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  • 1O contexto artstico brasileiro das dcadas de 1950,1960 e 1970 guarda aspectos importantes para a fundaodas experimentaes artsticas que transcendem as paredesfechadas dos museus e galerias de arte. Efetuando apassagem da modernidade para a contemporaneidade, esseperodo remete-nos a uma configurao geogrfica bastanteespecfica para o modelo dessas aes artsticas no Brasilestabelecidas no eixo urbano Rio - So Paulo, com algumasextenses para Belo Horizonte. Essa determinao tempo-espacial apresentada assume, na pesquisa, um peso deimportncia, justificado pela ordenao de seu objetoprincipal j que o binmio arte e ambiente urbano transmuta-se, pouco a pouco, dificultando sua leitura a partir deenquadramentos mais convencionais.

    PASSAGENS DA ARTE BRASILEIRA PARA OESPAO EXTRA-MUROS.Experimentaes ambientais de Flvio de Carvalho,Hlio Oiticica e Artur Barrio na passagem damodernidade para a contemporaneidade.

    Sylvia Furegatti*

    * Sylvia Furegatti doutoranda e mestre pela FAU-USP, com dissertao sobre Arte noespao urbano, defendida em 2002. Dedica-se pesquisa acadmica e praxis artstica dasformas de Arte no Meio Urbano Contemporneo. No primeiro semestre de 2005 desenvolveuo projeto Arquiteturas provveis como artista convidada do curso de graduao emEducao Artstica da Unicamp. professora da graduao da ESAMC/Campinas e daps-graduao da UNIFRAN-Franca, dentre outras instituies. Realiza projetos de curadoriae produo de arte pela cooperativa Ateli Aberto. Desempenhou funes de coordenaoe assessoria no MAC Campinas, MAC Americana e Instituto Cultural Ita/Campinas.

  • 2Esse eixo, no qual acontecem as primeiras formasartsticas ligadas ao meio urbano, sugere a criao de umcampo gravitacional formado a partir do entrelaamentodos artistas e das instituies oficiais. Numa versoreordenada de sua configurao mais usual, a noo devizinhana que partilhavam o museu e o artista apresentapontos de tenso que fazem com que o artista se interessepelo espao aberto extra-muros. Essa reordenao passaa imprimir novos cdigos estticos gerados por uma prxisaltamente experimental e contestatria para com osdispositivos assumidos pela arte at o momento.

    A despeito da escassa, recente e bem vinda presenade museus de arte moderna e contempornea no pas,alguns dos quais fundados nesse mesmo perodo, interessante observar a insurgncia de uma orientaocriativa que j exibia um cansao pelos formatosmuseolgicos e estanques do sistema artstico entovigente.

    O panorama artstico de meados dos anos 1940buscava reativar o flego que h pouco modernizara acriao cultural nacional, promovendo a construo deacervos, espaos expositivos e incentivos que pudessemgarantir sua atualizao constante. A Diviso Moderna doSalo Nacional de Belas-Artes no Rio de Janeiro ocorre em 1940viabilizando, alguns anos mais tarde, a criao de um SaloNacional. O MASP fundado em 1947 e j em 1948 Riode Janeiro e So Paulo passam a contar com seusrespectivos Museus de Arte Moderna. Na dcada de 1950,So Paulo apresenta a I Bienal Internacional (1951) e criadoo Salo Paulista de Arte Moderna (1951) que, mais tarde,seria substitudo pelo Salo Paulista de Arte Contempornea(1969). Em 1963 aberto o Museu de Arte Contemporneada Universidade de So Paulo e seu diretor, Walter Zanini,

  • 3lana a primeira edio das JACs Jovem Arte Contempornea- que se estenderiam pela dcada de 1970, dando grandecontribuio para a atualizao das formas do trabalhoartstico.

    Galerias como a Rex (SP), revistas como a GAM,Foma, e projetos de exposio como Opinio 65 (RJ) eProposta 65 (SP) fomentam o circuito artstico brasileiro, oque passa a alcanar maior representatividade em museuse mostras internacionais.

    A expanso das experimentaes criativasdesenvolvida ento no pas marcava o processo detransformao pelo qual passava a arte e sua relao como circuito estabelecido, indagando sobre sua natureza,significado e funo. Com uma orientao cada vez maisdesmaterializada, a arte passa a valorizar a ao, o efmero,a relao fenomenolgica entre objeto e espectador.

    Assim, como se dialogassem numa linha paralela, osnovos objetos e propostas artsticas acompanham aconstruo dessas instituies no Brasil apresentando-se,muitas vezes, por meio de projetos curatoriais (institudospor elas) ou por propostas criadas independentementepelos artistas que orbitavam seu ncleo principal. Parceladessa criao ainda consegue adequar-se aos elementosmuseolgicos e aos apelos mercadolgicos, enquanto queoutra parcela vai se configurando de modo arbitrrio aosseus preceitos. Nos dois casos chama a ateno o sentidoorbital constitudo entre museu e artista.

    O escopo criativo de Flvio de Carvalho, Hlio Oiticicae Artur Barrio do a dimenso desse anel paralelo criadono nterim museu-artista-meio urbano-sistema de arte. Suaspropostas representam tanto a provocao quanto acapacidade de absoro dessas instituies em posio deconstante atualizao.

  • 4Contudo, o papel desempenhado pelos artistasextrapola a organizao formal da produo e opensamento museolgico daquele momento, pontuandoas primeiras experincias ambientais brasileiras. Suasincurses para o espao aberto urbano, bem como para aquebra das limitaes tcnicas reconhecidas para a arte,permitem-nos visualizar os mecanismos introdutriosdessa vertente artstica compromissada com afenomenologia e a insero de arte em espao aberto,pblico e urbano.

    Conformados por um manto de marginalidade eexperimentao extremada, esses artistas praticamperformances, produzem ambientes efmeros oupermanentes, discutem e escrevem suas propostasartsticas, impulsionados pela necessidade detransformao dos valores aplicados ao objeto de arte.Seu foco escapa dos museus, uma vez que mal cabem nosprprios objetos ou formas pictricas praticadas por eles. possvel compreender esse olhar criativo como quedirigido pelo fator da reao. Provocar uma reao significa,principalmente nesse momento de aproximao entre artee vida, propor uma questo que revele a insuficincia doscdigos vigentes para se compreender o cotidiano.

    Essa premissa criativa demanda a diluio dasdistncias e formalizaes que determinam os papis dopblico, da instituio e do objeto no sistema artstico.Dentre os demais artistas que compartilhavam o perodohistrico experimentado por Carvalho, Oiticica e Barrio,esses elementos podem ser apontados como os distintivosrecorrentes de sua potica.

    A idia de experincia e de experimentao umaconstante para todos eles. Aplicam o termo diretamenteem seus trabalhos modelados pela noo de fluxo,movimento, ruptura e provocao.

  • 5Flvio de Carvalho elabora projetos que batiza deExperincias. Esses trabalhos envolvem circunstnciaspblicas, cotidianas e urbanas. Foi assim com a Experincian 2 (1931), quando caminhou pelas ruas de So Paulo nadireo contrria a uma procisso de Corpus Christi, sendodepois levado pela polcia para evitar um linchamento, ouquando fez o lanamento de seu traje tropical, o New Look,o que reflete a mobilidade de seus interesses entre paisagemurbana e o vesturio do homem moderno.2 Essa foi aExperincia n3, realizada no ano de 1956. No dia 19 deoutubro de 1956, saindo do edifcio n 296 da Rua Barode Itapetininga, surge Flvio de Carvalho usando seu trajetropical: sandlias de couro, meias de bailarina, um saiote,uma blusa de nilon vermelha, um chapu de panotransparente. Sai do centro velho e caminha at o centronovo, ora fazendo algumas paradas para um caf oradiscursando para a platia que lota as ruas.

    Cercado pela imprensa, preparada para a proposta, epor transeuntes, tomados de surpresa, Flvio busca discutira burrice que nos obriga a agonizar de calor dentro degravatas, colarinhos, coletes e palets.3 Assimila seutrabalho por meio da provocao dos comportamentoscotidianos. Dependente de uma maior interao pblicapara fazer com que seu trabalho acontea, esse artista traja

    2 Em 1955 Flvio de Carvalho tinha uma coluna no jornal intitulada Casa, Homem ePaisagem, na qual discutia a industrializao crescente de So Paulo, os problemas e usosda nova velocidade e da poluio urbana. Trabalhando em todas as frentes nessa dcada de1950, transfere seu interesse do invlucro ambiental para o invlucro corporal verificvel naproduo cenogrfica e de figurinos que realiza. Flvio escrevia frequentemente nos DiriosAssociados, incomodado pela rotulao que sentia na moda, resolve fazer uma extensa pesquisaque resulta em 39 artigos publicados no ano de 1956 no Dirio de So Paulo sob o ttulo Amoda e o Novo Homem. Em sua pesquisa a moda pensada como reguladora mental dospovos. Descobre que, ao longo da Histria, a vestimenta apresenta momentos de indistinoentre o feminino e o masculino. Essa seria a fonte terica que provocaria a prtica daExperincia n 3. MORAES, Antonio Carlos Robert, Flvio de Carvalho, Brasiliense, 1986, pp.66-77.3 Idem, p. 75.

  • 6uma nova proposta de vesturio que buscava rivalizar oconceito importado usual em nossa sociedade. Seu novotraje um misto de stira e revoluo.

    Como coloca Celso Favaretto, a eficcia dessasatividades, eventos, obras e experimentos garantida pelaobservao e considerao cuidadosa, por parte do artista,quanto reao que elas despertam na platia.4 Assim, asExperincias de Flvio de Carvalho so um prenncio dasestratgias artsticas direcionadas para lugares e grupossociais especficos, hoje conhecidas pela nomenclatura deNova Arte Pblica.5

    Tal qual Flavio de Carvalho, Artur Barrio tambmcria Experincias e as enumera. Barrio estabelece em suasExperincias aes corrosivas sobre os espaos onde expe.A primeira delas, feita no ano de 1987 na Galeria do CentroEmpresarial no Rio de Janeiro, prope uma ao sobre oespao expositivo subvertendo as foras do lugar ocupadoe da prpria obra de arte. Perfura as paredes com umachave de fenda, prendendo outros materiais a elas, rasgatrechos inteiros, expondo fissuras e sujeira. Repete suainciso sobre as paredes da mesma galeria em 1989, emsua Experincia n 2.

    4 As novas vanguardas diferem em aspectos bsicos das tendncias do incio do sculo. smudanas na recepo, tendo-se em vista a especializao do mercado, agora determinantena produo artstica, correspondem transformaes nas expectativas dos artistas quanto eficcia de suas aes. (...) O confronto com o mercado atinge duramente a relao com osartistas com o circuito e com o pblico. Entre a integrao e a marginalidade relativamenteao sistema de arte, os seus projetos passam, forosamente ou de bom grado, a supor algumaao do pblico no horizonte da produo artstica. O consumo dos resultados de suasatividades obras, eventos, objetos, experimentos -, assim como as reaes do pblicofrente a tais manifestaes, tornam-se instrutivas para o prosseguimento dos projetos,propondo uma reflexo que, ato contnuo, introjetada na produo. FAVARETTO, Celso,A inveno de Hlio Oiticica, So Paulo: Edusp, 2000, p. 21.5 Este termo bastante burilado pela pesquisa de PHILLIPS, Patricia, Public Constructions. InLACE, Suzanne (ed), Mapping the Terrain, Seattle: Bay Press, 1995, pp. 60-61, ou ainda JACOB,Mary Jane, Conversations at the castle, Massachussets: MIT Press, 1998, p. 55, dentre outrosautores.

  • 7Nas duas verses, procura reiterar o princpio de quea parede de uma sala expositiva pode ser vista como aprpria obra ao invs de seu suporte de apresentao. Em1991, realiza no Espao Cultural Sergio Porto (RJ) aExperincia n5 e em 1999 a Experincia n16 na qualacrescenta varais com carne de Charque s incises feitasnas paredes do espao do Torreo, em Porto Alegre.

    Todas as Experincias se constituem pela passagemnada sutil do artista por esses lugares e sua agudadisplicncia para com o sistema de valores mercadolgicospresumidos para tais espaos. Contudo, alm das marcasdessa esttica anti-convencional, orientada pelodesregramento, pela agressividade, ironia e sensoescatolgico, as Experincias indicam tambm uma aoque, apesar de elaborada no interior de salas de exposio,induz sua desmaterializao.

    Quando torna a parede objeto e no suporte para aarte, Barrio modifica as relaes de percepo doespectador dentro desse espao, revelando outraorganizao estrutural para esses trechos da edificao. Arelao que Barrio cria com tais aes acaba por desordenaros limites internos e externos do espao, consolidando aidia da passagem como um dos ndices importantes desua prxis.6

    Ao lado de suas Experincias, ganham a mesmaabordagem projetos que intitula de Situaes. Nelas o artista

    6 A experincia esttica de Barrio cria uma zona prpria de ao, eqidistante derepresentaes estabelecidas. Em sua obra a nova articulao reflexivo/prtica produz umaruptura das unidades oficiais do volume/espao/tempo, via corpo/esprito/objeto. (...)Quando Barrio atende ao interior latente e invisvel da matria, para que este se manifeste a expresso a inscrio de uma fora -, o gesto tambm experimenta foras em movimento,formas em formao. (...) Neste sentido, toda a atividade do artista est prxima de umafenomenologia, porque so vrias as foras e as microoperaes que entram sempre emjogo. Estamos mais perto da produo de um acontecimento esttico que de uma obra strictosensu, na qual a reputada e unvoca conscincia se v multiplicada: com Barrio temosconscincias. Quando o mesmo artista fala de interior/exterior em seus textos, trata-se de

  • 8executa aes performticas nos espaos abertos e urbanos,propondo agudos questionamentos para a crtica, avalorao do mercado artstico e o cotidiano da liberdadecriativa.

    A mais famosa Situao ocorre em 1969, desdobrando-se no ano de 1970. Contemplando trs partes, a SituaoT/T, 1 admitida como proposta seminal da obra desseartista. Na primeira parte, o artista constri trouxas comcimento, borracha, carne e tecidos as quais abandonapropositadamente nos jardins do Museu de Arte Modernado Rio de Janeiro (1969). Depois disso, integrando o eventoDo Corpo Terra, organizado por Frederico Morais, constrimais 14 trouxas, acrescentando frmula diferentesmateriais orgnicos como sangue, ossos, barro. Depositaessas trouxas na manh do dia 20 de abril de 1970,espalhando-as num ribeiro-esgoto que beirava o ParqueMunicipal. Por fim, a terceira parte desse trabalhoconstitua-se pela distribuio, sobre um banco de pedras,na beira desse mesmo ribeiro, de 60 rolos de papelhiginico.7

    Todas as fases, em especial as duas primeiras, soacompanhadas de grande repercusso pblica. No s ostranseuntes desses locais se assustam com as trouxasensangentadas que surgem nesses lugares como tambma polcia posiciona-se em alerta. O cheiro de carneapodrecida e o aspecto do sangue, que manchava asuperfcie das trouxas, acabam por gerar preocupaes deordem ideolgica e poltica relacionadas quele momento

    advinhar qual a passagem que articula esses estados. NAVAS, Adolfo Montejo, Aconstelao Artur Barrio (inscries). In CANONGIA, Ligia (org), Artur Barrio, So Paulo:Modo, 2002, pp. 211-212.7 A descrio minuciosa de cada projeto/situao acompanhada de registros fotogrficose de textos que apontam os encadeamentos tomados por ele e podem ser recuperados pormeio de variadas fontes de pesquisa. Dentre elas, o livro organizado por Ligia Canongiademonstra grande acuidade e clareza de pesquisa.

  • 9histrico. O final da dcada de 1960 tomado pelo tom daditadura militar e suas investidas contra a liberdade e osdireitos humanos. Nenhum dos pblicos estava acostumadoou mesmo fora avisado do projeto. Os textos descritivos eas tomadas fotogrficas feitas por Barrio para todo oprocesso da Situao T/T,1 denotam a expresso deinsegurana e medo nos rostos das pessoas que assistiamao resultado daquela ao do artista.

    Ligia Canongia, dentre outros autores que estudam otrabalho de Barrio, menciona a atribuio ideolgicacontestatria da ditadura militar, incorporada, logo de incio,ao trabalho Situao T/T,1. Contudo, a expanso crtica dotrabalho almejava, antes do que o ataque ao regime polticovigente, o ataque certeiro ao regime poltico das artes.8

    Outras Situaes seguem-se a essa, organizadas com osmesmos materiais em decomposio ou de baixo valormercadolgico. Sacos de lixo, peixes mortos, pedras, pedaosde pau encontrados ao acaso, papelo, carne, so osdispositivos matricos que indicam sua inciso nos trajetospblicos abertos e cotidianos dos grandes centros urbanosque habitava. Dentre tantos fluxos e elementos emmetamorfose, a nica permanncia fixa dada pela presenado artista.9 Com isso, eleva-se a condio de efemeridadedo trabalho artstico a um grau somente praticado com maisnfase nas duas ltimas dcadas.

    8 Na poca, as trouxas ensangentadas foram interpretadas como uma manifestao contraa ditadura militar e seu cerceamento ideolgico, o que no deixava de fazer sentido, mas oalcance poltico do trabalho era bem mais extenso, incluindo a poltica da arte, suas formasde apresentao, circulao, difuso e institucionalizao, formas que Barrio sempre tentoudesviar dos rumos regulares para trilhas outras, extraordinrias. Ver CANONGIA, Ligia,op. cit., pp. 196-197.9 Miwon Kwon uma pesquisadora da transformao dos site specifics e da intensificao dapresentificao do artista como garantia da obra. Dentre os variados aspectos que ela discute,citamos: (...) the site is now structured (inter)textually rather than spacially, and its model isnot a map but an itinerary, a fragmentary sequence of events and actions through spaces,that is, a nomadic narrative whose path is articulated by a passage of the artist. Ver KWON,

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    No projeto Deflagramento de Situaes sobre Ruas,realizado tambm no ano de 1970, Barrio distribui 500sacos plsticos de lixo contendo sangue, pedaos de unhas,restos de comida, papel higinico e toda sorte de materiaisdescartados e cotidianos. Pretendia aqui interferir nocotidiano das pessoas, tornando-as atores que tambmexecutam o trabalho. O artista relata essa inteno no textode acompanhamento dos registros fotogrficos do projeto:

    OBJETIVO: FRAGMENTAO DO COTIDIANO EMFUNO DO TRANSEUNTE. (...) a ttica usada foi aseguinte:..avano a p por uma rua em meio aos transeuntescarregando um saco (como usados para farinha 60 kg) repleto deobjetos deflagradores e, quando chego ao local determinado,despejo-o em plena via pblica, continuando a caminhar; logo apsCsar Carneiro registra a reao dos passantes, etc, (...) numa dasintervenes, numa rua da Tijuca, um transeunte se interessouvivamente pelos sacos (objetos deflagradores) e pediu-meperguntando o que representavam (...) na praa General Osrio,uma mulher me ofereceu um sanduche.10

    O procedimento de trabalho de Barrio gira todo otempo por entre as convenes do valor atribudo Arte.Seus interlocutores mais freqentes so os annimostranseuntes e as proximidades com museus tanto quantoos crticos ou as instituies consolidadas11.

    Em vrias

    Situaes os espaos da fachada do MAM-RJ so tomadoscomo ponto de fechamento ou abertura para seustrabalhos.

    Na escolha dos materiais, na composio visual queelabora, no tempo e formato das aes/intervenes que

    10 CANONGIA, Ligia, op. cit., p. 26.11 Barrio coloca que Portanto, esses trabalhos, no momento em que so colocados empraas, ruas, etc, automaticamente tornam-se independentes, sendo que o autor inicial (EU)nada mais tem a fazer no caso, passando esse compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho, isto : ...os pedestres, etc. Depoimento do artista publicado originalmenteno catlogo do Panorama do MAM SP, 2001] Apud Idem, p. 203.

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    promove, organiza uma conspirao contra um padroelitista de arte.

    A ativao do pblico, o direcionamento para a rua evazios urbanos, o uso de materiais ou espaosdesvalorizados renem os elementos da estratgiaelaborada por ele para fundar as etapas de um processoradical de dissidncia da instituio e do cotidiano.

    Recusando a idia tradicional da arte-mercadoria,organizada a partir da eleio de materiais e linguagensconsiderados efetivos nos trabalhos artsticos, Barrioafasta-se de todos os padres consagnados, mantendocomo um de seus focos principais o ataque s instituies, sua fragilidade perante a atualizao dos dispositivos queregulam a arte daquele momento.12

    Mesmo quando o intento a busca por uma leituraorganizada de sua produo dentro das vertentes artsticasligadas ao meio urbano, o artista surpreende com umposicionamento movedio. Elabora seus trabalhos numinterstcio entre a Arte Pblica Atual e a ArteUrbana,13 atingindo um pblico predominantemente em

    12 A obra de Artur Barrio constitui, na sua singularidade radical, um caso muito particulardo modo como a arte pode renunciar sua objectualidade, numa crtica particular das suascondies de produo, circulao e consumo na sociedade contempornea. Barrio noproduz obras de arte, antes suscita situaes nas quais constri um discurso pessoal emque se apropria do real, reconstituindo-o potica e politicamente nos resduos desse mesmoreal que evidencia e que nos so freqentemente ocultados pela domesticao social dogosto e pela auto legitimao social do objeto artstico. Os seus projetos so constitudos porsituaes em que o artista utiliza materiais precrios e perecveis, muitas vezes orgnicos,que impossibilitam a sua reapropriao por parte de um sistema da arte ainda comprometidocom a circulao feiticista do objecto ou do documento. FERNANDES, Joo, ArturBarrio: Registros. In BARRIO, Artur. Registro,. Porto: Fundao Serralves, 2000, pp. 16-19.Disponvel no site do Ita Cultural: http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=Detalhe&CD_Verbete=506.Acessado em 10/01/2005.13 Estabelecendo contingncias efmeras ou permanentes, os projetos de arte inseridos nomeio urbano vo se tornando mais complexos nas ltimas dcadas demandando assim umanecessria reorganizao das nomenclaturas que se apresentavam at ento condicionadasgenericamente ao termo Arte Pblica. As severas restries para com o sentido pblicocontido nesse termo, raramente executado pela prtica dos projetos, so percebidas pelos

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    trnsito, cujas especificidades como grupo ouconhecimento esttico ele apenas pressupe.

    Pretende suscitar-lhes uma experincia esttica comoquem almeja desvencilhar-se do fator de banalizaodecorrente do cotidiano. Torna-os assim espectadores dosquestionamentos e de suas investigaes acerca da prpriaarte, buscando nada menos que fazer arte. No se devemconfundir suas propostas criativas com intenes defomento ou educao artstica para o povo. As reaes,frases e depoimentos coletados a partir desse encontrocom o pblico nutrem o escopo criativo dos prximostrabalhos em sua contnua busca por uma expanso dacriao e fruio esttica, sem que o pblico sejapressuposto como condicionante.14

    curadores, crticos, pelos prprios artistas e, em alguns casos, pelo pblico envolvido. Essaquesto movimenta as discusses sobre o uso do espao urbano, sobre a validade daqueleobjeto da arte demandando a ampliao de seu discurso. As diferentes abordagens, alcancese conseqncias estticas presentes nos formatos adotados pelos projetos inseridos no meiourbano permitem o seu estudo atravs de, pelo menos, trs faces distintas, a saber: 1 pelaatualizao das prticas que recebem o ttulo de Arte Pblica que somente a partir dos anos80 reconfiguram-se sob o termo Nova Arte Pblica; 2 pelo vis auto-referente dos valoresestticos para a sua construo no espao aberto que lhe confere o ttulo de Arte Urbana; 3 pelo vis de sua crescente fluidez e volatilidade com os formatos efmeros e estetizadosda Interveno Artstica no Meio Urbano. De forma panormica podemos entender que asabordagens mais convencionais, reconhecidas pelo ttulo de Arte Pblica, esto ligadas aosapelos e especificidades locais da comunidade em que atua o artista e seu trabalho. Poroutro lado, as duas outras categorias atualizam esse primeiro foco das aes sobre o territriourbano tomando a auto-referncia do projeto artstico contemporneo como seu princpiomotor. Considerando as mutaes sofridas pelos grandes centros urbanos e a multiplicidadedas aes virtuais, efmeras, permanentes, de stios especficos ou programticos ao longode um eixo pelo planeta, constituem-se projetos que permitem a atualizao desse discursoatravs de termos mais apropriados ao seu objetivo tais como Arte Urbana ou Formas deInterveno Artstica no meio Urbano. Os aspectos mais aprofundados dessa dinmica fazemparte de minha pesquisa do mestrado. Ver FUREGATTI, Sylvia, Arte no espao Urbano:contribuies de Richard Serra e Christo Javacheff na formao do discurso da Arte Pblica Atual,Dissertao de Mestrado: FAU USP, 2002.14 H, portanto, no somente na produo de Barrio, como na de outros contemporneos,um deslocamento de eixo: suas intervenes deixaram de centrar-se na criao de objetosformalizados (quadros, esculturas, gravuras, etc.) em nome da explorao da potncia sensvele instantnea da interveno propriamente dita. (...) Do ponto de vista histrico, a incidnciado foco esttico na atitude artstica e no mais somente nos seus resultados artesanais,implicou, pelo menos desde os ready-mades de Marcel Duchamp (circa 1913), uma nova

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    O interstcio anunciado se d, portanto, peladespreocupao do artista com a possvel seleo de umgrupo especfico, preterido em nome de seu interesse pelacriao desvinculada dos padres oficiais da arte. Isso nosleva a considerar que o pblico conforma suas proposiesartsticas atuando da mesma maneira que os demaiselementos da paisagem por ele escolhida, cumprindo assimum papel codificador do cotidiano ao qual o trabalho secontrape.

    A incluso do pblico tanto quanto a relativa distnciade suas reaes como fontes de determinao para projetosfuturos demonstram aspectos comuns no horizontecriativo da dcada de 1960 e 1970 no Brasil e confirmam,mais atualmente, o alto grau de oscilao nas proposiesprticas e textuais de Barrio.15

    possibilidade de conceber e realizar a criao. Legitimados por um poder autoral lentamentetecido ao longo dos ltimos quinhentos anos, muitos artistas contemporneos, na contramoda atual concretude da obra de arte, concentram seu trabalho na investigao da prpriaarte, do seu circuito social e da sua potncia na subjetividade da inveno. COCCHIARALE,Fernando, Arte em trnsito: do objeto ao sujeito, In CANONGIA, Ligia, op. cit., p. 240.15 Na entrevista concedida a Paula Azugaray, Barrio faz consideraes polmicas sobre suarelao com o pblico: Artur Barrio fala como escreve, fazendo uso prolongado dereticncias O aproveitamento do intervalo entre as palavras uma forma a mais de atuarnos espaos intermedirios da realidade. O que procuro o contato com a realidade emsua totalidade, do tudo que renegado, do tudo que posto de lado, escreveu ele em1978, referindo-se o uso de materiais orgnicos, como papel higinico, sangue e urina.(...)Com a mesma insubordinao aos limites, que nos anos 60 e 70 se exprimia emintervenes diretas no espao urbano, o artista vem atuando nas brechas dos espaosinstitucionais. (...)No incio de outubro, Barrio terminou a execuo de sua Situao/Trabalho: de lugar nenhum, obra integrante da 4 Bienal de Artes Visuais do Mercosul,que reflete a condio transitria do artista. Realizada com farelo de arroz (ensacado nacidade gacha de Arroio dos Ratos), esta ltima Situao/Trabalho de Barrio evocacom textos escritos nas paredes a volta dos ratos e renega a participao do pblico naobra, por meio da frase o espectador no faz a obra. Estou criando um racha com atradio milenar pitagrica, que diz que a obra est no centro e o espectador est aoredor e que, portanto, a obra feita a partir da observao do espectador, afirma. Adeclarao coloca um rudo dentro da trajetria de um artista que j dividiu, textualmente,a autoria de seu trabalho com o espectador. Ver: AZUGARAY, Paula, A insubordinaode Artur Barrio, Revista Trpico on line. Sesso Em Obras, 30 de outubro de 2003. Disponvel em:< http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl >. Acessado em: 10 de janeiro de2005.

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    Partindo da idia de que o experimentalismo no Brasildas dcadas de 1960 e 1970 significou o afastamento doscdigos e expectativas formais at ento salvaguardadaspelos museus e demais agentes do circuito artstico,16 ondetambm se inclui a resposta e participao pblica, pode-se levantar a circunstncia do interesse desses artistas poruma arte de cunho urbano, extra-muros, tal qual a praticadapor Barrio, sendo conduzida por elementos de banalizaoe de liberdade extremada presumveis, naquele momentohistrico, para a configurao de um estado de arte queidealizava sua independncia. Experimentao emarginalidade so, nessa medida, ndices importantes paraa elaborao dessa prtica artstica no Brasil.

    Hlio Oiticica um dos artistas decisivos para essedirecionamento criativo do perodo. Em seu trajeto, quese inicia com a pintura e as pesquisas do concretismo eneoconcretismo chegando somente mais tarde ao dadoespacializado, no fixa o termo Experincia, mas expandeseus sentidos por meio do termo Experimental. Transcritoem seus cadernos, presente nos seus textos editados,repetido nas pesquisas mais atuais feitas sobre sua obra oexperimental tem importncia central em seu processo decriao. Um de seus textos importantes nesse aspectointitula-se Experimentar o Experimental e foi escrito em NovaIorque no ano de 1972. Sintetiza sua observao sobreesse procedimento da arte de vanguarda, admitindo a

    16 Para Sheila Cabo O experimental que para os neoconcretos significa o rompimento da artecom a sociedade que a estranha e, ao mesmo tempo, a busca de uma identidade na ruptura deseus estatutos, tem, para artistas como Ligia Clark e Helio Oiticica, como foi dito antes, avivncia como condio inerente a uma nova proposio que desejam aberta ao inesperado.(...) O experimental da dcada de 70 no Brasil significa estar margem de qualquer instituio.Ser marginal ento uma recusa do papel institucional da arte (circuito) e tambm uma recusade si mesmo, que se d na recusa dos materiais institudos para a arte.O aspecto marginal dotrabalho de Barrio se d nessa mesma ordem, marginal-experimental. Ver CABO, Sheila,Barrio: A morte da arte como totalidade. In BASBAUM, Ricardo (org), Arte ContemporneaBrasileira, Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 104.

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    necessidade de uma atitude espacializada contra asdelimitaes da pintura, da escultura tanto quanto daprpria arte, reconhecidas at ento.

    Neste texto coloca que a

    sentena de morte para a pintura comeou quando o processo deassumir o experimental comeou. Conceitos de pintura, escultura,obra (de arte) acabada, display, contemplao, linearidadedesintegraram-se simultaneamente.17

    D assim a dimenso da conscincia admitida para ocaminho irreversvel de desmaterializao do objetoartstico que se seguiria internacionalmente naquelasdcadas em diante.

    Nos trabalhos intitulados de Experimentao, Oiticicaemprega o termo Experincia sempre acompanhado poroutras terminologias truncadas, entre palavras de projetosou conceitos que lhe interessavam.18 O Parangol um dessesexemplos. Termo construdo a partir da ateno de Oiticicapara com a criatividade e o poder de inveno popular19,

    17 Os cadernos escritos a mo ou mesmo os textos datilografados de HO esto disponveis nosite do Ita Cultural no projeto virtual chamado Programa Hlio Oiticica, disponvel noendereo < http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2008 >. O trecho acimafoi retirado do arquivo virtual do Texto de Hlio Oiticica, Experimentar o Experimental,datilografado, p. 01, NY, 22 de maro de 1972.18 Celso Favaretto, ajudado pelo prprio texto de Oiticica, acima citado, cuida para que no seinterprete a idia do experimental vivenciado por esse artista de modo limitante. Coloca queno perodo em que Oiticica vive em Nova Iorque passa a viver um estado de inveno:Desintegrada a pintura e encerrados os movimentos de vanguarda, Oiticica vive o puro estadode inveno; assume o experimental como exerccio pleno da liberdade, pois a palavraexperimental apropriada, no para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgadoposteriormente em termos de sucesso ou de fracasso, mas como um ato cujo resultado desconhecido. FAVARETTO, Celso, op. cit., p. 205.19 Isso eu descobri na rua, essa palavra mgica. Porque eu trabalhava no Museu Nacional daQuinta, com meu pai, fazendo bibliografia. Um dia, eu estava indo de nibus e na Praa daBandeira havia um mendigo que fez assim uma espcie de coisa mais linda do mundo: umaespcie de construo. No dia seguinte j havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas demadeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vrtices de retngulos nocho. Era um terreno baldio, com um matinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou

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    fonte inesgotvel para a constituio hbrida de sua obra,o parangol exprimia a idia da interao entre corpo eambiente. A dinmica estabelecida nesse trabalho eraexpressa principalmente pelas potencialidades entre cor eestrutura que surgem como preocupaes estticas centraisem seus trabalhos do perodo Neoconcreto.

    Os parangols so considerados por Oiticica comoexpanso espao-temporal dos blides,20 expandidos parauma nova configurao: so obras no espao ambiental;arte ambiental que poderia ou no chegar a uma arquiteturacaracterstica.21 Expressavam a multiplicidade possvel daexperincia: a experincia da pessoa que veste, para a pessoaque est fora, vendo a outra se vestir, ou das que vestemsimultaneamente as coisas, so experincias simultneas,so multiexperincias.22

    A partir de ento, direciona sua ateno para o corpoe o espao, criando as proposies de seu programaambiental para o qual aplica o termo antiarte. Essacombinao, derivada de seu entendimento do campo defora das cores (Neoconcretismo) e da espacializao daobra de arte (Blides), sugere a valorizao da experinciacomportamental ao invs da experincia esttica.

    Nesse ponto, seu percurso criativo prope adescentralizao da arte em favor da vivnciaexperimentada pelo indivduo de um modo que no o

    as paredes feitas de fio de barbante de cima para baixo. Bem feitssimo. E havia um pedao deaniagem pregado num desses barbantes, que dizia: aqui .... e a nica coisa que eu entendi, queestava escrito, era a palavra Parangol. A eu disse: essa a palavra. Entrevista de HlioOiticica a Jorge Guinle Filho. Apud FAVARETTO, Celso, op. cit., p. 117.20 Os blides so desenvolvidos por Oiticica como objetos que se constituem da imanncia dacor. J indicam seu interesse pelos valores tridimensionais e espacializados. Walter Zanini osdefine como caixas de madeira pintada ou transparente revelando pigmentos contidos (que seengavetam), exprimindo uma manifestao da cor no espao. RIBEMBOIM, Ricardo (apres),Tridimensionalidade, So Paulo: Ita Cultural, 1997, p. 79.21 FAVARETTO, Celso, op. cit., p. 106.22 Entrevista de Hlio Oiticica a Ivan Cardoso. Apud Idem, p. 107.

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    configura nem como espectador esttico, nem comoparticipativo. Considera a partir daqui que essa relaotambm precisa ser revista. Dessa forma, pulveriza aimportncia do fazer artstico e dos cdigos que oconstroem, abandonando a exclusividade do objeto ou aatuao do espectador diante dele para eleger a experinciae a vivncia como os fatores relevantes na conflunciaobjeto-obra/ambiente/espectador-participante.23

    Entre os anos de 1960 e 1963 elabora as proposiesque intitula de Ncleos e Penetrveis. Ambos buscamcontinuar sua investigao das relaes existentes entre aestrutura-cor e a ativao do espectador. Contudo, guardamuma diferenciao importante quanto ao seu alcance epertena territorial. Os Ncleos so apresentados numespao interno que termina por delimitar-se pela prpriaao de seu participante. Interrompido ou estimulado visuale fisicamente, o participante da experincia dos Ncleos sedesloca por entre um labirinto de placas lisas coloridas,suspensas por fios a partir do teto.

    Os Penetrveis ampliam essa disposio, misturando-se paisagem externa urbana de tal forma que Oiticicapassa a demonstrar preocupaes prximas ao contextoda arte de site specific.24 Ao inseri-las na paisagem, preocupa-se com a possvel gratuidade de sua localizao. Contudo,ao contrrio das premissas praticadas internacionalmente

    23 Celso Favaretto explica que a antiarte ambiental requer processos rigorosos de composio:as proposies para a participao supem experincias de cor, estrutura, dana, palavra,procedimentos conceituais, estratgias de sensibilizao dos protagonistas e viso crtica naidentificao de praticas culturais com poder de transgresso. A antiarte ambiental ametamorfose do sentido de construo, extenso do desenvolvimento nuclear : o que pulsanesse novo espao a vivncia, articulando os recursos liberados pelas experincias de vanguardaa vivencias populares e mitologias individuais.Prope-se como investigao do cotidiano eno como diluio da arte no cotidiano. O experimental sintetiza essa posio, distanciando-ade uma nova esttica da antiarte. Idem, p. 125.24 A traduo literal para o portugus coloca o site specific como obra de stio especfico, masexistem ainda outras terminologias para a mesma situao. Armin Zweite criou outra possvel

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    nesse tipo de projeto, Oiticica busca integrar essa noode localizao garantia da vivncia dos Penetrveis napaisagem urbana. Parece temer uma espcie de sacralizaodessa estrutura que possa desviar a troca de foras com omeio. Prefere a experimentao, que d sentido suarealizao, ao privilgio puramente esttico que, em suaspalavras, poderia tornar os Penetrveis espcies deesculturas.25

    Estendendo ainda mais o campo de ao e reao doPenetrvel, Oiticica volatiliza totalmente qualquer chancede representao dos objetos que constituem essasestruturas dirigindo-se agora para a construo de umaambientao que chama de suprassensorial, na qual evoca,provocativamente, a construo atualizada do imaginrioda cultura nacional.

    Cria o projeto Tropiclia, com o qual integra a mostraNova Objetividade Brasileira no MAM-RJ em abril de 1967, apartir de dois penetrveis: PN2 (1966) e PN3 (1966-67)estabelecendo-os como uma proposio tropical, primitiva eambiental a ser conclamada como prtica cultural eticamente

    nomenclatura para determinar esse tipo de produo artstica ligada a lugares especficos, queele nomeia de Spacially related sculptures, ou seja, esculturas espacialmente relacionadas, termoque conduz mesma expressividade da obra e do lugar determinados, sem os quais a experinciaesttica no pode acontecer. O que diferencia a terminologia de Zweite a presena indicadadessa dependncia entre objeto e espao envolvente, acrescentando a noo da realizao deuma interveno hbrida e definitiva. ZWEITE, Armin, Evidence and experience of self.Some spatially related scupltures by Richard Serra. In GUSE, Ernest Gerard (ed), RichardSerra, Rizzoli Intl Pubns, 1988, pp. 8-25.25 No penetrvel o fato do espao ser livre, aberto, pois que a obra se d nele, implica umaviso e posio diferentes do que seja a obra. Um escultor, p. ex., tende a isolar sua obra numsocle, no por razes simplesmente prticas, mas pelo prprio sentido de espao de sua obra; ha uma necessidade de isola-la. No penetravel o espao ambiental o penetra e envolve nums tempo. Mas, fora da, onde situar o penetrvel? (...) Que sentido teria atirar um penetrvelnum lugar qualquer, mesmo numa praa pblica, sem procurar qualquer espcie de integraoe preparao para contrapor ao seu sentido unitrio? (...) Que adiantaria possuir a obra unidadese esta unidade fosse largada merc de um local onde no s no coubesse como idia, assimcomo no houvesse a possibilidade de sua plena vivncia e compreenso? Hlio Oiticica (apartir dos textos reunidos em Aspiro ao Grande Labirinto) Apud FAVARETTO, Celso, op. cit., p.76.

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    brasileira.26 Tropiclia resume as experincias de seu autorno formato de um ambiente que uma mistura dediferentes propostas sensoriais.

    Dessa forma, aproxima-se do inconformismo estticoe tico de Barrio ao tambm questionar, com esse projeto,a mercantilizao do objeto e das imagens no circuito oficialda arte. Oiticica, assim como Barrio, busca um caminhode desestetizao dos objetos que contemplam seusprojetos artsticos, propondo no seu lugar o valor davivncia e da experincia. Partindo dessa mesma condioelabora o conceito de Probjeto 27, Apocalipoptese 28 (1968); eo projeto den que determina a chamada ExperinciaWhitechapeliana que realiza em Londres (1969), num dosmomentos mais radicais de seu trajeto criativoexperimental.29 Vrios outros projetos se seguem dentreos perodos em que permanece em Nova Iorque ou navolta ao Brasil. Todos guardam em comum questes de

    26 Tropiclia um labirinto feito de dois Penetrveis, PN2 (1966) Pureza um Mito e PN3 (1966-1967) Imagtico, - plantas, areias, araras, poemas-objeto, capas de Parangol, aparelho de TV. uma cena que mistura o tropical (primitivo, mgico, popular) com o tecnolgico (mensagens eimagens), proporcionando experincias visuais, tcteis, sonoras, assim como brincadeiras ecaminhadas: ludismo. Penetrando no ambiente, o participante caminha sobre a areia e brita,topa com poemas por entre folhagens, brinca com araras, sente o cheiro forte de razes (...) Nofim do labirinto h um aparelho de TV permanentemente ligado no escuro; as imagens absorvemo participante na sucesso informativa global. (...) um projeto especfico de vanguarda, quese diferencia das tendncias internacionais (nas quais estava boa parte dos artistas brasileiros)(...) [pretendendo a] constituio de uma linguagem moderna, que no distingue o nacional dointernacional. (...) [Oiticica contribui, assim, com o rompimento dos] debates quemonopolizavam as prticas artsticas e culturais [brasileiras daquele momento]. Idem, pp. 138,142 e 143.27 Probjeto designa aes, que se desenvolvem em lugares abertos ou em receptculos (camas,cabines, ninhos, tendas), propostas como espao para transformaes, vivncias. (...) [Seuconceito] aplica-se a experincias em que o objeto no o alvo participativo (...) [nessas]experincias a participao a prpria criao. Idem, p. 177.28 Manifestao realizada no Aterro, fechando o evento Um ms de criao, promovido porFrederico Morais (julho de 1968). (...) consistiu numa multiplicidade de acontecimentossimultneos e descontnuos, com a participao de artistas e pblico (...) Idem, p. 179.29 O den um espao de circulaes; nele o participante perambula por reas delimitadaspor cercas de madeira pintadas de laranja e amarelo luminosos, contendo palha e areia (sodois grandes Blides); entra em tendas e penetrveis, onde experimenta sensaes diversificadas(tenda Caetano-Gil, com msica tropicalista tocando permanentemente; cabines Cannabiana

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    deambulao, sensorialidade, ludismo e um sentido deprovocao crtica a qualquer tentativa de ordenao oulimitao do espectro cabvel para o universo da arte.

    O contedo abarcado pela obra desses trsimportantes representantes da arte brasileira, Flvio deCarvalho, Artur Barrio e Hlio Oiticica, traz tona umaprxis artstica que debocha de todos os cdigos pr-determinados para o sistema da arte praticada no perodo.Nesse direcionamento inquisitivo visam, antes de tudo,esgarar e ento reordenar os valores admitidos para aexperincia esttica. na forma de efetivao de suas idiasque acabam encontrando os dados espacial, extra-murose fundamentalmente urbano que passam a conformar seustrabalhos artsticos.

    Curiosamente, estabelecem essa atividade mantendouma relao conflitante com pelo menos dois dos agentesdo sistema artstico: o museu e o pblico. Ora estabelecemuma relao de cumplicidade gozando de certa legitimidadegerada pelos elementos tpicos de sua estrutura (impressode catlogos; registros fotogrficos, textuais, aquisio detrabalhos; convites curatoriais, etc), ora permitem-sedesvencilhar completamente de suas condicionantes paraestabelecer novas proposies criativas que tm como panode fundo a contraposio esttica das expectativasinstitucionais e mercadolgicas para com o objeto de arte.

    Os aspectos tecnolgicos mais atualizados ou maisdesenvolvidos presentes nos seus projetos artsticos so

    e Lolotiana, drogens onde se cheira; penetrvel Iemanj, em que se caminha pela gua, penetrvelUrsa, com cobertores; a rea aberta do mito, acarpetada) e, no final, os Ninhos (caixas demadeira, de 2 x 1 m, formando um retngulo com seis divises uniformes forradas de palha,areia, aniagem). Nos inmeros percursos propiciados pelo ambiente, o participante passa doaberto ao fechado, e vice-versa; da areia fria ao quente dos tapetes, da gua areia etc. Idem,pp.188-189.

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    pr-existentes s propostas mesmas. Esto localizados nasestruturas onde pretendem intervir: na edificao domuseu, no sistema de comunicao, no entorno urbano aser percorrido dentro do projeto. Os materiais empregadose os conceitos criados em sua obra posicionam-se de modoinversamente proporcional. Os materiais tendem a umuniverso bastante artesanal, comprovado pelo uso depranchas de madeira, tinta, tecidos, materiais orgnicos,dejetos, etc enquanto que os conceitos dessas propostasartsticas so sempre determinados por uma grandecomplexidade e sofisticao.

    Assim, possvel entender o encontro desses doisplos (material e infra-estrutura), estabelecendo-se pormeio da escolha da ao e da inciso sobre o j prontoassumido como estratgia criativa principal. Essa ,portanto, a porta de entrada para as preocupaespreliminares que se desenvolvem no Brasil em torno daconjuno arte e ambiente urbano.

    O valor da desmaterializao crescente do objetoartstico, importado das correntes estticas estrangeiras,colabora muito para que essa circunstncia seja adotadapor aqui. Por outro lado, apesar de habitarem centrosurbanos importantes no Brasil e de reunirem experinciasde estudo ou trabalho no exterior, os artistas queconstroem os primeiros projetos da passagem damodernidade para a contemporaneidade artstica brasileiratraam um caminho diferenciado de seus contemporneoseuropeus e norte-americanos que, desde meados dos anos1960, j empregam sofisticadas tecnologias para aconstituio de seus trabalhos extra-muros.

    Dispondo de relativa simplicidade de equipamentos,ferramentas ou estrutura de funcionamento em seus atelis(quando dispem desse espao), esses artistas no

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    demonstram manter proximidade com aparatos industriaisavanados e to pouco apontam para um interesse ounecessidade de acesso tecnologia de ponta para construirsuas propostas fundadas na experimentao.

    As preocupaes quanto construo de umpensamento e de uma prxis criativa incansavelmenterenovvel, bem como a adoo de uma postura ativa epoliticamente crtica, parece reger, com mais propriedade,o ensaio dessa vertente esttica contempornea nopanorama nacional.


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