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TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

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© Enrique Dussel© 1995, Potrerillos Editores S.A. de c.v.Vicente Suárez 72 - Colonia Condesa - Ciudad de MéxicoTítulo do original espanhol: Teología de la liberación - Un panorama de 5U

desarrollo.

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ÍNDICE

PREFÁCIO, 7

CAPÍTULO PRIMEIRO

IDEOLOGIA E HISTÓRIA DA TEOLOGIA, 9

Constituição ideológica da teologia, 9

Condicionamentos ideológicos da teologia do "centro", 15

CAPÍTULO SEGUNDO

HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA I, 23

PRIMEIRA ÉPOCA. Primeira Teologia da Libertação. Teologia proféticaentre a conquista e a evangelização (desde 15 11), 23

SEGUNDA ÉPOCA. A Teologia da cristandade colonial (1533-1808),29

TERCEIRA ÉPOCA. Segunda Teologia da Libertação. Teologia revolucio­nária diante da emancipação contra a Espanha e Portugal (desdemeados do século XVIII), 34

QUARTA ÉPOCA. A teologia neocolonial na defensiva (até 1930),40

QUINTA ÉPOCA. A teologia da "Nova Cristandade" (desde 1930),42

CAPÍTULO TERCEIRO

HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA II (Sexta época), 51

PRIMEIRO PERÍODO. Da teologia européia à latino-americana(1959-1968),51

SEGUNDO PERÍODO. Formulação da Teologia da Libertação(1968-1972),59

TERCEIRO PERÍODO. A Teologia da "Igreja dos pobres" no cativeiro eno exílio (1972-1979), 79

QUARTO PERÍODO. A Teologia latino-americana diante da revoluçãocentro-americana e os novos ataques (desde 1979), 91

QUINTO PERÍODO. Desde a "Instrução" romana de 1984, 102

Novos desafios da Teologia da Libertação no início da década de no­venta, 108

Glossário, 120

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PREFÁCIO

No debate, pela primeira vez em âmbito mundial, do tema dateologia da libertação latino-americana, provocado em parte peloaparecimento da "Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Li­bertação" da Sagrada Congregação para a Doutrina da fé - promulga­da em Roma no dia 6 de agosto de 1984, mas só publicada em 3de setembro pelo Cardeal Joseph Ratzinger (meu professor emMuenster em 1964) - colheu muitas pessoas um tanto despreveni­das, já que passaram a se indagar sem um prévio conhecimento: oque é essa teologia da libertação?

Na realidade, na Europa latina ou germânica, ou na eslava (in­cluindo a Rússia ou a Polônia), a América Latina é a grande desco­nhecida. Algumas pessoas podem pensar que a teologia dalibertação não possui antecedentes e é uma criação de alguns teó­logos e produzida por situações totalmente novas. Desejaríamosque tomassem consciência de que os grandes momentos criadoresde teologia na América Latina foram, desde sua origem, teologia dalibertação diante da opressão sofrida pelos "pobres" de nosso con­tinente. No começo, e para o agora tão celebrado "descobrimento"- que na realidade foi conquista, violência e morte dos ameríndios -,os pobres foram os indígenas ou primitivos habitantes americanos;depois as vítimas foram os crioIlos ante os "europeus intrusos" ­como os denominava o grande herói rebelde cristão Túpac Amam- e na atualidade são as massas populares de operários, camponeses,etnias, marginais, o bloco social dos explorados pelo capitalismonacional e transnacional. Diante dessas três opressões históricas ­que se sucedem no tempo e que possuem o mesmo sujeito histó­rico: o povo latino-americano - e quando se produz objetivamenteuma práxis de libertação do mencionado povo, já surgiram em três oca­siões teologias da libertação. Se aqueles que desejam condenar-nossem conhecer a nossa realidade se debruçassem com mais atençãosobre a nossa história, é possível que não recaíssem em erros pas­sados. É necessário não esquecer que o Papa Pio VII condenou a

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emancipação americana contra a Espanha a 30 de janeiro de 1816 emsua encíclica Etsi longissimo. E como uma nova incidência no mesmoerro político do papado - já que nesse nível, como no da recente"Instrução", em nada está comprometida a infalibilidade pontifi­cia, pois se trata de disposições referentes ao nível político mais queao espiritual, como veremos - uma nova encíclica, a Etsi iam diu de24 de setembro de 1824, volta a condenar as lutas da emancipação,aconselhando obediência ao Rei da Espanha, "nosso muito amadofilho Fernando", no qual o Papa observa "sublime e sólida virtude"- sendo que na realidade fugiu covardemente deixando a defesa dapátria contra a invasão napoleônica nas mãos do próprio povo es­panhol. Por fim, carência de conhecimento romano da nossa reali­dade, devido a uma informação deficiente. Épor isso que a históriapoderá nos defender diante de decisões precipitadas.

Enrique DusselCidade do México, 1995

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CAPÍTULO PRIMEIRO

IDEOLOGIA E HISTÓRIA DA TEOLOGIA

o contexto da história da teologia na América Latina é a históriada teologia do "centro", originariamente do Mediterrâneo e da Eu­ropa e hoje, por extensão, dos Estados Unidos. O contexto da bio­grafia do filho é a biografia do pai, o que não quer dizer que o filhoseja o pai e sim, muito pelo contrário, que é somente o seu contex­to. A teologia latino-americana é filha da européia, porém é dife­rente; é outra: é um acesso diferente à mesma tradição porque surgenum mundo "periférico" dentro da época moderna mercantil pri­meiro e depois imperial monopolística. A teologia de um mundocolonial ou neocolonial pode por momentos refratar a teologia do"centro", mas, nos momentos criativos, produzirá uma nova teo­logia que se erguerá contra a grande teologia constituída tradicio­nalmente. É nesse movimento de refração imitativa ideológica oude criatividade que acede à realidade distinta de nosso mundo lati­no-americano que se decidirá a sorte da história da teologia em nossocontinente dependente. Examinemos a questão por partes.

CONSTITUIÇÃO IDEOLÓGICA DA TEOLOGIA

A noção de ideologia1 é descoberta pelo seu oposto: a revelaçãonão-ideológica. Se há uma expressão que permite furar a crostaexterna de todo sistema ideológico constituído é a proto-palavra, aexclamação ou interjeição de dor, conseqüência imediata do trau­matismo sentido. O "Ai!" do grito de dor produzido por um golpe,uma ferida, um acidente, indica de maneira imediata não algo massim alguém. Aquele que ouve um grito de dor é pego de surpresa por-

1. Veja-se uma bibliografia mínima sobre ideologia na obra de Kurt Lenk, Ideologie. IdeologiekritikundWissensoziologie, Berlim, 1971 (Trad. esp. Buenos Aires, 197+).

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que irrompe em seu mundo cotidiano e integrado o sinal, o som,o ruído que quase permite vislumbrar a presença ausente de al­guém na dor. Não se sabe, ainda, que tipo de dor nem o porquê do

grito, e por isso é inquietante até que se saiba quem é e por quese lamenta. O que o referido grito diz é secundário; o fundamentalé o próprio dizer, é que alguém diz algo. No grito de dor não seapresenta o dito mas um dizer, a própria pessoa, a exterioridadeque provoca: que "vaca" ou chama pedindo ajuda. No entanto,exclamar "Socorro!" é já uma palavra de uma linguagem, de umacultura. O grito, antes de ser uma palavra de auxílio, é talvez osinal mais distante do ideológico: "Ouvi o seu clamor por causados seus opressores" (Êxodo 3,8); " ... e lançando um grande gritoexpirou" (Marcos 15,37). Éo limite da revelação humana, e divina,que se situando fora do sistema o coloca em questão - quando ador é produzida pela opressão, quer dizer, pela injustiça ou domi­nação sobre o Outro, que é a dor de Jó e não uma mera dor fisica,ainda que esta também questione.

O grito de dor como o "Tenho fome!" exige uma resposta pe­remptória. A resposta que traz como obrigação a responsabilidade:ser responsável ou tomar a seu cargo aquele que clama e a sua dor.Nessa responsabilidade se fundamenta a religião autêntica e o cul­to2

, e o traumatismo que sofre aquele que se arrisca pelo Outro queclama é no sistema a glória do infinito. "Tenho fome!" é a revelação de queo suco gástrico molesta ou sensibiliza as paredes internas do estômago.Esse ácido que produz dor é o apetite; o "desejo" de comer. Este desejocarnal, corporal, material é já o desejo do Reino dos Céus em suasignificação mais real: é a insatisfação que exige ser saciada. Quandose trata da fome de um povo, habitual, a fome da pobreza, é o lugar dondesurge a palavra não-ideológica. Esse é o carnalismo ou adequado ma­terialismo que Jesus coloca como critério supremo do Juízo: "Tivefome e me destes de comer" (Mateus 25,35).

O "Ai!" da dor primeira, o "Tenho fome!", já articulado numalinguagem, numa classe social, num povo, num momento da his-

2. Vide Capítulo X. "La Arqueológica", de meu livro Para W1a ética de la lib,roción latinoamericana.USTA, Bogotá, t.v, 1980 (em porto Loyola/UNIMEP. São Paulo/Piracicaba, 1977).

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tona, faz referência à Realidade ou exterioridade de todo sistemaconstituído. Não podem ser expressões ideológicas. São as palavraspolíticas ou primeiras, as que instauram nova totalidade de lingua­gem e de formulações conceituais de sentido.

Efetivamente, só a provocação para a constituição de um novosistema, que satisfaça a insatisfação do pobre do antigo sistema, é oponto de partida da libertação da língua. Mas tão logo o grito foiescutado e formulado, tão logo se tenta organizar um novo sistema ese esboça um modelo, tão logo se conceitualizam as mediações paraa sua realização e muito mais quando o sistema foi construído, umanova totalidade estruturada ocupa agora o lugar da antiga totaliza­ção. No seio de todo sistema ou totalidade os conceitos e as palavrasse estruturam por sua parte em uma totalidade significativa, mas,como o sistema é dominado por alguns, por certas classes ou gru­pos, o projeto desses grupos se impõe a todo o sistema. A partirdesse momento a conceitualização e a linguagem do grupo domi­nador se confunde com a "realidade" das coisas e com a linguagemenquanto tal. O conceito, a palavra que o expressa, fundamenta,por um lado, a ação de todos os membros do sistema, mas, aomesmo tempo, oculta não só as contradições internas do sistemacomo, e principalmente, a exterioridade do pobre3

• É nesse momentoque a formulação (o conceito, a palavra: a idéia) se converte emideologia: representação que na função prática oculta a realidade+.

Há então uma dialética entre des-cobrimento e en-cobrimento eentre teoria e práxis.

Quando Jesus diz que "eles não sabem o que fazem" (Lucas23,34), demonstra explicitamente e com clareza essa dupla dialé­tica entre des-cobrimento (o "saber" é visão) e en-cobrimento("não" sabem), entre teoria (o "saber" é teoria) e práxis (o "fazer"é práxis). Trata-se de uma autêntica reflexão teológica sobre a ideo­logia, em situação limítrofe por outro lado, já que Jesus está sendo

3. Veja-se o que dissemos no artigo "Dominação-libertação", em Concilium 96, junhode 1974.

4. Dar-Ihe-emos neste trabalho um sentido restritivo à noção de "ideologia", não como todaexpressão de uma classe ou grupo humano, mas quando oculta a realidade e suas contradi­ções conflituais básicas.

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torturado num momento de clara significação política, entreguepelo seu governo e sacerdócio nacional diante das autoridades doimpério. Não saber o que se faz é o mesmo que dizer que a inter­pretação da práxis que se opera não consegue descobrir seu sentidoverdadeiro. Certamente os soldados sabem o que fazem num certonível: estão pregando cravos num condenado político. No entanto,fica encoberta àinterpretação sua verdadeira significação, o sentidoúltimo de sua práxis. Essa é, exatamente, a função prática daideologia: produzir um certo conhecimento que fundamenta aação mas que ao mesmo tempo oculta o plano fundamental de seusentido derradeiro ou real. Jesus nos introduz então na crítica daideologia.

A ideologia é então um sistema interpretativo-prático. Tome­mos um exemplo latino-americano no nível da interpretação coti­diana primeiro e da formulação teológica depois.

A conquista da América, que se inicia desde o próprio desco­brimento em 1492, não é somente um feito individual mas simhistórico-político. A Europa começou mediante a Espanha e Portu­gal sua expansão dominadora sobre o mundo periférico. Seguiram­se depois Holanda, Inglaterra, França, etc. Na Espanha. por exemplo,houve desde 1493 a "justificação" teórica da conquista. O PapaAlexandre VI expediu a bula Inter coetera de 1493 em favor dos reiscatólicos da Espanha porque isso lhe permitia evangelizar aquelasterras e sujeitá-las ao seu domínio. É assim que na Recopilação das Leisdos Reinos das Índias (efetuada em 168 1), na primeira lei do primeirotítulo do primeiro livro, está expresso que o senhorioS do rei daEspanha sobre os novos reinos é devido à obrigação que o monarcacontraíra com a Santa Sé de doutrinar os índios na fé católica. Dessamaneira se "justifica" a práxis conquistadora a partir de um funda­mento teórico: a bula pontificia. Toda a estrutura jurídica concretado século XVI hispano-americano foi, está bem claro, um tipo deideologia. Por trás de belos princípios ocultava-se, se encobria, o sentidoreal da práxis conquistadora. O sentido encoberto era o de que na

5. "Deus nosso Senhor, por sua infinita misericórdia e bondade, se dignou dar-nos sem nossosmerecimentos tão grande parte no Senhorio deste mundo" , diz o Rei da Espanha na Recopilação1,1,1.

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realidade os europeus tinham dominado o índio reduzindo-o àmais horrível servidão. A morte, o roubo, a tortura (que era o frutoreal da práxis conquistadora) ficavam encobertos pela interpretaçãoideológica: a evangelização. As bulas desempenhavam na consciênciacotidiana do conquistador a mesma função ideológica que a doutrinanorte-americana do Manifest destiny, graças à qual Houston ocupou oTexas e o desprenderá depois da nação mexicana em 1846. Todos osimpérios possuem razões (irracionais) que lhes permitem fundamen­tar sua ação dominadora; mas tais razões são ideológico-existenciaisno plano concreto cotidiano.

O nível ideológico cotidiano é elevado ao nível da ideologiacomo ciência no caso de alguns exemplos teológicos, já que a pró­pria ciência, enquanto deve aceitar como princípios juízos eviden­tes (mas com evidência histórico-cultural), tem um momentoinevitavelmente ingênuo (a ciência não pode por definição de­monstrar seus princípios; quer dizer, os princípios da ciência nãosão científicos, e desde Aristóteles sabe-se que são objeto da dialé­tica) 6. É assim que a ideologia que sustentava a práxis da conquistaé alçada, por um Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) e pelo mes­mo Francisco de Vitoria (1486-1546), à condição de teologia. ParaGinés a conquista da América e a guerra contra os índios é justa. A"causa da guerra justa (iusti belli causa) por direito natural e divino(iure naturali et divino) é a que se empreende contra a rebeldia dosmenos dotados que nasceram para servir, porquanto recusam o im­pério de seus senhores; se não se pode submetê-los por outrosmeios, a guerra é justa" - nos diz ele no Democrates alte/. É evidenteque Ginés segue nisso a Aristóteles - no tão ideológico texto sobrea escravidão na Grécia do livro I da Política -, mas também segue aos

6. Vide Aristóteles. Topicos 1,2, 101 a 26b 4; em minha obra Método para una filosofia de la liberación,Salamanca, 1974, p. 17s (Loyola, São Paulo, 1986).

7. Cito Venancio Carro. La Teologia y los teólogos-juristas e.spaiioles ante la conquista de América, Madri, 1944,p. 593. cf. Juan Ginés de Sepúlveda, Opera, Real Academia de la Historia, Madri, 1780, t.I-IV, e, em especial, Tratado sobre la justa guma contra los indios, México, 1949. Veja-se igualmenteJuan Solórzano Pereira, De indiarum iure, Lugduni, t. I-I!, e de Sílvio ZavaIa, La filosofia políticade la conquista de América, México, 1947. Nas obras de Lewis HanIce, Giménez Fernández e J.Hoeffner foram estudadas com detalhes essas controvérsias teológico-políticas. Sepúlvedadizia ainda que diante dos índios "convém usar (a arte da caça), já que essa se pratica nãosomente contra as feras mas também contra aqueles que, tendo nascido para obedecer,recusam a servidão; tal guerra é justa por natureza" (Extraído do Democrates alter; cito Carro,op. cit., p. 595).

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autores medievais, e ainda a Tomás de Aquino no caso do ius domi­nativum que os senhores feudais tinham sobre os servos8

, na esteirade outros professores contemporâneos como Juan Mayor (1469­1550) em Paris que ensinava que na América "aquele povo vivebestialmente (bestialiter), pelo que o primeiro que os conquiste im­perará justamente sobre eles, porquanto são por natureza servos(quia natura sunt servi) ,,9. Épor isso que ainda no melhor dos casos oíndio foi tido como um "rude", um "menino" que devia ser civi­lizado, com pouca inteligência e propenso a seguir seus instintos;"pouco dado ao celibato", dizia um missionário.

O próprio Francisco de Vitoria, egrégio professor de Salamancae autor do De Indis (1 537), indica que não se pode conquistar osíndios nem por terem religião diferente, nos diz em De iure be1li(1538), nem por direitos do rei, nem para pregar o evangelho, nempor outorgamento pontificio, nem para opor-se ao pecado contranaturam que um povo ainda selvagem poderia cometer. Mas por fimaceita que a conquista é possível no caso de se impedir ao missio­nário anunciar livremente o evangelho ("libere annuntient Evangelium.....explica ele na Relectio de indis, quarta conc1usio): "por isso é possível, afim de evitar-se o escândalo, doutriná-los ainda que contra a suavontade... e aceitar a guerra ou declará-la". Para o grande teólogopela iniuria accepta é permissível a conquista. "Dessa conclusão tam­bém se infere claramente que, por essa mesma razão, se não é pos­sível resolver de outro modo o atinente à religião, torna-se lícitoaos espanhóis ocupar suas terras e províncias e estabelecer novosdonos e destituir os antigos, e fazer as demais coisas (sic) que por direitode guerra são lícitas em toda guerra justa" (Ibid.). Observe-se entãoque, de fato, o teólogo progressista europeu - o mais avançado desua época sem qualquer dúvida, já que em outros níveis defendeuvalentemente o índio - não pôde escapar a formulações ideológicas.

Como indicação final devemos concluir então que a ideologiadas classes dominantes ou das nações opressoras é encobridora,enquanto que as formulações das classes oprimidas ou a dos pro­fetas dos mencionados grupos é crítica descobridora, é a articulaçãode sentido que emana do grito do pobre.

8. Swnma Thcologiac, II-II, p. 57, art. 4-.

9. In sccundwn scntcntiarum, dist. XLIV, p. 3 (Paris, 1510).

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CONDICIONAMENTOS IDEOLÓGICOS DA TEOLOGIA DO "CENTRO"

A ideologia justifica então a práxis, ocultando ao mesmo tempoo sentido derradeiro da mesma práxis, concedendo por outro lado"boa consciência" ou "consciência de inocência" àquele que come­te a injustiça. A ideologia é a formulação (existencial ou científica)das mediações do projeto do sistema sem que se mostre como tal:como sistema de dominação. O que se encobre é a dominação em algunsde seus níveis. Por isso é possível indicar o sentido ideológico dateologia quando se descobre o tipo de dominação que oculta. Querdizer, tratar-se-ia de indicar os condicionamentos que inclinam areflexão teológica numa certa direção encobridora, naquela direçãoque beneficia ou justifica a práxis do grupo, classe, nação ou culturapara a qual serve de fundamento teórico. Tentemos exemplificar oque foi dito mostrando alguns dos condicionamentos que têmconstituído alguns níveis teológicos de maneira ideológica na his­tória da teologia mediterrâneo-européia (que é o marco referencialda teologia latino-americana, que só despontou no século XVI) 10.

Nos tempos originários do cristianismo, no Novo Testamento, porser a totalidade dos cristãos um grupo oprimido dentro do Império(a Palestina era uma colônia distante) e também como classe social(os primeiros batizados eram da classe desprezada e sem influên­cias no seio da estrutura de seu tempo), a função ideológico-enco­bridora das primeiras formulações cristãs é mínima. Em Paulodenota-se um certo machismo (no tocante ao problema da mulher)ou uma aceitação não-crítica no nível sociopolítico do escravismo,por exemplo (na Epístola a Filêmon) 11. Se por algo deve-se no en­tanto aceitar o evangelho é, justamente, pelo seu estrito caráter crí-

10. o que diremos sobre o desenvolvimento do pensamento teológico europeu só possuivalor indicativo. Daí que não será indicada nenhuma bibliografia específica. De qualquermodo, seria proveitoso para a Europa escrever-se uma história da teologia tomando-acomo um fenômeno que inclui momentos ideológicos.

1L O momento ideológico-histórico em nada invalida o estatuto próprio da revelação, já quea revelação consiste em suas virtualidades crÍtico-escatológicas que desenvolvelll sua po­tencialidade em seu lnomento. A revelação inspira a ação antiescravagista do mestre RamÍ ~

rez, S], ou de seu discípulo S. Pedro Claver, SI, em Cartagena das indias, em fins do séculoXVI, assim como o antimachismo dos movimentos feministas cristãos, por exemplo, sódesenvolveram essa crítica em nossa época. De qualquer maneira, fica de pé a questão derevelação e ideologia.

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tico-desideologizante, em especial naquelas poucas formulaçõesque podemos atribuir sem dúvida a Jesus de Nazaré. Pouco depois,nos textos da tradição do primitivo judeu-cristianismo apocalípti­co, como as revelações do pastor de Hermas, já se pode notar umcerto "escapismo" da realidade política, mas dentro de uma refle­xão ainda pouco ideologizada.

Os padres apologistas, em troca, ao irem adotando as categoriashelenísticas, começam igualmente a aceitar determinados elemen­

tos ideológico-encobridores. No entanto, possui grande beleza acrítica político-religiosa (e por isso desideologizante) daquelescristãos que se confrontaram com a cultura dominadora do Impé­rio 12. Éimpressionante aquela crítica frontal contra todos os valoresideologizados do Império realizada por pensadores recém-batiza-d . - 13 'r I 'os e que se sentem gregos e cnstaos ao mesmo tempo . la vez atea nossa época o cristianismo não contará com críticos tão cabais dacultura imperial vigente.

A crítica ao Império continuará sempre a ser exercida seja con­tra o paganismo, contra a cultura helenística ou romana e contra osvícios das cidades. Ainda nos teólogos já muito influenciados pelafilosofia grega como Clemente de Alexandria, Orígenes ou Ireneude Lyon, a teologia nascente cumprirá um papel de descobrimentodas contradições do sistema. Isso pode ser entendido claramente por­quanto, por serem as comunidades cristãs consideradas por Romacomo grupos dissidentes, "quintacolunistas" ou sabotadores dacultura imperante, eram freqüentemente perseguidas. A persegui­ção era de fato a demonstração de que a teologia cristã era substan­cialmente crítica ou profética. Perseguia-se os cristãos porque sola­pavam os "fundamentos" do sistema, os valores, os deuses. A teo-

12. o cristianismo foi originariamente uma compreensão da existência dos grupos oprimi­dos do Império, como bem deixa entrever um texto do apologista: "Entre nós não ocorrea ambição de glória e filosofam (filosofousi) não só os ricos como também os pobres... Todosos homens que desejam filosofar (filosofein) apelam a nós que não examinamos as aparên­cias nem julgamos pela figura ..." (Taciano, Oratio adversus graecos, ed. Ruiz Bueno, traduçãoespanhola e texto grego em Padres Apologistas gri,gos, Madri, 195+, p. 607.

13. Aristides critica em sua Apologia todos os fundamentos do Império e a cultura helenística;sua atitude é subversiva: "Os que crêem que o céu é Deus erram... Os que crêem quea terra é deusa se equivocam... Os que pensam que a água é Deus julgam mal ..." (op.eit., p. 119-121).

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logia tinha então uma função crítico-profética que se manifestavaigualmente no nível político. O Império, ao se defender com a re­pressão política contra os cristãos, manifestava realmente que ocristianismo cumpria sua missão libertadora, teologicamente desi­deologizante. Um passo de importância radical para a compreensãoda teologia cristã como ideologia se efetua desde o momento em

que Constantino é coroado imperador (324), desde o Concílio deNicéia (325): o século mais glorioso da teologia patrística (325­425) é igualmente o início da constituição da teologia como ideo­logia - não queremos dizer com isso que a teologia perdera seuvalor, indicamos somente que o momento ideológico da teologiacresce, aumenta, tem um lugar maior. A Patrística grega (desde umAtanásio, Basílio, os Gregórios até um João Damasceno) e latina(desde Ambrósio, Agostinho, até Isidoro de Sevilha), uns sob o po­der do imperador e outros do papado, aceitarão a realidade do Im­pério não só como "natural", como também - em especial nomundo latino - se chegará a considerar o Império como a própriacivitas Dei (por um deslocamento de conteúdo da civitas Dei de Agos­tinho). A Christianitas (Cristandade) veio a identificar-se com o cris­tianismo. A Teologia aceitou demasiadas estruturas imperiais,sociais, culturais, lingüísticas, sexuais, como momentos essenciaisdo cristianismo. Dessa maneira, a grande teologia com método pla­tônico ou neoplatônico veio a justificar a dominação política e so­cial dos primeiros séculos da Cristandade bizantina e latina. Odeslocamento do método (de histórico-existencial no pensamentobíblico para o epistemático ou apodítico, ao qual deve-se acrescen­tar o dualismo ontológico e antropológico) lança a teologia pormuitos becos ideológicos. Um estudo detalhado se faz necessário.É evidente que um cristão aristocrático, imperial e constituído emseus setores de tomada de decisões eclesiais pelas classes mais in­fluentes, instrumentalizou crescentemente o próprio cristianismopara seu poder. Queremos indicar novamente, e isso é válido paratoda essa nossa contribuição, que isso não invalida o empenho teo­lógico, simplesmente o limita (e se sabe que toda teologia é só umaanalogia da "ciência de Deus" consigo mesmo que será participadacomo visio somente no Reino realizado) . Os momentos ideológicosde toda teologia indicam que ela é uma reflexão inevitavelmentehistórica, situada, condicionada. A Patrística grega seguiu seu cami-

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nho até seu fim (14·53), mas não inovando fundamentahnente duran­te séculos (ainda que seu crescimento fosse incessante como bemo demonstram os exilados na Itália do quattrocento).

Os latinos, por sua vez, graças aos francos, foram geradores deum novo processo teológico. Beda o Venerável (672-735) está nabase de um processo que se ampliará no Sacro Império Germânico(cuja sacralidade justifica o cristianismo, de essencial importância en­cobridora da dominação imperial e social sobre os reinos oprimi­dos e sobre os servos do feudalismo). Da época clássica da PrimeiraEscolástica poderíamos dizer que é posterior ao IV Concílio do Latrão(1215). No século de ouro da Cristandade latina e da Escolástica(1215-1315) ensinaram Abelardo, Boaventura, S. Tomás e Duns Es­coto. O método platônico ou agostiniano é modificado pelo desco­brimento do organon aristotélico procedente dos árabes via Espanha(Toledo). Por trás de um aparato certamente muito mais definido,com categorias substancialistas usadas com admirável habilidade,com uma lógica muito desenvolvida, aquela teologia fundamental­mente a-histórica encobriu ideologicamente inúmeras contradições.A começar pelo machismo imperante, que dominava a mulher 14

,

bem como as oposições entre as classes (era cidadão o simpliciterpoliticum iustum, quer dizer, somente o senhor feudal) lS ou entre osreinos - já que nenhum teólogo questionava o direito do impera­dor sobre os outros reis, ou, em outras posições, do Papa sobre oimperador e outros reis. A análise ideológica dessa teologia, tãoválida e importante por outro lado, realizada com metodologia so­ciopsicanalítica ou econômico-política, sem que se incida em ingenuidadesextremistas, dará no futuro grandes resultados. Isso nos mostrará me­lhor a genialidade daqueles teólogos e as limitações inevitáveis deseus condicionamentos. Eram homens e não deuses.

Da mesma maneira, a Segunda Escolástica, cuja época clássica sesitua em torno de Trento (1545 -1563) , quer dizer, desde 153 Oapr.a 1630apr., sob a influência de Vitoria, Báiíez, Soto, Suárez, Molina,

14. Summa theologiae, I-lI,q. 8 I, art. 5: "... quod principium activum in generatione est a patre;materialU autem mater ministrat... Si, Adam nan peccante, Eva peccasset, filii originalepeccatum non contraherent". A mulher só dá a matéria, mas o varão dá o ser ao filho.

15. Ibid., lI-lI, q. 57, art. 4.

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Juan de Santo Tomás - prenunciados por Silvestre de Ferrera e Caye­tano -, em torno de Salamanca e do Império hispânico, resplande­ceu pelo seu método aristotélico-tomista de comentários mas já navia moderna, que fornecerá as bases da ontologia do sujeito tanto deum Descartes como de um Wolff, seguindo nas escolas franciscanasda Inglaterra o caminho de onde procederá o empirismo filosófico.Observamos então que, se a Patrística floresceu no Império bizan­tino ou com o Papado e seus reinos dependentes da África, Gália ouHispânia, e se a Primeira Escolástica necessitou do poder dos ReinosFrancos, a Segunda apoiou-se no Império de Carlos V. imperador daEspanha, dos Países Baixos e da Alemanha. Seu momento ideológicoé evidente. Em pouco ou nada essa teologia manifesta a realidadedas colônias descobertas e exploradas, em nada se descobrem osgraves problemas da pobreza na Espanha, contrapartida da conquis­ta da América. Trento só se concentrará nos problemas germânicose para nada leva em conta a enorme abertura que o aparecimentoda África, Ásia e América produziu na Europa. A Cristandade mo­derna, o cristianismo católico, se fecha sobre a Europa e começa aostentar uma cegueira especial diante da exterioridade de outrasculturas, povos, estados.

É por isso que a Terceira Escolástica, que viceja desde o ConcílioVaticano I (1869-1870) na Europa latino-católica, conquanto hajaentre eles muitos teólogos alemães (tais como Kleugten que mor­reu em 1893), fica consagrada na Encíclica sobre a necessidade dosestudos a partir de Tomás de Aquino. O eixo é então Roma-Lovaina.O catolicismo, tendo abandonado lentamente as teses primeiro im­periais e depois monárquicas e feudais, abre-se aos poucos à acei­tação e depois à apaixonada justificação da democracia liberal, e,sub-repticiamente, do regime burguês capitalista que receberásempre modificações reformistas. Quando lemos hoje as obras deMercier, Garrigou-Lagrange ou Maritain, deixando de lado seugrande valor e a importância que têm exercido na reformulaçãocatólica, não podemos deixar de perceber um importante momen­to ideológico de ocultamento no nível social-político I6

.

16. cf Reyes Mate, EI ateísmo. Un problema político, Salamanca, 1973.

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Por sua vez, a tradição que poderíamos chamar de teologia ger­mânica onde se abrirá caminho à teologia protestante, que possuievidentemente componentes de origem suíça, francesa, inglesa,

etc., que cresce a partir do século XVI, desde a Reforma, não deixapor isso de ocultar igualmente as contradições de sua época. O pró­prio Lutero já se defrontara com a crítica de Thomas Müntzer quefalava em nome do camponês empobrecido do mundo feudal emcrise. Essa tradição de origem agostiniana e com influências fran­ciscanas e ainda tomistas (como em Melanchton) receberá o im­pacto do racionalismo wolffiano, do kantismo, da Aufkliirung e doidealismo (em especial da direita hegeliana) embora não unica­mente (cabe apenas recordarmos o exemplo do anti-hegelianoSchleiermacher). O próprio mundo católico de um Moehler, que sediplomou em Tübingen (falecido em 1838), pode ser inscrito nessalinha. Mediando o neokantismo, a fenomenologia, a ontologia hei­deggeriana, teríamos por um lado um Bultmann ou um Rahner(posições teológicas tão diversas que no entanto levam em contaHeidegger), e implantando isso como uma crítica sociopolíticadesde a Escola de Frankfurt a um Metz, desde a posição própria deErnst Bloch a um Moltmann. Um pouco antes, a chamada "nouvelIethéologie" do pré-guerra na França, pelo descobrimento da históriada teologia, como posteriormente as teologias querigmáticas, des­mitizantes, existenciais, políticas ou utópicas, todas elas - e aindaos seus prolongamentos nos Estados Unidos como as teologias da"morte de Deus", etc. - não podem negar que vicejam no "centro"da Europa, e particularmente em torno e após a Segunda GuerraMundial. Como o Concílio Vaticano II (1962-1965) e os melhoresganhos do Conselho Mundial de Igrejas, todas essas teologias vi­venciam o otimismo de uma Europa reconstruída, a do "milagrealemão", no tempo em que o Império norte-americano suplantaalém do Atlântico o Império inglês (que deve bater humildementeàs portas do Mercado Comum Europeu para que o aceite como umde seus membros). O método dessa teologia é agora existencial,ontológico e até dialético. A influência hegeliana é cada vez maiscrescente desde a comemoração do segundo centenário de seu nas­cimento (1770-1970).

Seja como for, toda essa teologia tem importantes momentosideológicos: um deles é a ingênua evidência de ser o "centro" do

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mundo (de um ponto de vista cultural, político e econômico: con­quanto a Europa dependa dos Estados Unidos, possui sobre elesuma reconhecida "superioridade" humanístico-cultural, embora jánão científico-técnica). Ao mesmo tempo essa teologia não temlevado ainda a sério seu condicionamento de classe: o teólogo nãoé só o fruto de uma classe aristocrática (universitária) como o é deuma nação dominadora (que de alguma maneira oprime as colô­nias com o seu industrialismo capitalista monopolista). Nesses as­pectos não tem sido questionado o "ponto de partida" de umareflexão teológica, já que, se o referido ponto de partida fosse apráxis libertadora dos oprimidos (que é a origem da palavra não ideo­lógica e da crítica de toda ideologia), a teologia deveria definir seucompromisso orgânico com eles. Estes, porém, encontram-se fre­qüentemente fora do horizonte da mencionada teologia (não só so­cialmente por serem classes pobres, como geopoliticamente porserem nações dependen-tes, neocoloniais, da "periferia"). A propostade uma tal teologia fica inevitavelmente circunscrita ao horizonte do"centro" e por isso se ideologiza: quer dizer, oculta a contradição de nossotempo entre "centro-periferia"e com isso torna igualmente falsa a relação dasclasses no "centro". Transforma-se numa teologia que encobre e porisso justifica a dominação dos povos pobres do mundo.

Daí podemos concluir que a teologia, enquanto significou areflexão de uma fé não-teológica dos oprimidos, quer dizer, a ex­pressão metódica daqueles que não dominaram um sistema, tevetodo o seu sentido antiideológico e crítico-profético. Na medidaem que expressou uma fé não-teológica daqueles grupos ou naçõesdominadores, tendo perdido em parte a sua dimensão profética(pelo menos na dimensão em que é um sistema de dominação), ateologia se ideologiza. Épor isso que nos Estados Unidos e na Eu­ropa (esta última é "centro" conquanto relativamente dependentedos Estados Unidos) os movimentos radicais ou socialistas demo­cráticos ainda não podem ser reformistas enquanto não cheguem adialogar seriamente com aqueles que na "periferia" questionamrealmente o sistema l

? É fácil falar de liberdade para aquele que dealguma maneira exerce o poder. Como a Inglaterra imperial que

17. Na reunião de Detroit (Theology in lhe Americas, agosto de J975) parecia que à black lheology(cf. James Cone, Black theology and black power, New York, 1969; Idem, God of the oppressed, New

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impõe desde o final do século XVIII o "liberalismo" econômico àssuas neocolônias. A Inglaterra exigia "liberdade" para a venda deseus produtos nos países não industrializados, esquecendo que emLondres se enforcava em praça pública no início do século XVIIIaquele que adquirisse um produto francês. O "protecionismo" daindústria nascente inglesa se converte em "falta de liberdade" ou"totalitarismo" quando um país periférico o exerce. A liberdadenão é somente a possibilidade de escolher entre várias possibilida­des; antes disso é o poder ter pelo menos uma possibilidade a es­colher. Antes da liberdade de escolha (entre essa ou aquela pos­sibilidade) do liberalismo, é necessária a justiça que permite teralgo a escolher (a justiça que faz com que os mais oprimidos pos­sam comer, vestir-se, ler, decidir...). A liberdade humana fundamentalé a de poder viver, muito antes do que decidir viver dessa ou de outra maneira.A justiça ou a libertação sociopolítica é a que possibilita a liberdadeposterior de escolhas: Tempore necessitatis omnia sunt communia, dizia Huguc­cio... Éevidente que há tempos nos quais é necessário que todos cola­borem disciplinadamente, superando o egoísmo aristocrático dasantigas classes dominantes (que eram as únicas que podiam "ter" e"escolher" isso ou aquilo), para produzir ou fabricar os bens que per­mitam que todos possam viver humanamente.

York, 1975; Benjamin Reist, Theologyin red, whiteand black,Filadélfia, 1975) ou ao movimentoteológico da mulher nos EUA (cf Rosemary Radford Ruether, Liberation theology, NewYork,1972, no capítulo sobre a teologia da mulher) falta a distinção entre o centro e a periferiaa nível mundial; podem assim projetar o movimento de libertação aos seus grupos porémno seio de uma nação opressora do centro (como os Estados Unidos) e incluir em seuprojeto as nações oprimidas como oprimidas, sem criticar, portanto, o imperialismo. Essacontradição centro-periferia distinguia então a black theology dos Estados Unidos daquela daÁfrica, por exemplo (já que a primeira só observa a opressão racista, mas esquecendo aeconômico-política, a nível internacional) e a oposição do feminismo do centro daqueleda periferia (como pôde ser constatado no Congresso Mundial da mulher realizado noMéxico em julho de 1975, no qual os movimentos femininos do Vietnã, de Cuba e daAmérica Latina, além de outros, se opuseram frontalmente ao feminismo apolítico eexclusivamente sexualista das norte-americanas, em especial). Se os movimentos teo­lógicos contesta-tórios do "centro" não captarem a realidade do imperialismo, incidi­rão necessariamente num perigoso reformismo revisionista. Felizmente, desde 1975se tem avançado muito.

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CAPÍTULO SEGUNDO

HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA I

Em outros trabalhos sugerimos uma periodização da históriada Igreja na América Latina. Tratar-se-ia da história de uma fé não­teológica convertida em práxis. Agora proporemos como hipóteseuma certa periodização que abra um caminho num campo de es­tudos sobre o qual não há, quanto eu saiba, até o presente nenhumtrabalho. A História da teologia católica de Grabmann, por exemplo, con­tém umas "Breves indicações acerca da teologia na América Hispâ­nica,,18. Como de costume, ao qual nós latino-americanos já estamos

habituados, nos deixa fora da história. Qual tem sido o desenvolvi­mento de nossa teologia? Quais são seus períodos mais importan­tes? Qual é o sentido de cada um deles?

PRIMEIRA ÉPOCA. Primeira Teologia da Libertação. Teologia proféticaentre a conquista e a evangelização (desde 1S 11)

Antes da conquista houve uma reflexão teológica ameríndia 19.Em geral não se examina o período pré-hispânico, mas queremosnos referir explicitamente a ele por sua importância até o presente.As cosmovisões e ritos religiosos dos habitantes nativos da AméricaLatina tinham alcançado um grau de racionalização que, conquantonão científico, poderia situar-se entre as explicações codificadas emtradições orais (e ainda escritas, como nos códices astecas) 20. Asteogonias dos povos menos desenvolvidos, do norte e do sul do

18. M. Grabmann. Historio de la teología católica, Madri, 1940, p. 35 Os.

19. Vide meu li\TO EI encubrimienta deI Indio: 1492. Hacia e! origen de! Mito de Ja Modemidad, EditorialCambio XXI, México, 1994, 219 p.

20. Vide W Krickeberg-W Müller-H.Trimborn, Die Religionen des alten Amerika, Stuttgart, 1961;em minha "Introducción General" à Historio General de la IgJesia en América Latina, Salamanca,1983 I/ I, p. 123-156; H.-J. Prien, La Historio de! Cristianismo en América Latina, p, 29-52.

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continente, freqüentemente caçadores e pescadores nômades (Ma­galânicos, Pampas, do Grande Chaco, no sul; do Brasil oriental; atécalifornianos no norte), afirmavam um "Pai dos Céus" (urânicoentão), o "Antiqüíssimo" dos Yahganes, o "Temaukel" dos Onas,em alguma relação com o sol. Isso levou W Schmidt a pensar quehavia uma revelação primitiva do Deus uno 21. Junto a eles os deusesgêmeos, espíritos, demônios, a grande Mãe (a Lua). E também osdeuses totêmicos das tribos, dos clãs e das famílias.

Os povos de plantadores (desde os Araucanos até os Guaranis eTupi-Arawaks, os Caribes e os das pradarias da América do Norte),especialmente as culturas urbanas (Incas, Chibchas, Maias e Aste­cas) , possuem teogonias muito mais desenvolvidas. Entre os incashavia um Deus transcendente, Pachacamac, Deus-criador, espiritual,que popularmente se concretiza em Inti (o sol, fecundador, origemda fertilidade e deus dos caçadores e guerreiros - como o Huizilo­pochtli dos nahuatl mexicanos - mas nesse caso muito mais agressi­vo). A lua (Quilla entre os incas), relacionada com a terra (a Pachamamaou a Coatlicue para os astecas), impera nos panteões. Não faltarãotampouco os deuses totêmicos, os ritos cíclicos e a racionalização

1 . 22que atuam como proto-teo ogIas .

A descoberta da América por espanhóis e portugueses significauma revolução geopolítica sem precedentes na história mundial. OMediterrâneo oriental, que era o "centro" da história desde os cre­tenses, perde a sua primazia, dando lugar ao Atlântico norte (desdeo século XVI até hoje). Por outro lado, chega ao Mediterrâneo e àEuropa, somente no século XVI, dez vezes mais quantidade de pratae cinco vezes mais de ouro de quanto existia então, procedentes dasminas exploradas com o sangue dos índios. É a origem da riquezacolonial, capital acumulado que será a base essencial da posteriorrevolução industrial. Um mundo desmorona; a Europa enclausura­da por turcos e árabes se abre para o vasto mundo. É um tempo de

21. Em sua obra Ursprung und Werdm der Rdigion. Theorim und Tatsachm, Münster, 1930.

22. Vide J. de Acosta, Historia natural de las Indias; ]. Soustelle, La Rdigion des Incas, em Histoire Généraledes Rdigions, Paris, t. I, 1948, p. 201 s; F. Hampl, Die Religionm der Mexikaner,Maya und Peruaner, emChristus und die Rdigionm der Erde, Freiburg, t. lI, 1951, p. 754-784. Toynbee acha que houveuma prototeologia (o viracochinismo inca). A Study Df History, Oxford, 1963, t. VII, notocante às "Universal Churches" .

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utopias, de novidades, de descobertas. Na Espanha, Cisneros iniciaa primeira reforma, edita as primeiras obras críticas do Novo e doAntigo Testamento em fins do século Xv, muito antes de Erasmo.Em 1492, os Reis católicos, na última cruzada medieval, tomam deassalto o derradeiro reino árabe na Europa: Granada cai23.

As bulas pontificias desde 1493, como já vimos, conferem jus­tificação sagrada à conquista da América. O fato do descobrimentoda América não influi para nada em Trento. Fracassada a tentativado cardeal ]iménez de Cisneros de ocupar as Índias sem armas, aconquista será violenta, como o será igualmente a que empreende­rão por sua vez holandeses, ingleses, franceses e até alemães (já noséculo XIX na África). No entanto, ergue-se um punhado de profe­tas, de grandes cristãos missionários em defesa do índio24

. Teologi­camente queremos mencionar somente alguns deles.

Com exceção de algum irmão leigo franciscano, foi Antonio deMontesinos, OP (t1545), quem, por ordem de seu superior Pedrode Córdoba, OP (1460-1525), lançou em 1511 o primeiro bradocrítico-profético na América. Naquele distante 30 de novembro oclérigo Bartolomeu de las Casas (1484-1566) ouve o sermão emfavor dos índios e contra os encomendeiros. Somente em 15 14 éque ele se converte à causa da justiça:

O clérigo Bartolomeu andava bem atarefado e muito solícitoem suas granjas como os outros, enviando índios de sua repar­tição às minas, para extrair ouro e fazer sementeiras e aprovei­tando-se deles quanto mais podia... Mas num dia de páscoa depentecostes começou ele a atentar para o Eclesiástico, capítulo34: "A oferenda daquele que sacrifica um bem mal adquiridoé maculada. Aquele que oferece um sacrificio com os bens dospobres é como o que degola o filho sob os olhos do pai". Co­meçou, digo, a observar a sua indigência2S

23. Vide minha obra "Introducción general" à Historia general de la Iglesia en América Latina, Sígue­me, Salamanca, 1983, tomo !lI, capítulos 4 e seguintes.

24. cf. minha obra sobre EI episcopado hispanoamericano, institución defensora dd indio (1504-1620), m,Cuernavaca, 1969, 6-14.

25. Historia de las Indias, livro m, capo 79, em Frei Bartolomeu de las Casas, Obras escogidas, t. lI,Madri, 1961,356.

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Essa conversão profética, de um pensador que será depois tãoprolífero em obras como profundamente prático em suas conclu­sões, poderia ser considerada como o nascimento da teologia da liber­tação latino-americana. O mesmo Bartolomeu escreverá em seu Testamento(1564) cinqüenta anos mais tarde:

Deus houve por bem escolher-me como seu ministro sem queeu o merecesse, para procurar e compensar todos aqueles povosque chamamos Índios, possuidores e proprietários daquelesreinos e terras, pelos agravos, males e danos nunca vistos nemouvidos antes, que de nós espanhóis receberam contra todarazão e justiça, e para reduzi-los à sua liberdade prístina de queforam despojados injustamente, e a fim de libertá-los (sic) da mor-

. I . d f 26te VlO enta que am a so rem .

Bartolomeu de las Casas, assim como um José de Acosta, SJ(1539-1600), no Peru, Bernardino de Sahagún, OFM (t1590), noMéxico, entre outros, são os teólogos da primeira geração ou pelomenos dos que se defrontaram com a realidade de seu tempo comuma visão menos ideológica do que seus companheiros de conquista ouevangelização. Observe-se no texto que propomos a clareza com queexpõe a contradição principal de sua época e como mostra o ocultamen­to ideológico em que viviam mergulhados seus contemporâneos:

Deus derramará sobre a Espanha seu furor e ira, porque toda elacomungou e participou pouco ou muito nas sangrentas rique­zas roubadas e tão usurpadas e mal havidas, e com tantos estra­gos e mortes daqueles povos, se grande penitência não fizer, etemo que tarde ou nunca a fará, porque a cegueira (eis aí o frutoda ideologia!) que Deus por causa de nossos pecados tem per­mitido em adultos e crianças, e principalmente nos que se pre­sumem e têm fama de discretos e sábios e pretendem governar omundo, pelos pecados deles, e de modo geral de toda ela, digoainda, essa obscuridade dos entendimentos (indica-se novamente o enco­brimento ideológico') é tão recente que desde setenta anos quecomeçaram a escandalizar, roubar e matar e extirpar aquelas na­ções, não se notou até hoje (sic) que tantos escândalos e infâmias denossa santa fé, tantos roubos, tantas injustiças, tantos estragos,

26. Obras escogidas, V, 539.

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tantas matanças, tantos cativeiros, tantas usurpações de estadose domínios alheios, e, finalmente, tantas assolações e despovoa­mentos tão universais têm sido wn pecado e wna imensa injustiça27

.

Para o nosso "teólogo da libertação" o pecado sociopolítico domomento é a conquista. Essa práxis é "pecado e gravíssima injustiça",mas "não se tem percebido (visto) até hoje" devido à "cegueira" ou"obscuridade dos entendimentos". Quer dizer, o sentido real da práxisnão é conhecido: trata-se de uma ideologia que encobre a realidade atodos: aos adultos e crianças e também aos sábios e governantes.

Bartolomeu não só se opõe a um Juan Ginés de Sepúlveda (oteólogo que justifica a escravidão natural do índio) como vai maisalém do que o progressista europeu Vitoria. Bartolomeu reconheceque haveria razão para empreender a guerra contra o índio no caso emque fosse um povo bárbaro ou absolutamente incivilizado e que co­metesse continuamente atos contra toda razão. Mas o que ocorria éque nenhuma dessas condições se efetuava entre os índios, porque de

todas as universas e infmitas gentes de todo gênero Deus criou (osíndios) as mais simples, sem maldades, nem fingimentos, obe­dientíssimas e fidelíssimas aos seus senhores naturais e aos cris­tãos aos quais servem; mais humildes, mais pacientes, maispacíficas e quietas, sem rixas nem rusgas, que se verificam nomund028

Porém há mais, porque

as gentes naturais de todas as partes, qualquer daquelas ondetemos ingressado nas Índias, têm direito adquirido de em­preender contra nós guerra justíssima e tirar-nos da face da terra,e esse direito perdurará para elas até o dia do juízo fmae 9

Bartolomeu então justifica a guerra de libertação dos índioscontra os europeus, em sua época e até a nossa. Teria então apoiadoteologicamente a rebelião do valente Túpac Amaru (1746-1782)

27. Jbid.28. BrevÍsima relaciÓll de la destrucción de las Jndias, em op. cit., V, 136.

29. Consultar esse texto no Memorial a1 Consejo de Indias (1565), proposto e comentado na ediçãode J.B. Lassegue, La larga marcha delas Casas, Lima, 1974, 387.

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no Peru ou de Fidel Castro em 1959 em Cuba - na mesma Cuba desua conversão profética.

Seus tratados teológicos como o De unico modo, a Historio de IasIndias, a Apologética historio sumaria (tratado de religiosidade pré-cristã),inúmeros opúsculos, memórias, defesas, a BrevÍsima reIación de Ia des­trucción de Ias Indias, os Dieciséis remedios para Ia reformación de Ias Indias, oArgumentum apologiae, Los Tesoros deI Perú. etc., todos eles partem da práxisde um grande cristão. Conquistador, cura encomendeiro, litigadorante reis e cortes ou conselhos, organizador de experiências agrá­rias, missões e comunidades; noviço, estudante, escritor, polemista,defensor e advogado perante tribunais; atravessa em pleno séculoXVI mais de dez vezes o Atlântico, etc. A partir de sua práxis dedefesa e libertação do índio pensa e escreve sua teologia militante,teologia toda ela política, tal como o demonstra Juan Friede30. Mas alémd· dI' h' ,. 31 32 'dISSO trata-se e uma teo ogla Istonca ,concreta ,com senti o an-tropológico

33e com intenção operativa

34.

Essa teologia não-acadêmica ou pré-universitária, não porque estejacontra a universidade mas sim porque de fato não existiam aindana América Latina essas sedes de estudos, mas além disso porquenascia no fragor da própria luta e não como fruto de exigênciasmais ou menos artificiais da vida de algum claustro professoral, essateologia crítico-profética era política, formava homens de ação, esclarecianormas, descobria opressões estruturais e pessoais. Tudo isso ante­cipa em quatro séculos a experiência atual da teologia criativa na

30. Bartolomé de las Casas: precursor dd anticolonialisrno, México, 1974.

31. Éimportante anotar como Bartolomeu escreveu uma enorme História das Índias; por seu turnoJosé de Acosta publicou uma Historio natural y moral de las lndias (vide a edição de Madri de 1894,t. I-li). Sobre este último vide a obra de L. Lopetegui, E1 padre]oséde Arosta, Madri, 1942.

32. Essa teologia se acha explicitada em cartas, debates, controvérsias, "memoriais", apolo­gias, prédicas. Não é intra-universitária pelo seu "estilo literário" .

33. Bartolomeu de las Casas escreveu uma Apologética história sumária tão importante como a suaHistória; José de Acosta escreveu uma De procurando índorurn salute, Salamanca, 1589, que talcomo a anteriormente citada é uma obra de antropologia; e o grande Bernardino de Saha­gún recolheu materiais do que viria a ser a Historio Universal de las cosas de nueva Espana, Ed. PedroRobledo, México 1938, t. I-V, que é a primeira obra da antropologia mundial em seusentido atual.

34. Essa teologia formava pessoas, missões, bispos; esclarecia leis (como as "leis novas" de1542 que suprimem o sistema econômico das encomendas), justifica políticas, etc.

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América Latina. É necessário que se estude bem o primeiro empe­nho teológico em nosso continente para encontrar entre nós umprimeiro modelo, situado nessas costas do Atlântico, do exercíciode uma correta reflexão sobre a práxis cristã em situação colonial,"periférica". Bartolomeu vislumbrou em seu início a dominação im­perial européia; julgou em seu começo a expansão opressora mun­dial de "centro"; condenou assim a totalidade do sistema que entãose organizava: "é injusto e tirânico tudo quanto acerca dos índiosnessas Índias se comete" 35.

Essa foi a teologia elaborada e sustentada na ação de centenasde missionários da primeira hora de nossa igreja latino-americana,antes que se organizasse a cristandade das Índias.

SEGUNDA ÉPOCA. A teologia da cristandade colonial (1 SS3-1808)

A 3 de junho de 1553, na cidade do México, o professor Fran­cisco Cervantes de Salazar, mestre de retórica e eloqüência, abre oscursos universitários de teologia. Essa inauguração acadêmica dateologia, num claustro que outorgava títulos como os das universi­dades de Alcalá e Salamanca, é o início formal de uma tradição quedurará dois séculos e meio. Na realidade, em 1538, os dominicanosabriram em seu claustro de Santo Domingo as primeiras cátedrasde teologia para seus alunos. Em 10 de julho de 1548 os dominica­nos fundavam igualmente a referida cátedra em Lima. Pouco antes,em TiripetÍo (Michoacán), o célebre agostiniano Alonso de la Vera­cruz fomentava igualmente a teologia no México. Não obstante,através de cédula real de Felipe lI, de 21 de setembro de 1551, e dabula correspondente, eram fundadas as universidades de Lima e doMéxico. A 25 de janeiro de 1553, a procissão encabeçada pelo rei­tor-deão do cabido Juan Negrete passou pelas ruas do Relógio e daMoeda no México, iniciando assim a vida universitária na América.Nas cátedras estiveram: em prima, Pedro de la Pena, ap; em escritu­ras, de la Veracruz, aSA; em decretais e cânones, Pedro Morones;em artes, Juan de García; em leis, Bartolomeu Frías; em gramática,

35. Historia de las Indias. em op. cit., lI, 79, 357.

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Blas de Bustamante; e em retórica, o acima mencionad036. Durante

quatro anos cursavam-se os estudos. Em 19 de setembro de 1580era fundada além disso a cadeira obrigatória de língua náhuatl noMéxico e quíchua ou aimara em Lima. Em 1630, só no México jáhavia 500 alunos, a maioria estudando teologia; somente 10 estu­dantes de direito civil e 14 de medicina. Em 1775 tinham se diplo­

mado na citada universidade 1162 doutores.

Pela cédula real de Felipe IV de 26 de maio de 1622, e com abula de Gregório VI de 9 de julho do ano anterior, fundaram-secolégios maiores com possibilidades de conferir diploma acadêmi­co desde a distante Manila (Filipinas), até Cuba, e já no continenteem Mérida, Puebla, San Luis Potosí no México; na Guatemala e Pa­namá na América Central; em Caracas, Santa Fé de Bogotá e Popayánem Nova Granada; em Cuzco, Huamanga e Quito no Peru; emCharcas (que em 1798 é alçada à categoria de universidade comoLima e México), Córdoba e Santiago do Chile no Rio da Prata. Aessas deveriam somar-se muitos seminários tridentinos onde se en­sinava teologia, como o famoso colégio Palafoxiano de Puebla fun­dado em 1641, que também funcionou em Guadalajara e Oaxaca.Além disso, os colégios jesuítas conferiam igualmente diplomas,desde 1578. O jovem estudante, na vibrante Lima do século XVII,

36. Sobre a teologia na cristandade colonial podem ser consultadas, além das histórias dasigrejas por nações (como as de Cuevas referentes ao México, Groot para a Colômbia, Vargaspara o Equador, Vargas Ugarte para o Peru, Cotapos para o Chile, Bruno para a Argentina,etc.), minha Historiadela Iglesia mAmérica Latina, Barcelona, 1974,433-459; em CEHILA, Parauna historia dela iglesia m América Latina, Barcelona, 1975 (trata-se do I Encontro de história da Igr~a

na América Latina, Quito, de 3 a 17 de janeiro de 1973),41-55 (CEHlLAquerdizerComissãode estudos de história da igreja que se reuniu além do mais em julho de 1974 em Chiapas); sópara o México: J. Gallegos Rocafull, EI pcnsamimto mexicano m los siglos XVII y XVIII, México,1951 (bibliografia 397-414); a Bibliotheca Missionum I-IX, Münster, 1916-1939; J. GarcíaIzcabalceta, Bibliografia mexicana dd siglo XVI, México, 1886; J. Jiménez Rueda, Her~ías y supcrs­ticianes m la nucva Esp<uía (los heterodoxos m México), México, 1946; C.B. Plaza y Jaen, Crónica delareal pontificia UnÍ"ersidad de México, México, 1931; O. Robles, Filósofos mexicanos dd siglo XVI, México,1950 (onde se encontra material para o nosso tema); e a obra de J. Jiménez Rueda, Historiajurídica dela UnÍvctsidad de México, México, 1955; vide adenuis F. Ossores, Historia de todos los colcgiosdela ciudad de México dcsdela conquista hasta 1760, México, 1929. Entre os teólogos coloniais não seesqueça J. Palafox y Mendoza, Obms I-XVII, Madri, 1762. A obra de Guillermo Furlong sobreo pensamento no Rio da Prata, por exemplo, preenche a lacuna sobre essa zona latino-ame­ricana. Trabalhos como os de P. Henriquez Ureiia, Historia de la cultura de América Hispánica,México, 1947, servem de referência contextual. No entanto, devemos admitir que nãoexiste nenhum trabalho sobre a história da teologia na América Latina, ainda que os ma­teriais sejam minimamente suficientes para se ter urna idéia de conjunto.

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iniciava seus cursos por volta de 19 de outubro e os concluía a 3 1de julho. Seu curso de prima começava às 8: 15 até 9: 15, seguindo-sequinze minutos de repetição. Às 9: 3Ocomeçava a secunda e às 10: 3Ohavia repetição a cargo dos alunos. Durante a tarde, das 14 às 14: 3O,aula de quíchua, e a partir daí aula de moral ou escritura. Nos sá­bados havia "sabatinas" ou defesas de teses: uma vez por mês amais importante; e uma vez por ano os grandes debates. A segundaescolástica reinava indiscutivelmente. Em lógica, Aristóteles, em teo­logia, a Summa de Tomás de Aquino, em suas diversas interpreta­ções salmanticense (dominicanos), suareziana (jesuítas), agostinianae escotista (franciscanos).

O México brilhou no "século de ouro", o século XVI; Lima noséculo XVII, o da cultura barroca; Chuquisaca ou Charcas no séculoXVIII, o do humanismo jesuíta (até 1767 em que foram expulsos).Vamos colher alguns exemplos do século XVI.

A partir de uma forte formação lógica - já que não se deveesquecer que um Antonio Rubio (1548-1615) foi o autor de umaLogia mexicana (que em 1605 foi editada em Colônia, entre muitasoutras edições), que se tinha como livro-texto em Alcalá, e profes­sor no México como em Córdoba de Tucumán37

-, a partir dessaformação lógica o aluno passava para a teologia como possibilidadede ouvir, por exemplo, Alonso de la Veracruz (1504-1584), autorde numerosas obras, entre outras, de um comentário ao livro dasSentenças e outro às epístolas de S. Paulo, de uma Relectio de libris canonicis,e ainda de uma Relectio de dominio in infideles et iusto bello38. Esse teó­logo, a exemplo de outros, era um dos primeiros missionários,que de Tripetío (população indígena) passou a prior de Tacám­baro em 1545, passando dali para o convento de Atotonilco oGrande entre os índios otomies, para ser por fim escolhido comoprovincial mexicano em 1548, período em que arca com a res­ponsabilidade acadêmica.

37. Aobra de Walter Redrnond sobre a bibliografia existente em filosofia coloniallatino-ame­ricana, publicada por Nijhoff (Haia), indica a importância da produção desse nível.

38. cf. E. Burrus, "Alonso de la Veracruz: defence of the American índians ", TheHeythrop Joumal4 (1963) 225-253; Vide Redrnond, op.cit., 781-783. Além do maís B. Junqueíra, El maestroAlonso dela Veracruz, Archivo Agustiniano 18 (1935).

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Se examinarmos o conteúdo dessa teologia em sua relação coma realidade de seu tempo, poderemos descobrir seus condiciona­

mentos ideológicos. O último teólogo nomeado nega que o rei

tenha direito próprio para dominar os índios, mas admite que opapa tem poder indireto sobre os índios com a finalidade de catequi­zá-los e esse poder ele pode outorgá-lo aos monarcas. Por isso foijusto retirar de Moctezuma, rei asteca, seu domínio, já que assim ascriaturas bárbaras poderiam vir a ser civilizadas e cristãs. Contra obispo Montúfar nega que os índios devam pagar elevados tributos,mas admite o sistema das encomendas. Pode-se ver então que todaa teologia da cristandade das Índias Ocidentais foi, na melhor dashipóteses, reformista, quer dizer, ocultava a contradição e a injustiçaque o grupo "lascasiano" tinha criticado e condenado.

Ali estava, colega de Veracruz. Pedro de la Peria, OP (t1583),professor admirado de prima, que depois abandonará a cátedra paratrabalhar como missionário em Verapaz (1563 -15 65) e por fim setransformará no ilustre bispo de Quito (1565-1583). autor de co­mentários sobre a Summa. Um Bartolomeu de Ledesma, OP (t16ü4),autor de um conhecido tratado De iure et iustitia, e de um Sumario de lossiete sacramentos solicitado pelo arcebispo do México; Pedro de Orti­goza, SJ (1557 -16 26). escreveu um De natura theologiae. De essentia Dei,comentários sobre a Secunda secundae; André de Valência, SJ (1582­1645), editou um Tractatus de Incarnatione; o fecundo Juan de Ledesma(1576-1636) escreveu dezesseis livros, dos quais só se conservouum: De Deo uno; Pedro de Pavia, OP (t1589). publicou De sacrosanctosacramento eucharistiae. A lista tornar-se-ia muito extensa se somente doMéxico neste século mencionássemos Esteban de Salazar. OSA, An­drés de Tordehumos, OSA, Juan de Gaouna, OFM, Bernardo de Ba­zán, Op, Francisco de Osuma, OFM, Pedro de la Concepción, JuanLópez Agurto de la Mata, etc.

Se tomarmos agora como exemplo a universidade de Chuqui­saca no século XVIII, poderíamos ler o que um provincial jesuítarecomendava a seus religiosos:

Estudai, pois, a metafisica, mas imediatamente tereis que vosempenhar na fisica geral, que vos manifestará em comum aharmoniosa composição do universo, para refutar vigorosa­mente o Emílio de Rousseau, o Dicionário filosófico de Voltaire, oSistema da natureza de Holbach, o Exame da religião de Marechal, as

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Cartas Persas de Montesquieu e similares monstros da impiedade,abortados pelos incrédulos deste século39

.

Um Tomás Falkner, discípulo de Newton, que dá aulas em Cór­doba de Tucumán em 1763, inaugura a cadeira de matemáticas en­sinando Leibniz, Wolff, Newton, Locke, Gassendi e Descartes. Seusalunos passavam depois para a teologia. Só no Chile os jesuítas ti­nham bibliotecas com até vinte mil volumes, "a maioria das obrascientíficas e literárias mais difundidas na Europa até meados doséculo XVIII"40. Um certo Domingo Muriel (1743-1795) era ver­sado nas escrituras, concílios, história eclesiástica, direito civil,eclesiástico, municipal, da Espanha e das Índias; além do espanhol,conhecia o francês, italiano, grego, latim e hebraic041

.

De qualquer modo essa teologia foi imitadora da segunda es­colástica e por isso duplamente ideológica: porque já o era na Eu­ropa, e porque ao repetir-se na América encobria não só as injustiçasdo antigo continente como além do mais as do novo. No entanto,uma história documentada de nossa teologia mostrará muitos as­pectos críticos ou desideologizantes, como por exemplo o trata­mento teórico do tipo de propriedade guarani exposto pelo padreMuriel na universidade de Córdoba de Tucumán, que se distinguiade todos os já conhecidos e que permitiu a organização das famosasreduções do Paraguai42

, de tipo socialista ou de propriedade co­mum dos produtos do trabalho - experiência que teve importânciano século XVIII francês, proto-história do que depois será chamadode "socialismo utópico", pela influência que exerceu sobre pessoascomo Meslier, Mably ou Morelli. Esse tipo de propriedade não foinegada por nenhum teólogo colonial. Havia nele uma espécie decrítica antecipada da propriedade burguesa, porém em nome deuma sociedade agrária ou arcaica.

39. Citação de G. Furlong, Nacimiento y desarrollo de la filosofía en e! Río dela Plata, Buenos Aires, 1947,617.

40. F.A. Encima, História de Chile V, Santiago, 1930, 550s, 550-596.

41. cf J. Miranda, Vida de! venerabJe sacerdote don Domingo Murid, Córdoba, 1916. De Muriel seconhece Fusti navi orbis, Veneza 1776; uma Rudimenta juris naturae et gentium, Veneza 179 1, e umaCollectanea dogmatica de secuJo XVII, Veneza 1792, entre algumas de suas obras.

42. A obra mais completa sobre o tema das reduções do Paraguai é a de Guillermo Furlong.

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Por seu turno, Portugal influiu igualmente sobre o Brasil a par­tir de sua famosa universidade de Coimbra, mas não teve como aEspanha interesse em fundar grandes universidades nem numero­sos colégios maiores. De qualquer maneira a vida teológica foi pu­jante, ainda que igualmente imitativa. Na colônia lusitana a presençados jesuítas foi muito maior do que na Hispano-América, e desdeantes de Antônio Vieira (16 O8-1698) formaram a consciência daIgreja no Brasil colonial'l-3. Por outro lado, como o Brasil não teráuma guerra da emancipação nacional e o rei de Portugal fundará oimpério no Brasil, a crise que assolará a América espanhola não sefará presente em tal dimensão nesse país, mas tampouco os "aresnovos" que sopraram nas outras nações.

TERCEIRA ÉPOCA. Segunda Teologia da Libertação. Teologia revolu­cionária diante da emancipação contra a Fspanha e Portugal (desdemeados do século XVIII)

A expulsão dos jesuítas (em 1759 no Brasil por obra do mar­quês de Pombal, e em 1767 na América espanhola por decisão deCarlos III da Casa de Bourbon) significa um forte golpe para a as­piração dos erioJIos e a implantação de uma certa hegemonia porparte da burguesia comercial monopolista-peninsular. Desde asguerras dos comuneros44-, e seguindo a ininterrupta tradição desde oséculo XVI das rebeliões indígenas, na segunda parte do século XVIIIsurge explícita uma nova teologia da libertação. Mas as pessoas que profe­rem essa teologia já não são os proféticos missionários espanhóis massim agora os indígenas, os erioJIos contra seus antigos mestres decristianismo: contra os espanhóis e portugueses.

Um Túpac Amaru define em suas proclamações pelas quaisconvoca a rebelião uma explícita teologia da libertação, o que lhe valeráa excomunhão da parte do bispo de Cuzco:

4-3. cf. meu livro América Latina,dependencia y liberación, Buenos Aires, 1972, 5 2s, sobre Vieira. Essemessianismo se apresenta como tradicional no Brasil até hoje. Vide M.I. Pereira de Queiroz,Historia y etnologia de los movimientos mesiánicos, México, 1969.

44. É interessante observar que o movimento insurrecional dos comuneros foi leigo e até anti­clerical em determinados lugares (cf. P. Posada, EI movimiento revolucionario de los comuneros,México, 1971).

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... Retirando-os dos impostos e do jugo pesado que até o dia dehoje nos tem mantido sob o seu peso tão oprimidos, através dogoverno tirânico da Espanha, com seus tributos insuportáveis,que não parecia outra coisa senão uma servidão de total escra­vidão à semelhança do cativeiro da Babilônia, onde o povo de Deusisraelita gemia+5. Cuidando para que cessem as ofensas a Deus...para retirá-los das injustas servidões que têm padecido+6.

Túpac vê os indígenas em lugar dos escravos do Egito; o faraócomo o rei da Espanha e aos que se libertam como o povo de Israel.Éevidente que ele não pode deixar de se identificar com Moisés. Anovidade nessa interpretação consiste em que Túpac Amaru se con­verte assim num herói e num teólogo p9pular da libertação. Suaconsciência cristã interpretava os acontecimentos com maior clare­za e justeza que o bispo de Cuzco. Isso nos ensina que na política osprofetas têm uma visão mais clara do que o ministério eclesial. E aprofecia é para a Igreja tão essencial como o magistério (ainda que aesse último caiba a função de julgar os carismas: mas não a decriá-los; e, além do mais, pode equivocar-se no julgamento se nãoparte do pressuposto de que o Espírito Santo é que os promove enão o mero desejo de opor-se à hierarquia).

A renovação teológica se fez sentir, por outro lado, em todos osmeios criollos, influenciados pela Ilustração. Em 1794, por exemplo,coube ao frade dominicano Servando Teresa de Mier a prisão nasmais desumanas condições, por causa de um discurso sobre NossaSenhora de Guadalupe na catedral da cidade do México+7. Ele sim­plesmente afirmou a antiga tradição do século XVI+8 de que o após­tolo Tomé procedente da Palestina, no século I, teria passado pelosul da Índia e chegado até a América. Dessa maneira tinha pregadoa Virgem de Guadalupe - prenunciando sua presença no México noApocalipse 13, onde as grandes águas eram o lago de Texcoco - e a fécristã entre os toltecas. Não importa o equívoco de seus conheci­mentos históricos; o importante era que não se desejava aceitar que

45. Proclamação de 19 de março de I 780 (Boleslao Lewin, La rebelión de Tupac Amaru, BuenosAires, 1967, p. 423).

46. De 17 de novembro de 1780 (Ibid., p. 415).

47. Vide]. Lafaye, Quetzalcóatl y GuadaIupe, México, 1977, p. 357.

48. Ibid., p. 253s.

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o dom maior do cristão, a fé, tivesse sido recebido da Espanha con­tra a qual os criollos começavam a lutar visivelmente. Essa prediçãoguadalupana era já teologia da libertação, na medida em que justificavauma práxis emancipatória. A virgem dos Remédios, que ajudouCortês na conquista contra os astecas, converteu-se na bandeira dosrealistas espanhóis. A virgem de Guadalupe, que apareceu a um in­dígena, Juan Diego, foi o estandarte dos oprimidos, a bandeira delibertação. Não foi por acaso uma luta "entre Virgens" que simbo­lizavam uma luta entre criollos e espanhóis, classes distintas e contra­postas na práxis?

A ocupação da Espanha por Napoleão (1808) lança as colônias,guiadas pela oligarquia criolla, contra a burocracia hispânica (vice­reis, ouvidores, em grande parte bispos, etc.) , e na luta da emanci­pação contra a metrópole. Na práxis emancipatória, a partir da situaçãode classe oligárquica, os sacerdotes, curas, professores, religiosos,leigos universitários começam a formular a "justificação" teológicade suas guerras. Nasce, assim, sobre as ruínas da teologia da cris­tandade, uma reflexão que se expressa fora das cátedras (volta a sernão acadêmica, como nos primeiros tempos da conquista), nos

,l' ~9 b d ' . 50 bl"pu pltos ,no ra o que convoca exerCItos ,nas assem elas cons-tituintes-como se pode ver em Tucumán, quando dezessete sacer­dotes constituíam a maioria absoluta dos vinte e quatro deputadoseleitos pelas províncias do Rio da Prata em 1816 -, na redação dasnovas constituições como a de Quito redigida pelo diretor do se­minário de teologia, em cujo ato proclamatório de 1809 se entooua "Salve Rainha", nas proclamações, nos artigos dos jornais revolu­cionários, etc.

49. Vide o trabalho de A. Churruca, "El pensamiento de Morelos, una ideología liberadora":Christus 477 (1975) 13s; 478 (1975) lOs. Ele mostra a oposição entre a Espanha criadorae a Espanha opressora e decadente: "As afirmações agressivas do libertador mexicano nãose referem à Espanha, que nós mexicanos amamos, que foi personificada por Las Casas eVasco de Quiroga e por tantos outros; vão endereçadas aos restos daquela entidade. encar­nada agora pela tão limitada personalidade de Godoy e pisoteada de modo altaneiro eavessamente por Napoleão e Botella". Ibid., 477 (1975) 15.

50. Não se deve esquecer que s= a intervenção do "baixo clero" teria sido impossível a eman­cipação da Espanha. O mesmo cura e pàroco Miguel Hidalgo y Costilla (1753-1811), antigodiretor do seminàrio de Morelia (México) ,lançou o brado que convocou o exército da liber­dade = 15 de set=bro de 1810. Conduziu os exércitos populares até ser condenado porheresia pela Universidade do México vindo a morrer fuzilado = 1811.

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o fragor da guerra e a mudança de estruturas sociopolíticas,econômicas e administrativas, produziu a desorganização quandonão o fechamento das universidades, colégios maiores e seminá­rios. Os professores se alistavam nos exércitos, as bibliotecas eramincendiadas ou ficavam abandonadas; não havia introdução de li­vros da Europa; não vinham mais missionários nem mestres; osseminaristas e estudantes abandonavam seus estudos; desaparece oPatronato real; a teologia não é mais apoiada pelo Estado; o santooficio da inquisição deixa de significar um dique para todo tipo denovas influências ideológicas. Nesse caos perfeitamente compreen­sível perde força a segunda escolástica e surgem correntes apoca­lípticas, iluministas ou ecléticas.

Se a teologia da cristandade foi imitativa, a dessa época recupe­ra ainda algo da criatividade inicial da teologia na América. Os prin­cípios aprendidos (no tomismo ou no suarezianismo) são aplicadospara justificar a práxis emancipatória da oligarquia nativa. Essa eta­pa deverá ser levada muito a sério por uma história da teologialatino-americana. Trata-se de um novo momento não acadêmico,prático e político da reflexão a partir de uma fé comprometida numprocesso de libertação, e por isso desideologizante. A classe domi­nante nas colônias (as burocracias hispânicas) se vê criticada poruma teologia prática das oligarquias nativas (não ainda das classesmais oprimidas como acontecerá no século XX). Não é estranho,então, que um Manuel Belgrano (1770-1820), advogado diploma­do em Saiamanca e nativo do Rio da Prata, general dos exércitos deemancipação, faça editar em 1813 em Londres um comentário emquatro volumes do padre Lagunza, jesuíta chileno, sobre o Apoca­lipse de S. João: EI reino deI mesÍas en gloria y majestad, obra que indicadentro de seu messianismo o sentido do futuro num movimentopolítico-escatológico. Ou que no mesmo ano se reedite em Bogotáa Destrucción de las Indias de Bartolomeu de las Casas para apoiar omesmo processo libertadorS

1.

51. o historiador Roberto Tisnés descreveu essa edição (seu trabalho foi editado pela Comis­são de Estudos de História da Igreja na América Latina). Para o movimento apocalípticoconsultar: H. Cerutti, América en las utopias dei renacimiento, em Hacia una filosofia de la liberociónlatino-americana, Buenos Aires, 1973, 53 s.

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Certamente trata-se de uma etapa da teologia que terá que co­meçar a ser estudada com muita atenção. Os trabalhos de Churrucasobre o Padre Morelos (e, cabe destacar, a posição de um MiguelHidalgo é ainda mais importante e clara como teologia da liberta­ção), e o da equipe venezuelana sobre Juan Germán Roscio, cujaobra em três tomos manifesta igualmente e de maneira explícitauma teologia da libertação emergente da práxis, e em especial otrabalho de Max Salinas e dos outros pesquisadores do Chile (commuito trabalho de fontes e a caracterização de teologias monarquistase patriotas enfrentadas), indicam que a época da emancipação nacio­nal é um terreno quase inexplorado de teologia crítica, contraditóriade outra que justifica a continuação do domínio hispânico.

A pobreza dessa teologia, enquanto obras escritas ou de "serie­dade acadêmica", não diminui sua importância, ainda que em partetenha ficado abortada porquanto faltaram tempo e condições paraa sua consolidação. Rapidamente descaiu para uma reflexão que justi­ficou a nova ordem das coisas e por isso perdeu seu sentido críticorevolucionário. Mas nem por isso deixou de cumprir sua função his-,tórica e mobilizou de fato o povo contra a Espanha, já que a oligarquiacriolla sem o apoio teológico da Igreja não teria podido, de nenhumamaneira, levar a termo o processo emancipatório.

Quando o cura Miguel Hidalgo foi excomungado e declaradoherege, ele escreveu ao seu bispo um discurso claramente na linhado que hoje poderíamos chamar a teologia da libertação - contra a teo­logia de dominação do bispo que justificava o domínio da realeza eordenava a obediência à ordem colonial estabelecida:

Abri os olhos, americanos, não permitais que os nossos inimigosvos seduzam: eles só são católicos por política; seu Deus é o dinheiroe as combinações só têm por objetivo a opressão. Acreditais poracaso que não pode ser um verdadeiro católico aquele que não estásubmetido ao déspota espanhol? De onde nos veio esse novo dog­ma, esse noyo artigo de fé?.52 O móvel de todo esse empenho(dos espanhóis) não é senão a sua sórdida avareza. S3

52. "Manifesto que hace el pueblo" (1810). (Cf meu trabalho Religión, Edicol, México, 1977,p.201).

53. Ibid., p. 202.

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No breviário que tinha em suas mãos o patriota fundador doMéxico, José Maria Morelos y Pavón, podemos ler:

O apóstata José Maria Morelos ... foi tentado pelo demônio eseguiu o revoltoso Miguel Hidalgo... (neste) povoado (de Eca­tepec) pagou com sua vida todos os seus erros ... (manifestan­do-se assim) o triunfo da cristandade sobre os seus mais encar­niçados inimigosS4

.

Pode-se então observar que para a teologia da cristandade er­guer-se contra a ordem política (o rei) significava revoltar-se contraDeus. Não assim para o teólogo da libertação Morelos. O sacerdote elibertador latino-americano, que deverá suportar a condenação deuma parte da Igreja (bispos e até a Santa Sé) para libertar os oprimidos,falava a seus soldados assim:

Este povo oprimido, semelhante em muito ao de Israel, sujei­tado pelo faraó, cansado de sofrer, ergueu suas mãos ao céu, fezouvir seus clamores diante do trono do Eterno... abriu (este)sua boca e decretou... que o Anáhuac fosse libertadoSS

Mas talvez o teólogo mais interessante que até agora descobri­mos foi o leigo, patriota e membro do primeiro governo libertadorvenezuelano, o licenciado Juan Germán Roscio, que desenvolveunuma obra teológica os motivos pelos quais um latino-americano,cidadão e cristão, pode empunhar as armas contra a tirania do reicristão espanhol:

Tão constante tem sido a obstinação dos teólogos do poder arbi­trário em querer amalgamar duas coisas inconciliáveis: o cris­tianismo e o despotismo... vícios próprios dos obstinadosdefensores da monarquia absoluta e indignantemente imputa­dos em nossas relações com o Ser SupremoS6.Jesus Cristo, cujacaracterística era a de libertador e redentor, não poderia aprovara usurpação empreendida pelos imperadores de Roma e os de-

54. Vide a citação em meu livro Historia general de la 191esia en América Latina, I! 1, p. 27 O. Esse textose encontra no breviário que o cura herói segurava no momento de ser fuzilado.

55. Carta ao bispo de Oaxaca, Antonio Bergoza, em 15 de novembro de 181 2 (cf AgustinChurruca, "E] pensamiento de Morelos", em Materiales para una historia de la teologia en AméricaLatina, CEHILA-DEI , San José, 1981, p. 241).

56. El triunfo de la libertad sobre e1 Despotismo (1811), Caracas, 1953, t. 1., p. 20.

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mais opressores daquela época... A doutrina de Jesus Cristo erauma declaração dos direitos do homem e dos povOS 57

.

A época da primeira emancipação (a de 1810 e decênios se­

guintes) é um canteiro quase inexplorado da teologia da libertação,crítica, política, contrária a outra teologia que justificava o prosse­guimento da dominação hispano-lusitana.

Essa foi a segunda época da teologia da libertação latino-amaricana,que tinha por sujeito os criol1os, os nascidos na América mas geral­mente de raça branca ou mestiços. Não era ainda o próprio povo,como bloco social dos oprimidos, quem se lançava àenunciação deum discurso teológico. De qualquer maneira foi um discurso delibertação e fundador das nações livres latino-americanas.

QUARTA ÉPOCA. A teologia neocolonial na defensiva (até 1930)

As datas que marcam esse período são, por um lado, a aceitaçãopor parte de Roma da emancipação neocolonial na pessoa do PapaGregório XVI pela encíclica Sollicitudo ecclesiarum (1831), e por outroa crise da oligarquia neocolonial ou do liberalismo dependentepouco depois da crise econômica do "centro" em 1929. Nesse am­plo século a teologia passa da mera lembrança da teologia da cris­tandade colonial e das euforias dos dois decênios posteriores a 1809ao enclausuramento numa tradicional posição conservadora, provin­ciana, sempre em defasagem quanto aos acontecimentos (pelo menosaté meados do século XIX) 58. O positivismo (que se faz presente pelainfluência francesa no Brasil com a obra de M. Lemos, AUSgU5tO Comtee o positivismo, 1881, no México por obra de Gabino Barreda, na Ar­gentina por P. Scalabrini, etc.) , foi criticado por teólogos conserva­dores que não deixam por isso de terem méritos: entre outros,

57. Ibid., t. II. p. 90.

58. A crise era importante. J. Jiménez Rueda, em Historia jurídica de la universidad de México, 152­153, afirma que Mora dizia que em 1830 teria sido necessária "a supressão de uma mul­tidão exorbitante de cadeiras de teologia que levavam anos inteiros para contarem comum estudante". Em 1834 o plano da teologia é mudado no México: "a cadeira que sechamava de prima de teologia será a de lugares teológicos; a de Escritura conservará seunome; a de véspera será de história eclesiástica": op. cit., p. 160. Pouco a pouco a teologiaabandonará para sempre a universidade do Estado. Em 1857 a biblioteca de teologia passapara a Biblioteca Nacional. Em J867 a faculdade é suprimida definitivamente.

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Mamerto Esquiú (1826-1883) na Argentina e pouco mais tardeJacinto Ríos (1842-1892). Algo irá mudar a situação, a "romaniza­ção" que irá ocorrer lentamente desde a fundação em Roma doColégio Pio Latino-americano (1859), que coincide com a irrup­ção das elites do liberalismo neocolonial anticlerical (na Colômbiaaparecem em 1849, no México com Juárez em 1857 e no Brasilcom a República em 1889). Um certo grupo de pensadores, teólo­gos ou bispos59, assume no final do século essa posição liberal (napolítica se chamará a "democracia cristã" ). É interessante vermoscomo Mariano Soler (1846-1908), primeiro arcebispo de Monte­vidéu, um dos primeiros alunos do Pio Latino-americano de Romae que inaugura presidindo o Concílio Plenário Latino-americano( 1899), em sua obra EI catolicismo, Ia civilizacián y eI progreso (1878), naqual critica o darwinismo, o protestantismo (sic) , o racionalismo,a propaganda irreligiosa, etc., usa uma terminologia e até categoriase problemática progressistas e liberais (com uma bibliografia emfrancês, inglês e italiano da época), mas dentro de uma posturafundamentalmente conservadora e tradicional agrária. Há entãouma desconfiança para com a cultura burguesa, tecnológica nas­cente, anglo-norte-americana que começa a ser imperial monopo­lista, mas por razões europeu-continentais, latinas e por umatradição agrária conservadora latino-americana. No entanto, é nocomeço do século, e a partir das minorias de "católicos liberais",que se começa a passar a uma superação dessa posição e se gestamas posições que posteriormente serão assumidas decididamentepela teologia progressista, praticada de todas as maneiras pelos se­tores ou classes médias, aliadas da alta oligarquia.

Como muito bem demonstrou Beozz06o, a passagem de um

pensamento conservador a outro liberal, e ainda popular, é um fatoque deve ser considerado nessa época. A figura de Júlio César deMorais Carneiro (1850-1916) poderia muito bem ser colocadacomo protótipo da época em questão. De qualquer maneira, os chi­lenos tais como Pedro Félix Vicuna ou Juan José Júlio Erizalde (to-

59. Énesse ambiente que surge o movimento do "liberalismo católico": cf. N.T. Auza, Católicosy liberales en la generación dei 80, I-lI, Cuernavaca, 1969.

60. Vide os dois tomos publicados por DEI-CEHILA, sobre Historia de la Teología Latino-americana(1981 e 1985).

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dos leigos); Riva Agüero ou Víctor Andrés Belaúnde no Peru, Trini­dad Santos no México, e tantos outros (entre os quais cabe mencio­nar os redentoristas de fins do século, os Padres Grote ou Sonderns,que pela sua experiência alemã lançam os "Círculos Operários")nos indicam que nem tudo foi conservadorismo, e que o liberalis­mo que alguns católicos adotaram deverá ser estudado com maisatenção.

A presença de Roma é crescente e em particular da Itália. Osteólogos do Concílio Vaticano I têm influência direta sobre os cadavez mais numerosos estudantes de teologia que viajam a Roma. Só oChile envia desde o final do século XIX alguns seminaristas para forada Itália. Éo período da terceira escolástica. AUniversidade Católica doChile é fundada em 1869, transformando-se no mais importante cen­tro teológico da América Latina até meados do século XX.

Desde 1850 a presença de protestantes se faz notar, porqueantes dessa data ela fora mais esporádica. Os presbiterianos iniciamsua obra na Colômbia em 1856, no Brasil em 1859 e no Méxicoem 1872. Os metodistas iniciam sua obra no Brasil em 1835 e namesma data no Uruguai (mas fracassam) e retornam em 1876. Osbatistas começam a atuar na Argentina em 1881. Somente no con­gresso do Panamá de 1916 arregimentam suas forças. Ainda seránecessário estudar teologicamente os movimentos de liberais e ma­çons para se descobrir novos caminhos.

QUINTA ÉPOCA. A Teologia da "Nova Cristandade" (desde 1930)

Nesta época se efetuará a passagem da teologia tradicional, reflexodas classes abastadas rurais ou latifundiários, integrista (cujo inimi­go era o liberalismo burguês, o comunismo, o protestantismo e os"tempos modernos"), para a teologia desenvolvimentista, reformista, queassume já o ethos burguês mas na trágica posição de ser um capita­lismo dependente - na melhor das hipóteses, porquanto a maioriade nossas nações não alcança nem sequer o nível de capitalismo eé só uma neocolõnia de exploração de matérias-primas sem umaburguesia nacional propriamente dita.

A crise de 1929 produziu "de tabela" a crise na "periferia",especialmente na América Latina. Em determinados países como osdo Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile), no centro do Brasil (entre

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Rio e S. Paulo) e no México, inicia-se como resposta uma certaindustrialização de substituição de importações, movimento quecrescerá na Segunda Guerra Mundial. Mas ao mesmo tempo surgemmovimentos sociais populares (o primeiro dos quais foi a revolu­ção mexicana em 1910, posteriormente orientada habilmente pelaburguesia daquele país) que impossibilitam às burguesias neocolo­niais exercerem o poder. Aparecem assim as classes militares empraticamente todos os países, em nome inicialmente das classes la­tifundiárias e depois da ambígua unidade da burguesia nacional edas classes trabalhadoras. Isso significa o fim do liberalismo mili­tante, laicista (à francesa e inspirado em Littré), positivista (a partirde Comte), anticlerical (ainda que cristãmente moralizante), e, emtroca, inicia-se uma abertura e até se buscará o apoio da Igreja ca­tólica tradicional, conservadora. Isso permitirá a organização de gi­gantescos congressos eucarísticos, mas, principalmente, a fundaçãoda Ação Católica ou outras instituições semelhantes, que partem daformulação teórica da teologia de "nova cristandade"61.

61. Vide um esboço histórico da teologia na América Latina em minha obra Hipótesis para una historiade la teologia en América Latina. Indo American Press. Bogotá. 1986; para a época recente consultarSamuel Silva Gotay, El pensamiento cristiano revolucionario en América Latina, Sigueme, Salamanca, 1981;Roberto Oliveros Maqueo, UberociÓll y teologia, Ginesis y ereeimiento de una reflexiÓll (1966- I976), CRT,México, 1977; José Comblin, "Kurze Geschichte der Theologie der Befreiung", em JuergenPrien, Latcinamerika: Gessellschoft, Kirche, Theologie, Vandenhoeck und Ruprecht, Goettingen, 1981,t. lI, p. 13-38; Juergen Prien, La Historia dei Cristianismo en América Latina, Sigueme, Salamanca,1985, p. 1072s; Deane William Ferm, Profiles in Ubemtion, 36 Portmits af Third World Theolagians,Twenty-Third Publications, Mystic, Connecticut, 1988, p. 114-193; Idem, ThirdWorldubemtionTheologies.An intraductory Swvey, Orbis Books, New York, 1986, p. 3-58; como introdução geralver Phillip Berryman, Liberatian Theolagy, Pantheon Books, New York, 1987; mais teológico queo anterior José Ramos Regidor, Gesti eil Risveglio d<jjli Oppressi, Amoldo Mondadori Editore, Milão,1981, e Mario Cuminetti, La teologia della liberazione in America Latina, Ed. Borla, Bolonha, 1975; parao contexto da história da Igreja, vide a obra de conjunto de CEHILA, Historio General de la Iglesiaen América Latina, Sigueme, Salamanca, t. I-X, desde 1977 e ainda inacabada; vide meu livro DeMedellín a Puebla. Una década de sangre y esperonza, Edicol-CEE, México, 1979 (há urna edição portu­guesa em Loyola, S. Paulo, t. I-III, 1985); e minha Hipótesis para una Historio de la Iglesia en AméricaLatina, Estela, Barcelona, 1967 (edições posteriores em castelhano; em inglês Church History inLatin America, Eerdinans, Grand Rapids, 1981; em alemão Kirchengeschichte in Latcinamerika, Grue­newald Verlag, Mainz, 1988); também. no tocante às tensões internas na Igreja, consultarPenny Lemoux, Cry of the People. United States in the Rise of Fascism, Torture and Murder and the Pmecution ofthe Catholic Church in Latin America, Doubleday, New York, 1980; por último CEHILA, Historio de laTeologia en América Latina. VIII Encontro Latino-americano, Lima (1980), DEl, SanJosé, 1981 (háurna tradução para o português em Paulinas, S. Paulo); além desses, Pablo Richard (ed.), Ruícesdela Teologia Latinoomerieana, DEl-CEHlLA, San José, 1985 (há urna tradução para o português emPaulinas, S. Paulo, 1982; e para o inglês em Orbis Books, NewYork, 1985). Para uma posturacritica ante a teologia da libertação, e com urna bibliografia muito boa, Roger Vekernans,Teologia de la liberación y cristiano, por d socialismo, Cedial, Bogotá, 1976.

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AAmérica Latina, como nenhum outro continente (excetuan­do-se na Europa a Espanha, Bélgica ou França, quer dizer, a EuropaLatina), pôde seguir as instruções de Pio XI acerca da Ação Católica.Efetivamente, na Itália o fenômeno do fascismo, com Mussolini,significou (como nos países mais industrializados da América Lati­na; ainda que no México com a crise da "cristiada" que demarcaráa situação de maneira diferente) o surgimento de um novo "blocohistórico": a burguesia nacional (e "nacionalista"), que hegemoni­za um projeto de industrialização, firmando um ambíguo pactocom o proletariado crescente, e usando a pequena burguesia comoa classe "burocrática" por excelência62 . A "teologia" da Ação Cató­lica foi uma reflexão cristã que legitimou - ainda que aparentemen­te criticasse de maneira externa - o projeto "populista,,63.Tomemoscomo exemplo (de um tema que ainda não se estudou suficiente­mente) duas pequenas obras da época, por volta de 1940. Na tra­dução da obra de Luis Civardi, clássica na década de 30, Apóstoles enel propio ambienteM, o prefaciador - recém-nomeado bispo, Monse­nhor Alfonso Beteler -, escreve:

Os leigos da Ação Católica, por serem participantes do apostoladoHierárquico (com maiúscula no texto), são incorporados à missãoda Hierarquia (com maiúscula no original) de forma parcial (sic),mas real. Parcial, porque não recebem a totalidade da missão e simuma participação da mesma; real, porquanto não se trata de umasimples proposição metafórica, mas sim da verdadeira incorpora­ção à missão de que a Hierarquia é depositária65.

62. Vide meu artigo "EI estatuto ideológico del discurso populista", em Práxis latino-americana yfilosofía dela libcración, Nueva América, Bogotá, 1983, p. 261-306. Ghita Ionescu-Ernest Gell­ner, Populisrno.Sus significados y característicasnacionales, Amorrortu, Buenos Aires, 1971; F. Weffort,Populisrno,marginación y dependencia, Universidad Centroamericana, San José, 1973. Sobre a Igre­ja latino-americana, vide meu livro Die Geschichte der Kirche in Lateinamerika, p. 1685.

63. O "fascismo" ou "nazismo" do "Centro" (Itália ou Alemanha) visava o domínio mundialdo capitalismo. O "populismo" da "periferia" (fascismo de países neocoloniais) é o fenô­meno análogo no Terceiro Mundo. A diferença repousa em que o "populismo" (de Vargasno Brasil, Cárdenas no México, Yrigoyen ou Perón na Argentina, Ibaiiez no Chile, RojasPinilla na Colômbia, Pérez Giménez na Venezuela, o APRA no Peru, o MNR na Bolívia, etc.)é "antiimperialista" (antianglo-saxão) mas dentro do panorama de uma "libertação na­cional" (sob hegemonia da burguesia, porquanto é um projeto capitalista), sem pretensõeshegemõnicas "para o exterior".

64. Edições JAC, Conselho Arquidiocesano de Córdoba (Argentina), 1940.

65. Ibid., p. 6.

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E Monsenhor Civardi expressa, por seu turno:

Apóstolos são todos os legítimos sucessores dos Doze, dos Bis­pos (tudo em maiúscula no texto original), e, sob a sua direção,os sacerdotes. Eles exercem o apostolado Hierárquico. Mas naIgreja de Cristo podem e devem ser apóstolos, dentro de certoslimites (sic), também os simples fiéis. Seu posto é o de coad­jutores do apostolado Hierárquico. Eis aqui a Ação Católica, vas­ta falange de leigos, que se unem ao clero nessa grande em-

, I - d I 66presa, que e a sa vaçao as a mas .

Pode observar-se, então, uma eclesiologia absolutamente "hie­

rárquica", onde o leigo "participa" (parcialmente, "dentro de cer­tos limites") de um apostolado que é concedido "de cima", não"de baixo" (de seu batismo, como consagração messiânica), e sim"institucionalmente" a partir da hierarquia. A leitura desse texto

mereceria todo um tratado teológico específico. Há nele uma con­cepção "individualista" da missão cristã, "dualista" (salvar a "alma" ),etc. É o tempo do ensino do "Estado" como "sociedade perfeita",junto a uma Igreja também como "sociedade perfeita". Sendo am­bas "perfeitas", um pacto entre elas é possível. Não há contradição.Por isso, na obra de Leopoldo Ruiz, arcebispo de Morelia (México),Breves instrucciones de Doctrina Cristiana

67, nos é dito, no comentário ao

sétimo mandamento, sobre o "Não roubarás":

o direito de propriedade, não só do que usamos para nossaalimentação e vestuário, como também de nossas casas, animais,bens e terras justamente adquiridas, quer seja por herança, querseja por nossa própria iniciativa e trabalho, é um direito naturalsancionado pela lei de Deus (...) O Socialismo não pode seradmitido senão entre indivíduos que situem a sua felicidadeaqui na terra (...) Por isso mesmo o Socialismo é ímpio, destrui­dor da moral, da ordem e da própria sociedade68.

66. Ibid., p. 13-14.

67. Editorial Moderna, Léon (México), 1939.

68. Ibid., p. 180-181. É interessante observar que o arcebispo fala no plural de "casas", e alémdo mais de "terras" num país onde os camponeses com Zapata fizeram uma revoluçãojustamente porque não possuiam terras. Quer dizer, sem consciência, está falando dos queas possuíam: da oligarquia latifundiarista, dos proprietários urbanos, etc. E, em uma ano­tação, ele acrescenta: "O socialismo quis apagar o 7° Mandamento" (Ibid., p. 181). Não se

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A justificação do Estado populista, da ordem burguesa de proprie­dade, numa Igreja concebida clericalmente (hierarquicamente), funda­menta a teologia das "duas ordens": a ordem "temporal" do político, doeconômico, do profano (o "ambiente" de Civardi ou o "mundo") ondeo leigo vive naturalmente, e onde deve exercer o "apostolado" ("de cimapara baixo"), Ea ordem"espiritual" da Igreja, da alma, da salvação, ondeo Bispo (Papa e sacerdote) têm autoridade, e onde o leigo "participa",Ademais, por uma sutil metamorfose do "Reino de Deus", o dito Reinoé a Igreja, e o "mundo" (o Estado, o profano, o político) é o "Reino destemundo", O membro da Ação Católica invoca a "Cristo Rei" (sua "reale­za" significará reconquistar seu domínio sobre o político), e ao receberseu distintivo (que devia trazer sempre em sua lapela) se compromete a"restituir o reinado a Cristo Rei",

Na América Latina, a Igreja tinha sido deslegitimada pelos libe­rais desde fins do século XIX (a República brasileira de 1889, desdeJuárez e o porfiriato mexicano a partir de 1876, o governo de Rocana Argentina desde 1880), O positivismo filosófico, a maçonariacomo força política, o protestantismo como competição religiosa,as sociedades de livres-pensadores, tinham subtraído da Igreja opoder político - ela que havia desfrutado na Cristandade colonial deum consenso sem contrapartida, A Ação Católica foi a "instituição"eclesial, com base fundamentalmente na pequena burguesia (que nos"populismos" é a clientela essencial da burocracia política do Estado),que "recuperou" a presença política da Igreja na "sociedade política"(o Estado) e na "sociedade civil" (o "ambiente"):

No sentido mais estrito chama-se de apostolado de ambien~eoque se desenvolve em beneficio daqueles que se encontram namesma condição de vida que nós e que portanto têm em co­mum conosco os deveres de estado. Éo apostolado do operáriosobre o operário, do profissional sobre o colega de profissão,do empregado sobre o companheiro de escritório, do estudan­te sobre o colega de colégio, da mãe de família sobre outras

- 69maes, etc,

entende o argwnento, porque se por algwna coisa o socialismo deveria justificar-se, é,justamente, pela restituição ao pobre, ao trabalhador, ao camponês daquilo que "lhes foiroubado": suas terras, seu valor não retribuído em salário, etc.

69. L. Civardi, op. cit., p. 16.

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Observem os exemplos escolhidos. Fala-se de "operário" (nãode "camponês"), de "profissional", "empregado" e "estudante"(pequena burguesia) e todos "urbanos" - do Norte da Itália então,não do "mezzo giorno" de Gramsci, nem do mundo rural latino­americano (a imensa maioria do povo latino-americano nos anos40). É uma teologia "interclassista" (como exige o "populismo"),e por isso a Ação Católica:

Não é ação cívica nem política, senão no sentido de que, ao infil­trar-se o espírito cristão nos indivíduos e famílias, terá que se fazersentir a regeneração social e ainda política sem violências nem transtom%.

Trata-se então de ganhar "consenso" - ou de impedi-lo aosgrupos antieclesiais. Se junto a isso vemos a política do cardeal Se­bastião Leme (1930-1943) no Brasil, de Santiago Marúnez (1936­1952) em São José da Costa Rica71

, e a organização de massivosCongressos Eucarísticos que se confrontavam com o Estado popu­lista, poderemos compreender a que tipo de "teologia" deveria seopor a futura teologia latino-americana pós-conciliar. O certo é queessa teologia não tinha nenhuma posição crítica diante do regimecapitalista, ante o Estado populista no tocante à sua fundamentação.Ela o criticava enquanto a Igreja exigia participação no exercício dopoder ("ensino religioso nas escolas", "capelães castrenses", "mo_ralidade externa nos costumes", etc.) , dando em pagamento a "le_gitimação" do sistema - e penetrando profundamente no muno davida cotidiana. A isso temos denominado "teologia da Nova Cris­tandade", enquanto a Igreja recupera presença na "sociedade polí­tica" e "civil" num pacto que se assemelha - mas de nenhumamaneira é idêntico - ao da "Cristandade colonial" (de 1512 a 1810,para oferecermos datas aproximadas).

Em 1928 viajam a Roma a fim de estudarem a organização daAção Católica os presbíteros A. Caggiano (que será depois cardealde Buenos Aires, Argentina) e J.M. Miranda (que igualmente serácardeal do México). Desde 1929 ela se institucionaliza aos poucos

70. Leopoldo Ruiz, op.cit., p. 281.

71. cf. meu trabalho Los últimos 50 OIÍos (1930-1985) en la Historia de la Iglesia en América Latina,Indo-American Press, Bogotá, 1986, p. 17s.

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em todos os nossos países. Essa teologia distinguia claramente entreo "temporal" e o "espiritual"; o leigo era responsável pelo tempo­

ral, mundano, material e político; o sacerdote era o "homem doespiritual", o vigário do reino de Cristo. A função do povo cristão,do militante, era cumprir o "apostolado". Esse "envio" ou missãose definia como uma "participação no apostolado hierárquico daIgreja"; entendendo-se por hierárquico o papel dos bispos e sacer­dotes. Dessa maneira os ministérios e o sacramento da ordem su­primiam praticamente a significação dos carismas e o sacramentodo batismo. Os leigos podiam atuar na política com partidos de"inspiração cristã" - e assim surge no Chile em 1936 o grupo da"falange", que se separa da juventude do partido conservador, eque depois da II Guerra Mundial e por influência italiana se deno­minará"democracia cristã", que irá florescer especialmente entre1950 e 1970 -; poderão atuar em sindicatos operários mas igual­mente de "inspiração cristã" - assim se organizou a CLASC ou Con­federação Latino- Americana de Sindicatos Cristãos, que não foramsenão sindicatos reformistas na maioria dos casos -; poderão exer­cer a docência mas em "escolas cristãs", etc. A tarefa é então a dereconverter as nações latino-americanas em nações católicas: o rei­no de Cristo exige que se reconheça a religião católica como a ofi­cial e majoritária. A Igreja sonha então em recuperar a cota de poderque havia perdido no século XIX a partir da crise da cristandade esua forma de mediação são os leigos militantes.

Essa teologia da "nova cristandade" não é acadêmica mas simmilitante, porém não é diretamente política e sim dualista, em ma­téria de temporal-espiritual, estado-igreja como sociedades perfei­tas cada uma em seu nível e não conflitantes.

Será necessário esperar até 1955 para que ocorra um passo àfrente no rumo de uma teologia desenvolvimentista; quer dizer, omomento em que os cristãos ou parte deles assumem decidida­mente o projeto burguês - e da pequena burguesia - de expansãoe desenvolvimento. No entanto, é evidente, não havia de modo al­gum consciência do problema das classes e da dependência que ocontinente latino-americano padecia sob o poderio econômico,político e militar dos Estados Unidos. A terceira escolástica tinharecebido o auxílio de Jacques Maritain e por último de Emma­nuel Mounier, e com eles se rejuvenescera uma certa interpreta­ção da realidade.

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Os teólogos se formavam agora não só na Itália, senão que os maisprogressistas iam agora à França, país da pastoral, de experiências ca­tequéticas, litúrgicas, de espiritualidade, dos padres operários, etc. A"doutrina social" da Igreja permitia a muitos realizarem experiênciasde compromisso operárias ou em grupos marginalizados.

Nessa época florescem as fundações de faculdades ou centrosteológicos em universidades tais como a Xaveriana de Bogotá (fun­dada em 1937), a Católica de Lima (1942), a Bolivariana de Me­dellín (1945), as Católicas de S. Paulo e Rio de Janeiro (1947), a dePorto Alegre (195 O), as de Campinas e Quito (1956), as de BuenosAires e Córdoba (1960), a de Valparaíso e a Centro-americana naGuatemala (1961), e muitas outras depois. A teologia '''à européia"tinha um âmbito acadêmico no qual podia ir crescendo à espera deseu momento criativo.

A práxis eclesial ia igualmente se ampliando. A Ação Católicafundada em 193 1 na Argentina e no Chile, em 1934 no Uruguai,em 1935 na Costa Rica e no Peru, em 1938 na Bolívia, e pouco apouco em todos os países, permite ir passando a uma fraca "lutasocial". Grupos como os de "economia humana" inspirados emLebret, ou o "centro Belarmino" em Santiago do Chile, vão criandoconsciência. O mesmo pode ser dito dos centros de pesquisas so­ciais e religiosas que são fundados em Buenos Aires, Santiago, Bo­gotá e México e que permitirão começar a adqUirir uma certa visãosociográfica (não digo sociológica e menos ainda econômico-polí­tica) da realidade latino-americana.

Por outro lado se erigem as bases do movimento bíblico. Osprotestantes pelas suas "sociedades bíblicas" e os católicos por meiode seminários, revistas e novas edições da Bíblia vão abrindo cami­nho a uma renovação nesse sentido.

No entanto, podemos dizer que ainda depois da II Guerra Mun­dial a produção teológica é por via de imitação e aplicação do europeu,sem um conhecimento histórico nem real da América Latina.

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CAPÍTULO TERCEIRO

HISTÓRIA DA TEOLOGIA NA AMÉRICA LATINA 11(SEXTA ÉPOCA)

PRIMEIRO PERÍODO. Da Teologia européia à latino-americana (1959­1968) 72

Desde 1959 - com o anúncio do Concílio Vaticano II e a ocu­pação de Havana pelas forças revolucionárias de Fidel Castro e do"Che" Guevara - foi sendo gerada lentamente uma nova situaçãoteológica. A crise da Ação Católica - e daí a importância da obra deJosé Comblin (nasceu em 1923) sobre o Fracasso da Ação Católica (1961) ­é um fruto do colapso do "populismo". A derrubada em 1954 deArbenz na Guatemala (pelo golpe de Castillo Armas preparado pelaCIA) e de Vargas no Brasil (que se suicidou por não poder resistirmais à pressão do embaixador norte-americano), em 1955 o fimdo governo peronista na Argentina, em 1957 o de Pérez Giménezna Venezuela e o de Roias Pinilla na Colômbia e em 1959 o deFulgêncio Batista em Cuba, como indicamos acima, abrem a portaà hegemonia indiscutível dos Estados Unidos na América Latina. Éa Década do "desenvolvimento,,73 que ocupará o lugar da teologia

72. Vide Pablo Richard (ed.), Morte das cristandades enascimento da Igreja, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1982(orig. francês: Mort des chrétientés et naissance de I'Église, Paris, 1978 e trad. para o inglês pelaOrbis Books, NewYork, 1985). Vide igualmente minha obra Los últimos 50 anos (1930-1985)en la Historio de la Iglesia en América Latina, Indo-American, Press, Bogotá, 1986, p. 17s.

73. Como exemplo o. Vertrano-F. Houtart, Hacia una teologia de! desarrol1o, Bonum, Buenos Aires,1967; Josê Comblin, Teologia do desenvolvimento, Belo Horizonte, 1968; G. Bauer, Towards aTheo10gyof Deve1opment, Genebra, 1970; Rubem Alves, "Apuntes para una teologia dei desar­rollo", em Cristianismo y Sociedad 21 (1969); V. Cosmao, Signification et théologie du déve!oppement,Centro Lebret, Paris, 1967. Na Alemanha Hugo Assmann alerta sobre a questão em "DieSicuation der unterentwickelt gehaltenen Laender ais Ort einer Theologie der Revolution",em Diskussion lur Theologie der Revolution, Muenchen, 1969, onde situa a questão da "Teologiado desenvolvimento". Para os acontecimentos eclesiásticos vide meu livro Die Geschichte derKirche in Lateinamerika, p. 200s.

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da Ação Católica (ou "teologia da Nova Cristandade", conforme adenominamos), não significando, teologicamente, mudanças fun­damentais, como veremos adiante.

Podem ser detectadas três linhas de fundo. Em primeiro lugar,a renovação da Igreja devido ao Concílio Vaticano II (196 2-1965),onde, no entanto, teologicamente, a América Latina não contribuirácom nada ainda - a não ser pelas posições particulares de certosbispos muito ativos no próprio Concílio. Em 1955 fora organizada,nos tempos de Pio XII, a I Conferência Geral do Episcopado Latino­americano no Rio de Janeiro - sob a liderança de Monsenhor Ma­nuel Larraín do Chile, e do jovem sacerdote Hélder Câmara doBrasil. Em 1958 é fundada a Confederação de Religiosos da AméricaLatina (CLAR) , que será, desde a sua origem, um baluarte da reno­vação cristã no continente durante estes últimos trinta anos. Inicia­se um grande aprofundamento dos estudos bíblicos, pastorais, deespiritualidade, litúrgicos. Fundam-se seminários teológicos, revis­tas etc. Quer dizer, cria-se a infra-estrutura para a próxima profundarenovação.

Teologicamente a visão da Igreja muda. A colegialidade episco­pal descortina novos horizontes de convocação. O mesmo se dá notocante à consagração batismal como fundamento da função doleigo no mundo. Todos os capítulos da teologia se renovam, masainda a inspiração procede da Europa. Mais ainda, os futuros teólo­gos vão estudar lá; os católicos, em sua primeira geração, na Françapreferentemente; os protestantes nos Estados Unidos. José MíguezBonina (metodista, nascido em 1924) estuda nos EUA na décadade 50; Juan Luis Segundo (católico, nascido em 1925) se preparadesde meados de 1950 em Lovaina; José Porfirio Miranda (nascidoem 1924) estuda em Frankfurt e Roma; Gustavo Gutiérrez (nascidoem 1928) faz o mesmo em Lovaina e Lyon; Hugo Assmann (1933)no Brasil, e leciona em Muenster desde 1967; Enrique Dussel(1934) estuda teologia em Paris e Muenster (chega à Espanha em1957, porém a Paris em 1961, vinculado à Missão da França); epoderíamos ir relembrando a formação teológica de cada um. É aépoca da "dependência" teológica, inevitável, por outro lado, selevarmos em conta que a América Latina tinha sido uma colôniaintelectual da Espanha e de Portugal até o início do século XIX.Desde meados do século XIX se efetua o processo de "romaniza-

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ção", e somente depois da Segunda Guerra Mundial, desde 1945,há uma franca abertura para a França - a França da renovação pas­toral da "paróquia-comunidade missionária", da espiritualidade deCharles de Foucauld, dos sacerdotes operários, fatores estes quecausarão impacto profundo na primeira geração dos futuros teólo­gos latino-americanos. Surgem nessa época organismos de reflexãopastoral que servirão posteriormente como apoios ou pontos emer­gentes de reflexão teológica. Por exemplo, o Instituto de CatequeseLatino-americano (ICLA) , no sul (1961) e no norte (1 966); o Órgãode Seminários Latino-americanos (aSLAM) que ministrava cursospara professores de seminários sacerdotais; o Instituto Pastoral Latino­americano (IPLA), de início itinerante, e que depois se situará emQuito desde 1967 -instituição pioneira, e à qual pertenceram os pri­meiros teólogos latino-americanos: José Comblin, Juan Luis Segundo,Gustavo Gutiérrez, Enrique Dussel, Segundo Galilea, etc.

Uma segunda linha, do mais franco compromisso da juventudecristã na política, seguindo os delineamentos da Doutrina Social daIgreja nas nascentes Democracias Cristãs, desde a chilena sob a di­reção de Eduardo Frei, até a argentina, venezuelana (CaPEI), etc.Mas será com o primeiro governo democrata cristão da AméricaLatina (com Eduardo Frei no Chile de 1964 a 1970) o início dacrise desse tipo de compromisso "temporal". A ocupação de PuertoMontt em 1967 e a repressão camponesa escandaliza a consciênciacristã de muitas pessoas. a Centro para o Desenvolvimento Econô­mico e Social da América Latina (DESAL), fundado por Roger Veke­mans, inspira tarefas da Democracia Cristã no Chile - em 1970passará para Caracas e dali para Bogotá. a Instituto Latino-Ameri­cano de Doutrinas e Estudos Sociais (ILADES) , fundado por PierreBiga, terá igualmente essa orientação em suas origens - até a crise de1969. A Federação Internacional de Sociologia Religiosa (FERES), aindaque não seguindo a mesma orientação, contribuirá para a descoberta darealidade eclesial e sociológica. Teologicamente, não se encontra umavariante essencial com a teologia da Nova Cristandade - é só uma adap­tação modernizante à exigência do "desenvolvimento".

Uma terceira linha é a do compromisso de outros jovens cristãosem outro tipo de relação entre "fé e política"; a nascente tradiçãorevolucionária. A Revolução cubana de 1959 causou igualmente im­pacto nos cristãos. Muitos se separam então da Democracia Cristã, e

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seguindo o desenvolvimento do pensamento de Jacques Maritainpassam para o de Emmanuel Mounier, e deste para o compromisso

revolucionário, não necessariamente para o marxismo - e quando

assumem essa posição se inspiram numa linha de pensamentogramsciana, crítica, antidogmática. Tudo se acelera com a morte deCamilo Torres (1929-1966), sacerdote e sociólogo (estudou emLovaina), que assim escreve em 1965:

Abandonei o sacerdócio pelos mesmos motivos pelos quaisme comprometi com ele. Descobri o cristianismo como umavida centrada totalmente no amor ao próximo (... ). Me con­sidero' no entanto, sacerdote até a eternidade e entendo quemeu sacerdócio e seu exercício se efetuam na realização darevolução colombiana, no amor ao próximo e na luta pelobem-estar das maiorias74.

o compromisso de muitos jovens cristãos nas guerrilhas "fo­quistas" - que mostrarão seu fracasso posteriormente, com a únicaexceção da Frente Sandinista ou da Frente Farabundo Martí - sig­nificará uma profunda crise para a consciência cristã. Essa tradiçãose prolongará posteriormente com "Cristãos para o socialismo"desde 1972, primeiro no Chile e depois em toda a América Latina,antecedida pela cisão da Democracia Cristã do Movimento de AçãoPopular Unitária (MAPU), e pela crise do lLADES, com a saída deGonzalo Arroyo e Franz Hinkelammert - que se separam de PierreBigo e Roger Vekemans. Teologicamente, entretanto, todos essescompromissos - incluindo a "teologia da revolução,,75 - não po­dem ser considerados ainda como uma teologia "autóctone" daAmérica Latina. Pertence mais definidamente à teologia européia

74-. Rodolfo de Roux, "La Iglesia colombiana desde 1962", em Historia General de Ia Iglesia enAmérica Latina, t. VI!. Sigueme, Salamanca, 1977, p. 559s; cf. meu livro Die Geschichte der Kirehein Lateinamerika, p. 262s.

75. No campo protestante. e por uma vinculação muito maior com a África e a Ásia - quetinham grandes experiências da luta pela emancipação nacional desde 1948 ou de revo­luções socialistas, como a da China ou a do Vietnã -, a partir do Conselho Mundial deIgrejas (WCC) , tinha surgido uma "Teologia da Revolução", mas que, na realidade, era a"aplicação" da teologia européia, em seu capitulo de moral social,ao campo da politicarevolucionária. Sergio Aree, em Cuba, foi o primeiro a iniciar essa corrente - mas juntocom uma "Teologia do trabalho" de grande originalidade, e já em 1961 o ISAL (1961)será um organismo protestante de vanguarda.

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cntlca, de modernização, e ainda revolucionária. O passo funda­mental estava no entanto por ser dado.

Há dois aspectos que devem ser indicados. Em primeiro lugar,a profunda aspiração da "pobreza" na Igreja. A "pobreza" dos indi­víduos (bispos, padres, militantes leigos) como testemunho de vidaevangélica, produto da conversão do Concílio76

. E, em segundo lu­gar, a experiência"classista" que se originará na Ação Católica"es­pecializada": a Juventude Operária Católica (JOC), que começa atomar consciência de classe proletária; e a Juventude UniversitáriaCatólica (JUC) , ou Estudantil (JEC), ou o Movimento EstudantilCristão protestante (FUMEC). É a partir desse grupo de militantes,operários ou de pequena burguesia (este último não só não é algonegativo, como demonstrará ser uma classe essencial no processo re­volucionário latino-americano em geral, conforme o manifesta aFSlN) , que a Igreja em seu conjunto experimentará um novo tipo decompreensão da existência em geral, e política em particular. Éa partirda prática desses grupos, e sua teoria, que emergirá a ruptura teológicamais importante da história latino-americana desde o século xv.

Se tivéssemos de buscar um primeiro texto que indique o apa­recimento de uma reflexão teológica latino-americana, utilizandoainda a sociologia funcionalista, não poderíamos deixar de citar aobra de Juan Luis Segundo, que em 1962 publicou um opúsculo,Función de la Iglesia en la realidad Rioplatense77

, curso de ..complementaçãocristã" dado em Montevidéu em 1961. Nele lemos:

76. Recordo, da minha estadia em Nazaré (Israel) com Paul Gauthier (1959-1961), a exigên­cia de pobreza. Ele escreverá posteriormente o livro profético Les paunes,Jésus ct I'Eglisc (Cas­termann, Tournai, 1963) onde se coloca já a questão do "pobre" - estávamos, semsabermos, na pré-história da futura Teologia da Libertação. O Papa João XXIII falou pelaprimeira vez da "Igreja dos pobres" - graças ao trabalho de Gauthier com o bispo deNazaré, Monsenhor Hakim, o de Tournai (Mons. Hammer), com o arcebispo de Bolonha(Mons. Lercaro), e ainda com Dom Hélder Câmara no final do Concílio. Um movimentopela "pobreza" na Igreja e a opção pelos "pobres" se originou em Nazaré desde 1959. Video capítulo de]. Míguez Bonina sobre o tema dos "pobres" no Concílio Vaticano, em Lospobres (Guadalupe, Buenos Aires, 1976, p. 134-147). O texto fundamental era o de Isaías61,1, lido por Jesus em Nazaré (Lucas 4,18): "RuabAdonei Alei... (O Espírito do Senhor estâsobre mim, pelo que me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa-nova aos pobres (... )para anunciar aos cativos a redenção ( ...) paTa colocar em liberdade os cativos ...)".

77. Barreiro y Ramos Editores, Montevidéu, 1962.

55

Page 54: Teologia da libertação

Para colocar melhor e mais objetivamente o nosso problema,comecemos por fazer uma observação de tipo sociológico (sic).Tratemos de averiguar algo mais profundo sobre o que a Igrejasignifica para os católicos rio-platenses. Escolhamos para a nos­sa investigação aquela categoria de cristãos (...) que possuemisso que comumente chamamos de espírito apostólico (",),mas como um apostolado mais indireto exercido através dacomunidade, da profissão, da ação política, etc?8

E partindo das análises sociológicas da Grande Missão de Buenos

Aires, inicia sua tarefa crítica reflexiva. De maneira irônica ele escreve:

Se somos lógicos, pouco importa a Aliança para o Progresso, asgreves gerais ou a escala móvel (dos salários) diante do tremen­do problema de pertença à Igreja dos que nos rodeiam (... ). Aposição oposta nos é apresentada na realidade sociológica daArgentina e do Uruguai 1961 como menos teológic/9

Nesse pequeno livro Segundo apresenta já muito claramente acategoria de "Cristandade"80; coloca igualmente a ambigüidade deum catolicismo de massas históricas e culturais

81, chegando a escrever:

Este mundo verá ou não a vitória de uma revolução marxistana América Latina. Não se trata de quebrar a cabeça para saberde que lado se colocar para ficar bem. Em qualquer hipótese, ahistória nos conduzirá a Cristo. De nossa parte cabe negarmosas simplificações que nos propõem os que se assustam como sefossem perder tudo82

Não seria dificil mostrar, pelo método, pelo espírito, a cons­ciência clara de uma teologia latino-americana nascente, fresca,criativa, que usa as ciências sociais como instrumento. Juan LuisSegundo foi o primeiro mestre da futura teologia. Remontando àsorigens, então, não se pode deixar de mencionar a primeira reuniãode teólogos latino-americanos, convocada pelo CELAM, e realizada

78. Ibid., p. 6.

79. Ibid., p. 9.

80. Ibid., p. 19.

81. Ibid.• p. 645.

82. Ibid., p. 80.

S6

Page 55: Teologia da libertação

em Petrópolis, em março de 1964. Na referida reunião, três teólo­gos devem ser mencionados em particular: Juan Luis Segundo ex­pôs o tema "Problemas teológicos da América Latina". Lucio Gerareiterou o sentido "sapiencial" e não só racional do quefazer teoló­gico e a exigência de o teólogo comprometer-se com as aspiraçõesdo povo. Gustavo Gutiérrez analisou a função da teologia em rela­ção às massas majoritárias, às elites intelectuais e à oligarquia conser­vadora. Esse encontro em Petrópolis foi pioneiro. Posteriormentehouve outros em 1965 em Havana, de 14 a 16 de julho, com SegundoGalilea e Luis Maldonado; em Bogotá, de 14 de junho a 9 de julho,com palestras de Juan Luis Segundo e Casiano Floristán; em Cuerna­vaca, de 4 de julho a 14 de agosto, com Iván Illich e Segundo Galilea.

Além disso, o CELAM organizou importantes encontros queprepararam o terreno para Medellín. O I Encontro episcopal de Pas­toral de Conjunto, em Banos (Equador), de 5 a 11 de junho de1966. O Encontro episcopal sobre a presença da Igreja no mundouniversitário em Buga (Colômbia), em fevereiro de 1967 - e queoriginará importantes movimentos estudantis que preparam osacontecimentos de 1968. A reunião dos presidentes das comissõesepiscopais da Ação Social em Itapoã (Brasil), de 12 a 19 de maio de1968. Ali foi declarado:

Dessa concepção do subdesenvolvimento se depreende tam­bém que este só se compreende dentro de sua relação de de­pendência do mundo desenvolvido. O subdesenvolvimento naAmérica Latina é, em grande parte, um subproduto do desen­volvimento capitalista do mundo ocidental. Éum fato estarmosinseridos no sistema de relações internacionais do mundo ca­pitalista e, mais especificamente, em um espaço econômico emtorno de cujo centro, na periferia, giram as nações latino-ame­ricanas, como satélites dependentes 83

.

O documento se iniciava com uma reflexão teológica, e é umantecedente imediato de Medellín.

83. "Presencia de la Iglesia en el proceso de cambio de América Latina", em Signos de Renovación,CEP, Lima, 1969, p. 38,

57

Page 56: Teologia da libertação

o documento preparatório de Medellín já utilizava as ciênciassociais como ponto de partida:

Sem pretender ser um diagnóstico exaustivo, assinalaremos

unicamente aqueles traços sociais, econômicos, políticos, cul­turais e religiosos que marcam a fisionomia da América Latinae que colocam sérios problemas para o cristianismo8

4-.

Esse documento despertou viva polêmica em todo o continen­te, em especial no Brasil e em torno da pessoa de José Comblin, quefoi taxado de comunista pela ditadura militar então no poder. Aindacaberia aqui destacar a X Assembléia do CELAM em Mar deI Plata,em 1966, onde Hélder Câmara exclamou:

Essa situação humana de uma sociedade em crise exige d'Ela(a Igreja) uma tomada de consciência e um empenho deci­dido de ajudar o Continente a empreender sua libertação dosubdesenvolvimento85

o mesmo Dom Hélder tinha sido o primeiro a assinar um fa­moso documento que foi publicado na França por Témoignage Chrétienem 31 de julho de 1966, com outros dezesseis bispos da Periferia,onde se afirmava que "os povos do Terceiro Mundo constituem oproletariado do mundo atual".

Gustavo Gutiérrez, de quem me recordo na reunião de Melun(França) de 1962, eu como estudante na França e ele como assessor da]EC, publica em 1966 Caridad y amor humano86

, onde se entrevê o propósitode não separar dualisticamente o amor a Deus e o amor ao próximo, masainda não se descobre a posterior novidade metodológica, já que estáimerso na problemática da teologia francesa da época.

Em 1967 aparece meu livro Hipótesis para una historia de la Iglesia enAmérica Latina8

?, com a consciência de que nos abríamos para umanova época, e por isso terminava com as seguintes palavras:

84. "Documento de trabalho da Segunda Conferência Geral". em Signos de Renovación, p. 193s.85. Em Signos de Renovación, p. 49.

86. Editorial Tierra Nueva, Lima, 1966.

87. Estela, Barcelona, 1967. Escrita em Mainz e Muenster de 1963 a 1964 no Institut fuereuropaische Geschichte, onde era eu Wissenschaftliche Mitarbeiter do Prof. Joseph Lortz,

58

Page 57: Teologia da libertação

Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos (Ma­88teus 8,22) .

SEGUNDO PERÍODO. Formulação da Teologia da Libertação(1968-1972)

Nessa etapa básica desejaríamos reconstituir com cuidado cadaum dos passos históricos da origem da teologia latino-americana.Não nos deteremos nos acontecimentos eclesiais que a antecedem,quer dizer, a práxis eclesial que explica essa constituição, já que temsido objeto de muitas descrições89

. Passemos ao nível reflexivo pro­priamente dito. Em 1965 André Gunder Frank formula a primeiracrítica da "teoria do desenvolvimento.. 9o

. Foi o início de uma revo­lução teórica do pensamento latino-americano - sua hipótese,muitas vezes criticada em detalhe, era fundamentalmente certa: a ri­queza dos países ricos tem como um de seus momentos definidos atransferência de valor dos países pobres. A riqueza dos ricos se ori­gina na pobreza dos pobres. Nascia assim a "teoria da dependên-

foi a primeira interpretação histórica de conjunto, e além disso também uma interpretaçãoteológica na linha do Concílio Vaticano II da história da Igreja na América Latina. A ediçãoatual de Gruenewald, Die Geschichte der Kirche in Lateinarnerika (1988). contém partes daquelaprimeira edição (p. 69-199); ali dialogávamos com Juan Luis Segundo (p. 195, nota 69),quando nos conhecemos em Paris como estudantes. Em 1961 tínhamos escrito nossoprimeiro trabalho sobre "Universalismo e missão nos poemas do Servo de Javé", no qualse pode observar o sentido da missão ligada ao trabalho CaboJah) e o pobre (vide suapublicação posterior com apêndice de EI humanismo semita, escrito também em 1961, epublicado em EUDEBA, Buenos Aires, 1969, p. 127-170). Tentamos desde 1968 fundarum órgão para poder chegar a escrever a história da Igreja na América Latina. Somente em1973 foi fundada a Comissão de Estudos de História da Igreja (CEHILA) no InstitutoPastoral de Quito (IPLA) , que dependia do Departamento de Pastoral do CELAM. Poste­riormente a CEHILA, ao ser nomeado Monsenhor López Trujillo como Secretário-Geral doCELAM, veio a assumir uma autonomia a fim de salvaguardar a liberdade de investigação.

88. ap.eit., p. 199.

89. cf meu trabalho Die Geschichte der Kirche in Lateinarnerika, p. 224- 355. Esse capítulo foi escrito em1972, como texto novo introdwjdo na primeira edição de 1967. Apequena obra foi lida porDom Hélder Cãmara, Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, José Comblin entre outros, de­notando-se na reflexão feita a presença da interpretação histórico-teológica: a cristandadecolonial, a crise da cristandade desde o século XIX, etc. Acrescentou-se às hipóteses teológi­co-sociológicas de].L Segundo um material histórico concreto. É algo como a "concreção"da reflexão teológica - a "História da Igreja" como parte da teologia.

90. Sua obra Capitalismo y subdesarroUo en América Latina (1965), Sigla XXI, México, 1970; AméricaLatina: subdesarroUo y revolución (1969), Era, México, 1972; Lumpenburguesía: lumpen desarroUo, Laia,Barcelona, 1971; DesarroUo del subdesarroUo, ENAH, México, 1970. Não podemos deixar delembrar a equipe liderada por Guerreiro Ramos, com sua obra A Redução sociológica, Rio,1958, rodeado entre outros de Hélio Jaguaribe, Cãndido Mendes, Álvaro Vieira Pinto,todos no rSEB. Ao grupo devemos acrescentar Celso Furtado e Teotônio dos Santos. Vide A.Aguilar-Frigerio-Eggers Lan, DesarroUismo y desarroUo, Buenos Aires, 1969.

S9

Page 58: Teologia da libertação

cia"91, que essencialmente tem-se mantido de pé e não pôde serrefutada, a não ser em detalhes. O volume total da transferência devalores da Periferia para o Centro é mínima, se considerarmos a

totalidade da produção de valores dos países centrais (Estados Uni­dos, Japão, Alemanha e demais países desenvolvidos); mas, e isso éoessencial, esse "volume" é significativo no tocante ao total dos ganhosque se acumulam nesses países centrais (já que a taxa de juros quese avolumam nos países periféricos é muito mais alta). E como a"taxa de juros" é o principal indicador do capital, a questão estálonge de ser secundária. Mas, vista a partir da Periferia, essa trans­ferência é a origem da miséria de tais povos. Para eles a "massa devalores" transferida é proporcionalmente enorme (pode chegar atéa 30% da produção total de valor do capital global nacional perifé­rico). A questão é mais essencial no início da década de 1990 (coma agravante da dívida externa) do que o era em meados da décadade 60. Épor isso que as causas originadoras da Teologia da Liberta­ção seguirão vigorando até fins do século XX. A existência da causafundamenta a necessidade da referida teologia - e sua existêncianão depende das críticas intra-eclesiais, da "moda" em seu exercí­cio ou das variantes ou deformações que sofra: é um fato históricoe de resposta a realidades que nem os teólogos as inventam e nempodem ser suprimidas nas mesas dos burocratas eclesiásticos.

A essa revolução teórica - quer dizer, a teoria da dependênciacomo crítica do impossível desenvolvimento periférico - caberiaacrescentar movimentos eclesiais propriamente ditos. Em primeirolugar, a nova concepção pedagógica surgida a partir do início da

91. Vide meu trabalho sobre "Los Manuscritos dei 61-63 y el Concepto de Dependencia", emHacia un Marx desconocido, Sigla XXI, México, 1988, capo 1S, p. 312-361. Ali se encontra umdesenvolvimento histórico da polêmica sobre a dependência. O único ponto que haveriaque corrigir seria que, se é verdade que a competição no nível internacional entre oscapitais globais nacionais é o horizonte teórico da transferência de valores (ou a depen­dência) de um país a outro, não se efetiva pela constituição de um "preço de produçãointernacional", mas sim pela formação de "preços de produção" ao nível nacional somente.Dessa maneira, a transferência de valores se efetua partindo do capital menos desenvolvido,que produz com maior valor um produto, para o capital mais desenvolvido que produz omesmo produto com menor valor (cf "Die Qualitaet des Anpassungsprozesses in derinternationalen staatsmonopolistischen Regulierung", em Horst Heiniger-Lutz Maier, In­ternationaler Kapitalismus, Dietz, Berlim, 1987, p. 279-284, onde se formula claramente quenão se trata da "constituição de um preço de produção mundial" mas sim de um "preçomédio" [Durchs<:hnitts-einheit] ou "preço de produção nacional").

60

Page 59: Teologia da libertação

década de 60 no Nordeste brasileiro, o Movimento de Educação deBase (MEB) , fundado em 1961, sob a liderança teórica de PauloFreire com a sua obra Educação como prática da Iiberdade92

, que impõe oconceito de "conscientização", educar a partir da cultura popular,tomar consciência política a partir do universo da vida cotidiana.Esse método vitaliza o "Ver, julgar e agir" da Juventude OperáriaCatólica (JOC), que de qualquer modo está na origem metodoló­gica da nova teologia latino-americana. Por outro lado, o movimen­to estudantil cristão, desde a Revolução Cubana de 1959, vinha seradicalizando. No Brasil, não sem influência do dominicano francêsThomas Cardonnel, já em 1959, começam a assumir uma posiçãosocialista. Aldo Arantes, um membro da ]UC, é eleito presidente daUnião Nacional dos Estudantes (UNE) do Brasil. Pouco depois fun­dam a Ação Popular, um pequeno partido político que inicia sua ex­periência desde o início da década de 60. A questão "fé e política"torna-se central. O cristão já não assume posições reformistas (daDemocracia Cristã), mas sim revolucionárias93

. Mas, uma vez assu­mido o compromisso, a íé entra em crise: "perde-se a fé" - este éo problema afrontado pelos teólogos da época. A Teologia da Liber­tação nascerá igualmente desse contexto. É por isso que em 1968,um pouco em todas as partes, novas propostas começam a ser ou­vidas. A partir do âmbito protestante, de larga experiência comotemos dito na África e na Ásia, mas igualmente relacionando como movimento de contestação nos Estados Unidos, Rubem Alves,presbiteriano do Brasil, defende sua tese em teologia em Princetoncom o título de Towards a Theology of Liberation em 1968 - conquantoideada em 1967. A obra será editada sob o título de Theology of Hope9

em inglês, e em espanhol: Religión: Opio oinstrumento de IiberaCÍón ?95. Nelaé criticada, em primeiro lugar, a solução puramente tecnologista oueconomicista dos problemas humanos em geral. A partir do diag­nóstico de H. Marcuse, especialmente em O homem unidimensional - egraças a ele dependendo da Escola de Frankfurt - mas igualmente

92. Publicada pela Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1967.

93.Cf. Ação Popular. Documento-Base (multicopiado), S. Paulo, 1963.

94. Corpus Books, Cleveland, 1969.

95. Tierra Nueva, Montevidéu. 1970.

61

Page 60: Teologia da libertação

recorrendo continuamente a Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto ou aFrantz Fanon, ou a Feurbach, Marx, Buber, Bloch, Kierkegaard, Hei­degger ou Nietzsche, e a teólogos como H. Cox, G. Ebeling, J. Ro­binson, D. Bonhoeffer, e em postura crítica frente aR. Bultmann, K.Barth ou J. Moltmann, ele escreve:

No final Moltmann se aproxima de Bultmann e Barth: o quetorna humana a vida no mundo, quer dizer, a transcendência,se introduz por um ato de consciência ao retroceder a determi­

nado fato do passado. A única maneira da presença de Deus nomundo seria a palavra da promessa (... ). A objeção principal àconclusão de Moltmann é, no entanto, que simplesmente nãoé verdade que a Igreja tenha sido a parteira do futuro (... ).Muitos dos movimentos que desenvolvem hoje uma profundapreocupação pela criação de um futuro renovado (...) operamdentro dos limites de uma avaliação puramente secular e hu­manista da situação96

.

E assim conclui, no tocante à América Latina:

Os cristãos dedicados à libertação histórica do homem estão hálongo tempo prevenidos quanto ao conflito entre a sua preo­cupação derradeira e a linguagem que se acostumaram a falar. Des­cobriram que sua linguagem (cristã), em vez de criar possi­bilidades novas de entender e de se dirigir à realidade ~ue lhes é próxima,tem-se destacado pelo seu efeito paralisante ?

Ao ter descartado o tecnologismo e o economicismo, e o trans­cendentalismo escatológico idealista, Alves se abre para o "huma­nismo messiânico" (o marxismo), mas o assume a partir do "Mes­sianismo humanista" (o cristianismo de libertação), que prioriza opolítico a partir da experiência do sofrimento:

O Deus do qual fala a linguagem da comunidade da fé mostra umaparcialidade total quanto ao pobre e o oprimido da terra. Os so­frimentos do pobre e do fraco são seus próprios sofrimentos98

96. Ibid., na edição castelhana, p. 97-98. Não esquecer que Marcuse tinha participado emLondres num encontro em julho de 1967, a ser editado com o titulo: Un ensayo sobre laliberación (em D. Cooper, La dialéctica de la Iiberación, México, 1969).

97. Ibid., p. 103.

98. Ibid., p. 179.

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E, em resumo:

A atividade do Messias (...), em uma primeira etapa, (é) um podercontrário àpolítica do Anticristo, quer dizer, a política do cativeiro.Através do desejo de libertação de Deus os poderes que mantêmo mundo sob cativeiro C..) são reduzidos a nada

99

Enfim, um primeiro grande passo. Uma obra que não deve ficaresquecida, e que aprecia tanto Teilhard de Chardin como].L. Segun­do e G. Gutiérrez

100.

Dentro dessa mesma tradição, Richard Shaull se indaga acercada articulação da esperança escatológica e da "libertação do ho­mem"IOl. Ademais, Hugo Assmann já advertia sobre as limitações dateologia do desenvolvimento, abrindo caminho à sua superaçãoI02 .

Em março desse ano ministramos um curso em Villa Devoto(Buenos Aires), sobre "História da Igreja e cultura", no qual seindicava a importância da cultura pré-hispânica, da cultura colo­nial, e da cultura popular 103

.

Quando em agosto de 1968 se realiza em Medellín a II Confe­rência Geral do Episcopado, uma nova teologia se manifesta emestado germinaI em alguns documentos. No primeiro deles, sobre"Justiça", é dito:

Existem muitos estudos sobre a situação do homem latino­americano. Em todos eles se descreve a miséria que marginaliza

99. Ibid., p.190.

100. Publicamos em 1965 um folheto En tomo a la obra de Teilhard de Chardin, Punto Omega,Buenos Aires, 1964.

101. Vide "Consideraciones teológicas sobre la liberación deI hombre", em !DOC 43 (1968);e "La liberación humana desde una perspectiva teológica", em Men.saje 168 (I 968), P.175-179.

102. Vide H. Assmann, "Tarefas e limitações de uma teologia do desenvolvimento", Vozes 62(1968), p. 13-21.

103. Vide Cultura Latinoamericana e historia de la 19Iesia, Edições da Faculdade de Teologia (PUCA),Buenos Aires, 1968, 154 p. Eu recordo a presença entusiástica do então seminarista Ro­driguez MeIgarejo e de seu professor Lucia Gera; essas aulas permitiram à teologia argen­tina considerar também a história popular de sua própria cultura. Ambos escreveriam,quase imediatamente após o mencionado curso, o importante artigo: "Apuntes para unainterpretación de la Iglesia argentina", em Víspera 15 (1970), p. 59-88. A equipe que poucodepois era formada por Aldo Buentig sobre o "Catolicismo popular" continuará nessatradição que dava prioridade ao "povo" como sujeito histórico.

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grandes grupos humanos (...). Por isso, para a nossa verdadeiralibertação, todos os homens necessitamos de uma profunda

- 104conversa0

No documento sobre a "Paz", no qual tomava parte como as­

sessor Gustavo Gutiérrez, é declarado:

Referimo-nos aqui, particularmente, às consequencias quepara nossos países trará sua dependência de um centro de poder

A • dI' 105economlco, em torno o qua gravitam

Na equipe que redigiu o documento sobre "Pastoral popular",da qual participava Lucia Gera, está escrito:

A expressão da religiosidade popular é fruto de uma evangeli­zação realizada desde o tempo da conquista (... ). Percebe-se naexpressão da religiosidade po~ular uma enorme reserva de vir­tudes autenticamente cristãs 1

6.

E no documento sobre "A pobreza da Igreja" lê-se:

Um surdo clamor brota de milhões de homens, pedindo aos seuspastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte I 07.

Em 1970 publicamos no IPLA (Quito) um livro sobre AméricaLatina y conciencia cristiana 108

, onde se fazia uma interpretação à luz deuma filosofia da cultura (e onde se aborda um tema que voltará aser examinado em Puebla, sobre "o núcleo ético-mítico de umacultura"). Efetivamente, nessa pequena obra o tema principal é a"cultura", que se distingue de "civilização", e é situada na histórialatino-americana, para desaguar numa teologia do profetismo

104. Los Docwnentos de Medellín. Iglesia y Iibemción hwnana, Nova Terra, Barcelona, 1969, p. 53-55.

lOS. Ibid., p. 70.

106. Ibid., p. 124. E se indica como resolução: "Que se busque a formação do maior númerode comunidades eclesiais nas paróquias, especialmente rurais ou de citadinos marginali­zados. Comunidades que devem se basear na Palavra de Deus" (Ibid., p. 129).

107. Ibid., p. 219.

108. Publicado em 197 Oera, na realidade, uma ampliação de dois artigos publicados em Esprit(Paris), julho de 1965. que foram apresentados na "I Semana Latino-americana" efetuadaem Paris em julho de 1964. Ali é citado o famoso texto da conversão de Bartolomeu de lasCasas, Eclesiástico (Ben Sim) 34,18s, sobre "o pão é a vida do pobre". cf. "Amérique Latine etconscience chrétienne" e "Pour une histoire de l'église dans]' Amérique Latine" (no men­cionado número de Esprit).

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Page 63: Teologia da libertação

como interpretação do sentido atual da práxis à luz da tradição de umpovo. Todos esses temas serão retomados pela teologia da libertaçãoposteriormente e de muitas maneiras. Nessa época, e de importânciapara o futuro diálogo dos Teólogos do Terceiro Mundo, a questão eraa da "Igreja e cultura" principalmente - o marco teórico de minha Hi­pótesis para una Historia dela Iglesia enAméricaLatina (1964) era a problemáticade "Igreja e cultura". Tudo isso não surgia do nada; fora-se formando

uma tomada de consciência de conjunto, geracional, um pouco emtodos os lugares.

Nesse mesmo ano, aparecia La pastoral de la Iglesia en América Latina,de G. Gutiérrez

1ü9, que no entanto não manifesta as linhas-mestras que

estavam em gestação. Sobre algumas anotações com vistas a uma confe­rência pronunciada em Chimbote em 1964, e que seria publicada em1969 110

, já está incluído o tema da Teologia da libertação. Sobre essetema voltará a falar em novembro de 1969, num encontro na cidade deCartigny (França), quando Gutiérrez apresenta "Notas para una teologíade la liberación" li!, a partir da crítica que vinha se processando no planosociológico - onde um Fals Borda, protestante, acabava de escrever umaSociología de la Liberación em Bogotá - e a partir da filosofia - onde Augustosalazar Bondy publicava seu trabalho sobre Cultura de dominação (1968) emLima, e que se transformará na obra Existe una filosofía en nuestra América Latina? 112

Assim vão sendo esboçadas claramente as intuições futuras de fundo.

109. MIEC-JEC, Montevidéu, 1968. O esquema (pastoral de cristandade, crise da cristandade,pastoral da nova cristandade, pastoral profética) tem uma relação estreita com a interpre­tação que se havia lançado na história da Igreja (vide minha Hipóte.sis para una Historio de laIgle.sia en América Latina, editada no ano anterior), o que mostra a mútua fecundação da refle­xão do momento. Escreverá ainda um artigo sobre história: "De la Iglesia colonial a Me­dellín", em Víspera 10 (J 97O), p. 3-8.

11 O. Hacia una teología dela liberación, folheto publicado por MIEC-JEC, junho de 1969.

111. Aparece, entre outros lugares, em "Notes pour une théologie de la libération", em !DOC3O (1970), p. 54-78; em CEP, Lima, 1970.

Il2.Nessa pequena obra (Siglo XXI, México, 1968), nega-se a possibilidade de uma filosofiaauténtica numa cultura colonial e subdesenvolvida, dependente. Conclui indicando quesomente uma filosofia que reflita o processo de libertação poderá ser autêntica. Foi nessemomento, simultaneamente, que fiz uma conferência na UNAM (México) sobre a depen­dência imitadora de nossa filosofia na América Latina, gravada num disco sobre a "CulturaLatino-americana" (UNAM, México, 1969), sob a direção de Leopoldo Zea. Dali irá origi­nar-se em fins de 1969 e início de 197 Ü a Filosofia da libertação na Argentina (vide minhaobra Filosofía de la Liberación, Edicol, México, 1977); e sobre a história desse movimento"Hipótesis para una historia de la filosofia latinoamericana", en Ponencias do II CongressoInternacional de Filosofia Latino-americana (Bogotá), USTA, Bogotá, 1982, p. 405-436.

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Em primeiro lugar, Gutiérrez expressava a tese gramsciana da"prioridade da ação" - que poderia também atribuir-se a Tomás de

Aquino como a "prioridade da caridade" . A teologia parte da prá­

xis, mas é uma "reflexão crítica" da :r:eferida práxis: "é um ato segun-

d ,,113 E d 1 d' 1 . 1 . .o . m segun o ugar, a tese a SOCIO ogla atIno-amencana,como crítica à teoria do desenvolvimento:

o desenvolvimento deveria 'ocupar-se das causas de nossa si­tuação e, em seu fundamento, há uma dependência econômica,social, política e cultural de certos povos em relação a outros. Apalavra libertação é a mais exata e expressa melhor o aspectoh d 114umano o problema .

A Igreja se encontra, queira ou não, comprometida com o pro­

cesso de libertação latino-americana. E os leigos - junto aos quaisestava o assessor dos estudantes da Ação Católica - vivem uma criseparticular:

Em muitos casos, o interesse dos leigos pela revolução socialsubstitui aos poucos seu interesse pelo Reino115.

A questão se situava, exatamente, na intersecção entre a fé e apolítica; ou melhor: tratava-se da perda da fé ante uma práxis deação política revolucionária. Era necessário "criar" uma teologiaque correspondesse, a partir da tradição da fé e como parte da Igre­ja, a essa exigência histórica. Quer dizer:

A teologia, enquanto reflexão crítica à luz da fé sobre a presençados cristãos no mundo, deve ajudar-nos a encontrar uma res­posta (. .. ). O que buscamos junto com a luta contra a miséria,a injustiça e a exploração, é a criação de wn novo homem 116.

Pouco depois, primeiro em 1969 na forma de um folheto, eposteriormente como um pequeno livro, surge um trabalho de Hugo

113. Da última citação em francês, p. 56.114. Ibid., p. 60. Depois se fala da "teoria da dependência", onde são mencionados F. Cardoso,

E. Faletto, Teotônio dos Santos, Felipe Herrera, etc., sociólogos daquela época.

115. Ibid., p. 66.116. Ibid., p. 69. Paradoxalmente, a expressão "homem novo" é de São Paulo e do "Che"

Guevara. Soava, então, aos ouvidos dos jovens cristãos revolucionários como UIna síntesenova: paulina e revolucionária... libertadora.

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Assmann, Teología de la Liberación. Una evaluación prospectiva, que deve serindicado como a primeira "demarcação" com relação às outras teo­logias existentes - quer dizer, a primeira clara definição epistemo­lógica117. Assmann acrescentava à nascente teologia da libertaçãosua delimitação com relação à teologia alemã - até agora tinha dia­logado com a teologia francesa 118. Sua contribuição é insubstituível,porque o que tinham sido até ali intuições principia a constituir-secomo categorias. As coisas tinham sido ditas, mas Assmann as define;é uma contribuição essencial. Em primeiro lugar, há uma "inovaçãoterminológica" ;

Depois de Medellín o termo libertação esteve presente de maneiraimpressionante nos documentos episcopais, especialmente na­queles em que os diversos episcopados nacionais buscavamaplicar às situações de seu país as conclusões do CELAM. O usodo termo é freqüente, tanto em títulos de documentos (porexemplo "Evangelho e libertação do homem" do episcopadochileno) quanto em conexões temáticas ("salvação-liberta­ção", "graça-libertadora") e adjetivações ("pastoral libertado­ra"). A par com a palavra-chave"conscientização", dificilmentese encontrará outro termo referencial mais fre~üente e signifi­cativo na linguagem eclesiástica do momento I 9.

Mas, e trata-se do mais fundamental, há um "conteúdo sócio­analítico e semântico" novo 120;

117. Aparecerá em 1970 no Serviço de Documentação, MIEC-]EC, Doc. Série 1,23-24. Umprimeiro esboço foi publicado, mas resumido, em "La dimensión política de la fe", emVida Pastoral (Montevidéu), 21 (1970), p.16-25; e em Perspectivas de Diálogo 50 (1970), p.306-312. Em seu livro Teologia desdela práxis dela liberación. Ensayo teológico desdelaAmériea dependiente,Sígueme, Salamanca, 1973, p. 15-102.

118. Essa questão possui certo interesse, porque ]. Moltmann aparece um pouco na obra deR. Alves, mas j.B. Metz não é citado. Quando Assmann "demarca" a nascente teologia dalibertação em relação à teologia política ou à teologia da esperança alemãs, não o faz comose tratasse de teologias que se encontram na origem da nova teologia latino-americana,mas sim, muito pelo contrário, como teologias diferentes. A teologia da libertação surge apartir da realidade latino-americana: a partir da realidade eclesial, política, revolucionáriae "científica" (das "ciências sociais" latino-americanas). O horizonte teórico da teologiafrancesa pouco ajudava a urna fortemente marcada teologia vinculada aos processos polí­tico-revolucionários. A teologia alemã é, pela primeira vez, em primeira mão e globalmen­te, abordada por Hugo Assmann.

119. Op.eit., p. 30-31.

120. Ibid., p. 3 I.

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o termo libertação subverte a estrutura mágico-proclamativa daação pela palavra (Worttat) e exige, pelo menos tendencialmente, apalavra da ação (Tatwort) 121.

"Libertação" se opõe a "dependência" 122 - mais que a explo­

ração na relação capital-trabalho - e por isso pode atrair também asburguesias em seu intento de libertação "nacional": isto era conve­niente e possível. Éuma teologia que usa as "ciências humanas"123

d b "d r d fi' ,,124 d'porque esco re o mun o como lOCO e con Itos ,e aI aimportância do uso do livro do Êxodo - que Rubem Alves foi um dosprimeiros a usar paradigmaticamente, e que cita Assmann:

O Êxodo foi a experiência geradora de consciência do povo deIsrael (... ). O Êxodo é o centro estruturador pois determina alógica integradora, o princípio de organização e interpretaçãodos fatos da experiência histórica 125.

Talvez as partes mais ricas dessa contribuição foram as páginassobre "elementos para uma caracterização (demarcação) mais exa­ta" da Teologia da Libertação 126. A partir de algumas reflexões sobrea "praxeologia", da relação de práxis e verdade (onde se inspira emKotarbinski, G. Petri, T. Maldonado, Sánchez Vásquez), e da defini­ção "fé como práxis", assinala as diferenças com a "teologia darevolução", a "teologia política" de JB. Metz 127, a "teologia da es-

121. Ibid., p. 32.

122. ibid., p. 39s.

123. Ibid., p. 47s.

124. Esses aspectos são anotados em grande parte pela primeira vez por Assmann.

125. R. Alves, "8 pueblo de Dios y la liberación del hombre", em Fichas iSAL, 3 (197 O), p. 9s;vide meu artigo "O paradigma do Êxodo na teologia da libertação", em Conciliwn 209(1987), p. 86-99.

126. H. Assmann, Op.cit., p. 59s.

127. Em seu artigo, Gustavo Gutiérrez tinha se referido a Moltmann e Metz ("Notes por unethéologie de la libération", p. 73-75), mas não tinha ainda indicado claramente as dife­renças. Assmann faz isso com nitidez (Op. cit., p. 83s). H. Assmann indica como fontes oartigo de G. Gutiérrez, o de J.A. Hernández "Esbozo para una teologia de la liberación",em Liberación, opeión dela IgIesia m la década dei 70, Bogotá, 197 O, p. 37 -5 9; J.L. Segundo, Proble­mática dela idea de Dios y dela liberación dei hombre, ISAL, Montevidéu, 197 O (mimeografado), esua outra obra Dela soeiedad a la teologia, Lohlé, Buenos Aires, 197 O; Lucio Gera, em Sacerdotespara eI Tmer Mundo, Buenos Aires, 1970, p. 134s; Arturo Paoli, Diálogos de la liberación, Lohlé,Buenos Aires, 1970; e o famoso artigo de Methol Ferré, "iglesia y sociedad opulenta. Unacrítica a Suenens desde América Latina", em Vísp<ra 3 (1969), anexo de 23 páginas.

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perança" de J- Moltmann, a "teologia do questionamento" de H.D.Bastian - e um valioso apêndice sobre "A separação entre dogmá­tica e ética. Uma ideologia" (seguindo a pergunta feita por J-L. Se­gundo). Deixa-se ver igualmente o início de uma polêmica internaà Teologia da Libertação. Contra L. Gera e G. Rodriguez Melgarejo(e contra minha própria posição), Assmann indica que, ao se ana­lisar a questão do "povo", "omitiu-se demasiadamente a avaliaçãodo fator classes sociais" l28, e, por isso, "povo" "não oferece nenhumaoperacionalidade para uma Teologia da Libertação" 129. Enfim essapequena obra de Assmann é o início epistemológico definido dateologia da libertação.

Enquanto isso, vinham sendo realizados numerosos encontros,assembléias, simpósios, cursos sobre Teologia da Libertação. De 24a 28 de novembro de 1969 a Sociedade Teológica Mexicana orga­nizou um congresso sobre "Fé e desenvolvimento", publicado de­pois como Memoria de1 primer Congreso Nacional de teoIogía: Fé y desarrollo,em dois volumes 130, onde surgem figuras como Luis deI Valle, e seconclui que o tema real é o da teologia da libertação - com a assis­tência de mais de oitocentos participantes. Entre 6 e 7 de março de1970 realiza-se uma reunião internacional sobre Libertação: opção daIgreja na década de 70, da qual resulta igualmente a publicação de doisvolumes l3l

. Em Buenos Aires, de 3 a 6 de agosto, o ISAL convocavinte teólogos, editando-se as exposições feitas em Fichas de Isal (26)e em Cristianismo y Sociedad (23-24). Foi realizado um segundo en­contro de teologia da libertação em Bogotá, de 24 a 26 de julho­editado num boletim denominado TeoIogía de Ia Liberación, dirigidopor Gustavo Pérez, em Bogotá, em 1970. Na cidade de ]uárez (Mé­xico) se reúnem de 16 a 18 de outubro em torno de um Seminário

128. G. Girardi publicava Christianisme, Iibémtion humaine,lutte des classes, Cerf, Paris, 1972 (de umtexto em espanhol de 1971). Esta posição foi assumida por G. Gutiérrez em EI EscoriaI aoexpor o "pobre" como "classe". cf. Noel Olaya, "Unidad cristiana y lucha de clases", emCristianismo y Sociedad 23-24 (1970), p. 61-69; Rubén Dri, "Alienación y liberación", emCristianismo y Sociedad 26 (1970), p. 59-60.

129. H. Assmann, Op. cit., p. 98, nota 101. Será mostrado futuramente como a categoria"povo" (como "pobre", que defendíamos nessa época) terminará por se impor em todaa teologia da libertação cinco anos depois.

130. Ediciones Alianza, México, 1970.

131. Já citado (nota 127), Bogotá, 1970; com exposição de]. Hernández, G. Gutiérrez eoutros.

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de Teologia da Libertação cujos trabalhos foram apenas mimeografa­dos 132

. Em Oruro (Bolívia), de 2 a 19 de dezembro realizou-se umcurso de pastoral sobre teologia da libertação. Em Buenos Aires, de14 a 17 de agosto de 1971, ocorreu um encontro no qual se rela­cionava a teologia com filosofia da libertação - assistido por o.Ardiles, H. Assmann, E. Dussel,].C. Scannone e Luis Gera133.

Esses exemplos de reuniões são dados somente para indicarque a teologia da libertação é um "movimento eclesial", fruto deuma encruzilhada da Igreja como totalidade, e de uma "geração"de teólogos. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, es­crevia Rosino Gibelini da Itália, ao contemplar os quase três milparticipantes de um curso de teologia que organizamos na cidadedo México, o I Encontro de Teólogos da Libertação em 1975. Assimele escrevia:

o europeu que ler algum texto de teologia da libertação enten­de conceitualmente as instâncias da teologia da libertação, mas

- b d . dI' 134nao perce e que se trata e um mOVImento e greja .

Importante foi igualmente a reunião de biblistas sobre o tema"Êxodo e Libertação", em Buenos Aires, em julho de 1970 135

• Opróprio secretário-geral do CELAM, Monsenhor Eduardo Pironio,escreveu um texto sobre "Teologia da Libertação", para o encontrodo Departamento de Educação, de 27 de agosto a 2 de novembrode 1970 136. Não se pode esquecer que a nova teologia contava comuma série de excelentes revistas que apoiavam sua expansão no pla-

132. Podem ser consultados no !Doe (Roma).

133. Vide "Dialéctica de la liberación latinoamericana", em Stromata (Buenos Aires), 1-2(1971), e posteriormente uma obra conjunta Hacia una Filosofía de la liberación latinoamericana,Bonum, Buenos Aires, 1973.

134. Em Christus (México), 479 (1975), p. 9.

135. Dedicou-se a isso o número de 197 Oda Revista Bíblica. Vide além clisso H. Bojorge, "Éxodoy liberación", em Víspera 19-20 (1970), p. 33-37; Pedro Negre, "Biblia y liberación", emCristianismo y Sociooad 24-25 (1970), p. 69-80; José Míguez Bonina, "Teología y liberación",em Actualidad Pastoral (Buenos Aires), 3 (1970), p. 83s; Julio de Santa Ana, "Notas para unaética de la liberación", em Cristianismo y Sociooad 23-24 (1970), p. 43-60.

136. Publicado em Teología (Villa Devoto, Buenos Aires), 8 (1970), p. 7-28. Ver além clisso, domesmo autor, "Teología de la liberación", em Critmo (Buenos Aires), p. 1607-1608(1970). Vide além disso, de Héctor Borrat, "Para una teología de la vanguardia", em Víspera17 (1970), p. 26-31; e posteriormente "Hacia una teologia de la liberación", em Marcha(Montevidéu), 1527 (1971),p. 1-15.

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no nacional ou regional. Recorde-se, por exemplo, Stromata (BuenosAires), Teología y vida (Santiago do Chile) , Cristianismo y Sociedad (Mon­tevidéu), Christus (México), Actualidad Pastoral (Buenos Aires), PastoralPopular (Santiago do Chile), Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis), Sic(Caracas), Diálogo Social (Panamá), Víspera (Montevidéu, que executouum grande trabalho até ser fechada pela repressão militar), o "Ser­viço de Documentação" do MIEC-JEC (Montevidéu, Lima), Fichas de1SAL, e muitas outras publicações. Como se pode observar, nessaépoca o peso reflexivo estava no Cone Sul principalmente (Argen­tina, Uruguai, Chile, até Peru e Brasil). Essa implantação geográficavariará quando desatada a repressão político-militar posterior.

Além do mais, a nova teologia era, na realidade, a teologia sur­gida dentro dos quadros do CELAM. Era ensinada oficialmente emseus órgãos, o Instituto Pastoral de Quito (desde 1967 a 1973), ode catequese de Manizales, o de liturgia de Medellín, o da Juventudeem Bogotá; nos cursos para sacerdotes, religiosos e leigos; nos Depar­tamentos de Educação, de Pastoral, de formação do clero, de Missões,etc. Era a teologia da Igreja pós-conciliar, da Igreja que tinha organi­zado Medellín. Era a teologia das nascentes Comunidades Eclesiais deBase, a que inspirava a pastoral popular, a que justificava o compro­misso político dos jovens universitários radicalizados, fundamentaispara o futuro da América Latina em seu conjunto.

Como temos notado, a teologia protestante também era suma­mente ativa. Cabe destacar a posição de José Míguez Bonino, quechegará a ser um dos presidentes do Conselho Mundial de Igrejasde Genebra 137.

Não se pode tampouco esquecer que em 1969 surgiu a obrado mexicano Porfirio Miranda, Marx y la Biblia - traduzida imediata­mente para o inglês pela Orbis Books -, que percorrerá o mundo.

137. Vide "La théologie protestante latino-américaine aujourd'hui", em IDOC-Intemational 9(1969), p, 77 -94. Posteriormente "Nuevas perspectivas teológicas", em Pueblo opimido, Tier­ra Nueva, Montevidéu, 1972; Doing Theology in a revolutionary situation, Filadélfia, 1974; Christiansand Marxists, Eardmans, Grand Rapids, 1974; The mutual challenge to revolution, Eerdmans, GrandRapids, 1976; La fe en busca de dicacia, Sígueme, Salamanca, 1977. Excelente por sua reflexãoe história é a obra de vários autores Luta pela vida e evangelização. A tradição metodista na teologialatino-americana, Paulinas, S. Paulo, 1985.

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De fato, a Bíblia e o pensamento de Marx eram duas referências -'d d' 'I dI' 138com senu o lverso, e c aro - a nova teo ogla .

Épor isso que quando em 1971 - deve ter sido escrita desdefins de 1970 ao início de 1971, já que há poucas citações de 1971,e somente nos últimos capítulos - se publica em Lima a obra deGustavo Gutiérrez Teología de la liberación, 139 isso constitui o fim daépoca da constituição da nova teologia latino-americana. O autordemonstra como essa teologia não é obra de algumas pessoas, massim o fruto da reflexão de uma "opção da Igreja latino-america­na" 140: é a teologia de uma experiência eclesial (desde 1968 demaneira especial) a nível continental, diferentemente das correntesteológicas que dependem de um fundador

l41.

Pode-se notar que o esquema de sua exposição, de algo maisde vinte páginas, em Chimbote ou Cartigny é, exatamente, o índiceda obra de 1971 - ainda que a única novidade estrutural do livroseja a II Parte: "Colocação do problema", onde incorpora a matériaadiantada em sua obra sobre a história das pastorais na AméricaLatina, e um importante capítulo cinco acerca da "Crise do esque­ma da distinção de planos" - no qual são indicadas as linhas geraisde superação da teologia da Ação Católica, ou, ainda mais profun­damente, a ambigüidade do dualismo da distinção dos "dois pla-

" .. 1 1142nos : o espultua e o tempora .

As quatro partes da obra possuem uma lógica em seu desenvol­vimento interno, e expressam as limitações da época. Na primeiradelas, "Teologia e libertação", e tal como indicamos em sua expo-

138. Tratamos desse tema em "Teología de la liberación y marxismo", em Cristianismo y Sociedad,(México) 98 (1988), p. 37-60.

139. Primeira edição em CEP, lima, 1971; 2' edição pela Sígueme, Salamanca, 1972, de ondeextrairemos as citações (em porto Vozes, Petrópolis, I 975). Apareceu uma nova ediçãomodificada em inglês, A Theology of Liberation, Orbis Books, New York, 1988, onde além dotítulo há múltiplas modificações e uma nova introdução (p. XVII-XLVI).

14·0. Capítulo m, principal da obra (p. 111-183).

141. A parte acrescentada na segunda edição de meu trabalho Die Geschichte der Kirche in Lateina­merika (p. 200-379), escrito em fins de 1971, relata os acontecimentos eclesiais e o con­texto dessa gestação da teologia da libertação. As páginas 374-379 foram escritas para aterceira edição, posterior à Assembléia de Sucre do CELAM em 1972. O Anhang (p. 380s)foi extraído da sétima edição de 1985.

142. Op. cit., p. 73s.

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sição feita em Chimbote e Cartigny, trata-se de demonstrar a fecun­didade da intuição de Gramsci da relação "práxis-teoria" - semreferir-se explicitamente ao que a Escola da Frankfurt havia indica­do a tal respeito 143. Mas deve-se entender o que essa problemáticasignifica para a teologia; sobretudo se a "práxis" da qual se fala é con­creta. A "práxis" referida ao tema do "desenvolvimento" era ambíguae não exigia a necessidade de uma "libertação humana" - como sedizia na época - ; não podia exigir uma "revolução social" se fosse ocaso, e diante da qual o cristão já não retrocederia por princípio. Nahistória da teologia mundial essa questão é um verdadeiro "antes edepois". Sua fecundidade segue obtendo resultados.

Na segunda parte do livro de Gutiérrez, "Colocação do proble­ma" - conforme já indicamos -, a história ajuda a descobrir o pre­sente, mas sobretudo se reflete sobre a insuficiência da teologia(vigente ainda nos tempos do Papa João Paulo II em grupos hege­mônicos da Igreja de "Restauração" em fins da década de 80) dos"dois planos": o temporal o e espiritual. Pelo contrário, expressa-seclaramente que a história é una - desde o estado da questão teológicana escola francesa. A questão era mais pertinente na América Latina(com a Ação Católica em crise, porém vigente teologicamente, e coma Democracia Cristã como solução política do compromisso cristãoque era preciso criticar). Na realidade, superavam-se Jacques Maritaine o seu Humanismo Integral (1936), que havia moldado a inteligênciamais progressista no continente, principalmente entre os estudantes(com os quais principalmente G. Gutiérrez se relacionava).

Na terceira parte, "A opção da Igreja latino-americana", abor­da-se o referente principal da obra: a práxis histórica e comunitária,institucional, dos cristãos, da Igreja enquanto tal. Não se trata daopção de uma "Igreja paralela" -como se pretenderá depois fazercrer. É a opção da "única" Igreja, a "institucional", a "oficial", ahegemonizada pelo CELAM da época, pelos bispos, sob a aprovaçãosimpática e querida do Vaticano. Da "consciência" adquirida da ne­cessidade do desenvolvimento (cultural, político, econômico, etc.),

143. Em 1963 J. Habermas havia publicado Theorie und Praxis (Teoria e Práxis), e em 1968Erkenntnis und Interesse (Conhecimento e interesse), que teriam sido bons pontos de refe­rência críticos.

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e graças à crítica do desenvolvimentismo efetuada pela então recen­te "teoria da dependência" - que era ensinada e aprendida comaprovação em cursos para bispos, entre os religiosos, quer dizer,

não era uma posição de minorias desde a carta dos "Bispos do Ter­ceiro Mundo" - , a Igreja desde Medellín (em sua práxis coletiva ehistórica) optava pela "libertação humana" global (ainda revolucio­nária) como condição de possibilidade integral da salvação da Amé­rica Latina em nosso tempo. É gratificante observar a utilizaçãointeligente dos autores do momento, mas também de um Mariáte­gui ou de um "Che" Guevara - que escandalizava, como é óbvio,os conservadores daquele momento "em retirada" por pouco tem­po, como iremos ver. Tratava-se do compromisso concreto dos cristãos.No tocante aos leigos lemos:

Hoje, os movimentos apostólicos de juventude radicalizaramsuas opções políticas (...). As opções políticas cada vez maisrevolucionárias dos grupos cristãos - sobretudo estudantis(JEC, ]UC, FUMEC) , operários (JOC) e camponeses (JAC) - têmocasionado com freqüência que os movimentos de apostoladoleigo entrem em conflito com a hierarquia, questionem seuatual lugar na Igreja e, fmalmente, muitos deles passem por

• . . 144senas cnses

A teologia da libertação surge, então, não por um prurido aca­demicista de originalidade, ou pelo prazer do criticismo, nem poruma intenção de negação da Igreja em sua hierarquia, em sua ins­titucionalidade, etc.; surge, muito pelo contrário, para preencher anecessidade de suprir "esquemas teológicos" insuficientes, nãoadequados para acompanhar e fazer crescer a "fé" do cristão numaépoca de crise, de profundos conflitos, e até em situações revolu­cionárias freqüentemente. Foi uma resposta madura, serena, à altu­ra das exigências racionais da época. Mas essa crise não afeta somenteo leigo, e sim principalmente o sacerdote:

É freqüente atualmente, na América Latina, que certos sacerdo-"d I b' 145tes sejam ti os como e ementos su verslVOS .

144. Op. cit., p. 137-138.

145. Ibid.,p. 145.

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De fato, desde a renovação do Concílio, os sacerdotes, e os re­ligiosos e religiosas, descobrem sua responsabilidade na transfor­mação, também política em última análise (porquanto ali se desen­rolam as possibilidades reais da mudança de estruturas), o que pro­duz uma crise de sua identidade, sobretudo levando-se em conta aformação teológica recebida. Mas, por último, os próprios bispos"se transformam em figuras políticas" ao descobrirem sua funçãopastoral em cumprimento do Concílio e de Medellín. Tudo issoconfere à Igreja uma nova "presença" na vida do Continente.

Na quarta parte, "Perspectivas", se abrem diversas brechas deuma possível reflexão teológica. Contém uma primeira seção sobre"Fé e homem novo". Nela se expõe a relação entre "libertação esalvação" - que confere um estatuto teológico ao tema econômico­político da libertação -; a história "una" como o lugar de encontroentre Cristo e o homem - negando por antecipação o "horizontalis­mo", e implantando a história em visão cristocêntrica, onde "co­nhecer Deus" é operar a justiça (na linha já encetada por PorfirioMiranda). Num parágrafo central, "Uma espiritualidade da Liberta­ção", se insiste na importância da espiritualidade, que está situadaainda numa linha mais individualista e em relação com a opção re­volucionária, muito diversa da espiritualidade do povo numa linhade libertação a partir do sofrimento ancestral:

Isso é o que tinham começado a vivenciar muitos cristãos aose comprometerem com o processo revolucionário latino-

. 146amencano

É exposta igualmente a relação entre o projeto do Reino e osprojetos políticos históricos - tão essencial para o futuro desenvol­vimento da teologia da libertação.

Na segunda seção, "Comunidade cristã e a nova sociedade", oautor aborda duas questões: "A Igreja: sacramento da história" - ondese esboça uma eclesiologia -e "Pobreza: solidariedade e protesto". Naprimeira, a "comunidade" é uma fraternidade que não pode, no en-

d · d . '''1 d 1 ,,147 Aí btanto, elXar e estar em melO a uta e c asses . se es oça umdebate de fundo.

14-6. Ibid., p. 266. A citação de A. Paoli, Diálogos de lo liberación, é forçada (p. 226, nota 48).

147. Ibid.,p. 3525.

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Num certo momento ele escreve:

Aquele que fala de luta de classes não a propugna (. .. ); o queI r' r 148 ·b .rea mente laz e comprovar um lOto ,e em suma contn Ulr

para que dele se tome consciência. E não há nada mais sólidor I ' I ' 149que um lato. gnora- o e enganar ou enganar-se .

Na questão da "pobreza" -é verdade que fundamentalmente apobreza como posição "subjetiva" (a pobreza como atitude, masainda não objetiva e prioritariamente "o pobre") - trata-se da po­

breza material, pobreza ou infancia espiritual, pobreza como fato

escandaloso, como "solidariedade com os pobres".

Para concluir, desejo registrar que Gutiérrez cita um texto de

Althusser, que na década de trinta foi membro da Juventude da AçãoCatólica francesa, quando este expressa de modo pessimista:

A meu ver a crise da Igrej a irá se agravar (... ). Não são as teo­logias da revolução ou da violência as que podem restaurar umverdadeiro pensamento teológico agonizante (... ). Não se vêcomo (...) pelas estruturas herdadas (pela Igreja) de um longopassado e de um papel político a serviço das classes dominan­tes, e na tradição que disso resulta, a Igreja poderia reconver­ter-se a serviço dos trabalhadores na luta de classes 150

A teologia da libertação constituída correspondia justamente aesse tipo de objeções de fundo, em especial para a consciência dosjovens cristãos (que não podem ser apressadamente criticadoscomo meros "pequenos burgueses", porque do meio deles emer­girão os revolucionários: os Camilo Torres, Marta Harnecker ou LuisCarrión); uma geração de cristãos determinantes para a história lati­no-americana em seu todo. O debate que logo se estabeleceu versavasobre a realidade "objetiva" do pobre. Alguns, a representação argen­tina (entre os quais eu me achava, junto com Gera e Scannone), de­fendiam já a realidade do pobre como "povo". Em Sacerdotes para el Tercer

148. Vide a Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, IX, 2 (Acta Apostolicae Sedis 76 [1984]876-909), onde se afirma exatamente o mesmo.

149. Ibid., p. 355. Aqui é citada a obra de Giulio Girardi, Amor cristiano y lucha de clases, Sígueme,Salamanca, 197 1.

150. Ibid., p. 381 s.

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M d 151 . h H' ,. dI' Am" L . 152 dun O ,OU em Illln a Istona a greja na enca atina ,po e-se vercomo se tenta delinear uma teologia do "povo" de Deus - não tendo

ainda como perspectiva a questão das"classes" .Nessa época, os bisposargentinos falam da "Igreja dos pobres";

A Igreja dos pobres C...). OS pobres são o sacramento de Cristo,o sinal de sua presença - disse Paulo VI C... ) -, na misteriosasociologia e humanismo de Jesus. Ele está encarnado em cadahomem enfermo, em cada homem aflito, faminto, desnudo,encarcerado. Por isso a Igreja honra os pobres, os ama, os de­fende, se solidariza com a sua causa C... ). Por isso a Igreja, sa-

d C · 'I' d b 153cramento e nsto, e a grCJU os po res .

Enquanto isso, Juan Luis Segundo tinha continuado a escrever.Sua Teología abierta para e1laico adulto

l54significará a primeira grande

obra teológica com visão de conjunto. Mas em 1970, em De la Socie­dad a la Teología 155, estuda já a passagem de uma teologia para a socie­dade em seu todo e começa a elaborar uma teologia da ideologiaque o ocupará muito mais futuramente. De minha parte, em 197 1pronunciei uma série de conferências em Buenos Aires, editada de­pois sob o título de Carnin05 de Liberación latinoamericana l56 . Nessa obra,no sentido estrito teologia da libertação, veja-se em especial sua

15 I. Publicações do Movimento, Buenos Aires, 197 O, p. 12 3s. Vide igualmente Polémica en laIgIesia. Obispos argentinos y sacerdotes del Tercer Mundo, Edições Búsqueda, Buenos Aires, 197 O.

152, Die Geschichte der Kirche in Lateinamerika, p. 195-197.

153. "Declaração do Episcopado argentino. Sobre a adaptação à realidade atual do país dasconclusões da I! Conferência Geral do Episcopado Latino-americano", San Miguel, 21- 26de abril de 1969, Ed. Secretariado do Episcopado, Buenos Aires, 1969, p. 24.

154. Lohlé, Buenos Aires, tomos I-V, 1969-1971. É certo que ele ainda parte da tradiçãoda teologia renovada e progressista do pós-concílio, mas ainda não da teologia dalibertação. É de grande importãncia sua versão inglesa editada pela Orbís Books, NewYork. Vide além disso De la Sociedad a la Teologia, Lohlê, Buenos Aires, 197 O; Liberación de laTeologia, Lohlé, Buenos Aires, 1975; Masas y minorias en la dialéctica divina de la liberación, LaAurora, Buenos Aires, 1973.

ISS. Lohlé, Buenos Aires, 1970 (em porto Loyola, São Paulo, 1983).

156. Latinoaméríca Libros, Buenos Aires, 1972 (tradução francesa: Hisloire el Théologie de laIibération, Editions Ouvrieres, Paris 1976, e tradução inglesa: History and Theology ofLiberation,Orbis Books, New York, 1974, como uma das primeiras obras em ambas as línguas sobreo tema). Vide em português Caminhos de libertação latino-americana, Edições Paulinas, S. Paulo,vol. I-IV, 1984. Posteriormente será publicada Ética y teologia de la Iiberación, LatinoaméricaLibros, Buenos Aires, 1974; e toda uma corrente de filosofia da libertação: Para una ética dela liberación latino-americana, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973, vol. I-I! (em porto Paulinas/UNI­MEP, São Paulo/Piracicaba 1977); posteriormente pela Edicol, México, a vaI. 3, 1977; emUSTA, Bogotá, os vaI. IV e V, 1980. EMétodo para una filosofía de la liberación, Sigueme, Salamanca,1974 (em porto Loyola, São Paulo, 1986).

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Page 76: Teologia da libertação

introdução ao livro do Êxodo, com categorias teológicas críticas: oOutro como "pobre" que interpela a justiça, como lugar da epifaniade Deus, passando do conceito "subjetivo" ao conceito "objetivo"de "pobre" (agora como "categoria" teológica, como "exteriorida­de" do "sistema" ou do "mundo da vida cotidiana"). O "paradig­ma" do Êxodo é usado como marco teórico fundamental.

Em agosto de 1971 organizava-se em Buenos Aires uma Sema­na Acadêmica lS7 sobre a teologia da libertação. Foi determinante na

vinculação entre filosofia de libertação e teologia da libertação - ques­tão que readquire importância no início da década de noventa com acrise das ciências sociais e o surgimento de uma filosofia crítica comoas de K.o. Apel ou]uergen Habermas, como veremos mais adiante l58

.

Penso que essa etapa de constituição culmina no Encontro de EIEscorial, realizado na Espanha no célebre lugar que traz este nome,em julho de 1972. Ali estiveram presentes praticamente todos osteólogos da primeira geração da teologia da libertação - e ainda algunsda segunda geração, como Leonardo Boff, por exemplo - , diante dequase quatrocentos teólogos europeus (não só espanhóis) na pre­sença dos quais foram expostas algumas das teses da teologia jáconstituída "inicialmente" na América Latina. Houve uma acolhidaespecial na Espanha que ainda sofria as conseqüências do franquis­mo - o que explica a simpatia e "compreensão" do tema (poste-

157. Paradoxalmente, nada sabíamos naquele momento sobre o pensamento de Karl O. Apelou Juergen Habermas, mas os situávamos por antecipação (na crítica a Heidegger, à Escolade Frankfurt, e à teologia da esperança e à teologia política). Essa obra definiu a teologiada libertação em seu marco epistemológico e histórico. Vide "Dialéctica de la liberaciónlatinoamericana", em Stromata (Buenos Aires) 1-2 (1971) em que estiveram presentes en­tre outros Osvaldo Ardiles, Hugo Assmann, Juan Carlos Scannone, Enrique Dussel, LucioGera, etc. Juan Carlos Scannone escreve "Hacia una dialéctica de la liberación" , em Stromata1 (1971), p. 23-60; "EI actual desfio planteado allenguaje teológico latinoamericano deliberación", em CIAS (Buenos Aires) 211 (1972), p. 5-20; "Ontología dei proceso autén­ticamente liberador", em Seladoc. Panomma de la teología latinoamericana, Sígueme, Salamanca,1975; e por último, Teologia de la liberación y praxis papular, Sígueme, Salamanca, 1976. Veremosposteriormente como a teologia da libertação argentina até 1975 (Lucio Gera, J,c. Scan­none, E. Dussel, etc.) terá uma profunda cisão desde a morte de Perón (cisão que até agoratem sido mal assinalada nas reconstruções históricas).

158. Vide a obra conjunta que publicamos Hacia una Filosofía de la Liberación, Bonum, BuenosAires, 1973, com pensadores da estirpe de J,c. Scannone, Osvaldo Ardiles, Alberto Pa­risi, Hugo Assmann, Aníbal Fornari, Enrique D. Guillot, Enrique Dussel, Horacio Ce­rutti, etc.

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Page 77: Teologia da libertação

riormente a história nos conduzirá por caminhos muito diver­sos) 159. O número da revista Concilium160 publicado em 1974 foielaborado em EI EscoriaI e pode ser considerado um fruto do refe­rido encontro. É interessante registrar que teologicamente houveuma discussão de fundo nesse Encontro em torno do "pobre". Euo situei na história latino-americana e como "povo" - como tam­bém o fizeram Scannone e Gera, por exemplo - ; outros o situaramcomo "classe" - como G. Gutiérrez, H. Assmann, Gonzalo Arroyo,etc. Era um tema sobre o qual não se chegara ainda a um consenso;um certo "classismo" dominava ainda o discurso, mas entrará emcrise muito depressa l61

. Agora já não se fala só de uma "Igreja pobre"(subjetivamente e em sua hierarquia), mas sim de uma "opção pelospobres" (objetivamente). Mas entenda-se que se a Igreja (ou os teólo­gos) "optam" pelo "pobre", isto significa que ainda "não são po­bres" por nascimento, por situação ou posição de classe. É ummomento de amadurecimento, mas, ao mesmo tempo, o final dotempo ou do kairos da constituição da teologia da libertação. No futuro seedificará· sobre esse fundamento.

TERCEIRO PERÍODO. A Teologia da "Igreja dos pobres" no cativeiro eno exílio (1972-1979)

Se há uma "noite escura" política da fé - num sentido análogoao de São João da Cruz no Cântico Espiritual ou na Subida ao Monte Carmelo-desde 1972 a teologia da libertação a vivenciou purificantemente.Quando vierem os novos ataques em 1984 - e agora a partir daprópria Roma -, já se terá a docilidade ao Espírito e a paciência nosacrificio aquilatados nas perseguições de mais de doze anos. A teo-

159. A publicação do Encontro em Fecristiana ycambia social mAmérica Latina, Sigueme, Salamanca,1973: as exposições principais, resumo dos debates em grupos de trabalho, e com umaboa bibliografia até o presente (em port. Vozes, Petrópolis, 1977).

160. A revista Concilium dedicou o número 96 de 1974 à Teologia da Libertação latino-ame­ricana. Ali colaboramos J.L. Segundo, G. Gutiérrez, Leonardo Boff, E. Dussel, S. Galilea, ].Comblin e outros participantes do encontro de El Escorial- onde o mencionado númerofoi elaborado.

161.].L. Segundo aborda a questão em La liberación de la teologia, Lohlé, Buenos Aires, 1974, p.207-232. Éinteressante que A. Á1varez Bolado em El Escoriai, em 1972, chegará a escreverque a teologia da libertação "assumira a palavra, ainda que a maior parte dos homens dessafanúlia de opções fosse um dia reduzida ao silêncio" (Fe cristiano y cambio social, p. 24).

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Page 78: Teologia da libertação

logia da libertação sofrerá uma dupla pressão. Fora da Igreja, nasociedade política (o Estado que se militariza) e civil (os gruposdominantes que passam para a ofensiva com violência); e no seioda Igreja (desde a XIV Assembléia ordinária do CELAM, com a se­cretaria-geral a cargo de Monsenhor López Trujillo e a reviravoltade orientação da Conferência dos Bispos), em que os grupos con­servadores, desorientados a partir do Concílio, reagrupam forçasem aliança com setores desenvolvimentistas - progressismo capita­lista de dependência, que confunde industrialização com a expan­são das multinacionais 162

.

Efetivamente, desde o golpe militar de 1964 no Brasil comCastelo Branco, ocorreram posteriormente muitos outros (197 1na Bolívia com Hugo Bánzer; em 1973 dissolução do Congressono Uruguai, o golpe de Estado no Chile com Pinochet; em 1975há uma mudança de orientação com Morales Bermúdez no Peru,em 1976 Rodríguez Lara no Equador, e Videla comanda o golpede Estado na Argentina, etc.). Há então o império da "SegurançaNacional" - com repressão exercida contra o povo e contra aIgreja, em especial sua corrente profética, até culminar com omartírio de milhares de leigos e sacerdotes. A teologia da liber­tação é reprimida, com o beneplácito de muitos na Igreja - e atébispos - especialmente no Cone Sul (lugar de sua origem maiscriativa): no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chilemuitas pessoas foram violentamente reprimidas (a teologia dalibertação era motivo de prisão, tortura e morte). Épor isso que oeixo principal passará para Peru-Brasil; no primeiro desses paísesporque nunca houve uma repressão frontal; no segundo, porquedesde 1968, com a presidência da Conferência de Bispos do Brasilexercida por Dom Aloísio Lorscheider, será a Igreja institucional(com seus bispos, sacerdotes e religiosos) que se erguerá para en­frentar a sociedade política em nome da sociedade civil silenciada,reprimida e martirizada. A obra teológica de Dom Cândido Padinno Brasil é aprofundada por José Comblin, que reflete sobre a vin-

162. Vide o desenvolvimento histórico desse período em minhas obras já citadas: Die Geschichteder Kirche in Lateinamerika. p. 380s; De Meddlín a Puebla. Una década de sangre y esperanza 1968-1979, p.245 -5 07; e em Hipótesis paro una Historia de la Teologia en América Latina, p. 49s.

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Page 79: Teologia da libertação

onde são exilados igualmente G. Arroyo, F. Hinkelammert e muitosoutros, como Dussel da Argentina, etc.), perseguidos pelos regimesmilitares - e freqüentemente com a cumplicidade de certos mem­bros da Igreja.

Surgem novas figuras teológicas: Ignacio Ellacuría e lon Sobri­no em EI Salvador 171, Luis deI Valle no México 172, Virgilio Elizondoentre os "chicanas" dos Estados Unidos 173 , Raúl Vidales, mexicano,

balh d ., . li 174 AI' dr c· . h P 175tra an o no llliCIO em ma , ejan o usslanoVlc no eru ,Rafael Ávila na Colômbia 176, Ronaldo Muiioz no Chile com sua obraNueva Conciencia de la Igle5ia en América Latina 177, etc.

Ao mesmo tempo, os mártires selam com sua vida o que ateologia explicita posteriormente de maneira teórica. Antonio Fer­reira Neto, assassinado no Brasil em 1969, Héctor Gallegos, desa­parecido no Panamá em 1972, Carlos Mújica, crivado de balas naArgentina em 1974, Iván Betancourt, morto em Honduras em

171. Do primeiro "Posibilidad, necesidad y sentido de una teología latinoamericana", emChtistus 471 (1975), p. 12-16; 472 (1975), p. 17-23. Posteriormente Freedom made Flesh,Orbis Books, New York, 1976. Sobre Sobrino nos estenderemos depois.

172. Autor de diversos artigos na revista Christus (México); teólogo do movimento de "Sacer­dotes para o povo" (depois denominado "Igreja solidária" ). Além disso, "Hacia una pros­pectiva teológica a partir de acontecimientos", em Liberaóón y Cautiverio, p. 103-127.

173. Especialista em teologia do "chicana". Sua obra principal foi GaliIean ]oumey Ihe Mexican­American Promise, Orbis, New York, I 983. Foi diretor durante muitos anos do Mexican Ame­rican Cultural Center (MACC) de San Antonio (Texas), e incentivador teológico dos"spanish speaking" nos Estados Unidos. Andrés Guerrero publicou AChicano Theology, Orbis,NewYork, 1987.

174. Sua tese no IPLA La Iglesia latinoamericana y la política después de Medellin, IPLA, Quito, 1972.Numerosos artigos nas revistas Servir, Chtistus e Contacto (México). Também "Evangelizacióny liberación popular", em Liberaóón y Cautiverio, p. 209-234, onde se expressa claramente:"Assim entendido o povo, podemos então falar das massas populares em seu sentido maisrevolucionário e tendo em conta sua complexidade interna, já que dentro das massas estãonão só os grupos que propriamente chamamos classes sociais (...) (operários-campone­ses), como também todos aqueles setores que estão relegados a situações de marginalidadesócio-econõmica, política e cultural" (Ibid., p. 223).

175. Vide Nos ha liberado, Sígueme, Salarnanca, 1973; obra dirigida à base para ensinar a pensarna tradição da JOC, da teologia da libertação no método do ver-julgar-agir. Também emDesde los pobres de la tima, Sígueme, Salamanca, 1977.

176. Teólogo leigo colombiano, especializado em catequese e na temática eucarística. Porexemplo: Bíblia y liberación, Edições Paulinas, Bogotá, 1973; Implicaciones sacio-políticas de la Eu­caristía, Policrom, Bogotá, 1977; Teología y política, Presencia, Bogotá, 1977. com intuiçõesmuito criativas.

177. Ediciones Nueva Universidad, 1973. autêntico Vade-mécum eclesiológico latino-ameri­cano; um clássico no assunto (emport. Vozes, Petrópolis, 1979).

83

Page 80: Teologia da libertação

197 S, até Rutilio Grande e Monsenhor Oscar Romero, mártires deEI Salvador e símbolos de uma época

l78.

Por seu turno, "Cristãos pelo Socialismo" teve sua reunião defundação efetuada em Santiago do Chile em 1972, com repre­sentações de quase todos os países latino-americanos 179.

O I Encontro Latino-americano de Teologia, realizado no Mé­xico, em agosto de 197 S180, significa um ponto alto no caminho danova etapa aberta em 1968, já que foi o primeiro encontro de umatal envergadura no Continente, e como uma continuação do encon­tro de EI EscoriaI de 1972. Posições mais abstratas, como a dosseguidores de Lonergan na América Latina, contrastavam com umametodologia dialética que partia da práxis histórica dos pobres.

Nesse mesmo mês de agosto de 197 S, e como uma apresenta­ção da teologia da libertação nos Estados Unidos - mas lançandouma metodologia de reflexão própria, sob o alento de Sergio Torres,do Chile, e exilado em Nova Iorque -, Theology in the Americas r181

assinalou o início de um fecundo diálogo da teologia latino-ame­ricana com a Black Theology (James Cone tinha iniciado um diálogosobre o tema em Genebra 182). Foram assim sendo descobertos di­ferentes eixos de contradições articuláveis: a problemática "norte­sul"; a confrontação entre raças (o "racismo" como objeto teológico);

178. Em 1975 já surge um martirológio em Scarboro Missions (Ontário), junho (1975). Poste­riormente José Marins editará El martirioen América Latina, Misiones Culturales, México, 1982,onde expõe a necessidade de uma pastoral de acompanhamento dos torturados, aprisio­nados, das famílias dos desaparecidos, como no cristianismo primitivo: tempo de perse­guição e de martírio.

179. O Encontro se realizou de 23 a 30 de abril desse ano. Vide Pablo Richard, Cristianos por elsocialismo, Sígueme, Salamanca, 1976; José Ramos Regidor, Cristiani per il socialismo, A. Mon­dadori Ed.-IDOC, Roma, 1977.

180. As atas do Encontro foram editadas na obra já citada e publicada por Enrique RuizMaldonado, Liberación y Cautiverio, abord.ndo a questão do método em teologia.

181. Em Teologia, Iglesia y política, Pueblo de Dias, Bilbao, 1973, foi divulgado um diálogo entreJ.B. Metz, K. Rahner, H. Cox e Hugo Assmann. Pouco depois, no "Symposium on BlackTheology and the Latin American Theology of liberation" (publicado sob a direção de P.Freire, H. Assmann, E.I. Bodipo Malumba eJ. Cone, Teologia negra, Teología dela liberación, Sígue­me, Salamanca, 1974), começam a ser descobertas novas temáticas.

182. Vide meu artigo "Teologias da Periferia e do Centro. Encontro ou confronto?", em Con­cilium 19 1 (1984), p. 121-1 33; também em Teología desde el Term Mundo. Documentos finales de loscinco congresos internacionales de EATWOT, DEI, San José, 1982.

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Page 81: Teologia da libertação

a opressão "varão-mulher", Dessa maneira, a teologia da libertação1, h' 183amp lava o seu onzonte ,

Em 1974 tínhamos começado a idealizar a possibilidade de umencontro entre teólogos do Mundo Periférico I8

4-, de modo que sepudesse dialogar de maneira direta, sem intermediários do "cen­tro", O primeiro Encontro foi realizado em Dar-Es-Salaam (Tanzâ­nia) , de 5 a 12 de agosto de 1976. Vinte e dois teólogos da Ásia,África e América Latina, e das minorias dos Estados Unidos, come­çamos um diálogo teológico do Terceiro Mundo. O segundo Encon­tro foi efetuado em Accra (Ghana), de 17 a 23 de dezembro de1977, O terceiro realizou-se em Wennappuwa (Sri Lanka), em ja­neiro de 1979 185

, Esses Encontros certamente abriram novos cau­dais para a teologia, não só a latino-americana, como também a daÁfrica e da Ásia e igualmente a das minorias negra e hispânica dosEstados Unidos. Produziu-se assim a "mundialização" de uma teo­logia que se refletia a partir da práxis dos cristãos oprimidos domundo atual. Desde esse momento, então, as teologias da Ásia, Áfri­ca e América Latina - e a das minorias dos EUA - ingressam numaetapa de mútua fecundação. A experiência deu grandes frutos, jáque se conheceram diretamente as problemáticas teológicas domundo periférico,

Vejamos agora os avanços mais significativos em algumas áreasteológicas, Em primeiro lugar, na Cristologia 186, Hugo Assmann assimescrevia:

183. Vide meu artigo "Teologias da Periferia e do Centro. Encontro ou confronto?". emConciliurn 191 (1984), p. 121-133; onde se pode consultar acerca da origem e da históriado movimento dos teólogos do Terceiro Mundo.

184. As edições dos mencionados encontros foram: The Emergent Cospel. Orbis Books, New York,1976; African Theology in Route, Orbis, New York, 1979; Asia's Struggle for full Hurnanity, Orbis,New York, 1980. Em 1980, houve o Quarto Encontro em S. Paulo (The challenge of BasicChristian Comunities, Orbis, New York, 198 I); o Quinto em Nova Delhi, 1981, e, por último,em Genebra em janeiro de 1983, o diálogo entre teólogos da periferia e do centro.

18S.]. Ramos Regidor, op. cit., p. 268-353 (boa bibliografia que não repetiremos aqui).

186. "La situación histórica de! poder de Cristo. Notas sobre e! discernimiento de las contra­dicciones cristológicas", em Rosino Gibe!lini, La Nueva fronrem de la Teología en América Latina,Sígueme, Salamanca, 1977, p. I 35 (apareceu antes em um número de Cristianismo y Sociedad43-44 [1975], dedicado à Cristologia). "A perspectiva - acrescenta Assmann - do futuropróximo na América Latina faz prever que continuarão a existir Cristos nos dois lados: o dosrevolucionários e o dos reacionários" (Ibid.).

85

Page 82: Teologia da libertação

o conflito das cristologias não pode ser analisado nem dirimi­do fora da dialética dos conflitos sociopolíticos, que foi sempresua real condicionante histórica l87

.

Assim como há Cristas ressuscitados sem dor entre a aristocra­cia bizantina, ou Cristas medievais feudais ou dos cruzados, hátambém Cristas operários; há Cristas que apóiam os militares emseus "golpes de Estado" ou o Cristo que os guerrilheiros levampendurado em seu pescoço - como os soldados sandinistas. Trata-sede um "situar" Cristo visualizado a partir de uma certa perspectiva I88.

O Jesus Cristo Libertador de Leonardo Boff189 apresenta a primeiraobra sobre esse tema. Uma cristologia latino-americana é possívelporque a situação da época de Jesus era análoga àda América Latinade hoje: miséria, dependência, presença de grupos dominantes, po­derosos e repressores do povo pobre. Existe um primado do Cristohistórico, da antropologia sobre a eclesiologia, do utópico sobre ofatual, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o individual. Ree­laboram-se os temas cristológicos a partir da construção do Reino.

A Cristología desde América Latina de Jon Sobrino l90 enfrenta nãotanto a questão "Cristo-razão" (primeira Ilustração), mas sim aquestão "Cristo-práxis transformativa" (segunda Ilustração: o mar­xismo), quer dizer, é uma cristologia da libertação. Trata-se do"seguimento" do Cristo histórico para construir o Reino deDeus, numa América Latina em situação análoga à da Palestina, apartir da "comunidade" (primitiva no primeiro século, ou atuala partir das comunidades pobres). É uma obra teológica profun­da e de ricas conseqüências.

187. Ibid.

188. Vide o Cristo anarquista do início do século no artigo de Maximiliano Salinas, "La Iglesiay los origines del movimiento obrero en Chile (1880-1920)", em Revista de Sociologia Mexi­cana 3 (1987), p. 171-184 (relatório do simpósio realizado pela CEHILA em S. Paulo em1986, sobre "Classe operária e História da Igreja na América Latina").

189. Vozes, Petrópolis, 1972. Além disso O Evangdho do Cristo cósmico, Vozes, Petrópolis, 1970; ARessurreição de Cristo, Vozes, Petrópolis, 1972; "Salvação em Jesus Cristo e processo de liber­tação", em Concilium 96, junho de 1974, p. 753-764; e muito especialmente Paixão de Cristo- Paixão do mundo, Vozes, Petrópolis, 1977.

190. CRT, México, 1976 (2' edição corrigida e ampliada, 1977) (em porto Vozes, Petró­polis, 1983).

86

Page 83: Teologia da libertação

Ainda que nos adiantemos no tempo, a obra El hombre de hoy anteJesús de Nazaret de Juan Luis Segundo é a cristologia mais bem suce-did ' 191 . d Ia ate o momento ,am a que o autor esc areça:

Nossa tentativa neste livro pode ser definida melhor como an­tieristologia do que como mais uma cristologia. Nem sequer adefmiríamos como a cristolo?ia correspondente à teologia dalibertação latino-americana 19 ... Libertar Jesus das cristologiasque o aprisionam pressupõe tarefa incessante de criar evangelhosque sejam, efetivamente, boa notícia para nossos contemporâ­neos, sem deixar por isso de verificar sua coerência com o evan­gelho pregado historicamente por Jesus de Nazaré 193

Importante é o capítulo sobre "Jesus e a dimensão política" 194,

o "anúncio central de Jesus", e a releitura de "A cristologia huma­nista de Paulo". J.L. Segundo continua sempre sendo crítico de cer­tas ingenuidades; criticismo salutar l9s

. De qualquer modo, acristologia da teologia da libertação, que levará seriamente em con­ta a realidade sociopolítica, econômica e histórica do "fato" de Je­sus, está ainda por ser escrita.

Da mesma maneira, na Eclesiologia l96 a teologia da libertaçãopossui uma particularidade: não é eclesiocêntrica. Talvez a primeiraeclesiologia nesse sentido - e ainda que Rubem Alves já não fossepropriamente um teólogo da libertação - é o livro do teólogo bra-

191. Cristiandad, Madri, tomos I-III, 1982, fruto do longo silêncio que o exílio em suaprópria pátria lhe foi exigido pela ditadura militar uruguaia (em porto Paulinas, São Paulo,1985). O tomo I é na realidade uma obra independente, que no fundo se refere a Marx­desde Lukács e Althusser; sempre latino-americano.

192. Op. cit., IJ, p. 29. Interessante é que Segundo dialoga com as outras cristalagias latino­americanas (vide José Comblin, Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1971; Benedito Ferrara, Asignificação política e teológica da morte de Jesus, Vozes, Petrópolis, 1977; I. Ellacuría, "The politicalcharacter of]esus' Mission", em Freedom made Flesh, cit., p. 23-86; etc.).

193. rbid., p. 65.

194.lbid., p. 10Ss.

195. "A teologia latino-americana chamada da libertação não escapa (...) a simplificações esuperficialidades (... ). Uma delas é justamente a que a faz surgir da práxis ( ). Nesse caso,esse poder qualitativo e quantitativo é o povo ou, mais exatamente, os pobres ( ). Desse pontode vista hermenêutica é de se estranhar, no entanto, que Gutiérrez não se indague por queJesus não conseguiu em seu tempo que seu próprio povo, o dos pobres, arrancasse damesma maneira a lei e os profetas das mãos dos grandes de Israel" (Ibid., t. IJI I, p. 581-599).É um longo diálogo que remonta a 1963 (massa, povo, minorias... ).

196.]. Ramos Regidor, Op.cit., p. 354-511 (com boa bibliografia).

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Page 84: Teologia da libertação

sileiro protestante: Protestantismo e repressão 197. Paradoxalmente, é umaafirmação do "catolicismo popular" brasileiro - que igualmente érepudiado pelo conservador católico romano contra um protestan­tismo burocrático, do "saber absoluto", da intolerância, da insen­sibilidade com respeito ao "princípio do prazer", de negação dahistória, de afirmação do status quo. Uma obra dilacerante, que podeperfeitamente ser uma alegação contra uma eclesiologia católica emvoga, fanática e doutrinarista.

A partir da experiência das "Comunidades Eclesiais de Base",as obras de Leonardo Boff

198obterão enorme repercussão. Em es­

pecial Igreja: carisma epoder199, no tocante às "Patologias do catolicismo

romano,,200. De qualquer modo, o fundamental não é a crítica àIgreja realmente existente, mas sim a reflexão a partir da "Igreja dospobres"201. De uma Igreja "pobre" no tempo do Concílio VaticanolI, passa-se a conceber a "Igreja dos pobres", que:

oferece um lugar objetivo e ótimo para vivenciar a fé. Em prin­cípio não empobrece, como é um temor comum naqueles que

, .. d D ' I' 202a atacam, o mlsteno e eus, mas sim o amp la .

De qualquer maneira a Igreja romana e grupos da Igreja institu­cional encaram a eclesiogênese "de baixo", a partir das Comunidades,como uma critica a uma Igreja intolerante, burocratizada, unifor­mizada, autoritária, não-missionária. As tensões irão aparecer aindano futuro.

197. Editora Ática, S. Paulo, 1979.

198. Eclesiogênese, Vozes, Petrópolis, 1977; com Clodovis Boff, Comunidade Eclesial, comunidade polí­tica' Vozes, Petrópolis, 1978; vide meu artigo "A Base na Teologia da libertação", em Con­cilium 104 (1975), p. 445-456.

199. Vozes, Petrópolis, 1981.

200. Ibid., p. 138s.

201. Jon Sobrino, Resurrección de la verdadera Iglesia. Los pobres, lugar teológico de la «Iesiología, Sal Terrae,Santander, 1981, em especial o capítulo 4: "La Iglesia de los pobres, resurrección de laverdadera Iglesia" (p. 99s). Nossa reflexão "histórica" sobre a Igreja sempre se apoiounuma eclesiologia (não de "Cristandade" mas sim da "Igreja dos pobres", desde aqueledistante 1959 com Paul Gauthier em Nazaré, pouco antes do Concílio). Deve entender-sea tarefa da História da Igreja como tarefa "eclesiológiça" (Vide Pablo Richard, Morte dasCristandades enascimento da Igreja, citada; e meu trabalho De Medellín a Puebla: "Hipótesis mínimasde lectura" [p. 15-48J, onde se desenvolve urna eclesiologia).

202. J. Sobrino, op. cit., p. 175 -17 6.

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Page 85: Teologia da libertação

o movimento contemplativo que gera o processo de libertaçãoemerge como uma nova "espiritualidade". Arturo Paoli foi um dosiniciadores com seu Diálogos da Libertaçã0203

- desde sua distante che­gada à América Latina em 1959. Ernesto Cardenal, trapista comoThomas Merton, criador de uma nova maneira de vida monástica

S I · 204 . I d d .em o entmame ; e espeCla mente es e seu compromISSO revo-lucionário, tanto em seus Salmos20S

, como em La Santidad de la revolu­ción

206- já que a "santidade" não é só cristã, mas daqueles que dão

a vida pelo amor a seus irmãos. Da mesma maneira Frei Betto es­creve, entre 1969 e 1971, Das catacumbas. Cartas da prisão207

, no Brasil soba ditadura militar. Jon Sobrino, a partir de El Salvador que vive as doresagônicas do parto, reflete sobre a oração cristã, pessoal e comunitá-

. 208 O ' . G G' , al b' al 209na . propno ustavo utlerrez se onga so re Igu tema .

Por isso a antologia de Eduardo Bonnin21o, ou o trabalho em­

preendido nos Estados Unidos por Robert McAffee Brown211, de-

203. Arturo Paoli. Diálogos de la liberación, Lohlé, Buenos Aires, 197 O; La Iglesia que nae< mtre nosotros,Indo-American Press, Bogotá, 1970; El Evangdio político de San Lucas, Lohlé, Buenos Aires,1973; Pan yvino, TIma (dd <Xilio a la comunión), Coleção Alcance, Bilbao, 1980; etc.

204. EI Evangdio m Solmtiname.

205. Lohlé, Buenos Aires, 1969: "Bem-aventurado o homem que não segue os ditames doPartido / nem assiste os seus collÚcios / nem se senta à mesa com os gangsters / (... )" (p.9). Magnífica poesia nicaragüense, latino-americana, mundial. O maior poeta latino-ame­ricano vivo, depois da morte de Pablo Neruda.

206. Sígu=e, Salamanca, 1976: "Creio ser importante que também existam pessoas que recor­d= à hurnartidade que a revolução se prolonga também após a morte (... ). Mas a revoluçãoé para que a hurnartidade amadureça e realize depois urna boda com Deus" (p. 2 1- 22).

207. Das Catacumbas. Cartas da prisão, Civilização Brasileira, Rio, 1978, testemunhos comovedoresde uma América Latina que reza em meio à tortura e à morte, como nos primeiros séculosdo cristianismo.

208. La oración de JesÚ5 y dei cristiano, Ed. Paulinas, Bogotá, 1979. Vide igualmente Spirituality ofLiberation. Toward political holinfSS, Orbis, N ew York, 1985.

209. Em sua obra La fuma história delas pobres (CEP, Lima, 1979; Vozes, Petrópolis, 2 1984), irticiacom o terna, mas é = Beber <TI su propio pozo. En d itinerario espiritual de un pueblo (CEP, Lima, 1983;Vozes, Petrópolis, 4 1986) e = Hablar de Dias desde eI sufrimimto dei inocmte. Una rdl<Xión sobre eI libro deJob (CEP, Lima, 1986; Vozes, Petrópolis, 1987) que a "espiritualidade" recebe um tratamentopróprio da práxis de um povo = meio ao sofrimento, mas pleno de esperança. Sobre Jó videJorge Pixley, Ellibro de Job. Commrario bíblico latino-americano, Serrtinário Bíblico, San José, 1982.

210. Espiritualidad y Liberación m América Latina, DEI, San]osé, 1982, com trabalhos de V. Araya, FreiBetlo, L. Boff, P. Casaldáliga, S. Galilea, G. Gorgulho, ]. Hernández Pico, C. Maccise, E.Pirortio, o. Ramírez, P. Richard,]. Sobrino (faltando Arturo Paoli, Rubem Alves, etc.). Tam­bémA Cruz, Teologia eespiritualidade, de vários autores (C. Broneto, M. Perda, etc.), Ed. Paulinas,S. Paulo, 1983.

211. Spirituality and Liberation, The Westmínster Press, Filadélfia, 1988.

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monstrarn já a riqueza da nova espiritualidade latino-americana dalibertação.

Nesses anos, além disso, a teologia da libertação, que desde oseu início havia usado um novo método212, formulou explicitamenteessa maneira de "produzir" teologia213. Apareceram diversos traba­lhos sobre o tema2l4

'. Clodovis Boff defende sua tese de teologia emLovaina sobre Teologia eprática. Teologia do político esuas mediações21 5

, que éa primeira obra de um teólogo da libertação dedicada exclusivamenteao método teológico. Inspirando-se principalmente em Gaston Ba­chelard, Louis Althusser e Jean Ladriere216 , articula a relação teoria­prática de uma maneira abstrata, deixando para o final a questãodialética, com a qual se devia começar. A posição do "intelectualorgânico" de um Gramsci - e ainda a relação orgânica institucionalde teoria e práxis exposta por Habermas - não foi tomada comoponto de partida. Fala-se então da "teologia política", mas não es­tritamente ainda de teologia "da libertação".

Não é possível concluir essa etapa sem recordarmos novamenteos mártires. José Marins publica uma nova edição de seu livro EI

212. Todos os teólogos da libertação, desde seus primórdios, tiveram consciência de que as"ciências sociais" (de fato foi a "sociologia" a ciência privilegiada) eram a mediação ana­lítica privilegiada da nova teologia. Graças à influência de Antonio Gramsci, a práxis foidefinida como o ponto de partida da reflexão teológica (G. Gutiérrez), ou a "ortopraxia"como ponto de partida da teoria (da "ortodoxia" ). No começo foi mais atuante a socio­logia funcionalista (de um Gino Germani, por exemplo, no caso de Juan Luis Segundo),mas fundamentalmente a partir do enunciado da "teoria da dependência" se inicia a teo­logia da libertação propriamente dita.

213. Vide meu artigo "Herrschaft-Befreiung. Ein veraenderter theologischer Diskurs"(1974), em Hemchaft und Befreiung, Exodus, Freiburg (Suíça) ,1985, p. 33-42, onde se colocaa questão do método teológico, da constituição de novas categorias, etc.

214. Por exemplo, o Encontro do México de 1975 tevep0rtema o "método": UbemciÓllycautiverio.Debates en tomo ai método de la Teología en América Latina (ed. citada) - com exposições sobre o temade Luis del Valle, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Raúl Vidales, Casiano Floristán, Juan HernándezPico, Ignacio Ellacuría, etc. Ou livros como os de Xosé Miguélez, La teologia de la libemciÓII y sumétodo. Estudio en Hugo Assmann y Gustavo Gutiérrez, Herder, Barcelona, 1976; Anton Peter, Befreiungs­theologie und Tmnszendentaltheologie. Enrique DusseI und Karl Rahner im v"rglcich, Herder, Freiburg/Br., 1988;ou de Roberto S. Goizueta, Libemtion, Method and Dialogue. Enrique DusseI and North American TheologicalDiscourse, American Academy ofReligion, Scholars Press, Atlanta, 1988.

215. Vozes, Petrópolis, 1978.

216. Vide a bibliografia epistemológica nas páginas 391-392.

90

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martirio en América Latina2!7. As ditaduras militares reprimirão espan­

tosamente o povo dos pobres e seus profetas. A obra de Rubén Dri,Teología y dominación218

, reflete teologicamente a dolorosa experiênciada responsabilidade da Igreja durante a "guerra suja" na Argentina,de 1976 a 1983. Éuma reflexão vigorosa, dificil de aceitar por umaIgreja hierárquica cúmplice naquele país.

QUARTO PERÍODO. A Teologia latino-americana diante da revoluçãocentro-americana e os novos ataques (desde 1979)

Examinaremos neste parágrafo duas linhas de fundo que irãose separando durante os próximos anos. Por um lado aqueles quena Igreja se articulam cada vez mais com as elites dominantes ­sejam elas os militares, a burguesia nacional ou transnacional, queseguem a política do Departamento de Estado norte-americano, etc.- e os que, dentro de tradições diferentes, prolongam o compro­misso com os pobres que foi gerado a partir da época do ConcílioVaticano 11.

Devemos remontar pelo menos até 1976 para vermos surgirem diversos pontos da América Latina e da Europa uma mesmapostura. Roger Vekemans publica seu livro Teología de la liberación ycristianos por d socialismo219 em 1976 - a única obra até o presente quese ocupa tão amplamente de maneira crítica da teologia da liberta­ção. Na Alemanha, com a ajuda do Adveniat, organiza-se um "Gru­po de estudo sobre Igreja e Libertação" que de 2 a 7 de março de1976 se reúne em Roma (com a presença de A. López Trujillo, R.Vekemans, P. Bigo, próximos de Monsenhor Hengsbach [bispo doAdveniat e pouco depois do Exército alemão], Weber, Cottier, etc.) ,sobre o tema "Esperança cristã e práxis social" 220. Apareceram na

217. Misiones Culturales, México, 1982 (Marins publicou esse livro antes como Práxis ddmartirio. Ayer y Hoy, Cepla editores, Bogotá, 1977). Além disso escreveu Moddos de Igreja. CEBna América Latina, Ed. Paulinas, São Paulo, 1977.

218. Roblanco, Buenos Aires, 1987, "Coleção Teologia e Política". Escreveu também La utopiadejesús, Nuevomar, México, 1984, uma tentativa de cristologia levando em conta categoriasclassistas para esclarecer "A sociedade de jesus" (p. 71-83). Será preciso aperfeiçoar esserumo, para chegar a uma cristologia mais concreta do que as desenvolvidas até agora.

219.já mencionado (CEDIAL, Bogotá, 1976).

220. Studienkreis Kirche und Befreiung, que publica Kirche und Befreiung, Pattloch, Aschaffenburg,1975, de um Encontro realizado de I 2 a I 3 de outubro de 1973; Kirche inChile, ibidem, 1976

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mesma linha de pensamento obras como as de Boaventura KIop­penburg, Iglesia Popular, na qual se chega a dizer que" a Igreja popularé uma nova seita,,22 I , e outras mais publicadas em revistas tais comoMedellín, Tima Nueva, etc. Em outubro desse ano a Comissão TeológicaInternacional em Roma opina sobre a teologia da libertação (o pri­meiro antecedente da futura "Instrução" de 1984). O texto é mo­derado e na realidade não condena a mencionada teologia nemnenhum dos grandes teólogos latino-americanos concretamente ­e, na realidade, todas as advertências foram enunciadas pelos pró­prios teólogos da libertação.

No seio do Protestantismo, igualmente, organiza-se a "Frater­nidade" - grupo de teólogos "evangélicos" que se unificam ante ateologia da libertação222

. A crítica da "teologia evangélica" latino­americana223 é muito semelhante àquela dos conservadores católi­cos (ainda que esses últimos se refiram à instituição eclesiástica eaqueles à autoridade das Escrituras), mas nenhuma das duas con­segue descobrir a importância das mediações (culturais, sociológi­cas, políticas, econõmicas, eróticas, etc.). Trata-se de um certoidealismo (institucionalista ou fundamentalista).

(editam Hengsbach, López Trujillo, Bossle, Rauscher, Weber); Utopie der Ikfreiung, Idem;Christlicher Glaube und gesellschaftliche Práxis, ibidem, 1978. Numa linha mais acadêmica KarlLehmann, Theologie der Befreiung. Johannes, Einsiedeln, 1977, onde aparece o parecer da Co­missão Teológica Internacional romana (em edição espanhola em Teologia de la Liberación,BAC, Madri, 1978). Urs von Balthasar chega a escrever: "Na realidade, as situações poderãoser injustas, mas em si mesmas não são pecaminosas; pecadores serão os que têm a culpadessas situações e as permitem podendo eliminá-las ou melhorá-Ias" (Ed. espanhola, p.179). O teólogo alemão tem uma concepção individualista, consciencialista e ingênua dopecado. Não capta o sentido do "pecado institucional" (vide minha obra Ethik der Gemein­schaft, Palmos, Duesseldorf, 1988, p. 29s, especialmente p. 33s).

221. Ed. Paulinas, Bogotá, 1977, p. 63 (em porto Agir, Rio de Janeiro, 1983).

222. Por exemplo, a obra de Emilio Núnez, Liberation Theology, Moody Press, Chicago, 1985,mostra um conhecimento real e simpático do material exposto (tanto histórico comosistemático da teologia da libertação). O autor e René Padilla encabeçam esse movimento.De Padilla vide Misión integral. Ensayos sobre d Reino y la Iglesia, Nueva Creación, Buenos Aires,1986, e Ed. Pablo Alberto Deiros, Los Evangélicos y d poder político en América Latina, Nueva Crea­ción, Buenos Aires, 1986 (com colaborações de S. Rooy, S. Escobar, E. Cavalcanti e outros).A utilidade dessa obra está em que explica a "história protestante" da teologia da liberta­ção, em especial a importância de "Igreja e Sociedade na América Latina" (ISAL) (p.53s)(Vide Orlando Costas, Theology at the Crossroads in Contemporary Latin America, Rodopi, Amsterdã,1976); do Conselho Ecumênico de Igrejas (p. 61s); de Huampani em julho de 1961, deEl Taba em 1966, de Piriápolis em 1967, de Nana em julho de 1971, até a crise do ISAL.

223. Ibid., p. 277s.

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Dentro da mesma tradição protestante, José Míguez Bonino pu­blicava então La fe en busca de eficacia224 onde explica o surgimento dateologia da libertação dentro da tradição própria, metodista, pro­testante histórica. Da mesma maneira a obra coletiva Los pobres. En-

. 22S d I E . . Icuentro y compromlso tem gran e va oro m pnmeno ugar, por seusestudos exegéticos (o de S. Croatto, por exemplo); o esclarecedorcapítulo sobre o Concílio Vaticano de Míguez Bonino226 sobre a ori­gem do conceito "Igreja dos pobres"; e a crítica ao meu pensamen­to de Lambert Schurman ("A influência de Emmanuel Lévinas na

I . I . . ") 227teo ogIa atmo-amencana .

Por outro lado, desde 30 de novembro de 1976 tinha começa­do o que poderíamos denominar a "batalha de Puebla", quandoRoma confia ao CELAM a organização da IV Conferência Geral doEpiscopado. Em 29 de novembro de 1977 é dado a conhecer o"Documento de Consulta"; em setembro de 1978 é publicado o"Documento de Trabalho". De 27 de janeiro a 13 de fevereiro rea­liza-se a Conferência de Puebla. O momento teológico principal foi

, . "D d C 1 ,,228 O' l'd da cntlca ao ocumento e onsu ta . certo e que a tota 1 a edos teólogos da libertação foi excluída da Conferência de Puebla,mas grandes temas da Teologia da Libertação foram abordados naConferência, em especial a "opção preferencial pelos pobres" e areferência aos grandes profetas latino-americanos (Bartolomeu de

224. Sígueme, Sa1amanca, 1977 (que na realidade é a tradução em castelhano de sua obraDoing Theology in a revolutionary sÍtuation, Fortress Press, Filadélfia, 197 S).

225. La Aurora, Buenos Aires, 1978. Esta obra foi o fruto de um ano de trabalho interdisci­plinar do Instituto Superior Evangélico de Estudos Superiores (ISEDET) de Buenos Aires.Em 1971 , Emilio Castro em sua obra Hacia una pastorallatinoamericana (Seminario Biblico, SanJosé) já tinha expressado o seu pensamento acerca de "E] cristiano en una sociedad revo­Iucionaria" (p. 137 s).

226.lhid., p. 133-147.

227.lbid., p. 149-179.

228. Sobre esse terna vide minha obra De Medellín a Puehla, p. 461-S49. Sobre a imensa biblio­grafia pode ser vista uma síntese na publicação do Centro Lehret (Paris), junho de 1978 ­com mais de dois mil títulos. Houve uma reação dos teólogos europeus (Rahner, Metz,Mo!tmann, etc.) em um Memorandum de novembro de 1977; depois surgirá o documen­to de apoio à teologia da libertação (assinado entre outros por Congar, Chenu, Aubert,Casalis); dos teólogos espanhóis, canadenses, de bispos e sacerdotes "chicanas", e dosteólogos africanos e asiáticos reunidos em Colombo (Sri Lanka) em 1978. Pela primei­ra vez, a teologia da libertação adquire ressonância mundial (embora muito menorainda que em 1984).

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las Casas, Antonio de Montesinos, Monsenhor Valdivieso de Leónda Nicarágua e tantos outros) citados como exemplo da Igreja em

. 229seu conjunto .

Como uma continuação do Encontro do México de 1975, atradição teológica da libertação organizou um diálogo entre teólo­gos latino-americanos, europeus e norte-americanos (J. Moltmann,H. Cox, J. Cone), de grande utilidade para a compreensão dos di­versos pontos de partida e a diferente problemática de cada um

230.

Posteriormente, de 21 a 25 de fevereiro de 1978, em São José daCosta Rica, efetuou-se outro encontro entre teólogos e cientistassociais23I. Trata-se de um novo momento na teologia da libertação.A obra de Franz Hinkelammert - economista, teólogo e pensadorde grande profundidade, de origem alemã mas com décadas deexperiências latino-americanas, especialmente no Chile, donde foiexilado em virtude da repressão de Pinochet -, Las armas ideológicas deIa muerte. El discernimiento de los fetiches232 , que foi antecedida em algunsmeses por outro livro em que se refletia teologicamente sobre aexperiência da repressão no Chile: Ideología deI sometimiento233

, sobre areflexão da relação entre economia e teologia:

A valorização da vida real tem sido sempre o ponto de partidadas ideologias dos oprimidos, em oposição à absolutização dosvalores da dominação23

4-.

Se a teologia da libertação iniciou sua reflexão a partir da dia­lética "fé-política", agora reitera-se melhor a relação "vida-econo-

229. Vide, em minha obra De Medellín a Puebla, como se conseguiu introduzir boa quantidadede textos numa visão crítica da história, em contradição com a visão tradicional conser­vadora ("João Paulo lI, a III Conferência e a História da Igreja na América Latina", p.593-615), onde se pode estudar o desenvolvimento das quatro redações do capítulo 1 doDocumento Final de Puebla (o mesmo poderia ser feito com todas as outras partes do ditoDocumento Final).

230. Práxis cristiana y prooucción teológica, Sígueme, Salamanca, 1977, editada por J. Pixley e J.F.Bastian (participamos H. Assmann, o. Costas, R. Vidales, E. Dussel, Sergio Arce de Cuba,etc.).

231. Editores E. Tamez-S. Trinidad, Capitalismo, violencia y anti-vida, EDUCA-DEI, San José,1978, t. I-lI.

232. EDUCA-DEI, San José, 1977 (traduzido para o alemão em Exodus, Freiburg [Suíça]; parao inglês pela Orbis Books, New York; para o port. pelas Paulinas, São Paulo, 1983).

233. EDUCA-DEI, SanJosé, 1977.

234. Las armas ideológicas de la muerte, p. 240.

94-

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mia". Já não é apenas a exigência do cristão de optar pelo pobre ecomprometer-se com a política - ainda revolucionária - , como emfins da década de sessenta; agora é a fome das maiorias o imperativopara modificar os sistemas de produção injustos. É a relação "pão­produção" e daí a centralidade da Eucaristia como "pão da vida" najustiça23S

. Trata-se de um verdadeiro novo começo que imporá sualógica à totalidade da teologia da libertação na década de oitenta enoventa. A obra La lucha de los dioses236

se situa nessa tradição.

Em janeiro de 1979 reuniram-se em Matanzas (Cuba) setentateólogos de países socialistas e da América Latina, onde se prosseguiuno discurso indicado237

. Ainda que um tanto posterior, devemos aquiregistrar o seguinte Encontro entre teólogos e cientistas sociais efetua­do de 11 a 16 de julho de 1983. Foi retomada a temática anterior masdentro de um novo perfil: "O Discernimento das Utopias", em quemais de cinqüenta participantes (do Brasil, Costa Rica, Peru, México,Chile, Colômbia, estados Unidos e outros países) abriram novo cami­nho à teologia latino-americana na "fronteira" (ciências sociais - so­ciologia, politologia e economia - e teologia) 238.

Enquanto isso, ocorre o acontecimento central que divide épo­cas. A revolução sandinista ascende ao poder em julho de 1979. Éum momento central na própria história da teologia. Uma revolu­ção pós-capitalista teve já por referência uma teologia latino-ame­ricana que justificava a práxis cristã revolucionária - o que nãohavia acontecido nem na Rússia em 1917, nem, por exemplo, emCuba em 1959. Em 17 de novembro de 1979, os bispos nicara­güenses' num documento teológico a ser recordado, expressam:

235. Vide meu artigo "O pão da celebração. Signo comunitário de justiça", em HeITSchaft undBefrciung, p. 44-61 (publicado em Conciliwn 172 [1982], p. 196-208).

236. Co-eclição DEI-Centro Antonio de Valdivieso, SanJosé-Manágua, 1980, com o subtítulo:"Los ídolos de la opresión y la búsqueda del Dios liberador" - inspiração temática deHugo Assmann, com a qual fundava o DEI com exilados do Chile, principalmente.

237. Algumas colaborações publicadas ernSavir (México) 80 (1979), sobre "Evangelização epolítica" (Serl;io A;ce e outros). Ali se cliscutiu a presença dos cristãos nas revoluçõessocialistas na Asia, Africa e América Latina, com a presença de teólogos da ex-URSS. Enor­me passo adiante no cliálogo teológico intercultural.

238. Ed. R. Vidales-L. Rivera Pagán, La esperanza en e1 presente de América Latina, DEI, Coleção Econo­mia-Teologia, San José, 1983. Pablo Richard publicará ainda La l~esia Latinoamericana entre dtemor y la esperamo, DEI, San José, 1980; além clisso Raúl Vidales, Desde 10 Tradición de los Pobres,CRT, México, 1978.

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Se o socialismo significa preeminência dos interesses da maio­ria dos nicaragüenses (...), um projeto social que garanta o des­tino comum dos bens (... ), uma crescente diminuição dasinjustiças (",), nada no cristão existe que implique em contra-d. - . 239

lÇao com esse projeto .

A igreja apóia então o processo revolucionário. No entanto, em8 de maio de 1980, organiza-se um seminário de bispos centro­americanos sob a direção do CELAM. Dali para a frente tudo mu­dou. Começa a orquestração contra-revolucionária sob a roupagemda "questão religiosa" . A partir desse momento, infelizmente, a po­lítica do Departamento de Estado norte-americano e a de algunsmembros do Vaticano começam a coincidirBü

.

Por seu turno, a Frente Sandinista, em clara coerência com asposturas da teologia da libertação, expressava na declaração "Sobrea religião", em 7 de outubro de 1980:

Os sandinistas afirmamos que a nossa experiência demonstraque quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes decorresponder às necessidades do povo e da história, suas própriascrenças os impulsionam para a militância revolucionáriaB1

.

Em 1981, como XC aniversário da Rerum Novarum, a encíclicaLaborem Exercens dá motivos a múltiplas reflexões teológicas. Da Amé­rica Central o pequeno livro Sobre el trabajo humanoB2 mostra que naencíclica se utiliza um marco teórico categorial novo: conceitos tais

239. Vide meu artigo "la Iglesia en Nicaragua (1979-1983)"', em Historio de la Iglesia en AméricaLatina (1983), p. 429-447.

240. Vide Ana Maria Ezcurra, EI Vaticano y la administración Reagan, Nuevomar, México, 1984, comampla informação sobre particularidades. Dessa mesma autora deve-se recordar La UPI enPuebla. Manipulación ideológica de la III Conferencia general, CEE, México, 1980, e La ofensiva neoconser­vadora. Iglesias de USA y lucha ideológica hacia América Latina, IEPALA, Madri, 1982. Além disso, delatambém temos Agresión ideológica contra la revolución sandinista, Nuevomar, México, 1983. Vide namesma linha de pensamento Cayetano De Lella, "EI papel del Instituto sobre Religión yDemocracia en la ofensiva neoconservadora", em Cristianismo y liberación en América Latina,Nuevomar, México, 1984, p. 65-82. Vide meu artigo "la política vaticana en Américalatina" (publicado em Social Compass em 1989), no qual se demonstra a coerência da men­cionada politica desde 1493 - com a bula papal de Alexandre VI - até a presença de JoãoPaulo II na praça da revolução de Manágua em 1983.

241. Parágrafo 2, da referida Declaração.

242. Equipe do DEI, San José, 1982; o mesmo será publicado no Peru pelo CEP, 1982.

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como "classe" (Laborem Exercens, n° 3), "trabalho em sentido objetivo"(n° 5), "em sentido subjetivo" (n° 6), "prioridade do trabalho sobreo capital" (n° 12), "capacidade de trabalho" (n° 12), etc., denotam. fi' . d . ~lU uenCla o pensamento marxIsta .

A obra de OUo Maduro, Religión y lucha de clase.lH , ganha particu­lar relevância nessa fase.

Enquanto isso já se avançara em novas frentes. Em primeirolugar, a questão da teologia da mulher: a mulher como sujeito histó­rico e teológico. No seminário sobre "A mulher latino-americana,a práxis e a teologia da libertação", em Tepeyac (México), de 1° a 5de outubro de 1979, EIsa Tamez se manifesta como uma iniciadoranesse setor, a partir de seu artigo"A mulher como sujeito na pro­dução teológica"Bs. Tudo isso culminará no "Documento Final" daConferência Intercontinental de Mulheres Teólogas do TerceiroMundo, realizada em Oaxtepec, de l° a 6 de dezembro de 1986,no qual é declarado:

As participantes perceberam que, em vez de rechaçar a Bíbliaem sua totalidade, como fazem algumas mulheres, dever-se-iaobservá-Ia com maior profundidade, repudiando todas as rou­pagens patriarcais que têm obstruído seu verdadeiro sentidoatravés dos séculos e colocando em relevo os elementos esque­cidos que refletem a mulher tanto como pessoa com seus pró­prios direitos quanto como co-participante com Deus e agenteda vidaB6

24-3. Em nossa obra Ética comunitária (Paulinos, Madri, 1986; Patmos, Duesseldorf, 1988; Vozes,Petrópolis, 3 1994), pudemos prescindir de Marx, e pudemos com a encíclica Laborem Exer­cens dizer o mesmo.

24-4-. El Ateneo, Caracas, 1979 (em porto Vozes, Petrópolis, 1981).

24-5. Conclusão pessoal do encontro mencionado; artigo publicado em Mujer Latinoamericana,Iglesia y Teología, Ed. MPD, México, 1980; além de "La fuerza dei desnudo", em EI RastroFemenino de la Teología, Ed. Sebila, San José, I 986; e, principalmente, Teálogos de la libemción hablansobre la mujer, DEI, SanJosé, 1986. Vide ademais entre os teólogos as obras de Leonardo Boff,O rosto matemo de Deus, Vozes, Petrópolis, 1979; E. Dusse1, La erótica latinoamericana, USTA, Bogotá,1980 (em porto Loyola, São Paulo) (trata-se do tomo III de Para una ética latinoamericana de laliberación, Edicol, México, 1977; nova edição em La Aurora, Buenos Aires, 1987).

24-6. Ed. María Pilar Aquino, Aportes pam una Teología desde la mujer, Biblia y Fe, Madri, 1988, p.146-147. As autoras (Ivone Gebara, Carmen Lora, Leonor Aída, EIsa Tamez, Maria C.Bingemer, a editora, NeJly Ritchie, Luz Beatriz AreJlano, Tereza Cavalcanti) são algumasdas teólogas latino-americanas que começam a ser conhecidas. De EIsa Tamez vide: Lahom de la vida, CEI, San José, 1978, e La Biblia y los oprimidos. La opción de la teología bíblica, DEI,San José, 1979.

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Em outra frente, a teologia começa a descobrir o racismo, emespecial o exercido contra a população afro-americana. Em dezem­bro de 1979, realiza-se o primeiro Encontro sobre o tema emKingston (Jamaica) 247. No Caribe - em especial com Laennec Hur­bon no Haiti, e no Brasil - com José Oscar Beozzo -, o tema seconverteu em um novo capítulo florescente da teologia da liberta­ção248

. Armando Lampe, de Aruba, escreve, na consulta da EATWOTsobre "Cultura negra e teologia na América Latina" (de 6 a 8 dedezembro de 1984):

A teologia afro-antilhana da libertação terá as seguintes fontes: aBíblia, a tradição cristã, o processo atual de opressão-libertação eas tradições religiosas afro-americanas e não-ocidentais (como ohinduísmo). Essa última fonte é a que diferencia a teologia anti-Ih d 1 · 1 . . d lib - 249ana a teo ogla anno-amencana a ertaçao .

Outro novo tema central é a questão indígena. A etnia, a naçãoancestral ameríndia, foi o tema de um Encontro em Chiapas, de 3a 8 de setembro de 1979: "Movimento indígena e a teologia dalibertação". Nesse seminário, com a presença de indígenas de dozepaíses latino-americanos, evidenciou-se a capacidade teológica doshabitantes nativos do continente250

Não se pode esquecer tampouco que, durante os anos de re­pressão, descobriu-se na profundidade da "religiosidade popular"o lugar da práxis cristã251

. Devido igualmente a essa repressão, na

247. Vide Como enfrentar el rocismo en la dá:ada dei 80?, CELADEC-CMI, lima-Genebra, 198 O; cf meuartigo "Racismo, América Latina negra y Teología de la liberación", em Servir 86 (1980),p.163-210.

248. Entre outras as conclusões do Encontro de Trinídad-Tobago da CEHILA (Vide A EscravidãoNegro e a História da Igreja na América Latina, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1987).

249. Cultura negro y Toología, DEI, SanJosé, 1986. Entre os participantes Laennec Hurbon, Arman­do Lampe, José Oscar Beozzo, etc.

250. Um exemplo paradigmático é o de Aiban Wagua, "Erfahrungen imDialog zwíschen demChristentum und der einheimischen Religion der Kuna", em J.B. Metz-P. Rotdaender, La­teínamerika Wld Europa. Dialog der 11I00logen, Kaiser-Gruenewald, Muenchen-Mainz, 1988, p. 135­145. Nesse volume há trabalhos de Leonardo Boff, G. GUliérrez, J.c. Scannone, E. Dussel,R. de Almeida Cunha, etc. Trata-se de um Encontro teológico realizado em Muenster emnovembro de 1987.

251. Vide SELADOC, ReIigiosidad popular, Sígueme, Salarnanca, 1976; a coleção de EdicionesMundo de Miguel Jord, La sabiduria de WI pueblo, Santiago, 1975, ou a obra de Ignacio Pinedo,Religiosídad popular, Mensajero, Bilbao, 1977; R. Vidales-T. Kudo, Práctica religiosa y proyecto histó­rico, CEP, Lima, 1975; meu artigo "Religiosidade popular como opressão e libertação.Hipóteses para sua história e atualidade no AL", em Concilium 206 (1986), p. 476-489,

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sociedade política e civil e na própria Igreja, a teologia começa a serpraticada em "centros" de reflexão, tais como o Bartolomeu de lasCasas em Lima, o Departamento Ecumênico de Investigações emSão José da Costa Rica, o Centro Valdivieso na Nicarágua, o dospadres jesuítas na UCA de El Salvador, o Centro Gumilla em Caracas,o Centro Montesinos e o Centro de Reflexão Teológica no México,o CINEP em Bogotá, o Centro Diego de Medellín em Santiago doChile, e organismos eclesiais, porém autônomos, como a Comissãode História da Igreja (CEHILA), etc. Quer dizer, a reflexão teológicaexplícita se efetua em equipe. Éuma maneira nova, não estritamen­te acadêmica, articulada com o povo, de se produzir teologia.

Além do mais, nesses anos, registra-se um deslocamento dasteologias do Sul para o Norte. Em fins da década de 60 eram prati­cadas sobretudo no Cone Sul. Em fins dos anos setenta deslocou-separa a América Central, o Caribe e o México sendo sempre Brasil ePeru um ponto de referência.

Conforme já assinalamos linhas atrás, a revolução sandinista éum marco central nessa época. Toda a América Central ingressa numprocesso revolucionári0252

, de compromisso cristão e de resistênciacontra a repressão. Monsenhor Oscar Romero exclamava em 5 demarço de 1978 em EI Paisnal, onde nasceu o Padre Rutilio Grande:

Dizem - comenta Monsenhor Romero - que alguém rindo nodia do assassinato de Rutilio ironizou: "Já comprovamos que apele dos curas é também suscetível a balas". Assim zombavam,porque acreditavam truncar toda a sua prédica cristã. O que nãoesperavam é que a morte de um padre suscita tempestades,

etc. No mesmo contexto deve ser situada a obra editada por Juan C. Scannone, Sabiduríapopular, símbalo y filosofia. Diálogo internacional en tomo de una interpretación latinoamericana, Guadalupe,Buenos Aires, J984 - onde se reincide em posições "populistas". Vide de J.c. Scannone,Teologia de la liberación y práxis popular, Sigueme, Salarnanca, J976; obra profunda sem dúvidaalguma, na qual não puderam ser superadas certas limitações próprias da "experiência"argentina. A posição argentina sobre o terna pode ser observada no trabalho de J.L. Segun­do "Die zwei Theologien der Befreiung in Lateinamerika", em M. Sievernich, Impulse derBefreiungstheologie luer Europo, Gruenewald, Mainz, 1988, p. J03-117.

252. Vide Guillermo Meléndez, Iglesia, cristianismo y religión en América Central. Resumo bibliográfico(1960-1988), DEI, SanJosé, J988; Pablo Richard-G. Meléndez, La Iglesia delos pobres en AméricaCentral. Un análisis sacio-político y teológico de la Iglesia centroamericana (1960-1982), DEI, San José,1982; Philip Berryman, Ihe religious rools of rebellion. Christians in Central American revo!utions, OrbisBooks, New York, J984; Cayetano De Lella, Cristianismo y lib<ración en América Latina, já citada.

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suscita primaveras, como as que tem vivido El Salvador cristãojá faz um ano ( ...). Como tem sido abundante a colheita da

. - . - ,253persegmçao, Irmaos.

Na Nicarágua, o processo revolucionário exigirá uma clarifica­ção teológica da fé. A ideologia sandinista não é uma pura repetiçãodo já conhecido2S4

• A partir da mudança de política da Igreja hie­rárquica, induzida por alguns desde Roma e o CELAM, ocorre umafalta de diálogo entre a revolução e os bispos255. Entre os dias 24 e28 de setembro de 1979, poucos meses após o triunfo da revolu­ção, aconteceu um seminário sobre "Fé cristã e a Revolução Sandi­nista na Nicarágua"256, no qual começou a se definir teologicamentea situação. Obras como Nicamgua: trinchem teológica

257são algumas das

muitas publicadas nesses anos. A nosso ver, a obra fundamental até omomento é a escrita por Giulio Girardi: Sandinismo, marxismo, cristianismoen la nueva Nicaragua2S8

. Em primeiro lugar, ela não oculta as ambigüida­des da ideologia de Sandino, mas assinala seu caráter nacionalista e delibertação - na primeira parte do livro. Na segunda, sobre o "Marxis­mo sandinista" (de grande importância estratégica para a história darevolução nicaragüense, porque Girardi adianta uma tese teóricanova), após criticar o estalinismo, conclui:

O trabalho teórico coletivo, que a revolução produz sobre a mar­cha, acentua a caracterização do marxismo sandinista como teoriada prática libertadora. Esta prática do povo e de seus dirigentes

253. Rodolfo Cardenal, Monseiíor Oscar Roroero. Su pensamiento. UCA, São Salvador, 1981, p. 69.Vide James Brockman, The Word remains:a lile 01 Oscar Raroero, Orbis Books, New York, 1982;Rodolfo Cardenal, Rutilio Grande. Mártir de la Evangelización rural en EI Salvador, UCA, San Salva­dor, 1978.

254. Donald C. Hodges, Intellectual Foundations 01 lhe Nicaraguan Revolution, University ofTexas Press,Austin, 1986.

255. Cf. Ana Maria Ezcurra, Agresión ideológica contro la revolución sandinista, Nuevomar, México,1983.

256. Com a participação, entre outros, de Jaime Wheelock, Juan Hernández Pico, Alvaro Ar­güello, Raul Gómez Treto, Sergio Arce (os dois últimos de Cuba), Pablo Richard, etc., Fecristiana y revolución sandinista en Nicaragua, IHC, Manágua, 1980.

257. Com a participação. entre outros, de Pedro Casaldáliga, Miguel Descoto, F. Cardenal,Uriel Molina, Mara López Vigi!, Giulio Girardi, J. Gorostiaga, F. Hinkelammert, José Argüel­lo, E. Cardenal, etc. (Centro Ecumênico Antonio Valdivieso, Manágua, 1987).

258. Nuevomar, México-Manágua, 1986.

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converte todo o país em um laboratório econômico, político,I I I,· E b' I b .. ,. 259cu tura e teo OglCO. tam em num a oratono teonco .

E, mais importante ainda, Girardi, que em fins da década de 60tinha sustentado um "classismo" evidente, agora afirma que "o povo éo eixo do marxismo sandinista"26o, o "sujeito" da revolução e a con­vergência entre a revolução e o cristianismo (os cristãos). Obra teoló­gica fundamental. Ademais, o essencial da revolução, que está em jogona luta ideológica - e onde a Igreja tem um papel inevitável- , significa

I - I al " ul ul I" . ,,261uma revo uçao cu tur ,como c tura pop ar revo UClonana .

Por seu turno, Franz Hinkelammert, refletindo sobre as alter­nativas centro-americanas, num nível teórico-abstrato o mais uni­versal possível, escreve outra obra importante: Crítica a la razónutópica262

, onde critica o fundamento do pensamento neoconserva­dor (como o de Peter Berger), e da economia neoliberal (como ode Friedrich Hayek). Mas a obra se endereça principalmente contraKarl Popper como responsável pelos pensamentos antiutópicos.Uma excelente análise da contradição no conceito tanto da compe­tição como da planificação perfeitas - a partir das próprias hipóte­ses popperianas. No final, ao falar do reconhecimento entre osindivíduos da presença de Deus, conclui:

Se bem que nesse reconhecimento haja, portanto, libertaçãojunto com a presença de Deus, para tal teologia a transformaçãoda sociedade é conseqüência necessária dessa libertação, e deveser tal que a nova sociedade seja um apoio estrutural para essalibertação. Daí sua insistência na satisfação das necessidades bá­sicas e sua tendência socialista(... )263.

259. Ibid., p. 136.

260. Ibid., p. 137s.

261. Giulio Girardi, Fe <TI la revolución.Revolución <TI la cultura, Editorial Nueva Nicaragua, 1983. Videmeu artigo "Cultura latinoamericana y filosofia de la liberación. Cultura popular revolu­cionaria más aliá dei populismo y dei dogmatismo", em Cristiani.smo y Sociedad 8 O (1984),p.9-45.

262. DEI, San José, 1984.

263. Ibid., p. 272. A tentativa de resumir essa valiosa experiência é impossível em tão breveespaço. Merecerá uma obra completa. No contexto centro-americano deve situar-se tam­bém a obra de J. Sobríno-]. Hernández Pico, Theology of Christian SoJidarity, Orbis Books, NewYork, 1985,204 p. Vide EATWOT, Teologia de la liberación y comunidades de base, Sígueme, Sala­manca, 1982.

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Enquanto isso realizara-se o IV Encontro da EATWOT de 20 defevereiro a 2 de março de 1980 em São Paulo264. O V Encontro foiefetuado em Nova Delhi, em agosto de 1981 265 . Houve ademais oII Encontro de Theology in theAmericas em 1981. E também Congressosde teologia em Madri sobre "Teologia e pobreza" com a participa­ção de Jon Sobrino; "Os cristãos e a paz" em 1983 (com a presençade Enrique Dussel); em 1984 com a presença de Hugo Assmann,que eram uma continuação, de certa maneira, do Encontro de EIEscoriaI de 1972. Em julho de 1980 a CEHILA organiza seu encon­tro anual sobre "História da teologia na América Latina"266; e na IConferência Latino-Americana de História da Igreja houve igual­mente um seminário sobre "História da Teologia na América Lati­na". Além disso, a partir dessas experiências fundou-se uma co­missão de trabalho para escrever uma História da Igreja no TerceiroMundo - da EATWOT, e que realizará até 1989 cinco consultasintercontinentais.

QUINTO PERÍODO. Desde a "Instrução" romana de 1984

A "Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação",que foi assinada em 6 de agosto e divulgada em 3 de setembro de1984, lançou contra a sua vontade para o foco mundial a teologialatino-americana. A acusação de marxismo havia começado dozeanos antes. No ElTiempo de Bogotá fora publicado em 5 de novembrode 1972 o seguinte: "CELAM acusado de marxista". Com tais armasLópez Trujillo será eleito Secretário-Geral do mencionado órgão ­para preservá-lo de tais influências. Jaime Serna declarava na televi­são: "Infiltração marxista no CELAM,,267. No número um da revistaTierra Nueva (Bogotá), fundada por R. Vekemans, López Trujillo assimintitula o primeiro artigo: "A libertação e as libertações". A "Instru­ção" falará igualmente de "teologias da libertação" 268 no plural. Naobra já mencionada de Vekemans de 1975 se acusa a teologia da

264. Vide EATWOT, Teología de la Iiberación y comunidades de b<ise, Sígueme, Salamanca, 1982.

265. Vide as atas editadas em Orbis Books, New York, 1982.

266. O já citado livro do editor P. Richard, Materiales para una historio de la teología en América Latina.

267. Vide meu livro De Medellín a Puebla, p. 282.

268. Instrução, IV, 3.

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libertação de marxista - confundindo-a com "Cristãos pelo socia­lismo" - e, por isso, vinculada a uma teologia de violência guerri­lheira. Em 1978 B. Kloppenburg identifica igualmente teologia dalibertação com "Cristãos pelo socialismo", caindo ambos os movi­mentos, a seu ver, numa eclesiologia da "Igreja popular", que éuma seita herética. Por último, Javier Lozan0269 pensa que a "Igrejapopular" é o ponto de partida, a teologia da libertação é sua inspi­ração, mas, na realidade, a origem desta é o marxismo-Ieninismoestalinista. Em todos os casos simplifica-se a posição do contrário,deformando-a convenientemente, e depois ela é criticada. B. Klop­penburg, tal como a "Instrução", denuncia o "monismo" na teolo­gia da libertação (porque afirma que há "uma só história")270.

Em primeiro lugar, pensou-se a partir do Vaticano em se fazeruma "condenação" da teologia da libertação no Peru. O episcopadoformou uma comissão e remeteu a G. Gutiérrez determinadas per­guntas sobre presumíveis erros. Gutiérrez respondeu com um tra­balho detalhado no qual esclarecia sua posição.

Além disso, ele escreveu o livro de cunho espiritual Beber en e1propio pOlO. Nada se pôde fazer ali. De qualquer maneira 30 Giorni ­uma revista relacionada a Comunione e Liberazione - lançava em Romaem outubro de 1984 uma acusação contra Gutiérrez. Pensaram en­tão em "condená-la" no Brasil, mas ali era ainda mais dificil, por­quanto os teólogos da libertação fazem parte da comissão teológica

269. Vide La Iglc:sia dd Pueblo, teologia <Jl conflicto, Centro de Estudios y Promoción Social, México,1983.

270. "Instrução", IX, 3; B. Kloppenburg, op. cil., p. 74; também R. Vekemans fala de "monismohistórico" (op. cil., p. 179). Em sua obra antiga Iglc:sia ymundo político. Sacerdocio ypolítica, Herder,Barcelona, 1971, Vekemans já dizia que "entre essas duas cidades (a espiritual e a tempo­ral) há urna relação escatológica de continuidade, mas esta se rompe quando o homemabsolutiza um pólo, a cidade terrena" (p. 97). Até aqui a formulação é adequada, mas apartir dela nega-se que haja "uma só história" de onde possa se efetuar a luta entre os doisReinos. A dita unidade é denominada "monismo". Deve-se levar em conta igualmente aobra de A. López Trujillo, Liberación o revolución?, Ed. Paulinas, Bogotá, 1975. Enquanto issocomeçava a se produzir o fenômeno de uma teologia neoconservadora norte-americanaque atacava a teologia da libertação. Vide como exemplo Michael Novak, Ihe Spirit Df Oemo­cratic Capitalism, American Enterprise Institute, New York, 1982; e em especial, do mesmoautor, WiI! it Iiberate? Quc:stions obaut Liberation Tbeology, Paulist Press, New York, 1986, onde acrítica é frontal. Os teólogos da libertação seriam para M. Novak uns romãnticos pré-ca­pitalistas, fruto de urna oligarquia pré-industrial, que tinham saudade da comunidadeprimitiva pré-tecnológica. Será uma crítica" a partir de trás".

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da CNBB (Conferência de Bispos). Por último, planejou-se organi­zar um encontro em Bogotá de todas as Comissões teológicas dosepiscopados latino-americanos. O próprio Cardeal J. Ratzinger eMonsenhor Jérôme Hamer seguiram para a capital da Colômbia. Apresença de Dom Aloísio Lorscheider impediu novamente um jul­gamento adverso da teologia latino-americana. A Congregação paraa Doutrina da Fé se viu obrigada a se defrontar com a "condenação"via Roma. Em julho de 1984 Dom Agnello Rossi falou sobre a exis­tência de uma "Instrução". Os teólogos de Concilium advertiramacerca da inoportunidade do mencionado documento27l

, em docu­mento assinado por Yves Congar. Pouco depois, Karl Rahner escreveráao Cardeal de Lima:

Ateologia da libertação é inteiramente ortodoxa. Está conscien­te de seu significado limitado dentro da globalidade da teologiacatólica. Além do mais, está consciente - e com razão - de quea voz dos pobres deve ser ouvida na teologia no contexto daI . 1 . . 272grep atIno-amencana .

Apareceu então a "Instrução" e Leonardo Boff foi chamado aRoma para responder a algumas indagações diante da Congregaçãopara a Doutrina da Fé. A imprensa mundial acolheu favoravelmentepela primeira vez o questionamento da teologia da libertação. OSanto Oficio enfrentava a "opinião pública" e perdia a batalha. Porisso mudará de tática futu- ramente, como iremos ver.

Queremos assinalar duas questões teológicas relativas à "Ins­trução"273. Em primeiro lugar, se a levarmos a sério, teologicamen­te, a "Instrução" denota, paradoxalmente, muita fraqueza argumen­tativa. Daí Juan Luis Segundo, o único que teve a paciência de estu­dar a questão em profundidade, assim conclui:

A meu ver, e após a análise mais cuidadosa de que sou capaz, odocumento emanado dela (a Congregação para a Doutrina da

271. Vide documento em Cayetano De Lella, Cristianismo y Liberación, p. 255.

272. Ibid., p. 254-255.

273. VideH.J. Venetz-H. Vorgrirnler, Das Lehmmt der Kirche und der Schrei der Annen, Exodus, Freiburg(Suiça) 1985; revista Iglesia Viva (Valência), n. 116-117 (1985) dedicada ao tema; podemser consultadas revistas como Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis), Páginas (Lima), etc.,dedicadas ao tema.

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Fé) não apresentou ainda a prova de que a teologia da liberta­ção, em suas linhas mais básicas e fundamentais, conhecidasuniversalmente, seja um "grave desvio da fé cristã" e, menos. d -,. d ( )274am a, uma negaçao pratlca a mesma ... .

Em segundo lugar, toda a acusação, em última instância, con­siste em que a teologia da libertação é "uma nova interpretação docristianismo" (VI, 9) emanada da colocação do marxismo como

ponto de partida da reflexão teológica. O que acontece na realidadecom a relação marxismo e teologia da libertação?

O Cardeal Ratzinger, em sua obra Rapporto sulla Fede, assim se ex­

pressa:

A análise marxista da história e da sociedade foi consideradacomo a única de caráter científico. Isso significa que o mundoaparece interpretado à luz do esquema da luta de classes e quea única opção possível é a escolha entre capitalismo e marxismo(...). O conceito bíblico do pobre oferece o ponto de partidapara a confusão estabelecida entre a imagem bíblica da históriae a dialética marxista27S

A relação marxismo-teologia da libertação é tão antiga comoessa teologia. Estudamos essa questão em outro trabalho e aqui so­mente indicaremos algumas linhas gerais

276• Em primeiro lugar, o

274. Teología dela liberoción. Respuesta al Cardenal Ratzinger, Ediciones Cristiandad, Madri, 1985, p. 9S.O teólogo conclui que a teologia quer dizer (que) "não há uma continuidade visível entrediferentes expressões do magistério comum" (Ibid.,p. 94). Livro corajoso e necessário.

275. Colóquio com Vittorio Messori, Ed. Paulinos, Milão-Turim, 1985, p. 191.

276. Vide meus artigos "Teología de la Liberación y Marxismo", em Cristianismo y Socieàad 98(1988), p. 37-60; e "Encuentro de cristianos y marxistas en América Latina", em Cristia­nismo y socieàad 74 (1982), p. 19-36, aos quais remetemos para um estudo mais aprofunda­do. Além disso, vide Raúl Vidales, Práxis cristiana y militancia revolucionaria. Documentos, CEE,México, 1978 (muito valiosa recopilação de documentos sobre o diálogo marxistas-cris­tãos); Fernando Castillo, Iglesia liberadora ypolitica, Educación y comunicaciones, Santiago doChile, 1986, capo VI: "Los cristianos,la liberación y el socialismo" (p. 157-201); I Encontrolatino-americano, Los cristianos y d socialismo, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973; J. Ramos Regidor,Cristiani per i1 Socialismo. Storia, problematica e prospettive, Mondadori, Milão, 1977; José MíguezBonino, Christians and marxists, Eerdmans, Grand Rapids, 1976. Urna crítica à dita possívelrelação em CELAM, Socialismo ysocialismo en América Latina, Secretariado General, Bogotá, 1977,onde Monsenhor López Trujillo escreve: "É admissível que um sacerdote, angustiado coma dor dos pobres (sic) , sonhe com o socialismo (...) mas que tal opinião se apresente comourna conveniência ou necessidade geral para a Igreja como tal, ou para boa parte de nossascomunidades, é demais!" (p. 371). Além disso: G. Girardi-C. Preve-J. Ramos Regidor, Teo­logia della liberazione, Sapere 2000, Milão, 1985.

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tipo de marxismo usado pelos teólogos. Em nenhum caso se usa oestalinismo, o materialismo dialético ou as posições dogmáticasfreqüentes da esquerda. Os autores citados pelos teólogos são: Marx(em especial, o "jovem Marx"; pouca ou nenhuma referência a OCapital, com exceção de F. Hinkelammert ou meus estudos recen­tes) 277, Lukács, Gramsci, Bloch, e, em alguns casos, Althusser e aEscola de Frankfurt. Entre os marxistas latino-americanos são usa­dos J,c. Mariátegui e o "Che" Guevara - em seu tema do "homemnovo" e seu marxismo ético e humanista. Esses autores são "usa­dos" ainda de maneira sumamente ponderada e por isso subsumi­dos de maneira perfeitamente compatível com a fé cristã.

Examinando a questão no tocante a autores, buscando algunsexemplos, notamos que Rubem Alves se inspira mais em Marcuseou Bloch (em Toward a Theology of Liberation de 1968), porém alémdisso em Álvaro Vieira Pinto ou Paulo Freire - que latino-america­nizam seu discurso. Juan Luis Segundo, por exemplo, passa de umasociologia funcionalista, no início dos anos sessenta, para a utiliza­ção da teoria da ideologia - ainda que de amplo espectro teórico.G. Gutiérrez cita Gramsci em sua primeira nota (da Teología de la Li­beración) e do "Che" Guevara recorda um texto sobre o amor ("overdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de

")278 M' I d damor . enClOna ao ongo o texto quase to os os autores mar-xistas antes anotados, quer dizer, os marxistas críticos e não dog­máticos. Francisco Miranda, em sua obra Marx y la Biblia279

, damesma maneira. Mas, em todos os casos, a chamada "Teoria daDependência" forneceu ao marxismo ético e antropológico umcontexto latino-americano concreto. Em Medellín fala-se da depen­dência: a causa da pobreza dos países subdesenvolvidos e periféri­cos. A contínua e estrutural "transferência de valores" representa

277. Vide La producción trorica de Marx. Un comentaria a los Grundrisst, Siglo XXI, México, 1985; Haciaun Marx dtsConocido. Un comentaria a los Manuscritos dei 61-63, Siglo XXI, México, 1988; ainda EIúltimo Marx (1863-1880), Siglo XXI, México, 1990, para concluir os comentários das quatroredações de O Capital, e poder mostrar assim sua utilização por parte da teologia - em umquarto volume que terá como título; La teología "metafórica" de Marx.

278. Op. cit., p. 3 I.

279. Edição particular, México, 1969; em Sígueme, Salarnanca, 1972; em Orbis Books, NewYork, 1974. livro famoso que continua sendo usado em todo o Terceiro Mundo.

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um "pecado" de caráter mundial que determina todo outro tipo dedominação. Mas essa dominação Norte-Sul não é única; há domi­nação vertical capital-trabalho; ou erótico-social homem-mulher;ou domínio ideológico-cultural (pais-filhos; estado ou cultura do­minante-cultura popular). Descobre-se assim a maneira de detectarconcretamente e de maneira objetiva o "pobre" em todas as suasdimensões.

A teologia da libertação nasce assim de uma verdadeira rupturaepistemolÓgica - não no sentido althusseriano - ao utilizar no discursoteológico as categorias das ciências sociais críticas latino-americanas.

A partir dos critérios da fé, assim como Tomás de Aquino estu­dou e reconstituiu as categorias aristotélicas para produzir teologiano século XIII, da mesma maneira os teólogos latino-americanosestudam e reconstituem as categorias das ciências sociais para pro­duzir teologia em fins do século XX, no mundo pobre e periférico,subdesenvolvido e explorado.

A "Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação" de 22 demarço de 1986 nada acrescentou de novo, conquanto seu tom fossemenos ofensivo que na primeira.

No livro de Frei Betto, Fidel e a religião, o líder cubano chega adeclarar:

Creio que a grande importância histórica do que você denomi­na teologia da libertação (... ) é precisamente sua profunda re­percussão nas concepções políticas dos cristãos. E eu diria algomais: o reencontro que significa dos cristãos de hoje com oscristãos de ontem, daquele ontem longínquo, dos primeirosséculos, quando surge o cristianismo depois de Cristo. Eu po­deria definir (... ) a teologia da libertação como um reencontrodo cristianismo com as suas raízes, com a sua história maisbonita, mais atrativa, mais heróica e mais gloriosa e de umamaneira tão importante que obriga toda a esquerda da AméricaLatina a considerar este como um dos acontecimentos maisf d . , 280un amentals que ocorreram em nossa epoca .

280. Brasiliense, Rio de Janeiro, 23 1987 (orig. Conselho de Estado, Havana, 1985).

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o repto que vem de longe - desde o Informe Rockefeller de 1969ou a primeira "Declaração de Santa Fé" da equipe de Reagan em 1980- é a perseguição, às vezes velada, em outras explícita, da própria so­

ciedade política - desde os Estados Unidos até certos governos antipo­pulares latino-americanos. Na II Declaração de Santa Fé lê-se:

Énesse contexto que deve ser entendida a Teologia da Liberta­ção, uma doutrina política disfarçada em crença religiosa comuma significação antipapa e contrária à livre empresa, com opropósito de enfraquecer a independência da sociedade comrespeito ao controle estatal. Trata-se de um retrocesso ao galicanis­mo do século XVII, onde o direito divino dos reis pretendia su­bordinar a tradicionalmente independente Igreja. Desse modoobserva-se a inovação da doutrina marxista relacionada com umfenômeno religioso e cultural de longa data28l

.

NOVOS DESAFIOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NO INÍCIO DADÉCADA DE NOVENTA

No Encontro teológico do México de 1975 falou-se em em­preender a tarefa de fornecer à teologia da libertação uma exposi­ção sistemática - ainda se falou de um MY5teriurn Liberationi5282

. A idéiaganhou forma graças ao impulso generoso de Leonardo BotI, queconvocou um primeiro encontro de mais de cinqüenta teólogos emPetrópolis - depois se realizariam mais dois, em julho de 1984 eem janeiro de 1989 em S. Paulo. Essas reuniões serviram para lançara coleção "Teologia e Libertação", que incluirá tomos pequenos ­de umas 200 páginas - sobre o conteúdo dos tratados tradicionaisda teologia (uns trinta volumes), e outros vinte tomos sobre"Questões debatidas". Essa coleção é endereçada aos estudantes deteologia (seminaristas, religiosas), leigos e profissionais, líderes dascomunidades, etc. Parece que foi essa coleção de textos que preo-

281. "Santa Fe 11. Continúa el intervencionismo de Estados Unidos", em El DÍa (México), "ElGalloIlustrado", 22 de janeiro de 1989,p. 7.

282. Ali expressamos: "Neste Encontro se principiou a organizar o trabalho teológico de urnamaneira mais sistemática e coerente, visando a produzir alguns trabalhos em equipe. Atarefa futura a ser empreendida a partir desse Encontro é a de iniciar uma síntese-tentativada teologia da libertação. Isso pressuporá sua vinculação com a Ásia e a África e com algunsgrupos dos Estados Unidos" ("Condicionarnientos históricos de la reflexión teológica enAmérica Latina", em Liberación y cautiverio, p. 557 -558).

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cupou a Congregação para a Doutrina da Fé, que de imediato semobilizou para impedir a publicação de outros volumes. Num pri­meiro momento, pressionou os editores (os Paulinos de Madri eBuenos Aires e os Fr:anciscanos de Petrópolis) . Mas como a proprie­dade da coleção era do CESEP (S. Paulo), entidade ecumênica, nadase pôde conseguir por tal via. Tentaram nomear uma Comissão ro­mana para vigiar a coleção ou uma comissão do CELAM. Diante daclara defesa dos direitos do teólogo reconhecidos pelo Direito Ca­nônico e pelo Concílio Vaticano lI, por fim o Conselho Edito­riae83decidiu não publicar os tomos como formando uma coleção,mas sim como volumes independentes. Assim começaram a ser edi­tados ante as negativas da Congregação.

Enquanto isso, o Papa João Paulo II abençoava o trabalho dosbispos do Brasil em abril de 1986, e expressava que a teologia dalibertação "não só era oportuna como útil e necessária"284, na tra­dição da teologia que se iniciara com os Padres Apostólicos e daIgreja, com a teologia medieval e as que a sucederam. O Papa con­feriu assim à teologia da libertação categoria de teologia central natradição eclesiaL Isso não impedirá que, de fato, pelo processo de"Restauração" crescente que a Igreja sofre - sobretudo na nomea­ção de bispos conservadores e de núncios que unanimemente seopõem à teologia da libertação -, os teólogos que apóiam essa tra­dição de libertação sejam sistematicamente excluídos das cátedrasdas universidades pontificias (que devem ter a aprovação romana)ou dos cargos de ensino; que seja mudada a orientação das revistasteológicas (como a Vida Nueva na Espanha, ou de autoridades comoa Revista Eclesiástica Brasileira antes dirigida por Leonardo Boff) , etc. Dequalquer maneira, em 1988, por fim, a coleção pôde aparecer - nãoa condenariam -, mas se restringiria sua capacidade de circulaçãono seio da Igreja latino-americana.

283. Fazem parte: Leonardo Boff (Brasil), Sergio Torres (Chile). Gustavo Gutiérrez (Peru),José Comblin (Brasil). Ronaldo Muiioz (Chile), Enrique Dussel (México), José o. Beozzo(Brasil), Pedro Trigo (Venezuela), Ivone Gebara (Brasil), Jon Sobrino (El Salvador), VirgilioElizondo (Estados Unidos), Juan Luis Segundo (Uruguai), como assessor de temas ecu­mênicos Julio de Santa Ana (Brasil).

284. Carta do Papa João Paulo II aos bispos do Brasil (REB 46 [19B6], p. 400).

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Deve ser levado em conta que os destinatários exigem umaobra inteligível, que sem perda do caráter científico seja entretantocompreensível para o leitor que não possua cultura universitária.Isso, evidentemente, é um risco mas que tinha que ser enfrentado- um risco sobretudo pelas traduções para outras línguas, já queserão lidas por acadêmicos e não por seus destinatários naturais naAmérica Latina.

Entre os volumes surgidos da série I (Experiência de Deus eJustiça), que funciona como introdução, foram editadas a Opção pelospobres de Jorge Pixley e Clodovis Bofr85

, que devia iniciar a coleção:a reflexão teológica de libertação pressupõe uma opção prática pré­via. Ao Deus "verdadeiro" de Israel só se pode ascender a partir deuma "opção pelos seus pobres". Não se ascende a Ele por "argu­mentos teóricos", mas antes pelo caminho que seu Filho reveloupara ascender ao Pai: por um caminho prático. A práxis antecede ateoria. Os pobres são o início da teologia.

A história dos pobres é por isso igualmente introdutória. Aobra de Eduardo Hoornaert, A memória do povo cristão286

, situa-se nessalógica, e é além disso de grande originalidade. Dizer-se, por exem­plo, que com Eusébio de Cesaréia começa a decadência da históriada Igreja - porque esta se c1ericaliza no triunfalismo da Cristandadeconstantiniana, e se perde o cristianismo profético da Igreja primi­tiva - tem saudável consistência. Por isso, é importante quando es­creve no capítulo terceiro sobre "A comunidade eclesial de base":

A atual experiência eclesial de comunidades de base encontradificilmente modelos na história da Igreja posterior ao séculoIV (...). As atuais comunidades de base encontram nas primei­ras comunidades cristãs dos três primeiros séculos paralelismos

287surpreendentes .

É uma "releitura" da história dos três primeiros séculos à luzda experiência latino-americana atual - o que sempre fizeram os

285. Vozes, Petrópolis, 1987,285 p. (Edições Paulinas, Madri-Buenos Aires, 1986).

286. Iguais editoriais e lugares, 1986,308 p. (na edição brasileira).

287. Ibid.,p. 137.

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europeus em suas histórias da Igreja, e nós devíamos lê-las como"ob­jetivas". O autor se refere à experiência de "marginalidade" do cristia­nismo primitivo, à missão, às relações homem-mulher, ao marÚTio ­todos temas atuais de nosso continente latino-americano.

Da série II (O Deus que liberta seu povo), podemos dizer quese inicia com uma obra espiritual, comprometida, refletida.

O livro de Ronaldo Muiíoz, O Deus dos cristãos288 , exemplar emtodos os sentidos - desde o compromisso do teólogo com os ex­plorados, como por sua exposição teórica -, nos recorda:

A experiência de Deus como Deus - total, radical e transcen­dente - atualiza-se e se renova na América Latina em nossa históriacoletiva: a partir do que sofremos, do que desejamos e vamosconquistando como povo, no nosso caminho mais conscientecomo povo oprimido, onde também há sinais de vida, luta so­lidária e esperança289 ...Numa família de meu bairro operáriode Santiago me diziam tempos atrás: "É, magro, já aguachamos(domesticamos) você no nosso bairro". Ou seja, você já não évisita entre nós, já podemos contar com você,,29o

A obra de Leonardo BofT, A Trindade: a sociedade ea libertaçã0291 , nãoconsegue - como tem feito em outros de seus excelentes trabalhos- vincular o mistério da Trindade com a opção pelos pobres, coma história dos explorados. Não consegue argumentar convincente­mente o próprio da teologia da libertação em seu livro - é antesdogmaticamente tradicional; ainda Hegel o tornou mais históricoe mostrando a contradição social assumida e superada na comuni­dade transcendental divina da Trindade. Era uma tarefa dificil, masesperamos que ele a empreenda. Na Argentina, os militares têmsuas mãos manchadas de sangue de uma juventude assassinada na"guerra suja". Dizem que o referido sangue "salva" a Pátria. O "pai"da perdição mata seu "filho" para salvar o "espírito" da nação:"trindade" idólatra tão freqüente na América Latina? Um "pai" que

288. 1987,252 p. (na edição brasileira).

289. Op. cit., p. 20.

290. Ibid., p. 34-.

291. 1986,296 p.

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pede o sacrificio do "filho", seu sangue para redimir o pecado, deveser um ídolo, um fetiche. Totem e tabu de Freud nos sugere que amorte do "pai" une os irmãos no pacto originário social. Agora emtroca é a morte do "filho" que fundamenta o pacto social na Amé­rica Latina.

Da mesma maneira, pouco existe na obra de José Comblin OEspírito Santo ea libertação292 sobre os carismas do Espírito na renova­ção histórica, nas grandes mudanças sociais e ainda nas revoluções.Morales y Pavón dizia em 1811, quando lutava em Cuautla contraos espanhóis na guerra da emancipação: "O Espírito Santo nos des­pertou do sono em que estávamos mergulhados, para gritar paranós: Que o Anáhuac seja livre! ,,293 Um excelente livro na tradição dostratados, referências à América Latina294

; mas no entanto seria neces­sário compor uma teologia do Espírito Santo na linha da libertação.

Pedro Trigo escreve Criação eHistória, 295 que a exemplo das obrasanteriores sempre se refere a modelos latino-americanos; coloca aquestão da criação na história, primeiramente, da fé na criação, domal nela, da criação da natureza e da criação da pessoa. Cabe inda­gar de novo qual é a espeCificidade do tratado da criação na teologiada libertação, ao recordar que a mãe dos Macabeus enuncia pelaprimeira vez o relato de uma criação "desde o não-ente" (2Mc7,28) -que Tertuliano posteriormente traduzirá como "ex-nihilo" (apartir do nada) -, quando os dominadores helenistas estão torturan­do seu sétimo filho; podemos concluir no dito tratado que a Teologiada libertação indica, exatamente, a finitude de toda ordem política ­também a ordem vigente dominadora - e a possibilidade de "recriar"novas ordens políticas futuras, utópicas, como mediações na realizaçãodo Reino de Deus. A relação criação-política é o ponto específico dessateologia latino-americana. Por isso, dessacralização, ateização da or­dem vigente, desfetichização dos dominadores (ainda que se denomi-

292.1987,231 p.

293. Vide Augustín Churruca Peláez, "O pensamento de Morelos nas lutas pela Independênciado México". em História da Teologia na América Latina, Paulinas, S. Paulo, 1981, p. 75-106.

294. Por exemplo, p. 37s.

295. 1988, 344 p.

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nem cristãos na América Latina ou nos Estados Unidos): a luta dosprofetas contra os ídolos.

A Série III (A libertação na história) editou a obra de]. Com­blin: Antropologia cristã

296, que aborda os temas clássicos do tratado,

talvez também faltando-lhe ressaltar mais o aspecto da antropologiada miséria na sociedade capitalista periférica, o tema da corporali­dade, da sensibilidade sofredora, o tema do martírio dessa mesmacorporalidade, a tortura. Quer dizer, antropologia e política concre­ta: o "pobre" como ponto de partida e referência contínua das de­terminações antropológicas latino-americanas.

A obra de Antônio Moser e Bernardino Leers, Teologia moral. Im­passes ealternativas297 , retoma a partir da América Latina o melhor dasteologias morais européias. Quando se fala das "Tentativas latino­americanas,,298 não se faz nenhuma referência aos intentos de fun­dar uma ética da libertação, e quando se fala da questão do empo­brecimento parece-nos que as categorias sociológicas e econômicas(as"ciências sociais" tão presentes na Teologia da Libertação) estãoausentes. Mas, especialmente no capítulo décimo, sobre "Teologiamoral e uma sociedade nova"299, se incide num "terceirismo": nemcapitalismo nem marxismo, mas a moral cristã, tese francamentecontrária à Teologia da Libertação.

Minha Ética comunitária30o tenta situar o tratado teológico da mo­ral social dentro do contexto latino-americano, e usando estritamenteuma categorização econômico-política que tem sua origem no traba­lho teórico de Marx - preciso, estrito - mas sem cair no fetichismodas palavras. Creio que assim se demonstra a possibilidade de urnateologia estritamente bíblica, "tradicional" (Aristóteles, Santo Tomás,Encíclicas papais), e, no entanto, profundamente crítica da realidadedo pecado estrutural nos países do capitalismo periférico.

296. 1985. 284-p.

297.1987,308 p.

298. p. 72s.

299. p. 251 s.300. 1986, 285 p.

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A obra de Francisco Taborda, Sacramentos, práxis e festa301, de exce­

lente feitura, poderia novamente fazer a indagação: qual é a especi­ficidade de um tratado do sacramento-festa na Teologia da liberta­ção? Como expressava Franz Rosenzweig, "todo povo celebra so­mente suas festas de libertação". Paradoxalmente nesse pequenotratado se esquece que a festa do deserto e todas as festas trazemreferência a alguma escravidão como passado, a uma libertaçãocomo presente (quando se institui a festa), e no futuro como re­cordação da libertação passada (histórica, como a libertação do Egi­to, na Hagadá, na Eucaristia), motor da esperança da libertaçãofutura (histórica: em projetos históricos; escatológica na plena rea­lização do Reino).

Sacramentos de iniciação. Água eEspírito de Liberdade, de Víctor Codina eDiego Irarrázaval302

, é uma obra que corresponde às definições dacoleção (pequena, quase 200 páginas, clara, com titulação contí­nua, etc.) , onde a referência à América Latina é constitutiva do dis­curso de libertação. Privilegia-se com razão o popular; assim mesmo,ter-se-ia privilegiado, talvez, o político, o econômico, como consa­gração "profética".

Noé Zevallos e Víctor Codina escreveram Vida religiosa. História eteologia303

, uma obra essencial. Talvez tivesse ganho em unidade ahistória da vida religiosa européia, latino-americana e da teologiada vida religiosa se a tivesse exposto como uma história nas trêsfrentes (pelo menos desde o século XVI). Teria sido interessante oestudo da reforma tão profunda de algumas comunidades na Amé­rica Latina posteriores a Medellín, para mostrar concretamente aimpressionante relevância das religiosas e dos religiosos na renova­ção da Igreja em nosso continente desde 1968.

A obra de J.B. Libânio e Maria c.L. Bingemer, Escatologia cristã304,

onde se colocam as questões tradicionais desse tratado, deixa, noentanto, a desejar pela falta de uma exposição da relação entre o

301. 1987,191 p.302. 1987, 196 p.303. 1987, 203 p.

304.1985,302 p.

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projeto do sistema vigente (político, patriarcalista, etc.), o "próxi­mo" projeto histórico de libertação (por exemplo um projeto so­cialista com relação ao capitalista), e ambos "julgados" a partir doprojeto escatológico. O ponto específico da Teologia da Libertaçãoé, justamente, a articulação dos projetos políticos (feministas, pe­dagógicos, etc.) de libertação e o projeto do Reino. Deve então sercompletado o discurso iniciado.

Na Série IV (A Igreja, sacramento de libertação), já foi lançadoo livro de R. Antoncich e J.M. Munárriz Ensino social da Igreja305 , umaquestão certamente muito abordada na teologia da libertação. No­vamente, na ótica de alguns, pareceria que a tese da teologia latino­americana não é situada com clareza. É sabido ser dificil situar olugar da doutrina social entre o evangelho, a teologia da libertação,o projeto político que possui autonomia própria e a decisão con­creta da comunidade cristã. Na Teologia da Libertação a questãodeverá ainda ser debatida.

As teólogas Ivone Gebara e Maria c.1. Bingemer escrevem Maria,Mãe de Deu5 e Mãe dos pobres. Um ensaio a partir da mulher e da América latina ­com tradução espanhola de título mudad0306 . É uma obra de pio­neiras e referencial da Teologia da Libertação da mulher na AméricaLatina. Dever-se-ia, como pequeno detalhe, ter insistido um poucomais na função política de Maria (como, por exemplo, o fato de quea Virgem de Guadalupe foi o estandarte do exército da emancipaçãocom Hidalgo no México, estandarte igualmente de Zapata ao ocu­par Cuernavaca ou de César Chaves nos sindicatos "chicanos" daCalifórnia; ou que a Virgen del Carmen foi a "generala" do exércitode San Marún na libertação do Chile e do Peru).

A obra madura de Júlio de Santa Ana, Ecumenismo elibertação. Refle­xões sobre a relação entre a unidade cristã e o Reino de Deus307

, aborda o tematal como a coleção esperava. É uma obra teológica e ao mesmotempo histórica - tão necessária para o público católico latino-ame­ricano. Na linha da libertação talvez se pudesse acrescentar um ca-

30S. Título da obra sobre a doutrina social da Igreja. 1986, 286 p.

306.1987.208 p.

307.1987,317 p.

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pítulo sobre a contribuição protestante no processo de libertaçãolatino-americana - tanto da parte dos liberais do século XIX queajudaram a superar a intolerância e o conservadorismo, como dosrevolucionários, que participaram na Revolução mexicana de 1910,ou na revolução centro-americana ou dO'Caribe: seriam exemplosa não se omitir.

As Séries V e VII não foram ainda lançadas e se ocuparão demuitas "questões disputadas" latino-americanas. Só foi publicadoaté agora o trabalho de Marcelo de Barros e José Luis Caravias Teologiad 308 d -. 11 . .a terra ,que trata e uma questao crUCla atmo-amencana con-temporânea. Éde se esperar que os outros volumes dessa parte maisconcreta da coleção resgatem o nível mais objetivo e crítico, queainda não se faz muito presente na parte mais abstrata das quatroprimeiras séries; ainda que seja de desejar que também essas pri­meiras séries completem seus textos - e corrijam outros -, depoisde levar em conta as críticas que necessariamente serão feitas, a fimde melhorar a coleção a partir do ponto concreto da "especificida­de" da Teologia da Libertação.

Épor isso que a coleção "Teologia e Libertação" é um ponto dechegada - onde os antigos e novos teólogos da libertação vão abar­cando todos os temas tradicionais da teologia, e inevitavelmenteterão que contar com o diálogo e a crítica em terrenos nunca ex­plorados sistematicamente, mas, ao mesmo tempo, um ponto departida - já que se descobrem novos territórios temáticos, a partirde uma práxis sempre mutável. A produção futura o dirá.

308. 1988,439 páginas (obra que superou em muito as 200 páginas a que se propunhamos editores, por tratar-se de pequenas obras "introdutórias"). Essa é uma das poucas obrasem que Marx é citado (autocensura que prejudica a coleção devido à pressão de gruposteológicos do Vaticano e da América Latina). No entanto, não se estende sobre o "pecado"no que tange ao arrendamento da terra como distribuição da mais-valia, em op. cit., p. 57s(Veja-se minha obra Hacia un Marx desconocido, Sigla XXI, México, 1988, capítulo 9). Osautores têm dúvidas acerca da correção que Marx certamente fez desde 1873 enquantoque O Capital (sua obra central nas edições alemãs de 1867 e 1872-1873) só era válidopara a "Europa Ocidental" (tal como o expressa a edição francesa da mencionada obra de1875). (Vide minha obra El último Marx, 1863-1882, editada não faz muito tempo); e porisso não só era válido O Capital para a Rússia, como, por suposição, tampouco teria sidoválido, por extensão muíto mais evidente, para a América Latina. A doutrina marxistalatino-americana da renda e da terra exige novos desdobramentos.

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Na verdade, a teologia da libertação no início da década de1990 enfrenta certamente novos desafios, muito diferentes dos queenfrentou em fins da década de 1960, quando teve origem. Ficar"dormindo sobre os louros" - como reza o dito popular -, seriasumamente perigoso não só para ela, como principalmente para opovo do qual é sua expressão sincera.

Pode-se entender que esse tipo de interpretação tende a perse­guir os teólogos da libertação e a incluí-los nas listas de pessoas"perigosas" nos serviços de inteligência dos exércitos latino-ame­ricanos, dos órgãos policiais, etc. O certo é que, de qualquer ma­neira, a teologia da libertação enfrenta o desafio de fundamentar apráxis de libertação dos povos latino-americanos, ainda que isso acoloque no banco dos réus dos governos que oprimem os pobres.

Por outro lado, o processo de "Restauração" padecido pelaIgreja no mundo inteiro, mas especialmente na América Latina, pelanomeação unilateral de somente bispos conservadores - ação pra­ticada de maneira não compartilhada (de cima para baixo e com ojulgamento somente dos Núncios, e nem sequer dos episcopadosnacionais, como é bem sabido pelos exemplos da Holanda, da Áus­tria, o conhecido caso do bispo de Colônia, todos os novos bisposdo Brasil, etc.) -, conduzirá a teologia da libertação em futuro pró­ximo a afrontar uma situação mais dificil do que no passado. Diantedisso deve-se divulgar sistematicamente - através da mídia - todaação injusta, e se deverá defender os "direitos humanos" na própriaIgreja - usando até os recursos do direito canônico - como se faziaante os governos de ditadura militar na década de setenta, para lem­brar aos que nomeiam os bispos que a tradição mais antiga - e aténão mais de meio século atrás - consistia, no início e durante oprimeiro milênio, na eleição dos bispos pela comunidade; poste­riormente Roma interveio - só na Igreja latina -, mas também osreis e posteriormente os governos nacionais. Os bispos sempre pro­punham os seus sucessores. O fato de que se nomeiem bispos le­vando em consideração somente a avaliação dos membros da CúriaRomana é um mecanismo novo - e contra a tradição e a confiançamínima nas igrejas locais.

A existência na América Latina de frágeis democracias, que sãoo resultado da crise das ditaduras militares de segurança nacional eda imensa dívida externa (contraída por essas ditaduras contra a

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vontade do povo, sendo que é este agora quem deve pagá-la) e dacrise igualmente do projeto neoconservador de Reagan e Bush, for­nece por um lado mais "espaço" político e permite trabalhar naorganização das Comunidades Eclesiais de Base. Mas, por outrolado, coloca-se a indagação se o ciclo não tornará a se repetir: liber­dade aparente (como com o "desenvolvimentismo" de 1955), or­ganização popular, repressão das organizações populares e ditaduramilitar (como no Brasil desde 1964), e novamente "democracias"formais. Quer dizer, é uma coisa responsável organizar um povopara que seja novamente martirizado?

Outro desafio para a teologia é a exigência de crescer no campoda exegese bíblica e sua leitura popular; na história da Igreja; emtodos os tratados esboçados na coleção "Teologia e Libertação"309.Mas crescer igualmente em profundidade, metodologicamente.Diante da crise das ciências sociais na América Latina (como porexemplo as formulações da teoria da dependência), será necessárioentão redefinir a maneira de "usá-las" numa teologia que, sem in­cidir em critérios academicistas, deve no entanto ser "cienúfica"ainda no sentido de S. Tomás de Aquino. A crítica que pode advirdas teologias irmãs (da África e da Ásia), ou das teologias do "cen­tro" (Estados Unidos ou Europa), deve ser recebida com beneplá­cito a fim de progredir em exatidão e clareza.

Desde novembro de 1989 há um novo desafio. A crise do so­cialismo real, tanto na Europa Oriental como na própria ex-UniãoSoviética.

Alguns teólogos, como Tischner na Polônia, acreditam que acrise do socialismo e do marxismo como teoria seria igualmente acrise da Teologia da Libertação. No entanto, e isso será visto clara­mente nos próximos decênios, a teologia da libertação não dependeabsolutamente do marxismo como sua inspiração principal. Tem,

309. Desde 1975 se pensou em editar um tratado conjunto sobre Teologia da Libertação.Leonardo Boff lançou novamente a idéia em 1981 e assim se começou a editar uma cole­ção de 5Ovolumes (os diversos tratados tradicionais de teologia sob inspiração da Teologiada libertação). Surgiram muitos volumes editados pela Editora Vozes (Petrópolis, Brasil),Paulinos (Buenos Aires), Patmos (Alemanha), Orbis Books (Nova York) , Burns and Oates(Kent), Cerf (Paris), Cittadella (Assis), etc.

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pelo contrário, a capacidade de revitalizá-lo, se fosse necessário eem vista do projeto histórico de libertação dos pobres, dos oprimi­dos no continente latino-americano31o

E, por último, diante do processo gigantesco de "empobreci­mento" da América Latina, dentro de um modelo de capitalismoperiférico recessivo - exigido pelo FMI e o BM -, a teologia deverápermanecer fiel em saber exprimir o brado dos oprimidos. É umatarefa ineludível e trata-se de uma responsabilidade histórica.

310. De nossa parte concluímos um volume terceiro sobre a obra madura de Marx (EI últimoMarx [1863-1882), já mencionado), que abre a porta para uma reinterpretação completada obra de Marx.

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GLOSSÁRIO

CEHlLA: Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina.

CELAM: Conselho do Episcopado Latino-americano.

DESAL: Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da AméricaLatina.

lLADES: Instituto Latino-americano de Doutrinas e Estudos Sociais.

IPLA: Instituto Pastoral Latino-americano.

FSLN: Frente Sandinista de Libertação Nacional.

FUMEC: Movimento Estudantil Cristão Protestante.

JEC: Juventude Estudantil Católica.

JOC: Juventude Operária Católica.

JUC: Juventude Universitária Católica.

MAPU: Movimento de Ação Popular Unitária.

UCA: Universidade Centro-americana.

UNE: União Nacional dos Estudantes (Brasil).

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