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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor: João Cláudio Todorov Vice-Reitor: Sérgio Barroso de Assis Fonseca

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Conselho Editorial

Alexandre Lima Álvaro Tamayo Lombana Aryon Dall Igna Rodrigues Dourimar Nunes de Moura Emanuel Araújo (Presidente) Euridice Carvalho de Sardinha Ferro Lúcio Benedito Reno Salomon Mareei Auguste Dardenne Sylvia Ficher

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A Editora Universidade de Brasília, instituída pela Lei n9 3.998, de 15 de dezembro de 1961, tem como objetivo "editar obras científicas, técnicas e culturais, de nível universitário".

NORBERTO BOBBIO

T E O R I A

D O O R D E N A M E N T O

J U R Í D I C O

Apresentação:

Tercio Sampaio Ferraz Júnior

Tradução:

Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos Prof associada da Faculdade de Direito da USP

Revisão Técnica:

Cláudio De Cicco Prof. associado da Faculdade de Direito da USP

6* edição

EDITORA

BB UnB

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Direitos exclusivos para esta edição: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA SCS Quadra 02 BI. C N0 78 Edifício OK 70300-500 Brasília DF Fax:(061)225-5611

Título original: Teoria deWordinamento giuridico Copyright 1982 © by Editore G. Giappichelli

Nenhuma parte desta obra poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Impresso no Brasil

Equipe técnica:

Editoração: Ewandro Magalhães Júnior Flávio Gonçalves da Rocha Castro Regina Coeli Andrade Marques

Revisão de texto: Alba Rosa de Farias Falcão Elida Moraes de Oliveira Filho José G. de Arruda Filho

Capa: Francisco Régis

ISBN: 85-230-0276-6

Ficha catalográSca elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

Bobbio, Norberto B663t Teoria do ordenamento jurídico / Norberto Bobbio; apresentação

Tércio Sampaio Ferraz Júnior, trad. Maria Celeste C. J. Santos; rev. téc. Cláudio De Cicco. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 6* ed., 1995. 184 p.

340.11 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, apres. Santos, Maria Celeste C. J., trad.1 Claudio De Cicco, rev. téc.

Sumário

Apresentação 7

CAPÍTULO 1 — Da norma jurídica ao ordenamento ju­

rídico 19

1 . Novidade do problema do ordenamento 19

2. Ordenamento jurídico e definição do Direito 22

3. A nossa definição de Direito 27

4. Pluralidade de normas 31

5. Os problemas do ordenamento jurídico 34

CAPÍTULO 2 — A unidade do ordenamento jurídico 37

1. Fontes reconhecidas e fontes delegadas 37

2. Tipos de fontes e formação histórica do orde­

namento 41

3. As fontes do Direito 45

4 . Construção escalonada do ordenamento 48

5. Limites materiais e limites formais 53

6. A norma fundamental 58

7 . Direito e força 65

CAPÍTULO 3 — A coerência do ordenamento jurí­

dico 71

1. O ordenamento jurídico c o m o sistema 71

2 . Três significados de sistema 75

3 . As antinomias 81

4. Vários tipos de antinomias 86

5 . Critérios para a solução das antinomias 91

6. Insuficiência dos critérios 97

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6 NORBERTO BOBBIO

7. Conflito dos critérios 105 8. O dever da coerência 110

CAPÍTULO 4 — A completude do ordenamento jurí­dico 115

1. O problema das lacunas 115 2. O dogma da completude 119 3. A crítica da completude 122 4. O espaço jurídico vazio 127 5. A norma geral exclusiva 132 6. As lacunas ideológicas 139 7. Vários tipos de lacunas 143

8. Heterointegração e auto-integração 146 9. A analogia 150

1 0 . Os princípios gerais do Direito 156

CAPÍTULO 5 — As relações entre os ordenamentos ju­rídicos 161

1. A pluralidade dos ordenamentos 161 2 . Vários tipos de relação entre ordenamentos . 165 3 . Estado e ordenamentos menores 169 4. Relações temporais 173 5 . Relações espaciais 178 6. Relações materiais 180

APRESENTAÇÃO

O pensamento jurídico de Norberto Bobbio

Norberto Bobbio pertence a uma corrente jusfilosó-fica que se costuma chamar de "Escola Analítica" ou "Po­sitivismo Analítico". Suas posições , no entanto, são bas­tante matizadas e não é fácil incluí-lo nessa corrente.

Desde a década de 50, os escritos de Bobbio marcam um nítido programa de reformulação dos estudos do Di­reito, apertados que estavam numa polêmica tornada te­diosa e infecunda entre jusnaturalismo e positivismo. Bob­bio é um dos primeiros a voltar-se para a metodologia da Ciência do Direito em termos de uma análise lingüística.

Ao posicionar-se desse modo , Bobbio enfrentava uma crise que pairava sobre a Ciência Jurídica, tentando, nas pegadas de Kelsen, mas desvinculando-se dos pressupos­tos neokantianos, reelaborar um conceito de Ciência Jurí­dica capaz de conferir-lhe um estatuto próprio; dentro das ciências empíricas (mesmo porque o conhecimento jurí­dico não podia prescindir de recorrer aos fatos, ainda que elaborasse proposições sobre normas), o Direito parecia encontrar um lugar que, no entanto, não lhe conferia o es­tatuto próprio procurado. Assim, a partir dos anos 50, Bob­bio se direcionou decididamente para uma concepção de ciência c o m o "linguagem de rigor" e aí descobriu o cami­nho que procurava. Seus estudos de Teoria Geral do Di­reito foram marcados por essa preocupação e se desenvol­veram no sentido de buscar respostas para problemas que, então, preocupavam particularmente a teoria jurídica.

Os trabalhos de Bobbio sobre a temática jurídica são inúmeros. Em todos eles, mostra-se acima de tudo um ana-

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lista. E isso a ponto de, às vezes, influenciar o seu leitor não só pelo conteúdo, mas pelo estilo de trabalho. Leito­res de Bobbio, sentimo-nos, em muitas ocasiões, tentados a proceder a análises que, c o m o as suas, não culminam ne­cessariamente em sínteses, mas elucidam distinções capa­zes de aclarar os problemas. Essa influência que a leitura de Norberto Bobbio exerce sobre o seu leitor é marcante, haja vista a plêiade de juristas contemporâneos que, na Itália e em tantos outros países, seu pensamento produziu. E mui­tos deles absorvendo, às vezes, menos do conteúdo e muito mais do estilo.

Um estilo, contudo, difícil de ser executado, pois re­quer finura de espírito, rigor de linguagem, disciplina de pensamento e um formidável acúmulo de informações. E, neste conjunto, Norberto Bobbio é, certamente, insuperável.

Seus escritos, por isso, são todos, individualmente, pe­ças que se encaixam sob a forma de reflexões analíticas que o nosso autor executa c o m maestria, conduzindo o leitor, muitas vezes, não a soluções, mas a perplexidades.

É o caso de seu brilhante ensaio sobre as antinomias e que começa perguntando sobre qual a diferença entre o jurista e um chofer de caminhão quando respondem à pergunta: "Entre duas normas opostas, qual prevalece?", para terminar dizendo, em que pesem as sutis distinções do jurista, que ambos não saem da resposta simples e di­reta: "A mais justa!".

Na verdade, Norberto Bobbio, mesmo no âmbito de sua especialidade, jamais escreveu um tratado. Sequer for­mulou, de forma acabada e abrangente, uma Teoria Geral do Direito. A maior parte de seus livros são coletâneas de artigos"ou m e s m o compilações de cursos. No entanto, c o m o aponta Alfonso Ruiz (Contribución a la teoria dei derecho), justamente por isso seu pensamento guarda, a um só tempo, a finura da análise, o rigor terminológico e uma certa liberdade dos sistemas cerrados.

APRESENTAÇÃO 9

A maior parte de seus escritos sobre a problemática da cientificidade do Direito e sobre as mais importantes questões da Teoria Geral do Direito tem, certamente, um cunho positivista, nos quadros da Escola Analítica Italiana que ele ajudou a construir. Contudo, c o m o a estrutura de seus textos é mais problemática e até mais rapsódica do que sistemática, os resultados obtidos são sempre crí­ticos, no sentido de levar a reflexão adiante e não de ter­miná-la.

Não podendo ocupar-me, nesta exposição, do seu pen­samento jurídico na sua totalidade, gostaria, então, de apresentá-lo através de um tema relevante. Reporto-me, por isso, a suas investigações sobre a sanção, que, a meu ver, podem servir c o m o um dos pontos de orientação para o intérprete, no sentido de organizar, didaticamente, o pen­samento jurídico de Norberto Bobbio. Não que a sanção seja uma espécie de pedra angular, mas, se a tomamos co­mo um problema nuclear, a ordem das questões se estru­tura e torna-se possível concatenar as argumentações.

Em sua Teoria delia norma giuridica, Norberto Bob­bio, ao enfrentar a questão da definição do caráter jurídi­co da norma, após enumerar diversos argumentos, assina­la, no § 39, o que denomina de "um n o v o critério: a res­posta à violação".

O critério é de clara enunciação: se uma norma pres­creve o que deve ser e se o que deve ser não corresponde ao que é necessariamente, quando a ação real não corres­ponde à prevista, a norma é violada. Essa violação, que pode ser uma inobservância ou uma inexecução, exige uma res­posta. Assim, a sanção é definida c o m o um expediente atra­vés do qual se busca, num sistema normativo, salvaguar­dar a lei da erosão das ações contrárias. Ou, mais breve­mente, a sanção é a resposta à violação da norma, sendo que a sanção "jurídica" é a resposta externa e insti­tucionalizada.

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É óbvio que a sanção, nesta visão, ao referir-se à vio­lação da norma, não diz respeito à sua validade, mas à sua eficácia, pois é um expediente, diz Bobbio, para conseguir que as normas sejam menos violadas ou que as conseqüên­cias da violação sejam menos graves.

Ora, colocando-se a questão da sanção a nível da efi­cácia, surge, inevitavelmente, perante a reflexão, o proble­ma da função da sanção cominada pela norma, e, em con­seqüência, a questão complexa da relação entre ser e dever-ser, mais particularmente, entre força e direito. Preocupa­do em aprofundar a questão, Bobbio procura um m o d o que lhe permita evitar a dicotomia rígida entre ser e dever-ser, admitindo que o critério da sanção externa e institu­cionalizada está referido não a cada norma em particular, mas ao ordenamento c o m o um todo. Com isso, rechaça ele a idéia kelseniana de que o Direito seja um mero regu­lador da força, que seria seu conteúdo, admitindo-a c o m o um meio. Assumindo uma posição analítica, Bobbio acei­ta que, no escalonamento normativo, a força aparece ora como "sanção" de um direito "já estabelecido" e que "deve ser aplicado", ora c o m o "produção" de "um direito a ser criado". Tudo depende do ponto em que nos colocamos na pirâmide jurídica.

Numa certa fase de seu pensamento, a teoria de Bob­bio sobre a sanção nos permite entender os limites em que se delineia o seu projeto de uma Ciência Jurídica. Escolhe­mos, de propósito, a noção de sanção, porque ela é cen­tral para uma posição positivista que a princípio assumiu alguns dos mais importantes pressupostos da teoria pura do Direito de Kelsen. Com efeito, a reflexão sobre a san­ção nos mostra que, se de um lado é possível manter, com certa clareza, a teoria jurídica dentro das fronteiras do nor­mativo e das relações de validade, uma vez que as normas não valem por causa da sanção, de outro lado, a noção de sanção nos obriga a explicar o fenômeno da força e, em

APRESENTAÇÃO 11

conseqüência, a enfrentar a questão da dimensão fática den­tro da teoria jurídica.

Num texto escrito tempos depois, Norberto Bobbio, comentando, aliás, a posição de Kelsen sobre a teoria da Ciência do Direito e referindo-se ao empenho daquele au­tor, ao constituir as linhas mestras de sua Teoria Pura, em evitar que o pensamento jurídico enveredasse pelas sen­das da ideologia e da especulação sobre os "fins" do Di­reito, observa, no entanto, c o m acuidade, que uma das no­ções que Kelsen não consegue conceituar sem evitar uma "definição funcional" é justamente a de sanção, por sinal básica para a Teoria Pura, pois "as sanções são postas pe­lo ordenamento jurídico 'para obter' um dado comporta­mento humano que o legislador considera desejável" {Dalla struttura alia funzione, p. 71).

Em vista dessa observação, Norberto Bobbio se acha em condições de aprofundar não apenas o conceito de san­ção e de seu papel no Direito, não apenas de examinar com maior campo de visão a própria dimensão fática, mas tam­bém de apontar o destino da Ciência Jurídica neste final de século. E nisso Norberto Bobbio foi e continua sendo um mestre.

Com efeito, se desde Kelsen e, antes dele, c o m Jhe-ring, a teoria jurídica sempre encarou a sanção particular­mente como uma forma repressiva, isso não escondia a exis­tência das chamadas sanções positivas, que não eram pu­nições, mas recompensas. Isso sempre foi admitido na li­teratura jurídica e filosófica, mas, para o Direito, a relevância das sanções negativas obscurecia a importância das outras.

Na verdade, c o m o iria observar Bobbio em seus últi­mos escritos sobre o problema, a distinção entre sanções negativas e positivas e o relativo desconhecimento, para o Direito, das positivas, reproduzia, no fundo, uma con­cepção de sociedade típica do século XIX. Com efeito, a importância conferida, no mundo jurídico, à sanção nega-

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tiva reproduzia (caso de Jhering) a distinção hegeliana en­tre sociedade civil e Estado e a cisão entre a esfera de inte­resses econômicos e a de interesses políticos, entre a con­dição de burguês e a de cidadão, típica da sociedade in­dustrial do século passado. Em princípio, nessa concep­ção, o Estado assumia a função de custodiador da ordem pública e o Direito se resumia, particularmente, em nor­mas negativas (de proibição), c o m prevalência óbvia das sanções negativas.

Modernamente, no entanto, a própria transformação e o aumento de complexidade industrial vieram colocan­do as coisas em outro rumo. Não resta dúvida de que, ho­je, o Estado cresceu para além de sua função protetora-repressora, aparecendo até muito mais c o m o produtor de serviços de consumo social, regulamentador da econo­mia e produtor de mercadorias. Com isso, foi sendo mon­tado um complexo sistema normativo que lhe permi­te, de um lado, organizar sua própria máquina de serviços, de assistência e de produção de mercadorias, e, de outro, montar um imenso sistema de estímulos e subsídios. Ou seja, o Estado, hoje, substitui, ainda que parcialmente, por exemplo, o próprio mercado na coordenação da economia, tornando-se o centro da distribuição da renda, ao deter­minar preços, ao taxar, ao subsidiar.

Ora, nesse contexto , uma teoria jurídica da sanção, limitada ao papel das sanções negativas e, pois, ignorando o papel assistencial, regulador e empresarial do Estado, es­taria destinada a fechar-se num limbo, entendendo mal, porque entendendo limitadamente, a relação entre o Di­reito, o Estado e a sociedade.

Neste sentido, Bobbio promove nos seus últimos es­critos uma inflexão nova na concepção formalista tradicio­nal do Direito, redimensionando o que chama, então, de "função promocional" do ordenamento jurídico, na qual o aumento vertiginoso das chamadas normas de organiza-

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ção (aquelas c o m as quais o Estado regula sua própria ati­vidade assistencial, fiscalizadora e produtora) confere às "sanções positivas" um outro relevo.

Como era inevitável, a articulação analítica em que é tão hábil Norberto Bobbio o conduz também, dentro des­sa temática, a importantes distinções. Buscando a função promocional do ordenamento posto a serviço do Estado e da sociedade, ele começa a falar em técnicas de "enco­rajamento" e "desencorajamento" no uso das normas. Num qrdenamento marcadamente "repressivo", em que se en­cara o Estado particularmente em sua função de custodiar a ordem pública, diz Bobbio, são adotadas medidas dire­tas, c o m o fito de obter a conformidade c o m as prescri­ções normativas, mas também medidas "indiretas", no sen­tido de dificultar comportamentos não desejáveis. Ou se­ja, c o m acuidade, Bobbio percebe que, mesmo num or­denamento basicamente repressivo, também há lugar pa­ra medidas não necessariamente punitivas. Aqui se co lo­ca, no entanto, o passo seguinte de sua análise. Quando o ordenamento de função repressiva e protetora procura "provocar" certas condutas, atua sempre de uma forma negativa: prevalece a técnica do desencorajamento. Já o ordenamento promocional vai muito adiante, uma vez que, neste caso, a técnica típica é "positiva", isto é, o encoraja­mento de certas condutas que, para se produzirem, neces­sitam das sanções positivas também ditas premiais. No pri­meiro caso, na visão típica do século XIX, o ordenamento sempre procura tornar certas ações mais "penosas", tor­nando outras vantajosas a contrario sensu . No segundo caso, nos ordenamentos contemporâneos, observa-se, po­rém, o expediente da "facilitação" (por exemplo, uma sub­venção) e até do prêmio (por exemplo , uma isenção fis­cal) para promover as ações desejadas.

Note-se que, nestas alturas, a teoria da Ciência do Di­reito, necessariamente, deu um passo adiante, pois, em vez

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de limitar-se ao estudo e análise da sanção negativa e dos conceitos daí decorrentes (obrigação, delito), é forçada a uma nova ordem de considerações. Em primeiro lugar, a sanção não será mais apenas "ameaça", mas também "promessa".

Em segundo lugar, sendo também promessa (de faci­litar ou de premiar), inverte-se até mesmo a relação direi­to/dever em novas configurações extremamente importan­tes para a teoria jurídica, uma vez que, se a sanção é "amea­ça", a relação direito/dever vai do sancionador (direito) para o sancionado (dever), mas, se é promessa, do sancionado (direito) para o sancionador (dever de cumprir a promessa).

Os textos de Norberto Bobbio a propósito dessas no­vas configurações são ainda ensaios que, ao contrário dos anteriores sobre a sanção negativa, não têm c o m o pressu­por uma longa tradição que, c o m vantagem, situa e escla­rece os detalhes. Há, pois, questões abertas, que nos pro­põem algumas dificuldades que só reflexões posteriores po­derão esclarecer. Assim, por exemplo, Bobbio observa que, no uso de sanções positivas, c o m o se trata de comporta­mentos "permitidos", o agente é "livre" para fazer, isto é, é livre para valer-se de sua própria liberdade. A meu ver, isso cria a impressão de que, no uso das sanções positivas, o agente sancionador restringe sua própria força, uma vez que não ameaça, mas encoraja;' "embora", ao que parece, aqui se colocasse a importante questão de se saber se, no caso das técnicas de encorajamento, "a autonomia da von­tade não estaria sendo sutilmente escamoteada", implicando o reconhecimento de que o Estado c o m função promo­cional desenvolve formas de poder ainda mais amplas que o Estado protetor. Isto é, ao prometer, via subsídios, in­centivos e isenções, ele substitui, c o m o disse, o merca­do e a sociedade no m o d o de "controlar" (no sentido am­plo da palavra) o comportamento.

A Norberto Bobbio, na verdade, isso não passa des-

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percebido, mesmo porque, caracterizando o Direito c o m o instrumento de controle social em termos de controle coa-tivo, nos moldes tradicionais, observa, contudo, o apare­cimento do controle persuasivo e premonitivo. Se no pri­meiro (coativo) a ênfase está na repressão e na prevenção de condutas, no segundo (persuasivo) a ênfase está no con­dicionamento da ação desejada e no terceiro (premoniti­vo) até mesmo no processo de evitar que conflitos pos­sam sequer ocorrer, c o m o que, a meu ver, a questão da liberdade se põe de forma radical, pois, neste último caso, o Estado ou a sociedade se antepõem ao uso da liberdade.

Na verdade, em escritos posteriores, Bobbio vai in­clusive observar que ao deslocamento produzido na teo­ria da sanção pelo advento do Estado promocional devem ser acrescentados o aumento e o aperfeiçoamento dos meios de socialização e de condicionamentos coletivos nas sociedades tecnocráticas, bem c o m o o aumento de impor­tância das medidas preventivas sobre as repressivas e o da distribuição de recursos por parte do Estado. A consciên­cia dessa nova situação faz c o m que Bobbio reflita, c o m sua costumeira acuidade, sobre o destino da Ciência Jurí­dica na própria sociedade em transformação.

Sem aprofundar a questão nesta exposição, desejaria, no entanto, apontar algumas conseqüências dessas argu­tas observações de Bobbio para a própria Ciência Jurídi­ca. Embora o cientista do Direito não seja um homem alheio à sociedade em que vive, a percepção da nova situação nos leva a considerar o seguinte:

a) na tradição do Estado protetor e repressor, o ju­rista, encarando o Direito c o m o um conjunto de regras da­das com função sancionadora e negativa, tende a assumir o papel de conservador daquelas regras que ele, então, "sis­tematiza e interpreta";

b) já na nova situação do Estado promocional, o ju­rista, encarando o Direito "também" c o m o um conjunto

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de regras, mas em vista de uma função implementadora de comportamentos, tende a assumir um papel modifica­dor e criador.

No primeiro caso, prevalece, então, aquilo que Bob-bio chama de uma teoria "estrutural" do Direito, em opo­sição a uma teoria "funcionalista".

Não se trata de duas teorias opostas, mas de enfoques distintos, em que prevalece ora um, ora outro dos aspec­tos. No enfoque estrutural preponderam, assim, a interpre­tação do sentido das normas, as questões formais da eli­minação de antinomias, da integração de lacunas, numa pa­lavra, de sistematização global dos ordenamentos confor­me a melhor tradição dogmática. No enfoque funcionalis­ta, por sua vez, a problemática se volta muito mais para a análise de situações, análise e confronto de avaliações, escolha de avaliação e formulação de regras. Se nos fosse permitido traduzir essas duas atitudes, diríamos que, no enfoque estrutural, a relação meio/fim no estudo do Di­reito fica limitada a um pressuposto global e abstrato, que quase não interfere na análise do tipo, por exemplo: "O Direito é uma ordem coativa que visa à obtenção da segu­rança coletiva", e isso basta. Já no enfoque funcionalista, a relação meio/fim ganha outros relevos, passa mesmo a constituir o cerne da análise, exigindo, do jurista, novas modalizações do fenômeno normativo.

O reconhecimento da importância crescente desse en­foque funcionalista, contudo, não vem sem dificuldades teóricas relevantes. Para o filósofo da Ciência Jurídica que é Norberto Bobbio, reaparece, agora de uma forma ainda mais contundente, a velha questão da identidade episte­mológica da Ciência Jurídica, agora necessariamente vol­tada para indagações sociológicas, econômicas e políticas.

Além disso, sua proposta funcionalista abre espaço para indagações de alta relevância e que constituem, a meu ver, problemas teóricos muito significativos. Assim, por exem-

CAPÍTULO 1

Da norma jurídica ao ordenamento jurídico

/. Novidade do problema do ordenamento

Esta obra se liga diretamente à anterior, intitulada Teo­ria da norma jurídica. Uma e outra formam em conjunto uma completa Teoria do Direito, principalmente sob o as­pecto formal. No primeiro livro estudamos a norma jurí­dica, isoladamente considerada; neste, estudaremos aquele conjunto ou complexo de normas que constituem o orde­namento jurídico.

A exigência da nova pesquisa nasce do fato de que, na realidade, as normas jurídicas nunca existem isolada­mente, mas sempre em um contexto de normas c o m rela­ções particulares entre si (e estas relações serão em grande parte objeto de nossa análise). Esse contexto de normas costuma ser chamado de "ordenamento". E será bom ob­servarmos, desde já, que a palavra "direito", entre seus vá­rios sentidos, tem também o de "ordenamento jurídico", por exemplo, nas expressões "Direito romano", "Direito canónico", "Direito italiano" ["Direito brasileiro"], etc.

Ainda que seja óbvia a constatação de que as regras jurídicas constituem sempre uma totalidade, e que a pala­vra "direito" seja utilizada indiferentemente tanto para in­dicar uma norma jurídica particular c o m o um determina­do complexo de normas jurídicas, ainda assim o estudo aprofundado do ordenamento jurídico é relativamente re­cente, muito mais recente que o das normas particulares, de resto bem antigo. Enquanto, por um lado, existem mui­tos estudos especiais sobre a natureza da norma jurídica,

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não há, até hoje, se não nos enganamos, nenhum tratado completo e orgânico sobre todos os problemas que a exis­tência de um ordenamento jurídico levanta. Em outros ter­mos, podemos dizer que os problemas gerais do Direito foram tradicionalmente mais estudados do ponto de vista da norma jurídica, considerada c o m o um todo que se bas­ta a si mesmo, que do ponto de vista da norma jurídica considerada c o m o parte de um todo mais vasto que a com­preende. Ao dizer isto, queremos também chamar a aten­ção para a dificuldade da sistematização de uma matéria que não tem um passado de segura tradição, e ainda para o caráter experimental desta exposição.

Uma rápida visão da história do pensamento jurídico nos últimos séculos nos dá uma confirmação do que até aqui afirmamos: do famoso tratado De Legibus ac Deo Le-gislatore, de Francisco Suarez (1612), aos tratados mais re­centes de Thon e de Binding, de que falamos no livro pre­cedente, fica claro desde os títulos que o objeto principal da análise e o verdadeiro elemento primeiro da realidade jurídica é a norma em si. Com isso não se quer dizer que faltasse àquelas obras a análise de alguns problemas carac­terísticos de uma teoria do ordenamento jurídico, mas tais problemas vinham misturados a outros e não eram consi­derados merecedores de uma análise separada e particu­lar. Repetimos que a norma jurídica era a única perspecti­va através da qual o Direito era estudado, e que 0 ordena­mento jurídico era no máximo um conjunto de normas, mas não um objeto autônomo de estudo, c o m seus pro­blemas particulares e diversos. Para rios exprimirmos com uma metáfora, considerava-se a árvore, mas não a floresta.

Creio que os primeiros a chamar a atenção sobre a rea­lidade do ordenamento jurídico foram os teóricos da ins­tituição, de que nos ocupamos no livro precedente. Não foi por acaso que o livro merecidamente famoso de Santi Romano foi intitulado O ordenamento jurídico (1917) O

APRESENTAÇÃO 17

pio, se num enfoque estrutural, que é o seu em escritos mais antigos, pensar o Direito de forma racional e cientí­fica exige pressupostos incontornáveis como a noção de um poder soberano, primeiro e superior, e exige, portanto, toda a reflexão sobre a norma fundamental, pode-se perguntar, a meu ver, se num enfoque funcionalista a noção de sobe­rania não passa a segundo plano e a própria hipótese da norma fundamental não perde relevo, abrindo espaço pa­ra um pensar não-sistemático do Direito ou, pelo menos , para um pensar sistemático c o m estruturas diversificadas em que o escalonamento é uma das eventuais possibilida­des. Pense-se, por exemplo , na sociedade plurifinalista de nossos dias e na efetiva dispersão do poder soberano en­tre múltiplas fontes, c o m o o poder do Estado, das multi­nacionais, dos grupos de pressão, etc.

Mais do que tudo isso, porém, volta a questão, hoje tão aguda no Brasil, do ensino do Direito, da própria for­mação do jurista e, sobretudo, de seu papel social.

Um grande jurista italiano, que lecionou no Brasil du­rante algum tempo — Tulk) Ascarelli —, disse uma vez que, "na atual crise de valores, o mundo pede aos juristas idéias novas, mais que sutis interpretações". Não resta dúvida de que vivemos hoje uma situação de crise. Uma crise, no en­tanto, nos obriga a voltar às questões mesmas e exige res­postas, novas ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamen­tos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando res­pondemos a ela c o m juízos pré-formados, isto é, c o m pre­conceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise, co­mo nos priva da experiência da realidade e da oportuni­dade que ela proporciona à reflexão (H. Arendt).

Norberto Bobbio, o jurista que aqui apresentamos, é, antes de tudo, um h o m e m que soube, sabe e continua­rá sabendo enfrentar uma crise sem preconceitos. No âm­bito da Ciência Jurídica, mais do que muitos, Norberto Bob­bio soube entender que se, nos primeiros três quartos deste

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século, a grande preocupação foi eliminar juízos de valor no intento de construir uma teoria científica do Direito não sujeita a implicações ideológicas, agora, em compensação, recupera-se em sua esfera de interesses a experiência so­cial e o juízo crítico sobre si mesma, oferecendo à investi­gação jurídica novas dimensões.

Quando a sociedade atravessa uma fase de profundas mudanças, admitiu Norberto Bobbio mais recentemente, a Ciência do Direito precisa estabelecer novos e chegados contatos c o m as Ciências Sociais, superando-se a forma­ção jurídica departamentalizada, c o m sua organização, so­bre uma base corporativo-disciplinar, de compartimentos estanques.

Pois bem: essa sensibilidade para a mudança, sem per­der de vista as exigências da racionalidade, é uma das mais importantes características de Norberto Bobbio e a lição mais proftínda que podemos extrair de seu pensamento.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior

Textos citados:

Norberto Bobbio. Teoria delia norma giuridica, Turim, 1958.

. Dalla struttura alia funzione, Milão, 1977.

. Contribución a la teoria dei derecbo, edição a cargo de Alfonso Ruiz Miguel, Valença, 1980.

DA NORMA JURÍDICA AO ORDENAMENTO JURÍDICO 23

consiste justamente o ordenamento jurídico, abrindo, as­sim, para uma estrada que tinha c o m o saída o reconheci­mento da relevância do ordenamento para a compreensão do fenômeno jurídico.

No conjunto das tentativas realizadas para caracteri­zar o Direito através de algum elemento da norma jurídi­ca, consideraríamos sobretudo quatro critérios: 1. critério formal; 2. critério material; 3. critério do sujeito que põe a norma; 4. critério do sujeito ao qual a norma se destina.

1) Por critério formal entendemos aquele pelo qual se acredita poder ser definido o que é o Direito através de qualquer elemento estrutural das normas que se costuma chamar de jurídicas. Vimos que, c o m respeito à estrutura, as normas podem distinguir-se em:

a) positivas ou negativas; b) categóricas ou hipotéticas; c) gerais (abstratas) ou individuais (concretas).

Pois bem, a primeira e a terceira distinções não ofe­recem nenhum elemento caracterizador do Direito porque em qualquer sistema normativo encontramos tanto normas positivas quanto negativas, tanto normas gerais (abstratas) quanto individuais (concretas). Quanto à segunda distin­ção, admitimos, também, que num sistema normativo exis­tem apenas normas hipotéticas, as quais p o d e m assumir estas duas formas:

a) se queres A, deves B, segundo a teoria da norma técnica (Ravà) ou das regras finais (Brunetti);

b) se é A, deve ser B, onde , segundo alguns, A é o fato jurídico e B a conseqüência jurídica (teoria do Direito co­mo valorização ou juízo de qualificação), e segundo ou­tros A é o ilícito e B é a sanção (teoria da norma c o m o juí­zo hipotético de Kelsen).

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Em nenhuma dessas duas formulações a norma jurí­dica assume uma forma caracterizante: a primeira formu­lação é própria de qualquer norma técnica ("se você quer comprar selos, deve ir ao correio"); a segunda formulação é característica de qualquer norma condicionada ("se cho­ve, você deve pegar o guarda-chuva").

2) Por critério material entendemos aquele critério que se poderia extrair do conteúdo das normas jurídicas, isto é, das ações reguladas. Esse critério é manifestamente inconcludente. Objeto de regulamentação por parte das normas jurídicas são todas as ações possíveis do homem, e entendemos por "ações possíveis" aquelas que não são nem necessárias nem impossíveis. Segue-se, obviamente, que uma norma que comandasse uma ação necessária ou proibisse uma ação impossível seria inútil; de outro lado, uma norma que proibisse uma ação necessária ou ordenasse uma ação impossível seria inexequível. Mas, uma vez ex­cluídas as ações necessárias, isto é, aquelas que o h o m e m executa por necessidade natural e, por conseqüência, in­dependentemente de sua vontade, e as ações impossíveis, isto é, aquelas ações que o homem não está apto a cum­prir não obstante todo o esforço da sua vontade, o campo das ações possíveis é vastíssimo, e isso é c o m u m tanto às regras jurídicas c o m o a todas as outras regras de conduta. Foram feitas tentativas, é verdade, de separar, no vasto cam­po das ações possíveis, um campo de ações reservadas ao Direito. As duas principais tentativas se valem ora de uma ora de outra destas duas distinções:

a) ações internas e ações externas; b) ações subjetivas e ações intersubjetivas.

À parte o fato de que as categorias das ações externas e das ações intersubjetivas são extremamente genéricas, é bastante claro que ambas podem servir para distinguir o

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que nós criticamos na teoria da instituição foi a forma em que foi apresentada, em oposição à teoria normativa, isto é, c o m o teoria destinada a suplantar a teoria precedente, quando, segundo já observamos, ela representa sua inte­gração e, portanto, sua continuação. Consideramos opor­tuno reproduzir aqui as palavras c o m que concluímos, no livro anterior, o exame da teoria da instituição.- "A nosso ver, a teoria da instituição teve o grande mérito de pôr em relevo o fato de que se pode falar de Direito somente on­de haja um complexo de normas formando um ordenamen­to, e que, portanto, o Direito não é norma, mas um con­junto coordenado de normas, sendo evidente que uma nor­ma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a ou­tras normas c o m as quais forma um sistema normativo".

O isolamento dos problemas do ordenamento jurídi­co dos da norma jurídica e o tratamento autônomo dos pri­meiros c o m o parte de uma teoria geral do Direito foram obra sobretudo de Hans Kelsen. Entre os méritos de Kel-sen, e pelos quais é justo considerá-lo um dos mais autori­zados juristas de nossa época, está, certamente, o de ter tido plena consciência da importância de problemas cone­x o s c o m a existência do ordenamento jurídico, e de ter dedicado a eles particular atenção. Tomando-se, por exem­plo, sua obra mais completa e concludente, a Teoria ge­ral do Direito e do Estado, veremos que a análise da teoria do Direito (aqui prescindimos da teoria do Estado) está di­vidida em duas partes, chamadas respectivamente Nomos-tâtica e Nomodinâmica.

A primeira considera os problemas relativos à norma jurídica; a segunda, os relativos ao ordenamento jurídico. Reconheço que a expressão "nomodinâmica" não é mui­to feliz, mas, deixando de lado a questão dos termos, o que importa é que, talvez pela primeira vez, no sistema de Kel­sen, a teoria do ordenamento jurídico constitui uma das duas partes de uma completa teoria do Direito. Não preci-

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so acrescentar que meu livro está ligado diretamente à pro­blemática de Kelsen, da qual constitui ora um comentá­rio, ora um desenvolvimento.

2. Ordenamento jurídico e definição do Direito

Dissemos que a teoria do ordenamento jurídico cons­titui uma integração da teoria da norma jurídica. Entretan­to, devemos precisar de antemão que fomos levados ne­cessariamente a essa integração pelos resultados a que che­gamos na busca de uma definição do Direito, realizada na obra anterior. Para resumir brevemente tais resultados, di­gamos que não foi possível dar uma definição do Direito do ponto de vista da norma jurídica, considerada isolada­mente, mas tivemos de alargar nosso horizonte para a con­sideração do m o d o pelo qual uma determinada norma se torna eficaz a partir de uma complexa organização que de­termina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução. Essa organização com­plexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa, portanto, que uma definição satisfatória4o Direito só é pos­sível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamen­to jurídico.

Repensemos por um momento as várias tentativas fei­tas para definir o Direito através deste ou daquele elemen­to da norma jurídica. Todas elas resultaram em sérias difi­culdades. Os critérios adotados, a cada vez, para encon­trar uma definição de Direito tomando c o m o base a nor­ma jurídica ou foram tais que deles não foi possível obter qualquer elemento característico dessanorma com respeito a outras categorias de norma (como as normas morais ou sociais), conduzindo, portanto, a um círculo vicioso, ou então reconduziam àquele fenômeno mais c o m p l e x o da organização de um sistema de regras de conduta, no qual

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É claro que uma definição desse gênero somente sig­nifica alguma coisa se se define a noção de juiz. Que é o juiz? Que se entende por juiz? Mas uma definição de juiz não pode ser obtida senão ampliando-se a consideração a todo o ordenamento. Dir-se-á que o juiz é aquele ao qual uma norma do ordenamento atribui o poder e o dever de estabelecer quem tem razão e quem não tem, e de tornar assim possível a execução de uma sanção. Mas, desse mo­do, uma vez mais somos reconduzidos da norma isolada ao sistema normativo. E percebemos, além disso, que não apenas procuramos tornar conclusiva uma definição do Di­reito referida à norma, mas somos constrangidos a deixar a norma e abraçar o ordenamento.

3- A nossa definição de Direito

Voltemos, agora, à definição de Direito a que chega­mos no livro precedente. Ali determinamos a norma jurí­dica através da sanção, e a sanção jurídica através dos as­pectos de exterioridade e de institucionalização, donde a definição de norma jurídica c o m o aquela norma "cuja e x e c u ç ã o é garantida por uma sanção externa e institucionalizada".

Essa definição é uma confirmação de tudo quanto su­blinhamos nos dois primeiros parágrafos, isto é, a necessi­dade em que se acha o teórico geral do Direito, em certo ponto de sua pesquisa, de deixar a norma em particular pelo ordenamento. Se sanção jurídica é só a institucionali­zada, isso significa que, para que haja Direito, é necessá­rio que haja, grande ou pequena, uma organização, isto é, um completo sistema normativo. Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa procurar o cará­ter distintivo do Direito não em um elemento da norma mas em um complexo orgânico de normas. Em outros ter-

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mos, poder-se-á dizer que a pesquisa por nós realizada na Teoria delia norma giuridica é uma prova do caminho gbfiggtório que o teóricp geral do Direito percorre da parte ao todo, isto é, do fato de que, mesmo partindo da nor­ma, chega-se, quando se quer entender o fenômeno do Di­reito, ao ordenamento.

Para maior clareza podemos também nos exprimir des-Çte modo: o que comumente chamamos de Direito é mais 4 uma característica de certos ordenamentos normativos Cgue de certas normas. Se aceitarmos essa tese, o proble­

ma da definição do Direito se torna um problema de defi­nição de um ordenamento normativo e, conseqüentemente, diferenciação entre este tipo de ordenamento normativo e um outro, não o de definição de um tipo de normas. Nesse caso, para definir a norma jurídica bastará dizer que a nor­ma jurídica é aquela que pertence a um ordenamento jurí­dico, transferindo manifestamente o problema da deter­minação do significado de "jurídico" da norma para o ordenamento.

Através dessa transferência demonstra-se q u e a di­ficuldade de encontrar uma resposta à pergunta: "O que se entende por norma jurídica?", se resolve ampliando-se o c a m p o de pesquisa, isto é , c o l o c a n d o uma n o v a questão: "O q u e se e n t e n d e por o r d e n a m e n t o jurídi­c o ? " Se, c o m o parece, só a esta segunda pergunta se consegue dar uma resposta sensata, isso quer dizer que o problema da def inição do Direito encontra sua loca­lização apropriada na teoria do o r d e n a m e n t o jurídico e não na teoria da norma. É um argumento a favor da importância, desde o início anunciada, da teoria do or­denamento, que é o objeto deste n o v o livro. Só em uma teoria do o r d e n a m e n t o — este era o p o n t o a q u e im­portava chegar — o f e n ô m e n o jurídico encontra sua adequada expl icação .

Já no livro anterior n o s e n c o n t r a m o s diante do fe-

DA NORMA JURÍDICA AO ORDENAMENTO JURÍDICO 25

Direito da Moral, mas não das regras do costume que se referem sempre a ações externas e muitas vezes a ações interiubjetivag,

3) Falando do critério do sujeito que põe a norma, queremos nos referir à teoria que considera jurídicas as normas postas pelo poder soberano, entendendo-se por "poder soberano" aquele acima do qual não existe, num determinado grupo social, nenhum outro, e que, c o m o tal, detém o monopól io da força.

Diante dessa teoria não podemos mais dizer, como no caso das duas precedentes, que ela é inconcludente. Que o Direito seja aquele conjunto de regras que se fazem va­ler ainda que pela força, isto é, um ordenamento normati­vo de eficácia reforçada, é a conclusão a que julgamos ter chegado no livro precedente. Ora, aquele que está em con­dições de exercer a força para tornar eficazes as normas é justamente o poder soberano que detém o monopól io do exercício da força. Portanto, a teoria do Direito c o m o regra coativa e a teoria do Direito c o m o emanação do po­der soberano são convergentes.

O que essa teoria da soberania convida a observar, an­tes de tudo, é que, definido o Direito através do poder so­berano, já se realizou o salto da norma isolada para o or­denamento no seu conjunto. Com a expressão muito ge­nérica "poder soberano" refere-se àquele conjunto de ór­gãos através dos quais um ordenamento normativo é pos­to, conservado e se faz aplicar. E quais são esses órgãos é o próprio ordenamento que o estabelece. Se é verdade que um ordenamento jurídico é definido através da sobe­rania, é também verdade que a soberania em uma deter­minada sociedade se define através do ordenamento jurí­dico. Poder soberano e ordenamento jurídico são dois con­ceitos que se referem um ao outro. E, portanto, quando o Direito é definido através do concei to de soberania, o

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que vem em primeiro plano não é a norma isolada, mas o ordenamento; dizer que norma jurídica é a emanada do poder soberano equivale a dizer que norma jurídica é aquela que faz parte de um determinado ordenamento. A sobera­nia caracteriza não uma norma, mas um ordenamento; ca­racteriza a norma apenas enquanto ela é considerada co­mo parte do ordenamento.

4) O critério do sujeito ao qual a norma é destinada pode apresentar duas variantes, conforme se considere co­mo destinatário o súdito ou o juiz. Vejamos isso separa­damente.

A afirmação pura e simples de que a norma jurídica é a dirigida aos súditos é inconcludente por sua generali­dade. Normalmente, ela é especificada c o m a determina­ção da atitude através da qual os súditos a recebem: e diz-se que jurídica é a norma seguida da convicção ou crença na sua obrigatoriedade (ppinio iuris ac necessitatis), co­mo já foi indicado no livro precedente.

Essa opinio iuris ac necessitatis é um ente antes de mais nada misterioso. Que significa? O único m o d o de lhe dar um significado é este: observar uma norma c o m a con­vicção da sua obrigatoriedade, quer dizer, c o m a convic­ção de que, se a violássemos, iríamos ao encontro da in­tervenção do poder judiciário e, muito provavelmente, da aplicação de uma sanção. O sentimento da obrigatorieda­de é em última instância o sentimento de que aquela nor­ma singular faz parte de um organismo mais complexo e que da pertinência a esse organismo é que vem seu cará­ter específico. Mesmo neste caso, portanto, a noção à qual nos referimos para definir a juridicidade de uma norma en­contra sua explicação natural quando procuramos ver, atra­vés da norma, o ordenamento que a compreende.

A segunda variante do critério do destinatário é aquela pela qual as normas jurídicas são normas destinadas ao juiz.

DA NORMA JURÍDICA AO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 3 1

não-jurídicos. O termo "direito", na mais c o m u m acep­ç ã o de Direito obje t ivo , indica um t ipo de sistema nor­mat ivo , n ã o um t ipo de norma.

4. Pluralidade de normas

Uma v e z claro q u e a expressão "Dire i to" refere-se a um dado t ipo de o r d e n a m e n t o , cabe agora apro­fundar o c o n c e i t o de o r d e n a m e n t o . Só para começar , partamos de uma definição m u i t o geral de ordenamen­to , q u e iremos passo a passo espec i f icando: o ordena­m e n t o jurídico ( c o m o t o d o s istema normat ivo) é um conjunto de normas. Essa def inição geral de ordena­m e n t o pressupõe uma única c o n d i ç ã o : que na const i ­tuição de um ordenamento concorram mais normas (pe­lo m e n o s duas), e q u e n ã o haja o r d e n a m e n t o c o m p o s ­to de uma norma s ó .

Poderíamos imaginar u m o r d e n a m e n t o c o m p o s t o de uma só norma? P e n s o q u e a ex is tência de tal orde­n a m e n t o deva ser exc luída. Assim c o m o uma regra de conduta p o d e referir-se a todas as a ç õ e s poss íve is do h o m e m , e a regulamentação consiste em qualificar uma ação através de uma das três modal idades normativas (ou deônticas) do obrigatório, do pro ib ido e do permi­t ido, para se c o n c e b e r um o r d e n a m e n t o c o m p o s t o de uma só norma seria prec i so imaginar uma norma q u e se referisse a todas as a ç õ e s poss íve i s e as qualificasse c o m uma única modal idade. Postas tais c o n d i ç õ e s , n ã o existem senão três possibilidades de conceber um orde­namento composto de uma norma única:

1) Tudo épermitido: mas uma norma de tal gêne­ro é a negação de qualquer o r d e n a m e n t o jurídico, o u ,

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se quisermos , a def inição do es tado de natureza q u e é a negação de t o d o o r d e n a m e n t o civil.

2) Tudo éproibido: uma norma desse t ipo torna­ria imposs íve l qualquer vida social humana, a qual c o ­meça no m o m e n t o em que o h o m e m , além das ações necessárias, está em c o n d i ç õ e s de realizar algumas das ações poss íveis; u m a norma assim conceb ida , equipa­rando ações poss íve i s e imposs íve is , n ã o deixaria sub­sistir s enão as ações necessárias, ou seja, as a ç õ e s m e ­ramente naturais.

3) Tudo é obrigatório: t a m b é m u m a norma feita assim torna imposs íve l a vida social, p o r q u e as ações possíveis estão em conflito entre si, e ordenar duas ações em confl i to significa tornar uma ou outra, ou ambas, inexequíve i s .

Sendo inconcebível um ordenamento que regule todas as ações possíveis c o m uma única modalidade nor­mativa, o u , em outras palavras, que abrace todas as a ç õ e s poss íve is c o m um ú n i c o juízo de qualificação, pode-se conceber um ordenamento que ordene ou proí­ba uma única ação. Trata-se de um o r d e n a m e n t o mui­to s imples q u e considera c o m o c o n d i ç ã o para perten­cer a um determinado grupo ou associação apenas uma obrigação (por e x e m p l o , um clube de nudistas, ou mes­m o uma associação d e beberrões q u e estabeleça c o m o única obrigação beber só v inho , e assim por diante). Mas um o r d e n a m e n t o assim c o n c e b i d o se p o d e consi­derar c o m o u m o r d e n a m e n t o c o m p o s t o d e uma única norma? Diria que não . Veremos mais adiante q u e toda norma particular que regula (ordenando-a ou proibindo-a) uma ação implica uma norma geral exc lus iva , isto é, uma norma que subtrai daquela regulamentação parti­cular todas as outras ações possíveis. A norma que pres­creve só beber v i n h o implica a norma q u e permite fa-

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n ô m e n o de normas s e m sanção . Partindo da cons ide­ração da norma jurídica t i v e m o s que responder que , se a sanção faz parte do caráter essencial das normas jurídicas, as normas s e m sanção n ã o são normas jurídi­cas. Acreditávamos, ao invés disso, dever responder que " q u a n d o se fala de uma sanção organizada c o m o ele­m e n t o constitutivo do Direito nos referimos não às nor­mas em particular, mas ao ordenamento normativo to­mado em seu conjunto, razão pela qual dizer que a san­ç ã o organizada dist ingue o o r d e n a m e n t o jurídico de qualquer outro t ipo de o r d e n a m e n t o não implica q u e todas as normas daquele sistema sejam sancionadas, mas s o m e n t e que o são em sua maioria". Nossa resposta mostra em c o n c r e t o que um problema mal reso lv ido no plano da norma singular encontra so lução mais sa­tisfatória no p lano do o r d e n a m e n t o .

O m e s m o se diga do prob lema da eficácia. Se c o n ­s ideramos a eficácia c o m o um caráter da norma jurídi­ca, encontramo-nos , em certo p o n t o , diante da neces ­sidade de negar o caráter de norma jurídica a normas que pertencem a um sistema normativo dado (enquanto legit imamente produzidas) . Elas são válidas, mas n ã o eficazes, porque jamais foram aplicadas ( c o m o é o ca­so de muitas normas de nossa Constituição). A dificul­dade se resolve, ainda nes se caso , des locando-se a vi­são da norma singular para o o r d e n a m e n t o considera­do em seu conjunto , e afirmando-se que a eficácia é um caráter constitutivo do Direito, mas só se c o m a expres­são "Direito" for e n t e n d i d o q u e es tamos n o s referin­do não à norma em particular, mas ao ordenamento . O problema da validade e da eficácia, q u e gera dificul­dades insuperáveis desde que se considere uma norma do sistema (a qual pode ser válida sem ser eficaz), diminui se nos referirmos ao ordenamento jurídico, no qual a eficá­cia é o próprio fundamento da validade.

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Um o u t r o prob lema q u e no p lano da n o r m a jurí­dica d e u lugar a infinitas e estéreis controvérs ias é o do Direito consuetudinário . C o m o é sab ido , o princi­pal problema de u m a teoria do c o s t u m e é determinar em q u e p o n t o u m a norma consuetudinária jurídica dis­t ingue-se de uma norma consuetudinária não-jurídica, ou seja, em outras palavras, através de que processo uma s imples norma de c o s t u m e torna-se u m a norma jurídi­ca. Problema insolúvel , talvez porque mal p o s t o . Se é verdade, c o m o procuramos mostrar até aqui, que o que c o m u m e n t e c h a m a m o s Direito é um f e n ô m e n o m u i t o c o m p l e x o cujo p o n t o de referência é um sistema nor­mat ivo inteiro, é inútil procurar o e l e m e n t o dist int ivo de um c o s t u m e jurídico a respeito da regra do costu­me na n o r m a consuetudinária em particular. Dever-se-á responder , de preferência, q u e u m a norma consue ­tudinária torna-se jurídica q u a n d o v e m a fazer parte de um o r d e n a m e n t o jurídico. Mas, d e s s e m o d o , o proble­ma não é mais o da tradicional teoria do costume: "Qual é o caráter dist int ivo de uma norma jurídica consue tu­dinária, c o m relação a u m a regra do c o s t u m e ? " , mas es te outro: "Quais são os p r o c e d i m e n t o s através d o s quais u m a norma consuetudinária v e m a fazer parte de um o r d e n a m e n t o jurídico?"

Conc lu indo , essa p o s i ç ã o p r o e m i n e n t e q u e se dá ao o r d e n a m e n t o jurídico c o n d u z a u m a transmutação da perspect iva no tratamento de alguns problemas da teoria geral do Direito. Essa transmutação p o d e ser as­s im expressa: enquanto , pela teoria tradicional, um or­d e n a m e n t o se c o m p õ e de normas jurídicas, na n o v a perspect iva normas jurídicas são aquelas q u e v e n h a m a fazer parte de um o r d e n a m e n t o jurídico. Em outros termos, não exis tem ordenamentos jurídicos porque há normas jurídicas, mas ex i s tem normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos distintos d o s ordenamentos

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zer qualquer outra coisa diversa de beber v inho. Dizen­do a m e s m a coisa através de uma fórmula, p o d e r í a m o s afirmar: "X é obrigatór io" implica "Não-X é permiti­d o " . Mas assim vê - se q u e as normas , em realidade, são duas, a particular e a geral exclus iva; ainda q u a n d o a expressamente formulada é uma só. Nesse sentido pode-se dizer que m e s m o o ordenamento mais simples, o que cons i s te numa só prescrição de uma ação particular, é c o m p o s t o de pe lo m e n o s duas normas. Seria b o m acres­centar q u e um o r d e n a m e n t o jurídico não é nunca um o r d e n a m e n t o assim tão s imples . Para c o n c e b e r um or­d e n a m e n t o jurídico reduz ido a uma só norma particu­lar, seria prec iso erigir em norma particular a o r d e m de não prejudicar n inguém (neminem laederé). Penso q u e só a o r d e m de não causar d a n o a n i n g u é m poderia ser c o n c e b i d a c o m o aquela a q u e possa ser reduzido um o r d e n a m e n t o jurídico c o m uma norma particular úni­ca. Mas, ainda c o m essa simplif icação, um ordenamen­to jurídico c o m p r e e n d e n ã o uma, mas duas normas: a que prescreve não causar dano a outrem e a q u e auto­riza a fazer tudo o que n ã o cause d a n o a outrem.

Até aqui, falando de normas que c o m p õ e m um or­d e n a m e n t o jurídico, n o s referimos a normas de con­duta. Em t o d o o o r d e n a m e n t o , ao lado das normas de conduta , existe um outro t ipo de normas, que costu­m a m o s chamar de normas de estrutura ou de compe­tência. São aquelas normas q u e n ã o prescrevem a c o n ­duta que se d e v e ter ou não ter, mas as c o n d i ç õ e s e os proced imentos através d o s quais e m a n a m normas de conduta válidas. Uma norma que prescreve caminhar pela direita é uma norma de conduta; u m a norma q u e prescreve q u e duas pessoas es tão autorizadas a regular seus interesses em certo âmbi to mediante normas vin­culantes e coativas é uma norma de estrutura, na me­dida em q u e não determina uma conduta , mas fixa as

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c o n d i ç õ e s e os p r o c e d i m e n t o s para produzir normas válidas de conduta . V i m o s até agora q u e n ã o é c o n c e ­bível u m o r d e n a m e n t o jurídico c o m p o s t o d e u m a s ó norma de conduta . Perguntamos: é c o n c e b í v e l um or­d e n a m e n t o c o m p o s t o de u m a só n o r m a de estrutura? Um o r d e n a m e n t o des se t ipo é c o n c e b í v e l . Geralmen­te considera-se tal o o r d e n a m e n t o de u m a monarquia absoluta, em q u e todas as normas p a r e c e m p o d e r ser condensadas na seguinte: "É obrigatório t u d o aqui lo que o soberano determina". Por outro lado, que um tal ordenamento tenha uma só norma de estrutura não im­plica que também haja apenas uma norma de conduta. As normas de conduta são tantas quantas forem em dado mo­mento as ordens do soberano. O fato de existir uma só nor­ma de estrutura tem por conseqüência a extrema variabi­lidade de normas de conduta no tempo, e não a exclusão de sua pluralidade em determinado tempo.

5. Os problemas do ordenamento jurídico

Se um o r d e n a m e n t o jurídico é c o m p o s t o de mais de uma norma, d i sso a d v é m que os principais proble­mas c o n e x o s c o m a existência de um o r d e n a m e n t o são os que nascem das relações das diversas normas entre si.

Em primeiro lugar se trata de saber se essas nor­mas cons t i tuem uma unidade, e de q u e m o d o a cons ­tituem. O prob lema fundamental q u e d e v e ser discuti­do a e s se propós i to é o da hierarquia das normas. À teoria da unidade do o r d e n a m e n t o jurídico é dedica­do o s e g u n d o capítulo.

Em segundo lugar trata-se de saber se o ordenamen­to jurídico constitui , a lém da unidade, t a m b é m um sis­tema. O problema fundamental que é c o l o c a d o em dis­cussão a este respeito é o das antinomias jurídicas. À

DA NORMA JURÍDICA AO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 35

teoria do sistema jurídico será ded icado o terceiro capí­tulo.

T o d o ordenamento jurídico, unitário e tendencial­m e n t e (se n ã o efet ivamente) s is temático, pre tende t a m b é m ser completo. O problema fundamental q u e aqui é discutido é o das assim chamadas lacunas do Di­reito. À teoria da plenitude do ordenamento jurídico será dedicado o quarto capítulo.

Finalmente, não ex is te entre os h o m e n s um só or­d e n a m e n t o , mas mui tos e de d iversos t ipos. T ê m rela­ç õ e s entre s i os vários ordenamentos? e de q u e g ê n e r o são tais relações? O problema fundamental que aqui de­verá ser e x a m i n a d o é o do reenv io de um ordenamen­to a outro. À teoria das relações entre o r d e n a m e n t o s será d e d i c a d o o qu in to e ú l t imo capítulo.

Não pretendemos exaurir desse m o d o todos os pro­blemas que nascem da cons ideração do o r d e n a m e n t o jurídico. Cremos, porém, que estes sejam os problemas principais, cu jo q u e s t i o n a m e n t o possa permitir traçar as linhas gerais de uma teoria do ordenamento jurídico des­tinada a continuar e a integrar, c o m o dissemos logo no iní­c io do primeiro capítulo, a teoria da norma jurídica.

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CAPÍTULO 2

A unidade do ordenamento jurídico

/. Fontes reconhecidas e fontes delegadas

A hipótese de um o r d e n a m e n t o c o m uma ou duas normas, proposta no capítulo anterior, é puramente aca­dêmica . Na realidade os o r d e n a m e n t o s são c o m p o s t o s por uma infinidade de normas , que , c o m o as estrelas no céu , jamais a lguém c o n s e g u e contar. Quantas são as normas jurídicas q u e c o m p õ e m o o r d e n a m e n t o ju­rídico italiano? [ou brasileiro?] N i n g u é m sabe. Os ju­ristas queixam-se q u e s ão muitas; mas assim m e s m o criam-se sempre novas , e n ã o se p o d e deixar de criá-las para satisfazer todas as necess idades da sempre mais variada e intrincada v ida social .

A dificuldade de rastrear todas as normas que cons­tituem um ordenamento d e p e n d e do fato de geralmente essas normas n ã o derivarem de u m a única fonte. Po­d e m o s distinguir os o r d e n a m e n t o s jurídicos em sim­ples e complexos, conforme as normas que os c o m p õ e m der ivem de uma só fonte ou de mais de uma. Os orde­namentos jurídicos, q u e cons t i tuem a nossa exper iên­cia de historiadores e de juristas, são c o m p l e x o s .

A imagem de um ordenamento , c o m p o s t o somente por dois personagens , o legislador q u e c o l o c a as nor­mas e os súditos q u e as r e c e b e m , é puramente escolás­tica. O legislador é um p e r s o n a g e m imaginário q u e es­c o n d e uma realidade mais complicada. T a m b é m um or­d e n a m e n t o restrito, p o u c o inst i tucional izado, q u e re­c o b r e um grupo social de p o u c o s m e m b r o s , c o m o a

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família, é geralmente um o r d e n a m e n t o c o m p l e x o : n e m sempre a única fonte das regras de c o n d u t a d o s m e m ­bros do grupo é a autoridade paterna; às v e z e s o pai recebe regras já formuladas pelos antepassados, pela tra­dição familiar ou pela recorrência a outros grupos fa­miliares; às v e z e s delega uma parte (maior ou m e n o r c o n f o r m e as várias civi l izações) do p o d e r normat ivo à esposa, o u a o f i l h o mais v e l h o . N e m m e s m o e m uma c o n c e p ç ã o teo lóg ica do universo as leis q u e regem o c o s m o s são derivadas todas de D e u s , ou seja, são leis divinas; em alguns casos Deus de legou aos h o m e n s pro­duzir leis para regular a sua conduta, quer através dos dita­mes da razão (Direito natural), quer através da vontade dos superiores (Direito positivo).

A c o m p l e x i d a d e de um o r d e n a m e n t o jurídico de­riva do fato de que a necess idade de regras de conduta numa soc i edade é tão grande q u e n ã o ex i s te n e n h u m poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho. Para vir ao e n c o n t r o dessa ex igênc ia , o p o d e r supre­mo recorre geralmente a dois e x p e d i e n t e s :

1) A recepção de normas já feitas, produzidas por o r d e n a m e n t o s diversos e precedentes .

2) A delegação do poder de produzir normas ju­rídicas a p o d e r e s ou órgãos inferiores.

Por essas razões, em cada o r d e n a m e n t o , ao lado da fonte direta t e m o s fontes indiretas q u e p o d e m ser distinguidas nestas duas classes: fontes reconhecidas e fontes delegadas. A c o m p l e x i d a d e de um ordenamen­to jurídico deriva portanto da mult ipl ic idade das fon­tes das quais afluem regras de conduta , em última aná­lise, do fato de que essas regras são de proveniênc ias diversas e c h e g a m à existência (adquirem validade) par­tindo de pontos os mais diferentes.

Típico exemplo de recepção, e, portanto, de fonte

A UNIDADE DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 39

reconhecida, é o costume n o s o r d e n a m e n t o s estatais m o d e r n o s , o n d e a fonte direta e superior é a Lei. Quan­do o legislador se atém expres samente ao c o s t u m e nu­ma situação particular ou se atém expressamente ou ta­c i tamente ao c o s t u m e nas matérias não-reguladas pela Lei (é o caso do assim chamado consuetudo praeter le-gem, ou seja, do costume além da lei), ele acolhe normas jurídicas já feitas, e enriquece o ordenamento jurídico em b loco c o m um conjunto, que pode ser também considerá­vel, de normas produzidas em outros ordenamentos, e tal­vez em tempos anteriores à própria constituição do ordena­mento estatal.

Naturalmente, p o d e - s e pensar t a m b é m em lançar m ã o d o c o s t u m e c o m o u m a autorização aos c idadãos para produzir normas jurídicas através do seu próprio c o m p o r t a m e n t o uniforme, quer dizer, considerar tam­b é m o c o s t u m e entre as fontes delegadas, atribuindo-se aos usuários a qualif icação de órgãos estatais autori­zados a produzir normas jurídicas c o m seu comporta ­m e n t o uniforme.

Entretanto, parece-me uma construção, embora en­genhosa , um p o u c o artificial, q u e n ã o leva em conta uma diferença: na recepção o ordenamento jurídico aco­lhe um preceito já feito; na delegação, manda fazê-lo, ordenando uma produção futura. O cos tume assemelha-se mais a um produto natural; o regulamento , o decre­to administrativo, a sentença do magistrado parecem mais um produto artificial. Fala-se de poder regulamen­tar, de poder de negociar, para indicar o poder norma­t ivo atribuído aos órgãos e x e c u t i v o s ou aos privados . Pareceria impróprio, ao invés, falar de um poder de pro­d u ç ã o de normas consuetudinárias , que , entre outras coisas, não se saberia n e m sequer a q u e m atribuir.

Típ ico e x e m p l o de fonte delegada é o regulamen­to c o m relação à Lei. Os regulamentos são, c o m o as leis,

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interesses n u m c a m p o es tranho a o interesse públ i co , a mesma fonte aparece c o m o u m a fonte delegada. Trata-se , em outras palavras, de decidir se a autonomia pri­vada d e v e ser considerada c o m o um resíduo de um p o ­der normat ivo natural ou privado, antecedente ao Es­tado, o u c o m o u m p r o d u t o d o p o d e r originário d o Estado.

2. Tipos de fontes e formação histórica do ordenamento

Essa última questão nos mostra que o problema da dis­tinção entre fontes reconhecidas e fontes delegadas é um problema cuja solução depende também da concepção ge­ral que se assume em relação à formação e à estrutura de um ordenamento jurídico.

Em cada ordenamento o ponto de referência-último de todas as normas é o poder originário, quer dizer, o po­der além do qual não existe outro pelo qual se possa justi­ficar o ordenamento jurídico. Esse ponto de referência é necessário, além de tudo, para fundar a unidade do orde­namento. Chamamos esse poder originário de fonte das fontes. Se todas as normas derivassem diretamente do po­der originário, encontrar-nos-íamos frente a um ordenamen­to simples. Na realidade não é assim. A complexidade do ordenamento, ou seja, o fato de que num ordenamento real as normas afluem através de diversos canais, depende his­toricamente de duas razões fundamentais.

1) Um ordenamento não nasce num deserto; deixan­do de lado a metáfora, a sociedade civil sobre a qual se forma um ordenamento jurídico, c o m o é, por exemplo , o do Estado, não é uma sociedade natural, completamen­te privada de leis, mas uma sociedade na qual vigem nor­mas de vários gêneros, morais, sociais, religiosas, usuais,

normas gerais e abstratas, mas , à diferença das leis, a sua p r o d u ç ã o é confiada geralmente ao Poder Executi­vo por de legação do Poder Legislativo, e u m a de suas funções é a de integrar leis m u i t o genéricas , q u e c o n ­têm somente diretrizes de princípio e não poderiam ser aplicadas s e m serem ulteriormente especif icadas. É im­poss íve l q u e o Poder Legislativo formule todas as nor­mas necessárias para regular a vida social; limita-se en­tão a formular normas genéricas , q u e c o n t ê m s o m e n t e diretrizes, e confia aos órgãos execut ivos , que são muito mais n u m e r o s o s , o encargo de torná-las exeqü íve i s . A m e s m a relação ex i s te entre normas const i tuc ionais e leis ordinárias, as quais p o d e m às v e z e s ser cons ide ­radas c o m o os regulamentos e x e c u t i v o s das diretrizes de princípio contidas na Constituição. C o n f o r m e se vai sub indo na hierarquia das fontes , as normas tornam-se cada v e z m e n o s numerosas e mais genéricas; descen­d o , ao contrário, as normas tornam-se cada v e z mais numerosas e mais específ icas.

Outra fonte de normas de um o r d e n a m e n t o jurí­d ico é o p o d e r atribuído aos particulares de regular, me­diante atos voluntários , os próprios interesses: trata-se do c h a m a d o poder de negociação. O e n q u a d r a m e n t o dessa fonte na classe das fontes reconhec idas ou na das fontes delegadas é m e n o s nít ido. Se se c o l o c a em des­taque a autonomia privada, en tend ida c o m o capaci­dade d o s particulares de dar normas a si próprios numa certa esfera de interesses , e se cons iderarmos os parti­culares c o m o const i tuintes de um o r d e n a m e n t o jurídi­co menor, absorvido pe lo ordenamento estatal, essa vas­ta fonte de normas jurídicas é c o n c e b i d a de preferên­cia c o m o produtora independente de regras de conduta, q u e são aceitas p e l o Estado. Se, ao invés , c o l o c a m o s o acento no poder de negoc ia ç ã o c o m o p o d e r delega­do pe lo Estado aos particulares para regular os próprios

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consuetudinárias, regras convencionais e assim por dian­te. O novo ordenamento que surge não elimina nunca com­pletamente as estratificações normativas que o precederam: parte daquelas regras vêm a fazer parte, através de um re­conhecimento expresso ou tácito, do novo ordenamento, o qual, deste modo , surge limitado pelos ordenamentos precedentes. Quando falamos de poder originário, enten­demos originário juridicamente, não historicamente. Po­demos falar então de um limite externo do poder soberano.

2) O poder originário, uma vez constituído, cria ele mesmo, para satisfazer a necessidade de uma normatiza-ção sempre atualizada, novas centrais de produção jurídi­ca, atribuindo a órgãos executivos o poder de estabelecer normas integradoras subordinadas às legislativas (os regu­lamentos); a entidades territoriais autônomas o poder de estabelecer normas adaptadas às necessidades locais (o po­der normativo das regiões, das províncias, dos municípios); a cidadãos particulares o poder de regular os próprios de­veres através de negócios jurídicos (o poder de negocia­ção). A multiplicação das fontes não deriva aqui, c o m o nos casos considerados no item 1, de uma limitação pro­veniente do exterior, quer dizer, do choque c o m uma rea­lidade normativa pré-constituída, à qual também o poder soberano deve prestar contas, mas de uma autolimitação do poder soberano, o qual subtrai a si próprio uma p a r t e

do poder normativo para dá-lo a outros órgãos ou entida­des, de alguma forma dele dependentes. Pode-se falar neste caso de limite interno do poder normativo originário.

É interessante Observar c o m o esse duplo processo de formação de um ordenamento, através da absorção de um direito preexistente e da criação de um direito novo , e a conseqüente problemática da limitação externa e da li­mitação interna do poder originário, é refletido fielmente nas duas principais concepções com as quais os jusnatura-

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listas explicaram a passagem do estado natural ao estado civil.

A chamada que faço freqüentemente para as teorias jusnaturalistas vem do fato de que as considero c o m o mo­delos racionais, úteis à formulação de teorias simples so­bre problemas mais gerais do Direito e do Estado.

Segundo o pensamento jusnaturalista, o poder civil originário forma-se a partir de um estado de natureza atra­vés de procedimento característico do contrato social.

Mas existem duas maneiras de conceber esse contra­to social. Como primeira hipótese, que podemos chamar de hobbesiana, aqueles que estipulam o contrato renun­ciam completamente a todos os direitos do estado natu­ral, e o poder civil nasce sem limites: qualquer limitação futura será uma autolimitação.

Como segunda hipótese, que podemos chamar lockia-na, o poder civil é fundado c o m o objetivo de assegurar melhor o gozo dos direitos naturais (como a vida, a pro­priedade, a liberdade) e, portanto, nasce originariamente limitado por um direito preexistente.

Na primeira hipótese o Direito natural desaparece com­pletamente ao dar vida ao Direito positivo; na segunda, o Direito positivo é o instrumento para a completa atuação do preexistente Direito natural.

Ainda: na primeira teoria a soberania civil nasce ab­soluta, quer dizer, sem limites. Os juristas positivistas que aceitam essa hipótese serão constrangidos a falar de auto­limitação do Estado para dar uma explicação do fato de que também, num ordenamento centralizado e que se pro­clama originário, c o m o o Estado moderno, existem pode­res normativos descentralizados ou suplementares, ou zo­nas de liberdade, em que esbarra o poder normativo do Estado.

Na segunda teoria, ao contrário, a soberania nasce já limitada, porque o Direito natural originário não é com-

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pletamente suplantado pelo novo Direito positivo, mas con­serva em parte a sua eficácia no interior do m e s m o orde­namento positivo, c o m o direito aceito.

Nessas duas hipóteses vêem-se claramente represen­tados e racionalizados os dois processos de formação de um ordenamento jurídico e a estrutura complexa que de­les deriva.

De um lado, o ordenamento positivo é concebido co­mo tabula rasa de todo o direito preexistente, representa­do aqui por aquele direito que vige no estado natural; de outro, é concebido c o m o emergente de um estado jurídi­co mais antigo que continua a subsistir.

No primeiro caso cada limite do poder soberano é au-tolimitação; no segundo existem limites originários e externos.

Ao falarmos de uma complexidade do ordenamento jurídico, derivada da presença de fontes reconhecidas e de fontes delegadas, acolhemos e reunimos numa teoria unitária do ordenamento jurídico seja a hipótese dos limi­tes externos, seja a hipótese dos limites internos.

Exemplificando, a aceitação de uma normatização con­suetudinária corresponde à hipótese de um ordenamento que nasce limitado; a atribuição de um poder regulamen­tar corresponde à hipótese de um ordenamento que se autolimita.

Quanto ao poder de negociação, ele pode ser expli­cado c o m ambas as hipóteses, ora c o m o uma espécie de direito do estado natural (a identificação entre Direito na­tural e Direito privado se encontra, por exemplo, em Kant) que o Estado reconhece, ora c o m o uma delegação do Es­tado aos cidadãos.

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3- As fontes do Direito

Distinguimos nos dois parágrafos anteriores fontes ori­ginárias e fontes derivadas; dividimos depois as fontes de­rivadas em fontes reconhecidas e fontes delegadas; falamos de uma fonte das fontes. Mas não dissemos ainda o que se entende por "fonte".

Podemos aceitar, neste momento , uma definição que já se tornou comum: "fontes do direito" são aqueles fatos oú atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas. O conhecimento de um or­denamento jurídico (e também de um setor particular desse ordenamento) começa sempre pela enumeração de suas fontes. Não é por acaso que o artigo 1? das nossas "Dis­posições Gerais" é constituído pela relação das fontes do ordenamento jurídico italiano vigente. O que nos interes­sa notar numa teoria geral do ordenamento jurídico não é tanto quantas e quais sejam as fontes do Direito de um ordenamento jurídico moderno, mas o fato de que, no mes­mo momento em que se reconhece existirem atos ou fa­tos dos quais se faz depender a produção de normas jurí­dicas (as fontes de direito), reconhece-se que o ordenamen­to jurídico, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo pelo qual se devem produzir as regras.

Costuma-se dizer que o ordenamento jurídico regula a própria produção normativa.

Existem normas de comportamento ao lado de nor­mas de estrutura. As normas de estrutura podem também ser consideradas c o m o as normas para a produção jurídi­ca: quer dizer, c o m o as normas que regulam os procedi­mentos de regulamentação jurídica. Elas não regulam o comportamento, mas o modo de regular um comportamen­to, ou, mais exatamente, o comportamento que elas regu­lam é o de produzir regras.

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Consideremos um ordenamento elementar c o m o o familiar.

Se o concebermos c o m o um ordenamento simples, isto é, c o m o o ordenamento no qual só existe uma fonte de produção normativa, não existirá senão uma regra so­bre a produção jurídica, a qual pode ser formulada deste modo: "O pai tem a autoridade de regular a vida da família".

Mas admitamos que o pai renuncie a regular direta­mente um setor da vida familiar, c o m o o da vida escolar dos filhos, e confie à mãe o poder de regulá-lo. Teremos nesse ordenamento uma segunda norma sobre a produção jurídica que poderá ser formulada assim: "A mãe tem au­toridade, atribuída pelo pai, de regular a vida escolar dos filhos".

Como se vê, essa norma não diz nada sobre o m o d o c o m o os filhos devem cumprir suas obrigações escolares; diz simplesmente a quem cabe estabelecer estes deveres, isto é, faz existir uma fonte de direito.

Tomemos agora um ordenamento estatal moderno. Em cada grau normativo encontraremos normas de

conduta e normas de estrutura, isto é, normas dirigidas di­retamente a regular a conduta das pessoas e normas desti­nadas a regular a produção de outras normas. Comecemos pela Constituição. Numa Constituição, c o m o a italiana, há normas que atribuem diretamente direitos e deveres aos cidadãos, c o m o as que dizem respeito aos direitos de li­berdade; mas existem outras normas que regulam o pro­cesso através do qual o Parlamento pode funcionar para exercer o Poder Legislativo, e, portanto, não estabelecem nada a respeito das pessoas, limitando-se a estabelecer a maneira pela qual outras normas dirigidas às pessoas po­derão ser emanadas.

Quanto às leis ordinárias, também elas não são todas diretamente dirigidas aos cidadãos; muitas, c o m o as leis penais e grande parte das leis de processo, têm a finalida-

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de de oferecer aos juízes instruções sobre o m o d o através do qual eles devem produzir as normas individuais e con­cretas que são as sentenças; não são normas de conduta, mas normas para a produção de outras normas.

Basta-nos ter chamado a atenção sobre esta categoria de normas para a produção de outras normas: é a pre­sença e freqüência dessas normas que constituem a com­plexidade do ordenamento jurídico; e somente o estudo do ordenamento jurídico nos faz entender a natureza e a importância dessas normas. Do ponto de vista formal, a teoria da norma jurídica havia parado na consideração das normas c o m o imperativos, entendendo por imperativo a ordem de fazer ou de não fazer.

Se levarmos em consideração também as normas pa­ra a produção de outras normas, devemos colocar, ao la­do das imperativas, entendidas c o m o comandos de fazer ou de não fazer, e que poderemos chamar imperativas de primeira instância, as imperativas de segunda instância, entendidas c o m o comandos de comandar, etc.

Somente a consideração do ordenamento no seu con­junto nos permite aceitar a presença dessas normas de se­gunda instância.

A classificação desse tipo de normas é muito mais com­plexa que a classificação das normas de primeira instân­cia, para as quais havíamos falado de "tripartição" clássi­ca em normas imperativas, proibitivas e permissivas. Podem-se distinguir nove tipos:

1) Normas que mandam ordenar (por exemplo: art. 34, § 2? da Constituição, onde o constituinte ordena ao legislador ordinário formular leis que tornem obrigatória a instrução)

2) Normas que proíbem ordenar (art. 27, § 4? da Constituição, onde se proíbe ao legislador impor a pena de morte).

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3) Normas que permitem ordenar (em todos os ca­sos em que o constituinte entende não dever intervir a di­tar normas sobre certas matérias, pode-se dizer que isso permite ao legislador ordenar. Por exemplo , o art. 32, § 2? da Constituição, permite ao legislador ordinário esta­belecer normas relativas ao tratamento sanitário).

4) Normas que mandam proibir (art. 18, § 2? da Constituição: o constituinte impõe ao legislador ordinário emanar normas proibitivas contra as associações secretas).

5) Normas que proíbem proibir (art. 22 da Constitui­ção: ninguém pode ser privado por motivos políticos da capacidade jurídica, da cidadania, do nome).

6) Normas que permitem proibir (a propósito do art. 40 da Constituição, que sanciona a liberdade de greve, po­de-se observar que nem nele nem em outro se fala em li­berdade de suspensão do trabalho; essa lacuna poderia ser interpretada c o m o se o constituinte tivesse desejado dei­xar ao legislador ordinário a faculdade de proibi-la).

7) Normas que mandam permitir (este caso coinci­de c o m o do número cinco).

8) Normas que proíbem permitir (este caso coincide com o do número quatro).

9) Normas que permitem permitir ( como a permis­são é a negação de uma proibição, este é o caso de uma lei constitucional que negue a proibição de uma lei cons­titucional anterior).

4. Construção escalonada do ordenamento

A complexidade do ordenamento, sobre a qual cha­mamos a atenção até agora, não exclui sua unidade. Não poderíamos falar de ordenamento jurídico se não o tivés­semos considerado algo de unitário. Que seja unitário um ordenamento simples, isto é, um ordenamento em que to-

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das as normas nascem de uma única fonte, é facilmente compreensível. Que seja unitário um ordenamento com­plexo, deve ser explicado. Aceitamos aqui a teoria da cons­trução escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da uni­dade de um ordenamento jurídico complexo . Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das nor­mas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma funda­mental. Cada ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as ou­tras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chama­do "ordenamento".

A norma fundamental é o termo unificador das nor­mas que c o m p õ e m um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito num ordenamento complexo , tal ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indire­tamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fon­tes do direito podem ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárqui­ca. As normas de um ordenamento são dispostas em or­dem hierárquica.

A relevância dessa ordem hierárquica será destacada no capítulo seguinte, quando falarmos das antinomias e da maneira de resolvê-las. Aqui nos limitamos a constatá-la e a ilustrá-la. Consideremos qualquer ato com o qual Fulano

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executa a obrigação contraída c o m Sicrano e chamemo-lo de ato executivo. Esse ato execut ivo é o cumprimento de uma regra de conduta derivada do contrato. Por sua vez o contrato é executado em cumprimento às normas legis­lativas que disciplinam os contratos. Quanto às normas le­gislativas, foram formuladas segundo as regras estabeleci­das pelas leis constitucionais para a formulação das leis. Paremos aqui.

O ato executivo, de que falamos, está ligado, ainda que mediatamente, às normas constitucionais, que são pro­dutoras, em diversos níveis, das normas inferiores. Esse ato executivo pertence a um sistema normativo dado, na me­dida em que, de norma em norma, ele pode ter sua refe­rência última nas normas constitucionais. O cabo recebe ordem do sargento, o sargento do tenente, o tenente do capitão até o general, e mais ainda: num exército fala-se de unidade do comando porque a ordem do cabo pode ter origem no general. O exército é um exemplo de estru­tura hierárquica. Assim é o ordenamento jurídico.

Chamamos de ato executivo o ato de alguém que exe­cuta um contrato, assim c o m o chamamos de produtoras

-das normas inferiores as normas constitucionais. Se obser­varmos melhor a estrutura hierárquica do ordenamento, perceberemos que os termos execução e produção são re­lativos. Podemos dizer que, c o m o Fulano executa o con­trato, assim Fulano e Sicrano, estipulando o contrato, exe­cutaram as normas sobre os contratos, e os órgãos legis­lativos, estabelecendo as leis sobre os contratos, executa­ram a Constituição. Por outro lado, se é verdade que as normas constitucionais produzem as leis ordinárias, é tam­bém verdade que as leis ordinárias produzem as normas sobre os contratos, e aqueles que estipulam um contrato produzem o ato executivo de Fulano. Numa estrutura hie­rárquica, como a do ordenamento jurídico, os termos "exe­cução" e "produção" são relativos, porque a mesma nor-

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ma pode ser considerada, ao mesmo tempo, executiva e produtiva. Executiva c o m respeito à norma superior, pro­dutiva com respeito à norma inferior. As leis ordinárias exe­cutam a Constituição e produzem os regulamentos. Os re­gulamentos executam as leis ordinárias e produzem os com­portamentos a eles conformes. Todas as fases de um orde­namento são, ao mesmo tempo, executivas e produtivas, à exceção da fase de grau mais alto e da fase de grau mais baixo. O grau mais baixo é constituído pelos atos executi­vos: esses atos são meramente executivos e não produti­vos. O grau mais alto é constituído pela norma fundamen­tal: essa é somente produtiva e não executiva. Normalmente representa-se a estrutura hierárquica de um ordenamento através de uma pirâmide, donde se falar também de cons­trução em pirâmide do ordenamento jurídico. Nessa pirâ­mide o vértice é ocupado pela norma fundamental; a base é constituída pelos atos executivos. Se a olharmos de ci­ma para baixo, veremos uma série de processos de produ­ção jurídica; se a olharmos de baixo para cima veremos , ao contrário, uma série de processos de execução jurídi­ca. Nos graus intermediários, estão juntas a produção e a execução; nos graus extremos, ou só produção (norma fun­damental) ou só execução (atos executivos).

Esse duplo processo ascendente e descendente pode ser esclarecido também em duas outras noções caracterís­ticas da linguagem jurídica: poder e dever. Enquanto a pro­dução jurídica é a expressão de um poder (originário ou derivado), a execução revela o cumprimento de um dever. Uma norma que atribui a uma pessoa ou órgão o poder de estabelecer normas jurídicas atribui ao mesmo tempo a outras pessoas o dever de obedecer. Poder e dever são dois conceitos correlatos; um não pode ficar sem o outro ;

Chama-se poder, numa das suas mais importantes acepções, a capacidade que o ordenamento jurídico atribui a esta ou aquela pessoa de colocar em prática obrigações em rela-

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ção a outras pessoas; chama-se obrigação a atitude a que é submetido aquele que está sujeito ao poder. Não há obri­gação em um sujeito sem que haja um poder em outro su­jeito. Às vezes pode haver poder sem nenhuma obrigação correspondente: trata-se do caso em que ao poder não corresponde uma obrigação, mas uma sujeição (os chama­dos direitos potestativos). De qualquer modo , poder e obri­gação são os dois termos correlativos da relação jurídica, a qual pode ser definida c o m o a relação entre o poder de um sujeito e o dever de outro sujeito. (Para indicar o cor­relativo da obrigação preferimos a palavra "poder" à pala­vra, mais usada, "direito", porque esta última, no sentido de direito subjetivo, tem muitos significados e é uma das maiores fontes de confusão nas controvérsias entre os teó­ricos do Direito. "Direito" significa também "faculdade", "permissão", "lícito", no sentido de comportamento opos­to à obrigação: a permissão c o m o negação da obrigação. Quando, ao invés, se usa "direito" por "poder", direito não é a negação do dever, mas o termo correlativo de de­ver numa relação intersubjetiva.) Quanto à pirâmide que representa o ordenamento jurídico, do m o m e n t o em que poder e obrigação são dois termos correlativos, se a con­siderarmos de cima para baixo, veremos uma série de po­deres sucessivos: o poder constitucional, o legislativo or­dinário, o regulamentar, o jurisdicional, o poder de nego­ciação, e assim por diante; se a considerarmos de baixo pa­ra cima, veremos uma série de obrigações que se sucedem: a obrigação do indivíduo de cumprir a sentença de um ma­gistrado; a obrigação do magistrado de ater-se às leis ordi­nárias; a obrigação do legislador de não violar a Constitui­ção. Uma última observação sobre a estrutura hierárquica do ordenamento: embora todos os ordenamentos tenham a forma de pirâmide, nem todas as pirâmides têm o mes­mo número de andares. Há ordenamentos nos quais não existe diferença entre leis constitucionais e leis ordinárias:

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são aqueles ordenamentos nos quais o poder legislativo po­de formular, através do m e s m o procedimento, leis ordi­nárias e leis constitucionais; e, conseqüentemente, não exis­te uma obrigação do legislador ordinário em executar as prescrições contidas nas leis constitucionais. Pode-se ima­ginar até um ordenamento no qual seja abolido também o plano das leis ordinárias: seria um ordenamento no qual a Constituição atribuísse diretamente aos órgãos judiciá­rios o poder de estabelecer as normas jurídicas necessá­rias, caso por caso. Num sistema jurídico inspirado numa ideologia coletivista, onde é abolida toda forma de proprie­dade privada, é eliminado o plano normativo constituído pelo poder de negociação. Mas não existem somente exem­plos de ordenamentos c o m um número de planos norma­tivos menor que o normal. Não é difícil apresentar um exemplo de ordenamentos c o m um plano a mais: são os estados federais, nos quais, além do Poder Legislativo do Estado federal, há também um Poder Legislativo, a ele su­bordinado, dos estados-membros.

5. Limites materiais e limites formais

Quando um órgão superior atribui a um órgão infe­rior um poder normativo, não lhe atribui um poder ilimi­tado. Ao atribuir esse poder, estabelece também os limi­tes entre os quais pode ser exercido. Assim c o m o o exer­cício do poder de negociação ou o do poder jurisdicional são limitados pelo Poder Legislativo, o exercício do Po­der Legislativo é limitado pelo poder constitucional.

À medida que se avança de cima para baixo na pirâ­mide, o poder normativo é sempre mais circunscrito. Pense-se na quantidade de poder atribuída à fonte de ne­gociação em comparação c o m a atribuída à fonte legislati­va. Os limites c o m que o poder superior restringe e regula o poder inferior são de dois tipos diferentes:

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a) relativos ao conteúdo; b) relativos à forma.

Por isso fala-se de limites materiais e de limites formais.

O primeiro tipo de limite refere-se ao conteúdo da nor­ma que o inferior está autorizado a emanar; o segundo refere-se à forma, isto é, ao m o d o ou ao processo pelo qual a norma do inferior deve ser emanada. Se nos colocarmos do ponto de vista do inferior, observaremos que ele rece­be um poder limitado, seja c o m relação a quem pode man­dar ou proibir, seja com relação a como se pode mandar ou proibir.

Os dois limites podem ser impostos contemporanea­mente; mas em alguns casos pode haver um sem o outro.

A observação desses limites é importante, porque eles delimitam o âmbito em que a norma inferior emana legiti­mamente: uma norma inferior que exceda os limites ma­teriais, isto é, que regule uma matéria diversa da que lhe foi atribuída ou de maneira diferente daquela que lhe foi prescrita, ou que exceda os limites formais, isto é, não si­ga o procedimento estabelecido, está sujeita a ser declara­da ilegítima e a ser expulsa do sistema.

Na passagem de norma constitucional a norma ordi­

nária, são freqüentes e evidentes tanto os limites materiais

quanto os formais.

Quando a lei constitucional atribui aos cidadãos, por exemplo, o direito à liberdade religiosa, limita o conteú­do normativo do legislador ordinário, isto é, lhe proíbe de estabelecer normas que tenham c o m o conteúdo a restri­ção ou a supressão da liberdade religiosa.

Os limites de conteúdo podem ser positivos ou ne­gativos, conforme a constituição imponha ao legislador ordinário estabelecer normas numa determinada matéria

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(ordem de mandar) ou lhe proíba estabelecer normas nu­ma determinada matéria (proibição de mandar ou ordem de permitir).

Quando uma Constituição determina que o Estado de­ve providenciar a instrução até uma certa idade, atribui ao legislador ordinário um limite positivo; quando, ao invés, atribui certos direitos de liberdade, estabelece um limite negativo, isto é, proíbe emanar leis que reduzam ou elimi­nem aquela esfera de liberdade.

Quanto aos limites formais, são constituídos por to­das aquelas normas da Constituição que prescrevem o m o d o de funcionamento dos órgãos legislativos: normas que incluem no seu conjunto uma parte considerável de uma Constituição. Enquanto os limites formais geralmen­te nunca faltam, podem faltar, nas relações entre Consti­tuição e lei ordinária, os limites materiais: isso se verifica nos ordenamentos em que não existe uma diferença de grau entre leis constitucionais e leis ordinárias (as chamadas Constituições flexíveis).

Nesses ordenamentos o legislador ordinário pode le­gislar em qualquer matéria e em qualquer direção; numa Constituição tipicamente flexível como a inglesa, diz-se que o Parlamento pode fazer tudo, menos transformar o ho­mem em mulher (que, c o m o ação impossível, é por si só excluída da esfera das ações reguláveis).

Se agora observarmos a passagem da lei ordinária pa­ra a decisão judiciária, entendida c o m o regra do caso c o n :

creto, encontraremos, na maior parte das legislações, am­bos os limites.

As leis relativas ao direito substancial podem ser con­sideradas, sob um certo ângulo visual (desde que compreen­didas c o m o regras dirigidas aos juízes e não aos cidadãos), c o m o limites de conteúdo ao poder normativo do juiz. Em outras palavras, a presença das leis de direito substancial faz c o m que o juiz, ao decidir uma controvérsia, procure

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encontrar uma solução dentro do que as leis ordinárias estabelecem.

Quando se diz que o juiz deve aplicar a Lei, diz-se, em outras palavras, que a atividade do juiz está limitada pela Lei, no sentido de que o conteúdo da sentença deve cor­responder ao conteúdo de uma lei. Se essa correspondên­cia não ocorre, a sentença do juiz pode ser declarada in­válida, tal c o m o uma lei ordinária não-conforme à Cons­tituição.

As leis relativas ao procedimento constituem, ao con­trário, os limites formais da atividade do juiz; isso quer di­zer que o juiz está autorizado a estabelecer normas jurídi­cas no caso concreto, mas deve estabelecê-las segundo um ritual em grande parte estabelecido pela Lei.

Em geral os vínculos do juiz c o m respeito à Lei são maiores que aqueles existentes para o legislador ordinário c o m respeito à Constituição.

Enquanto na passagem da Constituição para a lei or­dinária vimos que se pode verificar o caso de falta de limi­tes materiais, na passagem da lei ordinária para a decisão do juiz é difícil que se verifique esta falha na realidade: de­veríamos formular a hipótese de um ordenamento no qual a Constituição estabelecesse que em cada caso o juiz de­veria julgar segundo a eqüidade.

Chamam-se "juízos de eqüidade" aqueles em que o juiz está autorizado a resolver uma controvérsia sem re­correr a uma norma legal preestabelecida.

O juízo de eqüidade pode ser definido c o m o autori­zação, ao juiz, de produzir direito fora de cada limite mate­rial imposto pelas normas superiores.

Em nossos ordenamentos, esse tipo de autorização é muito raro. Nos ordenamentos em que o poder criativo do juiz é maior, o juízo de eqüidade é também sempre ex­cepcional: se os limites materiais ao poder normativo do juiz não derivam da lei escrita, derivam de outras fontes

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superiores, c o m o pode ser o costume ou o precedente judiciário.

Na passagem da lei ordinária para o negócio jurídico, isto é, para a esfera da autonomia privada, prevalecem co-mumente os limites formais sobre os limites materiais.

As normas relativas aos contratos são geralmente re­gras destinadas a determinar o m o d o pelo qual o poder de negociação deve ser exercido para produzir conseqüên­cias jurídicas, e não a matéria sobre a qual este deva ser exercido.

Pode-se formular o princípio geral segundo o qual, c o m respeito à autonomia privada, ao legislador ordinário não interessam tanto as matérias nas quais possa interferir quanto as formas pelas quais deve fazê-lo.

Do ponto de vista da teoria geral, isso levou à con­clusão, por uma extrapolação ilícita, de que ao Direito não interessa tanto aquilo que os homens fazem, mas de que maneira o fazem; ou que o Direito não prescreve aquilo que os homens têm que fazer, mas a maneira, isto é, a for­ma da ação; em suma, que o Direito é uma regra formal da conduta humana.

Uma tese desse gênero só tem uma aparência de verda­de quando se refere à relação entre Lei e autonomia priva­da. Mas mesmo desse ponto de vista restrito não tem ne­nhum fundamento. Tome-se, por exemplo , o poder atri­buído ao indivíduo de dispor dos próprios bens mediante testamento. Não há dúvida de que a Lei, por uma atitude de respeito à vontade pessoal, prescreve, embora de mo­do sucinto, as formalidades c o m as quais um testamento deve ser redigido a fim de que possa ser considerado vá-l i d o .

Mas pode-se dizer que a Lei renuncie completamente a dar regras relativas ao conteúdo?

C o m o a legislação estabelece qual a cota do patrimô­nio da qual o testador não pode dispor (a chamada "legíti-

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ma"), eis que nos defrontamos com limites não apenas for­mais, mas de conteúdo, isto é, limites que restringem o po­der do testador não só com respeito ao como mas também ao quê.

6. A norma fundamental

No parágrafo quarto, procedendo das normas infe­riores para as super iores , paramos nas n ormas constitucionais.

Será que as normas constitucionais são as últimas, além das quais não se pode ir?

Por outro lado, aqui e acolá, t ivemos ocasião de falar de uma norma fundamental de todo o ordenamento jurí­dico. Será que as normas constitucionais são a norma

• fundamental?

Para fecharmos o sistema, devemos dar agora um passo além das normas constitucionais.

Partamos da consideração de que toda norma pres­supõe um poder normativo: norma significa imposição de obrigações (imperativo, comando, prescrição, e t c ) ; onde há obrigação, c o m o já vimos, há poder.

Portanto, se existem normas constitucionais, deve exis­tir o poder normativo do qual elas derivam: esse poder é o poder constituinte. O poder constituinte é o poder últi­mo, ou, se quisermos, supremo, originário, num ordena­mento jurídico.

Mas, se v imos que uma norma jurídica pressupõe um poder jurídico, v imos também que todo poder normativo pressupõe, por sua vez, uma norma que o autoriza a pro­duzir normas jurídicas.

Dado o poder constituinte c o m o poder último, de­vemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao po­der constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas:

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essa norma é a norma fundamental. A norma fundamen­tal, enquanto, por um lado, atribui aos órgãos constitucio­nais poder de fixar normas válidas, impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las. É uma norma ao m e s m o tempo atributiva e imperativa, segundo se considere do ponto de vista do po­der ao qual dá origem ou da obrigação que dele nasce. Po­de ser formulada da seguinte maneira: "O poder consti­tuinte está autorizado a estabelecer normas obrigatórias para toda a coletividade", ou: "A coletividade é obrigada a obe­decer às normas estabelecidas pelo poder constituinte"

Note-se bem: a norma fundamental não é expressa, mas nós a pressupomos para fundar o sistema normativo. Para fundar o sistema normativo é necessária uma norma última, além da qual seria inútil ir. Todas as polêmicas so­bre a norma fundamental resultam da não compreensão de sua função.

Posto um ordenamento de normas de diversas pro­cedências, a unidade do ordenamento postula que as nor­mas que o c o m p õ e m sejam unificadas. Essa reductio ad unum não pode ser realizada se no ápice do sistema não se põe uma norma única, da qual todas as outras, direta ou indiretamente, derivem.

Essa norma única não pode ser senão aquela que im­põe obedecer ao poder originário do qual deriva a Consti­tuição, que dá origem às leis ordinárias, que, por sua vez, dão origem aos regulamentos, decisões judiciárias, etc. Se não postulássemos uma norma fundamental, não acharía­m o s o ubi consistam, ou seja, o ponto de apoio do siste­ma. E essa norma última não pode ser senão aquela de on­de deriva o poder primeiro.

Tendo definido todo o poder jurídico c o m o produto de uma norma jurídica, podemos considerar o poder cons­tituinte c o m o poder jurídico, mas somente se o consider-mos também c o m o produto de uma norma jurídica. A nor-

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ma jurídica que produz o poder constituinte é a norma fundamental.

O fato de essa norma não ser expressa não significa que não exista: a ela nos referimos c o m o o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema. Quan­do apelamos à Constituição para requerer a sua aplicação, alguma vez nos perguntamos o que significa juridicamen­te essa nossa apelação? Significa que consideramos legíti­ma a Constituição porque foi legitimamente estabelecida. Se depois nos perguntarmos o que significa o ter sido legi­timamente estabelecida, ou remontarmos ao decreto do go­verno provisório que se instalou na Itália em 25 de junho de 1944, e que atribuía a uma futura assembléia constituinte a tarefa de deliberar uma nova Constituição do Estado ita­liano, ou então aceitarmos as teses da ruptura entre o ve­lho e o novo ordenamento, não poderemos fazer outra coi­sa senão pressupor uma norma que impõe obediência àqui­lo que o poder constituinte estabelecer; essa norma fun­damental, mesmo não-expressa, é o pressuposto da nossa obediência às leis que derivam da Constituição, e à pró­pria Constituição.

Podemos tentar explicar a necessidade de postular a norma fundamental também por outro caminho.

Temos falado até agora de ordenamento c o m o con­junto de normas. Como faremos para estabelecer se uma norma faz parte de um ordenamento?

A pertinência de uma norma a um ordenamento é aqui­lo que se chama de validade. Vimos anteriormente quais são as condições pelas quais se pode dizer que uma nor­ma é válida. Tais condições servem justamente para pro­var que uma determinada norma pertence a um ordena­mento . Uma norma existe c o m o norma jurídica, ou é juri­dicamente válida, enquanto pertence a um ordenamento jurídico.

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Saber se uma norma jurídica é válida, ou não, não é uma questão ociosa. Se uma norma jurídica é válida signi­fica que é obrigatório conformar-se a ela. E ser obrigató­rio conformar-se a ela significa geralmente que, se não nos conformarmos, o juiz será por sua vez obrigado a intervir, atribuindo esta ou aquela sanção.

Se é verdade que os cidadãos muitas vezes agem sem se preocupar com as conseqüências jurídicas de suas ações, e, portanto, sem se perguntar se aquilo que fazem está ou não conforme a uma norma válida, o juiz aplica somente as normas que são, ou ele considera, válidas.

O juízo sobre a validade de uma norma é decisivo, se não sempre para a conduta do cidadão, sempre para a conduta do juiz.

Mas c o m o faz o cidadão ou o juiz para distinguir uma norma válida de uma inválida? Em outras palavras, c o m o fará para distinguir uma norma pertencente ao sistema de uma norma que a ele não pertence?

Afirmamos anteriormente que a primeira condição pa­ra que uma norma seja considerada válida é que ela adve­nha de uma autoridade c o m poder legítimo de estabele­cer normas jurídicas.

Mas qual é a autoridade que tem esse poder legítimo? Quem é essa autoridade à qual esse poder foi atribuído por uma norma superior, também legítima? E essa norma su­perior, de onde vem? Mais uma vez, de grau em grau, che­gamos ao poder supremo, cuja legitimidade é dada por uma norma além da qual não existe outra, e é portanto a nor­ma fundamental.

Assim podemos responder c o m o se pode estabelecer a pertinência de uma norma a um ordenamento: remon­tando de grau em grau, de poder em poder, até a norma fundamental.

E porque o fato de pertencer a um ordenamento sig­nifica validade, podemos concluir que uma norma é vali-

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da quando puder ser reinserida, não importa se através de um ou mais graus, na norma fundamental.

Então diremos que a norma fundamental é o critério ) supremo que permite estabelecer se uma norma pertence ^ a um ordenamento; em outras palavras, é o fundamento Cjie validade de todas as normas do sistema. Portanto, não

só a exigência de unidade do ordenamento mas também a exigência de fundamentar a validade do ordenamento nos induzem a postular a norma fundamental, a qual é, simul­taneamente, o fundamento de validade e o princípio uni­ficador das normas de um ordenamento. E c o m o um or­denamento pressupõe a existência de um critério para es­tabelecer se as partes pertencem ao todo, e um princípio que as unifique, não pode existir um ordenamento sem nor­ma fundamental. Uma teoria coerente do ordenamento ju­rídico e a teoria da norma fundamental são indissociáveis.

Mas alguém pode perguntar: "E a norma fundamental, sobre o que é que se funda?" Grande parte da hostilidade à admissão da norma fundamental deriva da objeção for­mulada em tal pergunta. Temos dito várias vezes que a nor­ma fundamental é um pressuposto do ordenamento: ela, num sistema normativo, exerce a mesma função que os pos­tulados num sistema científico. Os postulados são aquelas proposições primitivas das quais se deduzem outras, mas que, por sua vez, não são deduzíveis. Os postulados são co­locados por convenção ou por uma pretensa evidência des­tes; o mesmo se pode dizer da norma fundamental: ela é uma convenção, ou, se quisermos, uma proposição eviden­te que é posta no vértice do sistema para que a ela se pos­sam reconduzir todas as demais normas. À pergunta "so­bre o que ela se funda" deve-se responder que ela não tem fundamento, porque, se tivesse, não seria mais a norma fun­damental, mas haveria outra norma superior, da qual ela dependeria. Ficaria sempre aberto o problema do funda­mento da nova norma, e esse problema não poderia ser

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resolvido senão remontando também a outra norma, ou aceitando a nova norma c o m o postulado. Todo sistema tem um início. Perguntar o que estaria atrás desse início é problema estéril. A única resposta que se pode dar a quem quiser saber qual seria o fundamento do fundamento é que para sabê-lo seria preciso sair do sistema. Assim, no que diz respeito ao fundamento da norma fundamental, pode-se dizer que ele se constitui num problema não mais jurí­dico, cuja solução deve ser procurada fora do sistema ju­rídico, ou seja, daquele sistema que para ser fundado traz a norma fundamental c o m o postulado.

Com o problema do fundamento da norma fundamen­tal saímos da teoria do Direito positivo e entramos na se­cular discussão em torno do fundamento, ou melhor, da justificação, em sentido absoluto, do poder.

Podemos conceber as teorias tradicionais sobre o fun­damento do poder como tentativas de responder à pergun­ta: "Qual é o fundamento da norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo?"

Tais respostas podem ser dadas desde que se trans­cenda o ordenamento jurídico positivo, e se tome em con­sideração um ordenamento mais amplo, por exemplo , o ordenamento cósmico, ou o ordenamento humano de uma forma geral, do qual o ordenamento jurídico é considera­do uma parte; noutras palavras, desde que se faça a opera­ção de inserir um determinado sistema (no nosso caso o sistema jurídico) num sistema mais amplo.

Apresentamos aqui, c o m o ilustração daquilo que es­tamos dizendo, algumas respostas famosas dadas ao pro­blema do fundamento último do poder, tendo presente que cada uma dessas respostas pode ser concebida c o m o a for­mulação de uma norma superior à norma fundamental, na qual nos detivemos, e c o m o a descoberta de um poder su­perior ao poder constituinte, isto é, do poder que é a ver­dadeira fonte última de todo poder.

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a) Todo poder vem de Deus {pmnispotestas nisi a Deó). Essa doutrina integra a norma fundamental de um ordenamento jurídico afirmando que o dever da obediên­cia ao poder constituinte deriva do fato de que tal poder (como todo poder soberano) deriva de Deus, isto é, foi au­torizado por Deus a formular normas jurídicas válidas. O que significa que na pirâmide do ordenamento é preciso acrescentar um grau superior ao representado pelo poder normativo dos órgãos constitucionais. Esse grau superior é o poder normativo divino.

O legislador ordinário é delegado do legislador cons­tituinte; o legislador constituinte é delegado de Deus. A nor­ma fundamental, nesse caso, é aquela que faz de Deus a autoridade capaz de fixar normas obrigatórias para todos os homens e ao mesmo tempo manda que todos os ho­mens obedeçam às ordens de Deus.

b) O dever de obedecer ao poder constituinte deriva da lei natural. Por lei natural se entende uma lei que não foi estabelecida por uma autoridade histórica, mas é reve­lada ao homem através da razão. A definição mais freqüente do Direito natural é: dictamem rectae rationis (ditame da reta razão). Para dar uma justificação do direito positivo, as teorias jusnaturalistas descobrem um outro direito, su­perior ao direito positivo, que deriva não da vontade des­te ou daquele homem, mas da própria razão c o m u m a to­dos os homens . Algumas correntes jusnaturalistas susten­tam que um dos preceitos fundamentais da razão, e por­tanto da lei natural, é o de que é preciso obedecer aos go­vernantes (é a assim chamada teoria da obediência). Para quem sustenta essa teoria, a norma fundamental de um or­denamento positivo é fundada sobre uma lei natural que manda obedecer à razão, a qual por sua vez manda obede­cer aos governantes.

c) O dever de obedecer ao poder constituído deriva de uma convenção originária, da qual o poder tira a pró-

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pria justificação. Ao longo de todo o curso do pensamen­to político, desde a antigüidade até a era moderna, o fun­damento do poder foi achado amiúde no assim chamado contrato social, isto é, num acordo originário entre aque­les que se reúnem em sociedade, ou entre os membros de uma sociedade e aqueles aos quais é confiado o poder. Se­gundo essa doutrina, o poder constituído encontra sua le­gitimidade não mais no fato de derivar de Deus ou da na­tureza, mas na vontade concorde daqueles que lhe dão vi­da. Aqui a vontade coletiva tem a mesma função de Deus nas doutrinas teológicas e da razão nas doutrinas jusnatu­ralistas: isto é, a função de representar um grau superior além da norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo, aquele grau supremo que permita dar uma res­posta à pergunta sobre o fundamento do fundamento. Mas essa resposta, apesar das aparências, não é mais realista que as anteriores, e, c o m o elas, desloca o problema da existên­cia de um ordenamento jurídico para a sua justificação.

7. Direito e força

Além da objeção sobre o fundamento da norma fun­damental, a teoria da norma fundamental é objeto de uma outra crítica muito freqüente, que não diz mais respeito ao fato da existência de uma norma fundamental, mas ao seu conteúdo. A norma fundamental, assim c o m o a temos aqui pressuposta, estabelece que é preciso obedecer ao po­der originário (que é o m e s m o poder constituinte). Mas o que é poder originário? É o conjunto das forças políticas que num determinado m o m e n t o histórico tomaram o do­mínio e instauraram um n o v o ordenamento jurídico. Objeta-se então que fazer depender todo o sistema nor­mativo do poder originário significa reduzir o direito à for­ça. Em primeiro lugar não se deve confundir o poder com

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a força (particularmente c o m a força física). Falando em poder originário, falamos das forças políticas que instau­raram um determinado ordenamento jurídico. Que esta ins­tauração tenha acontecido mediante o exercício da força física não está absolutamente implícito no conceito de po­der. Pode-se muito bem imaginar um poder que repouse exclusivamente sobre o consenso. Qualquer poder origi­nário repousa um pouco sobre a força e um pouco sobre o consenso. Quando a norma fundamental diz que se de­ve obedecer ao poder originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos subme­ter àqueles que têm o poder coercitivo. Mas esse poder coercitivo p o d e estar na mão de alguém por consenso ge­ral. Os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que deles ema­nam. Nesse sentido, a força é um instrumento necessário do poder. Isso não significa que ela seja o fundamento. A força é necessária para exercer o poder, mas não para justificá-lo.

Dizendo que o Direito é fundado em última instância sobre o poder e entendendo por poder o poder coercitivo, quer dizer, o poder de fazer respeitar, também recorren­do à força, as normas estabelecidas, não dizemos nada de diferente daquilo que temos repetidamente afirmado em relação ao Direito c o m o conjunto de regras c o m eficácia reforçada. Se o Direito é um conjunto de regras c o m efi­cácia reforçada, isso significa que um ordenamento jurídi­co é impensável sem o exercício da força, isto é, sem um poder. Colocar o poder c o m o fundamento último de uma ordem jurídica positiva não quer dizer reduzir o Direito à força, mas simplesmente reconhecer que a força é ne­cessária para a realização do Direito.

Isso não é senão reforçar o concei to de Direito c o m o ordenamento c o m eficácia reforçada. Se a força é neces-

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sária para a realização do Direito, então existe ordem jurí­dica (isto é, que corresponde à definição que temos dado de Direito) somente enquanto se impõe pela força; nou­tras palavras, o ordenamento jurídico existe enquanto se­ja eficaz. Isso implica ainda uma diferença entre a conside­ração da norma singular e a do ordenamento em seu con­junto. Uma norma singular pode ser válida sem ser eficaz. O ordenamento jurídico tomado em seu conjunto só é vá­lido se for eficaz. A norma fundamental que manda obede­cer aos detentores do poder originário é aquela que legiti­ma o poder originário a exercer a força; e nesse sentido, sen­do que o exercício da força para fazer respeitar as normas é uma característica do ordenamento jurídico, a norma fun­damental, tal c o m o foi aqui concebida, é verdadeiramente a base do ordenamento jurídico.

Aqueles que temem que c o m a norma fundamental, c o m o foi aqui concebida, se realize a redução do Direito à força se preocupam não tanto c o m o Direito, mas c o m a justiça. Essa preocupação, entretanto, está fora de lugar. A definição do Direito, que aqui adotamos, não coincide c o m a de justiça. A norma fundamental está na base do Di­reito c o m o ele é (o Direito positivo), não do Direito c o m o deveria ser (o Direito justo). Ela autoriza aqueles que de­têm o poder a exercer a força, mas não diz que o uso da força seja justo só pelo fato de ser vontade do poder origi­nário. Ela dá uma legitimação jurídica, não moral, do po­der. O Direito, c o m o ele é, é expressão dos mais fortes, não dos mais justos. Tanto melhor, então, se os mais for­tes forem também os mais justos.

Existe uma outra maneira de entender as relações entre o Direito e a força, que foi defendida recentemente por Ross, mas se apoia sobretudo em Kelsen. Para falar­mos em poucas palavras, até agora temos defendido que a força é um instrumento para a realização do Direito (en­tendido no sentido amplo c o m o ordem jurídica). A teoria

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enunciada por Kelsen e defendida por Ross sustenta, ao contrário, que a força é o objeto da regulamentação jurídi­ca, isto é, que por Direito deve-se entender não um con­junto de normas que se tornam válidas através da força, mas um conjunto de normas que regulam o exercício da força numa determinada sociedade. Quando Kelsen diz que o Direito é um ordenamento coercitivo quer dizer que é composto por normas que regulam a coação, isto é, que dispõem sobre a maneira pela qual se devem aplicar cer­tas sanções. Textualmente: "Uma regra é uma regra jurídi­ca não porque a sua eficácia é garantida por uma outra re­gra que dispõe uma sanção; uma regra é uma regra jurí­dica porque dispõe uma sanção. O problema da coerção não é o problema de garantir a eficácia das regras, mas o pro­blema do conteúdo das regras".1 Igualmente expl íc i to é Ross: " D e v e m o s insistir sobre o fato de q u e a relação entre as normas jurídicas e a força consis te em que elas d izem respei to à aplicação da força e n ã o em q u e são protegidas por meio da força". 2 E ainda: " U m sistema jurídico nacional é um conjunto de normas q u e d izem respeito ao exerc í c io da força física" 3

Parece-me claro que essa maneira de entender o Direito, q u e des loca a força de ins trumento para obje­to da regulamentação jurídica, está estri tamente ligada à teoria q u e considera c o m o normas jurídicas s o m e n t e as normas secundárias, isto é, as normas q u e t êm por destinatários os órgãos judiciários. Não é por acaso que Kelsen l e v o u às extremas c o n s e q ü ê n c i a s a tese de que as normas jurídicas são só as secundárias, ao p o n t o de

(1) Teoria generale del diritto e dello stato, ed. italiana, Milão, 1952, pp. 28-9

(2) A. Ross. On Law and Justice, Londres, 1958, p. 53. (3) Op cit., p. 52.

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chamá-las "primárias". As normas secundárias de fato p o d e m ser definidas c o m o aquelas q u e regulam o m o ­do e a medida em q u e d e v e m ser aplicadas as sanções . Se a sanção é, em última instância, um ato de força, as normas, regulando a aplicação das sanções , regulam na realidade o exerc íc io da força. Se i sso é verdade e Kel­sen o confirma, seja através da presença da def inição do Direito c o m o regra da força, seja através da identi­f icação das normas jurídicas c o m as normas secundá­rias, a refutação desse m o d o de entender as re lações entre Direito e força p o d e ser feita c o m os m e s m o s ar­g u m e n t o s c o m q u e já t entamos refutar a cons ideração das normas secundárias c o m o únicas normas jurídicas no livro anterior

Podemos, aqui, acrescentar alguma coisa do ponto de vista da teoria do ordenamento jurídico. A definição de Di­reito c o m o conjunto de regras para o exercício da força é uma definição do Direito que podemos classificar entre as definições a respeito do conteúdo. Mas é uma definição extremamente limitativa. Se considerarmos as normas sin­gulares de um ordenamento, essa limitação da definição salta logo aos olhos: chamamos normas jurídicas também aquelas que estabelecem de que m o d o é obrigatório, ou proibido, ou lícito os cidadãos comportarem-se. C o m o te­mos dito mais de uma vez, a juridicidade de uma norma se determina não através de seu conteúdo (nem pela for­ma, ou pelo fim, e assim por diante), mas simplesmente através do fato de pertencer ao ordenamento, fato este que, por sua vez, sq determina remontando da norma inferior à superior, até a norma fundamental. Se considerarmos o ordenamento jurídico em seu conjunto , é certamente lícito dizer que um ordenamento se torna jurídico quan­do se v ê m formando regras p e l o u s o da força (passa-se da fase do uso indiscriminado à do u s o l imitado e c o n ­trolado da força); mas não é igualmente lícito dizer, em

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conseqüência disso, que um ordenamento jurídico é um conjunto de regras para o e x e r c í c i o da força. As regras para o exerc í c io da força são , n u m o r d e n a m e n t o jurí­d ico , aquela parte de regras q u e serve para organizar a sanção e portanto para tornar mais ef icazes as nor­mas de c o n d u t a e o próprio o r d e n a m e n t o em sua tota­lidade. O obje t ivo de t o d o legislador n ã o é organizar a força, mas organizar a sociedade mediante a força.

As definições de Kelsen e Ross parecem limitativas tam­bém com respeito ao ordenamento jurídico tomado em seu conjunto, porque confundem a parte c o m o todo, o ins­trumento c o m o fim.

CAPÍTULO 3

A coerência do ordenamento jurídico

/. O ordenamento jurídico como sistema

No capítulo anterior falamos da unidade do ordena­mento jurídico, e mostramos que se p o d e falar de unidade somente se se pressupõe c o m o base do ordenamento uma norma fundamental c o m a qual se possam, direta ou indi­retamente, relacionar todas as normas do ordenamento. O próximo problema que se nos apresenta é se um orde­namento jurídico, além de uma unidade, constitui também um sistema. Em poucas palavras, se é uma unidade siste­mática. Entendemos por "sistema" uma totalidade orde­nada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessá­rio que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento c o m o todo, mas também num relaciona­mento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos per­guntamos se as normas que o c o m p õ e m estão num rela­cionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação.

O problema do sistema jurídico foi até agora escassa­mente estudado. Juristas e filósofos do Direito falam em geral do Direito c o m o de um sistema; mas em que consis­te este sistema não fica muito claro. Podemos também, aqui, começar pela análise do conceito de sistema feita por Kelsen. Ele distingue entre os ordenamentos normativos dois tipos de sistemas, um que chama estático e outro dinâmico.

Sistema estático é aquele no qual as normas estão re-

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lacionadas umas às outras c o m o as proposições de um sis­tema dedutivo, ou seja, pelo fato de que derivam umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de ca­ráter geral, que têm a mesma função dos postulados ou axio­mas num sistema científico. Um exemplo: Hobbes põe co­mo fundamento da sua teoria do Direito e do Estado a má­xima Pax est quaerenda (A paz deve ser procurada), e com isso quer entender que o postulado ético fundamental do homem é a necessidade de evitar a guerra e procurar a paz; dessa regra fundamental deduz ou pretende deduzir todas as principais regras da conduta humana, que chama de leis naturais. É claro então que todas essas leis formam um sis­tema, u m a v e z q u e são deduzidas da primeira. Uma se­melhante cons trução de um c o n j u n t o de normas é o que Kelsen chama de "sistema estát ico". Pode-se di­zer, em outras palavras, que n u m sistema desse g ê n e r o as normas es tão relacionadas entre s i no q u e se refere ao seu conteúdo.

Sistema dinâmico, por outro lado, é aquele no qual as normas que o compõem derivam umas das outras atra­vés de sucessivas delegações de poder, isto é, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colo­cou; uma autoridade inferior deriva de uma autoridade su­perior, até que chega à autoridade suprema que não tem nenhuma outra acima de si. Pode-se dizer que a relação entre as várias normas é, nesse tipo de ordenamento nor­mativo, não material, mas formal. Um exemplo de siste­ma dinâmico seria aquele que colocasse no vértice do or­denamento a máxima "É preciso obedecer à vontade de Deus". Nesse caso, o fato de outras normas pertencerem ao sistema não seria determinado pelo seu conteúdo, isto é, pelo fato de que estabelecem uma certa conduta de pre­ferência a outra, mas pelo fato de que através da passagem de uma autoridade a outra possam ser reconduzidas à au­toridade divina.

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 73

A distinção entre os dois tipos de relação entre nor­mas, a material e a formal, é constatável na experiência diá­ria, quando, encontrando-nos na situação de ter que justi­ficar uma ordem (e a justificação é feita inserindo-a num sistema), abrimos dois caminhos, ou seja, o de justificá-la deduzindo-a de uma ordem de abrangência mais geral ou o de atribuí-la a uma autoridade indiscutível. Por exem­plo, um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho pergun­ta: "Por quê?" Se o pai responde: "Porque d e v e s apren­der", a justificação tende à construção de um sistema es­tático; se responder: "Porque deves obedecer a teu pai", a justificação tende à construção de um sistema dinâmico. Digamos que o filho, não satisfeito, peça outra justificação. No primeiro caso perguntará: "Por que devo aprender?" A construção do sistema estático levará a uma resposta deste tipo: "Porque precisas ser aprovado". No segundo caso perguntará: "Por que d e v o obedecer a meu pai?" A cons­trução do sistema dinâmico levará a uma resposta deste ti­po: "Porque teu pai foi autorizado a mandar pela lei do Estado". Observem-se, no exemplo , os dois diferentes ti­pos de relação para passar de uma norma a outra: no pri­meiro caso, através do conteúdo da prescrição; no segun­do caso, através da autoridade que a co locou.

Feita a distinção, Kelsen sustenta que os ordenamen­tos jurídicos são sistemas do segundo tipo; são sistemas di­nâmicos. Sistemas estáticos seriam os ordenamentos mo­rais. Surge aqui outro critério para a distinção entre Direi­to e moral. O ordenamento jurídico é um ordenamento no qual o enquadramento das normas é julgado c o m base num critério meramente formal, isto é, independentemente do conteúdo; o ordenamento moral é aquele cujo critério de enquadramento das normas no sistema é fundado so­bre aquilo que as normas prescrevem (e não sobre a auto­ridade de que derivam). Mas, se é assim, parece difícil fa­lar apropriadamente do ordenamento jurídico como de um

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sistema, isto é, chamar "sistema" ao sistema de tipo dinâ­mico com a mesma propriedade c o m que se fala em geral de sistema c o m o totalidade ordenada, e em particular de um sistema estático. Que ordem pode haver entre as nor­mas de um ordenamento jurídico, se o critério de enqua­dramento é puramente formal, isto é, referente não à con­duta que elas regulam, mas unicamente à maneira com que foram postas? Da autoridade delegada pode emanar qual­quer norma? E se pode emanar qualquer norma, pode ema­nar também uma norma contrária àquela emanada de uma outra autoridade delegada? Mas poderíamos ainda falar de sistema, de ordem, de totalidade ordenada num conjunto de normas no qual duas normas contraditórias fossem am­bas legítimas? Num ordenamento jurídico complexo, como aquele que temos sempre sob as vistas, caracterizado pela pluralidade das fontes, parece não haver dúvida de que pos­sam existir normas produzidas por uma fonte em contras­te com normas produzidas por outra. Ora, atendo-se à de­finição de sistema dinâmico c o m o o sistema no qual o cri­tério do enquadramento das normas é puramente formal, deve-se concluir que num sistema dinâmico duas normas em opos i ção são perfeitamente legítimas. E de fato, para julgar a o p o s i ç ã o de duas normas é necessário examinar o seu conteúdo; não basta referir-se à autoridade da qual emanaram. Mas um ordenamento que admita no seu seio entes em opos i ção entre si p o d e ainda chamar-se "siste­ma"? Como se vê, que um ordenamento jurídico consti­tua um sistema, sobretudo se se partir da identificação do ordenamento jurídico com o sistema dinâmico, é tudo, me­nos óbvio. Ou, pelo menos, cumpre precisar, se se quiser continuar a falar de sistema normativo em relação ao Di­reito, em qual sentido, em quais condições e dentro de quais limites se pode falar dele.

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 75

2. Três significados de sistema

Na linguagem jurídica corrente o uso do termo "sis­tema" para indicar o ordenamento jurídico é comum. Nós mesmos, nos capítulos anteriores, usamos às vezes a ex­pressão "sistema normativo" em vez de "ordenamento ju­rídico", que é mais freqüentemente usada. Mas qual seja exatamente o significado da palavra "sistema", referida ao ordenamento jurídico, geralmente não é esclarecido. Con­sideremos, para o caso, dois entre os autores italianos mais c o n h e c i d o s , Del V e c c h i o e Perassi. Lemos no ensaio de Del Vecchio, Sobre a estatalidade do direito, este trecho: "Cada proposição jurídica em particular, mesmo poden­do ser considerada também em si mesma, na sua abstrati-vidade, tende naturalmente a se constituir em sistema. A necessidade da coerência lógica leva a aproximar aquelas que são compatíveis ou respectivamente complementares entre si, e a eliminar as contraditórias ou incompatíveis. A vontade, que é uma lógica viva, não pode desenvolver-se também no campo do Direito, a não ser que ligue as suas afirmações, à guisa de reduzi-las a um todo harmônico". 1

Perassi, em sua Introdução às ciências jurídicas: "As normas, que entram para constituir um o r d e n a m e n t o , n ã o f icam isoladas, mas tornam-se parte de um siste­ma, uma vez que certos princípios agem c o m o ligações, pelas quais as normas são mantidas juntas de maneira a constituir um b l o c o s i s temát ico" . 2

Q u a n d o passamos das declarações programáticas ao exerc íc io da atividade do jurista e n c o n t r a m o - n o s diante de uma outra prova da tendência constante da jurisprudência de considerar o Direito c o m o sistema:

(1) O ensaio, que é de 1928, se encontra nos Studi sul diritto, 1958, v. 1, pp. 89-115. O trecho citado está na página 97.

(2) T. Perassi. Introduzione alie scienze giuridicbe, 1953, p. 32.

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a cons ideração c o m u m , entre as várias formas da in­terpretação, da chamada interpretação sistemática. Chama-se "interpretação s istemática" aquela forma de interpretação q u e tira os seus argumentos do pressu­p o s t o de q u e as normas de um o r d e n a m e n t o , o u , mais exatamente, de uma parte do ordenamento ( c o m o o Di­reito privado, o Direito penal) const i tuam u m a totali­dade ordenada ( m e s m o que depo i s s e d e i x e u m p o u c o no vazio o que se deva entender c o m essa expressão), e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente recorrendo a o chamado "espírito d o s istema", m e s m o i n d o c o n ­tra aquilo que resultaria de uma interpretação meramen­te literal. T a m b é m aqui, para exemplif icar, l e m b r a m o s q u e o artigo 2 6 5 do C. C. italiano r e c o n h e c e s o m e n t e a v io lência e n ã o o erro entre os v í c ios do reconhec i ­m e n t o d o f i l h o natural. U m intérprete, q u e a c h o u q u e devia aceitar entre o s v íc ios do r e c o n h e c i m e n t o do f i ­lho natural t a m b é m o erro, contra a letra da Lei, t e v e q u e apelar para a chamada v o n t a d e objet iva da Lei, is­to é , para "aquele c o m a n d o que , por ser f u n d a d o s o ­bre a lógica do inteiro sistema, p o d e dizer-se realmen­te def init ivo para o intérprete". 3 Q u e o o r d e n a m e n t o jurídico, ou p e l o m e n o s parte dele , const i tua um siste­ma é um pressupos to da atividade interpretativa, um d o s o s s o s do of íc io , d igamos assim, do jurista.

Mas a existência de um sistema normat ivo t a m b é m não significa que se saiba exatamente q u e t ipo de siste­ma é esse . O termo "sistema" é um daqueles t e r m o s de muitos significados, que cada um usa c o n f o r m e suas próprias conven iênc ias .

(3) F. Salvi. "L'errore nell'accertamento delia filiazione naturale", Riv. Trim. Dir. e proc. Civ., VI (1952), p. 24.

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 77

No uso histórico da fi losofia do Direito e da juris­prudência parece-me q u e e m e r g e m três diferentes sig­nificados de sistema. Um primeiro signif icado é o mais próx imo ao significado de "sistema" na expressão "sis­tema dedut ivo" , o u , mais exatamente , foi baseado ne­le. Em tal acepção diz-se q u e um d a d o o r d e n a m e n t o é um sistema e n q u a n t o todas as normas jurídicas da­quele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais (ditos "princípios gerais do Direito"), cons ide ­rados da m e s m a maneira q u e os pos tu lados de um sis­tema científico. Essa a c e p ç ã o m u i t o trabalhada do ter­mo "sistema" foi referida his tor icamente s o m e n t e ao o r d e n a m e n t o do Direito natural. Uma das mais c o n s ­tantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, perten­centes à escola racionalista, foi a de construir o Direito natural c o m o um sistema dedut ivo . E uma v e z q u e o e x e m p l o clássico do s istema d e d u t i v o era a geometr ia de Euclides, a pretensão d o s jusnaturalistas resolvia-se na tentativa (verdadeiramente desesperada) de e labo­rar um sistema jurídico geométrico more demonstra-tum. Ci temos um trecho m u i t o significativo de Leib-niz: "De qualquer definição p o d e m - s e tirar c o n s e q ü ê n ­cias seguras, e m p r e g a n d o as incontestáve is regras da lógica. Isso é prec isamente o q u e se faz cons tru indo as c iências necessárias e demonstrat ivas , q u e n ã o d e p e n ­d e m d o s fatos mas un icamente da razão, c o m o a lógi­ca, a metafísica, a geometria , a c iência do m o v i m e n t o , a Ciência do Direito, as quais não são de m o d o n e n h u m fundadas na exper iênc ia e n o s fatos, mas s e r v e m para dar a razão dos fatos e regulá-los por antecipação: i s so valeria para o Direito ainda q u e n ã o h o u v e s s e no m u n ­do uma só le i". 4 "A teoria do Direito faz parte do nú-

(4) Riflessioni sulla nozione comune di giustizia", in Scritti politici e di

diritto naturale, ed. Utet, Turim, 1951, p. 219.

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mero daquelas que não d e p e n d e m de experiências, mas de def inições: não do que mostram os sent idos , mas do que demonstra a razão."

Um s e g u n d o significado de s istema, q u e n ã o t em nada a ver c o m o que foi i lustrado, e n c o n t r a m o - l o na ciência do Direito m o d e r n o , que nasce, p e l o m e n o s no Cont inente , da pandectista alemã, e v e m de Savigny, que é o autor, não por acaso, do cé lebre Sistema do Direito romano atual. É mui to freqüente entre os ju­ristas a op in ião de q u e a c iência jurídica m o d e r n a nas­ceu da passagem da jurisprudência exegét ica à jurispru­dência sistemática o u , em outras palavras, q u e a juris­prudência se e levou ao nível de ciência tornando-se "sis­temática". Parece quase se querer dizer q u e a jurispru­dência n ã o m e r e c e o n o m e de c iência e n q u a n t o n ã o chega a sistema, mas que é s o m e n t e arte hermenêut i ­ca, técnica, comentár io a textos legislativos. Muitos tra­tados de juristas são intitulados Sistema, ev identemente para indicar q u e se d e s e n v o l v e u ali um e s t u d o científi­c o . O q u e significa nesta a c e p ç ã o "sistema"? Os juris­tas não pre tendem certamente dizer q u e a jurisprudên­cia sistemática consista na d e d u ç ã o de t o d o o Direito de alguns princípios gerais, c o m o queria Leibniz. Aqui o termo "sistema" é usado, ao contrário, para indicar um o r d e n a m e n t o da matéria, realizado através do pro­c e s s o indut ivo , i s to é , partindo do c o n t e ú d o das sim­ples normas c o m a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, e classif icações ou d iv i sões da ma­téria inteira: a conseqüênc ia destas operações será o or­d e n a m e n t o d o material jurídico d o m e s m o m o d o q u e as laboriosas classif icações do z o ó l o g o dão um orde­namento ao re ino animal. Na expres são "jurisprudên-

(5) "Elementi di diritto naturale", op. cit., p. 87.

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 79

cia sistemática" usa-se a palavra "s is tema" n ã o no sen­t ido das ciências dedutivas, mas no das ciências empí­ricas ou naturais, isto é , c o m o o r d e n a m e n t o d e s d e bai­x o , d o m e s m o m o d o c o m q u e s e fala d e uma zoo log ia sistemática. O p r o c e d i m e n t o t íp ico dessa forma de sis­tema não é a d e d u ç ã o , mas a classificação. A sua fina­lidade não é mais a de desenvo lver analiticamente, me­diante regras preestabelecidas, alguns postulados iniciais, mas a de reunir os dados fornec idos pela experiência , c o m base nas semelhanças , para formar conce i to s sem­pre mais gerais até alcançar aqueles c o n c e i t o s "gene­ralíssimos" que permitam unificar t o d o o material da­d o . Teremos plena consc i ênc ia do signif icado de siste­ma c o m o ordenamento desde baixo, próprio da juris­prudência sistemática, se l evarmos em conta q u e uma das maiores conquistas de q u e se orgulha essa jurispru­dência foi a teoria do n e g ó c i o jurídico. O conce i to de ne­góc io jurídico é manifestamente o resultado de um esfor­ço construtivo e sistemático no sent ido do sistema empí­rico que ordena generalizando e classificando. Surgiu da reunião de f enômenos vários e talvez aparentemente dis­tantes, mas que t inham em c o m u m a característica de serem manifestações d e v o n t a d e s c o m c o n s e q ü ê n c i a s jurídicas. O c o n c e i t o mais geral e laborado pela juris­prudência sistemática é m u i t o provave lmente o do re­lac ionamento jurídico: é um c o n c e i t o que permite a re­dução de todos os f e n ô m e n o s jurídicos a um e s q u e m a ún ico , e favorece portanto a cons trução de um siste­ma no sent ido de sistema empír ico ou indutivo. O con­ce i to de re lac ionamento jurídico é o c o n c e i t o sistemá­t ico por exce lênc ia da c iência jurídica moderna . Mas é claro q u e a sua função n ã o é a de iniciar um p r o c e s s o de d e d u ç ã o , mas a de permitir um m e l h o r o r d e n a m e n ­to da matéria.

O terceiro significado de sistema jurídico é sem dúvi-

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da o mais interessante, e é aquele sobre o qual nos detere­mos neste capítulo. Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele nor­mas incompatíveis. Aqui, "sistema" equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, e esse relacionamen­to é o relacionamento de compatibilidade, que implica a exclusão da incompatibilidade. Note-se porém que dizer que as normas devam ser compatíveis não quer dizer que se encaixem umas nas outras, isto é, que constituam um sistema dedutivo perfeito. Nesse terceiro sentido de siste­ma, o sistema jurídico não é um sistema dedutivo, c o m o no primeiro sentido: é um sistema num sentido menos in­cisivo, se se quiser, num sentido negativo, isto é, uma or­dem que exclui a incompatibilidade das suas partes sim­ples. Duas proposições como: "O quadro negro é negro" e "O café é amargo" são compatíveis, mas não se encai­xam uma na outra. Portanto, não é exato falar, c o m o se faz freqüentemente, de coerência do ordenamento jurídi­co, no seu conjunto; pode-se falar de exigência de coerência somente entre suas partes simples. Num sistema dedutivo, se aparecer uma contradição, todo o sistema ruirá. Num sistema jurídico, a admissão do princípio que exclui a in­compatibilidade tem por conseqüência, em caso de incom­patibilidade de duas normas, não mais a queda de todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou no má­ximo das duas.

Por outro lado, confrontado c o m um sistema deduti­vo, o sistema jurídico é alguma coisa de menos ; confron­tado com o sistema dinâmico, do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 81

de uma norma no sistema não bastará mostrar a sua deri­vação de uma das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que ela n ã o é incompat íve l c o m outras normas. Nesse sentido, nem todas as normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas, mas somen­te aquelas compatíveis c o m as outras. Cumpre descobrir, por outro lado, se esse princípio que exclui a incompati­bilidade existe e qual é a sua função.

3. As antinomias

A situação de normas incompatíveis entre si é uma di­ficuldade tradicional frente à qual se encontraram os juris­tas de todos os tempos, e teve uma denominação própria característica: antinomia. A tese de que o ordenamento jurídico constitua um sistema no terceiro sentido exposto pode-se exprimir também d izendo que o Direito não to­lera antinomias. Em nossa tradição romanística o proble­ma das antinomias já foi posto c o m muita clareza nas duas célebres const i tuições de Justiniano, e c o m ele se abre o Digesto; aqui Justiniano afirma imperiosamente que no Di­gesto não há normas incompatíveis e usa a palavra antino­mia. "Nulla itaque in omnibus praedicti codicis membris antinomia (sic enim a vetustate Graeco vocábulo non-cupatur) aliquid sibi vindicet locum, sed sit una concór­dia, una consequentia, adversário nemine constituto" (Deo auctore, ou De conceptione digestorum). Analogamen­te: "Contrarium autem aliquid inhoc códice positum nul-lum sibi locum vindicabit nec invenitur, si quis subtili ani­mo diversitatis rationes excutiet" (Tanta, ou De confir-matione digestorum). O fato de no Direito romano, con­siderado por longos séculos o Direito por excelência, não existirem antinomias foi regra constante para os intérpre­tes, pelo menos enquanto o Direito romano foi o Direito

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vigente. Uma das finalidades da interpretação jurídica era também a de eliminar as antinomias, caso alguma tivesse aparecido, recorrendo aos mais diversos meios hermenêu­ticos. Nessa obra de resolução das antinomias foram ela­boradas algumas regras técnicas que veremos a seguir.

Mas antes temos que responder à pergunta: quando duas normas são ditas incompatíveis? Em que consiste uma antinomia jurídica? Para esclarecer esse ponto recorrere­mos ao que dissemos no livro anterior sobre os relaciona­mentos intercorrentes entre as quatro figuras de qualifica­ção normativa, o obrigatório, o proibido, o permitido po­sitivo e o permitido negativo. Usemos por comodidade o quadrado, ilustrativo desses relacionamentos, já represen­tado no livro Teoria delia norma giuridica:

= obrigatório

= proibido

. permitido negativo

= permitido positivo

não O não subcontrários não O

Esse quadrado representa seis relações, vale dizer:

1 ) 0 — O não: relação entre obrigatório e proibido; 2) O — não O: relação entre obrigatório e permitido

negativo;

3) O não — não O não: relação entre proibido e per­mitido positivo;

4) O — não O não: relação entre obrigatório e per­mitido positivo;

5) O não — não O: relação entre proibido e permiti­do negativo;

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO 83

6) não O não — não O: relação entre permitido po­sitivo e permitido negativo.

Se definirmos c o m o incompatíveis duas proposições (no caso duas normas) que não podem ser ambas verda­deiras, das seis relações indicadas três são de incompati­bilidade e três de compatibilidade. São relações de incom­patibilidade as três primeiras; são relações de compatibili­dade as três últimas. De fato:

1) O e O não são dois contrários, e dois contrários podem ser ambos falsos (F), mas não podem ser ambos verdadeiros (V):

O O não

V F

F V ou F

2) O e não O são dois contraditórios, e dois contra­ditórios não podem ser nem ambos verdadeiros nem am­bos falsos:

O não 0

V F

F V

3) O não e não O não são dois contraditórios, e vale para eles a regra anterior:

O não não O não

V F

F V

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84 NORBERTO B O B B I O

4) O e não O não são dois subalternos, entre os quais existe uma relação de implicação, no sentido de que da verdade do primeiro (ou subalternante) deduz-se a verda­de do segundo e não vice-versa, e da falsidade do segun­do (ou subalternado) deduz-se a falsidade do primeiro e não vice-versa. (Se uma ação é obrigatória, é necessaria­mente também permitida, enquanto não é dito que uma ação permitida seja também obrigatória). Graficamente, dis­tinguimos a relação qúe vai de O a não O não (ou relação de superimplicação) daquela que vai de não O não a O (ou relação de subimplicação):

O não O não não O não O

V V V V ou F

F F ou V F F

5) O não e não O são também eles subalternos, e va­lem as considerações do número anterior.

6) não O não e não O são subcontrários e vale para eles a regra de que podem ser ambos verdadeiros, mas não podem ser ambos falsos:

não O não não O

F V

V V ou F

Se observarmos com atenção as representações gráfi­cas, resultará que nos primeiros três casos nunca teremos

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO 85

uma situação na qual se encontrem lado a lado dois W (o que significa que em nenhum dos primeiros três casos as duas proposições podem ser ambas verdadeiras); ao con­trário, nos últimos três casos podem-se encontrar um ao lado do outro os dois VV (o que significa que nesses três casos as duas proposições p o d e m ser ambas verdadeiras). Repetimos, portanto, que, se definirmos c o m o normas in­compatíveis aquelas que não podem ser ambas verdadei­ras, relações de incompatibilidade normativa verificar-se-ão nestes três casos:

1) entre uma norma que ordena fazer algo e uma nor­ma que proíbe fazê-lo {contrariedade);

2) entre uma norma que ordena fazer e uma que per­mite não fazer {contraditoriedade);

3) entre uma norma que proíbe fazer e uma que per­mite fazer {contraditoriedade).

Ilustremos estes três casos c o m três exemplos: 6

Primeiro caso: o art. 27 da Const i tuição italiana, no qual se lê: "A responsabi l idade penal é pessoal" , está em oposição c o m o art. 57 , § 2 ? , do C. P., o qual atri­bui ao diretor de jornal uma responsabi l idade para os del i tos c o m e t i d o s por m e i o da imprensa p e l o seus c o ­laboradores, se se interpretar este artigo c o m o confi-gurante de uma responsabilidade objetiva (mas pode-se interpretar também de outras formas que fazem desa­parecer a antinomia). Trata-se de dois artigos dirigidos aos órgãos judiciários, d o s quais o primeiro p o d e ser formulado deste m o d o : "Os juízes não devem c o n d e ­nar n inguém que n ã o seja pes soa lmente responsável"; e o s egundo: "Os juízes devem condenar a lguém (no

(6) Tiramos estes exemplos e outros temas deste capítulo do livro de G Cavazzi. Delle antinomie, Turim, 1959.

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caso espec í f i co o diretor de jornal), m e s m o n ã o s e n d o pessoa lmente responsável" . Uma v e z q u e uma norma obriga e a outra proíbe o m e s m o comportamento , trata-se de duas normas incompat íve i s por contrariedade.

S e g u n d o caso: o art. 18 do T. U. das leis sobre a Segurança Pública italiana diz: "Os p r o m o t o r e s de uma reunião n u m lugar públ ico ou aberto ao públ ico d e v e m avisar, p e l o m e n o s três dias antes, o de l egado"; o art. 17, § 2? da Const i tuição diz: "Para as reuniões , tam­b é m em lugares abertos ao públ ico , n ã o é e x i g i d o avi­so prév io" . Aqui a o p o s i ç ã o está clara: o art. 18 do T. U. obriga a fazer aquilo q u e o art. 17 da Const i tuição permite n ã o fazer. Trata-se de duas normas incompatí ­veis p o r q u e são contraditórias.

Terceiro caso: o art. 502 do C. P. italiano cons ide ­ra a greve c o m o um delito; o art. 40 da Const i tuição diz que: "O direito à greve exercita-se no âmbi to das leis que o regulam". O q u e a primeira norma proíbe , a segunda norma considera l ícito, i s to é, permite fazer (se b e m que dentro de certos limites). T a m b é m essas duas normas são incompat íve is por contraditoriedade.

4. Vários tipos de antinomias

Definimos a antinomia c o m o aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o m e s m o comportamen­to. Mas a definição não está completa. Para que possa ocor­rer antinomia são necessárias duas condições , que, embo­ra óbvias, devem ser explicitadas:

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 87

1) As duas normas devem pertencer ao mesmo orde­namento. O problema de uma antinomia entre duas nor­mas pertencentes a diferentes ordenamentos nasce quan­do eles não são independentes entre si, mas se encontram em um relacionamento qualquer que pode ser de coorde­nação ou de subordinação. Veremos melhor a natureza do problema no último capítulo, dedicado aos relacionamentos entre ordenamentos. Aqui, basta-nos aludir à tradicional discussão em torno da compatibilidade das normas de um ordenamento positivo c o m as do Direito natural. Um ver­dadeiro problema de antinomias entre Direito positivo e Direito natural (isto é, entre dois ordenamentos diferen­tes) subsiste na medida em que se considere o Direito po­sitivo como ordenamento subordinado ao Direito natural: nesse caso, o intérprete será obrigado a eliminar não so­mente as antinomias no interior do ordenamento positi­vo , mas também as subsistentes entre ordenamento posi­tivo e ordenamento natural. Falamos até agora do ordena­mento jurídico c o m o sistema. Mas nada impede que o sis­tema resulte da relação de alguns ordenamentos num or­denamento mais geral. A mesma passagem da norma infe­rior à norma superior, que constatamos no interior de um ordenamento simples, pode subsistir de ordenamento in­ferior a ordenamento superior, até um ordenamento su­premo que os abraça a todos (ao Direito natural foi atri­buída normalmente a função dessa coordenação univer­sal de todo o Direito).

2) As duas normas devem ter o mesmo âmbito de va­lidade. Distinguem-se quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material. Não cons­tituem antinomia duas normas que não coincidem com res­peito a:

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a) val idade temporal: "É pro ib ido fumar das cin­co às s e t e " n ã o é incompat íve l c o m : "É permit ido fu­mar das se te às n o v e " ;

b) val idade espacial: "É pro ib ido fumar na sala de c inema" n ã o é incompat íve l c o m : "É permit ido fumar na sala de espera";

c ) val idade pessoal: "É pro ib ido , aos m e n o r e s de 18 anos , fumar" n ã o é incompat íve l c o m "É permiti­do aos adultos fumar";

d) validade material: "É proibido fumar charutos" não é incompat íve l c o m "É permit ido fumar cigarros".

Após essas espec i f icações , p o d e m o s definir nova­m e n t e a ant inomia jurídica c o m o aquela s i tuação que se verifica entre duas normas incompatíveis , pertencen­tes ao mesmo ordenamento e tendo o m e s m o âmbito de validade. As antinomias, assim definidas, p o d e m ser, por sua vez , distintas em três t ipos diferentes , c o n f o r m e a maior ou m e n o r e x t e n s ã o do contraste entre as duas normas:

1) Se as duas normas incompat íve i s t ê m igual âm­bito de val idade, a ant inomia p o d e - s e chamar, seguin­do a terminologia de Ross (que c h a m o u a a tenção so ­bre esta distinção), 7 total-total: em n e n h u m caso uma das duas normas p o d e ser aplicada s e m entrar em c o n ­flito c o m a outra.

Exemplo: "É pro ib ido , aos adultos , fumar das cin­co às se te na sala de c i n e m a " e "É permit ido , aos adul­tos, fumar das c i n c o às s e t e na sala de c inema" . Entre o s e x e m p l o s dados anter iormente , u m caso d e antino-

(7) A. Ross. On Law and Justice, Londres, 1958, pp. 128 9.

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 89

mia total-total é a oposição entre a proibição da greve e a permissão da greve.

2 ) Se as duas normas incompat íve i s t êm âmbi to de validade em parte igual e em parte diferente, a antinomia subsiste s o m e n t e para a parte c o m u m , e p o d e chamar-se parcial-parcial: cada uma das normas t em um c a m p o de aplicação em conflito c o m a outra, e um c a m p o de aplica­ç ã o no qual o conf l i to n ã o ex is te .

Exemplo:"Ê pro ib ido , aos adultos , fumar cachim­bo e charuto das c i n c o às sete na sala de c i n e m a " e "É permitido, aos adultos, fumar charuto e cigarro das cin­co às sete na sala de cinema".

3) Se, de duas normas incompatíveis , uma tem um âmbito de val idade igual ao da outra, p o r é m mais res­trito, o u , em outras palavras, se o seu âmbi to de vali­dade é, na íntegra, igual a u m a parte do da outra, a an­tinomia é total por parte da primeira norma c o m respei­to à segunda, e s o m e n t e parcial por parte da segunda c o m respeito à primeira, e pode-se chamar total-parcial. A primeira norma não p o d e ser em n e n h u m caso apli­cada s e m entrar em conf l i to c o m a segunda; a s egunda tem uma esfera de apl icação em q u e n ã o entra em c o n ­flito c o m a primeira.

Exemplo: "É pro ib ido , aos adultos , fumar das cin­co às sete na sala de c i n e m a " e "É permit ido, aos adul­tos, fumar, das c inco às sete, na sala de cinema, somente cigarros".

Ao lado do significado aqui exposto de antinomia co­mo situação produzida pelo encontro de duas normas in­compatíveis, fala-se, na linguagem jurídica, de antinomias c o m referência também a outras situações. Limitamo-nos a enumerar outros significados de antinomia, lembrando

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porém que o problema clássico das antinomias jurídicas é aquele que temos explanado até aqui. Para distingui-las vamos chamá-las de antinomias impróprias.8 Fala-se de antinomia no Direito c o m referência ao fato de q u e um o r d e n a m e n t o jurídico p o d e ser inspirado em valores contrapostos ( e m opostas ideologias): cons ideram-se , por e x e m p l o , o valor da liberdade e o da segurança co ­mo valores ant inómicos , no sent ido de q u e a garantia da l iberdade causa dano , c o m u m e n t e , à segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a l iberdade; e m conseqüênc ia , u m o r d e n a m e n t o inspirado e m am­b o s os valores se diz que descansa sobre princípios an­t inómicos . Nesse caso , p o d e - s e falar de antinomias de princípio. As antinomias de princípio n ã o são antino­mias jurídicas propriamente ditas, mas p o d e m dar lu­gar a normas incompatíveis . É lícito supor q u e uma fon­te de normas incompat íve i s possa ser o fato de o orde­namento estar minado por antinomias de princípio. Ou­tra acepção de antinomia é a chamada antinomia de avaliação, q u e se verifica no caso em q u e uma norma p u n e u m del i to m e n o r c o m uma p e n a mais grave d o que a infligida a um delito maior. É claro que nesse caso não existe uma antinomia em sent ido próprio, por­que as duas normas, a que pune o delito mais grave c o m penal idade m e n o r e a que p u n e o de l i to m e n o s grave c o m penalidade maior, são perfeitamente compat íve is . Não se deve falar de antinomia nesse caso, mas de in­justiça. O q u e antinomia e injustiça t êm em c o m u m é que ambas dão lugar a uma situação q u e p e d e uma cor­reção: mas a razão pela qual se corrige a ant inomia é diferente daquela pela qual se corrige a injustiça. A an-

(8) Tiramos esta lista do grande tratado de K. Engisch. Einführung in das juristische Denken, 1956, p. 158 e segs.

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t inomia produz incerteza, a injustiça produz desigual­dade, e portanto a correção o b e d e c e n o s dois casos a diferentes valores, lá ao valor da ordem, aqui ao da igual­dade. Uma terceira a c e p ç ã o de ant inomia refere-se às chamadas antinomias teleológicas, que t êm lugar quan­do exis te uma o p o s i ç ã o entre a norma q u e prescreve o m e i o para alcançar o fim e a q u e prescreve o fim. De m o d o que , se apl ico a norma q u e prevê o m e i o , n ã o estou em condições de alcançar o fim, e vice-versa. Aqui a o p o s i ç ã o nasce, na maioria das v e z e s , da insuficiên­cia do m e i o : mas, então , trata-se, mais q u e de ant ino­mia, de lacuna (e das lacunas falaremos amplamente no Capítulo 4).

5. Critérios para a solução das antinomias

D e v i d o à tendência de cada o r d e n a m e n t o jurídi­co se constituir em sistema, a presença de ant inomias em sent ido próprio é um defe i to q u e o intérprete ten­de a eliminar. C o m o ant inomia significa o e n c o n t r o de duas p r o p o s i ç õ e s incompat íve i s , q u e n ã o p o d e m ser ambas verdadeiras, e, c o m referência a um sistema nor­mativo, o encontro de duas normas que não p o d e m ser ambas aplicadas, a eliminação do inconveniente não po­derá consistir em outra co i sa s e n ã o na e l iminação de u m a das duas normas ( n o caso de normas contrárias, também na eliminação das duas). Mas qual das duas nor­mas d e v e ser eliminada? Aqui está o problema mais gra­ve das antinomias. O q u e d i s s e m o s no i tem 3 refere-se às regras para estabelecer quando nos encontramos fren­te a uma antinomia. Mas, u m a coisa é descobrir a anti­nomia , outra, resolvê-la. As regras vistas até agora n o s servem para saber que duas normas são incompat íve is , mas nada n o s d i zem sobre qual das duas deva ser c o n -

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servada ou eliminada. É necessár io passar da determi­nação das antinomias à solução das antinomias.

No curso de sua secular obra de interpretação das leis, a jurisprudência e laborou algumas regras para a so­lução das antinomias, que são c o m u m e n t e aceitas. Por outro lado, é necessár io acrescentar l o g o q u e essas re­gras n ã o s e r v e m para resolver t o d o s os casos poss íve is de antinomia. Daqui deriva a necess idade de introdu­zir uma n o v a dist inção no âmbi to das antinomias pró­prias, isto é, a dis t inção entre as antinomias solúveis e as antinomias insolúveis. As razões pelas quais n e m todas as ant inomias são so lúve is são duas:

1) há casos de ant inomias n o s quais não se p o d e aplicar n e n h u m a das regras pensadas para a so lução das antinomias;

2 ) há casos em q u e se p o d e m aplicar ao m e s m o t e m p o duas ou mais regras em conf l i to entre si.

C h a m a m o s as ant inomias so lúve i s de aparentes; c h a m a m o s as inso lúve i s de reais. D i remos , portanto, q u e as ant inomias reais são aquelas em q u e o intérpre­te é a b a n d o n a d o a si m e s m o ou pela falta de um crité­rio ou por conf l i to entre os critérios dados: a elas de­dicaremos os do i s parágrafos seguintes .

As regras fundamentais para a solução das antinomias são três:

a) o critério cronológico; b) o critério hierárquico; c) o critério da especialidade.

O critério cronológico , chamado também de lexpos­terior, é aquele c o m base no qual, entre duas normas in­compatíveis, prevalece a norma posterior: lex posterior de-

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rogat priori. Esse critério não necessita de comentário par­ticular. Existe uma regra geral no Direito em que a vontade posterior revoga a precedente, e que de dois atos de von­tade da mesma pessoa vale o último no tempo. Imagine-se a Lei c o m o expressão da vontade do legislador e não haverá dificuldade em justificar a regra. A regra contrária obsta­ria o progresso jurídico, a adaptação gradual do Direito às exigências sociais. Pensemos, por absurdo, nas conseqüên­cias que derivariam da regra que prescrevesse ater-se à nor­ma precedente. Além disso, presume-se que o legislador não queira fazer coisa inútil e sem finalidade: se devesse prevalecer a norma precedente, a lei sucessiva seria um ato inútil e sem finalidade. No ordenamento positivo italiano, o princípio da lex posterior é claramente enumerado pelo art. 15 das Disposições preliminares, nas quais, entre as cau­sas de ab-rogação, enumera-se também aquela que deriva da formulação de uma lei incompatível c o m uma lei prece­dente. Textualmente: "As leis não são revogadas a não ser... por incompatibilidade entre as novas disposições e as precedentes"

0 critério hierárquico, chamado também de lex su­perior, é aquele pelo qual, entre duas normas incompatí­veis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori. Não temos dificuldade em compreen­der a razão desse critério depois que vimos, no capítulo precedente, que as normas de um ordenamento são colo­cadas em planos diferentes: são colocadas em ordem hie­rárquica. Uma das conseqüências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as supe­riores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste na menor força de seu poder normativo; essa me­nor força se manifesta justamente na incapacidade de es­tabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior.

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No ordenamento italiano, o princípio da hierarquia entre normas está expresso de várias maneiras. A superioridade das normas constitucionais sobre as ordinárias é sancio­nada pelo art. 134 da Constituição; a das leis ordinárias so­bre os regulamentos, pelo art. 4? das Disposições prelimi­nares ("Os regulamentos não podem conter normas con­trárias às disposições das leis"); a das leis ordinárias sobre as sentenças do juiz, pelo art. 360 do C. P. C, que estabe­lece os motivos de impugnação de uma sentença, entre os quais a "violação ou falsa aplicação de normas de Direi­to"; finalmente, a superioridade das leis ordinárias sobre os atos da autonomia privada, pelo art. 1.343 do C. C, que considera c o m o causa ilícita de um contrato o fato de que seja contrário "a normas imperativas".

Um problema mais complexo surge para a relação en­tre Lei e costume.

No ordenamento italiano, o costume é uma fonte hie­rarquicamente inferior à Lei. No art. 1? das Disposições preliminares, o costume ocupa, na enumeração das fon­tes, o terceiro lugar (vem depois das leis e dos regulamen­tos). Do art. 8? resulta que os usos "nas matérias regula­das pelas leis e pelos regulamentos... têm eficácia somen­te na medida em que são por eles reclamados". Do fato de que o costume seja hierarquicamente inferior à Lei de­riva que entre duas normas incompatíveis, das quais uma é consuetudinária, prevalece a legislativa. Com expressão mais corrente diz-se que o costume vale secundum e prae-ter legem (conforme e além da lei), mas não vale contra legem. Em outras palavras, nos ordenamentos em que o costume é inferior à Lei, não vale o costume ab-rogativo; a Lei não pode ser revogada por um costume contrário. Mas esse princípio não vale em todos os ordenamentos. Há ordenamentos, mais primitivos, menos centralizados, nos quais leis e costumes são fontes de mesmo grau. Em caso de conflito entre Lei e costume o que acontece? Evi-

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dentemente não se pode aplicar o critério hierárquico. Aplicar-se-á então o critério cronológico, com a conseqüên­cia de que a lei sucessiva ab-roga o costume precedente e vice-versa. Um ordenamento em que o costume tem maior força que nos ordenamentos estatais modernos é, por exemplo, o Direito canónico. O cânon 27 apresenta três casos:

1) um costume contrário ao Direito divino e natural: não prevalece;

2) um costume contrário ao Direito eclesiástico: pre­

valece, sob a condição de que seja rationabilis (razoável) e tenha tido uma duração de quarenta anos;

3) um costume contrário a uma lei humana eclesiás­tica que exclua a validade de qualquer futuro costume: pre­

valece, sob a condição de que tenha tido uma duração de pelo menos cem anos ou seja de data desconhecida.

Como se vê, no Direito canónico, o costume ab-rogativo, embora dentro de certos limites, é admitido. Co­mo dizíamos, o caso do relacionamento entre Lei e costu­me é mais complexo porque não pode receber uma res­posta geral: alguns ordenamentos consideram o costume inferior à Lei, e então no caso de antinomia aplica-se o cri­tério da lex superior; outros ordenamentos consideram a Lei e o costume no mesmo plano, e então torna-se neces­sário aplicar outros critérios. Em geral a preponderância da Lei é o fruto da formação do Estado moderno c o m poder fortemente centralizado. No antigo Direito romano, no Di­reito inglês, na sociedade medieval, o costume era fonte primária superior à própria Lei: a lei contrária ao costume era admitida mediante uma aplicação do terceiro critério, sendo considerada c o m o lex specialis.

O terceiro critério, dito justamente da lex specialis, • é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma

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geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a j e g u n -da: lex specialis derogat generali. Também aqui a razão do critério não é obscura: lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma par­te da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória). A passagem de uma regra mais extensa (que abrange um certo genus) para uma regra derrogatória menos extensa (que abrange uma spe-cies do genus) corresponde a uma exigência fundamental de justiça, compreendida c o m o tratamento igual das pes­soas que pertencem à mesma categoria. A passagem da re­gra geral à regra especial corresponde a um processo na­tural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Ve­rificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa in­justiça. Nesse processo de gradual especialização, opera­do através de leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a do suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu). Entende-se, portanto, por que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um or­denamento. Bloquear a lei especial frente à geral significa­ria paralisar esse desenvolvimento. No Direito italiano, es­te critério de especialidade encontra-se, por exemplo, enun­ciado no art. 15 do C. P.: "Quando algumas leis penais ou algumas disposições da mesma lei penal regulam a mesma matéria, a lei ou disposição da lei especial anula a lei ou a disposição da lei geral, salvo se estabelecido de outra forma".

A situação antinómica, criada pelo relacionamento en­tre uma lei geral e uma lei especial, é aquela que corres­ponde ao tipo de antinomia total-parcial. Isso significa que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece

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a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que é incompatí­vel c o m a lei especial. Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente. Quando se aplica o critério cronológico ou o hierárquico, tem-se geralmente a eliminação total de uma das duas normas. Diferentemente dos relacionamen­tos cronológico e hierárquico, que não suscitam necessa­riamente situações antinómicas, o relacionamento de es­pecialidade é necessariamente antinómico. O que signifi­ca que os dois primeiros critérios aplicam-se quando sur­ge uma antinomia; o terceiro se aplica porque vem a exis­tir uma antinomia.

6. Insuficiência dos critérios

O critério cronológico serve quando duas normas in­compatíveis são sucessivas; o critério hierárquico serve quando duas normas incompatíveis estão em nível diver­so; o critério de especialidade serve no choque de uma nor­ma geral c o m uma norma especial. Mas pode ocorrer anti­nomia entre duas normas:

1) contemporâneas; 2) do mesmo nível; 3) ambas gerais.

Entende-se que, nesse caso, os três critérios não aju­dam mais. E o caso é mais freqüente do que se possa ima­ginar. Corresponde à situação de duas normas gerais in­compatíveis que se encontrem no mesmo código. Se num código há antinomias do tipo total-total e parcial-parcial (com exclusão do tipo total-parcial, que cai sob o critério da especialidade), tais antinomias não são solucionáveis com nenhum dos três critérios; não c o m o cronológico, por-

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que as normas de um código são estabelecidas ao mesmo tempo; não c o m o hierárquico, porque são todas leis or­dinárias; não c o m o critério da especialidade, porque este resolve somente o caso de antinomia total-parcial.

Quid faciendum? Existe um quarto critério que per­mita resolver as antinomias deste tipo? Aqui, por "existe", entendemos um critério "válido", isto é, um critério que seja reconhecido legítimo pelo intérprete quer por sua ra­zoabilidade quer pelo incontrastado uso.

Devemos responder que não. O único critério, do qual se encontram referências em velhos tratadistas (mas não mais o encontrei mencionado nos tratados modernos; e de qualquer forma seria necessário procurar uma confir­mação numa paciente análise das decisões dos magistra­dos), é aquele tirado da forma da norma.

Segundo a forma, as normas podem ser, c o m o já vi­mos, imperativas,9 proibitivas e permissivas. O crité­rio é certamente aplicável, porque é claro que duas nor­mas incompat íve i s são diferentes quanto à forma: se uma é imperativa, a outra é ou proibitiva ou permissi­va, e assim por diante. Não é dito, p o r é m , q u e seja jus­to e que seja cons tantemente s egu ido pe los juristas.

O critério c o m respeito à forma consistiria em es­tabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica, por e x e m p l o , des te m o d o : se de duas normas incompat íve is uma é imperativa ou proibitiva e a outra é permissiva, prevalece a permissi­va. Esse critério parece razoável, e c o r r e s p o n d e n t e a um dos c â n o n e s interpretativos mais c o n s t a n t e m e n t e seguidos pe los juristas, que é o de dar preponderân­cia, em caso de ambigüidade ou incerteza na interpre­tação de um texto , à interpretação favorabilis sobre a

(9) Aqui entendemos imperativo no sentido estrito, com referência ex­

clusiva aos imperativos positivos.

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odiosa. Em linha geral, c a s o se entenda por lex favo­rabilis aquela que c o n c e d e uma l iberdade (ou faculda­de , ou direito subjet ivo) e por lex odiosa aquela q u e impõe uma obrigação (seguida por uma sanção), não há dúvida de q u e uma lex permissiva é favorabilis, e uma lex imperativa é odiosa. O c â n o n e , por outro la­d o , é mui to m e n o s e v i d e n t e do q u e possa parecer, pe­la simples razão de que a norma jurídica é bilateral, quer dizer, ao m e s m o t e m p o atribui um direito a uma pes­soa e i m p õ e uma obrigação (positiva ou negativa) a o u ­tra, d o n d e resulta q u e a interpretação a favor de um sujeito é ao m e s m o t e m p o od iosa para o sujeito em re­lação jurídica c o m o primeiro, e vice-versa. Em outras palavras, se eu interpreto uma norma da maneira mais favorável para o devedor , fazendo prevalecer, em ca­so de ambigüidade ou de conf l i to , a interpretação q u e lhe r e c o n h e c e um certo direito em lugar daquela q u e lhe imporia uma certa obrigação, minha interpretação é od iosa em relação ao credor. Daqui deriva a ambi­güidade do cânone denunciado. O problema real, frente ao qual se encontra o intérprete, n ã o é o de fazer pre­valecer a norma permissiva sobre a imperativa ou vice-versa, mas sim o de qual d o s dois sujeitos da relação jurídica é mais justo proteger, isto é, qual d o s dois in­teresses em confl i to é justo fazer prevalecer: mas nes­sa dec isão a diferença formal entre as normas n ã o lhe o ferece a mínima ajuda.

No conflito entre duas normas incompatíveis, há, c o m relação à forma das normas, um outro caso: aquele em que uma das duas normas é imperativa e a outra proibitiva. Aqui uma solução poderia ser deduzida da consideração de que, enquanto no primeiro caso, já ilustrado, trata-se de um con­flito entre duas normas contraditórias, c o m respeito às quais tertium non datur (ou se aplica uma ou se aplica a outra), no segundo caso trata-se de um conflito entre duas

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normas contrárias, as quais se excluem, sim, uma à ou­tra, mas não excluem uma terceira solução, no sentido, já expos to , segundo o qual duas proposições contrárias não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas fal­sas. No conflito entre obrigação positiva e obrigação ne­gativa, o tertium é a permissão. Pode-se então considerar bastante fundada a regra de que, no caso de duas normas contrárias, isto é, entre uma norma que obriga fazer algo e uma norma que proíbe fazer a mesma coisa, essas duas normas anulam-se rec iprocamente e, portanto , o c o m ­p o r t a m e n t o , e m v e z d e ser o r d e n a d o o u pro ib ido , s e cons idera permi t ido ou lícito.

D e v e m o s , porém, reconhecer que essas regras dedu­zidas da forma da norma não têm a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos três critérios examinados no pará­grafo precedente. Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução do conflito é confiada à liber­dade do intérprete; poderíamos quase falar de um autênti­co poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resol­ver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de to­das as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só regra. Digamos então de uma maneira mais geral que, no caso de conflito entre duas normas, para o qual não valha nem o critério cronológico, nem o hierárquico, nem o da especialidade, o intérprete, seja ele o juiz ou o jurista, tem à sua frente três possibilidades:

1) eliminar uma;

2) eliminar as duas; 3) conservar as duas.

No primeiro caso, a operação feita pelo juiz ou pelo jurista chama-se interpretação ab-rogante. Mas trata-se, na

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verdade, de ab-rogação em sentido impróprio, porque, se a interpretação é feita pelo jurista, ele não tem o poder nor­mativo e portanto não tem nem poder ab-rogativo (o ju­rista sugere solução aos juízes e eventualmente também ao legislador); se a interpretação é feita pelo juiz, este em ge­ral (nos ordenamentos estatais modernos) tem o poder de não aplicar a norma que considerar incompatível no caso concreto, mas não o de expeli-la do sistema (de ab-rogá-la), mesmo porque o juiz posterior, tendo que julgar o mes­mo caso, poderia dar ao conflito de normas uma solução oposta e aplicar bem aquela norma que o juiz precedente havia eliminado. Não é muito fácil encontrar exemplos de interpretação ab-rogante. No Código Civil italiano, um exemplo de normas consideradas manifestamente em opo­sição está no artigo 1.813 e no artigo 1.822. O artigo 1.813 define mútuo c o m o um contrato real. "O mútuo é o con­trato pelo qual uma parte entrega à outra uma determina­da quantidade de dinheiro, e t c " ; o artigo 1.822 disciplina o processo de mútuo: "Quem prometeu dar em mútuo po­de recusar o cumprimento de sua obrigação, etc." Mas o que caracteriza a admissão da obrigatoriedade da promes­sa de mútuo senão a admissão, c o m outro nome, do mú­tuo c o m o contrato consensual? O mútuo, afinal, é um con­trato real, c o m o diz claramente o primeiro artigo, ou um contrato consensual, c o m o deixa entender, mesmo sem dizê-lo explicitamente, o segundo artigo? O intérprete que respondesse afirmativamente à segunda pergunta acabaria por considerar inexistente a primeira norma, ou seja, ope­raria uma ab-rogação interpretativa.

O segundo caso — eliminação de ambas as normas em conflito — pode verificar-se, c o m o vimos, somente quan­do a oposição entre as duas normas seja não de contradi­ção, mas de contrariedade. Poder-se-ia ver um exemplo , mesmo que um pouco forçado, na dúvida a que pode dar lugar a interpretação do artigo 602 do C. C, c o m respeito

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à colocação da data no testamento hológrafo antes ou de­pois da assinatura. Da primeira alínea, "o testamento ho­lógrafo deve ser escrito por inteiro, datado e abaixo assi­nado pela mão do testador'', poder-se-ia deduzir que a data deve ser colocada no fim das disposições. Da segunda alí­nea, "a subscrição deve ser posta no fim das disposições", ao contrário, poder-se-ia tirar a conclusão de que a data, não sendo uma disposição, deve ser colocada depois da subscrição. Na dúvida entre a obrigação è a proibição de colocar a data antes da assinatura, o intérprete poderia ser induzido a considerar que as duas normas contrárias se ex­cluem uma à outra, e a considerar que seja lícito colocar a data tanto antes quanto depois da assinatura. Também nesse caso pode-se falar de interpretação ab-rogante, mes­mo que, c o m o no caso precedente, de maneira imprópria. Mas, diferentemente do caso de duas disposições contra­ditórias, das quais uma elimina a outra e uma das duas não pode sobrar, aqui, tratando-se de duas disposições contrá­rias, eliminam-se umas às outrase não sobra nenhuma das duas. Trata-se, c o m o todos podem ver, de uma dupla ab-rogação, enquanto que no primeiro caso tem-se uma ab-rogação simples.

A terceira solução — conservar as duas normas incom­patíveis — é talvez aquela à qual o intérprete recorre mais freqüentemente. Mas como é possível conservar duas nor­mas incompatíveis, se por definição duas normas incom­patíveis não podem coexistir? É possível sob uma condi­ção: demonstrar que não são incompatíveis, que a incom­patibilidade é puramente aparente, que a pressuposta in­compatibilidade deriva de uma interpretação ruim, unila­teral, incompleta ou errada de uma das duas normas ou de ambas. Aquilo a que tende o intérprete comumente não é mais à eliminação das normas incompatíveis, mas, pre­ferentemente, à eliminação da incompatibilidade. Às ve­zes, para chegar ao objetivo, introduz alguma leve ou par-

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ciai modificação no texto; e nesse caso tem-se aquela for­ma de interpretação chamada corretiva. Geralmente, a in­terpretação corretiva é aquela forma de interpretação que pretende conciliar duas normas aparentemente incompa­tíveis para conservá-las ambas no sistema, ou seja, para evi­tar o remédio extremo da ab-rogação. Entende-se que na medida em que a correção introduzida modifica o texto original da norma, também a interpretação corretiva é ab­rogante, se bem que limitada à parte da norma corrigida. Mais do que contrapor a interpretação corretiva à ab­rogante, dever-se-ia considerar a primeira c o m o uma for­ma atenuada da segunda, no sentido de que, enquanto a interpretação ab-rogante tem por efeito a eliminação total de uma norma (ou até de duas normas), a interpretação cor­retiva tem por efeito a eliminação puramente parcial de uma norma (ou de duas). Para dar um exemplo dessa for­ma de interpretação, referimo-nos ao caso, já ilustrado, de antinomia entre o artigo 57 do C. P. italiano sobre a res­ponsabilidade (objetiva) do diretor de jornal e o artigo 27 da Constituição italiana, que exclui toda forma de respon­sabilidade que não seja pessoal. Há pelo menos duas in­terpretações do artigo 57 que eliminam a antinomia:

1) o diretor de jornal é obrigado a impedir os delitos dos seus colaboradores c o m base no artigo 40, 2? alínea, do C. P., segundo o qual "não impedir um acontecimen­to, que se tem a obrigação de impedir, equivale a causá-lo"; se se admite essa obrigação, a sua condenação não de­pende da circunstância objetiva de sua função de diretor, mas do não-cumprimento de uma obrigação, e, portanto, da avaliação de uma responsabilidade subjetiva;

2) o diretor de jornal é obrigado a vigiar a atividade dos seus colaboradores, isto é, em último caso, a contro­lar todos os artigos que aparecem no jornal por ele dirigi­do; admitindo essa obrigação, a condenação pode ser jus-

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tificada através do reconhecimento de uma culpa in vigi­lando, isto é, mais uma vez, de uma responsabilidade sub­jetiva. Mas é claro que as duas interpretações são possíveis somente se se introduzir uma leve modificação no texto do artigo 57 do C. P., o qual diz que o diretor responde "unicamente" pelo delito cometido. É claro que "unica­mente" significa "pelo único fato de ser diretor do jornal" e, portanto, independentemente de qualquer culpa. É ne­cessário portanto eliminar a expressão "unicamente" se se quiser tornar esse artigo compatível c o m a precisa dispo­sição da Constituição. A conciliação acontece através de uma correção.

Dissemos que o terceiro caminho é o mais usado pe­los intérpretes. O jurista e o juiz tendem, tanto quanto pos­sível, à conservação das normas dadas. É certamente uma regra tradicional da interpretação jurídica que o sistema de­ve ser obtido c o m a menor desordem, ou, em outras pala­vras, que a exigência do sistema não deve acarretar prejuí­zo ao princípio de autoridade, segundo o qual as normas existem pelo único fato de terem sido estabelecidas. Apre­sentamos um exemplo eloqüente. Messineo recentemen­te chamou o artigo 2.937, § 1 ? do C. C, de quebra-cabeça que "põe a dura prova as meninges do intérprete". 1 0 O artigo diz q u e n ã o p o d e renunciar à prescrição q u e m n ã o p o d e dispor val idamente do direito. Mas de qual direito se fala? A prescrição ext int iva à qual se refere este artigo minimiza um dever, n ã o faz surgir um direi­to . Mess ineo mostra que o artigo deriva do 2 . 1 0 8 do C. C, 1865 , no qual, não s e n d o distinta a disciplina da prescrição ext int iva da disciplina da prescrição aquisi­tiva (usucapião), o caso da renúncia ao direito referia-

(10) F. Messineo. "Variazioni sul Concetto di 'rinunzia alia prescrizio-n e ' " , Riv. Trim. Dir. e Proc. Civ., XI (1957), p. 505 e segs.

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se não mais à primeira, mas à segunda; e relat ivamente à segunda era perfe i tamente apropriado falar de direi­to do qual se possa dispor. No entanto , apesar da pa­tente erroneidade da d icção , n o s s o autor acredita q u e o dever do intérprete seja o de dar a ela um sent ido e, portanto, observa que se poderia entender a palavra "di­re i to" no c o n t e x t o do 2 . 9 3 7 c o m o "direito à l iberação da obrigação". E faz a e s se propós i to u m a declaração de e x t r e m o interesse p e l o valor paradigmático q u e ela assume em relação à atitude de respei to do intérprete para c o m o legislador. "É estrito dever do intérprete, antes de chegar à interpretação ab-rogante (pela qual, n u m primeiro m o m e n t o , optaríamos) , tentar qualquer saída para que a norma jurídica tenha um sent ido . Há um direito à existência q u e não p o d e ser n e g a d o à nor­ma, d e s d e que ela v e i o à luz .""

7. Conflito dos critérios

Dissemos no iníc io do 5? parágrafo q u e há anti­nomias insolúveis ao lado de antinomias solúveis , e que as razões pelas quais ex i s t em antinomias insolúveis são duas: a inaplicabilidade d o s critérios ou a aplicabilida­de de dois ou mais critérios confl itantes. À primeira ra­zão ded icamos o parágrafo precedente , à segunda de­dicaremos o presente .

Vimos que os critérios tradicionalmente aceitos pa­ra a so lução das ant inomias são três: o c r o n o l ó g i c o , o hierárquico e o de especial idade. P o d e acontecer q u e duas normas incompatíveis mantenham entre si uma re­lação em que se p o d e m aplicar concomitantemente , não apenas um, mas dois ou três critérios. Para exemplif i -

(11) Op. cit., p 516.

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car: uma norma const i tucional e u m a norma ordinária geralmente são formuladas em t e m p o s diversos: entre essas duas normas existe ao m e s m o t e m p o uma dife­rença hierárquica e uma cronológica . Se d e p o i s , c o m o freqüentemente acontece , a norma const i tucional é ge­ral e a ordinária é especial , os critérios aplicáveis são três. Essa s ituação c o m p l e x a não causa particular difi­culdade q u a n d o as duas normas são co locadas de ma­neira que , qualquer que seja o critério q u e se queira aplicar, a s o l u ç ã o não muda: por e x e m p l o , se de duas normas incompat íve i s , uma é superior e s u b s e q ü e n t e e a outra inferior e antecedente , tanto o critério hierár­quico quanto o crono lóg i co dão o m e s m o resultado de fazer prevalecer a primeira. O m e s m o acontece se a nor­ma s u b s e q ü e n t e é especial em relação à precedente : ela prevalece seja c o m base no critério de especia l idade seja c o m base no critério c r o n o l ó g i c o . Os do i s critérios se somam: e uma v e z que bastaria um só para dar a pre­ponderância a uma das duas normas, diz-se q u e a nor­ma preponderante prevalece a fortiori.

Mas a situação não é sempre tão simples. Coloquemos o caso em que duas normas se encontrem numa relação tal que sejam aplicáveis dois critérios, mas que a aplicação de um critério dê uma solução oposta à aplicação do ou­tro. É claro que nesse caso não se p o d e m aplicar conco­mitantemente dois critérios r É necessário dar preferência a um ou outro. Qual? Eis o problema. Para apresentar um exemplo fácil, basta pensar no caso de uma incompatibili­dade entre norma constitucional anterior e norma ordiná­ria posterior. É um caso em que são aplicáveis dois crité­rios, o hierárquico e o cronológico; mas se for aplicado o primeiro, dá-se prevalência à primeira norma, se for apli­cado o segundo, dá-se prevalência à segunda. Não se po­dem aplicar ao mesmo tempo dois critérios: os dois crité­rios são incompatíveis. Aqui temos uma incompatibilida-

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de de segundo grau: não se trata mais da incompatibilida­de de que falamos até agora, entre normas, mas da incom­patibilidade entre os critérios válidos para a solução da in­compatibilidade entre as normas. Ao lado do conflito en­tre as normas, que dá lugar ao problema das antinomias, há o conflito dos critérios para a solução das antinomias, que dá lugar a uma antinomia de segundo grau. Essas anti­nomias de segundo grau são solúveis? A resposta afirmati­va depende do fato de haver regras tradicionalmente ad­mitidas para a solução do conflito dos critérios, assim co­mo há regras admitidas para a solução do conflito entre normas. Trata-se, em outras palavras, de saber se existe um critério estável para a solução dos conflitos entre critérios — e qual seja. Não podemos dar uma resposta geral, te­mos que examinar, um por um, os casos de conflito entre critérios.

Sendo três os critérios (A, B, C), os conflitos entre cri­térios podem ser três: A c o m B, B c o m C, A c o m C.

1) Conflito entre o critério hierárquico e o cronoló­gico: esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-superior é antinómica em relação a uma norma posterior-inferior. O conflito consiste no fato de que, se se aplicar o critério hierárquico, prevalece a primeira, se se aplicar o critério cronológico, prevalece a segunda. O problema é: qual dos dois critérios tem preponderância sobre o ou­tro? Aqui a resposta não é dúbia. O critério hierárquico pre­valece sobre o cronológico, o que tem por efeito fazer eli­minar a norma inferior, m e s m o que posterior. Em outras palavras, pode-se dizer que o princípio lex posterior de-rogat priori não vale quando a lex posterior é hierarqui­camente inferior à lex prior. Essa solução é bastante ób­via: se o critério cronológico devesse prevalecer sobre o hierárquico, o princípio m e s m o da ordem hierárquica das normas seria tornado vão, porque a norma superior per-

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deria o poder, que lhe é próprio, de não ser ab-rogada pe­las normas inferiores. O critério cronológico vale c o m o cri­tério de escolha entre duas normas colocadas no mesmo plano. Quando duas normas são colocadas sobre dois pla­nos diferentes, o critério natural de escolha é aquele que nasce da própria diferença de planos.

2) Conflito entre o critério de especialidade e o cro­nológico: esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Tem-se conflito porque, aplicando o critério de es­pecialidade, dá-se preponderância à primeira norma, apli­cando o critério cronológico, dá-se prevalência à segun­da. Também aqui foi transmitida uma regra geral, que soa assim: Lexposterior generalis non derogatpriori specia-li. Com base nessa regra, o conflito entre critério de espe­cialidade e critério cronológico deve ser resolvido em fa­vor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente. O que leva a uma posterior ex­ceção ao princípio lex posterior derogat priori: esse prin­cípio falha, não só quando a lex posterior é inferior, mas também quando é generalis (e a lexprior é specialis). Essa regra, por outro lado, deve ser tomada c o m uma certa cau­tela, e tem um valor menos decisivo que o da regra ante­rior. Dir-se-ia q u e a lex specialis é m e n o s forte q u e a lex superior, e que, portanto, a sua vitória sobre a lex poste­rior é mais contrastada. Para fazer afirmações mais preci­sas nesse campo, seria necessário dispor de uma ampla casuística.

3) Conflito entre o critério hierárquico e o de espe­cialidade. Nos dois casos precedentes vimos o conflito des­tes dois critérios respectivamente c o m o critério cronoló­gico, e constatamos que ambos os critérios são mais for­tes que o cronológico. O caso mais interessante de confli­to é, agora, aquele que se verifica quando entram em opo­sição não mais um dos dois critérios fortes c o m o critério

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fraco (o cronológico), mas os dois critérios fortes entre si. É o caso de uma norma superior-geral incompatível c o m uma norma inferior-especial. Se se aplicar o critério hie­rárquico, prevalece a primeira, se se aplicar o critério de especialidade, prevalece a segunda. Qual dos dois critérios se deve aplicar? Uma resposta segura é impossível. Não exis­te uma regra geral consolidada. A solução dependerá tam­bém, neste caso, c o m o no da falta dos critérios, do intér­prete, o qual aplicará ora um ora outro critério segundo as circunstâncias. A gravidade do conflito deriva do fato d e q u e es tão e m jogo do i s valores fundamentais de t o d o ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da supe­rioridade, e o da justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sociais e, portanto, respeito do cri­tério da especialidade. Teoricamente, deveria prevalecer o critério hierárquico: se se admitisse o princípio de que uma lei ordinária especial pode derrogar os princípios cons­titucionais, que são normas generalíssimas, os princípios fundamentais de um ordenamento jurídico seriam desti­nados a se esvaziar rapidamente de qualquer conteúdo. Mas, na prática, a exigência de adaptar os princípios gerais de uma Constituição às sempre novas situações leva freqüen­temente a fazer triunfar a lei especial, mesmo que ordiná­ria, sobre a constitucional, c o m o quando a Corte Consti­tucional italiana decidiu que o artigo 3?, parágrafo 3?, da Lei 22 de dezembro de 1956, relativa à instituição do Mi­nistério das Participações Estatais, que impunha às empre­sas de forte participação estatal deixarem de fazer parte das organizações sindicais dos outros empregadores, não era incompatível com o artigo 39 da Constituição, que afirma para qualquer um a liberdade sindical (e portanto a liber­dade de participar da associação sindical de livre escolha). Nesse caso o contraste era claramente entre uma lei superior-geral e uma lei inferior-especial, mas, c o m a ex-

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clusão da inconstitucionalidade, pronunciada pela Corte, foi dada a prevalência à segunda, não à primeira.

8. O dever da coerência

Todo o discurso defendido neste capítulo pressupõe que a incompatibilidade entre duas normas seja um mal a ser eliminado e, portanto, pressupõe uma regra de coe­rência, que poderia ser formulada assim: "Num ordena­mento jurídico não devem existir antinomias". Mas essa regra é por sua vez uma regra jurídica? O dever de elimi­nar as antinomias é um dever jurídico? Poder-se-á dizer que uma regra assim pertence ao ordenamento jurídico, mes­mo se não-expressa? Existirão argumentos suficientes pa­ra considerar que em cada ordenamento esteja implícita a proibição das antinomias, e que caiba ao intérprete so­mente torná-la explícita? Coloco por último esta pergunta porque se considera normalmente que a proibição das an­tinomias é uma regra do sistema, mas não se aprofunda nem em natureza, nem em alcance, nem em eficácia.

Uma regra que se refere às normas de um ordenamento jurídico, c o m o o é a proibição de antinomias, pode ser di­rigida apenas àqueles que têm relação c o m a produção e aplicação das normas, em particular ao legislador, que é o produtor por excelência, e ao juiz, que é o aplicador por excelência. Dirigida aos produtores de normas, a proibi­ção soa assim: "Não deveis criar normas que sejam incom­patíveis com outras normas do sistema". Dirigida aos apli-cadores, a proibição assume esta outra forma: "Se vocês esbarrarem em antinomias, devem eliminá-las". Trata-se agora de ver se e em quais s i tuações e x i s t e m uma ou outra dessas duas normas, ou ambas.

Suponhamos três casos:

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1) O de normas de diferentes níveis, dispostas hierar­quicamente. Neste caso, geralmente, a regra da coerência existe em ambas as formas:

a) a pessoa ou o órgão autorizado a formular normas inferiores é levado a estabelecer normas que não estejam em oposição a normas superiores (pense-se na obrigação de quem tem um poder regulamentar ou um poder nego­cial de exercitar este poder dentro dos limites estabeleci­dos pelas normas superiores);

b) o juiz, quando se encontrar frente a um conflito entre uma norma superior e uma norma inferior, será le­vado a aplicar a norma superior.

2) O caso das normas do mesmo nível, sucessivas no tempo. Neste caso não existe dever algum de coerência por parte do legislador, enquanto existe, por parte do juiz, o dever de resolver a antinomia, eliminando a norma ante­rior e aplicando a posterior. Existe, portanto, a regra da coerência na segunda forma, isto é, dirigida aos juízes, mas não na primeira (dirigida ao legislador):

a) o legislador ordinário é perfeitamente livre para for­mular sucessivamente normas em oposição entre si: isso está previsto, por exemplo , no artigo 15 das Disposições preliminares, já citado, no qual se admite a ab-rogação im­plícita, isto é, a legitimidade de uma lei posterior em opo­sição a uma anterior.

b ) m a s quando a oposição se verifica, o juiz deve eliminá-la, aplicando, das duas normas, a posterior. Pode-se dizer também assim: o legislador é perfeitamente livre para contradizer-se, mas a coerência é salva igualmente, porque, das duas normas em oposição, uma cai e somente a outra permanece válida.

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3) O caso das normas de m e s m o nível, contemporâ­neas (por exemplo, a formulação de um código, de um tex­to único ou de uma lei que regula toda uma matéria). Tam­bém aqui não há nenhuma obrigação juridicamente quali­ficada, por parte do legislador, de não contradizer-se, no sentido de que uma lei, que contenha disposições contra­ditórias, é sempre uma lei válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias. Podemos falar, quando muito, nas relações do legislador, de um dever moral de não contradizer-se, em consideração ao fato de que uma lei contraditória torna mais difícil, e às vezes vã, a admi­nistração da justiça. Quanto ao juiz, que se encontra fren­te a um antinomia entre normas, por exemplo , de um có­digo, ele também não tem nenhum dever juridicamente qualificado de eliminar a antinomia. Simplesmente, no mo­mento em que duas normas antinómicas não puderem ser ambas aplicadas no mesmo caso, ele se encontrará na ne­cessidade de aplicar uma e desaplicar a outra. Mas trata-se de uma necessidade de fato, não de uma obrigação (ou de uma necessidade moral). Tanto é verdade que as duas nor­mas antinómicas continuam a subsistir no ordenamento, lado a lado, e o próprio juiz num caso posterior ou outro juiz no mesmo caso (por exemplo, um juiz de segunda ins­tância) podem aplicar, das duas normas antinómicas, aquela que anteriormente não foi aplicada ou vice-versa.

Resumindo, nos três casos apresentados, o problema de uma pressuposta regra da coerência resolve-se de três maneiras diferentes: no primeiro caso, a regra da coerên­cia vale em ambas as formas; no segundo, vale somente na segunda forma; no terceiro, não vale nem na primeira, nem na segunda forma, isto é, não existe nenhuma regra da coerência. Dessa colocação podemos tirar luz para ilu­minar um problema controvertido: a compatibilidade é uma condição necessária para a validade de uma norma jurídi-

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ca? Aqui devemos responder negativamente, pelo menos em relação ao terceiro caso, isto é, ao caso de normas de mesmo nível e contemporâneas, no qual, c o m o vimos, não existe nenhuma regra de coerência. Duas normas incom­patíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas vá­lidas. Não podem ser, ao m e s m o tempo, ambas eficazes, no sentido de que a aplicação de uma ao caso concreto exclui a aplicação da outra; mas são ambas válidas, no sen­tido de que, apesar de seu conflito, ambas continuam a exis­tir no sistema, e não há remédio para sua eliminação (além, é claro, da ab-rogação legislativa).

A coerência não é condição de validade, mas é sem­pre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chama­dos a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamen­tais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os orde­namentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas nor­mas antinómicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicá­veis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida c o m o possibilidade, por parte do ci­dadão, de prever c o m exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida c o m o o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma catego­ria. Há um episódio em / promessi sposi {Os noivos) que ilustra muito bem as razões morais pelas quais é bom que não haja antinomias no Direito. É o episódio do homicí­dio praticado por frei Cristóvão (também chamado Ludo­vico). A rixa, seguida por um duplo homicídio, havia nas­cido porque "os dois (Ludovico e seu adversário) caminha­vam rente ao muro, mas Ludovico (notem bem) esbarrava nele com o lado direito, e isso, segundo um costume, dava-

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lhe o direito (até onde se vai enfiar o direito!) de não ter de se afastar do dito muro para dar passagem a quem quer que fosse, coisa da qual se fazia, então, muita questão. O outro pretendia, ao contrário, que tal direito coubesse a si próprio, c o m o nobre que era, e que Ludovico tivesse que andar pe lo meio , e isso por causa de outro costume. Porque nisso, c o m o acontece em muitos outros negócios , estavam em vigor dois costumes contrários, sem que fos­se decidido qual dos dois era o certo, o que dava oportu­nidade de fazer uma guerra cada vez que um cabeça-dura encontrasse outro da mesma têmpera". 1 2

(12) /promessisposi,Turim, Einaudi, cap. IV, p.58. O episódio é citado por C Balossini. Consuetudini, usi, praticbe, rególe del costume, 1958.

CAPÍTULO 4

A completude do ordenamento jurídico

/. O problema das lacunas

Examinamos nos dois capítulos anteriores dois aspec­tos do ordenamento jurídico: a unidade e a coerência. Falta-nos considerar uma terceira característica que lhe é nor­malmente atribuída: a completude. Por "completude" entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurí­dico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente "lacuna" (num dos sentidos do termo "lacuna"), "completude" sig­nifica "falta de lacunas". Em outras palavras, um ordena­mento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado c o m uma norma tirada do sistema. Para dar uma definição mais téc­nica de completude, p o d e m o s dizer que um ordenamen­to é completo quando jamais se verifica o caso de que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma cer­ta norma nem a norma contraditória. Especificando me­lhor, a incompletude consiste no fato de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo compor­tamento nem a norma que o permite De fato, se se pode demonstrar que nem a proibição nem a permissão de um certo comportamento são dedutíveis do sistema, da for­ma que foi colocado, é preciso dizer que o sistema é in­completo e que o ordenamento jurídico tem uma lacuna.

A partir dessa definição mais técnica de completude

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entende-se melhor qual é o n e x o entre o problema da com-pletude e o da coerência, examinado no capítulo anterior. Podemos de fato definir a coerência c o m o aquela proprie­dade pela qual nunca se dá o caso em que se possa demons­trar a pertinência a um sistema e de uma certa norma e da norma contraditória. Como vimos, encontramo-nos fren­te a uma antinomia quando nos apercebemos de que ao sistema pertencem contemporaneamente tanto a norma que proíbe um certo comportamento quanto a que o permite. Portanto, o nexo entre coerência e completude está em que a coerência significa a exclusão de toda a situação na qual pertençam ao sistema ambas as normas que se con­tradizem; a completude significa a exclusão de toda a si­tuação na qual não pertençam ao sistema nenhuma das duas normas que se contradizem. Diremos "incoerente" um sis­tema no qual existem tanto a norma que proíbe um certo comportamento quanto aquela que o permite; "incomple­to", um sistema no qual não existem nem a norma que proí­be um certo comportamento nem aquela que o permite.

O nexo entre os dois problemas foi quase sempre dei­xado de lado. Mas não faltam à melhor literatura jurídica alusões à necessidade de um seu estudo comum. Por exem­plo, em Sistema de Savigny lê-se este trecho, que me pa­rece muito significativo: "...o conjunto das fontes de di­reito... forma um todo, que está destinado à solução de to­das as questões surgidas no campo do Direito. Para cor­responder a tal finalidade, ele deve apresentar estas carac­terísticas: unidadee completude... O procedimento ordi­nário consiste em tirar do conjunto das fontes um sistema de direito... Falta a unidade, e então trata-se de remover uma contradição; falta a completude, e então trata-se de preencher uma lacuna. Na realidade, porém, essas duas coisas podem reduzir-se a um único concei to fundamen­tal. De fato, o que tentamos estabelecer é sempre a unida­de: a unidade negativa, com a eliminação das contradições;

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a unidade positiva, c o m o preenchimento das lacunas". 1

Carnelutti, em sua Teoria geral do Direito, trata c o n ­juntamente os dois problemas , e fala de i n c o m p l e t u d e por exuberância, no caso das antinomias, e de in­completude por deficiência, no caso das lacunas, don­de os dois remédios o p o s t o s da purificação do siste­ma, para eliminar as normas exuberantes ou as antino­mias, e da integração, para elirninar a deficiência de nor­mas ou as lacunas. 2 Carnelutti vê b e m q u e o c a s o de antinomia é um caso no qual há mais normas do q u e deveria haver, aquilo que expressamos c o m as duas con­junções e... e, o n d e o d e v e r do intérprete é suprimir aquilo q u e está a mais; o caso de lacuna, no entanto , é um caso em q u e há m e n o s normas do q u e deveria haver, fato q u e registramos c o m as duas c o n j u n ç õ e s nem... nem, o n d e o d e v e r do intérprete é, ao contrá­rio, acrescentar aquilo q u e falta.

Visto que, a respeito do caráter da coerência, o pro­b lema teór ico geral do Direito é se e em q u e m e d i d a um o r d e n a m e n t o jurídico é coerente , assim também, a respei to do caráter da c o m p l e t u d e , o n o s s o proble­ma é se e em q u e m e d i d a um o r d e n a m e n t o jurídico é c o m p l e t o . Pelo q u e diz respeito à coerência, nossa res­posta foi a de que a coerência era uma exigência mas não uma necess idade, no s en t ido de q u e a total e x c l u s ã o das antinomias n ã o é u m a c o n d i ç ã o necessária para a existência de um ordenamento jurídico: um ordenamen­to jurídico p o d e tolerar em seu s e i o normas incompa^ tíveis s e m desmoronar-se . Frente ao problema da c o m ­pletude, se desejarmos um certo t ipo de o r d e n a m e n t o jurídico c o m o o italiano, caracterizado p e l o princípio

(1) F.C. Savigny. Sistema dei diritto romano attuale, tradução italiana, v.l , § 42, p. 267.

(2) F. Carnelutti. Teoria generale dei diritto, 21. ed., 1946, p. 76.

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de que o juiz d e v e julgar cada caso m e d i a n t e u m a nor­ma per tencente ao sistema, a c o m p l e t u d e é a lgo mais que uma exigência, é uma necessidade, quer dizer, é uma c o n d i ç ã o necessária para o f u n c i o n a m e n t o do sis­tema. A norma q u e es tabelece o dever do juiz de julgar cada caso c o m base numa norma per tencente ao siste­ma não poder ia ser executada se o s is tema n ã o fosse pressupostamente c o m p l e t o , quer dizer, c o m u m a re­gra para cada caso. A comple tude é, portanto, uma con­dição sem a qual o sistema em seu conjunto não poderia funcionar.

A base d o s ordenamentos fundados sobre o dog­ma da completude, c o m o já foi d i to , é o C ó d i g o Civil francês, cujo artigo 4? diz: "O juiz q u e recusar julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiên­cia da lei, poderá ser proces sado c o m o c u l p a d o de de­negar a justiça". No Direito italiano, e s se princípio é e s tabe lec ido no artigo 113 do C. P. C, q u e diz.- "Ao pronunciar-se sobre a causa, o juiz d e v e seguir as nor­mas do Direito, sa lvo se a lei lhe atribuir o p o d e r de decidir s e g u n d o a eqüidade".

Conc lu indo , a comple tude é u m a c o n d i ç ã o neces­sária para os o r d e n a m e n t o s em q u e va l em estas duas regras:

1) o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que

se apresentarem a seu exame;

2) deve julgá-las com base em uma norma pertencente

ao sistema.

Entende-se que, se uma das duas regras perder o efei­to, a completude deixará de ser considerada c o m o um re­quisito do ordenamento. Podemos imaginar dois tipos de ordenamentos incompletos, caso falte a primeira ou a se­gunda regra. Num ordenamento em que faltasse a primei-

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ra regra, o juiz não teria que julgar todas as controvérsias que lhe fossem apresentadas: poderia pura e simplesmen­te repelir o caso c o m o juridicamente irrelevante, c o m um juízo de non liquet (não convém). Para alguns, o ordena­mento internacional é um ordenamento deste tipo: o juiz internacional teria a faculdade, em alguns casos, de não cul­par nem desculpar a nenhum dos contendores, e esse juí­zo seria diferente (mas é discutível que o seja) do juízo do juiz que daria a culpa a um e a razão ao outro, ou vice-versa. Num ordenamento no qual faltasse a segunda regra, o juiz seria, sim, levado a julgar cada caso, mas não seria obrigado a julgá-lo baseado em uma norma do sistema. É o caso do ordenamento que autoriza o juiz a julgar, na fal­ta de um dispositivo de lei ou da lei dedutível, segundo a eqüidade. Podem-se considerar ordenamentos desse ti­po o ordenamento inglês e, em medida reduzida, o suíço, que autoriza o juiz a resolver a controvérsia, na falta de uma lei ou de um costume, c o m o se ele mesmo fosse le­gislador. Dá para entender que num ordenamento onde o juiz está autorizado a julgar segundo a eqüidade, não tem nenhuma importância que o ordenamento seja preventi­vamente completo, porque é a cada momento completável.

2. O dogma da completude

O dogma da completude, isto é, o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso, uma solução sem recorrer à eqüidade, foi dominante, e o é em parte até agora, na teoria jurídica eu­ropéia de origem romana. Por alguns é considerado c o m o um dos aspectos salientes do positivismo jurídico.

Regredindo no tempo, esse dogma da completude nas­ce provavelmente da tradição românica medieval, dos tem-

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pos em que o Direito romano vai sendo, aos poucos , con­siderado c o m o o Direito por excelência, de uma vez por todas enunciado no Corpus iuris, ao qual não há nada a acrescentar e do qual não há nada a retirar, pois que con­tém as regras que dão ao bom intérprete condições de re­solver todos os problemas jurídicos apresentados ou por apresentar. A completa e fina técnica hermenêutica que se desenvolve entre os juristas comentadores do Direito ro­mano, e depois entre os tratadistas, é especialmente uma técnica para a ilustração e o desenvolvimento interno do Direito romano, c o m base no pressuposto de que ele cons­titui um sistema potencialmente completo, uma espécie de mina inesgotável da sabedoria jurídica, que o intérprete de­ve limitar-se a escavar para encontrar o ve io escondido. Caso nos fosse permitido,resumir c o m uma frase o caráter da jurisprudência desenvolvida sob o império e à sombra do Direito romano, diríamos que ela desenvolveu o méto­do da extensio em prejuízo do método da eqüidade, inspirando-se no princípio de autoridade em vez de no prin­cípio da natureza das coisas.

Nos tempos modernos o dogma da completude tornou-se parte integrante da concepção estatal do Direito, isto é, daquela concepção que faz da produção jurídica um mo­nopólio do Estado. Na medida em que o Estado moderno crescia em potência, iam-se acabando todas as fontes de direito que não fossem a Lei ou o comando do soberano. A onipotência do Estado reverteu-se sobre o Direito de ori­gem estatal, e não foi reconhecido outro Direito senão aque­le emanado direta ou indiretamente do soberano. Onipo­tente c o m o o Estado do qual emanava, o Direito estatal devia regular cada caso possível: havendo lacunas, o que deveria ter feito o juiz senão recorrer a fontes jurídicas extra-estatais, c o m o o costume, a natureza das coisas, a eqüida­de? Admitir que o ordenamento jurídico estatal não era completo significava introduzir um Direito concorrente,

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quebrar o monopól io da produção jurídica estatal. E é por isso que a afirmação do dogma da completude caminha no mesmo passo que a monopol ização do Direito por parte do Estado. Para manter o próprio monopól io , o Direito do Estado deve servir para todo uso. Uma expressão macros­cópica dessa vontade de completude foram as grandes co­dificações; e é justamente no interior de uma dessas gran­des codificações, note-se bem, que foi pronunciado o ve­redicto de que o juiz deve julgar permanecendo sempre dentro do sistema já dado. A miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. O código é para o juiz um prontuário que lhe deve servir infalivelmente e do qual não pode afastar-se.

A cada grande codificação (desde a francesa de 1804 até a alemã de 1900) desenvolveu-se entre os juristas e os juízes a tendência de ater-se escrupulosamente aos có­digos, atitude esta que foi chamada, com referência aos ju­ristas franceses em relação aos códigos napoleónicos, mas que se poderia estender a cada nação c o m Direito codifi­cado, de fetichismo da lei. Na França, a escola jurídica que se foi impondo depois da codificação é geralmente desig­nada com o nome de escola da exegese, e se contrapõe à escola científica, que veio depois. O caráter peculiar da escola da exegese é a admiração incondicional pela obra realizada pelo legislador através da codificação, uma con­fiança cega na suficiência das leis, a crença de que o códi­go , uma vez promulgado, basta-se completamente a si pró­prio, isto é, não tem lacunas: numa palavra, o dogma da completude jurídica. Uma escola da exegese existiu não somente na França, mas também na Itália, na Alemanha, etc. Existe até agora, m e s m o que, c o m o veremos, o pro­blema das lacunas hoje seja co locado criticamente. Teria até vontade de dizer que escola da exegese e codifi­cação são fenômenos estreitamente conexos e difíceis de separar.

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Quando, c o m o veremos no próximo parágrafo, co­meçou a reação ao fetichismo legislativo e, ao mesmo tem­po, ao dogma da completude, um dos maiores represen­tantes dessa reação, o jurista alemão Eugen Ehrlich, num livro dedicado ao estudo e à crítica da mentalidade do ju­rista tradicional, A lógica dos juristas (Die juristische Lo-gik, Tübingen, 1925), afirmou que o raciocínio do jurista tradicional, enraizado no dogma da completude, era fun­dado nestes três pressupostos:

1) a proposição maior de cada raciocínio jurídico deve ser uma norma jurídica;

2) essa norma deve ser sempre uma lei do Estado; 3) todas essas normas devem formar no seu conjun­

to uma unidade.

Ehrlich, criticando a mentalidade tradicional do jurista, queria criticar aquela atitude de conformismo diante do estadismo que, justamente, havia gerado e radicado na ju­risprudência o dogma da completude.

3. A crítica da completude

O livro de Ehrlich, citado, é uma das expressões mais significativas daquela revolta contra o monopó l io estatal do Direito, que se desenvolveu, quase ao mesmo tempo, na França e na Alemanha no final do século passado, e que, mesmo sendo chamada com nomes diferentes, é conheci­da sobretudo pelo nome de escola do Direito livre. O prin­cipal alvo dessa tendência é o dogma da completude do ordenamento jurídico. Se quisermos criticar o fetichismo legislativo dos juristas, precisaremos em primeiro lugar abo­lir a crença de que o Direito estatal é completo . A batalha da escola do Direito livre contra as várias escolas da exe-

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gese é uma batalha pelas lacunas. Os comentadores do Di­reito constituído acreditavam que o Direito não tivesse la­cunas e que o dever do intérprete fosse somente o de tor­nar explícito aquilo que já estava implícito na mente do legislador. Os sustentadores da nova escola afirmam que o Direito constituído está cheio de lacunas e, para preenchê-las, é necessário confiar principalmente no poder criativo do juiz, ou seja, naquele que é chamado a resolver os infi­nitos casos que as relações sociais suscitam, além e fora de toda a regra pré-constituída.

As razões pelas quais, no final do século passado, sur­ge e se desenvolve rapidamente esse movimento contra o estadismo jurídico e o dogma da completude são várias. Mas me parece que as principais sejam estas duas:

1) Antes de tudo, à medida que a codificação enve­lhecia (isto vale sobretudo para a França), descobriam-se as insuficiências. O que num primeiro momento é objeto de admiração incondicional, vai-se tornando aos poucos objeto de análise crítica sempre mais exigente, e a confiança na onisciência do legislador diminui ou perde o valor. Na história do Direito na Itália, bastará comparar a atitude da geração mais próxima aos primeiros códigos, situada en­tre os anos 70 e 90, e a atitude da geração posterior. Falou-se muito de passagem de uma jurisprudência exegética a uma jurisprudência científica para indicar, entre outros, o de­senvolvimento de uma livre crítica em relação aos códi­gos, que preparou sua reforma. E, também hoje, quem com­para a atitude do jurista atual c o m a dos primeiros anos depois da formulação dos novos códigos não demorará a notar um maior desabuso e um respeito menos passivo.

2) Em segundo lugar, ao lado do processo natural de envelhecimento de um código, é necessário considerar que na segunda metade do século passado houve, por obra da chamada revolução industrial, uma profunda e rápida trans-

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formação da sociedade, que fez as primeiras codificações — que refletiam uma sociedade ainda predominantemen­te agrícola e escassamente industrializada — parecerem ana­crônicas e, portanto, insuficientes e inadequadas, e acele­rou o seu processo natural de envelhecimento. Basta pen­sar que ainda no Código Civil italiano de 1865, que deri­vava do francês, todos os problemas do trabalho, aos quais hoje é dedicado um livro inteiro, estavam resumidos num artigo. Falar de completude de um Direito, que ignorava o surgimento da grande indústria e todos os problemas da organização do trabalho a ela ligados, significava fechar os olhos frente à realidade por amor a uma fórmula e deixar-se embalar na inércia mental e no preconceito.

Acrescentemos que essa divergência, sempre mais rá­pida e macroscópica, entre Direito constituído e realida­de social foi acompanhada pelo particular desenvolvimento da filosofia social e das Ciências Sociais no século passa­do, as quais, m e s m o nas diversas correntes a que deram lugar, tiveram uma característica comum: a polêmica con­tra o Estado e a descoberta da sociedade abaixo do Esta­do. Tanto o marxismo quanto a sociologia positivista — para nos limitarmos às duas maiores correntes de filosofia social — foram animados por uma crítica contra o monis-mo estatal, que havia tido a sua expressão mais intransi­gente na filosofia hegeliana, mas tinha ramificações muito mais antigas. O Estado se erguia acima da sociedade, e tendia a absorvê-la, mas a luta das classes, de um lado, que tendia a quebrar continuamente os limites da ordem estatal, e a contínua formação espontânea (não provocada ou impos­ta pelo Estado) de novos conjuntos sociais, c o m o os sin­dicatos, os partidos, e de novos relacionamentos entre os homens, derivados da transformação dos meios de produ­ção, punham em evidência uma vida subordinada ou em oposição ao Estado, que nem o sociólogo, portanto, nem

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o jurista, podiam ignorar. A sociologia, esta nova ciência que foi o produto mais típico do espírito científico do sé­culo XIX, desde o m o m e n t o em que se conscientizou das correntes subterrâneas que animavam a vida social, repre­sentou a destruição do mito do Estado. Vimos que um dos elementos do mito do Estado era o dogma da completu­de. Entende-se c o m o a sociologia pôde fornecer armas crí­ticas aos juristas novos contra as várias formas de jurispru­dência presas ao dogma do estadismo e da completude do Direito. No final das contas, a consciência que ia se formando pelo desajuste entre Direito constituído e realidade social era ajudada pela descoberta da importância da sociedade em relação ao Estado, e encontrava na sociologia um pon­to de apoio para contrastar a pretensão do estadismo jurídico.

No âmbito mais vasto da sociologia, formou-se uma corrente de sociologia jurídica, da qual Ehrlich é um dos representantes mais destacados: o programa da sociologia jurídica foi o de mostrar, principalmente no início, que o Direito era um fenômeno social, e que portanto a preten­são dos juristas ortodoxos de fazer do Direito um produto do Estado era infundada e conduzia a vários absurdos, co­mo o de acreditar na completude do Direito codificado. As relações entre escola do Direito livre e sociologia jurí­dica são muito estreitas: são duas faces da mesma moeda. Se o Direito era um fenômeno social, um produto da so­ciedade (nas suas múltiplas formas), e não somente do Es­tado, o juiz e o jurista tinham que tirar as regras jurídicas, adaptadas às novas necessidades, do estudo da sociedade, da dinâmica das relações entre as diferentes forças sociais, e dos interesses que estas representavam, e não das regras mortas e cristalizadas dos códigos. O Direito livre, em ou­tras palavras, tirava as conseqüências não somente da li­ção dos fatos (isto é, da constatação de c o m o o Direito es­tatal era inadequado frente ao desenvolvimento da socie-

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dade), mas também da nova consciência, que o desenvol­vimento das Ciências Sociais ia difundindo, da importân­cia das forças sociais latentes no interior da aparentemen­te granítica estrutura do Estado: e lição dos fatos e matu­ridade científica se ajudavam mutuamente a combater o monopól io jurídico do Estado e, c o m isso, o dogma da completude.

A literatura crítica do estadismo jurídico é imensa. Limitano-nos a lembrar a obra de Geny, Méthode d'inter­prétation et sources du droit positif, 1899, que contrapu­nha à imitadora exegese dos textos legislativos a livre pes­quisa científica, através da qual o jurista deveria retirar a regra jurídica diretamente do Direito v ivo nas relações so­ciais. "O Direito é coisa muito complexa e móvel — es­crevia Geny — para que um indivíduo ou uma assembléia, ainda que investidos de autoridade soberana, possam pre­tender fixar de uma só vez os preceitos de m o d o a satifa-zer todas as exigências da vida jurídica". 3 Na m e s m a é p o c a os e s t u d o s de Edouard Lambert sobre o Direito consuetudinário e sobre o Direito judiciário serviam pa­ra chamar a a tenção sobre um Direito de or igem não-legislativa. Livros c o m o o de Jean Cruet, La vie du droit et l'impuissance des lois, 1914 (A vida do Direito e a impotência das leis), o n d e se prop u nha o m é t o d o de uma legislação experimental , q u e deveria adequar-se às necess idades sociais , d a n d o a m á x i m a importância ao c o s t u m e e à jurisprudência, ou c o m o o de Gaston Mo-rin, La révolte des faits contre la loi, 1920 (4 revolta dos fatos contra a lei), o n d e se c o l o c a v a em des taque a opos i ção entre a soc iedade e c o n ô m i c a e o Estado, são exemplos e loqüentes do m o v i m e n t o antidogmático que v inha se d e s e n v o l v e n d o na jurisprudência francesa.

(3) F. Gény.Méthode d'interprétation et sources du droit positif, 2? éd., 1919, II, p. 324.

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Na Alemanha, o sinal da batalha contra o tradicio­nal i smo jurídico em n o m e da soc io log ia jurídica e da livre pesquisa do Direi to foi d a d o por Hermann Kan-torowicz , que e m 1 9 0 6 p u b l i c o u u m "panf le to" s o b o título de A luta pela ciência do Direito (Der Kampf um die Rechtswissenschaft), c o m o pseudônimo de Gnaeus Flavius, no qual indicava no Direito livre, tira­do diretamente da vida social , i n d e p e n d e n t e m e n t e das fontes jurídicas de derivação estatal, o n o v o Direito na­tural, q u e tinha a m e s m a função do antigo Direito na­tural, q u e era de representar uma o r d e m normativa de or igem n ã o estatal, m e s m o q u e n ã o t ivesse mais a sua natureza, do m o m e n t o q u e o Direito livre era, t a m b é m ele , um direito pos i t ivo , i s to é, eficaz. S o m e n t e o Di­reito livre estava em c o n d i ç õ e s de preencher as lacu­nas da legislação. Caía, c o m o inútil e per igoso e m p e c i ­l h o à adaptação do Direito às ex igências sociais, o dog­ma da c o m p l e t u d e . No seu lugar entrava a c o n v i c ç ã o de q u e o Direito legislativo era l acunos o , e q u e as lacu­nas não podiam ser preenchidas mediante o próprio Di­reito es tabe lec ido , mas através do reencontro e da for­mulação do Direito livre.

4. O espaço jurídico vazio

A corrente do Direi to livre e da livre pesquisa do Direito t eve entre os juristas mui to s adversários: mais adversários do q u e amigos . O pos i t iv i smo jurídico de estrita observância , l igado à c o n c e p ç ã o estatal do Di­reito, n ã o se d e i x o u derrotar. O Direito livre represen­tava aos o lhos dos juristas tradicionalistas uma n o v a en­carnação do Direito natural, q u e da esco la histórica em diante se cons iderava aniqui lado e , portanto , sepulta­do para sempre . Admitir a livre pesquisa do Direi to (li-

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vre no sentido de não-ligada ao Direito estatal), conce­der cidadania ao Direito livre (isto é, a um Direito cria­do de v e z em q u a n d o p e l o juiz) significava quebrar a barreira do pr inc ípio de legalidade, q u e havia s ido c o ­l o c a d o em defesa do indiv íduo, abrir as portas ao arbí­trio, ao caos e à anarquia. A c o m p l e t u d e n ã o era um mito , mas u m a ex igênc ia de justiça; n ã o era uma fun­ção inútil, mas u m a defesa útil de um d o s valores su­p r e m o s a q u e d e v e servir a o r d e m jurídica, a certeza. Atrás da batalha dos métodos havia, c o m o sempre, uma ba­talha ideológica. O dever dos juristas era o de defender a jus­tiça legal ou de favorecer a justiça substancial? Os de fenso ­res da legalidade ficaram presos ao dogma da completude. Mas para ali ficarem tiveram que encontrar novos argumen­tos. Após o ataque do Direito livre, não mais bastava repe­tir ingenuamente a velha confiança na sabedoria do legisla­dor. A confiança estava abalada. Era necessário demonstrar criticamente que a completude, longe de ser um c ô m o d o fin­gimento ou, pior, uma ingênua crença, era uma caracterís­tica constitutiva de todo ordenamento jurídico. E que, se havia uma teoria errada a ser refutada, esta não era mais a teoria da completude, mas aquela que sustentava a existên­cia de lacunas. Os juristas tradicionalistas passaram ao contra-ataque. O efeito desse contra-ataque foi que o problema da completude passou de uma fase dogmática a uma fase crítica.

O primeiro argumento lançado p e l o s posit ivistas de estrita observância foi aquele que chamaremos , por brevidade, de espaço jurídico vazio. Foi e n u n c i a d o e de fendido , contra qualquer renasc imento jusnaturalís-t ico, por um d o s maiores defensores do pos i t iv i smo ju­rídico, Karl Be rgbohm, no livro Jurisprudenz und Rechtsphilosphie, de 1892 {Jurisprudência e filo­sofia do Direito). Na Itália foi aceito por Santi Roma­n o , no ensa io Observações sobre a completude do or­denamento estatal, 1925 . O raciocínio de B e r g b o h m

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é mais ou m e n o s o seguinte: toda norma jurídica repre­senta uma limitação à livre atividade humana; fora da esfera regulada p e l o Direito , o h o m e m é livre para fa­zer o que quiser. O âmbito da atividade de um h o m e m p o d e , portanto, ser cons iderado dividido, do p o n t o de vista d o Direito, e m do i s compart imentos : aquele n o qual é regulado por normas jurídicas, e que p o d e r e m o s chamar de e s p a ç o jurídico p l e n o , e aquele no qual é livre, e que p o d e r e m o s chamar de e s p a ç o jurídico va­zio. Ou há o v íncu lo jurídico ou há a absoluta liberda­de . Tertium non datur. A esfera da l iberdade p o d e di­minuir ou aumentar, conforme aumentem ou diminuam as normas jurídicas, mas não p o d e acontecer que o nos ­so ato seja ao m e s m o t e m p o livre e regulado. Trans­portemos essa alternativa para o plano do problema das lacunas: um caso ou está regulado p e l o Direito, e então é um caso jurídico ou juridicamente relevante, ou não está regulado pelo Direito, e então pertence àquela es­fera de livre desenvolvimento da atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante. Não há lugar para a lacuna do Direito. Como é absurdo pensar num caso que não seja jurídico e todavia seja regulado, assim também não é possível admitir um caso que seja jurídico e que apesar disso não seja regulado: isto é, não é possível admitir uma lacuna do Direito. Até onde o Direito alcança c o m as suas normas, evidentemente não há lacunas; onde não alcança, há espaço jurídico vazio e, portanto, não a lacuna do Direi­to, mas a atividade indiferente ao Direito. Um espaço inter­mediário entre o juridicamente pleno e o juridicamente va­zio, onde se possam colocar as lacunas, não existe. Ou exis­te o ordenamento jurídico, e então não se pode falar de lacuna, ou há a chamada lacuna, e então não existe mais o ordenamento jurídico, e a lacuna não é mais tal, porque não representa uma deficiência do ordenamento, mas um seu limite natural. O que está além dos limites das regras

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de um ordenamento não é uma lacuna do ordenamento, mas algo diferente do ordenamento, assim c o m o a margem de um rio não é a falta do rio, mas simplesmente a separa­ção entre o que é rio e o que não é.

O ponto fraco dessa teoria é que ela está fundada so­bre um concei to muito discutível c o m o o de espaço jurí­dico vazio ou o de esfera do juridicamente irrelevante? Exis­te o espaço jurídico vazio? Parece que a afirmação do es­paço jurídico vazio nasce da falsa identificação do jurídi­co com o obrigatório. Mas aquilo que não é obrigatório, e, portanto, representa a esfera do permitido e do lícito, deve ser considerado juridicamente irrelevante ou indife­rente? Aqui está o erro. Falamos freqüentemente das três modalidades normativas do ordenado, do proibido e do permitido. Para sustentar a tese do espaço jurídico vazio é necessário excluir a permissão das modalidades jurídi­cas: aquilo que é permitido coincidiria c o m aquilo que é juridicamente indiferente. Quando muito, seria necessário distinguir duas esferas da permissão ou da liberdade, uma juridicamente relevante e a outra juridicamente irrelevan­te. Mas é possível tal distinção? Existe uma esfera da liber­dade jurídica ao lado de uma esfera da liberdade juridica­mente irrelevante?

A primeira impressão de que uma liberdade juridicamen­te irrelevante não exista nasce do fato de que Romano, para definir esta liberdade e para distingui-la da liberdade jurí­dica (considerada c o m o esfera do lícito), chama-a de esfe­ra daquilo que não é nem lícito nem ilícito. Ora, c o m o lí­cito e ilícito são dois termos contraditórios, não podem excluir-se mutuamente, porque, se não podem ser ambos verdadeiros, não podem também ser ambos falsos. E, por­tanto, não pode existir uma situação que não seja ao mes­mo tempo nem lícita nem ilícita.

Na realidade, a liberdade não-jurídica poderia ser me­lhor definida c o m o "liberdade não-protegida". O que sig-

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nifica essa expressão? Faz sentido falar de uma liberdade não-protegida, ao lado da liberdade protegida? Vejamos. Por "liberdade protegida" entende-se aquela liberdade que é garantida (por meio da coerção jurídica) contra eventuais impedimentos por parte de terceiros (ou do próprio Esta­do). Trata-se daquela liberdade que é reconhecida no pró­prio momento em que é imposta a terceiros a obrigação jurídica (isto é, reforçada pela sanção, no caso de não-cumprimento) de não impedir o seu exercício. Note-se bem que a esfera da permissão (numa pessoa) está sempre liga­da a uma esfera do obrigatório (numa outra pessoa ou em outras pessoas): isso quer dizer que a esfera da permissão jurídica pode sempre ser considerada do ponto de vista da obrigação (isto é, da obrigação dos outros de não im­pedir o exercício da ação lícita); e que o Direito não per­mite nunca sem ao mesmo tempo ordenar ou proibir. Pois bem, se por liberdade protegida se entende a liberdade ga­rantida contra o impedimento dos outros, por liberdade não-protegida (aquilo que deveria constituir a esfera do que é juridicamente irrelevante e do espaço jurídico vazio) dever-se-ia entender uma liberdade não-garantida contra o im­pedimento dos outros. Isso quer dizer que o uso da força por parte de um terceiro para impedir o exercício daquela liberdade seria lícito. Brevemente: liberdade não-protegida significa licitude do uso da força privada. Mas se é assim, nos nossos ordenamentos estatais modernos, caracteriza­dos pela monopolização da força por parte do Estado, e pela conseqüente proibição do uso privado da força, a si­tuação hipotética de liberdade não-protegida não é possível.

Entende-se que ao Estado, quando atribui uma liber­dade, não interessa o que eu escolho, mas o que eu posso escolher. Aquilo que ele protege não é a minha escolha, mas o direito de escolher. Poder-se-ia objetar que o orde­namento estatal moderno não pode ser tomado c o m o mo­delo de cada possível ordenamento jurídico, e que há or-

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denamentos jurídicos nos quais a monopol ização da força não é completa, e, portanto, nesses ordenamentos há ca­sos em que a intervenção da força privada é lícita. Confes­so que também nesse caso me é difícil falar de uma esfera daquilo que é juridicamente irrelevante. Que em alguns ca­sos a força privada seja lícita significa que a liberdade de um não está protegida, mas está protegida a força do ou­tro, e que, portanto, a relação direito-dever está invertida, no sentido de que ao dever do terceiro de respeitar a li­berdade dos outros sucede o direito de violá-la, e ao direi­to do outro de exercer a própria liberdade sucede o dever de aceitar o impedimento do outro. O fato de que a liber­dade não seja protegida não torna essa situação juridica­mente irrelevante, porque, no momento em que a liber­dade de agir de um não está protegida, está protegida a li­berdade do outro de exercer a força; e, enquanto está pro­tegida, esta é a juridicamente relevante em vez da outra. Não falha a relevância jurídica: simplesmente muda a rela­ção entre o direito e o dever.

5. A norma geral exclusiva

Se não existe um espaço jurídico vazio, então existe somente o espaço jurídico pleno. Justamente nessa cons­tatação se baseou a segunda teoria que, na reação contra a escola do Direito livre, procurou colocar criticamente ó problema da completude. Sinteticamente, a primeira teo­ria, que examinamos no parágrafo anterior, sustentou que não há lacunas porque, onde falta o ordenamento jurídi­co , falta o próprio Direito e, portanto, deve-se falar mais propriamente de limites do ordenamento jurídico do que de lacunas. A segunda teoria sustenta que não há lacunas pela razão inversa, isto é, pelo fato de que o Direito nunca

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falta. Esta segunda teoria foi sustentada pela primeira vez pelo jurista alemão E. Zitelmann no ensaio intitulado As lacunas no Direito (Lücken im Recht, 1903), e, c o m algu­ma variante, na Itália, por Donato Donati no importante livro O problema das lacunas do ordenamento jurídico, 1910.

O raciocínio seguido por esses autores pode ser resu­mido assim: uma norma que regula um comportamento não só limita a regulamentação e, portanto, as conseqüên­cias jurídicas que desta regulamentação derivam para aquele comportamento, mas ao m e s m o tempo exclui daquela re­gulamentação todos os outros comportamentos. Uma nor­ma que proíbe fumar exclui da proibição, ou seja, permi­te, todos os outros comportamentos que não sejam fumar. Todos os comportamentos não-compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral exclusiva, isto é, pela regra que exclui (por isso é exclusiva) todos os comportamentos (por isso é geral) que não sejam aque­les previstos pela norma particular. Poder-se-ia dizer, tam­bém, que as normas nunca nascem sozinhas, mas aos pa­res: cada norma particular, que poderemos chamar de in­clusiva, está acompanhada, c o m o se fosse por sua própria sombra, pela norma geral exclusiva. Segundo essa teoria, nunca acontece que haja, além das normas particulares, um espaço jurídico vazio, mas acontece, sim, que além daquelas normas haja toda uma esfera de ações reguladas pelas nor­mas gerais exclusivas. Enquanto para a primeira teoria a atividade humana está dividida em dois campos, um regu­lado por normas e outro não regulado, para essa segunda teoria toda a atividade humana é regulada por normas ju­rídicas, porque aquela que não cai sob as normas particu­lares cai sob as gerais exclusivas.

Para maior clareza citaremos as palavras dos dois au­tores que formularam a teoria. Diz Zitelmann: "Na base de toda norma particular que sanciona uma ação com uma pe-

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na ou c o m a obrigação de indenização dos danos, ou atri­buindo qualquer outra conseqüência jurídica, está sempre c o m o subentendida e não-expressa uma norma fundamen­tal geral e negativa, segundo a qual, à parte esses casos par­ticulares, todas as outras ações ficam isentas de pena ou indenização: cada norma positiva, c o m a qual é atribuída uma pena ou uma indenização, é nesse sentido uma exce­ção daquela norma fundamental geral e negativa. Donde se segue: no caso em que falte uma tal exceção positiva não há lacunas, porque o juiz pode sempre, aplicando aque­la norma geral e negativa, reconhecer que o efeito jurídi­co em questão não interveio, ou que não surgiu o direito à pena ou a obrigação à indenização". 4 Diz Donati: "Da­do o conjunto das d i spos ições que , p r e v e n d o determi­nados casos , e s tabe l ecem a ex is tência de dadas obriga­ç õ e s , do c o n j u n t o das d i spos i ções deriva ao m e s m o tempo uma série de normas particulares inclusivas e uma norma geral exclus iva: uma série de normas particula­res dirigidas a estabelecer, para os casos por elas parti­cularmente cons iderados , dadas l imitações, e uma nor­ma geral dirigida a excluir qualquer l imitação para to­dos os outros casos não particularmente cons iderados . Por força dessa norma, cada poss íve l c a s o v e m a en­contrar no o r d e n a m e n t o jurídico o s eu regulamento . Num caso determinado, ou existe na legislação uma dis­pos ição q u e particularmente a e le se refere, e dela de­rivará para o próprio caso uma norma particular, ou não existe , e en tão cairá s o b a norma geral referida". 5

O exemplo dado por Donati é o seguinte.- num Esta­do monárquico falta uma disposição que regule a suces­são ao trono no caso da extinção da família real. Pergunta-

(4) E. Zitelmann. Lücken im Recbt, Leipzig, 1903, p. 17. (5) D. Donati. //problemadellelacunedellordinamentogiuridico, Mi­

lão, 1910, pp. 36-7.

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se: a quem cabe a coroa no caso em que se verifique a cir­cunstância da extinção? Pareceria que nos encontramos frente a um típico caso de lacuna. Donati sustenta, ao con­trário, com base na teoria da norma geral exclusiva, que mes­mo nesse caso, existe uma solução jurídica. Uma vez que o caso não encontra no ordenamento nenhuma norma par­ticular que a ele se refira, cairá sob a norma geral exclusi­va, que justamente estabelece, para os casos nela compreen­didos, a exclusão de qualquer limitação. Portanto, a ques­tão proposta: "a quem cabe a coroa?", terá a seguinte so­lução e será a única solução jurídica possível: a coroa não cabe a ninguém, ou seja, o Estado e os súditos estão livres de qualquer limitação relativa à existência de um rei e, por­tanto, terão direito a recusar a pretensão de quem quiser ser reconhecido c o m o rei. Que tal solução não seja politi­camente satisfatória não significa de m o d o algum que não seja uma solução jurídica. Poderemos lamentar que um Estado no qual falte tal lei seja mal constituído, mas não se poderá dizer que o seu ordenamento seja incompleto ou lacunoso.

Também a teoria da norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco. Aquilo que diz, o diz bem, e c o m aparência de grande rigor, mas não diz tudo. O que ela não diz é que, normalmente, num ordenamento jurídico não existe so­mente um conjunto de normas particulares inclusivas e uma norma geral exclusiva que as acompanha, mas tam­bém um terceiro tipo de norma, que é inclusiva c o m o a primeira e geral c o m o a segunda, e podemos chamar de norma geral inclusiva. Chamamos de "norma geral inclu­siva" uma norma c o m o a que vem expressa no artigo 12 das Disposições preliminares do ordenamento italiano, se­gundo a qual, no caso de lacuna, o juiz deve recorrer às normas que regulam casos parecidos ou matérias análogas. Enquanto que norma geral exclusiva é aquela norma que regula todos os casos não-compreendidos na norma parti-

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cular, mas os regula de maneira oposta, a característica da norma geral inclusiva é a de regular os casos não-com-preendidos na norma particular, mas semelhantes a eles, de maneira idêntica. Frente a uma lacuna, se aplicarmos a norma geral exc lus iva , o c a s o não-regulamentado se­rá reso lv ido de maneira opos ta ao q u e está regulamen­tado; se aplicarmos a norma geral inclusiva, o caso não-regulamentado será resolvido de maneira idêntica àque­le q u e está regulamentado. C o m o se v ê , as c o n s e q ü ê n ­cias da apl icação de uma ou da outra n o r m a geral são b e m diferentes, aliás, opostas . E a apl icação de uma ou outra norma d e p e n d e do resultado da indagação sobre se o caso não-regulamentado é ou n ã o s eme lhante ao regulamentado. Mas o ordenamento, em geral, nada nos diz sobre as c o n d i ç õ e s c o m base nas quais do i s casos p o d e m ser cons iderados parecidos . A dec i são sobre a semelhança d o s casos cabe ao intérprete. Portanto, ca­be ao intérprete decidir se , em caso de lacuna, e le de­ve aplicar a norma geral exc lus iva e, portanto , excluir o caso não-previs to da disciplina do caso previs to , ou aplicar a norma geral inclusiva e, portanto, incluir o caso não-previsto na disciplina do caso previsto. No primeiro caso se diz q u e usa o argumentum a contrario, no se­g u n d o , o argumentum a simili.

Mas, se frente a um caso não-regulamentado se pode aplicar tanto a norma geral exclusiva quanto a geral inclu­siva, é necessário precisar a fórmula segundo a qual existe sempre, em cada caso, uma solução jurídica, nesta outra: no caso de lacuna, existem pelo menos duas soluções jurídicas:

1) A consideração do caso não-regulamentado c o m o diferente do regulamentado, e a conseqüente aplicação da norma geral exclusiva.

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2) A consideração do caso não-regulamentado c o m o semelhante ao regulamentado, e a conseqüente aplicação da norma geral inclusiva. Mas justamente o fato de que o caso não-regulamentado oferece matéria para duas solu­ções opostas torna o problema das lacunas menos simples, menos fácil e óbv io do que parecia partindo-se da teoria bastante linear da norma geral exclusiva. Se existem duas soluções, ambas possíveis, e a decisão entre as duas cabe ao intérprete, uma lacuna existe e consiste justamente no fato de que o ordenamento deixou impreciso qual das duas soluções é a pretendida. Caso existisse, tratando-se de com­portamento não-regulamentado, uma única solução, a da norma geral exclusiva, c o m o acontece, por exemplo , no Direito penal, onde a extensão analógica não é admitida, poderíamos também dizer que não existem lacunas: todos os comportamentos que não são expressamente proibidos pelas leis penais são lícitos. Mas uma vez que as soluções , em caso de comportamento não-regulamentado, são nor­malmente duas, a lacuna consiste justamente na falta de uma regra que permita acolher uma solução em vez da outra.

Desse m o d o , não só nos parece impossível excluir as lacunas, em contraste c o m a teoria da norma geral exclu­siva, mas ficou mais claro o concei to de lacuna: a lacuna se verifica não mais por falta de uma norma expressa pela re­gulamentação de um determinado caso, mas pela falta de um critério para a escolha de qual das duas regras ge­rais, a exclusiva ou a inclusiva, deva ser aplicada. Num certo sentido, vamos além da teoria da norma geral exclu­siva, porque admitimos que no caso do comportamento expressamente não-regulamentado não há sempre só uma, mas duas soluções jurídicas. Num outro sentido, porém, desmentimos a teoria, na medida em que, se as soluções jurídicas possíveis são duas e falta um critério para aplicar

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ao caso concreto uma em vez da outra, reencontramos aqui a lacuna que a teoria havia acreditado poder eliminar: la­cuna não a respeito do caso singular, mas a respeito do cri­tério c o m base no qual o caso d e v e ser reso lv ido .

Vejamos um exemplo: no artigo 265 do C. C. somen­te a violência é considerada c o m o causa de impugnação do reconhecimento do filho natural. O artigo não regula o caso do erro. Trata-se de uma lacuna? Caso não tivésse­mos outra norma para aplicar que não a geral exclusiva, poderíamos responder tranqüilamente que não. A norma geral exclusiva implica que aquilo que não está compreen­dido na norma particular (neste caso o erro) deve ter uma disciplina oposta à do caso previsto; portanto, se a violên­cia, que está prevista, é causa de impugnação, o erro, que não está previsto, não o é. Mas o problema é que o intér­prete deve levar em conta também a norma geral inclusi­va, segundo a qual em caso de comportamento não-regulamentado deve-se regulamentá-lo do m e s m o m o d o que o caso semelhante. O caso de erro assemelha-se ao da violência? Se o intérprete der a essa pergunta uma respos­ta afirmativa, é claro que a solução é oposta à solução an­terior. O erro é, da mesma maneira que a violência, causa de impugnação. C o m o se vê, a dificuldade, que habitual­mente não se considera, não é que frente ao caso não-regulamentado haja insuficiência de soluções jurídicas pos­síveis; há, sim, exuberância. E a dificuldade de interpreta­ção, na qual consiste o problema das lacunas, é que o or­denamento não oferece nenhum meio jurídico para elimi­nar essa exuberância, isto é, para decidir, c o m base no sis­tema, em favor de uma solução em detrimento da outra.

Referindo-nos à definição técnica de lacuna, dada no primeiro parágrafo deste capítulo, quando dissemos que a lacuna significa que o sistema, em certos casos, não ofe­rece a possibilidade de resolver um determinado caso nem de uma maneira nem da maneira oposta, do que dissemos

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acerca da teoria da norma geral exclusiva, devemos con­cluir que um ordenamento jurídico, apesar da norma ge­ral exclusiva, pode ser incompleto. E pode ser incompleto porque entre a norma particular inclusiva e a geral exclu­siva introduz-se normalmente a norma geral inclusiva, que estabelece uma zona intermediária entre o regulamentado e o não-regulamentado, em direção à qual tende a pene­trar o ordenamento jurídico, de forma quase sempre in­determinada e indeterminavel. Mas, normalmente, esta pe­netração fica imprecisa no âmbito do sistema. Se, no caso de comportamento não-regulamentado, não tivéssemos ou­tra norma para aplicar a não ser a exclusiva, a solução se­ria óbvia. Mas agora sabemos que em muitos casos pode­mos aplicar tanto a norma que quer os comportamentos diferentes regulamentados de maneira oposta ao compor­tamento regulamentado, quanto a norma que quer os com­portamentos semelhantes regulamentados de maneira idên­tica ao regulamentado. E não estamos em condições de de­cidir mediante regras do sistema se o caso é semelhante ou diferente. E, então, a solução não é mais óbvia. O fato de a solução não ser mais óbvia, isto é, de não se poder tirar do sistema nem uma solução nem a solução oposta, revela a lacuna, isto é, revela a incompletude do ordena­mento jurídico.

6. As lacunas ideológicas

Procuramos esclarecer no parágrafo anterior em que sentido se pode falar de lacunas no ordenamento jurídico ou de incompletude do ordenamento jurídico: não no sen­tido, repetimos, de falta de uma norma a ser aplicada, mas de falta de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada. Mas há outro sentido de lacuna, mais óbvio ,

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menos controverso, que também merece uma breve

ilustração. Entende-se também por "lacuna" a falta não já de uma

solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satis­fatória, ou, em outras palavras, não já a falta de uma nor­ma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma nor­ma que se desejaria que existisse, mas que não existe. Uma vez que essas lacunas derivam não da consideração do or­denamento jurídico c o m o ele é, mas da comparação entre ordenamento jurídico c o m o ele é e c o m o deveria ser, fo­ram chamadas de "ideológicas", para distingui-las daquelas que eventualmente se encontrassem no ordenamento ju­rídico c o m o ele é, e que se podem chamar de "reais". Po­demos também enunciar a diferença deste m o d o : as lacu­nas ideológicas são lacunas de iure condendo (de direito a ser estabelecido), as lacunas reais são de iure condito (do direito já estabelecido).

Que existem lacunas ideológicas em cada sistema ju­rídico é tão óbv io que não precisamos nem insistir. Ne­nhum ordenamento jurídico é perfeito, pe lo menos ne­nhum ordenamento jurídico positivo. Somente o ordena­mento jurídico natural não deveria ter lacunas ideológicas; aliás, uma possível definição do Direito natural poderia ser aquela que o define c o m o um Direito sem lacunas ideoló­gicas, no sentido de que ele é aquilo que deveria ser. Mas um sistema de Direito natural nunca ninguém formulou. A nós interessa o Direito positivo. Ora, c o m respeito ao Direito positivo, se é óbvio que cada ordenamento tem lacunas ideológicas, é igualmente óbvio que as lacunas com as quais deve se preocupar aquele que é chamado a aplicar o Di­reito não são as ideológicas, mas as reais. Quando os juris­tas sustentam, em nossa opinião, sem razão, que o orde­namento jurídico é completo, isto é, não tem lacunas, referem-se às lacunas reais e não às ideológicas.

Quem procurou colocar em relevo a diferença entre

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os dois planos do problema das lacunas, o de iure condito e o de iure condendo, foi Brunetti, em uma série de en­saios que constituem, juntamente c o m as obras de Roma­no e de Donati, as maiores contribuições da ciência jurídi­ca italiana para o problema. 6 Brunetti sustenta que , pa­ra se poder falar de c o m p l e t u d e ou de i n c o m p l e t u d e de uma coisa qualquer, é necessár io n ã o considerar a coisa em si mesma, mas compará-la c o m alguma outra. Os dois casos típicos nos quais eu posso falar de com­pletude, ou não, são:

1 ) q u a n d o c o m p a r o u m a determinada coisa c o m o seu tipo ideal ou c o m aquele que deveria ser; t em sen­t ido perguntar se uma dada mesa é perfeita ou n ã o s o ­m e n t e se a comparar c o m aquela q u e deveria ser u m a mesa pefeita;

2) q u a n d o c o m p a r o a representação de u m a coi ­sa c o m a coisa representada, por e x e m p l o , um mapa da Itália c o m a Itália. Ora, c o m relação ao o r d e n a m e n ­to jurídico, Brunetti sustenta q u e se o cons iderarmos em s i m e s m o , isto é , s e m compará- lo c o m alguma o u ­tra coisa, perguntar se é c o m p l e t o ou n ã o torna-se sem sentido, c o m o se nos perguntássemos se o ouro é com­pleto , se o c é u é c o m p l e t o . Para q u e o problema das lacunas tenha sentido, é preciso comparar o ordenamen­to jurídico real c o m um o r d e n a m e n t o jurídico ideal, conforme o significado expos to no item 1, e nesse ca­so é lícito falar de c o m p l e t u d e ou de i n c o m p l e t u d e do

(6) G. Brunetti. "Sul valore dei problema delle lacune", 1913; "II senso dei problema delle lacune dellordinamento giuridico", 1917; "Ancora sul sen­so dei problema delle lacune", 1917; "Sulle dottrine che affermano 1'esistenza di lacune nell'ordinamento giuridico", 1918; "II dogma delia completezza dellor­dinamento giuridico", 1924. Estes ensaios se encontram em Scritti giuridici vari, respectivamente, I, pp. 34 e segs.; III, pp. l c segs.; pp. 30 e segs.; pp. 50 e segs.; IV, pp. 161 e segs.

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o r d e n a m e n t o jurídico — mas n ã o é o s e n t i d o q u e inte­ressa ao jurista (trata-se, de fato, das lacunas ideológi ­cas) — ou considerar o o r d e n a m e n t o legis lat ivo c o m o representação da v o n t a d e do Estado, c o n f o r m e o sig­nificado e x p o s t o no i tem 2, e perguntar se a lei c o n ­tém ou não tudo aquilo que d e v e conter para poder ser considerada a manifestação t ecn i camente perfeita da vontade do Estado; mas, neste s e g u n d o caso , o proble­ma da c o m p l e t u d e ou da i n c o m p l e t u d e p o d e ser refe­rido unicamente ao ordenamento legislativo, c o m o par­te do o r d e n a m e n t o jurídico, e não ao o r d e n a m e n t o ju­r íd ico em sua totalidade. Referindo-se ao o r d e n a m e n ­to jurídico em sua totalidade, o prob lema da c o m p l e ­tude, s e g u n d o Brunetti, n ã o t em sent ido , p o r q u e o or­d e n a m e n t o jurídico em sua total idade, em s i m e s m o cons iderado , n ã o pertence à categoria das coisas das quais se possa predicar a c o m p l e t u d e ou incomple tu ­de , c o m o n ã o se p o d e predicar o azul ao triângulo ou à alma.

Resumindo , s e g u n d o Brunetti, o prob lema das la­cunas t e m três faces:

1) o prob lema de o o r d e n a m e n t o jurídico, consi ­derado em si próprio, ser completo ou incompleto: o problema assim c o l o c a d o (co locação mais freqüente en­tre os juristas) não t em sent ido;

2) o problema de ser c o m p l e t o ou i n c o m p l e t o o ordenamento jurídico, tal c o m o ele é, comparado a um or­denamento jurídico ideal: esse problema tem sentido, mas as lacunas que aqui vêm à baila são as lacunas ideológicas, que não interessam aos juristas.

3) o problema de ser c o m p l e t o ou i n c o m p l e t o o o r d e n a m e n t o legislativo, cons iderado c o m o parte de um t o d o e confrontado c o m o t o d o , is to é, c o m o or d e n a m e n t o jurídico: esse problema t e m sen t ido e é o

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ú n i c o caso em q u e se p o d e falar de lacunas no s en t ido próprio da palavra. Na realidade t a m b é m esse terceiro caso p o d e ser enquadrado na categoria das lacunas ideo­lógicas, isto é, na o p o s i ç ã o entre aqui lo q u e a Lei diz e aquilo que deveria dizer para ser perfe i tamente ade­quada ao espírito de t o d o o sistema. Portanto, para Bru­netti, o problema da c o m p l e t u d e é um prob lema s e m sent ido , e, lá o n d e t em sent ido , as únicas lacunas, das quais se p o d e mostrar a exis tência , são lacunas ideo ló ­gicas; e é um sent ido , c o m o diz íamos , tão ó b v i o que , se a isso se reduz o problema, n ã o se justificariam to­d o s os rios de tinta gastos c o m ele .

7. Vários tipos de lacunas

A distinção que ilustramos até agora entre lacunas reais e lacunas ideológicas corresponde mais ou menos à dis­tinção, freqüentemente repetida nos tratados gerais, entre lacunas próprias e impróprias. A lacuna própria é uma lacuna do sistema ou dentro do sistema; a lacuna impró­pria deriva da comparação do sistema real c o m um sis­tema ideal. Num sistema em que cada caso não-regula-mentado faz parte da norma geral exclusiva (como é ge­ralmente um código penal, que não admite extensão ana­lógica) não pode haver outra coisa além de lacunas im­próprias. O caso não-regulamentado não é uma lacuna do sistema porque só pode pertencer à norma geral exclusi­va, mas, quando muito, é uma lacuna que diz respeito a c o m o deveria ser o sistema. Temos a lacuna própria so­mente onde, ao lado da norma geral exclusiva, existe tam­bém a norma geral inclusiva, e o caso não-regulamentado pode ser encaixado tanto numa c o m o na outra. O que têm em comum os dois tipos de lacunas é que designam um caso não-regulamentado pelas leis vigentes num dado or-

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denamento jurídico. O que as distingue é a forma pela qual podem ser eliminadas: a lacuna imprópria somente atra­vés da formulação de novas normas, e a própria, median­te as leis vigentes. As lacunas impróprias são completáveis somente pe lo legislador; as lacunas próprias são comple­táveis por obra do intérprete. Mas quando se diz que um sistema está imcompleto, diz-se em relação às lacunas pró­prias, e não às impróprias. O problema da completude do ordenamento jurídico é se há e c o m o p o d e m ser elimina­das as lacunas próprias.

Com respeito aos motivos que as provocaram, as la­cunas distinguem-se em subjetivas e objetivas. Subjetivas são aquelas que dependem de algum motivo imputável ao legislador, objetivas são aquelas que dependem do desen­volvimento das relações sociais, das novas invenções, de todas aquelas causas que provocam um envelhecimento dos textos legislativos e que, portanto, são independentes da vontade do legislador. As subjetivas, por sua vez, po­dem dividir-se em voluntárias e involuntárias. Involun­tárias são aquelas que dependem de um descuido do le­gislador, que faz parecer regulamentado um caso que não é, ou faz deixar de lado um caso que talvez se considere pouco freqüente, etc. Voluntárias são aquelas que o pró­prio legislador deixa de propósito, quando a matéria é muito complexa e não pode ser regulada c o m regras muito miú­das, e é melhor confiá-la, caso por caso, à interpretação do juiz. Em algumas matérias o legislador distribui normas muito gerais que podem ser chamadas diretrizes. A caracte­rística das diretrizes é que traçam linhas gerais da ação a ser cumprida, mas deixam a determinação dos particulares a quem as deve executar ou aplicar; por exemplo , a diretriz traça o fim que se deve alcançar, mas confia a determinação dos meios aptos a procurar alcançar o fim à livre escolha do executor. Muitas normas constitucionais são, em rela­ção ao legislador ordinário que as deverá aplicar, puras e

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simples diretrizes; aliás, algumas normas constitucionais de caráter geral não p o d e m ser aplicadas se não forem inte­gradas. O legislador que as co locou não ignorava que elas eram lacunosas, mas a sua função era justamente a de esta­belecer uma diretriz geral que deveria ser integrada ou preenchida posteriormente por órgãos mais aptos a esse fim. Segundo o significado de lacuna que ilustramos, as vo­luntárias não são verdadeiras lacunas. Aqui, de fato, a in­tegração do vazio, deixado de propósito, é confiada ao po­der criativo do órgão hierarquicamente inferior. A lacuna em sentido próprio existe quando se presume que o intér­prete (neste caso o órgão inferior) decidiu c o m uma dada norma do sistema e essa norma não existe ou, para ser mais exato, o sistema não oferece a devida solução. Onde age o poder criativo daquele que deve aplicar as normas do sistema, o sistema está sempre, em sentido próprio, com­pleto, porque em cada circunstância é completável e, por­tanto, o problema da completude ou incompletude nem se apresenta.

Outra distinção é entre lacunas praeter legem e lacu­nas intra legem. As primeiras existem quando as regras, ex­pressas para serem muito particulares, não compreendem todos os casos que podem apresentar-se a nível dessa par­ticularidade; as segundas têm lugar, ao contrário, quando as normas são muito gerais e revelam, no interior das dis­posições dadas, vazios ou buracos que caberá ao intérprete preencher. As lacunas voluntárias são normalmente intra legem. No primeiro caso, a integração consistirá em for­mular novas regras ao lado das expressas; no segundo ca­so, as novas regras deverão ser formuladas dentro das re­gras expressas.

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8. Heterointegração e auto-integração

Vimos no parágrafo 2 que o dogma da completude está historicamente ligado à concepção estatal do Direito. Não se deve porém acreditar que a completabilidade de um ordenamento está confiada unicamente à norma geral exclusiva, quer dizer, à regra pela qual cada caso não-regulamentado é regulado pela norma que o exclui da re­gulamentação do caso regulado. Entre os casos inclusos ex­pressamente e os casos exclusos há, em cada ordenamen­to, uma zona incerta de casos não-regulamentados mas po­tencialmente colocáveis na esfera de influência dos casos expressamente regulamentados. Cada ordenamento prevê os meios e os remédios aptos a penetrar nesta zona inter­média, a estender a esfera do regulamentado em confron­to com a do não-regulamentado. Vimos, no segundo capí­tulo, que os ordenamentos de que falamos são ordenamen­tos complexos em que as normas provêm de fontes diver­sas, embora recolhidas, através do sistema hierárquico, em uma unidade. Se, estaticamente considerado, um ordena­mento jurídico não é completo a não ser pela norma geral exclusiva, dinamicamente considerado, porém, é com-pletável.

Para se completar um ordenamento jurídico pode-se recorrer a dois métodos diferentes que p o d e m o s chamar, segundo a terminologia de Carnelutti, de heterointegração e de auto-integração.

O primeiro método consiste na integração operada através do:

a) recurso a ordenamentos diversos; b) recurso a fontes diversas daquela que é dominan­

te (identificada, nos ordenamentos que temos sob os olhos, com a Lei).

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O segundo método consiste na integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e c o m o mínimo recurso a fontes diversas da dominante.

Neste parágrafo examinamos rapidamente o método da heterointegração nas suas duas formas principais.

O tradicional método de heterointegração mediante recurso a outros ordenamentos consistia, no que se refere ao juiz, na obrigação de recorrer, em caso de lacuna do Direito positivo, ao Direito natural. Uma das funções cons­tantes do Direito natural, durante o predomínio das cor­rentes jusnaturalísticas, foi a de preencher as lacunas do Direito positivo. O Direito natural era imaginado c o m o um sistema jurídico perfeito, sobre o qual repousava o orde­namento positivo, por natureza imperfeito: a tarefa do Di­reito natural era dar remédio às imperfeições inevitáveis do Direito positivo. Era doutrina constante do Direito na­tural que o legislador positivo se inspirasse para a formu­lação das próprias normas no Direito natural; dela deriva­va c o m o lógica conseqüência que, em caso de lacuna, o juiz se dirigisse à mesma fonte. Nos códigos modernos o último resíduo dessa doutrina é o artigo 7? do Código Ci­vil austríaco de 1812, no qual se lê que nos casos dúbios, que não podem ser resolvidos c o m normas de Direito po­sitivo, o juiz deve recorrer aos princípios do Direito na­tural {natürlicbe Rechtsgrundsàtze). No artigo 17 se lê que no silentium legis, até prova em contrário, tem-se c o m o subsistente sem limitações tudo aquilo que é conforme aos direitos naturais inatos (angeborene natürlicbe Rechte). Essa doutrina nas codificações mais recentes foi, no mais das vezes, abandonada. No artigo 3? das Disposições prelimi­nares do C. C. italiano de 1865, que derivava direta e qua­se literalmente do artigo 7? do Código austríaco, a expres­são princípios gerais do Direito natural foi substituído pe­la expressão mais simples, e talvez também mais equívo-

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ca, princípios gerais do Direito. A maior parte dos juris­tas interpretou essa expressão c o m o se significasse "prin­cípios gerais do Direito positivo", e c o m essa interpreta­ção operava-se a passagem do método da heterointegra-ção ao da auto-integração. Mas houve quem, c o m o Gior­gio Del Vecchio, sustentasse em um ensaio muito discuti­do que, seguindo a tradição jusnaturalística da qual o arti­go 3? era derivado, se devesse interpretar a expressão "prin­cípios gerais do Direito" c o m o se significasse "princípios gerais do Direito natural". 7

Não está e x c l u í d o q u e um d a d o o r d e n a m e n t o re­corra, para operar a própria integração, a outros orde­namentos pos i t ivos . P o d e m o s distinguir:

a) o reenvio a ordenamentos anteriores no tempo, por exemplo, o recurso de um ordenamento vigente ao Direi­to romano, sua matriz histórica. Alguém já creu poder in­terpretar a tão discutida fórmula dos "princípios gerais do Direito" do C. C. de 1865 c o m o significando "princípios gerais do Direito romano";

b) o reenvio a ordenamentos vigentes contemporâ­neos, c o m o no caso em que um ordenamento estatal cita normas de um outro ordenamento estatal ou do Direito canónico (voltaremos mais particularmente a esses proble­mas no último capítulo, dedicado à relação entre ordena­mentos).

No que diz respeito ao recurso a outras fontes diver­sas da que é dominante, consideremos os nossos ordena­mentos cuja fonte predominante é a Lei. A heterointe-gração assume três formas:

(7) G. De! Veccnio. "Sui principi generali del diritto (1920), in Studi sul

diritto, Milão, 1958, I, pp. 205-71.

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a) recurso ao costume considerado c o m o fonte sub­sidiária da Lei. Trata-se do assim chamado consuetudo prae-ter legem. Pode-se distinguir uma aplicação ampla e uma aplicação restrita do costumepraeter legem, ou, c o m o tam­bém se diz, de m o d o a indicar exatamente a sua função de fonte subsidiária, integradora. A aplicação ampla tem lugar quando o costume é relacionado com uma norma des­te gênero: "O costume tem vigência em todas as matérias não-reguladas pela Lei". A aplicação restrita ocorre quan­do a relação está contida em uma norma deste gênero: "O costume tem vigência somente nos casos em que é expres­samente citado pela Lei". O artigo 8? das Disposições pre­liminares que diz: "Nas matérias reguladas pelas leis e pe­los regulamentos, os costumes só têm validade quando são por estes citados", pode ser interpretado, ao mesmo tem­po, c o m o citação em sentido amplo e c o m o citação em sentido estrito.

O método mais importante de heterointegração, en­tendida c o m o recurso a outra fonte diferente da legislati­va, é o recurso, em caso de lacuna da Lei, ao poder criati­vo do juiz, quer dizer, ao assim chamado Direito judiciá­rio. Como é sabido, os sistemas jurídicos anglo-saxões re­correm a essa forma de integração mais amplamente que os sistemas jurídicos continentais, onde não se reconhe­ce, pelo menos oficialmente, o poder criativo do juiz, sal­vo em casos expressamente indicados em que se atribui ao juiz o poder de emitir juízos de eqüidade. Após a bata­lha desencadeada pela escola do Direito livre em favor do Direito judiciário, o Código Civil suíço, no artigo 1 ?, enun­ciava o princípio de que, em caso de lacuna, seja da Lei, seja do costume, o juiz poderia decidir o caso c o m o se ele mesmo fosse o legislador. Foi demonstrado, por outro la­do, que o juiz suíço quase nunca recorre ao emprego de poder tão amplo, demonstrando claramente com isto o ape-

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go da nossa tradição jurídica à auto-integração ou, então, a desconfiança em relação ao Direito judiciário, conside­rado c o m o veículo de incerteza e de desordem.

A rigor pode-se considerar c o m o recurso a outra fon­te o recurso às opiniões dos juristas, aos quais seria atri­buída, em circunstâncias particulares, no caso do silêncio da Lei e do costume, autoridade de fonte de Direito. Para designar essa fonte de Direito podemos usar a expressão Direito científico, de Savigny. Nos ordenamentos italianos, assim c o m o não é reconhecido o direito de cidadania ao juiz c o m o fonte normativa, também, e c o m maior razão, não é atribuído o direito de cidadania ao jurista, o qual ex­prime opiniões que tanto o legislador quanto o juiz podem levar em consideração, mas não emite nunca juízos obri­gatórios nem para o legislador nem para o juiz. Para ilustrar essa forma de integração nos limitamos a formular a hipó­tese de um ordenamento que contivesse uma norma des­te gênero: "Em caso de lacuna da lei (e do costume), o juiz deverá ater-se à opinião predominante na doutrina", ou, ainda mais particularmente, "...à solução adotada por este ou por aquele jurista". Essa hipótese, de resto, não é com­pletamente inventada. Recordemos a Lei das citações (426 D. C ) , de Teodósio II e Valentiniano III, que fixava o va­lor a se atribuir em julgamento aos escritos dos juristas e reconhecia, em primeiro lugar, plena autoridade a todas as obras de Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio.

9. A analogia

O método de auto-integração apóia-se particularmen­te em dois procedimentos:

1) a analogia; 2) os princípios gerais do direito.

A COMPLETUDE DO ORDENAMENTO J U R Í D I C O 151

É o método que nos interessa mais de perto porque é o particularmente adotado pelo legislador italiano, que dispôs no artigo 12 das Disposições preliminares do C. C: "Se uma controvérsia não pode ser decidida c o m uma dis­posição precisa, devem-se levar em conta disposições que regulem casos semelhantes ou matérias análogas; se o caso permanece ainda duvidoso, deve ser decidido segundo os princípios gerais do ordenamento jurídico do Estado". Com a indicação dos dois procedimentos, o da analogia e o dos princípios gerais do Direito, o legislador pretende ou pre­sume que em caso de lacuna a regra deve ser encontrada na âmbito mesmo das leis vigentes, quer dizer, sem recor­rer a outros ordenamentos nem a fontes diversas da Lei.

Entende-se por "analogia" o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma discipli­na que a um caso regulamentado semelhante. Já encontra­mos essa analogia quando falamos da norma geral inclusi­va: o artigo 12 supracitado pode ser considerado c o m o a norma geral inclusiva do ordenamento italiano. A analo­gia é certamente o mais típico e o mais importante dos pro­cedimentos interpretativos de um determinado sistema nor­mativo: é o procedimento mediante o qual se explica a as­sim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamenta­dos. Foi usada largamente em todos os tempos. Recorde­m o s uma passagem do Digesto: ' 'Non possunt o m n e s ar-ticuli singillatim aut legibus aut senatus consultis com-prehendi: sed cum in aliqua causa sententia. eorum ma­nifesta est, is qui jurisdictioni praeest ad similia proce-rfereatqueitaius dicere débe t" ( 1 0 D . deleg. 1,3) . No Di­reito intermédio, a analogia ou argumentum a simili era considerado o procedimento mais eficaz para executar a assim chamada extensio legis.

O raciocínio por analogia foi estudado pelos lógicos. Encontramos menção a ele com o nome de paradigma (tra-

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duzido posteriormente para o latim por exemplum) no Or-ganon de Aristóteles (Primeiros analíticos, II, 24). O exem­plo aduzido por Aristóteles é o seguinte: "A guerra dos fo-censes contra os tebanos é um mal; a guerra dos atenien­ses contra os tebanos é semelhante à guerra dos focenses contra os tebanos; a guerra dos atenienses contra os teba­nos é um mal". A fórmula do raciocínio por analogia po­de ser expressa esquematicamente assim:

M é P

S é semelhante a M S é P

Essa formulação deve ser brevemente comentada. As­sim como está, ela se apresenta c o m o um silogismo em que a proposição menor exprime uma relação de semelhança em vez de identidade (a fórmula do si logismo é: M é P; S é M; S é P). Na realidade ela esconde o vício dito do qua-ternio terminorum, segundo o qual os termos são aparen­temente três, c o m o no silogismo, mas na realidade são qua­tro. Tomemos um exemplo:

Os homens são mortais; Os cavalos são semelhantes aos homens; Os cavalos são mortais.

A conclusão só é lícita se os cavalos forem semelhan­tes aos homens em uma qualidade q u e seja a razão sufi­ciente para que os homens sejam mortais. Diz-se que a se­melhança não deve ser uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante.

Admitamos que essa semelhança relevante entre ho­mens e cavalos c o m o fim de deduzir a mortalidade dos cavalos é a de que ambos pertençam à categoria dos seres vivos. Resulta então que os termos do raciocínio já não são

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três (homens, cavalo, mortal), mas quatro (homem, cava­lo, mortal e ser vivo). Para tirar a conclusão "Os cavalos são mortais" dos três termos, o raciocínio deveria ser for­mulado assim:

Os seres vivos são mortais; Os cavalos são seres vivos; Os cavalos são mortais.

Aqui os termos se tornaram três, porém, c o m o se vê claramente, não se trata mais de um raciocínio por analo­gia, mas de um silogismo comum.

O mesmo vale no raciocínio por analogia usado pe­los juristas. Para que se possa tirar a conclusão, quer di­zer, para fazer a atribuição ao caso não-regulamentado das mesmas conseqüências jurídicas atribuídas ao caso regu­lamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, é preciso ascender dos dois casos a uma quali­dade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuí­das aquelas e não outras conseqüências. Uma lei de um Es­tado americano atribui uma pena de detenção a quem exer­ce o comércio de livros obscenos. Trata-se de saber se igual pena pode estender-se, de um lado, aos livros policiais, de outro, aos discos reproduzindo canções obscenas. É pro­vável que o intérprete aceite a segunda extensão e recuse a primeira. No primeiro caso , de fato, existe uma b e m vi­sível semelhança entre livros obscenos e livros policiais, mas trata-se de semelhança não relevante, porque o que têm em comum, quer dizer, o serem compostos de papel impresso , não foi a razão suficiente para a p e n a de de­tenção estabelecida pela le i aos distribuidores de l ivros o b s c e n o s . No s e g u n d o c a s o , no entanto, a s e m e l h a n ç a entre l ivros o b s c e n o s e d i s c o s reproduz indo c a n ç õ e s

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obscenas é relevante ( m e s m o se m e n o s visível) , p o r q u e tal gênero d e d i scos t em e m c o m u m c o m o s l ivros obs ­c e n o s exatamente aquela qualidade q u e foi a razão da proibição. Por razão suficiente de u m a lei e n t e n d e m o s aquela q u e tradicionalmente se chama a ratio legis. En­tão d iremos que , para que o raciocínio por analogia seja l ícito no Direito, é necessário q u e os do i s casos , o regu­lamentado e o não-regulamentado t enham em c o m u m a ratio legis. De resto é o q u e foi transmitido c o m esta fórmula: " O n d e h o u v e r o m e s m o m o t i v o , há t a m b é m a m e s m a d i spos ição de direito" (Ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio).

Admitamos que um intérprete se pergunte se a proi­bição de pacto comissório (artigo 2.744 C. C.) se estende à venda c o m escopo de garantia.

Em qual direção ele desenvolverá sua indagação? Ele buscará a razão pela qual o legislador co locou a proibição prevista no artigo 2.744 e estenderá ou não a proibição se­gundo considere válida ou não a mesma razão para a proi­bição da venda c o m escopo de garantia.

Costuma-se distinguir a analogia propriamente dita, conhecida também pelo nome de analogia legis, seja da analogia iuris, seja da interpretação extensiva. É curioso o fato de que a analogia iuris, não obstante a identidade do nome, não tem nada a ver c o m um raciocínio por ana­logia, enquanto a interpretação extensiva, não obstante a diversidade do nome, é um caso de aplicação do raciocí­nio por analogia. Por analogia iuris entende-se o proce­dimento através do qual se tira uma n o v a regra para um ca­so imprevisto não mais da regra que se refere a um caso singular, c o m o acontece na analogia legis, mas de todo o sistema ou de uma parte dele; esse procedimento não é nada diferente daquele que se emprega no recurso aos princípios gerais do Direito. Quanto à interpretação exten­siva, é opinião comum, mesmo que às vezes contestada,

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que esta seja algo de diferente da analogia propriamente dita. A importância jurídica da distinção está em que: considera-se, comumente , que onde a extensão analógica é proibida, c o m o , por exemplo , segundo o artigo 14 das Disposições preliminares do C. C, nas leis penais e nas leis excepcionais, a interpretação extensiva é lícita. Aqui se pode observar, referindo-nos a quanto dissemos repetidamente a propósito das lacunas, que, onde não é admitida a ex­tensão analógica, funciona imediatamente, em caso de si-lentium legis, a norma geral exclusiva. Não há uma zona intermédia entre o caso singular expressamente regulamen­tado e os casos não-regulamentados.

Mas qual é a diferença entre analogia propriamente dita e interpretação extensiva? Foram elaborados vários cri­térios para justificar a distinção. Creio que o único crité­rio aceitável seja aquele que busca colher a diferença c o m respeito aos diversos efeitos, respectivamente, da exten­são analógica e da interpretação extensiva: o efeito da pri­meira é a criação de uma nova norma jurídica; o efeito da segunda é a extensão de uma norma para casos não-previstos por esta. Vejamos dois exemplos . Há quem per­gunte se o artigo 1.577 do C. C, que diz respeito às obri­gações do locatário no tocante a reparos da casa alugada, pode estender-se, c o m relação a obrigações da mesma na­tureza, ao comodatário: se for dada resposta afirmativa, fi­ca criada uma nova regra disciplinadora do comodato, que antes não existia. Se se perguntar, ao invés, se o artigo 1.754 do C. C, que define c o m o mediador "aquele que coloca em contato duas ou mais partes para a conclusão de um negócio" se estende também àquele que "induz à conclu­são do negóc io depois que as partes iniciaram os contatos por si ou por meio de outro mediador", caso se responda afirmativamente, não se criou uma regra nova, mas sim­plesmente se alargou o alcance da regra dada. O primeiro exemplo é de analogia, o segundo de interpretação exten-

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siva. Com esta, nos limitamos à redefinição de um termo, mas a norma aplicada é s empre a m e s m a . C o m aquela passa-se de u m a norma a outra. Enquanto é correto di­zer que c o m a interpretação extens iva se ampl iou o con­ce i to de mediador , n ã o seria entretanto correto dizer, no caso do artigo 1.577 do C . C , q u e c o m a analogia se ampl iou o c o n c e i t o de locação . Aqui se acrescenta a uma norma específ ica uma outra norma específ ica, d e s e m b o c a n d o n u m g ê n e r o c o m u m . N o outro caso , acrescentou-se u m a n o v a e spéc i e ao g ê n e r o , previs to pela Lei. Esquemat icamente os do i s casos p o d e m ser

, expressos des te m o d o :

1) Analogia

a' (caso regulamentado)

A (a ratio c o m u m de ambos) a" (caso não-regulamentado)

a" é semelhante a a' mediante A onde (A)a' e (A)a"

2) Interpretação extensiva

Aa' (caso regulamentado) a" (caso não-regumentado)

a" é semelhante a a' onde Aa' a"

10 Os princípios gerais do Direito

O outro procedimento de auto-integração é a recor­rência aos princípios gerais do Direito, tradicionalmente conhecidos pelo nome de analogia iuris. A expressão "princípios gerais do Direito" foi usada pelo legislador de 1865; mas pelos equívocos que podia suscitar, quanto a se se deveria entender por "Direito" o Direito natural ou

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o Direito positivo, o projeto do n o v o código havia adota­do a fórmula "princípios gerais do Direito vigente", mo­dificada na última redação para a atual fórmula: "princí­pios gerais do ordenamento jurídico do Estado".

Esta mudança foi explicada no Relatório do Ministro através das seguintes palavras: "Em lugar da fórmula 'prin­cípios gerais do Direito vigente', que poderia parecer ex­tremamente limitativa para o intérprete, julguei preferível a de 'princípios gerais do ordenamento jurídico do Esta­do'. Nesta, o termo 'ordenamento' torna-se compreensi­vo em seu amplo significado, para além das normas e dos institutos, e para além, ainda, da orientação político-legislativa estatal e da tradição científica da Nação (Direito romano, Direito comum, e t c ) . Esse ordenamento, adota­do ou sancionado pelo Estado, seja ele privado ou públi­co , dará ao intérprete todos os elementos necessários pa­ra a pesquisa da norma reguladora". Citamos integralmente este trecho do Relatório porque as últimas linhas são uma expressão bastante característica do dogma da completu-de e, de outra parte, a alusão à "tradição científica da Na­ção" pode levar à idéia de uma evasão, talvez inconscien­te, para a heterointegração.

Que a recorrência aos princípios gerais, mesmo na no­va formulação, representa um procedimento de heteroin­tegração foi sustentado pelo maior estudioso italiano do problema da interpretação, Betti, com argumentos que, en­tretanto, não me convenceram. Betti coloca a recorrência aos princípios gerais do Direito entre os métodos de hete­rointegração, ao lado dos juízos de eqüidade, c o m este ar­gumento: "Um dos instrumentos (de heterointegração) é constituído pelos princípios gerais do Direito se e enquanto puder ser a eles reconhecida uma força de expansão, não meramente lógica, mas axiológica, de tal m o d o que pos­sam ir além das soluções legislativas determinadas por suas valorações e, portanto, transcendam o mero Direito posi-

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tivo". 8 Em outro lugar: "É que , assim c o m o as normas singulares refletem apenas em parte os princípios ge­rais (...) assim t a m b é m os princípios gerais, e n q u a n t o critérios de valoração imanentes à o r d e m jurídica, são caracterizados por um excesso de conteúdo deontoló­gico (ou axiológico, se se quiser dizer assim) em c o n ­fronto c o m as normas singulares, t a m b é m reconstruí­das no seu s i s tema". 9 A dif iculdade dessa tese de Bet­ti deriva do fato de q u e é sustentada c o m duas afirma­ç õ e s contrastantes: de um lado, os pr incípios gerais do Direito são cons iderados imanentes à o r d e m jurídica, e, de outro, excedentes. Se fossem realmente "exceden­tes", recorrer a eles , em lugar de integrar o sistema, ter­minaria por virá-lo de cabeça para ba ixo .

Os princípios gerais são apenas, a m e u ver, nor­mas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as nor­mas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é ve lha questão entre os juristas se os princí­pios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os prin­c ípios gerais são normas c o m o todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli.' 0 Para sus­tentar que os princípios gerais são normas, os argumen­tos são dois , e a m b o s vál idos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os pr incípios gerais são extraídos, através de um p r o c e d i m e n t o de generaliza­ção sucessiva, n ã o se vê por q u e n ã o d e v a m ser nor­mas também eles: se abstraio da e spéc i e animal obte -

(8) E. Betti. Interpretazione delia legge e degli attigiuridici, Milão, 1949, p. 52.

(9) Op. cit., p. 211. (10) V. Crisafulli. "Per la determinazione dei Concetto dei principi ge­

nerali dei diritto", Riv. Int. Fil. Dir., XXI (1941), pp. 41-64, 157-82, 230-65. Do mesmo autor cf. La costituzione e le sue disposizioni di principio, Milão, 1952, sobretudo pp. 38-42.

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n h o sempre animais, e n ã o f lores ou estrelas. Em se­g u n d o lugar, a função para qual são extraídos e empre­gados é a m e s m a cumprida por todas as normas , is to é, a função de regular um caso . E c o m q u e f inalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um c o m ­portamento não-regulamentado: mas então s e r v e m ao m e s m o e s c o p o a q u e s e r v e m as normas expressas . E por que n ã o dever iam ser normas?

O q u e não me levaria a concordar c o m Crisafulli é a tese , por e le sustentada, de q u e o artigo 12 se refe­re tanto aos princípios gerais não-expressos quanto aos expressos . Crisafulli d iv ide os princípios gerais em e x ­pressos e não-expressos; os e x p r e s s o s d iv idem-se , por sua vez , em expressos já apl icados e em e x p r e s s o s ain­da não-aplicados. Muitas normas, tanto d o s c ó d i g o s c o ­mo da Constituição, são normas generalíssimas, e por­tanto, são verdadeiros e autênticos princípios gerais ex­pressos; colocaria nesta categoria normas c o m o o arti­g o 2 . 0 4 3 d o C . C , q u e formula u m d o s princípios fun­damentais p e l o qual se rege a c o n v i v ê n c i a social , ex ­pressa pela conhec ida máxima da justiça: neminem lae-dere; o artigo 2.041 do C. C. relativo ao enr iquec imento ilícito; o artigo 1 .176 do C. C. relativo ao cumpr imen­to das obrigações . Muitas normas da Const i tuição s ão princípios gerais do Direito; mas , d i ferentemente das normas do Cód igo Civil, algumas delas esperam ainda ser aplicadas: são princípios gerais expressos não-apli­cados.

Ao lado dos princípios gerais expres sos há os não-expressos , ou seja, aqueles q u e se p o d e m tirar por abs­tração de normas específ icas ou p e l o m e n o s n ã o mui­to gerais: são princípios, ou normas generalíssimas, for­muladas p e l o intérprete, q u e busca colher , comparan­do normas aparentemente diversas entre si, aquilo a que c o m u m e n t e se chama o espírito do sistema.

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Entendemos q u e os princípios gerais de q u e fala o artigo 12 são s o m e n t e os não-expressos . O artigo 12 diz respeito às lacunas e aos m e i o s para completá- las: quando os princípios gerais são expres sos , exatamen­te p e l o fato de q u e são normas c o m o as demais , n ã o se pode falar de lacuna. A primeira condição para que se possa falar de lacuna é a de que o caso não esteja regu­lado: o caso n ã o está regulado q u a n d o n ã o ex i s te ne­nhuma norma expressa, n e m específica, n e m geral, n e m generalíssima, q u e diga respeito a e le , quer dizer, quan­d o , além da falta de u m a norma específ ica q u e lhe diga respeito, t a m b é m o princípio geral, dentro do qual p o ­deria entrar, n ã o é expres so . Se o princípio geral é ex­presso, n ã o haveria diferença entre julgar o c a s o c o m base ne le ou c o m base n u m a norma específ ica. É ver­dade que o legislador não diz "por falta de uma dispo­sição expressa", mas sim "por falta de uma disposição precisa". Mas um princípio geral expresso é uma dis­pos ição precisa. O artigo 12 autoriza o intérprete a bus­car os princípios gerais não-expressos; no q u e diz res­pe i to aos princípios gerais expres sos , seria b e m curio­so que houvesse uma norma que autorizasse sua apli­cação.

CAPÍTULO 5

As relações entre os ordenamentos jurídicos

/. A pluralidade dos ordenamentos

Consideramos até agora os problemas que nascem no interior de um ordenamento. Existe ainda outro a ser tra­tado para completar aquela teoria do ordenamento jurídi­co que nos havíamos proposto desde o início: o proble­ma das relações entre os ordenamentos, ou melhor, os pro­blemas, se quisermos nos exprimir com uma fórmula cor­respondente, que nascem no exterior de um ordenamen­to. É uma questão pouco tratada até agora, do ponto de vista da teoria geral do Direito. Este capítulo não será ou­tra coisa senão o esboço de um assunto que deveria ser tratado muito mais amplamente.

A primeira condição para que se possa falar de rela­ções entre os ordenamentos é que os ordenamentos jurí­dicos existentes sejam mais do que um. O ideal do orde­namento jurídico único persistiu no pensamento jurídico ocidental. O prestígio do Direito romano, primeiro, e o do Direito natural, depois, determinaram o surgimento e a du­ração da ideologia de um único Direito universal, do qual os direitos particulares não eram outra coisa senão especi­ficações históricas. Mais do que indagar as relações entre ordenamentos diferentes, tratava-se de colocar em evidên­cia as relações dos vários Direitos particulares c o m o úni­co Direito universal. Um dos problemas mais discutidos no âmbito da ideologia universalista do Direito foi, justa­mente , o das relações entre Direito positivo e Direito natural.

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Os processos através dos quais a ideologia universa­lista do Direito decaiu são dois , principalmente , e suce­deram-se no t e m p o . Se chamarmos de " m o n i s m o jurí­d i c o " a idéia universalista, c o m base na qual ex is te um só o r d e n a m e n t o jurídico universal, e de "plural ismo ju­rídico" a idéia oposta , p o d e r e m o s dizer q u e o pluralis­mo jurídico percorreu duas fases.

A primeira fase é a que corresponde ao nascimento e ao desenvolvimento do historicismo jurídico, que, so­bretudo através da escola histórica do Direito, afirma a na­cionalidade dos direitos que emanam direta ou indireta­mente da consciência popular. Desta forma, ao direito na­tural único, comum a todos os povos , se contrapõem tan­tos Direitos quantos são os povos ou as nações. Do assim chamado gênio das nações, que constituirá um dos moti­vos recorrentes das doutrinas nacionais do século passado, é produto típico também o Direito. Essa primeira forma de pluralismo tem caráter estatalista. Há não apenas um, mas muitos ordenamentos jurídicos, porque há muitas na­ções, que tendem a exprimir cada uma num ordenamento unitário (o ordenamento estatal) a sua personalidade, ou se quisermos, o seu gênio jurídico. Essa fragmentação do Direito universal em tantos Direitos particulares, interde­pendentes entre si, é confirmada e teorizada pela corrente jurídica que acabou por prevalecer na segunda metade do século passado: falo do positivismo jurídico, isto é, da cor­rente segundo a qual não existe outro Direito além do Di­reito positivo, e a característica do Direito positivo é ser criado por uma vontade soberana (o positivismo jurídico identifica-se com a concepção voluntarista do Direito). On­de existe um poder soberano existe um Direito e, todo po­der soberano sendo por definição independente de qual­quer outro poder soberano, cada Direito constitui orde­namento autônomo. Há tantos Direitos diferentes entre si quantos são os poderes soberanos. Que os poderes sobe-

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ranos sejam muitos e independentes é um fato. Partindo do dogma voluntarista do Direito, um Direito universal não pode ser concebido senão pela hipótese de um único po­der soberano universal; esta hipótese dera origem à idéia de que o Direito emanasse de uma única vontade sobera­na, a vontade de Deus, e os singulares poderes soberanos históricos fossem emanações diretas ou indiretas da von­tade de Deus. Porém, a idéia foi abandonada ao surgir o pensamento político moderno, no qual a idéia universa­lista do Direito reapareceu sob a forma do Direito natural, cujo órgão criativo não era mais a vontade, mas a razão. Mas, r e c o n h e c e n d o - s e n o v a m e n t e c o m o fonte do Di­reito não a razão, mas a vontade , e t e n d o ca ído a c o n ­c e p ç ã o teológica do un iverso na f i losofia e nas c iências modernas , derivará, c o m o c o n s e q ü ê n c i a inevitável , o pluralismo jurídico.

A segunda fase do pluralismo jurídico é aquela que podemos chamar de institucional (para distingui-la da pri­meira, que podemos chamar de estatal ou nacional). Aqui "pluralismo" tem um significado mais pleno (tanto que, se se fala de "pluralismo" sem maiores especificações, nos referimos a esta corrente e não à precedente): significa não somente que há muitos ordenamentos jurídicos (mas to­dos do mesmo tipo), em contraposição ao Direito univer­sal único, mas que há ordenamentos jurídicos de muitos e variados tipos. Chamamo-lo de "institucional" porque a sua tese principal é a de que existe um ordenamento ju­rídico onde existe uma instituição, ou seja, um grupo so­cial organizado. As correntes de pensamento que lhe de­ram origem são as mesmas correntes sociológicas, anties-tatais, que vimos na origem da escola do livre Direito (no § 3 do capítulo anterior) Também a teoria institucional é um produto da descoberta da sociedade abaixo do Esta­do. A conseqüência dessa teoria é uma ulterior fragmenta­ção da idéia universalista do Direito, e, entende-se, um en-

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riquecimento do problema, que se torna cada vez mais com­plexo e cheio de perspectivas, referente ao relacionamen­to entre ordenamentos. Aceitando a teoria pluralista insti­tucional, o problema do relacionamento entre ordenamen­tos não compreende- mais somente o problema das rela­ções entre ordenamentos estatais, mas também o das rela­ções entre ordenamentos estatais e ordenamentos diferentes dos estatais. Entre os ordenamentos não-estatais, distingui­mos quatro tipos:

a) ordenamentos acima do Estado, c o m o o ordena­mento internacional e, segundo algumas doutrinas, o da Igreja Católica;

b) ordenamentos abaixo do Estado, c o m o os orde­namentos propriamente sociais, que o Estado reconhece, limitando-os ou absorvendo-os;

c) ordenamentos ao lado do Estado, c o m o o da Igreja Católica, segundo outras concepções , ou, também, o in­ternacional, segundo a concepção chamada "dualística";

d) ordenamentos contra o Estado, c o m o as associa­ções de malandros, as seitas secretas, etc.

Constatada a queda da concepção universalista do di­reito, não queremos c o m isso dizer que o universalismo jurídico tenha morrido também c o m o exigência moral ou como tendência prático-política. Ao contrário, o univer­salismo c o m o tendência nunca morreu, e nestes últimos anos, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e da criação da Organização das Nações Unidas, está mais vivo do que nunca. O universalismo jurídico ressurge hoje não mais como crença num eterno Direito natural, mas c o m o vontade de constituir um Direito positivo único, que re­colha em unidade todos os Direitos positivos existentes, e que seja produto não da natureza, mas da história, e es­teja não no início do desenvolvimento social e histórico

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(como o Direito natural e o estado de natureza), mas no fim. A idéia do Estado mundial único é a idéia-limite do universalismo jurídico contemporâneo; é uma unidade pro­curada não contra o positivismo jurídico, c o m um retor­no à idéia de um Direito natural revelado à razão, mas atra­vés do desenvolvimento, até o limite extremo, do positi­vismo jurídico, isto é, até a constituição de um Direito po­sitivo universal.

2. Vários tipos de relação entre ordenamentos

Como as normas de um ordenamento podem ser dis­postas em ordem hierárquica, nada exclui que os vários ordenamentos estejam num relacionamento entre si de su­perior para inferior. A pirâmide que nasce no interior de um ordenamento pode prolongar-se fora do ordenamen­to, se alguns ordenamentos de um certo tipo são subordi­nados a um ordenamento superior e este, por sua vez, a outro, e assim por diante. A imagem da pirâmide das nor­mas pode ser completada c o m a imagem da pirâmide dos ordenamentos. Por isso uma primeira classificação das re­lações entre ordenamentos pode ser feita com base no di­ferente grau de validade que eles têm um em relação ao outro. Distingamos assim:

a) relações de coordenação; b) relações de subordinação (ou reciprocamente de

supremacia).

Relacionamentos típicos de coordenação são aqueles que têm lugar entre Estados soberanos e dão origem àquele particular regime jurídico, próprio do relacionamento en­tre entes que estão no mesmo plano, que é o regime pac­tuado, ou seja, o regime no qual as regras de coexistência são o produto de uma autolimitação recíproca. Relaciona-

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mentos típicos de subordinação são, por outro lado, os verificados entre o ordenamento estatal e os ordenamen­tos sociais (associações, sindicatos, partidos, igrejas, e t c ) , que têm estatutos próprios, cuja validade deriva do reco­nhecimento do Estado. Na concepção curialista das rela­ções entre Estado e Igreja, relação de subordinação é tam­bém aquela intercorrente entre o ordenamento fundado sobre a potestas temporalis e o fundado sobre a potestas spiritualis. Há uma concepção das relações entre ordena­mentos estatais e ordenamento da comunidade internacio­nal (o Direito internacional), dita concepção monística do Direito internacional, segundo a qual a relação entre Di­reito internacional e Direitos estatais é uma relação entre superior e inferior.

Um segundo critério de classificação do relacionamen­to entre ordenamentos é aquele que leva em conta a dife­rente extensão recíproca dos respectivos âmbitos de vali­dade. Aqui podemos ter três tipos de relação:

a) de exclusão total; b) de inclusão total; c) de exclusão parcial (ou inclusão parcial).

Exclusão total significa que os âmbitos de validade de dois ordenamentos são delimitados de maneira a não se sobreporem um ao outro em n e n h u m a das suas par­tes. P o d e m o s tomar c o m o e x e m p l o t íp ico o de do i s or­denamentos estatais q u e exc luem-se tota lmente (salvo alguma exceção ) c o m respeito à validade espacial das respectivas normas jurídicas: p o d e m ser representados c o m o dois aros que não têm n e n h u m p o n t o e m c o m u m . Estado e Igreja, ao invés , p o d e m ser c o n c e b i d o s c o m o se e x c l u i n d o um ao outro , se se partir da teoria d o s or­denamentos coordenados: aqui, porém, a exclusão ocor­re não a respeito da validade espacial (e de fato as normas

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da Igreja e as do Estado são válidas no mesmo território), mas a respeito da respectiva validade material (a matéria regulada por um dos ordenamentos é diferente da regula­da pelo outro). Com relação à diferente validade material, o ordenamento jurídico e o ordenamento moral são con­siderados c o m o "excludentes entre si" por parte daque­les que sustentam a teoria segundo a qual o Direito e a moral distinguem-se pelo objeto diferente dos respectivos orde­namentos normativos: o direito regula as ações externas, a moral, as internas.

Inclusão total significa que um dos dois ordenamen­tos tem um âmbito de validade compreendido totalmente no do outro. Se consideramos, por exemplo, a validade espacial, o ordenamento de um Estado-membro está com­preendido totalmente no ordenamento do Estado federal. Considerando também a validade material, o ordenamen­to da Igreja está totalmente incluído no ordenamento do Estado, numa concepção de tipo erastiana das relações entre Estado e Igreja, isto é, de uma concepção em que não há matérias especificamente espirituais reservadas à Igreja, mas onde a total jurisdição, seja em matéria espiritual, seja em matéria temporal, está reservada ao Estado. Há uma con­cepção do relacionamento entre Direito e Moral que po­de ser representada como exemplo de inclusão total: aquela segundo a qual a extensão das regras jurídicas é mais res­trita que a das regras morais, e não há regra jurídica que não seja também regra moral. Essa concepção diz-se tam­bém teoria do Direito c o m o "mínimo ético", para indicar q u e o Direito no seu c o n j u n t o c o m p r e e n d e um m í n i m o de regras morais, aquele m í n i m o necessár io à c o e x i s ­tência (isto é, para evitar o mal pior, que é o da desor­d e m e da guerra).

Exclusão parcial e inclusão parcial significa que dois ordenamentos têm uma parte em comum e uma parte não-comum. Essa situação se verifica quando o ordenamento

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estatal absorve ou assimila um ordenamento diferente, co­mo, por exemplo, o ordenamento da Igreja ou o ordena­mento de uma associação particular, mas não o absorve totalmente: uma parte do ordenamento absorvido fica en­tão fora do ordenamento estatal e continua a regular o com­portamento dos seus membros numa zona que é, em rela­ção ao Estado, de mera licitude; por outro lado, o Estado se estende sobre muitas zonas do comportamento huma­no que são estranhas àquelas às quais se dirige o ordena­mento parcial absorvido. Não importa, para caracterizar tal situação, que seja grande ou pequena a esfera comum: o que importa é que, além da esfera comum, em que dois ordenamentos vieram a coincidir, existam duas outras es­feras, nas quais um dos ordenamentos não coincide com o outro. Na questão das relações entre Direito e Moral, a solução que apresenta esses relacionamentos c o m o rela­cionamentos de inclusão parcial e exclusão parcial é tal­vez a mais comum: Direito e Moral, segundo esse m o d o de ver, em parte coincidem e em parte não, o que significa que há comportamentos obrigatórios tanto para um quan­to para o outro, mas, além disso, existem comportamen­tos moralmente obrigatórios e juridicamente lícitos, e, in­versamente, c o m p o r t a m e n t o s juridicamente obrigató­rios e moralmente lícitos. Q u e não se deva roubar vale tanto em Moral c o m o em Direito; q u e se d e v a m pagar as dívidas de jogo vale s o m e n t e em Moral; q u e se deva cumprir um ato c o m certas formalidades para que seja vál ido s o m e n t e vale em Direito.

Enfim, se considerarmos os possíveis relacionamen­tos entre ordenamentos por um terceiro ponto de vista, isto é, tomando c o m o base a validade que um determina­do ordenamento atribui às regras de outros ordenamen­tos com os quais entra em contacto, encontramo-nos frente a três diferentes situações, que esquematicamente pode­mos formular assim:

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a) indiferença; b)recusa; c ) absorção.

Por situação de indiferença entendemos aquela em que um ordenamento considera lícito aquilo que num ou­tro ordenamento é obrigatório: típico exemplo é, por parte de um ordenamento jurídico c o m o o italiano, no qual as dívidas de jogo são obrigações naturais, as obrigações con­traídas reciprocamente pelos jogadores. Por situação de re­cusa entendemos aquela em que um ordenamento consi­dera proibido aquilo que num outro ordenamento é obri­gatório (ou, vice-versa, obrigatório aquilo que num outro é proibido): o mais típico exemplo é o das relações entre Estado e associação de malandros. Por situação de absor­ção, enfim, entendemos aquela em que um ordenamento considera obrigatório ou proibido aquilo que noutro or­denamento é também obrigatório ou proibido. Essa últi­ma situação pode assumir duas formas que chamamos de reenvio formal e reenvio material, e, mais simplesmente, reenvio e recepção. Por "reenvio" entendemos o proce­dimento pelo qual um ordenamento deixa de regular uma dada matéria e acolhe a regulamentação estabelecida por fontes normativas pertencentes a outro ordenamento; por "recepção" entende-se o procedimento pelo qual um or­denamento incorpora no próprio sistema a disciplina nor­mativa de uma dada matéria assim c o m o foi estabelecida num outro ordenamento.

3. Estado e ordenamentos menores

Na fenomenologia do relacionamento entre os orde­namentos, ocupam lugar à parte as relações entre o orde­namento estatal e certos ordenamentos menores, cuja vi­da se desenvolve no interior da do Estado e se entrelaça

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de várias maneiras c o m esta. Aqui entendo por "ordena­mentos menores" os que mantêm unidos os seus membros para fins parciais e que, portanto, investem somente uma parte da totalidade dos interesses das pessoas que compõem o grupo. Poderíamos chamá-los também de "ordenamen­tos parciais", se não fosse o caso de que verdadeiramente "total" não é nem o Estado, nem mesmo o Estado totalitá­rio. Não me deterei a precisar se estes ordenamentos me­nores são também jurídicos ou não. São considerados ju­rídicos pela teoria institucional, que se limita a pedir co­mo requisito da juridicidade um mínimo de organização. A questão de serem ou não jurídicos não tem, na presente discussão, relevo particular. Queremos fazer notar que o ordenamento jurídico de um Estado não é um bloco com­pacto: assim c o m o o geó logo pesquisa os vários estratos da terra, assim também o teórico do Direito deverá colocar-se frente a um ordenamento jurídico na atitude do histo­riador que nele busca as várias fases de formação. Quan­do falamos das fontes, no Capítulo 2, distinguimos orde­namentos simples e ordenamentos complexos; já repeti­mos várias vezes que os ordenamentos estatais são orde­namentos complexos . Podemos dizer agora que não são simples também num outro sentido, isto é, na medida em que são compostos: por "compostos" entendemos aqui que são estratificados, ou seja, resultantes de uma estratifica­ção secular de ordenamentos diversos, a princípio inde­pendentes um do outro e depois, p o u c o a pouco , absorvi­dos e amalgamados no ordenamento estatal único ora vigente.

Um dos processos através do qual ocorreu esta estra­tificação é o procedimento de absorção de um ordenamen­to jurídico por parte de um outro que, no parágrafo ante­rior, chamamos de recepção. No relacionamento entre Es­tado e ordenamentos menores, um típico exemplo de re­cepção são aquelas partes do ordenamento estatal que ori-

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ginariamente eram ordenamentos parciais, surgidos em co­munidades c o m interesses e finalidades particulares, co­mo o Direito comercial ou o Direito da navegação, os quais, no início e durante longos séculos, foram o produto da ati­vidade independente dos comerciantes e dos navegado­res e, depois, pouco a pouco , introduzidos e integrados no ordenamento estatal único c o m a progressiva amplia­ção e reforço do monopól io jurídico do Estado. Entende-se que onde houve a recepção não há mais vestígios do ordenamento originário e somente a busca dos estratos o revelará. E essa busca não tem um relevo jurídico direto, mas um interesse principalmente histórico e para a teoria geral do Direito.

Mas nem sempre ocorre a recepção: por vezes, o pro­cesso através do qual o ordenamento estatal utiliza os or­denamentos menores é o do reenvio, quer dizer, aquele processo pelo qual um ordenamento não se apropria do conteúdo das normas de outro ordenamento, c o m o ocor­re na recepção, mas limita-se a reconhecer a sua plena va­lidade no próprio âmbito. Por exemplo , a vida da família em colônia não está regulada por normas materialmente pertencentes ao ordenamento estatal: está regulada por cos­tumes aos quais o ordenamento estatal atribui validade de normas jurídicas através de um reenvio de caráter geral. Se nos lembrarmos sempre de nossa definição de ordena­mento jurídico c o m o conjunto de regras de eficácia refor­çada, no caso de ordenamentos menores, ao qual o orde­namento estatal reenvia, poderemos dizer que nos encon­tramos frente a regras de conduta formadas fora e inde­pendentemente do ordenamento estatal, às quais o Esta­do presta a própria proteção. Veja-se, por exemplo , a re­ferência que a legislação italiana faz, em alguns casos, às regras da integridade (artigo 1.175 do C. C.) e às de inte­gridade profissional (artigo 2.598, 3, do C. C) : trata-se de regras das relações sociais que são produzidas pelas exi-

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gências da convivência e da comunicação em condições particulares de ambiente e de atividade. O legislador ita­liano não diz quais sejam essas regras; limita-se a reconhe­cer sua existência e a dar a elas proteção, em determina­dos casos, c o m o se fossem normas formuladas diretamen­te pelos próprios órgãos dotados de poderes normativos. Um Estado que venha a incorporar um grupo étnico c o m costumes, civilização e história muito diferentes das do gru­po étnico predominante pode seguir a via da absorção e a da tolerância: a primeira requer, frente ao ordenamento menor, o procedimento que chamamos de recusa, isto é, o do desconhecimento das regras próprias do grupo étni­co e da substituição violenta pelas normas já em vigor no ordenamento estatal; a segunda poderá ser realizada atra­vés do processo de reenvio, isto é, atribuindo-se às nor­mas, provavelmente a um grupo de normas, formadas in­tegralmente no ordenamento menor, a mesma validade das normas próprias do ordenamento estatal, como se aquelas fossem idênticas a estas.

A atitude mais freqüente do Estado em relação às re­gras de ordenamentos menores e parciais é a da indiferença. Isso quer dizer que tais ordenamentos têm suas ordens e suas proibições, mas o Estado não as reconhece. Essas ordens e essas proibições valem para as pessoas que aderem àquele ordenamento, e são condição necessária para a sua parti­cipação nele, mas o Estado não dá a elas nenhuma prote­ção, com a conseqüência de que se torna lícito no ordena­mento estatal aquilo que é ilícito no ordenamento não-reconhecido. Típico exemplo dessa atitude é aquela que o Estado geralmente assume frente aos regulamentos dos jogos e dos esportes e às obrigações assumidas pelos joga­dores e pelos esportistas entre si. Para o jogo e a aposta, o legislador italiano dispôs, através do artigo 1.933, inciso primeiro, do C. C, que "não cabe ação pelo pagamento de uma dívida de jogo ou de aposta, mesmo se se tratar

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4. Relações temporais

As relações mais importantes, e mais merecedoras de estudo, são as que se interpõem entre os ordenamentos estatais, ou entre ordenamentos estatais, de um lado, e or­denamentos originários, aos quais se atribui por c o m u m consentimento caráter de ordenamentos jurídicos, c o m o

de jogo ou de aposta não-proibidos". Que não caiba ação ao vencedor para obter o prêmio da vitória quer dizer que seu direito não está protegido; e que o seu direito não seja protegido quer dizer que não existe uma obrigação juridi­camente relevante dó perdedor. Aquilo que é obrigatório entre os jogadores, pagar as dívidas de jogo, não é obriga­tório para o ordenamento estatal, isto é, é lícito não pagá-las. A dívida de jogo é um caso particular da mais ampla categoria das chamadas obrigações naturais, a que se refe­re o artigo 2.034 do C. C; são obrigações para as quais o legislador italiano "não concede ação", embora excluin­do a repetição "sobre algo espontaneamente concedido". O artigo 2.034 do C. C. fala, em geral, de "deveres morais e sociais" sem outra especificação.

Às vezes a atitude do Estado em relação aos ordena­mentos menores é a da recusa. Caso típico, no ordenamento italiano, é o do duelo, que é certamente um comportamento obrigatório no ordenamento legado pelos gentlemen, re­gulado pelo particular código de procedimento conheci­do pelo nome de "código cavalheiresco". Aquilo que é de­ver para aquele que se considera participante do ordena­mento dos gentlemen é proibido no ordenamento estatal. O legislador italiano considera o duelo c o m o um delito, sob o título de "tutela arbitrária das próprias razões" (arti­gos 394-396 do C. P.).

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o ordenamento internacional e o ordenamento da Igreja Católica.

Tentemos uma classificação dessas relações partindo dos diferentes âmbitos de validade de um ordenamento, em particular dos âmbitos temporal, espacial e material. Se dois ordenamentos se diferenciam com respeito a esses três âmbitos, é provável que não tenham entre si interferência alguma: portanto, um problema de suas relações não é nem colocado em questão. Quando se diz que se encontram en­tre si em relação de total exclusão, diz-se tudo, e não é necessário acrescentar mais nada. O exame do relaciona­mento entre os ordenamentos torna-se interessante quan­do estes têm em c o m u m dois desses âmbitos e diferem no terceiro. Basta a diferença de um dos três âmbitos para excluir a sua identificação, isto é, o relacionamento de to­tal superposição que seria tão pouco interessante quanto o da total exclusão. Mas ter em comum dois âmbitos é con­dição suficiente para o nascimento de interferências recí­procas que merecem alguma atenção.

Podem-se distinguir três tipos de relacionamento en­tre ordenamentos, conforme o âmbito diferente seja tem­poral, espacial ou material:

1) dois ordenamentos têm em c o m u m o âmbito es­pacial e material, mas não o temporal. Trata-se de caso de dois ordenamentos estatais que se sucedem no tempo no mesmo território;

2) dois ordenamentos têm em comum o âmbito tem­poral e o material, mas não o espacial. Trata-se do relacio­namento entre dois Estados contemporâneos, que vigem ao mesmo tempo e, grosso modo, regulam as mesmas ma­térias, mas em dois territórios diferentes;

3) dois ordenamentos têm em comum o âmbito tem­poral e espacial, mas não o material. Trata-se do relacio­namento característico entre um ordenamento estatal e o

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ordenamento da Igreja (com particular atenção às igrejas cristãs, sobretudo à Igreja Católica): Estado e Igreja esten­dem sua jurisdição no m e s m o território e ao mesmo tem­po , mas as matérias reguladas por um e por outro são diferentes.

Comecemos a considerar neste parágrafo o primeiro desses três relacionamentos. Trata-se do relacionamento entre ordenamento ve lho e ordenamento novo , c o m o se verifica, por exemplo, em seguida a uma revolução, que quebra a continuidade de um ordenamento jurídico (do ponto de vista interno, mas não do ponto de vista do Direi­to internacional, para o qual vale o princípioforma regimi-nis mutata non mutatur ipsa civitas). O que se entende juridicamente por revolução? Entende-se o abatimento ile­gítimo de um ordenamento jurídico preexistente, executa­do a partir de dentro, e ao m e s m o tempo a constituição de um ordenamento jurídico novo . A definição jurídica de revolução causou muitas controvérsias entre os juristas por­que apresenta duas faces: c o m respeito ao ordenamento precedente é um fato ilegítimo (tanto é verdade que, se fa­lir, aqueles que nele se envolveram acabam mal, e não se chama mais nem revolução, mas insurreição e subversão); c o m respeito ao ordenamento posterior, que dela tira a ori­gem, é o próprio fundamento da legitimidade de todo o ordenamento, isto é, é um fato constitutivo de Direito. A dificuldade está em que, nas duas faces, ela é um fato. Car-nelutti viu bem essa dificuldade, e divide os fatos jurídicos em bilaterais e unilaterais, conforme tenham caráter jurídi­co a situação inicial e a situação final, ou apenas uma das duas, e os unilaterais, por sua vez, em constitutivos ( como o costume) e extintivos ( como o descostume), e considera a revolução c o m o um dúplice fato unilateral, ao m e s m o tempo extintivo (do velho ordenamento) e constitutivo (do novo). E c o m o pode um mero fato produzir direito? A per-

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gunta não nos assusta, uma vez que acreditamos que o di­reito nasce do fato: o fundamento de um ordenamento jurí­dico é um poder tão grande que possui não só a autoridade de estabelecer normas para os membros de um grupo, mas também a força de fazê-las cumprir por aqueles que não querem saber delas. De qualquer forma, as tentativas para dar uma definição jurídica do "fato" revolução são muitas, mas podem ser reduzidas a uma destas três possi­bilidades: 1

a) a revolução é por si só um fato jurídico e, portan­to, tem uma autonomia jurídica. É a teoria de Romano, se­gundo a qual a revolução é uma instituição, uma vez que é uma organização estatal em embrião, isto é, um ordena­mento jurídico em si mesma, diferente tanto do ordena­mento precedente, que se extingue, quanto do que dele vier a surgir;

b) a revolução é um fato juridicamente qualificado do ponto de vista de um ordenamento diferente do estatal. É a tese de Kelsen, segundo a qual a qualificação jurídica de revolução deve ser baseada no Direito internacional: a revolução não é outra coisa senão um dos processos pre­vistos, e portanto legítimos (do p o n t o de vista do ordena­mento internacional), mediante os quais pode ser muda­do um ordenamento jurídico estatal;

c) a revolução é um fato jurídico do ponto de vista do próprio Direito interno ao Estado. É a teoria, talvez mais difundida, segundo a qual a necessidade, mesmo que não-expressa, deve ser considerada entre as fontes do Direito, e a revolução é uma manifestação específica da necessida­de, que justifica aquilo que, fora daquele particular e s tado de necessidade, seria ilegítimo.

(1) Para um exame pormenorizado dos vários problemas l igados à re­

volução cf. M. A. Cattaneo, // conceito di rivoluzione nella scienza dei diritto, Milão, 1960.

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É certo, portanto, que c o m a revolução tem-se uma interrupção na continuidade: ela é c o m o um divisor de águas entre um ordenamento e outro. Mas essa divisão é absoluta? O ordenamento ve lho e o n o v o estão em rela­ção de exclusão recíproca entre si? Eis o problema. Mas a resposta só pode ser negativa: a revolução opera uma in­terrupção, mas não uma completa solução de continuida­de; há o n o v o e o velho; mas há também o velho que se transvasa no novo , e o n o v o que se mistura com o velho. É um fato que, normalmente, parte do velho ordenamen­to passa para o novo, e apenas alguns princípios fundamen­tais referentes à constituição do Estado se modificam. Co­mo se explica essa passagem? A melhor explicação é aquela que recorre à figura da recepção. No n o v o ordenamento tem lugar uma verdadeira e autêntica recepção de boa parte do velho; e entendem-se de fato recebidas todas aquelas normas que não sejam explícita ou implicitamente ab-ro­gadas.

O fato de o novo ordenamento ser constituído em par­te por normas do ve lho não ofende em nada o seu caráter de novidade: as normas comuns ao ve lho e ao n o v o orde­namento pertencem apenas materialmente ao primeiro; formalmente, são todas normas do novo , no sentido de que elas são válidas não mais c o m base na norma funda­mental do velho ordenamento, mas c o m base na norma fundamental do novo. Nesse sentido falamos de recepção, e não pura e simplesmente de permanência do ve lho no novo . A recepção é um ato jurídico c o m o qual um orde­namento acolhe e torna suas as normas de outro ordena­mento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas c o m respeito à forma.

Uma interessante tipologia das atitudes que o n o v o ordenamento jurídico p o d e assumir frente ao ve lho é ex­traída do Decreto Legislativo de 5 de outubro de 1944, n? 249, sobre a "Ordem da legislação nos territórios liberta-

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dos", no qual os atos ou providências da República de Sa­io são distribuídos em quatro categorias:

a) inválidos (os atos do governo e em geral as leis); b) inválidos, mas revalidáveis (os atos administrati­

vos, enumerados no artigo 2? , e as sentenças do artigo 5?, inciso 2);

c) válidos, mas invalidáveis (os atos administrativos diferentes dos relacionados no artigo 2? e as sentenças do artigo 6? , inciso 2);

d) válidos (os atos de estado civil em geral).

5. Relações espaciais

O caso em que pode parecer que o estudo das rela­ções entre ordenamentos não tenha muita matéria de exa­me é o da relação entre ordenamentos que têm validade espacial diferente, c o m o é o caso de dois Estados cujas nor­mas valem dentro de limites espaciais (o chamado territó­rio) bem definidos. Poder-se-ia pensar que aqui deveria ser aplicada a figura da exc lusão recíproca: e, na realidade, os Estados consideram-se independentes uns dos outros, do­tados de um poder originário e autônomo que lhes asse­gura a oão-ingerência no seu reservado domínio por parte de outros Estados. Mas há uma série de casos em que tam­bém o Estado recorre a normas de um outro Estado para resolver algumas controvérsias. Trata-se daqueles casos es tudados por uma disciplina jurídica especializada, o Direi­to internacional privado, que faz parte, didaticamente, do curso de Direito internacional, razão pela qual me limita­rei aqui a algumas observações.

O Direito regula geralmente relações intersubjetivas referentes a coisas, bens e serviços atinentes a um deter­minado território. Tudo corre b e m quando os sujeitos da relação são cidadãos do mesmo Estado e a coisa a que se

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referem pertence ao território desse Estado. Mas e se um dos dois sujeitos é estrangeiro? Se os dois sujeitos perten­cem a um Estado, mas a coisa a que se referem se encon­tra num outro Estado? Bastam essas duas perguntas para nos fazer entender que são infinitos os casos, sobretudo no mundo contemporâneo em que as relações internacionais se vão intensificando, que p o d e m ser resolvidos, confor­me se leve em conta a nacionalidade de um ou do outro su­jeito, ou a nacionalidade da coisa em relação à dos sujei­tos, com normas pertencentes a dois ordenamentos dife­rentes. Mas, uma v e z q u e n u m c a s o só p o d e ser aplicada uma norma, é preciso escolher ou uma ou outra. Em al­guns casos é escolhida a norma estrangeira. Em geral pode-se dizer que em todo ordenamento moderno há casos que são resolvidos aplicando-se não uma norma do ordenamen­to, mas uma norma do ordenamento estrangeiro. Em re­sumo, verificam-se, não tão raramente, situações particu­lares nas quais têm vigor, num ordenamento estatal, nor­mas de outro ordenamento. C o m o se vê, esse é um caso, bastante claro e de enorme interesse prático, de reenvio de um ordenamento a outro, mais precisamente de reen­vio entre dois ordenamentos que têm âmbito de validade espacial diferente.

O ordenamento italiano aplica muito as normas estran­geiras nos casos sujeitos à disciplina do Direito internacional privado. Como é sabido, as normas que regulam estes ca­sos fazem parte das Disposições preliminares do C. C. (ar­tigos 17-31). Basta dar uma olhada nessas normas para per­ceber em quantas circunstâncias diferentes o juiz italiano deve aplicar a lei estrangeira.

O problema teórico que essas normas suscitam, e que foi objeto de intermináveis disputas, é o da natureza do reenvio por elas contemplado. Também para essa discus­são remetemos ao curso de Direito internacional. Limitamo-nos a considerar as duas figuras de reconhecimento de um

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Direito externo que chamamos de recepção e de reenvio. Não há dúvida de que as normas de Direito internacional privado p õ e m em vigor não uma recepção, mas um reen­vio. Elas, de fato, não têm intenção de se apropriar do con­teúdo de normas de Outros ordenamentos em determina­das circunstâncias, mas indicam pura e simplesmente a fonte de onde a norma deverá ser tirada, seja qual for o seu con­teúdo. Em outras palavras, em algumas circunstâncias o Di­reito italiano remete ao Direito estrangeiro, não porque seja objetivamente melhor, isto é, dê uma solução mais justa, mas porque considera conveniente que cada situação te­nha a sua regra certa: nesse caso, "a cada um o seu" signi­fica "a cada um a própria regra". É verdade que a legisla­ção estrangeira, à qual remete o ordenamento italiano nu­ma determinada matéria, pode mudar, mas é sempre au­tomaticamente solicitada. Aquilo a que o nosso ordenamen­to reenvia não é a maneira pela qual uma dada matéria es­tá regulada, mas a fonte que a regula. Por isso as normas de Direito internacional privado foram chamadas de nor­mas sobre a produção jurídica.

6. Relações materiais

De diversos g ê n e r o s são as re lações entre o ordena­m e n t o do Estado e o o r d e n a m e n t o da Igreja Católica, cons iderado c o m o o r d e n a m e n t o originário. As normas d o s do i s o r d e n a m e n t o s t êm, a lém da m e s m a validade temporal, n o s e n t i d o d e q u e s ã o c o n t e m p o r a n e a m e n t e v igentes , a m e s m a val idade espacial, no sent ido de q u e são v igentes no m e s m o território. P o r é m n ã o se identi­ficam e apenas raramente se s o b r e p õ e m (e q u a n d o se s o b r e p õ e m n a s c e m os cé lebres conf l i tos entre Estado e Igreja). Eles se di ferenciam um do o u t r o no q u e d iz respeito ao â m b i t o de val idade material: i sso , em outras

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palavras, quer dizer que tanto um quanto o outro dirigem-s e à s m e s m a s pessoas , n o m e s m o território, a o m e s m o t e m p o , mas regulam matérias diferentes. A linha de di­v i são entre os do i s o r d e n a m e n t o s n ã o é um limite espa­cial, c o m o o q u e d iv ide um Estado de outro , mas um limite ideal, muito mais difícil de determinar, entre a ma­téria espiritual e a matéria temporal . C o m o esse l imite é mais dif ici lmente determinável , os casos de ingerên­cia de um o r d e n a m e n t o no outro , e portanto de confli­to , são mais freqüentes q u e n o s re lac ionamentos entre dois Estados e, também, de solução mais difícil. Além dis­so, enquanto no que toca ao relacionamento entre os Es­tados existe um ordenamento internacional, que compreen­de todos os Estados e pode dirimir os conflitos, não existe um ordenamento superior que compreenda de maneira es­tável os Estados e as Igrejas, porque se trata de ordenamen­tos heterogêneos que não p o d e m dar lugar a um ordena­mento comum.

A história do relacionamento entre Estado e Igreja (do cristianismo em diante) é rica em conflitos. Durante sécu­los foram propostos vários tipos de soluções, classificadas das maneiras mais variadas. A classificação mais sintética nos parece a seguinte.-

1) reductio ad unum. Distingue-se conforme se tra­te da redução do Estado à Igreja (teocracia) ou da Igreja ao Estado (cesaropapismo na época imperial, erastianismo nos modernos Estados nacionais protestantes);

2) subordinação. Aqui também é necessário distin­guir duas teorias ou sistemas, conforme se pretenda que o Estado seja subordinado à Igreja (teoria, prevalentemente seguida pela Igreja Católica, da potestas indirecta ou da potestas directiva da Igreja sobre o Estado) ou que a Igre­ja seja subordinada ao Estado (jurisdicionalismo e territo-rialismo, durante o período das monarquias absolutas);

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3) coordenação. É o sistema fundado sobre relacio­

namentos concordatarios, que pressupõem o reconheci­

mento recíproco dos dois poderes c o m o "cada um, na pró­

pria ordem, independentes e soberanos" (artigo 7? da

Constituição);

4) separação. Segundo o sistema do separatismo, em

voga, por exemplo, nos Estados Unidos, as igrejas são con­

sideradas a nível de associações privadas, às quais o Esta­

do reconhece a liberdade de desenvolver a sua missão den­

tro dos limites das leis.

Interessa-nos aqui o re lac ionamento entre o Esta­do italiano e a Igreja Católica, regulado p e l o Direito po ­s i t ivo v igente . N ã o se trata de do i s o r d e n a m e n t o s fecha­d o s um ao outro: em particular o o r d e n a m e n t o estatal se refere, de várias maneiras, a inst i tu ições reguladas p e l o Direito c a n ó n i c o . Por o u t r o lado, o s problemas que nascem da atitude do Estado italiano em relação à Igreja são o b j e t o de u m a discipl ina particular, o Direi­to ecles iást ico, à qual reenv iamos , c o m o no parágrafo anterior, ao Dire i to internacional . Aqui n o s l imi tamos a chamar a tenção sobre o fato de q u e a recorrência q u e o o r d e n a m e n t o do Estado italiano faz a normas do Di­reito canónico foi assimilada por alguns (Checchini) às nor­mas de Direito internacionalprivado, das quais falamos no parágrafo anterior. Mas, de m o d o geral, houve mais críti­cas que consenso . Em contraste, foi sustentado que o re­lacionamento entre ordenamento estatal e ordenamento da Igreja deve preferencialmente ser assimilado às relações do Estado c o m os ordenamentos jurídicos menores (Qua-dri). Mas a doutrina mais c o m u m é que se trata de relações suigeneris, nas quais se encontram, ao lado das figuras co­muns ao relacionamento entre Estados, figuras caracte­rísticas.

A doutrina co locou em relevo sobretudo duas figu-

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ras que me parecem se distinguir nitidamente do reenvio às normas de Direito estrangeiro e, também, da figura da recepção, mesmo que a primeira das duas não deva ser con­siderada c o m o figura característica do relacionamento en­tre ordenamento estatal e ordenamento da Igreja:

a) o pressuposto. Entende-se por "pressuposto" aque­la situação em que o ordenamento externo (seja canóni­co , seja de outro Estado) é utilizado para determinar as ca­racterísticas de um certo fato específico, ao qual o orde­namento interno atribui certas conseqüências que não são necessariamente as mesmas atribuídas pe lo ordenamento externo.

O Estado italiano certamente não atribui ao batismo as mesmas conseqüências a ele atribuídas pela Igreja. Po­rém, com as leis raciais de 1938, o batismo foi considera­do c o m o o "pressuposto" para a atribuição de conseqüên­cias jurídicas próprias do Estado italiano. Assim, o sacra­mento da ordem está regulado por normas do Direito ca­nónico , e certamente o Estado italiano não atribui à quali­dade de clérigo as mesmas conseqüências atribuídas a ela pela Igreja, mas o ordenamento italiano pode fazer, em cer­tas circunstâncias, da qualidade de clérigo um "pressupos­to" para conseqüências jurídicas relevantes no próprio or­denamento (por exemplo , a isenção do serviço militar). 2

É claro q u e essa forma de l igação entre dois orde­namentos n ã o t e m nada a ver c o m o reenv io , do qual já falamos (e muito m e n o s c o m a recepção): c o m o reen­v io , a norma externa é solicitada em sua função pró­pria de regra de um certo c o m p o r t a m e n t o ; no pressu­p o s t o é sol icitado o c o m p o r t a m e n t o regulado pela nor­ma externa para atribuir-lhe n o v a s c o n s e q ü ê n c i a s jurí­dicas. E é também indiscutível q u e essa figura do "pres-

(2) Cf. A.Checchini. "Lordinamentocanóniconeldirittoitaliano"(1939), in Scritti giuridici e storico-giuridici, Pádua, 1958, III, p. 94 e segs.

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suposto" n ã o é própria das relações entre Estado e Igre­ja. O o r d e n a m e n t o italiano vale-se f reqüentemente de "pressupostos" cuja determinação deriva de normas de Direito estrangeiro, c o m o quando, por e x e m p l o , refere-se a n o ç õ e s jurídicas c o m o "cidadão estrangeiro", "che­fe de Estado de u m a nação estrangeira", etc.;

b) o reconhecimento dos efeitos civis. Trata-se do caso em q u e o Estado n ã o assume um c o m p o r t a m e n t o regulado p e l o Direi to da Igreja c o m o pres supos to da própria regulamentação, mas renuncia à própria regu­lamentação, limitando-se a atribuir à regulamentação da­da p e l o o r d e n a m e n t o da Igreja efe i tos civis . Um caso , ainda que discutível , é o previs to no artigo 31 da Con­cordata, no qual se diz q u e "a criação de n o v o s entes eclesiásticos ou assoc iações religiosas será feita pela au­toridade eclesiástica s e g u n d o as normas do Direi to ca­nónico: o s eu r e c o n h e c i m e n t o para efe i tos c ivis será feito pelas autoridades c iv is" . T a m b é m essa f igura de­ve ser distinguida do reenv io próprio do Direito inter­nacional privado, que n ã o seria exato definir c o m o atri­buição de efei tos c ivis a institutos regulados por nor­mas estrangeiras. Di ferentemente do pressupos to , es­sa é uma figura característica do re lac ionamento entre o Estado italiano e a Igreja Católica. O e x e m p l o mais importante e caracterizante é o reconhec imento do ma­tr imônio c a n ó n i c o , ao qual são atribuídos, c o m base no artigo 54 da Concordata, os m e s m o s efe i tos do ma­trimônio civil: através dessa instituição, um setor de um Direito externo é acolhido no Direito italiano c o m o par­te integrante dele , mediante um p r o c e d i m e n t o q u e se dist ingue tanto do reenv io quanto da recepção .


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