e
que a partir dessa condição o estudante tem a responsabilidade de
levar adiante o projeto familiar e afirmar-se na sociedade (Foracchi,
1972). A característica do projeto é a sua dinâmica e permanente
possibilidade de reelaboração reorganizando a memória do indiví-
duo envolvido, mudando no decorrer de sua elaboração e adequado
pelos agentes conforme um “campo de possibilidades” que se
apresenta no decorrer da trajetória desses estudantes.
Tendo como marco teórico os estudos de Maurice Halbwachs,
Alfred Schutz e Paul Ricoeur busca-se refletir sobre o papel das
relações entre as gerações, especialmente na família, na articulação
77
dos projetos de vida. A importância da família na elaboração do pro-
jeto é percebida nas experiências diversificadas que ela proporciona
conforme seu ethos e visão de mundo. A memória familiar é desta-
cada por fornecer indicadores básicos do passado, proporcionando
assim maior consistência ao projeto.
A partir desses estudos vê-se a possibilidade de abordar em
conjunto a experiência, o acionamento de identidades e a constru-
ção dos projetos realizada conforme um campo social. O ator, dessa
forma, é percebido enquanto sujeito reflexivo, que se conhece e se
desloca na experiência. Assim, pode-se pensar na construção dos
projetos, abordando as relações, as experiências intrageracionais
especialmente na família. Cabe ainda destacar, conforme a contri-
buição de Schutz, a importância em abordar o desdobramento dos
projetos em social, individual e familiar e a tensão do sujeito na
escolha/convivência de projetos.
A família para o negro é uma instância de afirmação de seu
pertencimento ao universo das regras, constituindo-se num aval de
dignidade, e no campo das práticas ela é a rede prioritária na qual a
solidariedade étnica e de classe viabiliza os projetos de ascensão social
(Barcellos, 1996).
O projeto de vida aparece dentro das famílias e na individuali-
dade dos estudantes como instrumento básico para negociar a reali-
dade com os demais atores envolvidos nesse projeto, que “existe como
meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interes-
ses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo” (Velho, 2003).
Relativo a especificidades dos projetos de vida em grupos ne-
gros, pode-se refletir a partir do estudo de Fernando Henrique Car-
doso intitulado “Capitalismo e escravidão no Brasil meridional”,
78
sobre a ascensão social de negros em Porto Alegre:
...o ideal de subir na vida, isto é, de obter uma ocupaçãocapaz de produzir melhores rendas, (...), ganha uma novadimensão e se apóia numa motivação mais complexa nogrupo negro. A par do êxito em termos de maior consi-deração social, respeitabilidade, admiração social, garan-tia econômica e todos os demais componentes normaisda obtenção de um status mais alto, a ascensão social donegro significa, ao mesmo tempo, aos seus olhos, a per-da da condição de ser alienado imposta pela avaliaçãosocial desfavorável da cor (Cardoso, 1962: p.339).
A trajetória de ascensão social do negro através da universi-
dade, dentro de um estudo com abordagem permeado por questões
étnicas, permite mostrar a organização e o reconhecimento da si-
tuação pelo próprio grupo em estudo, que se encontra significativa-
mente a margem do acesso ao ensino superior e vêm paulatinamente
construindo alternativas para sua inserção nesse meio e através de de-
mandas significativas na busca da igualdade social.
O que se ganhou com os estudos de etnicidade foi anoção clara de que a identidade é construída de formasituacional e contrastiva, ou seja, que ela constitui res-posta política a uma conjuntura, resposta articulada comoutras identidades em jogo, com as quais forma um sis-tema. É uma estratégia de diferenças (Carneiro daCunha, 1985: p.206).
Além da discussão sobre o contexto espacial que engloba a
identidade e/ou raça, fundidas nesta discussão, reitera-se também o
cuidado necessário para não transformarmos em intrínsecas a um
grupo as propriedades que lhe cabem em um dado momento, ou
79
seja, ter em mente que a identidade é construída situacionalmente
e não enquanto essência do ator.
A etnicidade como forma de interação social, conforme Fredrik
Barth, é um processo contínuo de dicotomização entre membros e
outsiders, requerendo ser expressa e validada na interação social. Não
são grupos concretos, mas como tipos de organização baseados na
consignação e na auto-atribuição dos indivíduos a categorias étnicas,
permitindo que se funde um empreendimento comparativo, não dos
tipos de agrupamentos étnicos, mas dos tipos de organização social
das diferenças culturais. Prioridade que é conveniente atribuir à di-
mensão subjetiva na definição de grupos étnicos. (Barth, 1999).
Com o objetivo de superar visões essencialistas e anti-
essencialistas, também é possível valer-se das contribuições de Paul
Gilroy em seu livro “Atlântico Negro”, onde em clara polêmica com
autores norte-americanos afro-centristas, demonstra que não há uma
cultura negra pura, originária. Concomitantemente, a construção
identitária dos segmentos negros de funda na especificidade de sua
experiência histórica: as culturas e identidades negras são
indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua heran-
ça racializada (Gilroy, 2005), suas memórias estão enraizadas nesta
história peculiar, sem constituir algo primordial e cristalizado.
O ator constitui-se por diversas identidades e é preciso ter em
mente que estas são acionadas conforme sua necessidade no cam-
po social, assim como se mudam as relações conforme o uso de
determinada identidade.
Conforme Berger e Luckmann, a “Identidade é um fenôme-
no que emerge da dialética entre indivíduo e sociedade.” (Berger &
Luckmann, 1985: p.195). Sendo formada por processos sociais, “uma
80
vez cristalizada é mantida, modificada ou, mesmo, remodelada pelas
relações sociais”. Essa determinação da identidade por meio das re-
lações sociais sugere ainda, segundo os autores, que se faça a
distinção entre tipos de identidade social para que assim seja possível
operacionalizar o conceito de identidade durante o processo de in-
vestigação empírica. Dessa forma, o que se busca saber é de que
maneira os estudantes lançam mão da identidade étnica na cons-
trução dos projetos de vida e no discurso de ingresso e permanên-
cia no ensino superior, como é estabelecida a relação identidade e
projeto de vida, evidenciando que o uso da identidade étnico/racial
é situacional, assim como de qualquer outra identidade social.
Neste conjunto, é abordada a experiência, o acionamento de
identidades e a construção dos projetos. Maurice Halbwachs é um
importante condutor nessa abordagem que percebe uma identida-
de individual enquanto construção coletiva. Os quadros sociais da
memória, a experiência na família, na escola, no trabalho, espaços
onde a memória é revivida, recriada, reconstruída permanentemente
são importantes, pois permitem associar a construção de projetos
inseridos numa experiência coletiva. Igualmente, são pensados a
partir da reciprocidade da vida cotidiana, da transmissão de valores
entre os indivíduos, especialmente pensando na presença das gera-
ções anteriores na construção dos projetos destes estudantes, quando
fazem menção às discriminações sofridas pelos avós e pais e o quanto
dentro da família faz-se referência ao passado. Mostrando assim que
não há uma separação entre presente, passado e futuro na memória
coletiva, que é constantemente trabalhada, possuindo movimento na
evocação e associação das lembranças, como é feita a reconstituição
desse tempo vivido. Problematiza-se nesse plano da memória a família
81
e os grupos sociais e étnicos.
O desafio dos estudos sobre educação e marginalização de
negros tem o desafio de aprofundar e propiciar a análise desven-
dando o significado da educação para esse grupo; dentro de um
contexto de representação da universidade como espaço de reco-
nhecimento e ascensão social, uma análise privilegiada em relação
às atitudes e aos modos empregados para a afirmação desse grupo
étnico, tratado aqui como minoria, que segundo Wirth, pode ser
caracterizada quando um grupo de pessoas, devido a características
físicas ou culturais, são tratadas de maneira desigual e sentem-se
discriminadas por um grupo dominante com status e privilégios
superiores aos seus (Wirth, 1945).
Conforme o relato de Ana2, a educação de boa qualidade e o
investimento que os padrinhos fizeram em livros sempre era relata-
da pelo seu pai enquanto responsáveis por levá-lo a alcançar o gran-
de espaço e reconhecimento que tinha profissionalmente.
Ana narra que o pai sempre fez questão que ela e a irmã estu-
dassem em escolas de boa qualidade, pois afirmava que só chegara
até o lugar em que estava, com um importante cargo no governo
estadual do Rio Grande do Sul por causa do investimento em educa-
ção que os padrinhos haviam feito.
O investimento em educação não se restringe, conforme a
interlocutora, a ascensão econômica que proporcionou, mas sim, con-
forme o relato do pai, ele acreditava que através da educação se poderia
ultrapassar as questões étnicas. “Meu pai tem histórias horríveis de discrimi-
nação, de vezes que ele foi barrado em clubes, isso nos anos 60 e 70 e o pior é que
ainda tem dessas coisas nas cidades do interior. Mesmo assim, considerava que
2. Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios.
82
seu estilo de vida era diferente dos demais negros, pois seu círculo de amizades era
composto pelos seus colegas de escola, brancos e de classe média e média alta.
Uma situação diferente da maioria dos negros ainda hoje. A boa educação pro-
porcionava assim uma possibilidade de ultrapassar os limites que a questão étni-
ca impunha”. Ela lembra ainda das narrativas do pai sobre as discrimi-
nações que sofria mesmo dentro da universidade, mas que ele sempre
afirmava que estava lá para estudar e que a cor não impediria ele de
cumprir com seu objetivo.
Assim como o pai de Ana contava para sua filha sobre o privilé-
gio que tivera quando comparava-se aos outros negros, mesmo os de
sua família, Fábio, também fala no mesmo sentido do apoio que tem
dos pais para o estudo. Ele estuda na Escola Superior de Propaganda
e Marketing (ESPM) no turno da noite e trabalha durante o dia todo,
e mesmo podendo custear seus estudos, a mãe, que é funcionária
pública, faz questão de pagar integralmente a faculdade do filho.
Maria, outra interlocutora nesta pesquisa diz: “minha mãe sem-
pre diz que eu não fui feita para trabalhar, ela trabalha de camareira e diz
que não quer que eu tenha uma vida sofrida como a dela. Meus primos não
recebem o mesmo incentivo para estudar. O incentivo que recebem para in-
gressar no mercado de trabalho é sempre maior. Isso é ruim, porque os ne-
gros, precisam superar mais dificuldades para ingressar numa universidade,
às vezes acho também que falta um pouco de vontade de batalhar, tem gente
que se sente discriminado e logo desiste, se acostumou com a posição de infe-
rioridade que sempre atribuem a nós e se acomodou”. Conforme este relato,
a universidade representa uma busca de condições melhores para a
disputa no mercado de trabalho e é no mercado de trabalho que ela
percebe maior preconceito aos negros, relatando suas próprias expe-
riências do espanto dos clientes quando viam que uma negra estava
83
ocupando o espaço de recepcionista.
Trago estas pequenas narrativas para mostrar em especial a
importância da memória na construção dos projetos de vida dos
universitários com os quais converso e como a memória é articula-
da na construção dos projetos de vida familiares e individuais.
Outro interlocutor relevante para a compreensão da articula-
ção entre a construção do projeto de vida articulado a uma memó-
ria coletiva, é o Movimento Negro, compondo essas lutas de me-
mória, conforme definição de Michael Pollack, que soma-se a me-
mória familiar e do grupo. A partir da “Fenomenologia da Vida Co-
tidiana” de Alfred Schutz e daqueles que seguem sua linha teórica,
especialmente Gilberto Velho, para minha pesquisa, é de suma im-
portância para refletir sobre os projetos individuais e familiares dos
estudantes na pesquisa. O ator é percebido enquanto reflexivo, que
se conhece e se desloca na experiência e através das experiências
intrageracionais especialmente na família, faz-se necessário abor-
dar o “projeto social”, o desdobramento dos projetos em social, in-
dividual e familiar e a tensão do sujeito na escolha/convivência de
projetos. Cabe assim, mencionar a construção de discursividades
do grupo enquanto um projeto social. O Movimento Negro e o dis-
curso sobre a aderência dos negros a política de cotas é um exem-
plo para pensar nesse âmbito, em que se insiste que a aprovação das
cotas é uma conquista do movimento e não conquista individual e
que devido a isso os negros devem aderir as cotas e não percebê-las
apenas como uma reparação individual.
“A aprovação das cotas é uma vitória, o Movimento Negro trabalha
com a visibilidade há muito tempo e agora estamos vendo os resultados. As
cotas amenizam as disparidades no ensino e eu acredito que também sensibili-
84
zem os educadores para trabalharem com as diferenças, agora, já no início das
aulas nós [integrantes do Grupo de Trabalho de Ações Afirmativas na
UFRGS] vamos fazer aqui, aqui olha, bem nesse espaço [apontando para o
espaço em frente à portaria da Faculdade de Educação] uma exposição,
vai ser na segunda semana de aulas, uma exposição durante a semana toda de
coisas que evidenciam a nossa cultura. A gente quer trazer o maracatu, capoei-
ra, pais de santo, todas essas coisas que vieram para o Brasil com os africanos,
mostrar a nossa cultura e o que esses estudantes têm para contribuir”.
A fala de Paula segue ainda sobre a aprovação das cotas: “as
cotas na UFRGS foram um processo muito doloroso, especialmente para quem
estava aqui dentro e diretamente ligado no projeto, como é o meu caso. A
gente percebeu que tem muita resistência dentro da UFRGS, eu mesma me
impressionei até com o discurso da Carla que é professora, negra, sempre
dando palestras e até tem um grupo para discutir essas questões raciais, mas
na hora de lutar mesmo, de partir pra cima ela disse que tínhamos que
pensar melhor, cuidar para não cometer exageros, senão nós é que estaríamos
sendo racistas, por favor né? Então, voltando ao que eu te contava sobre a
votação das cotas. Por outro lado eu fiquei também feliz porque quando escre-
vemos o projeto de implementação das cotas tu acredita que conseguimos
apoio, na verdade quem redigiu o projeto, foi o professor José que é
assumidamente contra cotas, mas se sensibilizou tanto com o nosso empe-
nho, o nosso esforço, que nos ajudou muito no envio do projeto.
No dia da votação tu viu, foi aquela pressão, mas nós não íamos mesmo
deixar ninguém sair se não houvesse a votação, porque já tinha sido transferida
uma vez e não iam fazer isso conosco mais uma vez. Tinha um montão de
estudantes do ensino médio que estavam lá conosco ansiosos para saber se as cotas
seriam aprovadas, eles seriam os primeiros contemplados com essa chance a mais
de entrar na universidade, porque a UFRGS é o sonho da maioria. Às vezes isso
85
também é um problema, porque a universidade é vista por muitos negros como
um projeto individual e não como uma conquista do grupo negro e é justamente
isso que agora, com a aprovação das cotas a gente quer trabalhar.
Sabemos que vai ter manifestações de preconceito e já estamos
disponibilizando um serviço para atender os alunos que se sentirem discrimi-
nados, até eu, que não entrei por cotas, até porque elas não existem na pós-
graduação sei que vou ser apontada como cotista, mas eu não me importo,
mas tem gente que vai se importar, então a gente precisa dar um suporte para
os alunos que sofrerem discriminação pelos colegas e até pelos professores. Na
verdade nós já temos esse serviço, porque tem alunos que já estão nos procu-
rando com medo de represálias quando chegarem aqui e também porque
temos casos, como o do Emerson, que é meu vizinho, que só porque estudou
em escola particular, porque tinha bolsa, nos dois últimos anos do ensino
médio, não pode concorrer às cotas. A gente já pegou um advogado da ONG
[IAA- Instituto África-América] para ele, ele vai entrar na justiça para
ter a vaga dele assegurada”.
Para dar conta dessas narrativas dos sujeitos, em que expres-
sam a construção coletiva de um projeto e evidenciam o papel fun-
damental da memória compartilhada, utilizo-me dos estudos de Paul
Ricoeur, que afirma que existe entre a atividade de narrar uma his-
tória e o caráter temporal da experiência humana uma correlação
que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de ne-
cessidade transcultural, ou seja, que o tempo torna-se tempo hu-
mano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que
a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma con-
dição da existência temporal.
A dimensão subjetiva, das emoções, ganha expressividade na
medida em que nas narrativas em torno das fotos familiares se ma-
86
terializa o coletivo, o grupo, a situação que muitas vezes é compar-
tilhada além da família nuclear e perpassou a história de várias ge-
rações. A imagem organiza a memória e possibilita conciliar a nar-
rativa cronológica e não cronológica nos dando muitas vezes a cha-
ve para as interpretações dos nossos informantes em relação aos
seus projetos e como os vivenciam dentro de um campo de possibi-
lidades freqüentemente diverso de seus ascendentes, que
vivenciaram de forma ainda mais desigual os resquícios do período
escravista, da diferenciação legitimada pela lei.
Por fim, cabe contextualizar este estudo no campo da antropo-
logia urbana. Os estudos de antropologia urbana desenvolvem-se a
partir da Escola de Chicago, que buscava compreender o fenômeno
urbano e a complexidade das relações sociais desenvolvidas
concomitantemente, enfatizando que a investigação sociológica e/ou
antropológica devia se dar pela análise das formas de relações sociais,
como a construção das redes de relações dos atores e de seus siste-
mas de interação. É nesse espaço que a antropologia urbana ganha
expressão, questionando como os atores, personagens em interação,
desempenham uma multiplicidade de papéis na dinâmica social. Os
estudantes interlocutores nesta pesquisa pertencem a universidades
públicas e privadas localizadas em Porto Alegre.
87
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89
Experiência, Memória e GeraçãoA construção da narrativa de
mulheres que praticaram aborto
Fernanda Pivato Tussi
O presente ensaio trata de um estudo sobre a memória de mulheres
a respeito de suas experiências de interrupção da gravidez. Para isto,
pretendo me centrar em algumas narrativas coletadas em Porto Alegre e
Região Metropolitana sobre esse evento e sua compreensão enquanto
uma experiência fenomenológica, tendo em vista que a prática do aborto
provocado é um processo considerado ilegal no Brasil.
As narrativas das mulheres me permitirão refletir acerca de uma
perspectiva geracional. Uma das questões centrais situa-se na reflexão
sobre o período em que o aborto foi realizado e a relevância para sua
compreensão no contexto brasileiro bem como o que a época nos
informa a respeito da prática. Algumas questões serão importantes
para conduzir essa análise como o questionamento acerca da
importância do tempo transcorrido após o evento para a
ressignificação da interrupção da gravidez.
Nesse sentido, faço um recorte, dentro do universo de pesquisa,
para pensar a questão da geração. Proponho dividir em dois grupos,
não tão estritamente vinculados à faixa etária – ainda que este recorte
é bastante presente, indiscutivelmente importante e atravessa
diretamente a separação que aqui sugiro – mas sim, relacionados
90
ao período no qual cada uma das mulheres praticou o(s) aborto(s).
Evidentemente, a categoria de idade perpassa essa divisão, uma vez
que somente mulheres mais velhas podem se encontrar na primeira
categoria e as mulheres mais jovens só podem estar na segunda.
Dessa forma, há pouca variação na relação entre faixa etária e as
categorias elaboradas, tal como se observa nos esquemas abaixo.
Um grupo refere-se às mulheres que o realizaram nas décadas de
1970 e 1980 e outro das que o provocaram de meados dos anos
1990 em diante. O que justifica esse tipo de agrupamento relativo à
época é a forma com que a intervenção aparece relacionada ao
contexto sócio-histórico.
Período em que o(s) aborto(s) foi(ram) realizado(s)*
Idade das mulheres no dia da entrevista
91
As narrativas as quais me refiro são baseadas em doze
entrevistas realizadas entre os anos de 2000 e 2008 com mulheres
de grupos populares e de camadas médias que interromperam uma
ou mais gestações em Porto Alegre e Região Metropolitana. Duas
destas entrevistas, realizadas em 2000, foram retiradas do banco de
dados da etapa qualitativa do Projeto Gravidez na Adolescência –
Estudo Multicêntrico sobre jovens sexualidade e reprodução no
Brasil (GRAVAD)1. As outras dez, foram recolhidas por mim entre
os anos de 2006 e 2008. Todas as mulheres tiveram seus nomes
trocados, além de evitar que alguma informação viesse a identificar
a entrevistada. A idade das mulheres deste universo de pesquisa
varia de 23 a 52 anos.
Memória e Experiência
Ao evocar uma lembrança, a primeira testemunha que
devemos apelar, já nos dizia Maurice Halbwachs (1990), é a nós
mesmos. O autor sustentava que não existe, por assim dizer,
*Neste esquema o número total de mulheres soma mais de doze, posto queuma das entrevistadas realizou três abortos: dois nas décadas de 1970 e 1980 eum após os anos 1990 e, portanto, se encontra nas duas categorias.1. O Projeto Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidadee Reprodução no Brasil(Pesquisa GRAVAD) foi elaborado, originalmente, porMaria Luiza Heilborn (IMA/UERJ), Michel Bozon (INED, Paris), Estela Aquino(MUSA/UFBA), Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS) e Ondina Fachel Leal(NUPACS/UFRGS). A pesquisa foi realizada por três centros de pesquisa: Pro-grama em Gênero, Sexualidade e Saúde, do IMS/UERJ; Programa de Estudosem Gênero e Saúde, do ISC/UFBA; e Núcleo de Pesquisa em Antropologia doCorpo e da Saúde, da UFRGS. O grupo de pesquisadores compreendeu MariaLuiza Heilborn (coordenadora), Estela Aquino, Daniela Knauth, Michel Bozon,Ceres G. Víctora, Fabíola Rohden, Cecília McCallum, Tânia Salem e Eliane ReisBrandão. O consultor estatístico foi Antônio José Ribeiro Dias (IBGE). A pes-quisa foi financiada pela Fundação Ford e contou com o apoio do CNPq.
92
pensamentos fora do mundo. Pensamos pelos outros e para os outros.
Na reflexão sobre problema da relação entre a memória e o
social, é importante resgatar Halbwachs (1990) e o que ele nos
sugere sobre a coletividade das lembranças:
Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos sãolembradas pelos outros, mesmo que se trate deacontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos,e com objetos que só nós vimos. É por isso que, emrealidade, nunca estamos sós. Não é necessário queoutros homens estejam lá, que se distingammaterialmente de nós: porque temos sempre conosco eem nós uma quantidade de pessoas que não seconfundem. (Halbwachs, 1990: p.26)
O trabalho sobre a memória é o ponto de partida para pensar a
perspectiva de geração. Uma das questões centrais é se existem ou não
diferenças entre os dois grupos que aqui trabalho, e, a partir destas,
quais seriam essas distinções e como se expressam nas narrativas das
mulheres. A análise da experiência se fundamentará no estudo
fenomenológico com o intuito de compreender como os indivíduos
vivenciam seu mundo e, por extensão, um determinado evento crítico.
As narrativas podem ser trabalhadas naquilo que expressam dos
jogos de memórias individuais das experiências, vinculadas à vida social
e que são transmitidos como valores morais acerca do aborto, por uma
memória coletiva. Dessa forma, a sociedade interfere na lembrança, de
modo que memória individual e memória coletiva estejam implicadas.
As lembranças, portanto, são coletivas, posto que elas
ocorrem a partir da evocação dos outros, já que nunca estamos sós.
A consciência coletiva, como Maurice Halbwachs (1990) a define,
93
está constantemente presente nas pessoas, inclusive na evocação
da memória. Isto abre espaço para que cada vez que um fato seja
evocado, haja a reconstrução desse passado. As lembranças não estão
em um ponto determinado de nossa memória, mas são
constantemente reconstruídas em sua evocação.
Assim, é possível estabelecer algumas relações entre as
narrativas das mulheres entrevistadas e a memória. O evento do
aborto foi vivenciado corporalmente por elas, mas a evocação de
suas lembranças é coletiva, posto que envolve elementos que
transcendem apenas aquela mulher e um grupo determinado de
mulheres. No caso especifico desta prática, as narrativas apontam
para uma forte relação com outras pessoas que tiveram presença
no momento da gravidez e de sua interrupção como é o caso do
parceiro e da família da mulher.
Essa situação pode também ser entendida pela perspectiva
halbwachsiana no sentido de que a relação da pessoa com o grupo
é necessária para que seja possível a lembrança e sua conservação.
A memória das pessoas irá depender de sua associação com os grupos
de convivência, além de suas referências. O vínculo com a família
ou com o parceiro, por exemplo, é importante para que se possa
compreender o contexto de realização do aborto e, com isso, o
processo de evocação dos fatos vividos.
É possível perceber elementos do passado e do presente na
reconstrução da lembrança, uma vez que, Halbwachs (1990)
argumenta, a recordação é uma imagem que se organiza a partir do
material disponível atualmente na nossa consciência. Essa imagem
do que foi vivido no passado, não é a mesma que temos hoje, pois
nossa percepção e nossas idéias se transformam por meio de novas
94
experiências. O exercício de lembrar do passado no presente é
percebido nos discursos das mulheres que fizeram aborto.
A memória é uma construção do presente e resultado da
interação social em diferentes contextos. As lembranças são narradas
a partir de diferentes perspectivas que irão relacionar-se com a
situação social em que se encontra o narrador, com o intuito de
transmitir suas experiências vividas. Desta forma, a memória é
relacional e situacional, isto é, depende do momento em que está
sendo revivida e para quem está sendo relatada.
A lembrança, como um processo seletivo, é feita a partir de
referências sociais do narrador, que fundamentam a memória
individual. Desta forma, retorna-se ao ponto em que o individuo só
tem memória enquanto membro de um grupo. Isto abre espaço
para pensar que as lembranças possuem um caráter geracional (Lins
de Barros, 2006), posto que um grupo está em uma condição
especifica para vivenciar determinados eventos. Nesta linha, uma
situação social irá predispor indivíduos a estilos de pensamentos e
experiências comuns.
Ao explorar alguns pontos da questão geracional, proponho
que o período em que a mulher interrompeu a gestação nos informe
sobre a realidade da sociedade daquela época, e que, portanto, permite
pontuar aspectos sócio-históricos acerca desta temática no Brasil. Um
exemplo a ser citado é a recente abordagem que tema o aborto como
um direito reprodutivo da mulher, que foi difundida pelo movimento
feminista, de maneira que a questão de direitos sexuais e reprodutivos
deu seus primeiros passos a partir do período de redemocratização
(Sarti, 2004). Dessa forma, a época em que a gravidez foi interrompida
– e a narrativa a partir do que foi vivenciado – é importante para
95
trazer um delineamento sobre a prática do aborto.
Os dados de pesquisa coletados conduzem a uma reflexão
sobre diferenças na realidade vivida e na experiência de aborto de
quem realizou esta prática nas décadas de 1970 e 1980, em
comparação às das décadas de 1990 em diante. Estas diferenças
aparecem nos discursos de forma mais clara na realidade da
sociedade da época. Como efeito da reconstrução da memória,
surgiu, nas narrativas, a percepção de uma sociedade mais
conservadora e “machista”, como o fato das mulheres terem que
esconder do pai e eventualmente também da mãe que tinha relações
sexuais, além de relatos sobre “preconceitos” e “discriminação” em
relação a mulheres solteiras que não eram virgens. Beatriz, 49 anos,
comenta que o primeiro aborto que provocou, aos 14 anos, no início
dos anos 1970, teve interferência em suas amizades, trazendo
elementos constitutivos da sociedade da época:
Isso foi em 71 (...). Naquela época não podia nemcomprar pílula na farmácia, porque não vendiam, a nãoser que...alguém comprasse pra ti, enfim, tudo era muitosigiloso. Era muito discriminado também. E se alguémnão era virgem, tu não ficava sabendo, porque nãotinha...a virgindade era uma coisa que pesava bastante.(...). Meu pai [quando soube da gravidez] ficouhorrorizado, queria me matar, me enforcar, imagina!(...). Meu pai teve um desgosto muito grande, imagina,eu era a única na rua, daí o pessoal, obviamente todomundo descobriu, muitas amizades eu perdi, porque ospais, as mães não queriam que as filhas se dessemcomigo, que eu tinha feito um aborto, eu não seria umaboa companhia, digamos assim (...). Uma grandebobagem isso, tu sabe, porque o que importa, eu pensoassim, o que importa não foi aquilo que eu fiz, mas simquem eu sou, então tu paga por aquilo que tu fez, não
96
por aquilo que tu é...as pessoas sempre vêem aquilo ali,(...) vai pegar mal (...). Imagina se a vizinhança vê...Eufiquei “falada”, como se diz. (...). A sociedade condena,na época condenava...não sei se condena hoje.Beatriz, 49 anos, casada, sem filhos. Fez três abortos:aos 14, 21 e 38 anos.
Além disso, esse modelo conservador foi associado também
à dificuldade em obter diálogo sobre sexualidade, especialmente com
a família, e ao esforço em se conseguir informações, por conta disto.
Salete e Tânia, duas das mulheres entrevistadas, trazem elementos
e comparações interessantes sobre os dois períodos:
Eu devia de ter procurado uma alternativa pra...mas nãosei porque, aquela época, era uma época assim, tão....agente vivia uma época tão massacrada, como é que euvou te dizer, tão...tão, assim, tudo era tão difícil de tucolocar, tudo era tão camuflado, tudo era errado, nãosei. Eu notava que essa época era assim, né? Os anos80, por aí. (...).Mãe e pai não falava abertamente comoé hoje em dia, hoje em dia a gurizada tem diálogo aberto.Antes era tudo assim: ah, é feio. Feio? Disso aí, a gentenasce disso aí. [risos](Salete, 51 anos, solteira, sem filhos, provocou umaborto aos 22 anos.)
Não foi fácil. Hoje em dia tem mais diálogo, na épocanão tinha. Era um mundo bem diferente. Não era fácilcomo é hoje. Era totalmente diferente. É um pulo muitogrande, de geração, anos 70, 80 pra agora. Os jovenstêm outros tipos de pais, mais aberto, mais diálogo. Tudoera horrível falar com pai e mãe. Não tinha Internet,em escola não se falava, televisão também não. Era umacoisa muito fechada. Enciclopédia era muito didática.Isso a gente não queria. Hoje é bem diferente, hoje tem
97
todas as vantagens. Só não vai dialogar se tu não quiser.As portas estão todas abertas pra ti te informar, tirardúvidas. Ou então vai ali pro Google... coisa que naminha época não tinha.(Tânia, 52 anos, viúva, dois filhos. Fez um aborto aos 16 anos.)
Percebe-se com isso, a presença de diversos aspectos que
permitem considerar diferenças relativas à prática do aborto – seja
sexualidade, acesso à contracepção, diálogo entre pais e filhos,
questões morais – nas duas épocas pesquisadas.
Retomando a questão específica da memória, sugere-se que a
lembrança do passado remete sempre ao presente, de maneira a
reinterpretar o que passou. Michel Pollak (1998) refere que há
também “uma permanente interação entre o vivido e o aprendido,
o vivido e o transmitido” (Pollack, 1998: p.8-9). Essa ação mútua
pode ocorrer durante os relatos sobre aborto. Ao narrar suas
experiências, e selecionando os eventos conforme as circunstâncias,
elas irão reconstruindo as lembranças que têm do que foi vivido –
especialmente ao salientar as diferenças da época.
Experiência e Trajetória
A experiência do aborto, quando referida à trajetória das
entrevistas, permite abordar o movimento reflexivo posterior ao
evento vivido. Nesse sentido, assume-se que o significado é
produzido biograficamente no mundo, ou seja, coletivamente e na
interação social. É justamente na reflexão acerca da própria
experiência de um sujeito no mundo que o sentido emerge. A
narrativa de experiência de aborto é um tema que cabe pensar desde
98
a teoria de Alfred Schutz (1979).
As entrevistas com mulheres que passaram por essa
experiência poderiam ser pensadas no sentido de trajetória da vida
delas (biograficamente), ao mesmo tempo em que se pensa a
interpretação sobre a própria reflexão acerca do vivido. Nesse sentido,
uma vez que as escolhas são fruto de processos da trajetória, seria
possível pensar, a partir dessas biografias, o porque se deu a escolha
de interromper ao invés de prosseguir com a gravidez.
A trajetória de vida torna-se relevante para compreender o
contexto, bem como a decisão de interromper a gestação. Sofia, uma
das mulheres entrevistadas, tem 40 anos e fez dois abortos. Ela vem
de uma classe baixa em ascensão, o que permitiu que ela ingressasse
na faculdade aos 35 anos. Foi nesse período que engravidou e realizou
aborto duas vezes, decorrente do relacionamento com seu namorado
– que era casado. O fato do namorado de Sofia ter outra união oficial
foi um dos principais motivos apontados por ela para a interrupção
das gestações, acompanhado, também, de justificativas relativas aos
seus estudos. Sofia diz:
A gravidez ia atrapalhar os planos de eu me formar. (...)Eu ia ter que parar de estudar, não tem como. E comoeu tava assim, eu tinha conquistado meu grande sonho,que era poder entrar aqui na UFRGS pra fazer meu curso,eu não quis, eu nem pensei. Pra mim não existia essapossibilidade [de seguir com a gestação].(Sofia, 40 anos, separada, um filho: fez dois abortos aos36-38 anos.)
A trajetória de Sofia, bem como o contexto das gestações, são
importantes para compreender sua decisão de ter provocado os
99
abortos. Alfred Schutz (1979) defende que as escolhas são sínteses
das experiências anteriores. O sujeito interpreta sua vivência e não
tem um projeto, mas o constrói a partir de sua trajetória. São as
experiências passadas, baseadas na biografia de cada individuo, que
darão significado às ações em um mundo vivido coletivamente. Cada
ser humano, argumenta o autor, só pode ser compreendido a partir
de sua biografia. Não há, portanto, como dissociar a prática do aborto
da trajetória de vida da mulher que a vivenciou.
A decisão de interromper a gestação, no caso de Sofia, esteve
relacionada à experiência e à trajetória de vida trazida em sua narrativa.
Isso porque ela relata que batalhou para alcançar uma vaga na
universidade pública, almejando concluir os estudos universitários e,
no momento em que engravidou de um homem casado, encontrou
o aborto como uma alternativa. Há, com isso, a construção de um
projeto a partir de um campo de possibilidades (Velho, 2003).
O aborto, por mais que ocorra no corpo da mulher, não se dá
de maneira isolada, ou seja, há sempre a relação com outras pessoas
da rede da mulher que pensa em interromper a gestação. O próprio
ato de cogitar o aborto como uma possibilidade já está associado a
um indício de falta de expectativa em relação à constituição de uma
família, por exemplo, o que envolve diretamente o parceiro e sua
posição frente à gravidez, aumentando a possibilidade de aborto em
função do homem não “assumir”2 (Víctora, 1991). Nesse sentido,
muitas vezes a mulher aguarda por uma posição do parceiro para
2. O conceito êmico “assumir” recorrente nas camadas populares e que serefere mais especificamente ao sujeito masculino e à paternidade, no momentode uma gravidez. O homem que assume seu filho é aquele que o reconhecepublicamente, e, às vezes, é, além disso, aquele que sustenta a criança (provendoalgo material, como comida e roupas). (Víctora, 1991)
100
decidir realizar um aborto caso ele “não assuma” já que, seria muito
trabalhoso “assumir” um filho “sozinha”, isto é, sem a presença de
um sujeito masculino com funções de protetor e provedor (Sarti, 1996).
O caso de Priscila, uma jovem de 24 anos, pertencente aos grupos
populares, que realizou um aborto poucos meses antes da entrevista, é
interessante para ilustrar essa relacionalidade. Priscila tem um filho,
resultado de um relacionamento anterior, no qual o antigo parceiro,
em suas palavras, “não assumiu” a criança, após o nascimento,
contrariando as expectativas dela. Posteriormente, ela se relacionou
com um colega de trabalho, casado e com filhos, quando percebeu que
estava grávida novamente. Nesse momento, devido à situação do
parceiro “não assumir”, uma vez que ele já tinha um relacionamento
com outra mulher, Priscila justifica a realização do aborto:
Eu tive que tomar a decisão [de abortar] (...). Ele [oparceiro] não queria assumir a culpa junto comigo, eutive que ter força e coragem pelos dois, ele queria assumiro filho dele de uma forma que não existe, cada vez queele olhasse para o filho, ele iria ver que a prova da traiçãoestava ali, então tu não vai amar uma criança assim.(Priscila, 24 anos, solteira, um filho, fez um aborto aos24 anos.)
O caso de Priscila evidencia claramente a noção de que, dada a
situação considerada irregular do parceiro, já que ele era casado e,
portanto, “não existe”, como ela diz, a forma de assumir dois
relacionamentos simultaneamente, ela foi impelida a realizar o aborto.
Esse exemplo demonstra, a partir do referencial teórico
schutziano, que a experiência é compartilhada, sempre na relação
com o “Nós”, ou seja, com os outros, e não de maneira isolada. Isso,
no caso em estudo, aparece também na relação com a família.
101
Especialmente com mulheres que engravidam quando bem jovens,
o papel dos pais, e da família em geral, é bastante presente de diversas
maneiras. Há situações em que a jovem esconde a gravidez de alguns
membros da família e, por estes não saberem que ela estava tendo
relações sexuais, o aborto é recorrido para que outro segredo não
seja revelado. Denise, 44 anos, conta que seus pais nunca souberam
que ela fez um aborto aos 19 anos, ainda que os pais do namorado
soubessem, pois foram os responsáveis pelo pagamento do
procedimento. Tânia, 52 anos, também tentou esconder a gravidez
dos pais, mas esses acabaram descobrindo, após ela ter feito o aborto,
resultando no seu casamento com o namorado e, anos mais tarde,
na separação do casal. Também às escondidas, Salete conta que o
pai nunca soube da gravidez, dada a sua postura intolerante frente
à sexualidade das filhas. Foi então a mãe quem a acolheu, ainda que
em um contexto bastante frágil, como ela relata:
Pra mim, na época, foi bastante cruel na época, porquea mãe chorava muito quando ficou sabendo disso,porque eu tive que esconder do meu pai, né? Porquemeu pai era muito machista. Aí eu disse, meu Deus, né,vai me correr de casa, né?(Salete, 51 anos, solteira, sem filhos, provocou umaborto aos 22 anos.)
Da mesma forma, o aborto, como alternativa a uma gravidez
não planejada, apareceu nas narrativas associado ao pai ou à mãe
como pessoas que decidiram que era melhor a menina interromper
a gestação a ter um filho. É o caso exemplar de Ana, 24 anos, que
engravidou aos 15 e pouco soube me detalhar sobre alguns eventos
relacionados ao aborto, mas ela lembra da intervenção da mãe e também
do que o namorado na época em que ela fez o aborto havia dito:
102
Ele [o namorado, na época] veio me falar que minha mãeque decidiu tudo, que a gente ia tirar [fazer o aborto],que não sei o quê, e ela que marcou, isso aí eu sei, que elaque procurou o local pra fazer o aborto e...marcou tudoe agendou tudo e daí eu fui lá e fiz o aborto.Ana, 24 anos, solteira, um filho, provocou um abortoaos 15 anos.
Novamente percebe-se o compartilhamento de experiências,
ainda que a vivência real do aborto ocorra no corpo da mulher. É
possível relacionar essas situações com o argumento de Alfred Schutz
(1979) que sugere que o “Eu” se constrói a partir da interação social.
A socialização ocorre através da experiência com o “Nós”, ou seja,
com o outro, que é sempre constante e, no caso, determinante para
uma decisão, como interromper uma gravidez.
Ao estar envolvido na experiência, o sujeito do aborto não
reflete sobre a ação, isto é, não tem um entendimento completo no
relacionamento com o “Nós”, posto que está imerso na situação. A
compreensão é o que dá sentido à experiência subjetiva que só ocorre
depois que o fato aconteceu e em função de outros sujeitos. É
importante ressaltar que os relatos de aborto geralmente são pouco
compartilhados, sendo esse tema quase um tabu, o que não significa
que não seja um ato refletido.
O ato de lembrar não seria reviver um momento anterior, mas
sim, reconstruir, refazer as experiências passadas, baseado nas noções
do presente. Essas percepções, por sua vez, ocorrem a partir da
biografia das mulheres na sua interação social, ou seja, com o “Nós”,
com a coletividade, e só são compreendidas em momento posterior
ao evento ocorrido. Pode-se pontuar que o tempo transcorrido
103
reflete no entendimento do que foi vivido, ainda que haja uma certa
ambivalência na definição precisa sobre as emoções sentidas,
especialmente em comparação com a época em que o aborto ocorreu
e o sentimento atual, após o tempo transcorrido. A sociedade tem
também um papel de imperar normas e constrangimentos, de modo
significativo, para que se ressignifique a prática do aborto e isto
pode interferir na percepção das mulheres de diversas formas,
passando pelo recorte geracional. Suas lembranças, sejam elas mais
recentes (de mulheres mais jovens) ou mais antigas (de mulheres
mais velhas) são transmitidas através de narrativas da experiência e
reconstruídas na evocação de suas memórias.
Por fim, gostaria de encerrar este ensaio com uma provocação
a ser debatida, não sem um viés político, que o próprio tema emerge:
como o reconstruir e o ressignificar as experiências de aborto, a
partir de uma perspectiva geracional, pode impactar o debate político
acerca da legalidade do aborto no Brasil nos dias de hoje?
104
Referências
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Companhia das Letras, 1994.
DEBERT, Guita G. A Antropologia e o Estudo dos Grupos e Categorias de
Idade. In: M. M. L. Barros. (Org.). Velhice ou Terceira Idade?. Rio de
Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1998.
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LINS DE BARROS, Myriam Moraes. (org.). Família e Gerações. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2006.
________. Trajetória dos estudos de velhice no Brasil. Sociologia, no. 52, 2006.
MOTTA, Flavia de Mattos. Velha é a Vovozinha: identidade feminina na
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Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, v. 2, n. 3, 1989.
SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970:
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________. A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos pobres.
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SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura, notas para uma antropologia
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________.Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas.
3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
VÍCTORA, Ceres, 1991. Mulheres, Sexualidade e Reprodução. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) do Instituto de Filosofia e
ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
105
Imagens da memória,documentações fotográficas possíveis
A experiência de documentação da “memóriafotográfica do bairro Cristal”, Porto Alegre.
Fernanda Rechenberg
“A maioria guarda na memória, mas não sabe nem explicar
como era. Se tiver fotografado é mais fácil”. A fala de Tarso, mora-
dor do Cristal, deixa entrever algumas das motivações simbólicas,
afetivas e testemunhais, que entrelaçam a fotografia às artes da
memória. Guardar na memória, eis uma das principais motivações
dos fotógrafos, amadores ou profissionais, desde o surgimento da
fotografia. Este ato inteligente que é “lembrar”, que configura um
“trabalho”, encontra na imagem fotográfica pontos de ancoragem
ao fluxo incessante e sempre renovador das imagens da memória.
Esta é uma das motivações que mobiliza um grupo de senho-
ras na busca pela composição de um registro visual de seu bairro. É
também o gesto que leva inúmeros fotógrafos a aderirem a uma esté-
tica fotográfica “documental” como representação do real na com-
posição de imagens no mundo contemporâneo. Mas que relação po-
demos estabelecer entre o desejo de “guardar” a imagem na lem-
brança e uma estética fotográfica calcada no gênero documental?
Quando Boris Kossoy (2002) discute o processo de constru-
ção de realidades que envolve a representação de uma realidade con-
106
creta através do signo fotográfico, atribui à imagem o estatuto de
“documental, porém imaginária” (Kossoy, 2002: p.48). Tal expres-
são, cunhada pelo autor, é suficiente para desencadear alguma des-
confiança acerca da credibilidade que a fotografia constrói em sua
modalidade “documental”, na qual seu potencial descritivo e a co-
nexão física com o referente constituem a sua âncora.
É importante situar o termo “documental” no interior de uma
tradição fotográfica, na qual correspondem uma ética e estética es-
pecíficas, orientando um portar-se em campo com a câmera e o
estabelecimento de uma relação específica com o sujeito fotografa-
do, assim como a opção por um conjunto de características na com-
posição da imagem convencionalmente aceitas como “documen-
tal”. De modo geral, estas características celebram o potencial des-
critivo da imagem e sua função testemunhal.
As imagens de Jacob Riis e Lewis Hine1 ficaram gravadas como
ícones do fotodocumentarismo na história que entrelaça a fotogra-
fia e a vida social. Marcadas por uma forte intenção de denúncia
social, as fotografias de Riis são pautadas por um caráter investigativo
e uma estética direta, com o inovador uso do flash, recurso que
permitia a iluminação e o registro dos becos mal afamados de Nova
York. Lewis Hine, sociólogo por formação, fazia uso de uma estéti-
ca pictorialista mais refinada que Riis, mas partilhava a preocupa-
ção em “tornar visíveis” as desigualdades e injustiças sociais. É in-
teressante pontuar que o nascimento do fotodocumentarismo está
amplamente relacionado com o interesse de fotógrafos, jornalistas
1. Jacob Riis (1849-1914) e Lewis Hine (1874-1940) são reconhecidos pelamaior parte dos autores no campo dos estudos fotográficos como os “paisfundadores” da fotografia documental.
107
e pesquisadores em retratar a então efervescente vida urbana e seus
grupos particulares2.
Antonio Fatorelli (2003) nos traz contribuições importantes
a esta discussão, tecendo críticas à obra de autores consagrados no
campo da fotografia, como Roland Barthes e Vilém Flusser. Para o
autor, a fotografia documental é convencionalmente aceita como
aquela que acentua a importância do referente e do dispositivo óti-
co na formação da imagem, em oposição à fotografia experimental,
a qual confere prioridade à interferência da subjetividade do fotó-
grafo. É nesta perspectiva que a fotografia em sua modalidade do-
cumental se constitui calcada na referência física e concreta da re-
alidade visível na representação fotográfica, na qual o fotógrafo acha
conveniente minimizar sua participação manipulando seu equipa-
mento apenas o necessário para a obtenção de imagens literais.
Pretendemos aqui abordar a fotografia documental em sua
relação com a memória, os gestos de lembrar e esquecer, ou ainda
de “pensar o tempo”3. Nesse aspecto, a fotografia documental, em
seu viés testemunhal, oferece à memória fragmentos visuais que
informam sobre o homem, a natureza e a vida social em distintos
períodos, desde o seu surgimento. A fotografia, entretanto, é porta-
dora de uma realidade própria que não corresponde necessariamente
à realidade do sujeito/objeto ou situação referente. Conforme aponta
Kossoy (2002), trata-se de duas realidades em tensão perpétua en-
tre o visível e o invisível, o oculto e o aparente (2002: p.47).
2. Este mesmo caráter investigativo inspirou também as pesquisas da Escolade Chicago, em autores como Robert Park e Louis Wirth, entre outros, profun-damente influenciados pela obra de Georg Simmel na fundação de uma soci-ologia contemporânea.3. Cf Gaston Bachelard (1994).
108
Nas artes da memória, esta relação entre a fotografia e seu re-
ferente constrói-se a partir de distintas filiações conceituais as quais
revelam olhares e pensamentos diferenciados acerca da memória e
sociedade. Frequentemente, os estudos de imagem fotográfica e
memória primam pela relação indissolúvel entre a fotografia e o “fato
passado”, fixo, imutável e irreversível (Kossoy, 2002: p.47).
A teoria social da memória de Maurice Halbwachs, influenciado
pela sociologia clássica de Èmile Durkheim, destaca o caráter social e
coletivo da reconstrução das lembranças. Para Halbwachs, o referencial
material, assim como o grupo social são fundamentais no ato de
rememorar, diante do qual as fotografias representam as “marcas visí-
veis” do passado. A materialidade da fotografia é evocada em sua soli-
dez irrefutável. Para Halbwachs (2004), a matéria – simbolizada pelos
artefatos e objetos – assume um valor crucial no processo de recons-
trução das lembranças, operando quase como “uma sociedade muda e
imóvel” (2004: p.138) em torno de nós. Os objetos têm um caráter
social e referencial que os confere um “lugar” na memória, pela carga
simbólica que trazem mas também, no caso das fotografias, pela possi-
bilidade de reconstrução no presente de cenas passadas.
A perspectiva halbwachsiana da memória inspira diversas pes-
quisas nas quais a fotografia é analisada enquanto uma prova factual,
um testemunho da realidade capaz de evocar lembranças. Autoras
como Ecléa Bosi, Myriam Lins de Barros e Miriam Moreira Leite
trabalham profundamente nesta perspectiva, atentas às constru-
ções simbólicas das imagens fotográficas como laços que engen-
dram a memória, trazendo a tona lembranças que são, desde o pon-
to de vista de cada sujeito que rememora, coletivas e constante-
mente atualizadas. Trata-se de perspectivas em torno da fotografia
109
nas quais a sua qualidade enquanto documento é fundante, ou seja,
traz em seu conteúdo um valor documental irrefutável.
Ainda segundo Fatorelli (2003), para o autor a separação en-
tre fotografia documental e ficcional legitima a dicotomia entre uma
prática fotográfica politicamente engajada em seu compromisso com
o real, e outras de inspiração meramente formalista. Nesse sentido,
haveria a promoção de um tipo de fotografia direta, voltada para
temas críticos como a violência ou a miséria, e a desqualificação de
uma produção fotográfica criativa na documentação de temáticas
relacionadas à vida social.
É fundamental retomarmos aqui a filosofia das formas de Georg
Simmel e sua decisiva influência na fundação de uma sociologia con-
temporânea, que se ajusta e se orienta para a pesquisa dos complexos
fenômenos que compõem o quadro da vida urbana. Os estudos de
Simmel sobre a natureza sociológica do conflito trazem uma impor-
tante matriz para pensar a sociedade em termos de sua movência e não
fixidez: para o autor, o conflito produz a forma da sociedade e é justa-
mente através da tensão que a vida social se move. A permanência,
portanto, se dá na forma e não no conteúdo. Uma forma que não é
abalada pelas situações de conflito, mas justamente se produz nela.
À diferença de uma tradição durkheimiana, Simmel nos convoca
a contemplar a instabilidade da matéria da vida social. Pensar a fotografia
desde esta matriz implica a retirada da solidez testemunhal da fotografia,
abrindo espaço para a tessitura de novas relações e qualidades evocadas
na imagem. Ao recolocarmos questões referentes à uma filosofia das
formas para o contexto das imagens fotográficas, imaginamos a retirada
da ênfase de um suposto conteúdo substancialista inerente à fotografia
e a recuperação da liberdade das formas na imagem.
110
Entretanto, para pensar a fotografia em sua relação com a me-
mória, não é possível destituir a profundidade temporal por ela evocada,
que lhe dá a propriedade de reconstrução de lembranças. Nesse senti-
do, é importante somar à abordagem simmeliana das formas a
problematização do tempo proposta por Gaston Bachelard (1994). Se
para Simmel a permanência da vida social acontece pela forma, em
Bachelard, esta permanência está na duração. O tempo bachelardiano
é instante, e a duração está neste esforço pela continuidade.
Nossas reflexões aderem à premissa bachelardiana segundo a
qual não é possível pensar o passado, e sim “pensar o tempo”. A
obtenção fotográfica, nesse sentido, já se coloca como uma forma
de “pensar o tempo”, um tempo que é organizado, utilizado, coe-
rente e eficaz, por isso, perpetuado na matéria que constitui uma
imagem fotográfica. Assim, se fotografar é uma forma de pensar o
tempo, as escolhas que orientam o ato fotográfico não deixam de
ser uma tentativa de organizar esse tempo.
A obra de Bachelard nos convoca a desconfiar das bases de um
realismo pouco sensível ao “materialismo ondulatório” descrito nas
relações entre o tempo e a matéria. Ao se debruçar sobre a
“ritmanálise”, o autor revela o caráter fundamental do ritmo para a
matéria, no qual esta só existe em um tempo vibrado. Nessa perspec-
tiva, o tempo “congelado” de uma fotografia não é senão um arranjo
temporal vibrante e nunca parado. A imagem fotográfica é composta
sobre a vibração temporal e a realidade visível, tão celebrada ao se
falar de imagens documentais, compõe-se a partir de um arranjo rít-
mico, vibracional. A solidez irrefutável e testemunhal perde força.
Estes apontamentos reúnem um esforço por retirar a foto-
grafia do estatuto fixo e imóvel que a palavra “documento” evoca,
111
liberando a imagem fotográfica de uma relação direta com a reali-
dade visível. De modo geral, as imagens fotográficas são envoltas
em interpretações substancialistas, que as conectam estreitamente
com um referencial concreto. É justamente neste ponto que reside
a exaltação da fotografia documental frente a outros gêneros foto-
gráficos: na capacidade, para alguns quase vocacional da fotografia,
de reprodução ou duplicação da realidade.
Por outro lado, encontramos uma forma de pensar o tempo
no tratamento e na escolha/organização das fotografias que com-
põem um acervo. Imagens fotográficas captam instantes que são
aceitos ou recusados, postos de lado ou incorporados à narrativa da
memória. A fotografia convoca a esta materialidade do tempo vivi-
do, e à possibilidade de construção/desconstrução das narrativas
reveladas pela imagem.
Perguntaríamos quais seriam estes laços mais fluidos, retoman-
do o princípio das formas de sociabilidade de Simmel, que seguem
criando imagens e memórias no interior dos espaços sociais, para além
do estatuto de “testemunho da existência de pessoas, de lugares e de
paisagens” (Lins de Barros, 1989: p.39), comumente dado à fotografia?
A distinção que Michel Maffesoli recupera entre formismo e
formalismo, conceitos respectivamente inspirados em Simmel e
Durkheim, nos faz compreender a sociabilidade da vida urbana como
impregnada de uma diversidade de formas sociais as quais contras-
tam com o formalismo discursivo atuante sobre esses espaços, vei-
culados pelos grandiosos projetos arquitetônicos os quais
redimensionam a “pequenez” da vida cotidiana em grandes escalas
de equipamentos urbanos.
Seguindo os estudos de Gilbert Durand (2002) sobre o imagi-
112
nário, podemos falar em imagens que sobredeterminam outras, con-
figurando práticas discursivas que conformam possíveis imagens
da memória desta cidade. Vemos que a representação em imagens
de uma cidade pode estar impregnada de um formalismo nos mo-
dos de ver e operar a linguagem visual, de forma a dar continuidade
a um certo discurso sobre os espaços urbanos habitados.
“Guardar na memória”:
desafios do fazer fotográfico documental
Retratar a memória de um bairro de Porto Alegre foi o objetivo
principal do projeto “Memória Fotográfica do Cristal4”. Encaminhado
a partir de uma demanda comunitária – leia-se de um grupo articula-
do e atuante de mulheres de meia e terceira idade –, o projeto expres-
sava uma preocupação em compor uma memória visual do bairro frente
às correntes transformações urbanas em curso no espaço.
Os desafios do projeto eram muitos. Converter em imagens
fotográficas uma memória de muitas vozes e continuamente atuali-
zada no presente era o principal deles. Especialmente porque o gru-
po demandava um trabalho fotográfico “profissional”, ou seja, reali-
zado por alguém de fora da comunidade, e não, como inicialmente
pensávamos, pelos próprios moradores. Olhar de fora os olhares de
dentro. Partimos em busca de imagens criativas e autorais do Cristal,
associadas a uma tentativa etnográfica de compreender os “quadros
sociais da memória” (Halbwachs, 1990) dos moradores do bairro.
“O que entendemos por memória?”, foi uma das primeiras
4. O projeto “Memória Fotográfica do Cristal” consistia num livro de fotografiascom imagens do bairro Cristal. Foi uma demanda do Clube de Mães do Cristal àComissão de Cultura da cidade de Porto Alegre, e viabilizado por uma parceriaentre o Clube, a Descentralização da Cultura e a Coordenação da Memória/SMC.
113
indagações do grupo de mulheres na busca por um delineamento
do projeto que orientasse o trabalho da equipe5. Ainda que cada
uma remetesse à imagens por vezes coincidentes, por vezes discor-
dantes, estava claro que as imagens da memória para este grupo em
nada lembravam as transformações em curso. Eram imagens da
orla, dos maricás floridos, das corridas no Jockey Clube, das ruínas
do Estaleiro Só, da figueira, das vilas que entremeavam o desenho
do bairro com seus casebres e carroças. Ingressávamos, assim, nos
“jogos da memória” (Eckert e Rocha, 2005) de um grupo, mas que
também incluía as projeções de uma cidade que altera sua forma,
que cresce às custas da metamorfose de paisagens e usos cotidia-
nos, nos quais os interesses de distintos grupos embaralham-se e
orientam novas práticas sociais.
A vontade de fixar estas imagens em um livro, mostrava não
só uma ação política de protesto frente às transformações em cur-
so, mas também o desejo de preservar em imagens fotográficas a
ação do tempo sobre a instável matéria da paisagem urbana. Na
contramão da corrente de imagens que aludiam à chegada do “mito
do progresso” (Durand apud Rocha, 2001) no bairro, a publicação
de um livro que contemplasse as “imagens da memória” trazia a
tona uma luta pelas imagens que se busca guardar. Durante o período
do trabalho de campo6 eram veiculadas sistematicamente pela mídia
e espaços publicitários imagens referidas a um “novo” Cristal, envolto
em grandes empreendimentos culturais e comerciais que prometiam
deixar para trás os loteamentos e vilas irregulares que até então
5. A equipe era formada por Fernanda Rechenberg (fotografia), Janaína Bechlere Jefferson Pinheiro (entrevistas e texto) e Rafael Corrêa (diagramação).6. Realizado de janeiro a setembro de 2008.
114
caracterizavam o bairro. Chegava o tempo de uma nova valorização
dos espaços, denotada pela intensa especulação imobiliária que pas-
sava a destacar a face “nobre” do bairro, com o objetivo de atrair
camadas médias e altas.
Percorremos, durante 6 meses, os espaços e as práticas a eles
associados no bairro, inspirados em uma “etnografia de rua”, “com a
câmera na mão” (Eckert e Rocha, 2001). Nestes percursos, formáva-
mos nosso conhecimento sobre a vida urbana e os processos de
transformação do Cristal através das imagens que produzíamos, onde
obter fotografias era sempre o “mote” para uma conversa e a análise
posterior dessas imagens nos permitia formar um quadro amplo do
impacto das transformações no cotidiano desses habitantes.
Estávamos, ao percorrer as ruas, ladeiras, praças e becos do Cris-
tal, “pensando o tempo”, para usar uma expressão cara à Bachelard,
um pensar que organizava a experiência temporal embaralhada pela
subjetividade intrínseca de uma equipe em busca de imagens, a qual
revia as suas próprias imagens na experiência urbana que constituía
cada integrante enquanto habitante da mesma cidade. As nossas
“enunciações pedestres” (De Certeau, 1994), filiavam-se a outros
espaços da cidade: tínhamos, portanto, um olhar “estrangeiro” ao bairro,
propondo desenhos possíveis das imagens da memória.
Percorrendo o bairro em busca de imagens buscávamos se-
guir uma “etnografia da duração” (Eckert e Rocha, 2005), a qual, à
diferença de uma etnografia da lembrança do passado, acolhe as
ondulações rítmicas do pensar em relação ao tempo vivido. Os
trajetos percorridos em campo, orientados pelos caminhos da
memória do grupo de senhoras, só adquiriam substância e
materialidade pelo desejo presente de lembrar, frente ao testemu-
115
nho fotográfico, algumas das tantas faces do bairro. O tempo cap-
tado pelas lentes da câmera não era congelado nem cessava de trans-
correr depois de acionado o obturador. As imagens “duravam” jus-
tamente porque não cessavam de vibrar; a matéria fotográfica é,
mesmo em sua aparente “fixidez”, sujeita às oscilações do tempo.
Falamos de um trabalho fotográfico “documental”, mas não
pela tentativa de representar na imagem o referencial concreto do
“mundo real” dos habitantes do Cristal. Documental sim, por teste-
munhar instantes de um tempo em vibração, interpretando paisa-
gens, pessoas e práticas que em pouco tempo estariam desapareci-
das, transformadas, esquecidas até. Documentar fotograficamente
as imagens da memória de um grupo social é apenas uma aproxi-
mação possível entre “dois mundos”. Para além da conhecida dis-
tância etnográfica que pauta a relação entre pesquisador e
pesquisado, falamos de diferentes adesões a conjuntos de imagens.
O fotógrafo traz consigo filiações que revelam estéticas fotográficas
particulares, guardando, em sua memória, um conjunto de ima-
gens e uma “forma” de compor essas imagens que seja potencial-
mente interpretativa da memória do grupo. Por outro lado, a me-
mória coletiva que entrelaça os informantes organiza-se a partir da
“fonte inesgotável de idéias e imagens” na luta contra a dissolução
no tempo. Embebida na “função fantástica”, a memória organiza
esteticamente a recordação (Durand, 2002).
Ao escolhermos o tema da memória para pensar o processo
de obtenção de imagens, percebemos que a documentação fotográ-
fica é sempre uma possibilidade e nunca uma representação abso-
luta do referente. Como aponta Durand a respeito do aspecto ocu-
lar da imagem no contexto das artes fotográficas, “a contemplação
116
do mundo é já a transformação do objeto” (2002: p.409). As foto-
grafias são portadoras de construções simbólicas particulares que
engendram tradições do campo da fotografia, dos campos de co-
nhecimento de adesão do fotógrafo, da configuração ambiental e
social que se disponibiliza ao retrato, e em alguns casos, da busca
etnográfica por uma aproximação entre os diferentes olhares que
se debruçam sobre um tema comum.
117
Referências
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119
Um sonho de cidade e uma soma de rupturasEstudo sobre os conflitos nos processos
de gestão urbana em Porto Alegre
Jeniffer Cuty
Introdução
Porto Alegre, como outras capitais brasileiras, vem atraves-
sando uma revisão da sua lei urbanística, a qual é responsável pelas
diferentes configurações de traçados e de arquiteturas na cidade. O
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental vigora na
capital gaúcha desde 1999, representando muito mais do que um
conjunto de normas, de modelos espaciais e representações
esquemáticas para o desenvolvimento do Município, pois carrega
uma forte intenção conceitual e também processual. A
complementação e a revisão de planos compõem apenas uma face
do planejamento urbano, a qual permanece ou se renova até a pro-
posta de uma nova lei, tendo em vista que aquela que está em vigor
deverá se tornar obsoleta ou inadequada às demandas e às caracte-
rísticas assumidas pela cidade. Nesse sentido, pensamos aqui na
duração conceitual e projetual do processo de reavaliação normativa,
até esgotar-se ou encaminhar-se para um novo projeto urbano e
social, definindo o modelo de uma “nova cidade”.
Nesse sentido, este trabalho propõe pensar o planejamento
urbano na cidade de Porto Alegre e a atuação dos agentes respon-
120
sáveis pela gestão urbana a partir da perspectiva do conflito e das
tensões observadas, entre forma e conteúdo (Simmel, 1983), em
espaços políticos de discussão voltados para o exercício de sonhar
coletivamente a cidade que se tem e que se quer. Entendendo-se que
a construção da cidade e da realidade implica em um processo de
negociação entre indivíduos e grupos sociais e que o princípio do
planejamento urbano sugere continuidade e agilidade na sua con-
dução, detectam-se rupturas importantes nessa tessitura projetual,
por conta de polarizações político-partidárias, portanto ideológicas,
as quais vinculam o tempo de ação do planejador ao tempo da ges-
tão pública e ainda pela coexistência de interesses e tendências
propositivas particulares destinadas a solucionar as questões urba-
nas. A revisão desses “contínuos atos” de planejar a cidade – na sua
origem e no seu processo atual – através da investigação dos atores
e dos grupos sociais diretamente envolvidos, pode contribuir para a
compreensão de aspectos da sociedade e da cultura, bem como da
possibilidade ou não de execução de análises e diagnósticos
ambientais e projetos urbanos em diferentes escalas. Para tanto,
utiliza-se como estudo de caso a observação realizada em painéis,
oficinas e reuniões de técnicos em Porto Alegre, durante as discus-
sões sobre a construção da cidade do futuro (em fórum realizado
entre maio e julho de 2008) e o encaminhamento da criação de um
instituto voltado à pesquisa e à cooperação técnica no âmbito do
planejamento urbano porto-alegrense. Como referencial teórico,
propõe-se trabalhar com os estudos de conflito e tragédia da cultura de
Simmel, com as reflexões sobre experiência a partir da obra de Benja-
min, com a dialética da duração de Bachelard e com a noção de cidade
como experiência temporal e a possibilidade de investigação do planeja-
121
mento urbano a partir de uma etnografia da duração proposta por
Eckert & Rocha. Retoma-se ainda a leitura de Halbwachs, a fim de
aproximar este trabalho aos estudos de memória coletiva.
Interação e troca de experiências entre técnicos
Com o objetivo de refletir a atuação técnica nos processos de
gestão urbana em Porto Alegre e seus conflitos internos, detive-me
por três meses na observação de espaços de debate, como fóruns,
oficinas e reuniões em associações de classe. Entre elas, destaco a
observação realizada no Fórum “Porto Alegre: uma visão do futu-
ro”1 e nas reuniões que ocorreram paralelamente a este congresso,
a fim de explorar conceitualmente a formação e a conservação des-
ses espaços, os quais nos informam sobre práticas, discursos e ex-
periências do cotidiano de atores dedicados a traçar e sonhar estra-
tégias para o desenvolvimento da cidade.
Georg Simmel nos auxilia a refletir a configuração, a dinâmi-
ca e os conflitos dos espaços de discussão e de participação aqui
focalizados. Simmel refere-se a uma “estetização da vida social” na
identificação de formas, entre elas as “sociações reguladas por có-
digos de interação”, pensando, portanto, numa conceituação para
reuniões que ocorrem no IAB/RS2 e na AsBEA3, por exemplo, ou
1. O Fórum “Porto Alegre uma visão de futuro”, realizado entre maio e julhode 2008, teve como objetivo central debater entre técnicos, especialistas ecomunidade organizada, assuntos como Mobilidade urbana, Desenvolvimen-to econômico, Urbanismo sustentável, Dinâmica e estética urbana, em PortoAlegre, a fim de traçar novos caminhos para o desenvolvimento, o planeja-mento e a gestão urbana. Um dos principais encaminhamentos do fórum foi acriação de um Instituto de Planejamento Urbano em Porto Alegre.2. IAB/RS: Instituto dos Arquitetos do Brasil Departamento do Rio Grande do Sul.3. AsBEA: Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura.
122
mesmo no Fórum citado. O autor vai além da identificação dessas
formas, afirmando que ele “vê sociedade onde há reciprocidade”,
ou seja, interação e troca. Podemos então nos valer de sua teoria
para analisar os grupos técnicos incumbidos da tarefa de “solucio-
nar” obstáculos ao planejamento e à gestão urbanos, apresentar
propostas inovadoras e, assim, ir além da representação projetual
de cidades, configurando, entre si, sociedades com objetivos co-
muns entre seus membros.
Se, de um lado, observamos grupos ligados por relações mútu-
as, de outro questionamos o estímulo para a recorrência de sociações
formadas pelos mesmos técnicos discutindo os mesmos temas. Simmel
nos auxilia a resolver a questão sobre “o que é a sociedade” e a enten-
der como e por que ela se conserva, apontando para o prazer de estar
reunido, situação que provocaria o fenômeno da sociabilidade ou “a
forma lúdica de sociação” (Simmel, 2006: p.63). O autor refere-se
ainda a um “impulso de sociabilidade”, o qual “se desvencilha das
realidades da vida social e do mero processo de sociação como valor e
como felicidade, e constitui assim o que chamamos de sociabilidade
em sentido rigoroso” (Simmel, 2006: p.64). Voltar-se para esses am-
bientes de sociabilidade é refletir, inclusive, a necessidade de estar
sociado e de sentir-se parte do processo de decisão sobre os rumos da
cidade, mesmo que saibamos que muitas dessas propostas não terão
vitalidade técnica e política para serem aplicadas.
No primeiro espaço de discussão que observei, percebi gru-
pos de técnicos “falando a mesma língua” e exercitando, entre si,
suas capacidades de argumentação. Reunidos para discutir possí-
veis encaminhamentos acerca do “patrimônio urbano edificado”,
sentiam-se mais motivados a demonstrar seu conhecimento entre
123
si do que realmente partilhar propostas viáveis sobre o problema
em questão. Observei momentos de tensão, iluminando interesses
divergentes expostos na “visão de cidade” de cada um. Objetivos
contrapostos podem assinalar, conforme Simmel, “forças
integradoras do grupo que se forma”, concentrado nas discussões
por uma cidade a ser construída. Simmel defende que o conflito,
no interior do grupo social, deve ser cultivado a fim de “garantir
condições de sobrevivência”. A oposição de pontos de vista, nesse
sentido, “permite-nos colocar nossa força à prova conscientemente
e só dessa maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das
quais (...) nos afastaríamos a todo custo” (Simmel). Para ilustrar
esses momentos de divergência e conflito, descrevo trecho do meu
diário de campo escrito após a observação da oficina no Fórum:
O primeiro a falar no pequeno grupo que aderi, o ar-quiteto Tiago Holzmann da Silva, defendeu umareavaliação dos discursos sobre patrimônio, salientan-do que “esta prática seria mais importante que a ação”.Reservando-se ao que lhe pareceu coerente (mesmochamando discurso de prática), passou a palavra e bai-xou a cabeça – num gesto de quase indiferença com oque seria falado a seguir. Sem maiores digressões, o se-gundo a falar – o engenheiro e funcionário da Prefeitu-ra Marcelo Allet – expôs sua “visão objetiva” da cidadeque precisa de uma gestão eficiente, referindo-se a uma“equação econômica que deveria atingir os interessesgerais”, para, com isso, solucionar qualquer problemarelativo à preservação do patrimônio. Para ele, o maisimportante é entender que existe um sistema econômi-co e uma gestão pública “destoantes” e “tudo precisafuncionar como um bom negócio”. Lembrei das coloca-ções feitas na defesa que assisti no dia anterior, sobre omercado de arte e a logística empresarial que adminis-
124
tra grandes eventos, no caso, a Bienal do Mercosul. Se-ria possível pensar que, o empresário que investe emarte e na sua circulação está “imprimindo uma marcade competência e qualidade”, a qual o Estado (poderpúblico) não conseguiria realizar. Para este empresário,está tudo em perfeita ordem, em perfeito funcionamentoe o seu retorno nesse investimento está no prestígio daempresa, no cumprimento e na visibilidade de sua res-ponsabilidade social, sendo que tudo isso representa umótimo negócio. Estaria, então, este engenheiro do fórumsugerindo que as ações sobre o patrimônio materialpudessem (ou devessem) ser privatizadas ou, pelo me-nos, administradas pelo empresariado?
O conflito, segundo Simmel, assegura a continuidade e a con-
servação da forma e da sociedade. A tragédia, por outro lado, seria a
ameaça da impossibilidade de transformação, através da desagrega-
ção total dos grupos envolvidos e da impossibilidade de realização
de espaços de discussão e de construção coletiva, por mais que eles
pareçam se repetir (na sua forma e no seu conteúdo). Por tragédia
entende-se ainda a perda de tensão entre contrários, quando “so-
bra apenas um lado” político, a exemplo dos tempos de ditadura
militar no Brasil. Se observarmos as ações sobre a cidade e sobre
áreas de interesse cultural, poderíamos nos referir a objetivação da
cultura que se dá através de tombamentos de edificações ou mesmo
da fixação de determinadas “imagens” sobre áreas urbanas, luga-
res, grupos e indivíduos configurando também a chamada tragédia
da cultura sugerida por Simmel.
Outros aspectos a considerarmos nos “contínuos atos de pla-
nejar” e de refletir os processos coletivos, refere-se à experiência,
no sentido adotado por Walter Benjamin, dos técnicos imersos na
vivência e nos discursos da gestão urbana, bastante dispostos a com-
125
partilhar e mesmo narrar sua prática. Benjamin associa os textos
que tratam da experiência à noção de enfraquecimento, seja da aura
da obra de arte pelas muitas reproduções, pelo esvaziamento das
grandes narrativas e pela atrofia da experiência. Sobre isso, poderí-
amos destacar a prática política de reunir-se para “falar e sonhar
entre si” soluções urbanas como uma motivação e uma experiência
a ser transmitida. O importante, para garantir a transmissão e a
continuidade da própria idéia de planejamento é o exercício coleti-
vo de “estar reunido em um ambiente aparentemente participativo
e democrático”, o intercâmbio de experiências e a construção de
narrativas, as quais, para Benjamin, têm uma dimensão utilitária.
Essa utilidade pode consistir num ensinamento moral ou numa
sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida, de qual-
quer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos”
(Benjamin, 1989: p.200). Por sua vez, a conotação que Benjamin
dá ao conselho é inusitada: o conselho não seria propriamente uma
resposta a uma pergunta, mas algo que poderia permitir, favorecer
a continuidade de uma história que está se desenrolando e que po-
deria, portanto, tomar diversos caminhos.
A respeito do narrador que transmite sua experiência, que
provoca novos questionamentos e garante a conservação dos sabe-
res e da cultura, recupero a imagem da segunda reunião que obser-
vei, desta vez na “casa dos técnicos”, o Instituto de Arquitetos do
Brasil. Na ocasião, convidados e a Comissão de Urbanismo do IAB
estavam reunidos para analisar possibilidades de criação do Institu-
to de Planejamento Urbano em Porto Alegre, esboçado nas oficinas
do Fórum. Meu interesse estava focado em perceber determinismos
e outras características nas apresentações e no debate. Esse mo-
126
mento seria como um laboratório de avaliação das nuanças entre
comportamentos, ponderações e argumentações. A sala estava ocu-
pada com aproximadamente trinta pessoas, a maior parte arquite-
tos aposentados. A reunião se deu na forma de um painel, sendo
que o primeiro palestrante apresentou uma estrutura clara e defi-
nida do que seria o instituto em Porto Alegre:
O arquiteto Malinsky estava preparado com umPowerPoint que mostrava um projeto “quase executi-vo” de Instituto de Planejamento em Porto Alegre. Oesquema de criação do instituto era interessante, por-que partia de exemplos no Brasil e na Europa. Esta se-leção mereceria muitos parênteses e muitas notas derodapé, sobretudo para contextualizar os institutos noâmbito das administrações, da cultura urbana e políticade cada cidade (e país), da época de implantação de cadaum, de suas atribuições e vinculações. Malinsky salien-tou que conhecia melhor o exemplo estrangeiro (fran-cês) que os nacionais. Com a sua fala, muito me questi-onei sobre os determinismos da profissão do arquitetoque precisa apresentar sempre um discurso convincen-te sobre suas idéias e seus conceitos imaginados.(Diário de campo, 14 de julho de 2008)
Com essa performance, lembramos que o arquiteto, no seu dia-
a-dia, é aquele que imagina o tempo todo. Na formulação de um órgão
de planejamento, o técnico aqui descrito alinhava uma idéia e a defen-
de em público. Este momento de construção coletiva se transforma
num momento de convencimento coletivo. A experiência no trato do
que mostrar, como revelar e argumentar é fundamental para o êxito
do “projeto”, que, afinal, seria o resultado de uma pesquisa criteriosa,
do exercício de imaginação e de representação de quem o elabora.
Poderíamos, de um lado, colocar-nos atentos sobre a
127
especificidade de quem é aquele que está falando e o que exata-
mente está defendendo, mas nosso objetivo concentra-se em iden-
tificar práticas recorrentes e a conservação dos espaços de discus-
são entre técnicos. Nesse sentido, podemos nos valer dos estudos
de memória coletiva a partir da obra de Halbwachs, a fim de acres-
centarmos elementos a esta análise. Se pensarmos que a memória,
segundo Halbwachs, é um fenômeno social, não fixo, pois se dá na
interação com o outro, ou seja, é transmitido na reciprocidade da
vida social, podemos afirmar que ela é constituída por um grupo. O
grupo que partilha momentos de discussão, também reproduz suas
vivências entre si e com outros grupos. Isso nos leva a interpretar a
prática política de argumentação e convencimento.
Assim, de um lado, Benjamin nos fala sobre a transmissão de
saberes através da narração que se dá coletivamente, destacando
que as narrativas não têm como objetivo buscar “a verdade” de cada
narrador, nem a verdade contida na narrativa. De outro, Halbwachs
nos ensina que agregamos lembranças de outros indivíduos em nosso
conjunto de percepções do presente, fato que nos levaria a conside-
rar o produto coletivo de experiências compartilhadas e memórias
construídas. Assim, a qualidade e a complexidade de uma proposta
projetual (como a criação do referido instituto) estaria relacionada
à riqueza de experiência dos participantes desse processo, assim como
na capacidade e na predisposição ao seu compartilhamento. A ação
da memória ativada pelo convívio em grupos de discussão é funda-
mental para a conservação dos processos de gestão urbana.
128
Um processo ou múltiplos processos
de gestão urbana no Brasil?
Iniciamos esta reflexão sugerindo a avaliação dos processos (no
plural) de gestão urbana em Porto Alegre, tendo em vista que se
entende que coexistem espaços de discussão e participação distintos
na suas formas e nos seus conteúdos, contrastantes nos seus objetivos,
bem como nas suas formações coletivas, ao longo da construção das
reavaliações e proposições sobre a construção da cidade. O filósofo
Gaston Bachelard e seus estudos sobre a dialética da duração nos
abre novos focos de atenção investigativa no sentido de alertar para a
percepção de ritmos que constituem os fenômenos da duração. Para
Bachelard, parece “impossível não reconhecer a necessidade de basear
a vida complexa numa pluralidade de durações que não tem nem o
mesmo ritmo, nem a mesma solidez de encadeamento, nem o mesmo
poder de continuidade” (Bachelard). “Se o que dura mais é aquilo
que recomeça melhor, devemos assim encontrar em nosso caminho
a noção de ritmo como noção temporal fundamental” (Bachelard).
Preocupado em refletir a duração, Bachelard nos alerta para
perceber as ondulações do tempo e os ritmos compreendidos como
“sistemas de instantes, os quais nos provocam ressonâncias pro-
fundas, destoando de uma harmonia em andamento”. Com isso,
observamos que espaços de debate e momentos de reavaliação do
curso de projetos para a cidade representariam instantes que suge-
rem recomeços, com maior ou menor intensidade. A ritmanálise,
sugerida por Bachelard, seria um método ou uma a terapia eficaz
no trato da cidade e de sua gestão que esmorece com o tempo, por
falta de “vida rítmica” e de “uma atenção e um repouso-rítmico”
(Bachelard) ou ainda pela sua obsolescência. Os grupos sociados e
129
as propostas polêmicas são antídotos contra o esmorecimento, a
falta de habilidade no trato das “diversidades temporais bem regu-
ladas” (Bachelard). Podemos citar aqui a tese de Jane Jacobs, apre-
sentada em “Morte e Vida de Grandes Cidades”, que, em pleno auge
do modernismo implantado nos EUA, o qual difundia zoneamentos
rígidos e homogeneidades nas feições das cidades, defendeu, a ha-
bilidade do planejador em abordar e compreender a diversidade de uso
e ocupação dos espaços. “O ritmo das idéias e dos cantos comandaria
pouco a pouco o ritmo das coisas”, ou seja, as estratégias do plane-
jamento e de gestão das cidades expressas conceitualmente em
modelos gráficos, e os próprios movimentos utópicos indicariam
ritmos e mesmo conflitos conceituais nos processos de administra-
ção urbana. Há quem reclame da falta de utopias no urbanismo
atual, mas será que a falta não estaria na capacidade de perceber
utopias e outros ritmos?
130
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131
Memória, Experiência e Política daComunidade de Software Livre e
de Código Aberto Brasileira
Luis Felipe Rosado Murillo
Introdução
O olho vê, a lembrança revêA imaginação transvê
É preciso transver o mundo
Manuel de Barros, “Livro sobre Nada”
Em sua discussão sobre coletividades imaginadas e múltipla
autoria, Marilyn Strathern (2002) propôs um paralelo entre o ritu-
al funerário dos Malanggan em Papua Nova-Guiné e a produção de
tecnologia da informação livre e/ou de código aberto no que diz
respeito a uma economia de imagens mentais. O exemplo dos
Malanggan é ilustrativo de uma instituição melanésia que se funda
efetivamente com base no trabalho sobre a memória, virtualidade
implicada no ritual de mortos célebres que ajuda a sustentar a com-
posição/manutenção de coletivos melanésios. Destarte, o paralelo
aponta para a importância central da memória na vida social, uma
vez que ela é constitutiva da experiência dos agentes no trabalho de
tessitura, preservação/transformação de laços de sociabilidade.
Quais seriam, portanto, os aspectos pertinentes do ritual dos
132
Malanggan entre os Melanésios para pensarmos a memória do cole-
tivo de produtores, distribuidores e usuários de software livre e de
código aberto1? Em primeiro lugar, cumpre estabelecermos que a
analogia não almeja ao estabelecimento de um denominador co-
mum definitivo, já que ela está encarregada de permitir o estudo da
produção conceitual de um grupo e de outro com as suas
especificidades contextuais e históricas. O que particularmente nos
interessa para este ensaio não é a afirmação reducionista de que
tudo se resume ao estudo da memória e da imaginação, mas a in-
vestigação do trabalho sobre a memória e o que ela nos revela sobre
os processos de constituição/preservação/deslocamento das fron-
teiras da comunidade F/OSS. É somente nesse sentido que os estu-
dos sobre a Melanésia de Strathern (2001, 2002) servem como ins-
piração para o ingresso na problemática da memória e da socialidade.
A comparação entre o ritual mortuário da Nova Guiné com o
chamado “modelo Open Source” é fortuita, apesar de inusitada.
Como imagem de uma escultura construída em homenagem a um
falecido célebre da comunidade, o Mallangan circula entre os
melanésios, como afirma Strathern (2002: p.19), “através do tempo e
do espaço, da mesma forma como os códigos de programas de computador
circulam em redes de pessoas”, coletivos e suportes computacionais da
comunidade de software livre e de código aberto. Outro elemento
de comparação é o de que um determinado saber-fazer é requerido
para a criação do Malanggan, assim como o fato de que a criação
parte da memória do experiente criador que carrega consigo ima-
gens-lembrança de outros Malanggans. Já que o paralelo não pode
1. Doravante F/OSS (do inglês Free and/or Open Source Software), expressão em-pregada em grande parte da bibliografia sobre o tema.
133
ser levado adiante pois as similaridades entre a economia de código
aberto e de imagens mentais para a criação ritual de esculturas na
Melanésia terminam aqui, gostaríamos, ainda, de sugerir que, se o
Malanggan é uma tecnologia, ele demonstra o papel da atividade
intelectual e memorial e mantém, sob esse aspecto, um ponto de
convergência com a produção e distribuição de F/OSS no que diz
respeito à centralidade da experiência.
Sob os eixos da experiência e da política, apresentaremos res-
pectiva e brevemente duas posições no debate sobre a memória: a
discursiva e a hermenêutica, procurando apontar quais são as suas
potencialidades e no que ambas contribuem para o presente estudo –
ainda que estejam marcadas em suas raízes por incompatibilidades
de ordem epistemológica. Em um segundo momento, procederemos
com a discussão sobre a comunidade de software livre e de código
aberto brasileira procurando evidenciar o papel da memória para a
criação, manutenção e deslocamento de suas fronteiras constitutivas.
Abordagens da Memória
Ouvir [uma palavra] produzuma ressonância atávica dentro de mim
Manuel de Barros, “Livro sobre Nada”
No que diz respeito ao estudo das relações entre memória e
sociedade, o trabalho “Os Quadros Sociais da Memória” de Maurice
Halbwachs é um clássico fundador. Ao superar a abordagem
subjetivista Henri Bergson, o autor lança as bases de uma sociolo-
gia da memória, inaugurando também uma via para os estudos do
134
cotidiano. É através de sua abordagem sociológica que a noção de
memória atinge o ponto de não-retorno em relação ao tratamento
bergsoniano que lhe precede: ao invés de postular uma definição
idealista, qual seja, a memória como repositório da totalidade das
imagens-lembrança dos sujeitos, ela passa a ser assumida como ati-
vidade coletiva de reconstrução do passado.
Sob o postulado durkhemiano – no âmbito da teoria do co-
nhecimento – de que os sistemas de classificação tem origem no
social, Halbwachs ancora a sua discussão da reconstrução sócio-
simbólica da memória. Segundo Sauborin (1997), é o conceito de
memória coletiva que permite redefinir o campo de estudos
durkheimianos de morfologia social. A redefinição caracterizou “con-
juntos sociais como totalidades parciais” (ibidem, p. 10, tradução mi-
nha), com a memória coletiva organizada em quadros sociais a de-
finir pertenças e externalidades. Para o estudo contemporâneo da
memória e da sociabilidade, por conseguinte, a transformação do
conceito de morfologia social teve conseqüências importantes, já
que contribuiu para lançar as bases de uma abordagem da
heterogeneidade da vida social “ao colocar em jogo as noções de tempo e
espaço social” (Saborin, 1997). Assume-se que há uma multiplicidade
do tempo social na justa medida em que indivíduos são sujeitos de
múltiplas discursividades e, igualmente, de múltiplas experiências.
É a conjunção, afirma Saborin, “da linguagem, do espaço-tempo, que é a
chave da delimitação da morfologia das relações sociais e se diferencia da
morfologia social no sentido tradicional como formando um outro nível de
objetivação. Dentro da ordem da rememoração, a multiplicidade dos referen-
tes da linguagem, do tempo e do espaço social assumem a forma de uma
problemática” (ibidem, tradução minha).
135
Com vistas ao tratamento analítico ou filosófico da problemá-
tica da multiplicidade dos sentidos e da experiência, duas perspecti-
vas contemporâneas estão referidas à memória, desde matrizes dis-
ciplinares distintas2. A primeira delas é a análise de discurso, marcada
pela preocupação com a relação entre linguagem, história e poder,
cujas origens remontam ao paradigma estruturalista francês e, em
seus avanços, à superação dos problemas legados pela abordagem
estrutural, tais como o fechamento do universo dos signos. A se-
gunda perspectiva – de caráter hermenêutico – está referida ao tra-
balho filosófico de elaboração de uma teoria da interpretação com-
binada com a fenomenologia. Ambas ocuparam-se dos limites do
estruturalismo, tendo oferecido respostas que apontam para a aber-
tura do universo dos signos em direção à investigação da experiên-
cia e da linguagem no caso da hermenêutica, e da linguagem e de
suas condições históricas de produção para a perspectiva discursiva.
2. É preciso clarificar o que referimos por perspectiva discursiva e hermenêuticaneste ensaio. Para que a definição de discurso como ponto de encontro entreuma memória e uma atualidade fosse elaborada, um intenso teórico-metodológico teve de ser levado a cabo pelo grupo do filósofo Michel Pêcheuxna França da metade dos anos sessenta até o início dos anos 80, com base nomarxismo relido por Althusser, no estruturalismo lingüístico de Saussure ena psicanálise de Lacan. Também assumiu uma grande centralidade nessa cor-rente o trabalho arqueológico de Michel Foucault, sobretudo a “Arqueologiado Saber” de 1969 com sua proposta de análise “das condições históricas doexercício da função enunciativa”. Outros desenvolvimentos posteriores quetambém carregam o nome de “análise de discurso” tiveram origem na Ingla-terra sob o título de Critical Discourse Analysis através dos trabalhos de Fairclough(1989) sob influência de Gramsci, da semiótica social de M.A.K. Halliday, dointeracionismo simbólico e da análise da conversação, além dos trabalhos daescola francesa e da arqueologia de Foucault. Ao deixar em suspenso as in-compatibilidades de ordem epistemológica, é-nos permitido afirmar que to-das as tendências em análise de discurso guardam entre si a proposta dehistoricização das práticas de linguagem com vistas ao desvelamento de rela-ções de poder e dominação. Por sua vez, a perspectiva hermenêutica em dis-
136
Resta a pergunta contudo: no que ambas definitivamente contri-
buem para a discussão sobre a memória?
A noção de “memória discursiva” teve origem no trabalho de
J. J. Courtine (1981) sobre o discurso comunista dirigido aos cris-
tãos. Como ponto de partida,“se aceitarmos a idéia de que a linguagem é
o tecido da memória, ou seja, sua modalidade de existência histórica essencial
[...], (Courtine, 1994 apud Paveau, 2008), a análise estará voltada
para o acontecimento de retorno de enunciados provenientes do
plano da memória (coletiva, discursiva). O domínio da memória é
assumido como um plano virtual, lacunar e segmentado por toma-
das de posição. A sua composição é a de uma rede de redes
discursivas. Nesta perspectiva, todo o discurso “marca a possibilidade
de desestruturação-reestruturação [das redes de memória, sendo] um índice
cussão neste ensaio faz referência à filosofia de Paul Ricoeur (1989, 1994),cujo foco está voltado para a narratividade como processo ativo de trazer paraa linguagem a experiência humana do tempo. À diferença da abordagemdiscursiva, a ênfase está colocada na experiência efetiva de estar no mundocomo condição primeira das práticas de linguagem. Está no horizonte dahermenêutica a busca do sentido oculto nos textos – um trabalho que pressu-põe o sentido com conteúdo e a intencionalidade por trás da manifestaçãolinguageira como sua condição de base. Como evidência do conflito entre asduas abordagens em uma nota de seu texto “Discurso: Estrutura ou Aconte-cimento”, Michel Pêcheux aponta a distinção: “Uma vez que foi posto fogo emuma granja, a propagação do incêndio depende da estrutura do madeiramento e dasaberturas, da natureza e da disposição dos materiais e dos objetos que ela contém, dadireção do vento, etc. e não da vontade expressa pelo incendiário, de suas imprecações,palavras de vingança, etc.” (Pêcheux, 1990: 63, ênfase adicionada). Nem o céu,nem a terra: para além do objetivismo discursivo que estuda o discurso a partirdo descentramento dos sujeitos e do subjetivismo fenomenológico que se centranos problemas da consciência e de sua conexão com o mundo, faz-se necessá-rio percorrer a via da restituição da agência para os sujeitos sem abandonar ainvestigação do lugar do político na linguagem. Para uma discussão compara-tiva entre Hermenêutica e Análise de Discurso a respeito da definição de inter-pretação e do tratamento da relação estrutura-evento, ver Carvalho, 2004.
137
potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na
medida em que ele constitui ao mesmo tempo o efeito dessas filiações e um
trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de
todo o modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento
no seu espaço” (Pêcheux, 1990: p.56).
Como fundador da abordagem da memória enquanto domí-
nio virtual, Henri Bergson inaugura uma investigação
fenomenológica da lembrança, postulando que a memória está sem-
pre presente en absentia e implicada virtualmente na percepção hu-
mana. Da afirmação de que “toda percepção já é memória” (Bergson,
1999: p.176), depreende-se que a ênfase é colocada na ação
perceptiva, quer dizer, “no corpo orientado para ação” (ibidem, p.209).
Daí o grande mérito da abordagem pioneira de Bergson que garante,
para além do idealismo de sua proposta, a abertura de um campo de
estudos para a investigação de um domínio próprio da memória.
Do fio condutor que se inicia em Bergson, passa pela
reformulação sociológica de Halbwachs e encontra o tratamento
discursivo da escola francesa, permanece como nexo a defesa do
domínio ontológico da memória. Em Análise de Discurso, uma das
condições fundamentais do trabalho analítico está dada pela carac-
terização do espaço da memória dos dizeres que marca adesões,
reformulações, apagamentos no fio do discurso (intradiscurso). Ao
contrário de Bergson, no entanto, a ênfase da análise de discurso
não está voltada para uma ação consciente, trabalho que se desen-
volve no espírito e no campo perceptivo através da união, como
defende Bergson, das “coisas que agem sobre mim e [d]as coisas sobre as
quais eu ajo”, interligando, pois, a totalidade virtual da memória
(memória pura, repositório das lembranças) e a memória atual do
138
corpo presente. Se, para Bergson, o passado (já percebido) só retorna
sob a determinação de uma percepção presente, fazendo a ligação e
evidenciando a tensão entre os dois domínios interdependentes da
percepção objetiva e da lembrança subjetiva no conhecimento das
coisas, esta só se realiza através de uma concepção na qual “o passado
se conserva inteira e independentemente no espírito e o seu modo próprio de
existência no modo inconsciente” (Deleuze, 1999). Para a análise de dis-
curso, por sua vez, o interdiscurso3 preenche o lugar de base das
memórias e de pré-condição dos dizeres, sob o imperativo teórico-
metodológico do descentramento dos sujeitos e da afirmação de sua
determinação histórica, estabelecendo definitiva e necessariamente a
articulação entre a linguagem, o inconsciente e o político (histórico).
O lugar da hermenêutica fenomenológica de Ricoeur no deba-
te sobre a memória é bastante peculiar, pois ela se ocupa da relação
entre o vivido e a linguagem com o objetivo trabalhar [n]a própria
tensão entre sujeito e objeto. Para o autor, a realidade humana para
ser estudada exige a mobilização da interpretação hermenêutica e da
descrição fenomenológica pela via da investigação do sentido e da
intencionalidade. A aposta fundamental é a de que através de um
exercício interpretativo é possível chegar até a questão da existência,
pois o ponto de partida fenomenológico, no que diz respeito à lin-
guagem, assume serem expressões da vida e da experiência humana
do tempo textos, documentos e narrativas. A hermenêutica de Ricoeur,
3. Para J.J. Courtine, o interdiscurso pode ser definido como “uma série deformulações marcando, cada uma, enunciações distintas e dispersas, articulando-se en-tre elas em formas linguísticas determinadas (citando-se, repetindo-se, parafraseando-se, opondo-se entre si, transformando-se). É neste espaço interdiscursivo que se poderiadenominar segundo Michel Foucault domínio da memória que constitui a exterioridadedo enunciável para o sujeito enunciador na formação dos enunciados ‘pré-construídos’ deque sua enunciação apropria-se” (Courtine, 1998: p.18).
139
portanto, coloca-se a tarefa de “reconstruir o arco inteiro das operações
pelas quais a experiência prática se dá obras, autores, leitores” (Ricoeur, 1994:
p.86). No que consiste, por conseguinte, esse arco das operações?
Voltado primeiramente para a narrativa, trabalhada desde a hi-
pótese de base de que “o tempo só se torna humano na medida em que é
articulado em um modo narrativo” (ibidem, p.85), o autor defende um
modelo interpretativo que se ocupa da relação entre a atividade de
narrar histórias e o caráter temporal da experiência. Esta relação é
teorizada como a tríplice mimesis com base no problema da experi-
ência do tempo em Sto. Agostinho e na análise de composições nar-
rativas, extraída da Poética de Aristóteles. Ao desafiar a concepção
cronológica do tempo, o presente é implodido em um tríplice pre-
sente – o presente do passado (memória), o presente do presente
(atenção) e o presente do futuro (espera), sendo que a “narração im-
plica memória, previsão implica espera [...] e é graças a espera que as coisas
futuras estão presentes a nós como porvir” (Ricoeur, 199x: p.27). A tríplice
mimesis compreende três momentos: I. experiência prática, na qual
aspectos temporais são pré-figurados em memória; II. tessitura da
narrativa, configuração com base em elementos pré-figurados; e, por
fim, III. Leitura, em que entra em cena a refiguração com a combina-
ção, conforme os próprios termos do autor, do mundo do texto e do
mundo do leitor. Os três momentos correspondem a uma “síntese do
heterogêneo”, pensada como articulação prática: pois, “o que importa
é a maneira pela qual a práxis cotidiana ordena, um em relação ao outro, o
presente do futuro, o presente do passado, o presente do presente. Porque é essa
articulação prática que constitui o indutor mais elementar” (ibidem, p.96)
das práticas de linguagem segundo Paul Ricoeur.
Em suma, para hermenêutica a experiência é anterior à lin-
140
guagem, ela representa o seu fundamento – o telos da linguagem é a
comunicação da experiência4. Para a análise de discurso de linha fran-
cesa (em busca do estudo das determinações de ordem inconsciente
e histórica), a linguagem é anterior à experiência. É através do dis-
curso, como ponto de encontro entre estrutura (da língua) e evento,
que a experiência é passível de ser significada. Se existe para a abor-
dagem hermenêutica uma centralidade do sujeito da experiência, na
análise de discurso a tônica é a do descentramento dos sujeitos da
consciência, o que rendeu a seus teóricos, ainda no período de vigên-
cia do estruturalismo na França, o rótulo de “anti-humanistas”.
Sem a pretensão de combinar as duas abordagens e sem procu-
rar exaustivamente elencar seus pontos de convergência e divergên-
cia, o objetivo da exposição anterior e daquela que se segue é o de
empregar no estudo da comunidade brasileira de software livre e de
código aberto as potencialidades de ambas as abordagens no estudo da
memória: a importância do vivido e a dinâmica política da linguagem.
O que está sob investigação é a tomada de posição em relação ao
significado e a extensão possível do software livre, sua modularidade,
sua crítica, sua transformação – o que representa a concorrência colo-
cada em termos dos processos de objetivação que delimitam o que é
próprio e o que é exterior ao mundo do software livre. Os processos de
objetivação dizem respeito fundamentalmente à experiência e às to-
madas de posição em relação à memória dos dizeres e das práticas re-
lacionadas às tecnologias livres. Daí, duas dimensões podem ser explo-
radas: 1) a da oposição pública entre o livre e o proprietário que delimita
4. Segundo Ricoeur, “a linguagem não constitui um mundo para ela própria. Ela nãoé sequer um mundo. Porque estamos no mundo e somos afetados por situações, tentamosnele nos orientar por meio da compreensão e temos algo a dizer, uma experiência paralevar à linguagem e à partilhar” (Ricoeur, 1994: p.120).
141
o escopo das coisas-a-saber e das coisas-a-fazer no âmbito das
tecnologias livres e de código aberto; e 2) a perspectiva interna, assu-
mida neste ensaio, de procurar desvelar os processos nativos de afirma-
ção/negação/denegação (apagamento) das diferenças que são
constitutivas da experiência dos/das agentes da comunidade brasileira.
A Comunidade Brasileira de
Software Livre e de Código Aberto
Segundo Richard Stallman, o criador do Projeto GNU de
software livre, a primeira comunidade de compartilhamento de
software teria sido a do laboratório de Inteligência Artificial do MIT.
Desta experiência5 teriam sido extraídos os elementos para a com-
posição do núcleo-manifesto de uma economia de software livre:
“Quando eu comecei a trabalhar no laboratório de In-teligência Artificial do MIT em 1971, eu me tornei partede uma comunidade de compartilhamento de softwareque existiu por muitos anos. Compartilhar software nãoestava limitado a nossa comunidade em particular; istoé tão velho quanto os computadores, da mesma formaque compartilhar receitas é tão velho quanto cozinhar.Mas nós fizemos isto mais do que a maioria”.(Stallman, 1999: p.53, tradução minha).
5. É de grande interesse para a discussão o papel da memória nos atos de institui-ção da comunidade de software livre, já que é possível pensá-la nos termos dePollak acerca da relação entre o político, a história e a memória: “A memória, essaoperação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar,se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçarsentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes[...]. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições quecompõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mastambém as oposições irredutíveis” (Pollak, 1989:7). A descrição de Stallman do “xangrilátecnológico” que foi o laboratório de inteligência artificial do MIT é um sintomado trabalho cultural e político de reconstrução da memória.
142
Em 1984, um manifesto foi escrito e publicado por Stallman, dan-
do origem a uma nova proposta de produção, distribuição e utilização de
software livre. O manifesto GNU descrevia um cenário de crescente avan-
ço na comercialização de software – com a subseqüente criação de im-
pedimentos legais para o funcionamento de uma economia do dom en-
tre programadores –, e propunha uma nova economia cujo meio
circulante fosse a informação a ser manipulada livre e colaborativamente:
“Eu considero que a regra de ouro exige que se eu gostode um programa eu devo compartilhá-lo com outras pes-soas que gostam. Vendedores de Software querem dividiros usuários e conquistá-los, fazendo cada usuário con-cordar que não deve compartilhar com os outros. Eurecuso quebrar a solidariedade com outros usuáriosdessa forma, eu não posso em boa consciência assinarum termo de sigilo ou um acordo de licenciamento desoftware. Por anos, eu trabalhei no laboratório deinteligência artificial para resistir a tais tendências e outrasinospitalidades, mas eles acabaram indo longe demais:eu não podia permanecer em uma instituição onde taiscoisas eram feitas contra a minha vontade” (Stallman,Richard in “GNU Manifesto”, 1985 – acessado dia 13/10/2007, tradução minha e ênfase adicionada).
Foi, sobretudo, com a elaboração da licença GPL – General
Public License6, batizada e popularizada como Copyleft – que se ins-
6. A criação da GPL por Richard Stallman foi o produto de um contexto de mudançassubstanciais nas leis de propriedade intelectual nos EUA, sobretudo de 1976 à 1980.Antes de 1976, a prática comercial era dominada por segredos de fábrica e porproteção de patentes. Com a mudança das leis em 1976 e 1980, começou-se a fazeruso em larga escala da lei de direito autoral. Segundo Kelty (2008), os problemasneste contexto estavam relacionados à possibilidade de copyrightability, à definição desoftware per se e ao significado da infração do direito autoral de uma peça de software. Essasdimensões combinadas definiram o contexto da criação da primeira licença Copyleft.
143
tituiu a obrigatoriedade moral do compartilhamento e a negação de
qualquer tipo de aprisionamento da informação. As “4 liberdades”
descritas na definição do que é software livre são a expressão pri-
meira dessa orientação:
“O Software Livre se refere a quatro tipos de liberdade,para os usuários do software: a liberdade de executar oprograma, para qualquer propósito (liberdade no. 0); aliberdade de estudar como o programa funciona eadaptá-lo para as suas necessidades (liberdade no. 1);acesso ao código-fonte é um pré-requisito para estaliberdade; a liberdade de redistribuir cópias de modo quevocê possa ajudar ao seu próximo (liberdade no. 2); aliberdade de aperfeiçoar o programa, e liberar os seusaperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade sebeneficie (liberdade no. 3). acesso ao código-fonte é umpré-requisito para esta liberdade”. (Projeto GNU)7
Este ato primordial de instituição do software livre através de um
manifesto e de um instrumento jurídico específico, a licença GPL,
figura como discurso fundador, a partir do qual o enquadramento da
memória opera ativamente – mas não sem conflitos –, estabelecendo
pertenças e marcando distâncias entre os/as agentes.
Como conseqüência do crescimento da economia de software
livre e de sua popularização em escala global, um dos mais importan-
tes desdobramentos na história da comunidade foi o surgimento da
narrativa Open Source (código aberto) no final da década de noventa.
Ao propor a substituição da expressão “software livre” e das táticas
de propaganda de tecnologias de código aberto, os propositores do
Open Source almejavam desviar o foco das atenções do discurso pro-
7. Acessado dia 13/05/2005, http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt.html
144
fundamente moral de Richard Stallman. Segundo Tim O’Reilly,
do ponto de vista legal, ou seja, com base nas licenças de software
que instituem a “liberdade” e/ou o caráter “aberto” do código-fonte:
“As diferenças entre o Movimento de Software Livre e oMovimento de Código Aberto são mais amplas e maisfilosóficas. O Movimento de Software Livre tem comoseu objetivo primário a idéia de que todo software devesempre ser acompanhado de seu código fonte, com odireito do usuário de modificar e estender o código fonte.O Movimento de Código Aberto compartilha esseobjetivo, mas não o define como um direito moral,mas, pelo contrário, focaliza os benefícios prag-máticos do compartilhamento do fonte. Além domais, o Movimento de Software Livre é associado comapenas um único grupo de licenças, o GNU PublicLicense (GPL) e seus derivados, enquanto a definiçãode código aberto foi uma tentativa de capturar assimilitudes em um espectro de diferentes licenças. É umpouco mais inclusivo. Todas as licenças de software livresão código aberto, mas não todas as licenças de códigoaberto são software livre”. (Tim O’reilly, GNU.orgversus OpenSource.org8 – tradução e ênfase minhas).
Através do trabalho de imersão em campo, foi possível
experienciar o sentido das práticas de enquadramento da memória
da comunidade, ao mesmo tempo em que se tornou necessário
problematizar dicotomias superficiais entre a lógica comunitária (aber-
ta e/ou livre) e a lógica corporativa – oposição esta que se expressa em
diversas terminologias êmicas (“bazar” e catedral, livre e proprietário, có-
digo-fonte aberto e fechado, academia e monastério, filosófico e pragmático,
etc.). Com o aumento da circulação na Internet das posições pró-
8. http:/www.oreilly.com/pub/a/oreilly/ask_tim/2003/gnusource_0703.html –acessado dia 20/10/2006,
145
Open Source e com a visita ao Brasil do porta-voz dessa iniciativa,
Eric Raymond9, ao VI Fórum Internacional de Software Livre em
2005, manifestações começaram a emergir, problematizando a
pretensa unicidade do movimento de software livre:
“É que, assim, eu sou muito mais open source quesoftware livre porque eu sou técnica. Porque o queme atraiu para o software livre, mas eu gosto mais daidéia do open source, é um software de qualidade, sabe?Meu software é bom e eu vou abrir, e as pessoas quequiserem melhorar, se sintam a vontade. E eu vou ganharconhecimento. Eu estou dando o pouco conhecimentoque tenho para o mundo e ele retorna mais. Isso gerauma relação em cadeia em que os softwares vão ficandocada vez mais excelentes”. (S. G., LinuxChix Brasil,entrevista realizada dia 01/04/2005 – ênfase adicionada).
Com evidencia a repercussão local da narrativa Open Source, a
Internet enquanto meio fundamental das sociedades em rede – é
fundamental na dinâmica comunitária por conectar o global e o
local na produção do software livre e de código aberto, represen-
9. Em seu trabalho sobre a significância cultural do Software Livre, Keltyrealizou uma resgate histórico com o objetivo de mostrar as origens de umadiferença que marca definitivamente a comunidade em escala global: “FreeSoftware forked in 1998 when the term Open Source suddenly appeared (a term previouslyused only by the CIA to refer to unclassified sources of intelligence). The two termsresulted in two separate kinds of narratives: the first, regarding Free Software, stretchedback into the 1980s, promoting software freedom and resistance to proprietary software“hoarding,” as Richard Stallman, the head of the Free Software Foundation, refers to it;the second, regarding Open Source, was associated with the dotcom boom and theevangelism of the libertarian pro-business hacker Eric Raymond, who focused on theeconomic value and cost savings that Open Source Software represented, including thepragmatic (and polymathic) approach that governed the everyday use of Free Softwarein some of the largest online start-ups (Amazon, Yahoo!, HotWired, and others all“promoted” Free Software by using it to run their shops)” (Kelty, 2008: 99).
146
tando para as comunidades o espaço, por excelência, de experiênci-
as ativas de trabalho e interação.
Intimamente marcados pelo engajamento ativo e, por vezes,
profundamente distinto com as tecnologias da informação e pela
disputa em torno de símbolos como “liberdade” e “comunidade”,
as pessoas envolvidas segmentam um tecido de memória comum.
A política enquanto relação de força nos discursos está referida pre-
cisamente às tomadas de posição em relação a uma memória com-
partilhada, segmentada e disputada. Tais como nestas manifesta-
ções, recolhidas em uma lista de discussão de pessoas envolvidas
com a organização do IX Fórum Internacional de Software Livre,
realizado anualmente desde 2000 na cidade de Porto Alegre:
“O software livre é sim uma tecnologia, mas com fun-damentos ideológicos. O software livre somente estáonde está hoje porque foi idealizado a GPL, e esta é umadecisão política de garantir as 4 liberdades [...] Eu sousocialista, e to no movimento software livre porque juntocom muitas outras pessoas combatemos a alienaçãopolítica e queremos construir um sociedade mais justoe solidária” (E.R., projeto Casa Brasil, Governo Federal,04/30/2008, lista ASL.Org.)
“Ligar o Software Livre com movimentos sociais diversos écoisa da cabeça de quem os liga. Os criadores do SL nãopregam isso e não se interessam por isso. Eles querem queo SL dê certo. Se isso vai acontecer moral ou imoralmentena visão de outras pessoas, isso não é problema nosso [...]não sei de onde as pessoas tiram que o SL deveria ou algumavez foi contra capitalismo [...] desculpe, mas pra mim o SLe especialmente a GPL é a tradução do capitalismo natecnologia” (F.W., Associação Software Livre e Administra-dora de Sistemas para a Google, 04/29/2008, lista ASL.org.)
147
O debate bastante recorrente em torno da obrigatoriedade moral
do compartilhamento e/ou da superioridade técnica do software livre
ecoa nas manifestações de F.W., participante da Fundação Software
Livre / América Latina e administradora de redes da corporação Google,
e E.R., militante do Partido dos Trabalhadores e empregado do Minis-
tério da Cultura no setor de inclusão digital. Os exemplos expressam
distinções latentes e transpõem demarcações traçadas anteriormente
no plano internacional da comunidade. Para os defensores do movimento
de software livre, a injunção ao compartilhamento da informação precede
o momento de mercado, de disputa entre ofertas de software. Para os
adeptos do modelo de negócios de código aberto (open source), está em
jogo primeiramente a eficácia da tecnologia e o investimento em dife-
renciais competitivos que dizem respeito diretamente às práticas
colaborativas de produção de software de código aberto.
Para o caso da comunidade brasileira em específico, a expres-
são movimento de software livre suscita diferentes tomadas de posição,
tanto de um ponto de vista que privilegia trabalhos técnicos como
aquele voltado para o social, o filosófico (para utilizarmos a definição
empregada pelos agentes). Isto nos remete precisamente para o
ponto em que é possível evidenciar quão marcadas as manifesta-
ções estão na disputas que partem de agentes cuja experiência com
as tecnologias livres e/ou de código aberto é bastante distinta:
“Movimento de Software Livre? Eu diria que é politicagem.Quem realmente faz não fica falando bobagem. Politicagemporque quem realmente desenvolve software (Open source,software livre), geralmente não se envolve tanto com a polí-tica; se preocupa mais em fazer o seu, fazer e contribuir coma comunidade ao invés de fazer propaganda, ficar fazendo...enfim, ficar fazendo política” (E. G., CAcert, 04/06/2005).
148
“Eu vejo o movimento de software livre como uma se-mente de transformação social. Digamos que é o picovisível de um iceberg de mudança de forma de produzir.O movimento de software livre é uma força capaz de ins-tigar uma mudança na sociedade na forma de produzirconhecimento” (G. N., Projeto Debian. 03/06/2005).
“Neste momento, da forma como está se colocando noBrasil, só existe um movimento político. Não existe ummovimento da tecnologia em si. A visão minha é a per-cepção do próprio grupo de Slackware que vê as pessoasfazendo uso de software livre para ter um crescimentopolítico, não tem interesse nenhum com software livre.A gente vê isso diariamente, em diversos Estados, estaposição. Não tem a preocupação com o software livre e,sim, com política”. (B.K., Grupo de Usuários Slackware,01/06/2005).
“O movimento de software livre para mim hoje é a basede qualquer outra ação de expansão desses arranjos eco-nômicos para outros produtos e, conseqüentemente,para outras atividades da sociedade [...] E, quem sabe,um dia ter uma infra-estrutura social cultivada pelaspessoas em um regime de compartilhamento” (D.P.,Ministério da Cultura, 02/06/2005).
Através da leitura do espaço virtual da memória que acompa-
nha os enunciados precedentes, podemos afirmar que a expressão
“movimento” de software livre produz diferentes sentidos por sus-
citar memórias de agentes envolvidos de formas distintas com as
tecnologias. Em função da multiplicidade das experiências e de seu
potencial de agrupar, no Brasil, diferentes agentes com as mais va-
riadas trajetórias é que os enunciados servem de índice para uma
tensão que é característica da comunidade brasileira, entre o técni-
149
co e o não-técnico, entre o programador e o ativista:
“O ecossistema em torno do Open Source já é maduroo suficiente para impactar a industria e os usuários desoftware. Existe um crescente numero de soluções denegócio baseadas em Open Source entregando valor realpara as empresas. As organizações já olham eimplementam softwares Open Source sem os receiosde alguns anos atrás. O momento ideológico e radical jáficou para trás, e a razão e não a emoção estãodirecionando as estratégias de adoção de Open Source”(C.T. IBM Brasil10 – ênfase adicionada.)
“‘O momento ideológico e radical já ficou para trás, e arazão e não a emoção estão direcionando as estratégiasde adoção de Open Source’. Este trecho faz parecerque os motivos por trás do software livre foram produtosda emoção. É como dizer que a independência da Indiaaconteceu por razões emotivas. Bela forma de trataraspectos sociais importantes com descaso.” (Anônimo11
– ênfase adicionada.)
A despeito dos posicionamentos críticos, as divisões internas
da comunidade não implicam em ruptura a ponto de se constituir
em um diferente coletivo. Dentro de sua rede de trocas, marcando
adesões e distanciamentos em relação à memória do “movimento
de software livre”, e no do trabalho em prol da eficiência das
tecnologias Open Source –, a afirmação da existência ou não de um
10. Acessado dia 4 de Agosto, 2008, endereço:http://www.ibm.com/developerworks/blogs/pagectaurion?entry=ecossistema_open_-source_amadurecendo_r%C3%A1pidoreço:11. Acessado dia 4 de Agosto, 2008, endereço: http://www.ibm.com/developerworks/blogs/page/ctaurion?entry=ecossistema_open_s-ource_amadurecendo_r%C3%A1pido
150
movimento de software livre é discursivizado de forma recorrente como:
a sobreposição indevida do político ao técnico e/ou a adesão ao dis-
curso comunitário e colaborativo. As manifestações dos/das agen-
tes apresentadas até aqui referem-se, em seu funcionamento, à tra-
jetória dos agentes e à memória, largamente mobilizada e atualiza-
da, de coisas ditas e feitas (refeitas e ressignificadas). As regularida-
des observadas podem ser evidenciadas no evento de retorno de
enunciados (do plano da memória dos dizeres). Daí a negação da
política e reafirmação da técnica como índices de posicionamentos
críticos em torno de acontecimentos experimentados com diferen-
tes significados atribuídos. No processo de rememorar e atualizar
dizeres, o discurso fundador da GPL e da Iniciativa Open Source pré-
figuram um campo de possíveis que se transformam a partir da
experiência efetiva e diferenciada dos diferentes subgrupos que com-
põem o tecido sócio-técnico heterogêneo da comunidade brasilei-
ra. O lugar de instauradores de discursividade de Richard Stallman
e de Eric Raymond apresenta-se como pré-texto de um ativo pro-
cesso de tessitura de novos dizeres, tal como aparece na tensão en-
tre a política e a tecnologia. Nesse processo delinear fronteiras en-
tre a política e a técnica, além de elementos pré-figurados, também
participa da composição a espera: o horizonte os agentes antecipam
relacionados com as tecnologias livres e/ou de código aberto. Do
processo de composição resulta, enfim, a re-figuração, leitura do
que é dito e experimentado. Tal como em Ricoeur, o processo de
leitura é a abertura para um novo gesto interpretativo, abrindo e
reiniciando o processo da tríplice mimesis.
151
Referências
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CARVALHO, I. C. M. . Análise do discurso e hermenêutica: reflexões sobre a
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153
Horizontes urbanosPaisagem e imaginação no encontro etnográfico
Mabel Luz Zeballos Videla
O presente artigo é resultado do acompanhamento da
disciplina Individualismo, Sociabilidade e Memória no PPGAS –
UFRGS e trata-se de uma tentativa de articular parte da bibliografia
relativa a paisagem, espaço e imaginação nela trabalhada, com o
objetivo de construir um enquadre para a escuta e interlocução na
experiência etnográfica das diversas narrativas sobre a cidade e a
experiência de vida na cidade.
Desenvolvo pesquisa etnográfica junto aos moradores de uma
vila constituída em processo de loteamento irregular, invasão
individual e invasão coletiva organizada, e atualmente em vias de
regularização fundiária, na cidade de Porto Alegre: o Elo Dourado.
Objetivo compreender, através de suas práticas cotidianas e das suas
narrativas, as construções de memória coletiva que ali estão em jogo.
Penso o diálogo etnográfico como um “caminhar juntos” no esforço
de imaginar o espaço urbano tal como vivido pelos sujeitos do estudo.
Considero o papel do etnógrafo como narrador, ele mesmo
bosquejando mapas junto aos seus interlocutores e deslocando-se
com eles através de fronteiras e paisagens imaginárias. Neste sentido,
proponho uma reflexão teórico-metodológica sobre imaginação e
narratividade da e na cidade levando em conta fundamentalmente
154
os ensinamentos de Georg Simmel, Gaston Bachelard e Walter
Benjamin, e ancorada na minha experiência etnográfica.
Paisagem, Duração, Narrativa
Na concepção simmeleana de pessoa, e particularmente de
pessoa moderna, pode se ancorar uma reflexão sobre a cidade para
além de suas características físicas, integrando a ação dos indivíduos
e o tempo, ou melhor a duração (Bachelard, 1994), à concepção do
espaço urbano e dos deslocamentos nas cidades e entre cidades:
O homem não termina com os limites de seu corpo oua área que compreende sua atividade imediata. O âmbitoda pessoa é antes constituído pela soma de efeitos queemana dela temporal e espacialmente. Da mesmamaneira, uma cidade consiste em seus efeitos totais, quese estendem para além de seus limites imediatos.(Simmel, 1967: p.23)
Proponho assim uma abordagem do espaço urbano como
implicando a configuração e refiguração contínua de horizontes e
fronteiras imaginários nas práticas e narrativas de práticas espaciais
dos atores (Cf. Crapanzano, 2004; Munn, 2006).
A qualidade imaginária do horizonte assinalada por
Crapanzano (2004) permite pensar as fronteiras como marcas
ontológicas que supõem um “além” impossível de ser atingido. Não
se trata de pensar as fronteiras como limites a serem atravessados
ou transgredidos, mas deslocados. Esse “além do horizonte” oferece
possibilidades, desperta desejos, jogos de poder, medos. E as tentativas
por “domesticar” esse além apenas conseguem deslocar o horizonte
(Crapanzano, 2004). Se pensarmos o espaço urbano, do ponto de
155
vista dos indivíduos que nele moram, como um espaço no qual esses
indivíduos criam fronteiras e imaginam um “além” do espaço da
experiência cotidiana, podemos compreender como essas fronteiras
e horizontes são deslocáveis ou transponíveis na ação no tempo.
De outro lado, se pensarmos em termos de “espaços de
exclusão” dominados por poderes ou agências relativos não apenas
às ações contemporâneas de outros, mas também a ações ancestrais
tal como pensadas ou imaginadas por uma memória partilhada
(Munn, 2006), podemos nos aproximar às formas de constituição
das fronteiras no espaço urbano, e seus conseqüentes deslocamentos
na imaginação, na ação e no tempo.
Esta abordagem articula-se com a noção de paisagem tal como
entendida por Simmel (1996). Isto é, menos como um dado físico e
mais como uma operação simbólica através da qual a parte de um todo
se torna um conjunto independente, que se destaca do precedente e
reivindica seu direito em face dele (1996: p.17). Para se perceber uma
coisa tal como a paisagem – diz-nos Simmel – precisa-se ter uma
unidade, um conjunto percebido como tal pelo espírito. Tal como o
homem modela “um grupo de fenômenos” na categoria de paisagem,
esta implica uma visão de uma unidade fechada, se bastando a ela
mesma. No entanto, o homem tem uma “pré-ciência” da infinitude da
qual a paisagem é um recorte autonomizado, não sem uma certa
violência. Essa infinitude é para Simmel a natureza, entendida como
“a cadeia sem fim das coisas, o nascimento e o aniquilamento
ininterruptos das formas, a unidade fluida do vir-a-ser...” (1996: p.15).
Levando em conta que a própria idéia de natureza é historicamente
datada (Cf. Descola, 2005) mantenho uso do termo lendo-o em referência
ao mundo no qual o homem, em quanto espécie e em quanto indivíduo,
156
“é no tempo” ou devém na duração. Esse “ser no tempo” é entendido
aqui tal como Ricoeur (1994) o faz ao trazer o Dasein heideggeriano para
o interior do ato de narrar. A intratemporalidade, ou o ser-“no”-tempo,
exibe traços irredutíveis à representação do tempo linear. Ser-“no”-tempo
já é diferente de medir intervalos entre instantes-limites. É antes de mais
nada contar com o tempo, calcular. “Mas é porque contamos com o
tempo e fazemos cálculos que devemos recorrer à medida; não ao inverso.
Deve pois ser possível dar uma descrição existencial desse “contar com”
antes da medida que ele exige.” (Ricoeur, 1994: p.99)
Trata-se, como diz Bachelard, de compreender a diversidade
dos fenômenos temporais e de ter o ritmo como base da eficácia
temporal (1994: p.8). A duração é construída de ritmos e a
continuidade psíquica implica na multiplicidade de durações. Os
fenômenos temporais não “duram” todos do mesmo modo, e a
concepção de um tempo único apenas torna imperfeita nossa visão
dos fatos no tempo, ou melhor, do “ser na duração” (Cf. Bachelard,
1994). A multiplicidade da duração exprime-se através da ação dos
indivíduos no espaço. É precisamente através de uma imagem espacial
que Bachelard coloca a questão da descontinuidade e dos múltiplos
ritmos da duração (e do ser na duração). Ele nos diz (1994: p.8):
Diante desse campo humanizado [ao longo doscaminhos da Borgonha, junto às videiras], GastonRoupnel nos fez entender o lento ajuste das coisas edos tempos, a ação do espaço sobre o tempo e a reaçãodo tempo sobre o espaço. Com a mesma clareza comque delineia figuras de espaço, a planície arada nos delineiafiguras de duração; ela nos mostra o ritmo dos esforços humanos.O sulco do arado é o eixo temporal do trabalho e orepouso da noite é o limite do campo. [Minha ênfase]
157
Isto é, o espaço não é imóvel e permanente em contraste com
o dinamismo do tempo. O espaço deve ser pensado em relação à
ação no tempo e a continuidade dever ser entendida como metafórica
(Cf. Bachelard, 1994).
Essa qualidade metafórica da duração vincula-se aos paradoxos
entre tempo e narrativa, concordância e discordância, que segundo
Ricoeur (1994) resolvem-se, ao mesmo tempo que são evidenciados,
na tessitura da trama narrativa. E isto envolvendo certa violência
interpretativa, numa relação dialética entre narrativa e temporalidade:
nem a consonância narrativa é o simples triunfo da “ordem”, pois as
próprias intrigas coordenam distensão e intenção, nem a experiência
da temporalidade se reduz à simples discordância (Ricoeur, 1994).
Há na poética do ato narrativo um fazer com o tempo que
sintoniza com a poética do espaço tal como entendida por Bachelard
(1993). Desde que viso estudar configurações de memória na cidade,
em tanto processos imaginários, me aproximo a eles levando em conta
a concepção bachelardiana do ato poético, um ato sem passado que é
preciso abordar nessa novidade, no presente da imagem (Cf. Bachelard,
1993). Isto é, a imagem como símbolo remetendo para um “além”
que não é de caráter histórico, que faz explodir a linearidade do tempo
historicamente pensado e logicamente organizado em discursos.
É através de atos poéticos que os meus interlocutores
constroem uma continuidade para suas biografias na urbe, ligando
assim a problemática do tempo, do espaço e da imaginação em
narrativas que constituem uma memória partilhada. Assim, penso
a cidade como animada pelo “esforço dos habitantes de continuarem
no tempo, de viverem concretamente suas memórias pensadas”
(Rocha e Eckert, 2005: p.27), e a história dos indivíduos na cidade
158
como a história das situações que eles enfrentaram em seus territórios
(Rocha e Eckert, 2005: p.30).
Tentar compreender essa poética em funcionamento é o que a
interlocução etnográfica deve permitir. E nessa tarefa destaca-se a figura
do narrador, tanto na pessoa do etnógrafo quanto nas pessoas dos seus
interlocutores. No meu caso, moradores urbanos tanto eles quanto
eu. Pois, como diz Benjamin, a arte de narrar vincula-se à faculdade de
intercambiar experiências (1993: p.198). Na troca contínua de conversas
e nas caminhadas partilhadas como parte da pesquisa, os meus
interlocutores e eu vemo-nos envolvidos em múltiplas narrativas da
cidade. Nessas narrativas são jogados nossos horizontes imaginativos
(Cf. Crapanzano, 2004) em sua diversidade e em sua semelhança.
É nessa operação que as nossas trajetórias e experiências são
narradas em relação às paisagens da cidade, elas mesmas criadas e
recriadas a cada novo ato de narrar. Alimenta-se assim um universo
simbólico mais ou menos partilhado, conjuntos de imagens que
remetem para a memória da cidade, tessituras de intrigas das quais
participam todos os interlocutores, incluída a etnógrafa. Portanto,
entendo meu próprio papel como o lugar de narrador e de coisa
narrada. Seguindo Rocha e Eckert (2005: p.54):
Ironicamente, toda narrativa etnográfica pretendecapturar o movimento da vida vivida, sendo por elecapturada, tornando-se o antropólogo, tragicamente,preso desse encadeamento insondável do própriomovimento do tempo.
Trata-se pois, de pensar alguns dos processos de constituição
de paisagens imaginárias dos meus interlocutores através de uma
159
etnografia da duração (Cf. Rocha e Eckert, 2005), privilegiando a
figura do narrador que imprime na coisa narrada a sua marca vital
(Benjamin, 1993: p.205). Assim, entendo as falas partilhadas em
campo como carregadas de imagens e ritmos do ser na cidade. E
não apenas como as paisagens e as temporalidades dos sujeitos que
narram, mas como parte de experiências partilhadas, uma memória
coletiva da cidade. Pois, “o narrador assimila à sua substância mais
íntima aquilo que sabe por ouvir dizer” e sua experiência biográfica
transcende a experiência individual, sendo em grande parte uma
experiência alheia (Benjamin, 1993: p.221).
160
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161
“A praça é nossa, mas aqui é o meu lugar”Sociabilidade e cotidiano
entre um grupo de idosos habituésda praça Saldanha Marinho, Santa Maria, RS.
Rojane Brum Nunes
Introdução
O presente trabalho propõe tecer algumas reflexões acerca de
dados etnográficos obtidos através de observações participantes, re-
alizadas entre fevereiro e julho de 2008, junto a um grupo de idosos
habitués da Praça Saldanha Marinho, no centro da cidade de Santa
Maria, Rio Grande do Sul.
Tais reflexões serão realizadas à luz da bibliografia ministrada
na disciplina Individualismo, Sociabilidade e Memória, semestre
2008/01, no programa de pós-graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do sul – PPGAS/ UFRGS.
As referidas observações participantes se inserem na pesquisa
etnográfica que proponho realizar na minha dissertação de
mestrado, que busca apreender os usos, os sentidos, as práticas só-
cio-culturais e as formas de sociabilidade que esses idosos estabele-
cem em suas relações com um território específico – Praça Saldanha
Marinho, centro de Santa Maria – e de que modo essas questões se
relacionam com o processo de experienciar a velhice em um con-
texto urbano-contemporâneo.
162
Nesse sentido, eu também busco apreender as motivações sim-
bólicas envolvidas no processo de territorialização de um espaço
público, as estratégias de construção e manutenção de fronteiras
simbólicas e os vínculos de identidade e pertencimento que se con-
figuram a partir desse processo.
Sociabilidade e interação:
os “papéis sociais” no encontro etnográfico
Cabe aqui registrar que o título desse trabalho decorre da
minha primeira inserção em campo, na qual, ao pedir licença para
sentar em um dos bancos da praça, onde os idosos se reúnem, um
deles me respondeu: “Pois não! Sente-se! A praça é nossa, como dizem,
mas aqui é o meu lugar!” (Diário de campo, 09/02/2008).
O sociólogo Erving Goffman, um dos principais representan-
tes do Interacionismo Simbólico, ao focalizar as interações sociais,
considera que quando interagimos com outras pessoas estamos de-
sempenhando “papéis sociais”, o que demonstra o fato de estarmos
constantemente representando na vida social.
Goffman (1987) descreve o processo de interação através de
uma linguagem teatral, assinalando que essas representações, ori-
entadas por determinados modelos estabelecidos de conduta ideal,
configuram uma “cena social”, comportando duas equipes – a que
controla a ação ou o “espetáculo” – os atores – e a outra que se
definirá como “platéia”.
Embora a linguagem dramatúrgica de Goffmann utilize-se
de conceitos como “representação falsa”, “papéis sociais discrepan-
tes”, considero que à pesquisa antropológica não cabe averiguar a
veracidade desses conceitos e tampouco a das “fachadas sociais”
163
representadas pelos atores, mas, sim, buscar compreender as moti-
vações simbólicas que levam ao agenciamento, ao desempenho e à
manutenção de determinadas “fachadas” e “papéis sociais” no de-
correr das interações sociais.
Por outro lado, a complexidade da “cena social” dificulta clas-
sificar e delimitar quem são os “atores” e quem faz parte da “pla-
téia”, dado que segundo os próprios pressupostos teóricos do autor,
toda a interação social implica numa representação a partir de uma
“fachada” definida como:
“A fachada é a representação, a totalidade de atividades deum ator desenvolvida em um período de tempo, carac-terizada pela presença contínua do mesmo diante deum conjunto de observadores. A fachada é a aparelha-gem simbólica, utilizada habitualmente pelo ator, depropósito ou não, durante sua representação.”(Goffman, 1987: p.30)
O sociólogo assinala ainda que quando um ator está na pre-
sença de um público, a sua representação tende a incorporar e a
ilustrar os valores sociais oficialmente reconhecidos, incorporando
à sua atividade os signos que dão um brilho e um realce dramáticos
aos fatos que, ao contrário, poderiam passar despercebidos ou não
serem compreendidos.
“Uma vez adquirido o repertório simbólico apropriadoe familiarizado com a sua manutenção, pode-se utilizá-lo e dar brilho às representações cotidianas, lhes confe-rindo um estilo socialmente valorizado” (Goffman,1987: p.41).
164
A necessidade de uma “coerência de expressão”, durante as
representações do eu na vida cotidiana, faz surgir, segundo Goffman,
uma oposição essencial entre nosso “eu íntimo” e nosso “eu social”
(Goffman,1987: p.59).
As constatações desse autor sugerem que pensemos a
interação social que se constrói no encontro etnográfico, entre o
pesquisador e o seu grupo de pesquisa, enquanto uma “interação
face à face”, que se dá para ambos a partir da incorporação de “fa-
chadas” e do desempenho de “papéis sociais” e sob a perspectiva do
encontro entre essas “duas instâncias do eu” – o íntimo e o social.
Em uma observação participante, enquanto seu Augusto e
seu Luís conversavam, perguntei-lhes de onde eles se conheciam.
O seu Luís respondeu-me:
“Daqui da praça! Ficamos amigos aqui na rua mesmo. Jádemos muitas risadas por aqui! Mas, depois que soube que eleera irmão de um ex-colega meu, ficamos mais amigos ainda!Somos velhos amigos! E amigos velhos também [risos]. Mas,ele é muito mais velho do que eu, hein! [risos].”(Diário de campo, 21/05/2008).
O seu Augusto reagiu à provocação dizendo assim:
“Mas que esperança, é só o que me falta! Ah! É que hoje tu támais ‘engraçadinho’ainda por causa da visita [referindo-seà pesquisadora] né? Deixa estar, depois nós conversamos!”.(Diário de campo, 21/05/2008).
A partir dessas narrativas e à luz dos pressupostos
interacionistas de Erving Goffman, percebe-se que o grupo
pesquisado e o/a pesquisador/a enquanto atores sociais, desempe-
165
nham diferentes papéis no decorrer da interação social proporci-
onada pelo encontro etnográfico.
A sociabilidade como forma lúdica de sociação
Em uma determinada ida à campo eu perguntei aos idosos se
durante o período de realização da Feira do Livro, evento anual que
ocorre no mês de maio, nos arredores da Praça Saldanha Marinho,
eles não haviam sido privados de permanecer nos bancos que ocu-
pam costumeiramente, em função das instalações dos stands.
O seu Augusto disse-me o seguinte:
“Não! Aqui no nosso quadrilátero, no nosso ‘recanto dos ve-lhos’, eles não mexem! O Prefeito precisa de nós aqui, aquelapedra que estava ali adiante atrapalhando os pedestres, foi reti-rada porque nós avisamos a Prefeitura!”(Diário de Campo (21/05/2008).
O seu Luís, já apontado por seu Augusto como sendo “engra-
çadinho”, interpelou:
“Inclusive, o Pimenta [candidato à eleição municipal de2008] tá prometendo es tofar os nossos bancos! E de vermelho!Mas ele vai ter que estofar os bancos aqui do “recanto dos ve-lhos” de azul! Eu sou gremista! E se ele [Pimenta] não quiser,eu voto no Farret [outro candidato], ele é gremista, tenhocerteza! [risos].”(Diário de campo, 21/05/2008).
As “formas de sociabilidade” no mundo urbano, que assumem
o eixo central na proposta teórica de George Simmel, também po-
dem ser pensadas como formas nas quais se engendram diferentes
166
“papéis sociais” e “fachadas” a serem incorporadas pelos sujeitos.
Para Simmel (1983), a própria sociedade refere-se à interação
social, a qual surge a partir de certos impulsos ou em função de
certos propósitos.
Desse modo, tudo o que estiver presente nos indivíduos sob a
forma de impulso, interesse ou estado psíquico, engendrando ou me-
diando influências sobre os outros, são designadas por esse autor
enquanto conteúdo da sociação. Em si mesmas, considera Simmel,
essas “matérias” com as quais a vida é preenchida, não são sociais.
A partir da perspectiva deste sociólogo, o amor, a fome, o tra-
balho, a religiosidade, por exemplo, não são sociais, mas, sim, fato-
res de sociação, na medida que agregam os indivíduos a formas
específicas de interação.
Nas palavras do próprio autor, a “sociação é a forma – realizada
de incontáveis maneiras diferentes – pela qual os indivíduos se
agrupam em unidades que satisfazem os seus interesses”
(Simmel,1983: p.166).
Esses “materiais”, essas forças e interesses tornam-se autô-
nomos dos objetos que criaram e através dos quais eram utilizáveis
para os nossos propósitos.
Simmel (1983) traz a arte e o direito como exemplos de con-
teúdos que se autonomizaram, demonstrando que a “reviravolta
completa” da determinação das formas pelo conteúdo da vida social
à determinação de seu conteúdo pelas formas sociais, é um proces-
so que consiste numa espécie de jogo social, que separa as “formas”
e os “conteúdos” na vida societária.
Considerando a sociabilidade enquanto uma forma autôno-
ma ou lúdica de sociação, o autor assinala que:
167
“Sociedade é estar com um outro, para um outro, comum outro que, através do veículo dos impulsos ou dospropósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os inte-resses materiais ou individuais. As formas nas quais re-sulta esse processo ganham vida própria. São liberadasde todos os laços com os conteúdos; existem por si mes-mas e pelo fascínio que difundem pela própria libera-ção destes laços. É isto precisamente o fenômeno quechamamos de sociabilidade.” (Simmel,1983: p.168).
Para Simmel, a conexão entre jogo e sociabilidade explica por-
que esta última abrange todos os fenômenos que por si mesmos
podem ser denominados formas sociológicas lúdicas.
A expressão “jogo social” é significativa no seu sentido mais
profundo, indicando, sobretudo, a ocorrência de conteúdos inten-
cionais como disputas, desejos, solidariedades, inimizade e coope-
ração, que ocorrem tanto no “jogo” quanto na “seriedade do real”.
Trabalhos recentes no âmbito da Antropologia do Envelheci-
mento vêm trazendo contribuições a esta temática de pesquisa, abor-
dando a velhice em situações de asilamento, em espaços
institucionalizados, nos denominados grupos de terceira idade e em
contextos onde ocorrem práticas de esporte e lazer entre idosos (as)1.
Diferentemente dos idosos que se reúnem para a prática de
algum esporte ou para as atividades de lazer promovidas por algu-
1. Refiro-me aqui à dissertação de mestrado de Lucas Graeff (2005) realizadajunto ao Asilo Padre Cacique – POA e aos trabalhos de Liliane Guterres, MariaCristina Castilhos França e Luciano Vianna, que entre outros, foram apresen-tados na Jornada Antropologia e Envelhecimento, realizada em julho do cor-rente ano, na UFRGS. Cabe ainda recordar as significativas contribuições àtemática da Antropologia do Envelhecimento, das pesquisas de Alves (2004),Debert (2004), Eckert (2002), Ferreira (1995), Peixoto (1996) e Motta (1998).
168
ma instituição, os aposentados que se deslocam cotidianamente até
a Praça Saldanha Marinho, se reúnem para “jogar conversa fora”, como
eles mesmos dizem.
É acerca desse “jogar conversa fora”, sobre essa sociabilidade, en-
quanto forma autônoma e lúdica de sociação, que pretendo lançar um
olhar antropológico, buscando apreender o seu conteúdo narrativo.
Heitor Frúgoli (2007), nos comentários que realiza sobre as for-
mas de sociabilidade de George Simmel, comenta que a distinção sig-
nificativa entre forma e conteúdo na obra desse autor, clarifica-se em
outra modalidade básica de sociabilidade, a conversação, principalmente
aquela despossuída de fins práticos, cujo conteúdo não é o propósito,
mas o meio pelo qual o vínculo social se mantém enquanto forma –
independente, portanto, das possíveis mudanças de assunto.
Ao se encontrarem no “calçadão”, enquanto se dirigiam até à
Praça, um dos idosos questionou o outro, em um tom que mescla-
va jocosidade e dramaticidade:
“Mas por que tu não veio ‘assinar o ponto’ aqui ontem? Nem tavachovendo, tava um dia bem bonito até! Tchê! Tu tá faltando com osteus “veinho” da praça!” (Diário de campo, 31/07/2008).
Desse modo, percebe-se que os interlocutores zelam pela re-
lação em curso, por meio de regras de sociabilidade construídas e
negociadas pelos mesmos, que visam à manutenção e à permanên-
cia da forma de sociabilidade que configuram.
Durante o mês de julho do corrente ano foi realizada uma
reforma nos canteiros da praça Saldanha Marinho, próximos ao
“recanto dos velhos”, impossibilitando a permanência dos mesmos no
local, causando com isso algumas alterações nos percursos e deslo-
169
camentos das demais pessoas entre a Praça e o Calçadão.
Após fazer algumas fotos da Praça Saldanha Marinho, dirigi-
me até o Calçadão, onde sentei-me junto a um idoso que observava
atentamente às pessoas que por ali passavam. Durante a nossa con-
versa, perguntei-lhe se ele não gostava de sentar na Praça, tal como
faziam os demais idosos.
Ele me respondeu, com certa indiferença:
“Eu não! Aqueles lá ficam a manhã inteira só jogando conversafora! Eu até me dou com eles, mas não fico lá! Às vezes até passopor lá rapidinho, eu me dou com eles, tem um que até foi meucolega de trabalho. Eu fico mais é aqui, espero a minha viandaficar pronta, olho o movimento e vou embora, sem muito“papo”.(Diário de Campo, 31/07/2008).
A consideração de Simmel (1983) acerca da importância so-
ciológica do conflito, enquanto uma forma de sociação, ajuda-nos
a compreender as relações de aproximação e afastamento entre os
atores sociais, tal como se verifica na narrativa acima.
Segundo o autor, o conflito é uma força integradora dos gru-
pos, consistindo, na maioria das vezes, em um elemento da própria
relação que se estabelece a partir da interação entre os mesmos.
Sociabilidade e cotidiano: “as artes de fazer”
A ênfase dada por Michel Mafessoli (1988) à uma
“epistemologia do cotidiano”, a partir da sua proposta de uma “soci-
ologia figurativa”, sugere que as relações sociais sejam apreendidas
pelas figuras e formas sociais que são desenhadas, tecidas e experi-
mentadas no cotidiano, de modo que a produção do conhecimento
acontece justamente através da apreensão dessas formas sociais.
170
Michel de Certeau (1994), por sua vez, afirma que o conceito
teórico de “cidade-panorama” desconsidera as práticas cotidianas
dos praticantes “ordinários” da cidade, que através de suas “artes
de fazer”, estabelecem e (re) inventam diferentes usos e sentidos
ao espaço urbano, sendo que na maioria das vezes escrevem um
“texto urbano” sem poder lê-lo.
Segundo o autor, a visibilidade de um olhar panorâmico so-
bre a cidade, não alcança o “embaixo”, onde vivem os “caminhan-
tes que transformam em outra coisa cada significante espacial (De
Certeau, 1994: p.178).
Para pensar este processo, ele apresenta-nos o conceito de
“enunciação pedestre”:
“O ato de caminhar está para o sistema urbano como aenunciação está para a língua ou para os enunciadosproferidos. Ele tem com efeito uma tríplicefunção“enunciativa”: é um processo de apropriação dosistema topográfico pelo pedestre; é uma realizaçãoespacial do lugar e implica relações entre posições dife-renciadas, ou seja “contratos pragmáticos” sob a formade movimentos.”(De Certeau, 1994: p.177).
Após me falar da chuva intermitente que o impedia de ir à
praça, o seu José comentou-me que estava aguardando alguns
amigos. Outros idosos iam chegando e dirigindo-se aos bancos do
outro lado do canteiro.
Perguntei-lhe se estes eram os amigos que esperava, então
ele respondeu-me, enfaticamente, apontando para os referidos ban-
cos: “Não! Aqueles são de lá! Lá da turma do engraxate!”.
Percebe-se aqui a construção de fronteiras simbólicas, a ma-
171
nutenção e o agenciamento das mesmas, bem como os vínculos de
identificação e pertencimento com a Praça Saldanha Marinho, um
espaço público, que devido às motivações simbólicas específicas,
configura-se como um “território de sociabilidade” (Rocha &
Eckert, 2005) para os idosos que o freqüentam, ou ainda como uma
forma de “enunciação pedestre” (De Certeau, 1994).
Cabe aqui recordar Roberto Damatta (1985), quando ele afir-
ma que os espaços são esferas de significação social, que além de
separarem contextos e configurarem atitudes, contém diferentes
éticas e visões de mundo, muitas vezes associadas a gerações espe-
cíficas como aponta Lins de Barros (1993).
Ao assinalar a natureza social das categorias tempo e espaço,
Damatta assinala que estas não são apenas categorias filosóficas, dota-
das de conteúdo único e hegemônico, mas sim categorias sociológicas.
Nesse sentido, o espaço é demarcado quando alguém estabe-
lece fronteiras, de forma que um “pedaço de chão passa a ser sepa-
rado do outro”(Damatta, 1985: p.30), um processo que não é simples,
sendo necessário explicar de que modo as separações são feitas e
como elas são legitimadas e aceitas pelas pessoas.
Por fim, o presente trabalho propôs realizar uma problematização
acerca dos dados iniciais da minha pesquisa etnográfica, tentando es-
tabelecer um diálogo e uma tessitura conceitual entre autores que con-
sidero fundamentais para a apreensão dos processos simbólicos que
motivam o(s) idoso(s) habitués da Praça Saldanha Marinho a dizer (em)
que “A praça é nossa, mas aqui é o meu lugar”.
172
Referências
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de
fazer.Petrópolis:Vozes, 1994.
DAMATTA, Roberto. A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
GOFFMANN, Erving. “ Les Représentations”. In : La mise en scène de la
vie quotidienne. La présentation de Soi. Paris: Minuit, 1973.
LINS DE BARROS, Myriam. Autoridade e Afeto – avós, filhos e netos na
família brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum. São Paulo: Brasiliense, 1998.
MORAES FILHO, Evaristo. (org.). Simmel.São Paulo: Ed. Ática, 1983.
SIMMEL, George. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
173
“As vozes da experiência”Estudo antropológico sobre memórias e
sociabilidades na construção da paisagemda Rua da Praia, Porto Alegre/RS.
Thais Cunegatto
A proposta deste artigo enfatiza parte da pesquisa que desen-
volvo no mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. O universo de pesquisa se concentra no cen-
tro urbano porto alegrense com enfoque numa das mais importan-
tes ruas deste espaço urbano – a Rua da Praia.
Para George Simmel “a sociabilidade é o jogo no qual se “faz de
conta” que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que
cada um é reverenciado em particular; e “fazer de conta” não é menti-
ra mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio de
realidade. (Moraes Filho, 1983: p.173). O contexto urbano, portanto,
é cenário privilegiado para evidenciarmos o jogo destas formas de
sociabilidade em que se expressam diferenciados estilos de vida
Neste sentido busco trabalhar as experiências cotidianas dis-
tintas que propiciam processos de interações e sociações outras que
conformam paisagens díspares num mesmo espaço urbano num
intervalo temporal de três décadas. Embora estas distintas sociabili-
dades entrem em disputa por um mesmo espaço urbano em prol da
constituição e conformação de determinada paisagem, estes gru-
pos urbanos se relacionam e interagem “harmonicamente” dentro
de uma sociação que é de conflito.
174
O conflito aqui se ancora na perspectiva de Simmel cujo con-
flito pode estar vinculado a uma forma de sociação e, além disso,
pode atuar como força integradora do grupo, pois “aquilo que a
primeira vista parece desassociação, é na verdade uma de suas for-
mas elementares de sociação.” (Moraes Filho, 1983: p.128).
A proposta deste artigo é trabalhar com a hipótese que estilos
de vida diferenciados geram formas de sociabilidades distintas que
implicam em diferentes apropriações de um mesmo espaço urbano.
Formas de sociabilidades que conformam paisagens distintas num
mesmo espaço urbano que se metamorfoseia na passagem do tempo.
Onde eu observo estas formas de sociação? No pulsar da vida
cotidiana, em uma rua central de Porto Alegre, no ritmo do seu
cotidiano, na sua forma que se trans-forma diariamente.
Apoiada nos estudos fenomenológicos de Alfred Schutz a cerca
das experiências cotidianas que regem direções e ações através das
quais os indivíduos lidam com seus interesses e negócios baseados
num estoque de conhecimento, percebe-se que só se entende os
motivos, as motivações, em retrospectiva, num processo de refle-
xão. Neste sentido, busco compreender as motivações que engen-
dram a apropriação bem como o abandono do espaço urbano Rua
da Praia e o significado deste território na constituição da identida-
de de seus habitues atuais e de outrora..
Alfred Schutz (1979) revela, portanto, que a importância do sig-
nificado é dada pela experiência passada que a pessoa possui sobre um
fato. Isto faz com que o significado das ações seja dado em consonân-
cia com as suas experiências anteriores. Sendo a experiência passada
significativa na compreensão da ação presente e do projeto futuro.
A experiência de um fenômeno como comportamento sem-
175
pre é analisável depois do ocorrido e não no interior do momento
em que ele ocorre. A compreensão, desta forma, parte sempre do
passado, é sempre reflexiva.
O ‘significado’ das experiências, então, não é mais do que aquele
código de interpretação que as vê como comportamento. Assim, tam-
bém no caso do comportamento somente o que já está feito, termi-
nado, tem significado. A experiência pré-fenomenal da atividade,
portanto, não tem significado. “Só a experiência percebida reflexiva-
mente na forma de atividade espontânea tem significado. (...) é no
tempo interior, ou na durée, que nossas experiências atuais são liga-
das ao passado por meio de lembranças e retenções e ao futuro por
meio de pretensões e antecipações.” (Schutz, 1979: p.69).
As ações humanas só são compreensíveis se encontrarmos
nelas motivações. A pesquisa deve buscar responder quais foram os
“motivos” que levaram os sujeitos a fazerem tal ação, buscar com-
preender as motivações subjetivas através do processo reflexivo do
ato de narrar, neste caso, para o pesquisado, suas experiências vivi-
das. Percebe-se aqui a influência de Alfred Schutz na obra de Paul
Ricoeur (autor que será mais diante abordado)
Na narrativa de Hiliana que traz a Rua da Praia da década de
60 como a Belle Epoque encontramos um repúdio a forma atual de
apropriação do espaço urbano, a esta forma de sociabilidade que
figura nos dias de hoje a Rua da Praia:
“Mas que era belle epoque era, eu só não entendo ondeestavam estes bolsões de miséria, Eu não sei, eu nãoentendo nada disso não adianta buscar o que era, por-que é claro que não vai vir nunca mais né, mas eu achoque dava pra... se tirar aquele calçadão já ganhou o prê-mio, eu acho que descaracteriza muito. Aqueles came-
176
lôs aqueles que estão na Praça da Alfândega, se eles sãocamelôs eles não podem ir pro camelódromo? Porquedaí trazem o filho, daí trazem a cozinha, daí botam alona, daí botam não sei o que ...puxa nós temos umaspraças tão bonitas , tipo a Praça Garibaldi.
Hiliana nostalgicamente relembra seus quinze anos quando mo-
rava na General Câmara , antiga Rua da Ladeira e passava duas a três
horas se arrumando em casa para praticar o footing, ao seja, para cami-
nhar por três a quatro quadras da Rua da Praia para olhar vitrines,
encontrar amigos, flertar com os moços da sociedade, desfilar sob a
passarela encantada da mais famosa rua da cidade de Porto Alegre.
Relato não muito diferente desse é desenvolvido por Dante
Camaratta, meu avô, em sua voz ele traz uma Rua da Praia marcada
pela efervescência política, como um palco de descoberta do que
acontecia dentro da cidade, do país e no mundo. As informações
políticas nacionais e mundiais, segundo ele, eram recebidas e dis-
tribuídas no espaço da Rua da Praia e eram sociabilizadas por estu-
dantes de classe média intelectualizados, que aguardavam notícias
da segunda Guerra Mundial enquanto engraxavam seus sapatos
elegantes e flertavam com belas meninas que praticavam o footing.
Em seu relato os cafés da Rua da praia também ganham espaço
bem como os do Mercado Público.
A Rua da Praia se constituía na voz de cronistas e moradores anti-
gos de Porto Alegre enquanto um espaço de glamour, uma rua majestosa
que abrigava personagens ilustres provindos de camadas sociais mais
favorecidas economicamente que desfilavam por suas calçadas, por exem-
plo, praticando o footing, como na narrativa dos dois informantes acima.
O centro de Porto Alegre, mais especificadamente a Rua da Praia
era o espaço dos intelectuais e da alta sociedade, um lugar destinado às
177
belas moças que passeavam com seus chapéus e flertavam com os hon-
rosos moços da sociedade. Este cenário de outrora se modifica drasti-
camente nos dias atuais. A chamada “degradação do Centro” vem sen-
do motivo de discussão por parte de várias instituições e órgãos públi-
cos. Os atores sociais se alteraram. Ao invés de um grupo urbano mar-
cado por seu poder de capital econômico, nos termos de Pierre Bourdieu
(2007), encontra-se hoje a denominada “classe popular”, ou seja, atores
sociais desprovidos deste capital econômico.
A Rua da Praia hoje não é mais composta por cafés
glamourosos, confeitarias elegantes, lojas da alta sociedade, que
exibiam em suas vitrines as últimas tendências da moda. Suas cal-
çadas foram tomadas por tapetes de plásticos que tapam as ondula-
ções de em preto e branco desenhadas no chão, em cima deles,
artigos como DVDs, roupas, sapatos, bonecas, acessórios, guarda-
chuva. Um grande centro de compras da dita classe popular é
disponibilizado a baixos preços por vendedores ambulantes tidos
como ilegais e /ou camelôs. O lugar ainda marcado pela efervescência
se transfigura. No lugar de vestidos longos, salto alto, chapéu,
calçado engraxado e sombrinhas protetoras do Sol de outrora en-
contramos chinelos, bermudas, e camisetas espalhados na “vitrine
popular” que é o chão.
Segundo Patrícia Rodolpho (2001) em seu ensaio sobre a Rua
da Praia esta “desvalorização” da área central de Porto Alegre gera
para os habitantes de classe média e alta um imenso desconforto
criando repulsa destes em relação a esta zona dantes exaltada pela
sua magnitude e efervescência cultural. Esta transformação de ato-
res sociais no palco deste cenário urbano gera tensões e conflitos
que são negociados no viver a cidade.
178
O cenário urbano, nos estudos das sociedades complexas confor-
me Ruben Oliven (1980) apresenta uma aparente homogeneização das
classes sociais nos centros urbanos devido à intensificação capitalista in-
dustrial, porém ressalta os perigos desta análise que não leva em conta
que este processo de acumulação de capital diferencia os habitantes das
sociedades brasileiras de forma desigual e assimétrica e que as classes
baixas podem oferecer resistência à difusão destas “orientações culturais
padronizadas”. Neste sentido, ressalta o autor que diferentes grupos sociais
têm práticas e orientações diferenciadas no que tange há “aspectos que
têm conseqüências e significados diversos de acordo com a posição social
tais como questões políticas” (Oliven, 1980: p.35)
Os centros urbanos, segundo Antônio Arantes em sua análise
sobre a cidade de São Paulo, tem uma grande tendência para o “cres-
cimento do número dos pontos de pernoite e da população que
dorme nas ruas do centro” (Arantes, 2000: p.144) Para o autor este
quadro deve-se a elevada pauperização das classes populares que
desencadeia “paisagens onde a vernácula pobreza e a diferença
cultural – em suas várias feições – interpelam e situam socialmente
as fachadas de cristal globalizadas, que por seu turno as refletem,
politizando o espaço urbano (Arantes 2000: p.145)
Esta migração das classes populares para os centros urbanos
faz emergir a tensão colocada no espaço urbano: Rua da Praia. De
um lado uma discussão patrimonial que busca salvaguardar os
monumentos, as praças, os prédios históricos através de um pro-
cesso de uma “reeducação patrimonial de utilização do espaço pú-
blico”, como prevê o projeto Monumenta que vem sendo
implementado no centro de Porto Alegre. De outro, o cotidiano
destes habitués que vivenciam este espaço urbano, se apropriam des-
179
tes “pontos de amarração” da memória (Arantes, 2000) da cidade
através de suas práticas cotidianas e sociabilidades que se confron-
tam com a lógica de preservação patrimonial.
Recorrendo a Antônio Arantes percebe-se este conflito imerso
numa complexidade de sentidos e representações entre o que tange
a ordem do vivido e a do oficial.
“Não podendo analisá-lo de uma forma unilateral quepressupõe a simples acomodação da classe popular a estesistema de regras e de conduta previsto pelos órgãosoficiais para a utilização do espaço público”. Pois as “re-presentações que fazem do centro aqueles que habitamsuas praças e ruas não são diferentes aos marcos emonumentos da paisagem oficial Ao contrário, elasarticulam experiências sociais a um espaço, dando-lhesum contexto e significações populares (2000: p.122)”.
Seguindo os passos de Michel De Certeau vemos a existência
de uma dinâmica do social articulada por seus atores no viver coti-
dianamente esta cidade que é palco e ao mesmo tempo objeto des-
tas tensões. Sendo assim, estes atores sociais entendidos enquanto,
classe popular, buscam estratégias e criam astúcias que são negoci-
adas em seus espaços urbanos na vida cotidiana como formas de
resistência a esta lógica dominante e oficial.
“Se é verdade que por toda parte se estende e se precisade uma rede de vigilância, mais importante é descobrircomo uma sociedade inteira não se reduz a ela, que pro-cedimentos populares (minúsculos e do cotidiano) jo-gam com os mecanismos de disciplina e não se confor-mam com ela a não ser para alterá-los; que maneiras defazer formam a contrapartida, do lado dos dominados
180
dos processos mudos que organizam a ordenação só-cio-política”. (Certeau, 1994: p.41).
Estes espaços urbanos, “pontos de amarração” da memória,
conforme Ecléia Bossi se constituem como espaços de conflito ao mesmo
tempo em que são espaços de deleite, lugares cuja memória coletiva
acontece. Maurice Halbwachs sugere que o espaço é uma espécie de
“baú de memórias” onde são depositadas reminiscências individuais e
sociais. Sendo assim o espaço é uma realidade que dura, onde nossas
impressões se sucedem uma às outras, por conta do espaço é que as
lembranças permanecem em nosso espírito, o retorno ao passado através
das memórias se torna possível, pois estas habitam nestes espaços que
conservam a matéria da lembrança. (Halbwachs, 2006).
Tanto as sociabilidades quanto a paisagem se trans-formaram, se
metamorfosearam em sociabilidades e paisagens conflitivas. Confor-
me Georg Simmel, não é apenas um olhar ingênuo sobre coisas sobre-
postas que conforma a paisagem, antes pelo contrário, é a delimitação
e a conceituação deste olhar que retira da natureza um recorte, trans-
formando uma forma em paisagem. Pelo termo natureza, o autor en-
tende a cadeia sem fim das coisas, o nascimento e o aniquilamento
ininterruptos das formas, a unidade fluida do vir-a-ser, exprimindo-se
através da continuidade da existência espacial e temporal (Simmel: p.16).
Neste sentido o autor me auxilia a pensar este jogo entre for-
mas de narrativas e configuração de paisagem, na problematização
entre o tempo vivido e narrado como diria Paul Ricoeur.
Paul Ricoeur (1994) ao nos colocar que o tempo torna-se tem-
po humano na medida em que é articulado num modo narrativo,
levanta a questão relacionada ao exercício da narração como uma
181
luta de permanência.
Encontramos na fala de uma moradora do Bairro Menino Deus
esta dimensão conflitual e ambígua do vivenciar o espaço central da ci-
dade de Porto Alegre, espaço este que se metamorfoseou na passagem
do tempo. Vera narra em uma caminhada histórica e cultural provida
pelo Programa Viva o Centro a Pé1 seu ponto de vista a cerca do Centro.
Suas impressões se dão em dois sentidos: de um lado destaca a beleza
patrimonial do centro da cidade, neste aspecto surge uma interjeição:
“Nossa, como é bom ser turista da própria cidade!!!Não conhe-cia esta beleza, vivo em casa durmo até meio dia, nuncasaio” . No outro sentido, não antagônico ela narra seudesprezo a cerca deste espaço quando uma senhora começaa conversar conosco e se apresenta como moradora doCentro. A reação da moradora do Menino Deus é de re-pulsa: “Nossa, mas não é horrível morar aqui?! O Centro éa escória, nele estão os camelôs que são ex-presidiários,eles sugam as nossas energias.Se tu deixares, eles te passama perna” me afirma ela. Quando pergunto o porquê deseu passeio no tão desprezado centro de Porto Alegre, elare-afirma: “Para passeio, como turista, oras...”
O espaço urbano permanece e se trans-forma, dando lugar a
outras sociabilidades. Não mais a estética dos sapatos de couro e das
discussões político-intelectuais das camadas médias e altas da cida-
1. O Programa Viva o Centro considera que é preciso, tanto valorizar o CentroHistórico, considerando seu status diferenciado com relação às demais regiõesda cidade, como reforçar e qualificar a atratividade que sempre existiu. AsCaminhadas são orientadas por professores universitários, estudiosos emhistória, arquitetura e artes que narram a história de edificações e espaçospúblicos do Centro da cidade. Já contabiliza mais de mil participantes. Extraídodo site http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/vivaocentro/default.php?p_secao=133 as 09:48 do dia 28/04/2008
182
de de Porto Alegre. Nos bancos da praça, a política permanece sob
nova forma. A discussão é de uma classe popular que clama por
seus direitos. É o grupo da Praça da Alfândega que reclama da falta
de remédios no Posto de Saúde Santa Marta, o vendedor de
cafezinhos que briga com a SMIC2 para que possa vender durante a
Feira do Livro3, a luta das prostitutas pela permanência neste espaço
cotidianamente quanto em eventos como a Feira do Livro.
Frida, uma senhora de 82 anos tem uma rede de amigos na
Praça da Alfândega, em sua narrativa traz a praça como um territó-
rio que configura seu envelhecimento.Sua identidade como habitué
da praça se dá no seu processo de envelhecimento. Diferente dos
informantes anteriormente descritos que resgatam em sua narrati-
va a cerca da Rua da Praia a sua juventude Frida traz o cotidiano
atual para falar da Rua da Praia e quando me refiro a sua mocidade
ela ressalta não pertencer aquele espaço, que só passava por ali para
ir para o trabalho, mas nunca permanecia.
Nice4 é uma prostituta da Praça há 24 anos, afirma sua
identidade “Sou da Praça” com orgulho. O limite para ela entre a
Rua da Praia e Andradas não é nomenclatural e nem ao menos
temporal, ela é espacial. Para ela, a Rua da Praia é onde está o
calçadão, a Praça da Alfândega, passando a esquina democrática é a
Rua dos Andradas e lá estão outras profissionais do sexo.
Nice reivindica seu direito de estar na praça e afirma “que esta
2. A Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC) é o órgão responsávelpelo controle das vendas no espaço público.3. A Feira do Livro é evento anual de consagração ao livro que marca há 54 anosa cidade de Porto Alegre. Durante este evento várias bancas de livros e revistassão expostas na Praça da Alfândega com os preções reduzidos em 20%.Paramaiores informações visite o site: http://www.feiradolivro-poa.com.br/.4. Nome fictício escolhido pela interlocutora.
183
tal higienização é culpa do Projeto Monumenta que busca retirar tudo o que
eles acham que não presta dali, mas nós profissionais do sexo conquistamos
nossos direitos. Não saio dali, só se for algemada e com imprensa, não saio.”
Comungando com a narrativa de Nice, encontramos a de
Roberto, participante da Associação da Feira da Rua da Praia que
também ressalta o Monumenta como um projeto que visa retirar os
feirantes deste espaço urbano e transferi-los para outro espaço, o
do Camelódromo. Roberto revela que a associação da qual é dirigente
está com processo judicial em trâmite contra este projeto governa-
mental de recuperação patrimonial.
“Nos mostraram um bolo e vieram com outro, disseram que iam construir
o camelódromo e íamos pra lá. Agora dizem que tem que tirar a gente dali,
mas não dizem pra onde”. Ao ressaltar sua indignação contra as ações
do projeto Roberto desabafa que muitas pessoas podem perder seu
“ganha pão” e que parece que com isso o Estado não se preocupa.
A questão da revitalização do centro urbano colocada por Nara
e por Roberto traz a tona o conflito latente que é a disputa por uma
paisagem num determinado espaço urbano, e esta disputa é pela
existência e morte de determinados tipos de sociação que ao serem
narradas são revividas e perduradas.
Tal questão implica uma resistência eterna contra a morte das
imagens nas quais habitamos, como nos diria Bachelard (1989). Para
o caso deste estudo, uma luta contra a morte de paisagens constituin-
tes do imaginário da cidade de Porto Alegre. Portanto, narrar os espaços
é uma forma de mantê-los vivos, eternizados nas lembranças, consti-
tuintes e construtores desta memória coletiva que configura o social.
Ambas as paisagens: a de outrora e a atual são negociadas e ar-
ranjadas, pois dentro do conflito das quais elas emergem elas são aco-
184
modadas nas lembranças e no cotidiano dos narradores que as habi-
tam, pois como ressalta Hiliana: “ Não adianta revitalizar , eu não volto
mais lá, o que era não volta mais”. Na frase de Hiliana percebe-se que
não são apenas os prédios históricos que conformavam a paisagem de
outrora que busca ser resgatada pelas instituições patrimoniais. Sabia-
mente Hiliana nos mostra que as sociações vivenciadas numa Rua da
Praia de 1960 davam forma àquela paisagem da Rua da Praia em 1960,
ou seja, as formas de sociabilidade conformam certo espaço urbano,
bem como este espaço conforma certa sociabilidade. A Rua da Praia
permanece como o espaço do comércio e o espaço do lazer como era
nesta Porto alegre de 1960, embora regido nos dias de hoje por outra
estética urbana, outro habitus e outra visão de mundo, ou seja, o espa-
ço se trans-forma e por isso permanece.
185
Referências
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do espaço público. Campinas, SP: Editora da Unicamp,2000.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas-
SP: Papirus, 2007.
BACHELARD, G A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989
BACHELARD, G A dialética da duração SP, Ática, 1988.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
MORAES FILHO, E. (Org.). Simmel. São Paulo, Editora Ática, 1983.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: a tríplice mimese. In :Tempo e nar-
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SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (org).
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SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. . RJ, Jorge Zahar, 2006.
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RODOLPHO, Patrícia. Encontrando imagens na e da Rua da Praia:
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LAS, PPGAS, IFCH e ILEA, UFRGS, 2001.
WAGNER, Helmut R. (Org. e Introdução). Fenomenologia e relações
sociais. Textos (escolhidos de Alfred Schutz. RJ, Zahar, 1979.
186
187
Autores e Organizadores
Ana Luiza Carvalho da RochaAntropóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul eprofessora participante da Universidade Federal de Santa Catarina.
Cornelia EckertProfessora Associada do Departamento de Antropologia e doPrograma de Pós Graduação em Antropologia Social na UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.
Myriam Moraes Lins de BarrosProfessora titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federaldo Rio de Janeiro.
Anelise dos Santos GutterresMestranda em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social /UFRGS
Carla Indira Carvalho SemedoMestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
Denise Silva dos SantosMestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
Fabiela BigossiDoutoranda em Antropologia Social Programa de Pós-Graduaçãoem Antropologia Social /UFRGS.
Fernanda Pivato TussiMestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
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Fernanda RechenbergDoutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
Jeniffer CutyDoutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo Programade Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional / UFRGS.
Luis Felipe Rosado MurilloDoutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradu-ação em Antropologia Social / UFRGS.
Mabel Luz Zeballos VidelaMestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
Rojane Brum NunesDoutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.
Thaís CunegattoMestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-gradua-ção em Antropologia Social / UFRGS.