durval muniz o historiador naif

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Durval Muniz de Albuquerque JniorO Historiador Naif ou a anlise historiogrfica como prtica de excomunho

Durval Muniz de Albuquerque Jnior Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

A histria da historiografia ou a anlise historiogrfica, entendida como a reflexo sobre os modelos e as regras que norteiam as prticas da pesquisa e da escritura da histria, em momentos e espaos especficos ou em autores e obras tomadas em grupo ou individualmente, faz parte do que podemos chamar da cultura histrica de uma dada poca ou sociedade. A maneira como os profissionais do campo historiogrfico se debruam sobre o saber j produzido na rea e como o submete a uma avaliao crtica, penso que diz muito dos cdigos que delimitam a prtica historiadora ou mesmo as prticas acadmicas e cientficas, neste campo, num dado contexto histrico e social. Neste texto, procurarei refletir sobre alguns traos que vm caracterizando a prtica da anlise historiogrfica no Brasil, notadamente nos anos recentes, e sobre como ela deixa entrever alguns traos distintivos de nossa cultura historiogrfica, ou por que no dizer, de nossa cultura acadmica. Um dos traos marcantes, em boa parte dos textos que se propem a avaliar o estado da arte no campo historiogrfico, em nosso pas, a abusiva adjetivao. Em grande medida, as anlises que se fazem das obras ou de dadas correntes historiogrficas no so feitas em termos substantivos, isto , no estabelecem um dilogo com os conceitos, com os pressupostos, com a metodologia que estruturam as obras analisadas, no dialogam com o pensamento do autor ou com as concluses a que chegou em sua pesquisa, mas procuram desqualificar a obra ou o autor brandindo contra ele meia dzia de adjetivos, que pretensamente o localizam no debate historiogrfico e avaliam o valor de sua contribuio. Termos como psmodernos, conservadores, neoconservadores, idealistas, populistas, ideolgicos, irracionalistas, narrativistas, reacionrios, de direita, perspectivistas, ultrapassados, marxistas, realistas, racionalistas, so brandidos sem que nunca sequer se discuta o1

Durval Muniz de Albuquerque Jniorque significam, como se fossem auto-evidentes ou se houvesse consenso sobre seus significados, sendo usados, portanto, como meras pechas desqualificadoras que, ao invs de instaurararem o debate, o desestimulam de sada. O que tenho acompanhado como repercusso destes textos, notadamente entre alunos de graduao e ps-graduao, que eles vm alimentar um trao preocupante de nossa cultura historiogrfica e, porque no dizer acadmica, que aquela de se ter o que dizer sobre os autores e as obras antes mesmo de conhec-los e ter lido seus livros. Esta crtica judicativa, talvez fruto do enorme peso que a formao jurdica teve na constituio de nossa intelectualidade, notadamente no campo das humanidades, instaura uma espcie de lgica inquisitorial em que autores e textos so condenados ou excomungados antes mesmo que meream a leitura e a reflexo. Os estudantes passam a repetir as sentenas condenatrias exaradas por estes juzes da produo historiogrfica, sem se darem ao trabalho de consultarem e conhecerem o que os autores condenados produziram. E o mais lamentvel que, s vezes, as posies dos autores e de seus textos so to caricaturadas nestas anlises, que chegamos a nos perguntar se o prprio autor que faz a crtica efetivamente leu as obras de quem est criticando ou no estaria apenas repercutindo crticas do mesmo naipe feitas fora de nosso pas. Vejamos um exemplo:Os ps-modernos tm todo o direito de combater o conceito de evoluo e quaisquer das correntes evolucionistas: mas, no, de fingir que o evolucionismo tenha morrido. Como vimos, ele est alive and kicking, como se diz em ingls. cmodo ignor-lo, mas trata-se de uma comodidade preguiosa, baseada na ignorncia e m-f. Por sua vez, os fins da Histria proclamados sob o signo dos neoliberalismos e neoconservadorismos recentes no passaram de teorias de intelectuais excessivamente ligados a regimes socialmente perversos e politicamente reacionrios1 [grifos meus]

Outro trao constante na crtica historiogrfica brasileira a tendncia a estabelecer maniquesmos, a resumir a pluralidade do campo historiogrfico a uma espcie de jogo dual, onde o leitor conclamado a tomar partido por um dos lados litigantes. Aqui me parece que se conjugam duas tradies formadoras da cultura brasileira, notadamente de nossa cultura acadmica: a formao crist, que tudo reduz a avaliaes morais e a posies duais, onde deve prevalecer o dogma, a verdade nica e absoluta, onde se tem que escolher entre o diablico e o divino, o2

Durval Muniz de Albuquerque Jniorcaminho certo a percorrer e o caminho da danao, e a formao na militncia de partidos comunistas, dominados pelo stalinismo, onde tambm o mundo se dividia sempre entre duas posies a escolher: ou se estava do lado da revoluo ou da reao, ou do lado da burguesia ou do proletariado, ou se progressista ou reacionrio. Esta crtica passa a operar com categorias genricas que englobam autores e obras as mais diferenciadas como: ps-modernos, conservadores, historiadores culturais versus realistas, racionalistas, de esquerda, historiadores sociais, e estabelece que entre elas existem pretensas dicotomias irreconciliveis, construindo imagens to simplificadas do campo considerado opositor, que o que temos ao final mais desconhecimento produzido, do que conhecimento2. Estas anlises historiogrficas devem ser questionadas, como qualquer produo discursiva, luz das relaes de poder, das disputas polticas e ideolgicas, dentro e fora da academia, que so as condies histricas que as possibilitam, para que elas se tornem inteligveis, para que possamos localizar que interesses esto na base destes textos. No se pode continuar considerando rigoroso e srio, um debate que se assenta em enunciados como: o marxismo j morreu ou Michel Foucault reacionrio, irracionalista e populista. A pretexto de se defender a razo, o que temos um debate regido pelas paixes, pela antipatia pessoal, pelo azedume, pelo mau humor. Como diria Bachelard, se fizssemos uma psicanlise desta prtica acadmica, iramos encontrar o inconsciente, que alguns autores fingem no existir, quando se trata de escrever histria e sermos historiadores, operando aqui com toda a sua fora.3 A crtica historiogrfica em nosso pas, como campo especializado de estudos, ainda est se constituindo. Talvez se deva imaturidade, falta de uma tradio acadmica de debate historiogrfico, que ela ocorra ainda muito marcada pelo personalismo, uma marca da prpria sociedade brasileira, pelo ataque muito mais pessoal aos autores, do que como um debate no campo das idias. No Brasil, comum que os debates acadmicos logo se transformem em afrontamentos pessoais, onde se procura a desqualificao do litigante e no a discusso de sua produo, das regras que presidiram o seu discurso. Fruto de uma sociedade profundamente marcada pelas relaes pessoais, onde comumente imperaram relaes de poder bastante autoritrias e excludentes, o debate acadmico no Brasil tende a reproduzir esta cultura e estas relaes. Quase sempre o debate parte do3

Durval Muniz de Albuquerque Jniorpressuposto de que aquela obra ou aquele autor que se toma para a anlise um inimigo a derrotar. Para que se afirme a autoridade acadmica de quem fala necessrio que se desqualifique a fala daquele que possui uma posio diferente, que seja desautorizado seu discurso e sua obra. H textos em que no s se deseja, mas se promete para um futuro imediato o desaparecimento do tipo de produo historiogrfica que se est criticando, como se esta no tivesse trazido qualquer contribuio para o conhecimento no campo4. A lgica que preside estas anlises a mesma que preside as disputas poltico-partidrias, em nosso pas, onde a viso democrtica est muito distante, j que no se pressupe que a riqueza de qualquer campo do conhecimento so a existncia e a convivncia agnica de mltiplas posies. O que se quer a derrota ou o desaparecimento completo do outro, a prevalncia e a vitria de uma nica posio, o que significaria, se ocorresse, a falta de vitalidade e o empobrecimento deste campo do conhecimento. Muitos no escondem seu desejo de censura em relao a determinadas vises da histria, mesmo que tenham sido inimigos da censura poltica do regime militar, ou no deixam de praticar uma espcie de marcarthismo historiogrfico, mesmo se proclamando comunistas. Outra estratgia comum do debate historiogrfico, entre ns, o de no apresentar os autores nacionais como referncia, fazendo de conta de que nada foi escrito sobre o assunto em nosso pas ou que nada de relevante foi dito ainda neste campo, por nossos pares, embora haja excees5. Mesmo que saibamos que o carter polmico do texto est dirigido contra os colegas, s vezes do mesmo Departamento6, o dilogo se estabelece apenas com os autores internacionais, num claro desejo de se colocar como interlocutor neste debate fora de nossas fronteiras nacionais e de no destacar o trabalho de seus interlocutores ou de seus colegas. Por isso mesmo, neste texto, farei questo de dialogar com os autores que h alguns anos vm tentando amadurecer este campo de estudos em nosso pas. De antemo, quero dizer que, mesmo queles com os quais no partilho as mesmas vises sobre o ofcio do historiador e a prtica historiogrfica, mesmo queles aos quais farei crticas as suas formulaes e formas de pensar, merecem de mim o maior respeito pela contribuio que tm dado, cada um a seu modo, para o avano do debate terico e metodolgico em nossa rea, no Brasil7.

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Durval Muniz de Albuquerque JniorO debate historiogrfico, entre ns, repercute algumas discusses que atravessam o nosso campo tambm em nvel internacional. Neste aspecto preciso reconhecer que nossa produo est atualizada e vem se pautando por questes que se colocam para os historiadores em diversos contextos sociais e acadmicos8. Mas a nossa maneira de trat-las , sem dvida, particular. Gostaria agora de retomar algumas das temticas de cunho terico e metodolgico que so o cerne das polmicas que se travam no campo historiogrfico contemporaneamente, para que fique melhor caracterizada a maneira como estes debates so travados no interior do campo historiogrfico brasileiro, podendo assim me posicionar, espero que de modo substantivo e no adjetivo, em torno destas questes, propondo, ao mesmo tempo, uma maneira de trat-las, que possa, ao lado do que j fazem outros historiadores brasileiros, instaurar outros procedimentos quando se tratar de fazer a crtica da historiografia, em nossa universidade. A ps-modernidade Uma das temticas recorrentes nos debates historiogrficos contemporneos a da ps-modernidade, seja enquanto condio histrica, enquanto conceito que resumiria as transformaes histricas que estaramos vivendo, seja como movimento cultural, movimento das idias, tambm conhecido como psmodernismo. Embora seja uma noo bastante imprecisa, j que se utiliza do prefixo ps para descrever uma situao histrica que estaria em ruptura com a modernidade, necessitando precisar em que aspectos, ela tem gerado uma ampla bibliografia, que descreve este momento das formas mais variadas, a par com as variadas posturas tericas, polticas e epistemolgicas que tomaram este conceito e buscaram torn-lo operatrio9. Ela vem sendo usada no debate historiogrfico no Brasil para definir uma situao quase apocalptica, perodo que seria sintetizado pela promessa do fim de tudo aquilo que seria central na definio da modernidade: fim da razo, fim da cincia, fim da histria, fim das ideologias, fim da poltica, fim da revoluo. Contra esta promessa de apocalipse trata-se de propor o retorno aos modelos dominantes de racionalidade e cientificidade, que perduraram no Ocidente, pelo menos desde o Iluminismo. Embora considerem os que chamam de psmodernos como novos conservadores, os que se colocam como defensores da modernidade e da racionalidade e se dizem progressistas e revolucionrios, quase5

Durval Muniz de Albuquerque Jniorsempre propem a pura conservao dos modelos de cincia e os modelos de escrita da histria que vm sendo questionados, muito antes que se anunciasse o fim da modernidade, j que pensadores como Nietzsche e historiadores como Burckhardt e Huizinga10 j o faziam desde, pelo menos, o fim do sculo XIX. Embora gostem de chamar os seus contendores, agrupados de forma arbitrria sob a denominao de ps-modernos, de reacionrios, esta crtica historiogrfica se caracteriza, justamente, por reagir a qualquer transformao que se proponha na forma de praticar e compreender o metier do historiador. de fato estranho quando os autonominados de progressistas propem o retorno de uma compreenso evolucionista da histria ou quando utilizam como matriz de cientificidade em nosso campo os conceitos desenvolvidos por Joseph Stalin. No Brasil comum se opor marxismo e ps-modernidade ou marxismo e psmodernismo, o que implicaria no carter despolitizado ou conservador da produo historiogrfica que no se apia no materialismo histrico11. Isto leva a se incorrer em dois equvocos. Em primeiro lugar, o marxismo no dispe do monoplio da poltica, e no se declarar marxista no significa no se colocar politicamente diante de sua profisso e diante da sociedade, no significa que se v praticar a histria sem pensar sobre o papel poltico que esta desempenha, no significa que no se reconhea a importncia do marxismo para o pensamento poltico ou para a prtica historiogrfica, afinal, a lgica de caa s bruxas, que foi comum em certos crculos marxistas, no deve ser praticado em relao queles que escrevem histria a partir das diversas variantes que este pensamento produziu ao longo do sculo XX ou queles que resolvem faz-lo utilizando outros pressupostos. Em segundo lugar, vrios autores que se dizem marxistas utilizam a noo tanto de ps-modernidade, quanto de ps-modernismo e fazem delas instrumentos de anlise bastante refinados dos dilemas das sociedades contemporneas. suas repercusses sobre David Harvey12 toma a noo de ps-modernidade para pensar o atual estgio da economia capitalista, categorias como a de tempo e de espao e suas conseqncias sociais no campo da produo de conhecimento. Frederic Jameson,13 parte da noo de ps-modernismo para pensar a produo cultural promovida pelo capitalismo tardio, para analisar como o atual estgio do capitalismo origina a produo de uma cultura assentada nos simulacros e nas imagens. Estes autores nos permitem afirmar que a simples admisso de que vivemos um novo6

Durval Muniz de Albuquerque Jniormomento na histria, chamado de ps-modernidade, ou que estamos em um novo estgio na produo da cultura chamada de ps-modernismo, no nos fazem imediatamente anti-marxistas e, por conseqncia, nem to pouco, reacionrios, conservadores, apolticos e partidrios do Consenso de Washington, quando no admiradores de George Bush ou seguidores de Fukuiama, como querem alguns colegas. Existe vida inteligente e atitude crtica e politicamente engajada fora do marxismo. O que Harvey e Jameson nos deixam entrever que aqueles que so herdeiros da atitude cientfica e poltica que possibilitou a obra de Karl Marx, no precisando para isso se dizerem marxistas como nos lembra em livro notvel Derrida14 devem tentar fazer esforos no sentido de entender o que particulariza a nossa condio histrica e quais os pontos de enfrentamento poltico que nosso tempo coloca como tarefa para os intelectuais. Entender uma poca distinto de reagir a ela, embora estes aspectos nunca possam estar completamente desligados. No so atitudes romnticas, de recusa do presente, de rejeio dos processos histricos que se passam nossa volta que tornaro o saber histrico capaz de servir de instrumento para atuao no e compreenso do nosso tempo. Como qualquer momento da histria, a ps-modernidade composta de mltiplos processos, nem sempre confluentes, processos ambguos, prenhes de mltiplos devires, que no podem ser avaliados de um s ngulo. Se no podemos olhar para nosso mundo com o olhar cor-de-rosa ou conformista de um Francis Fukuiama15, no podemos tambm olhar com um olhar de fim de mundo, que s enxerga niilismo, conservadorismo, reacionarismo, alienao e barbrie. Se tomamos o conflito, a relao, os embates de foras como elementos decisivos no processo histrico, no podemos abordar qualquer momento histrico como tendo uma s perspectiva, como estando caracterizado apenas por uma de suas tendncias. As descries que se costumam fazer da ps-modernidade entre ns so bastante parciais, onde as diversas virtualidades e as contradies que so caractersticas desse perodo so substitudas por uma viso redutiva e chapada, em que se chama ateno apenas para aspectos considerados negativos de nossa poca. J que se pretende fazer uma crtica aos que chamam de ps-modernos preciso que se diga que estes aderem completamente ao seu tempo, esto satisfeitos com ele e, portanto, cabe em seguida mostrar a monstruosidade desta7

Durval Muniz de Albuquerque Jniorpoca, para, como conseqncia, se concluir pelo carter monstruoso dos prprios ps-modernos e da historiografia que praticam. Este procedimento tambm pode se encontrar entre os crticos da modernidade, que tambm s conseguem ver crime, terror, explorao quando se trata deste perodo, o que tornariam os pensadores que defendem a modernidade cmplices destes horrores. Isto o que se pode chamar de um dilogo de surdos, que pouco acrescentar ao conhecimento de ambos os perodos16. E quando ele ocorre entre historiadores, isto se torna mais preocupante, porque nossa tarefa , justamente, a de construir interpretaes socialmente utilizveis para cada temporalidade. Que uso social se poder fazer de tais esquematismos? O realismo Outro tema controverso, que tem ocupado as anlises historiogrficas no Brasil, o do realismo em histria. A forma como este tema vem sendo tratado, tambm revela muito dos procedimentos prevalecentes neste campo de estudo no Brasil. Estranhamente, entre ns, realista se tornou um adjetivo que qualifica grupos de historiadores que, orgulhosamente, se contrapem ao que ora chamam de narrativistas, ora chamam de ps-modernos, ora chamam de nominalistas, ora chamam de conservadores. O debate colocado como se fosse possvel ser favorvel ou no existncia da realidade, como se houvesse um conjunto de historiadores que simplesmente negassem a existncia do real. Ora, no a que se coloca o debate. Ningum em s conscincia nega a existncia da realidade, mesmo a do passado. Este debate me parece j comear viciado pela confuso que se estabelece entre realidade e empiria. evidente que existe uma dimenso emprica da realidade, mas esta no se esgota neste aspecto e nem tudo que real emprico. Da ser um equvoco subseqente achar que a realidade se apreende atravs simplesmente dos sentidos, sensorialmente. Quando dizemos que o real no se resume sua dimenso emprica porque advogamos que a realidade humana uma construo conceitual, cultural, histrica e lingstica17. O que chamamos de real ou de realidade no apenas o dado bruto da experincia imediata das coisas e das relaes, mas a concomitante elaborao que estas sofrem a partir de nossa capacidade de simbolizao, conceituao e significao. Existe aquilo que Lacan18 chamava de real, que o encontro com o inapelvel, com o irrecorrvel, com o8

Durval Muniz de Albuquerque Jniorintransponvel, com o que existe fora de ns e de ns independe para existir ou ocorrer. Quando sofro um acidente de carro ele uma realidade imediata, que me apanha de surpresa, que pe para funcionar leis da fsica, da mecnica, da biodinmica, contra as quais nada posso fazer, neste momento, para que no me atinjam. Mas este acidente s ser um fato e uma realidade para mim, se permanecer vivo, se puder, no mesmo instante em que ocorrer, comear o processo de racionalizao, de busca de uma explicao para ele, de dotao de sentido para o que me ocorreu. Uma realidade humana feita, portanto, desta dimenso emprica ou determinada e de uma dimenso simblica, imaginria, que em conjunto constituem o que chamamos de fato ou evento. Esta dimenso narrativa que qualquer evento humano possui o que permite que possamos, mais tarde, atravs de outras formas de narrativa, como a histria, tentar dar sentido de conjunto s vidas humanas. Portanto, o real sempre um conceito, pois nasce de operaes de significao, de classificao, de racionalizao, de rememorao, de imaginao, empreendidas por homens situados num dado momento e numa dada sociedade, cultura, classe social, categoria de gnero, etnia, gerao, etc. Dizer o que o real ou a realidade implica em realizar operaes de interpretao, implica em tentar dar coerncia e coeso aos eventos, que quase sempre ocorrem dispersos e sem nenhuma significao prvia. No faz nenhum sentido para mim se proclamar realista. Todos ns temos que, na nossa prpria vida cotidiana, lidar com a realidade, no sentido de que precisamos construir uma imagem dela, ns precisamos pens-la, precisamos elabor-la narrativamente, para que possamos operar as mais banais de nossas atividades. Eu no sairia de casa se no pressupusesse que sei como a realidade a fora vai se comportar. Isto diferente de pensar que eu tenho o monoplio da realidade, de que a forma como a vejo a nica vlida. Esta realidade que enxergo nasce, na verdade, de uma produo que coletiva, no s no sentido de que ns humanos agimos no sentido de garantir uma certa regularidade e estabilidade nas operaes materiais e simblicas de nosso cotidiano, como partilhamos as vises sobre o que realidade. Da a impossibilidade da ocorrncia de outro espantalho com o qual tentam nos amedrontar, se no formos realistas, a do relativismo, a de que haveria tantos pontos de vistas sobre o real quantos indivduos existissem. Isto no ocorre simplesmente porque nenhum9

Durval Muniz de Albuquerque Jniorindivduo existe sozinho; a identidade individual, o prprio indivduo um produto social, somente na sociedade moderna que pde emergir a idia de indivduo e a identidade individual. A produo da realidade gerida socialmente, existem instncias, instituies, lugares privilegiados de sujeitos, responsveis por produzir socialmente a realidade, figuras e modelos de reais, entre eles, os intelectuais, ns historiadores. A realidade uma construo poltica, e isto fica muito claro ao lermos como os historiadores descrevem a realidade de nosso tempo. Existem lutas em torno da definio da realidade, e disso que se trata quando fazemos anlise historiogrfica ou quando escrevemos histria, mesmo que seja a realidade do passado, que construmos sempre, na verdade, a par com a realidade que vemos ou queremos para o presente. Ningum mais em nosso campo aceita a pretenso rankeana de se dizer as coisas tal como se passaram. Sabemos todos que o que faz o historiador reconstruir as verses sobre o passado que os homens que nele viveram foram capazes de construir. O que nos chega do passado nos vem como signos que precisam ser significados ou nos vem como significaes dadas por uma dada poca e por dados homens a seu prprio tempo, s suas aes ou a eventos que tenham vivenciado ou analisado. O historiador opera sempre com a realidade, mas opera no com a realidade em si mesma, como coisa, como objeto naturalizado, mas como realidade construda pelos homens em suas diversas prticas, discursivas ou no. O fragmento do passado que nos chega real e nos fala de sentidos dados para a realidade de uma dada poca e sociedade, mas como todo fragmento emprico da realidade ele necessita passar por operaes de imaginao, significao, inteleco, para se tornar uma realidade para ns, para que passe a funcionar em nosso tempo, para que volte a viver entre ns. Como podemos negar a realidade se temos o documento mo, ainda que a realidade que elaboramos a partir do documento no seja garantida pelo papel e pelas letras que apalpamos, mas pelas operaes de significao que faremos sobre o passado. O racionalismo O debate que colocaria em campos opostos racionalistas e irracionalistas, marcaria o debate historiogrfico de nosso tempo. Perplexos assistimos historiadores se colocarem como racionalistas, definirem o racionalismo como um10

Durval Muniz de Albuquerque Jniorparadigma, que teria como rivais os ingnuos ou de m f ps-modernos, que seriam irracionalistas descabelados19. Acabamos descobrindo que alguns historiadores teriam o monoplio do uso da razo e os outros seriam capazes, no se sabe como, de escreverem livros e teses sem o uso da racionalidade, mas usando a irracionalidade. Em outras formulaes, racionalismo e irracionalismo aparecem como se nomeassem grupos antagnicos, partidrios ou no da razo, como se pudssemos ser a favor ou contra a razo. Que existam intelectuais que tenham optado pelo no uso da razo j nos parece uma extravagncia, mas extravagncia maior nos parece fazer do uso da razo profisso de f e base para um proselitismo quase religioso. Este debate me parece tambm eivado de equvocos, que gostaria de comentar. Embora, muitas vezes, se possa localizar a confuso nas prprias formulaes dos ditos racionalistas, eles deixam claro que defendem uma dada imagem da razo, a imagem construda no sculo XVIII, pelo Iluminismo. Defender a Razo j que alguns a grafam assim, com maisculas, assumindo o carter metafsico da descrio que admitem para ela defender a imagem que os iluministas construram para a racionalidade20. Este procedimento no seria de estranhar se estivssemos entre filsofos, entre metafsicos, mas entre historiadores lamentvel. Como podemos pensar que a racionalidade humana tenha se manifestado, sido pensada e praticada numa s direo, tido uma s definio? Por que temos que continuar defendendo uma imagem da razo que foi construda no sculo XVIII, uma imagem que exclua da racionalidade uma grande parte das experincias humanas, como as experincias religiosas e mticas, e mesmo partes da humanidade inteira como: as mulheres, as crianas e os considerados brbaros ou selvagens? O que se costuma chamar de irracionalismos so outras maneiras de descrever e praticar a racionalidade. So consideradas irracionalistas, prticas e discursos que buscam trazer para o campo da racionalidade experincias que foram silenciadas ou proibidas pela racionalidade ocidental iluminista. Isto no implica em considerar o racionalismo iluminista como o responsvel direto pelo holocausto ou pelo nazismo, estupidez que teria sido dita por algum ps-moderno, no se sabe onde. Isto seria uma simplificao to grave quanto aquela que considera os fascismos ou o anti-semitismo como manifestaes irracionalistas, quando elas tiveram racionalidades prprias que preciso investigar. Creio haver nesta11

Durval Muniz de Albuquerque Jniordiscusso um encoberto moralismo, que era denunciado por Nietzsche21 ainda no sculo XIX, ou seja, a idia de que a racionalidade deva ser intrinsecamente boa ou m, o mesmo ocorrendo com aquelas manifestaes humanas que dela escapassem. Nada garante que a racionalidade no possa desembocar em discursos e atividades que coloquem em risco a existncia da prpria espcie humana, o mesmo se podendo dizer do que se chama de irracionalismos. Creio que aps a enunciao do inconsciente feita por Freud e de como este participa em todas as nossas aes, a dicotomia entre racionalidade e irracionalidade, conscincia e inconscincia s se pode manter a custas de fazer-se de conta que o mdico austraco e seu pensamento no existiram22. Nossas aes e nossos discursos esto sempre mediados por esquemas racionalizadores e por impulsos, desejos e sensaes pouco racionalizadas, quando no inconscientes. As paixes nos movem tanto quanto as razes, inclusive quando se trata do debate historiogrfico, onde se podem flagrar argumentos racionais substituindo evidentes antipatias pessoais e irracionais vontades de poder e de domnio. O grave na forma como este debate vem se travando entre ns que racionalista e irracionalista se tornaram lugares de sujeito, quando no pechas que so atiradas sobre um autor ou sobre uma obra inteira, apenas para desqualific-los e no para compreend-los, j que estes conceitos oferecem um grau de compreenso bastante baixa. O que nos ajuda a compreender a historiografia praticada por Michel Foucault, seu pensamento, os conceitos com que trabalha, o modelo de historiografia que prope, chamando-o de irracionalista?23 Isto porque questionou atravs de um livro seminal como Histria da Loucura24 esta imagem da racionalidade que foi estabelecida pela modernidade, chamando ateno para o fato de que esta se estabeleceu, como no poderia deixar de ser, s custas de excluses, como as das prticas e discursos tidos como de loucos. O que denunciou Marx se no uma dada racionalidade da economia capitalista construda pela economia poltica inglesa, propondo com O Capital25 uma nova racionalidade para esta sociedade. No creio que exista algo como a Razo, o que existem so maneiras de racionalizar o mundo, que so caractersticas de cada poca e de dadas sociedades. O mito ou a religio longe esto de serem apenas manifestaes irracionais. H nelas, como Levi Strauss e Mircea Eliade26 tanto tematizaram, um ncleo de racionalidade, so formas de inteligibilidade, de explicao racional do12

Durval Muniz de Albuquerque Jniormundo, onde a dimenso irracional est presente, como est presente em nossos discursos cientficos, embora no neguemos que estes, por serem muito mais normatizados e metodizados, representem um esforo racionalizador diferente daqueles representados pelos saberes mticos ou religiosos27. Se considerarmos que a chamada nova histria ou a histria cultural seriam irracionalistas por abordarem temas e chamarem a ateno para aspectos pouco racionalizveis da experincia humana, seria confundir o objeto do historiador com a sua prpria prtica. No porque se prope a fazer uma histria da loucura, do sonho ou da seduo, que algum se torna irracional, seu texto se torna irracional. A histria cultural apenas pe em questo a idia, prevalecente durante muito tempo entre os historiadores, de que todas as aes humanas so presididas apenas pela racionalidade e por isso podem ser racionalizveis, explicveis pelo historiador. As dimenses irracionais ou inconscientes de nossas prticas devem ser, tambm, objeto de estudo por parte da historiografia. Da mesma forma que no se irracionalista por que se promove uma crtica a uma dada racionalidade, a uma imagem da razo, como a iluminista. O que fazem os historiadores do escravismo seno criticar a lgica, a racionalidade que sustentou a escravido? O escravismo estava longe de ser apenas irracional; mesmo do ponto de vista econmico, ele obedecia a uma racionalidade. No consigo pensar a razo, ou melhor, a racionalidade seno atravs das prticas humanas e histricas que a materializam, no consigo, at porque no sou filsofo metafsico pensar na racionalidade como uma faculdade humana em si mesma, desligada de seu uso e de seus abusos. A razo enquanto faculdade no nos interessa a no ser quando passa a reger prticas e discursos histricos28. A verdade Se existe um debate interminvel entre os historiadores aquele que aborda a questo da verdade em nosso campo. O debate em nossa historiografia apaixonado e se daria entre os veristas, aqueles que colocam a verdade como princpio ou obrigao moral a ser perseguidos pelo historiador e aqueles que no mais acreditariam na verdade, que por isso equivaleriam os textos dos historiadores a qualquer narrativa, inclusive de fico, para os quais histria e literatura no teriam nenhuma diferena. Suponho que ningum mais pensa a verdade como a13

Durval Muniz de Albuquerque Jnioradequao perfeita entre a representao e a coisa representada, o significante e o significado, a coisa em si e o discurso que a toma como objeto29. Os longos debates que vm se travando, desde pelo menos o incio do sculo XX, sobre o papel da linguagem na construo do que entendemos por verdade, creio no permitir que tomemos a representao como mera operao de espelhamento de algo que lhe exterior. A verdade no o simples reflexo do objeto no esprito do sujeito, muito menos uma evidncia que se impe aos seus sentidos ou a sua inteligncia. Mesmo um epistemlogo preocupado em fundar uma cincia emprica e objetiva, como Karl Popper30, no deixou de reconhecer que a verdade do campo da conveno, produto social e intersubjetivo, e se elabora atravs da linguagem. A verdade no vem tona, no risca o cu num instante de revelao a partir do que ele chamou de procedimento indutivo motivado por uma experincia, pois toda experincia , desde o princpio, mediada pelo conceito. A verdade negociada, disputada, fabricada, instituda, dominada, produzida, atravs das relaes sociais e das instituies que so historicamente construdas e destinadas sua produo e legitimao. Por isso mesmo se pode falar em verdades de classe, verdades de gnero, verdades proibidas e permitidas. Isto no quer dizer que todas as verdades possam ser possveis, que tudo possa ser tomado como verdade, em uma dada poca ou espao. Toda sociedade institui uma poltica da verdade, uma economia da verdade, como tambm uma polcia da verdade. Cada poca aceita apenas determinadas verdades e a outras rejeita ou nem possibilita serem formuladas. Mais uma vez, caricaturar posies considerar que aqueles que defendem a no existncia de uma verdade absoluta, defendam o relativismo total da verdade. No se possvel dizer qualquer coisa como verdade, porque existem regras sociais, normas, instituies que regulam a produo do verdadeiro em cada sociedade. Aqueles que usam o argumento do holocausto para defender que preciso se acreditar, pois afinal um caso de crena, de que existe uma s verdade, uma s realidade, e que o historiador fala dela, esquecem de dizer que se no admissvel hoje que se diga que o holocausto no existiu, se nenhum historiador pode afirmar isso, no simplesmente porque estaria indo contra as evidncias, o que tambm seria, mas porque a comunidade dos historiadores, as instituies que regulam a nossa produo histrica no permitiriam, no legitimariam tal profissional.14

Durval Muniz de Albuquerque Jnior impossvel se pensar uma verdade para cada indivduo, pois quem define o que verdadeiro no o indivduo, mas as comunidades de fala a que ele pertence. Existe uma ordem dos discursos que rege o que pode ser dito e o que pode ser visto como verdadeiro em cada momento. A verdade relativa s regras sociais que mediam e regulam a sua produo, por isso podemos fazer uma histria das verdades, como estas foram institudas e formuladas em cada momento. A tese de que viveramos, em nosso campo, um momento relativista em que todas as verdades valeriam inaceitvel31. O campo historiogrfico, como qualquer campo cientfico, regido por regras que so definidas pelo conjunto das instituies e dos profissionais da rea. Existem leis de grupo, regras definindo o que pode e o que no pode ser aceito como verdade, em cada momento histrico. O saber histrico no relativista, ele relativo s suas regras de produo. O saber histrico no arbitrrio, mas arbitrado pelos pares, como diz Michel de Certeau32. por isso que as dissertaes e as teses so submetidas a bancas examinadoras, realizam-se concurso para ingresso nos departamentos, existem conselhos editoriais avaliando os artigos enviados para publicao, tudo o que fazemos em termos de pesquisa na rea submetido a alguma forma de avaliao pelos pares, etc. Este tipo de discusso, do qual participa este texto, bem como todos os debates tericos e metodolgicos em nosso campo tratam de definir quais so as regras de produo da verdade entre ns, que modelos historiogrficos so legtimos ou no de ser praticados, que problemas, que temas, que conceitos so pertinentes ao nosso saber, neste momento. Na historiografia, como em qualquer campo da cincia, as verdades so formuladas para serem retificadas posteriormente33. A busca da verdade o que caracteriza a cultura cientfica, no o estabelecimento de verdades definitivas e incontestveis, como dizia Bachelard34. Esta busca da verdade pode ser feita a partir de vrios lugares institucionais e partindo dos pressupostos os mais diferenciados. No existe nenhum mtodo ou teoria que, a priori, garanta o melhor acesso verdade dos eventos. Uma teoria ou uma metodologia tem que ser testada quanto sua capacidade de resolver problemas para se estabelecer a sua utilidade ou no. Seria cair no dogmatismo afirmar que uma dada corrente historiogrfica ou que um dado campo da histria daria acesso ao que essencial, ao que importante conhecermos sobre o passado e outros ficariam apenas tratando do que perifrico,15

Durval Muniz de Albuquerque Jniormenor, o enfeite do bolo35. Este tipo de avaliao pura valorao subjetiva, , ironicamente, tal como gostam de dizer os auto-proclamados racionalistas sobre a produo dos que nomeiam como adversrios, pura ideologia, no sentido pejorativo do termo, puro juzo de valor36. Existem trabalhos valiosos para o avano do conhecimento em histria feitos tanto pela histria social, quanto pela histria cultural, tanto aqueles apoiados nas vrias vertentes do marxismo, como aqueles fundamentados pelo pensamento ps-estruturalista. A diversidade de pontos de vista que contribui para o aperfeioamento de nossos instrumentos de trabalho e para uma viso mais diversificada e global do processo histrico. Ao contrrio do que dizem os que se autodenominam de holistas, no uma dada corrente terica no campo da historiografia que detm a capacidade de apreender o processo histrico em suas linhas mais gerais. As amplas abstraes e os universalismos em nosso campo tendem para a simplificao e o esquematismo, j que a histria a cincia das singularidades, das particularidades, das diferenas, das rupturas, das mudanas, do acontecimento como corte com o semelhante e o repetitivo. Isto no implica em cairmos na to decantada e pouco realizada fragmentao. A tese da histria em migalhas de Franois Dosse37, repetida ad nauseum pelos crticos da historiografia dir ps-moderna ou da ps-modernidade, onde tudo seria fragmentao e esquizofrenia, quando esta apenas uma das formas de enxergar a ps-modernidade, curiosamente desenvolvida ao lado de uma crtica aos estruturalismos em histria, do qual o marxismo, pelo menos alguns deles, faria parte. No final no ficamos sabendo se Dosse quer uma histria estrutural, que tudo unifica em seus esquemas fechados e coerentes e, portanto, que tm pouco a ver com a realidade histrica, complexa e diversificada, e assim no teramos migalhas, ou quer uma historiografia que se diversifica em seus objetos e em suas abordagens para dar conta, justamente, de abordar a histria em suas mltiplas variveis, sem que com isso se perca o sentido de conjunto. Creio que esta dita fragmentao tambm est longe de ocorrer tal como pintam aqueles que querem us-la como argumento para atacar a historiografia contempornea38. O historiador nunca conseguir tornar inteligvel um dado objeto se no articul-lo com o contexto ou o processo histrico mais amplo. Como diz Veyne39, se fazemos o inventrio das diferenas, temos que tratar das semelhanas, porque em contraposio a estas que as diferenas aparecem. Se o historiador trata hoje das descontinuidades, no16

Durval Muniz de Albuquerque Jniorsignifica que no mapeia continuidades, pois justo em contraste com estas que o descontnuo pode ser percebido. Como poderei dizer que uma dada prtica ertica significa uma mudana nas relaes entre os sexos se no compar-la com o que era a rotina ou o hbito, o costume, num dado momento histrico? Neste debate, no meu modo de ver, h outro equvoco, que aquele que considera que chamar ateno para o carter narrativo da histria, tom-la como um discurso que tem suas prprias regras, que precisam ser historicamente analisadas, seria o mesmo que abrir mo de sua cientificidade ou o mesmo que reduzi-la a um dado gnero da literatura. A dimenso potica e ficcional da histria, seu carter tropolgico teria que ser negado sob pena desta perder a sua especificidade como conhecimento40. No partilho destes temores, porque o que garante a especificidade da histria como discurso no porque seja um discurso mais realista, ou seja, um discurso mais verdadeiro do que o da literatura, mas porque segue regras distintas das que presidem o discurso literrio, e entre elas est, justamente, a de se buscar dizer a verdade e se ater quilo que a documentao vinda do passado permite dizer. A cientificidade de um enunciado, no que concordam filsofos da cincia como Khun, Popper ou Bachelard41, no garantida por sua pretensa adequao realidade ou empiria, mas por surgir de procedimentos normativos, por observar regras como a da falseabilidade e da testabilidade. A busca da verdade um imperativo tico para o historiador, no uma garantia epistemolgica. Creio que a compreenso da noo de fico ou de potica ainda remete s formulaes positivistas do sculo XIX, que procurou separar radicalmente fato e fico, cincia e arte. Fico nada tem a ver com mentira, com falseamento, com o no verdico. Ficcionar dotar de sentido, imaginar um significado, urdir numa trama, enredar um dado evento. Neste sentido a historiografia, como todo discurso, ficcional, pois estabelece conexes entre os eventos que no esto imediatamente neles. Os fragmentos do passado que nos chegam precisam ser articulados e , neste momento, que nossa capacidade potica, ou seja, nossa capacidade de imaginar ligaes entre os eventos, de elaborar compreenses que articulem estes fragmentos, indispensvel para que haja histria. No se nega o carter potico ou ficcional das narrativas dizendo que nossas prprias aes so narrativas, que elas existem em nosso prprio cotidiano42. Isto s refora o fato de que o homem um ser potico, que em momento nenhum da vida deixa de exercitar esta capacidade de17

Durval Muniz de Albuquerque Jniorsimbolizar, de construir metforas, de elaborar imagens, de produzir enunciados que dizem, apontam, definem, ordenam, classificam, mostram, fazem ver o que est acontecendo, o que so as coisas e o que somos ns. No nos tornamos mais realistas quando admitimos que a narrativa faz parte da aparelhagem de que os homens dispem como espcie para se relacionar com o mundo. Isto s refora que somos seres simblicos, poticos, culturais, em qualquer momento ou sociedade. A tentativa de se encontrar um momento anterior cultura, relaes que seriam mais decisivas que as culturais ser um fracasso. A menos que retornemos ao naturalismo ou ao determinismo biolgico, temos que admitir que todas as relaes humanas so culturais, todas as relaes sociais so possveis porque so mediadas pela comunicao que, mesmo em suas formas mais rudimentares, j so simblicas, portanto, culturais. As relaes do homem com a natureza, as relaes econmicas, as relaes de produo, as relaes de classe so, desde o princpio, culturais ou no seriam relaes. Da porque discutir o que determinante ou mais importante nos eventos histricos s tem sentido em contextos e em eventos especficos e no universalmente, enunciando-os como lei. Neste sentido, toda histria cultural, assim como toda histria social, no tendo sentido estas divises maniquestas e que servem, sabemos bem, para as disputas por poder, recursos, cargos, espaos no interior do campo historiogrfico. No advogo que no haja diferenas entre a histria social e a histria cultural, mas a diferena est apenas no enfoque, quanto aos elementos que so privilegiados no momento de se recortar o campo histrico, quanto aos objetos e aos problemas selecionados. Mas no existem diferenas de fundo, estas dicotomias que destinariam uns ao paraso e os outros s fogueiras do inferno. Tanto fazemos uma histria social da cultura, quanto uma histria cultural da sociedade, embora, apenas privilegiemos dados elementos no momento de definirmos nossos objetos de pesquisa, o que no nos fazem melhores ou piores do que os outros43. No consigo imaginar como um historiador cultural possa abrir mo da idia de sociedade e como um historiador social possa no tratar de elementos culturais. Se o conceito de cultura complexo e tem sido lido de mltiplas formas, no diferente o que ocorre com a noo de sociedade, que tambm tem, apenas no campo da sociologia, vrias formulaes. A noo de sociedade tem uma histria e no auto-evidente tanto quanto a de cultura. Precisamos sempre historicizar as categorias com que lidamos. Esta uma18

Durval Muniz de Albuquerque Jniordas regras do saber histrico, portanto, no existem, em si mesmas, nenhuma categoria que seja melhor ou pior que outra, todas so abstraes, so elaboraes que nascem da reflexo sobre as prticas humanas, nenhuma delas, no entanto, correspondem perfeitamente a estas prticas. Advogar que abandonemos o conceito de cultura me parece to extravagante quanto seria advogar que devssemos abandonar a noo de sociedade, por causa das dificuldades que possa trazer, em utiliz-la ou por causa das formas como j foi compreendida. O holismo bastante irnico ver os crticos da sociedade ps-moderna reivindicarem o holismo como postura filosfica, j que um dos traos desta sociedade ps-moderna , justamente, o revival holista. Um dos gneros de maior consumo no campo literrio so as pseudo-abordagens holistas do mundo, onde se reivindica, entre outras coisas, o fim da separao, estabelecida pela modernidade, entre o pensamento cientfico, o pensamento racional e o pensamento religioso. A ressacralizao do conhecimento e da sociedade, inclusive a perigosa articulao entre religiosidade e poltica, feita em nome de uma viso holstica do mundo. Charlates de todas as marcas e quadrantes oferecem literaturas de auto-ajuda, terapias holsticas para todos os males do corpo e da alma. O que no de se estranhar, j que os holismos, seja de que matriz partam, quase sempre so apresentados como formas no s de compreender o mundo em sua totalidade, em sua essncia, dando um acesso fcil e imediato verdade, s vezes, quase sem necessitar mais de se realizar a pesquisa, j que se sabe antes qual o determinante macro-estrutual que d sentido e significado quele todo, como tambm oferecem solues, remdios, oferecem receitas, caminhos, projetos para a realizao da felicidade, do bem, da justia e da verdade na terra. Do meu ponto de vista, o pressuposto da historicidade das coisas, ponto de partida de todo conhecimento em histria, probe qualquer pretenso holista em nosso campo. Embora no duvide que as prticas humanas sejam estruturadas, que existam ordenamentos construdos pelo prprio homem, que existam regularidades no que fazemos, pensamos e sentimos, no so apenas estes elementos que constituem a histria e, alis, por sua viscosidade e tendncia conservao so os que tm importncia secundria na hora de pensarmos a historicidade, que dada pela mudana, pela19

Durval Muniz de Albuquerque Jniordescontinuidade, pela transformao. Muito mais importante para ns, historiadores, so os eventos, os acontecimentos, as prticas desviantes, de resistncia, de contestao s estruturas, aquilo que pode ser considerado como desordem, elementos perifricos ou marginais estrutura, aquilo que irregular e disruptivo. O mais preocupante so as formulaes que advogam que s com um pensamento holista, ou mais claramente ainda, s com o marxismo, seria possvel atuar politicamente, no sentido da critica sociedade atual e no sentido de sua transformao. Estes teriam o monoplio da crtica ao capitalismo, porque s eles o compreenderiam em suas leis mais gerais, s eles estariam comprometidos com a escrita de uma historiografia crtica dos valores do nosso tempo e s eles seriam capazes de apontar para o caminho a seguir, quando se trata de revolucionar a sociedade. O que nos deixa perplexos perceber como historiadores podem ter uma viso pouco histrica dos fenmenos, inclusive no que tange s prticas polticas. Como se pode advogar que existiriam formas corretas, sempre as mesmas, de se fazer poltica e de se realizar a crtica a sociedade e de atuar no sentido de sua transformao? Se estamos vivendo um novo momento do sistema capitalista, dado que admitem, se estamos vivendo um novo momento da poltica internacional, o que tambm admitem, como sustentar que so as velhas e tradicionais formas de se pensar e praticar a poltica que seriam eficazes no combate as formas sociais contemporneas? Vivemos, sem dvida, um momento de crise dos projetos ideolgicos que vieram do sculo XIX e que serviram para interpretar e se contrapor a sociedade capitalista tal como estava a estruturada. Estamos procura de construir e pensar novos projetos polticos, mais de acordo com a realidade de nosso tempo e no ser reagindo a qualquer tentativa de superarmos o sculo XIX ou sairmos dos modelos do sculo passado, que nos ajudar a formular projetos crticos para nosso tempo. Pretender ter o monoplio do senso crtico, pretender ter o monoplio da capacidade de formular interpretaes e projetos para a sociedade e oferecer alternativas polticas um caminho para a intolerncia. Evidentemente que, alguns, pouco esto ligando para serem politicamente corretos, at criticam quem pretende ser, so incorretos mesmo e formulam claramente o desejo de eliminao de seu oponente, o desaparecimento de quem no concorda com suas posies44. Este filme ns j vimos no que deu, ao longo de todo sculo passado, e se tem algum que deve aprender algo com as20

Durval Muniz de Albuquerque Jniorexperincias passadas, estes so os historiadores. Quem pretende deter o monoplio da verdade, quem coloca a sua posio terica ou poltica como a nica legtima, como o caminho, a verdade e a vida quanto cristos ainda so, e religiosos est na ante-sala do totalitarismo, est a um passo de desejar que seus oponentes sigam para o gulag ou para clinicas psiquitricas, onde vo passar por um processo de correo de seus desvios burgueses; quem v conservadorismo e reao em tudo que discrepa de suas posies pode ser, justamente, o mais conservador e reacionrio, incapaz de admitir que as prticas polticas hoje devem ter outras formas e a historiografia pode ter outro papel a representar. No d para negar que vivemos um momento de individualismo, de narcisismo at, mas discordo de toda e qualquer abordagem que tende a ver um s lado das coisas, que focaliza um s aspecto de nosso tempo. A centralidade que o individuo ganhou nas formulaes polticas contemporneas no significa apenas a perda de uma perspectiva totalizante de transformao do mundo, que antes, muitas vezes, no conseguia mudar sequer a vida do indivduo que a professava. Como a mudana ia ocorrer no futuro e fora dele, ele e seu tempo nada tinham a mudar imediatamente. Como se ia mudar o sistema se este era uma entelquia, uma entidade, que no passava pelos indivduos, que no era reproduzido em suas relaes imediatas. Podia-se continuar sendo machista, racista, homofbico, preconceituoso, que tudo isto seria resolvido depois com a vitria da revoluo. Nosso tempo recolocou os indivduos, inclusive seus corpos, novamente no campo da poltica, politizou o cotidiano, presentificou as lutas, responsabilizou as pessoas em todas as suas relaes, trouxe a poltica da esfera etrea e distante do Estado, para a esfera da intimidade, do privado, da empresa, da escola, das instituies onde este Estado se apoiava para se legitimar e se reproduzir. evidente que, como em todo momento histrico, estas prticas e formas da poltica tm seus limites e suas contradies. Nunca houve prtica poltica, ideologia ou instituio que no reproduzissem a sociedade que as gerou, mesmo aquelas que pretenderam ser radicalmente contra a sociedade da qual faziam parte. Vrios estudos histricos mostraram como, tanto o anarquismo, como as vrias correntes socialistas, comungaram com valores modernos e com elementos fundamentais na reproduo do prprio capitalismo, como: a valorizao da tcnica e da cincia, a crena no progresso, a incorporao da tica do trabalho, etc.21

Durval Muniz de Albuquerque JniorNo consigo enxergar s egosmo, narcisismo, perplexidade, individualismo, em nosso tempo. Existem milhares de pessoas no mundo tentando fazer algo para que este possa ser melhor e possa se transformar. No porque no seguem a minha cartilha e a forma como penso a poltica ou a histria, que vou desvalorizar o trabalho destas pessoas, seus sacrifcios pessoais. Embora valorize e tome como tema questes que afetam o indivduo e a vida privada, a poltica no deixou de ser uma atividade coletiva, social, feita por novos tipos de instituies, que tm problemas como tiveram as tradicionais instituies da poltica moderna, como os partidos, os sindicatos ou os Parlamentos. Que direito eu tenho de dizer para um mdico que atua na frica, procurando minorar os sofrimentos de centenas de pessoas por dia ou aos militantes do Greenpace, que pem em risco suas vidas para defenderem a vida de uma baleia, que eles esto errados, equivocados, que eu que sei o que deve ser feito e que tenho a soluo para tudo isso. Perguntemos s pessoas que so salvas da morte todo dia, se elas querem esperar pela soluo final, pela teleologia da histria. Claro que uma prtica no exclui a outra, mas devemos valorizar estas atividades e atitudes como atividades polticas e, portanto, sermos capazes de perceber a crtica ao sistema que a est envolvida e no traarmos um cenrio de terra arrasada como comum. Mesmo na universidade, nos nossos departamentos, os professores comprometidos com um ensino de qualidade, com a pesquisa, com a produo cientfica esto tomando uma atitude que poltica, que no necessariamente tem que ser partidria e que tenha como ideologia um dado projeto poltico, o que em caso negativo transformaria todos em pessoas de direita; isto cheira caa s bruxas. A luta de classes continua se dando, com as especificidades de nosso tempo. A discusso se ela o ncleo explicativo ou no da histria, se ela a essncia a ser desvelada e descoberta sempre por trs de cada fato histrico, outra questo. No creio que a maioria dos historiadores, mesmo os ditos alienados ps-modernos, neoconservadores ou historiadores culturais, deixem de levar em conta as lutas sociais e as classes sociais quando abordam os seus temas. Apenas no fazem delas o cerne da histria, a explicao das explicaes; elas so elementos dos quais se deve avaliar a relevncia e a centralidade dependendo da temtica que se toma como objeto. A histria no passa sempre pelo mesmo lugar, embora os embates e as lutas quase sempre estejam a presentes, elas so de22

Durval Muniz de Albuquerque Jniorvrias modalidades e envolvem motivaes e relaes diferenciadas. Se levamos em conta as formulaes de um dos mais eminentes historiadores sociais marxistas contemporneos, Edward Palmer Thompson45, a classe tambm um acontecimento histrico, as identidades sociais em termos de classe, a conscincia de pertencer a uma classe um fenmeno histrico, portanto, singular e especfico da sociedade capitalista, portanto, no podemos dizer, como fez Marx no Manifesto do Partido Comunista46, que a histria sempre foi a histria da luta de classes, alis sempre e nunca so palavras proibidas para um historiador. Se as classes passaram a ser relevantes, social e politicamente, num dado momento histrico, porque no podem deixar de s-lo em outro momento, isto no significa renunciar poltica ou transformao social, mas to somente advogar que as formas histricas so mutantes, inclusive as formas de se fazer poltica e de transformar o social. Se a idia de revoluo poltica tambm emergiu com a modernidade, ela pode ser ressignificada em nosso tempo, sem necessariamente precisarmos abandon-la. Pensar como historiador, s vezes, difcil, porque significa termos que admitir que determinadas verdades, determinadas certezas, determinados caminhos que achamos os mais corretos, os mais indiscutveis, podem e sero tragados pelo tempo, se no tivermos a capacidade de ressignific-los, de atualizlos, de redefini-los. Ser historiador lidar com a morte de todas as coisas, inclusive de nossas certezas mais queridas. E foi o bufo Nietzsche47, que tanto recebe pancadas dos defensores do Iluminismo e de sua racionalidade, que apontou para o perigo da cultura histrica, justamente porque ela levaria ao niilismo, do qual o filsofo alemo um crtico, no um partidrio, como comum se ouvir dos leitores do ouvi dizer, to comuns na universidade brasileira. A histria, ao ameaar de morte todos os sonhos, todos os projetos, todas as iluses, todas as utopias, sem as quais o homem no viveria, sequer seria humano, poderia levar ao desespero, descrena e ao imobilismo, tudo aquilo que nossos ditos racionalistas enxergam no mundo contemporneo. S que eles acham que isso se d por falta de histria, da verdadeira histria, da histria corretamente interpretada, quando toda histria, corretamente interpretada ou no, promete a runa de todos os imprios e de todas as certezas. Aceitar isso , s vezes, muito dolorido, como vemos entre aqueles que acreditaram no socialismo real e como veremos, se estivermos vivos, com aqueles que acreditam que o imprio americano para sempre.23

Durval Muniz de Albuquerque JniorNotasCARDOSO, Ciro Flamarion,. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru, EDUSC, 2005, p. 35. 2 Chaga-se a estabelecer a rivalidade no s entre paradigmas, mas at entre conceitos, que seriam irreconciliveis. Ver: CARDOSO, Ciro Flamarion. Histria e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da histria, Rio de Janeiro: Campus, 1997, pp. 1-23 e CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedade e cultura: conceitos complementares ou rivais? In: CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, pp. 255-282. 3 BACHELARD, Gaston. A formao do esprito cientfico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. Encontramos afirmaes como esta: Acho que o movimento de idias em cujo bojo tomou forma a Histria Cultural j est sendo superado, como foi mencionado ao comear. Acredito que, de um lado, as debilidades intrnsecas dessa forma de pensamento e de Histria so evidentes demais para que ela perdure por muito tempo; e, de outro, que as mesmas circunstncias histricas que favoreceram o seu fortalecimento se encarregaro de entravar, no futuro prximo, a sua persistncia. CARDOSO, Ciro Flamarion, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 158. 5 O historiador Astor Antnio Diehl tem sido uma exceo, em todos os seus livros tem dialogado com a produo na rea de historiografia no Brasil. Ver: DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao. Bauru: EDUSC, 2002 e Teoria da Histria. Passo Fundo: UPF, 2004. 6 O professor Ciro Flamarion Cardoso, embora praticamente no cite seus pares para sustentar seus argumentos, deixa muito claro, em dada passagem de seu livro, com quem est dialogando: Em meu prprio Departamento de Histria (o da Universidade Federal Fluminense), quando se tenta introduzir uma argumentao mais ampla e teorizada nas planrias, a direita de planto (que inclui vrios membros da antiga esquerda que foram gradualmente cooptados pelo sistema), na atualidade numericamente predominante entre os docentes, tenta impedi-lo com a afirmao de se estar ideologizando o debate, uma atitude tpica do assim chamado pensamento nico, neoconservador. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. P. 175. 7 Citarei alguns nomes, me desculpando, desde j, pelas inevitveis omisses: Jos Honrio Rodrigues, Jos Roberto do Amaral Lapa, Francisco Falcon, Raquel Glezer e Ciro Flamarion Cardoso, que podemos considerar pioneiros neste labor, em nosso pas. Jurandir Malerba, Jos Carlos Reis, Asthor Diehl, Carlos Fico, Silvia Petersen, Estevo Martins, Manoel Luiz Salgado Guimares, ngela Maria de Castro Gomes, Maria Helena Capelato, Ronaldo Vainfas, Margareth Rago, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Temstocles Cezar, Maria Odila Dias da Silva, Michel Zaidan, Marcos Cezar de Freitas, Rogrio Forestieri da Silva, Jos de Assuno Barros entre outros. 8 uma prtica que toma vulto, entre ns, a de organizar coletneas de textos de autores internacionais em que as posies do prprio autor que organiza seriam corroboradas pelos textos escolhidos e pelos confrontos a estabelecidos. Ver MALERBA, Jurandir. A histria escrita. So Paulo: Contexto, 2006. A obra de Jos Carlos Reis, dialogando com a historiografia da Escola dos Annales, um exemplo de como podemos estar atualizados com o que se passa l fora e, ao mesmo tempo, podemos produzir reflexes prprias. Ver: REIS, Jos Carlos. Nouvelle histoire e tempo histrico. So Paulo: tica, 1994 e Tempo, histria e evaso. Campinas, Papirus, 1994. 9 Ver, por exemplo: HARVEY, David. A condio ps-moderna. So Paulo: Loyola, 2003; JAMESON, Frederic. Ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio. So Paulo: tica, 1996; KAPLAN, E. Ann. O mal-estar no ps-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993; EAGLETON, Terry. As iluses do ps-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998; LYOTARD, Jean-Franois. La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979. 10 Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Consideraes intempestivas sobre a utilidade e os inconvenientes da Histria para a vida. In: Escritos sobre a Histria. Rio de Janeiro: PUC-Rio; So Paulo: Loyola, 2005, pp. 67-178; BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itlia. So Paulo: Companhia das Letras, 1991; HUIZINGA, Johan. El concepto de la historia y otros ensayos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1946. 11 Jos Carlos Reis vai abordar a contribuio que a prpria crtica marxista teria dado para a emergncia do que hoje chamado de ps-modernismo, o pensamento marxista, junto com o pensamento freudiano, nietzscheano e saussurreano, como primeiras crticas estruturais e radicais modernidade, seria elemento indispensvel para entendermos o pensamento contemporneo, para a 244 1

Durval Muniz de Albuquerque Jnioremergncia da cultura ps-moderna. Ver: REIS, Jos Carlos. Histria e Teoria. 3 ed. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2006. 12 HARVEY, David. Op. Cit. 13 JAMESON, Frederic. Op. Cit. 14 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994. 15 FUKUIAMA, Francis. The end of History and the last man. New York: The Free Press, 1992. 16 Que este um dilogo de surdos, concorda o historiador Jurandir Malerba, embora reproduza em seu texto as dicotomias que tm estruturado este dilogo em que ningum escuta os argumentos contrrios. Ver: MALERBA, Jurandir. Teoria e histria da historiografia. In: A histria escrita, pp. 1126. O historiador Jos Carlos Reis tem proposto a sada destas dicotomias propondo que se avalie a contribuio que cada vertente da historiografia tem trazido para nosso campo, avaliando os ganhos e perdas que teramos com as mutaes que vm acontecendo nas prticas e modelos historiogrficos. Ver: REIS, Jos Carlos. Histria & Teoria. 17 O professor Ciro Flamarion Cardoso, para afirmar o realismo, parece advogar uma espcie de retorno ao naturalismo, apoiado, diz ele, nas novas descobertas da Paleoantropologia e da Neurobiologia, que permitiriam afirmar que nosso crebro ao codificar a realidade, portanto, ao simboliz-la, seria capaz de copi-la tal como ela verdadeiramente , sem nenhuma deformao ou deturpao, produzindo modelos adequados realidade. Resta saber quem define o que adequado, quando retornaramos a presena da subjetividade que se quer expurgar, a no ser que seja a prpria realidade que defina o que adequado, o que nos levaria a um novo animismo. Ns historiadores sabemos bem em que resultaram as tentativas de explicar a realidade social usando como recurso os avanos nas pesquisas sobre a natureza e sobre a biologia humana. Ver: CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, pp. 57-63. 18 Ver: VALLEJO, Amrico e MAGALHES, Lgia. Lacan operadores de leitura. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1991, p. 116. 19 Diz Ciro Flamarion Cardoso, ao deixar claro qual seria o seu lugar de fala e os inimigos que buscaria abater: Meu caso pessoal o de um profissional da Histria visceral e convictamente racionalista, por tal razo oposto ao ps-modernismo e, como intelectual muito influenciado pelo marxismo, tambm ao neoconservadorismo norte-americano. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 34. O mesmo autor publicou um conjunto de ensaios que fez questo de nomear como racionalistas. Ver: CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro, Campus, 1988. 20 o que faz Ciro Flamarion Cardoso no texto Histria e paradigmas rivais, onde o Iluminismo se torna um paradigma contraposto a um outro nomeado de ps-moderno. Ver: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria, pp. 1-23. 21 Ver NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Cincia. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. 22 Ao enumerar os componentes bsicos da psique humana, Ciro Flamarion Cardoso omite a inconscincia, que tanto quanto a cognio, a emoo e a conscincia, participa de qualquer atividade humana, inclusive da atividade de conhecimento e inteleco do mundo, ou seja, nossas relaes so mediadas no apenas pela racionalidade, mas tambm pela irracionalidade e esta deve ser levada em conta quando se escreve histria e quando se reflete sobre a prtica do historiador. Ver: CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 61. 23 Veja um resumo rigoroso que Ciro Flamarion Cardoso faz da contribuio que Foucault teria trazido para o estudo das teorias brasileiras sobre a identidade nacional e a cidadania excludentes: Em caso extremo, a comunidade em questo aparece como uma espcie de fabricao de um sinistro compl de poderes que operam em favor de interesses excusos: se quisssemos ser caricatos [ele mesmo admite a caricatura], assim, por exemplo, poderamos percebe-las nas teorias brasileiras sobre a identidade nacional e a cidadania excludentes, forjadas pelas elites em sucessivas etapas e modalidades, com seu acompanhamento de estudos base de Foucault acerca da construo concomitante dos tipos criminosos, desviantes ou classificveis segundo alguma patologia cultural ou social.... Cardoso, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 182. 24 FOUCAULT, Michel. Histria da Loucura. So Paulo: Perspectiva, 1978. 25 MARX, Karl. O Capital. 7 ed. So Paulo: Difel, 1982. 26 Ver: STRAUSS, Levi. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989; ELIADE, Mircea. Tratado de histria das religies. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. 27 Da porque Bachelard chega a propor uma psicanlise da prtica cientfica. Ver: BACHELARD, Gaston, Op. Cit. 25

Durval Muniz de Albuquerque JniorEstas questes acerca do racionalismo e do Iluminismo esto exaustivamente tematizadas e respondidas nos vrios textos, conferncias e entrevistas dadas sobre este tema por Michel Foucault, com o qual partilho as mesmas concepes. Ver: FOUCAULT, Michel, Arqueologia das cincias e histria dos sistemas de pensamento (Ditos e Escritos II). 2 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2005. 29 Ciro Flamarion Cardoso aborda em termos quase apocalpticos este momento em que a historiografia estaria abandonando a busca da verdade, quando me parece que o que est em discusso como se pensa a verdade e a sua busca, que tambm se modificam historicamente: Voltando as armas crticas dos estruturalistas contra as prprias cincias sociais e humanas, trataram de enunciar o fim de vrias possibilidades: de buscar a verdade, de um eu unificado, da fundamentao de sentidos inequvocos, de legitimao da civilizao ocidental, de revolucionar em profundidade as estruturas sociais. Tal movimento intelectual desembocou, previsivelmente num estado de coisas suspenso entre o niilismo e o pansemiotismo, numa negao da explicao em favor da hermenutica relativista. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 79. 30 POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix, 1974. 31 No texto Histria e verdade: posies, Jos Carlos Reis perfila distintas formas de se conceber a verdade em histria, mas no vejo como nenhuma delas autoriza a se falar num relativismo em nosso campo. Relativismo e relatividade do conhecimento so coisas distintas. Aceitar que a verdade produzida por qualquer conhecimento relativa s suas condies de produo, ao seu tempo e s suas regras de produo, no o mesmo que dizer que tudo pode ser tido como verdade e todo enunciado tido como verdadeiro tenha a mesma legitimidade social. Tendo a concordar com as concluses deste seu artigo. Ver: REIS, Jos Carlos. Histria e verdade: posies. In: Histria & Teoria, pp. 147-177. 32 CERTEAU, Michel de. A operao historiogrfica. In: A Escrita da Histria.. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002, pp. 65-122. 33 Esta a opinio de estudiosos da cincia como Thomas Kuhn, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend, Bruno Latour, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers. Ver: KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 9 ed. So Paulo: Perspectiva, 2006; BACHELARD, Gaston, O p. Cit.; FEYERABEND, Paul. Dilogo sobre el mtodo. 2 ed. Madrid: Ctedra, 1989; LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 3 ed. So Paulo: Editora 34, 2005; PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. 3 ed. So Paulo: UNESP, 1996; STENGERS, Isabelle, A inveno das cincias modernas. So Paulo: Editora 34, 2002. 34 BACHELARD, Gaston. Op. Cit, p. 14. 35 H uma tendncia de se apresentar o materialismo histrico como sendo o nico caminho capaz de permitir o acesso a verdade essencial dos fenmenos que, curiosamente, j sabemos de antemo qual , sem implicar em nenhum esforo de pesquisa, pois sempre ser o modo de produo e, como conseqncia, a luta de classes que explicam verdadeira e definitivamente os fenmenos, o que tornaria a pesquisa em histria no apenas fcil, mas bvia e tediosa. 36 Normalmente quando se usa a noo de ideologia como uma pecha para desqualificar o pensamento de algum outro autor, costuma-se esquecer que todos os textos, inclusive, o de quem tenta desqualificar o outro tambm ideolgico, a no ser que ainda se lide com a clssica concepo de ideologia como mascaramento do real e ainda se acredite que o discurso cientfico escaparia da ideologia, afirmao oposta quela feita pelo prprio Marx. Ideolgico no sentido rigoroso do termo, ou seja, uma dada forma de ver o mundo, de se posicionar diante do social, que pode vir acompanhado de um projeto para a sociedade e para a histria, so todos os textos. 37 Ver: DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Bauru: EDUSC, 2003 e Histria do estruturalismo. Bauru: EDUSC, 2003. 38 Mesmo Jos Carlos Reis, que critica o fato de apenas se levar em conta as possveis conseqncias negativas desta fragmentao, a admite como realidade, como uma situao indiscutvel do saber histrico contemporneo. Ver: REIS, Jos Carlos, Da histria global histria em migalhas: o que se ganha, o que se perde?. In: Teoria & Histria, pp. 67-96. Acho que h uma confuso entre diversidade temtica e de objetos e fragmentao dos procedimentos de anlise, perda da relao entre singular e regular, evento e estrutura na historiografia ps-sessenta. 39 Ver: VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. Braslia: EDUNB, 1982 e O inventrio das diferenas. So Paulo: Brasiliense, 1989.28

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Durval Muniz de Albuquerque JniorO grande vilo aqui , sem dvida, Hayden White, que veio chamar ateno para o carter tropolgico da narrativa histria e a importncia da prefigurao potica para o trabalho do historiador. Ver: WHITE, Hayden. Trpicos do discurso. So Paulo: EDUSP, 1994. 41 KUHN, Thomas. Op. Cit, p. 24; POPPER, Karl. Op. Cit., pp. 42-45; BACHELARD, Gaston. Op. Cit., pp. 14-17. 42 Esta posio de David Carr, tambm defendida por Ciro Flamarion Cardoso, como uma forma de se contrapor, diz ele, ao pressuposto de que os fatos reais humanos no se agrupam como nas narrativas; qualquer texto narrativo que deles pretender dar conta os falseia necessariamente pela sua prpria forma narrativa de ser. Esta pressuposio em Histria levaria ao ceticismo epistemolgico, que atribudo a autores e correntes to dspares como: os ps-estruturalistas franceses como, por exemplo, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, e a Richard Rorty, Hayden White e Dominick LaCapra, nos Estados Unidos. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de histria e metodologia, p. 64. 43 Esta dicotomia introduzida por Roger Chartier no ajuda muito compreenso das relaes entre relaes sociais e formas culturais, num dado momento histrico e num dado recorte espacial. Ver: CHARTIER, Roger. Histria cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro, Bertrand, 1990. Esta dicotomia sem sentido entre sociedade e cultura levada ao paroxismo no texto de Ciro Flamarion Cardoso, Sociedade e cultura: conceitos complementares ou rivais?. In: Um historiador fala de teoria e metodologia, pp. 255-282. 44 Diz Ciro Flamarion Cardoso: No mundo globalizado em que vivemos, conflitivo e mais heterogneo do que nunca, a meu ver a insistncia exclusiva numa Histria que exclua vises de conjunto em favor de um interesse exclusivo em microanlises, vivncias e subjetividades se assemelha a atitude que se atribui ao avestruz: trata de no ver para no ter que tomar partido [o autor sempre raciocina em termos de partido] ou atuar. Cardoso, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 167. 45 THOMPSON, Edward P. A formao da classe operria inglesa. (3 vols.). So Paulo: Paz e Terra, 1987. 46 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: Obras Escolhidas. So Paulo: Alfa-mega, s/d, pp. 13-47. 47 Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre a Histria.40

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