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NARRATIVA E DIMENSÃO ESTÉTICA DA LINGUAGEM:

QUAL O LUGAR DA EXPERIÊNCIA?

Patrícia Pacheco – Colégio Pedro II - RJ

Resumo

Este artigo se fundamenta nos conceitos de Experiência e Enunciação, desenvolvidos,

respectivamente, por Walter Benjamin e Mikhail Bakhtin, para discutir a dimensão

estética da linguagem associada ao ato de narrar. São apresentadas reflexões sobre

personagens literários, relatos de atividades cotidianas em algumas cidades do Norte e

Nordeste do Brasil, bem como a reflexão de uma experiência escolar, mais

especificamente voltada para o ensino da Literatura, no 1º segmento do Ensino

Fundamental, em uma escola da Rede Pública Federal, localizada no Rio de Janeiro.

Neste percurso, cuja tessitura se desenrola em forma de narrativa entremeada pela

discussão teórica, ora questionamos e, por vezes, referendamos certas ideias

apresentadas pelo filósofo alemão em seu célebre ensaio “O Narrador”. Ao denunciar

que a arte de narrar estava definhando, ao longo de um processo histórico que vinha

sofrendo as ações devastadoras das forças produtivas, Benjamin também anuncia que a

faculdade de intercambiar experiências, outrora reconhecida como inseparável da

condição humana, estaria em extinção. Partindo do pressuposto de que a natureza da

linguagem se apoia em bases dialógicas, numa relação alteritária, conforme a teoria

bakhtiniana, passamos a questionar se, de fato, é possível conceber a condição humana

sem as possibilidades estéticas e expressivas calcadas na troca de experiências.

Compreendemos as reflexões do autor de “O Narrador” e partilhamos de muitos de seus

apontamentos, mas não podemos deixar de estabelecer um diálogo crítico com sua

premissa inicial. A rememoração, princípio fundamental da narrativa, não seria tão

intrínseca à natureza dialógica da linguagem quanto a enunciação, que se estabelece

como elos em uma cadeia ininterrupta de muitos enunciados?

Palavras-chave: Narrativa; Estética; Experiência.

INTRODUÇÃO

José Saramago, em depoimento apresentado no documentário “Língua, Vidas em

Português”, realiza a seguinte reflexão “Quanto mais palavras temos, mais somos

capazes de expressar o que sentimos, mais somos capazes de pensar. Estamos vivendo

um momento de involução, de volta ao tempo das cavernas. Parece que temos cada vez

menos palavras. Haverá um dia em que as pessoas, para se comunicarem, usarão

apenas grunhidos ou sons guturais e alguns gestos”.

Ao pensar sobre o quadro descrito pelo autor português, é possível fazer

referência a Walter Benjamin, mais especificamente ao seu ensaio “O Narrador”, que

discorre, no início no século XX, sobre questões ligadas à tradição da arte de narrar,

outrora tão frequente nas sociedades tradicionais:

Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar

alguma coisa direito. É cada vez mais frequente espalhar-se em volta o

embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como

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se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre

as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a faculdade de trocar

experiências (BENJAMIN, 1994, p.198).

LIÇÕES DA LITERATURA: A NARRATIVA NA ARTE

Ambos os autores expõem a preocupação quanto ao definhamento do uso da

palavra e sua centralidade na constituição do sujeito. Benjamim, nesse sentido,

desenvolve o conceito de experiência que se refere a toda ação realizada para além do

tempo vivido, além do momento imediato de sua realização. Para o filósofo, são as

experiências que, ao ultrapassar a noção de finitude, contribuem para a formação da

subjetividade, e isso passa diretamente pelos usos da linguagem.

A Literatura oferece várias imagens que se relacionam com a questão

supracitada. Em As Mil e Uma noites, Sherazade, personificação da palavra como poder

de sobrevivência e de humanização, arrisca sua própria vida ao candidatar-se ao

casamento com Shariar, um sultão ensandecido pelo ódio que nutria por todas as

mulheres desde que sua esposa o traiu com um de seus empregados. Movido pela ira,

mata sua cônjuge e decreta a morte encadeada das demais mulheres do reino, ao tramar

um plano diabólico: a cada noite escolheria uma moça para casar-se e, após as núpcias,

na manhã seguinte, ela seria entregue ao carrasco, para que o sultão não corresse o risco

de uma nova traição.

Ao decidir espontaneamente casar-se com Shariar, Sherazade, filha do vizir, leva

consigo, além de uma dose de altruísmo, um acúmulo de sabedoria tecida entre os livros

e as vozes dos contadores de histórias, na longínqua Pérsia medieval. Essa sabedoria,

em forma de narrativas cadenciadamente contadas por mil e uma noites, fecunda os

ouvidos e a alma do sultão, que, de algoz, transformou-se em amigo e amante.

Ao mudar de época e paisagem, surge para reflexão a figura de Franz Kafka,

mais especificamente a de Gregor Samsa, personagem central da obra A Metamorfose,

que passa por um processo revelador do total definhamento da experiência: após uma

noite mal dormida, vê-se transformado em um inseto, uma barata. Em consequência, vê-

se, também, expropriado de sua condição humana, o que se torna mais evidente quando

não consegue fazer uso da palavra. Gregor entende o que dizem e sentem seus

familiares, mas não é compreendido por eles, sequer é reconhecido como sujeito. Para

seus pais e sua irmã, aquela barata não seria o irmão tão amado de quando provia as

necessidades domésticas. Assim, isolado em seu quarto, que, aos poucos, tornou-se um

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depósito das quinquilharias da casa, encontra-se privado de convívio, não se comunica,

não se expressa, não deixa suas marcas na relação com o outro. Este outro passa a não

existir, não fecunda mais sua experiência, que, esvaziada, se aniquila. Nem mesmo sua

morte é motivo de comoção, o que leva a crer que ela já tinha se dado antes mesmo do

momento fatal.

Sherazade e Gregor Samsa representam o poder da palavra em toda a sua

grandeza e força. Cada qual constitui uma alegoria para pensar a dimensão estética da

linguagem como formadora da experiência humana. Tais exemplos literários levam a

pensar sobre os questionamentos expostos por Saramago e Benjamin no início desse

texto. O que está em xeque são os usos da linguagem e sua centralidade para a formação

do sujeito, mais especificamente a linguagem em sua dimensão estética, cuja

manifestação mais evidente se concretiza por meio do ato de narrar, ou seja, de

intercambiar experiência, entendido, de acordo com Larrosa (2004, p163), como aquilo

que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece e, ao nos passar, nos forma e nos

transforma. Assim, as ações que envolvem o uso da palavra para se estabelecerem como

experiência, precisam ser pensadas como formadoras, algo que transpasse e constitua o

sujeito.

Eis um caminho possível para estreitar o laço entre experiência e estética. Ao

pensar nesta palavra, é necessário percebê-la para além de uma apologia ao belo, às

formas perfeitas, a um estado contemplativo-passivo de apreciação de uma obra de arte

ou um estado de pura inspiração para sua execução. Antes de tudo isso, estética (estesia)

está associada aos sentidos, à percepção através da sensibilidade. Uma percepção

sentida pode ultrapassar os limites da imediatez e, após sucessivas mediações,

transformar-se em reflexão formadora e constituidora da subjetividade.

Desta forma, é possível inferir que a aprendizagem, a produção de conhecimento

como ação formadora e transformadora se efetivam ao se constituírem como

experiência. O sujeito afetado, e é necessário reiterar: esteticamente afetado pela

experiência, é capaz de atribuir sentidos, preencher lacunas, tal qual o menino que

carregava água na peneira, do poeta Manoel de Barros (1999), que gostava mais dos

vazios do que dos cheios e por isso insistia em carregar água na peneira, em brincar de

ser poeta, em fazer peraltagens com as palavras. E por falar em peraltagens com as

palavras, voltamos a Larrosa (2004), quando afirma:

As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com

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pensamentos, mas com palavras (...). E pensar não é somente

raciocinar ou calcular ou argumentar, mas é sobretudo dar sentido ao

que nós somos e ao que nos acontece (...). Por isso que atividades

como atender às palavras, criticar as palavras, inventar palavras não

são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório (LARROSA,

2004, p. 153).

A crítica de Saramago, no primeiro parágrafo deste texto, refere-se ao fato de

muitas pessoas, por ele observadas, estarem fazendo uso econômico, mesquinho, pouco

expressivo das palavras e negando a potencialidade estética que elas podem oferecer.

Sem pretender colocar abaixo tal constatação, indagamos se o quadro pintado pode se

apresentar de forma generalizada, única possível de ser vista. Nesse universo de

degradação da arte de narrar, já apresentado por Benjamin (1994) quase um século antes

do depoimento do autor português, não haveria espaço, na contramão do fluxo das

forças produtivas, para meninas, meninos, jovens, homens e mulheres carregarem água

na peneira, fazerem peraltagens com as palavras, atendendo-as, criticando-as,

inventando-as?

LIÇÕES DO COTIDIANO: A NARRATIVA NA VIDA

Para além das fronteiras literárias em âmbito acadêmico, ao viajar por diferentes

cidades do Brasil, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, posso presenciar na

vida cotidiana a necessidade e a mobilização natural das comunidades para garantirem

espaços de partilha cultural em que as narrativas são o foco e ao mesmo tempo o elo

entre as ações. Em Alter do Chão, uma vila pertencente à cidade de Santarém, no Pará,

às margens do Rio Tapajós, a população se mobiliza durante meses para a preparação do

Sairé, festa típica em que dois grupos de Boto (Tucuxi e Cor de Rosa) concorrem e

disputam a vitória por meio de encenações, expressões corporais, danças que expressam

uma trama reveladora de mitos e lendas que envolvem este animal típico da região

amazônica. Durante vários fins de semana, a comunidade local se reúne na praça para

assistir aos ensaios e exercitar a torcida, tudo devidamente acompanhado por comidas,

bebidas, músicas e vestimentas que caracterizam as raízes indígenas e a influência

africana na cultura regional.

Bem próximo de Alter do Chão, no município de Belterra, tive a oportunidade de

conhecer a comunidade ribeirinha de Jamaraquá, de tradição matriarcal e que vive

basicamente do turismo, do artesanato e de ações comunitárias para o uso sustentável da

extração da borracha e da madeira. Foi aí que travei contato com Nice, guia de turismo

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pelas trilhas da FLONA (Floresta Nacional do Tapajós). Com 36 anos, é esposa, dona de

casa, mãe de muitos filhos e recém ingressa no ofício de avó, além de trabalhar na

cooperativa de extratores de borracha e de artesãos da comunidade. Em todas as suas

atividades, imprime uma marca que chama atenção dos olhares e ouvidos mais atentos:

a contação de histórias. Durante a caminhada de mais de cinco horas entre matas e

igarapés, tive a chance de ouvir e registrar muitos causos que envolvem moradores e

turistas e os perigos e aventuras por que passam com onças, jacarés, cobras, curupira, e

outros seres encantados. À noite, na sua casa de madeira, por entre a penumbra

ocasionada pelos lampejos de uma luz muito fraca, somos enredados por mais histórias,

em geral de assombração ou causos de familiares, enquanto acompanhamos ou

colaboramos na confecção de colares de sementes e borracha.

Voltando o olhar para outra região do país, nos direcionamos, agora, para o

sertão do Cariri, no sul do Ceará, região de muita história (a começar pelo próprio nome

que faz referência aos povos nativos), de sítios arqueológicos, mestres da cultura

popular e memoriais. Mais especificamente na cidade de Nova Olinda, tive a

oportunidade de conhecer a Fundação Casa Grande, um espaço que realiza atividades

culturais com crianças e adolescentes, envolvendo arqueologia, museu, rádio, vídeo,

música, biblioteca, gibiteca, teatro. O projeto, idealizado por um casal que ainda se

encontra na direção das ações, surpreende pelo fato de exercitar o protagonismo em seus

participantes. Crianças e jovens são os gerentes dos laboratórios de produção cultural,

em cada setor descrito, e trabalham como monitores dos diferentes espaços. Na

programação da rádio, Tainara, de apenas treze anos, é responsável pelo horário da

contação de história, cujo repertório é selecionado com a amiga responsável pela

biblioteca e que tem pouco mais de dez anos de idade. Em conversa com Yasmim, de

apenas nove anos e uma das responsáveis por aproximar os visitantes dos diferentes

espaços da casa, indaguei qual deles, justamente, seria imprescindível para ela, não

poderia deixar de existir. Automaticamente e de forma incisiva, afirmou que todos, mas

diante da minha insistência na necessidade de uma escolha, surpreendentemente

declarou que o espaço da memória, o museu que expõe objetos e quadros que contam a

história da região e da própria casa que abriga a Fundação. Justificou sua difícil escolha,

alegando que, ao receber os visitantes no museu, é possível aprender e ensinar ao

mesmo tempo, pois troca muito conhecimento com quem vem de outros lugares.

Outros tantos exemplos poderiam ser apresentados para defender a ideia de que

a narrativa permanece viva e ainda guarda em si seu aspecto fundamental, qual seja, o

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da rememoração e formação da subjetividade por meio da troca de experiências. O que

dizer das festividades quilombolas como as presenciadas na Ilha de Mansangano, no

Rio São Francisco, em Petrolina (PE), ou no Quilombo São José, em Valença (RJ), em

que, respectivamente, o Samba de Véio e o Jongo tornam-se os personagens-heróis das

histórias que ali são contadas com o corpo em movimento ritmado, em inúmeras rodas

que se formam em volta dos tambores e que se adensam ao som das palmas das mãos?

O que esses ritmos de matriz africana e os meneios corporais por eles suscitados, com

suas umbigadas outrora tão combatidas, nos contam de uma época não muito longínqua,

e que ainda está presente em tantas formas de opressão? O que esses encontros festivos,

na praça, no terreiro ou na rua revelam, no próprio ato de sua realização, na comunhão

entre vozes e corpos de diferentes gerações? E o que mais é revelado no encontro que se

dá para além do momento imediato, que ecos do passado estão ali presentes e que vozes

ressoarão adiante?

E as bonequeiras de São Cristóvão, uma cidade histórica, em Sergipe, próxima a

Aracaju? São mulheres que fiam, tecem, alinhavam, fuxicam, tricotam, manejam

agulhas em diferentes bordados na confecção de bonecos e adereços que representam os

festejos e personagens das histórias locais. Enquanto trabalham, conversam entre si e se

apoiam mutuamente em suas dificuldades emocionais, compartilhando dores, sonhos e

desejos. Para o visitante, além de muito artesanato, oferecem sorrisos, abraços,

umbuzada, suco de cajarana e uma cadeira para sentar porque a conversa vai ser longa.

Precisarei voltar à cidade para conhecê-la melhor, pois a primeira vez que fui não

consegui sair de perto das bonequeiras que carinhosamente me presentearam com

narrativas sobre seus bonecos e com suas histórias de vida.

Essa passagem por algumas cidades do Norte e Nordeste pode trazer a impressão

de que a arte de narrar é manifestação típica dos pequenos centros e vilas interioranas.

Mas como analisar festejos de rua como a Feira das Yabás, em Madureira, subúrbio

carioca, onde cantos, ritmos, histórias, culinária dos ancestrais de matriz africana são

evidenciados? Tal festividade não se realiza esporadicamente. A enorme afluência de

participantes deu ensejo para que assumisse caráter periódico, ocorrendo uma vez por

mês. Muitos são os espaços públicos ou privados de concentração de pessoas que

clamam pela necessidade de estar em contato com outras vozes e dar sentido aos seus

fazeres por meio dessa convivência em que narrativas de diferentes naturezas ocupam o

centro das ações.

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LIÇÕES DE ALUNOS E PROFESSORES: A NARRATIVA NA ESCOLA

Após o passeio pelos locais descritos acima, para pensar sobre a pertinência da

narrativa nas sociedades contemporâneas, nas mais variadas esferas, é preciso orientar,

neste momento, o foco para o universo escolar. Se, de acordo com Benjamin, o ato de

narrar está em decadência porque a sabedoria cedeu lugar à informação, talvez esteja

nas instituições de ensino uma das possibilidades de encontrar uma forma de não deixar

a informação, e seu caráter avassaladoramente descartável, matar o lado épico da

verdade (Benjamim, 1994, p 201). Por mais que a escola represente um microcosmo

imbricado em uma rede mais extensa que, muitas vezes, impõe as regras a serem

seguidas, é sabido que essas regras fazem parte de um jogo social eivado de

historicidade e que a história também é feita por homens e mulheres em pequenas ações

cotidianas. Sendo assim, trago como questionamento a necessidade de pensar a

professora e o professor, contrariando o fluxo que tenta imprimir um caráter meramente

instrumental às ações escolares, como narradores em seus encontros com alunas e

alunos, que por sua vez, também exercitariam a arte de narrar nas ações cotidianas. Será

que não temos muitos desses profissionais assumindo essa condição em diferentes

escolas do país? Voltando a Benjamin:

(...) o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se dar

conselhos parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão

deixando de ser comunicáveis. (...) Aconselhar é menos responder a

uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma

história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário

primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é

receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação).

O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome:

sabedoria. (BENJAMIM, 1994, p.200)

Ao longo da minha trajetória, seja como aluna ou professora, por entre os muros

da escola, tenho conhecido muitos professores-narradores-conselheiros-sábios de

diferentes áreas do conhecimento. E é dentro deste cenário que me volto para a

apresentação do ofício docente que desempenhei ao longo de treze anos como

coordenadora e professora de Literatura, ao trabalhar com turmas de 1º segmento do

Ensino Fundamental, em um colégio da Rede Pública Federal, localizado na cidade do

Rio de Janeiro. Ao realizar este breve relato, pretendo iluminar a discussão sobre a

possibilidade de o espaço escolar ser oportuno para a produção de conhecimentos

calcada na experiência, mesmo em face de vivermos sob o império da velocidade e do

predomínio de formas descartáveis de lidar com a informação. Ainda assim, acredito ser

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possível agir na contramão, ou a contrapelo, desse fluxo aparentemente inexorável.

Iniciei minhas atividades profissionais no referido colégio, em dezembro de

1994. Em 2001, assumi a função de professora e coordenadora de Literatura, função

que se estendeu até o ano de 2013. Essa disciplina faz parte da grade curricular do

segmento em questão, assim como Música, Educação Física, Artes Visuais, Informática.

Uma vez por semana, durante noventa minutos, em horário fixo, as turmas se

direcionavam para a sala de Literatura, um espaço organizado para privilegiar a

manifestação de atividades dialógicas, interdiscursivas, que favorecessem o contato

estético entre os sujeitos e destes com o material literário. Sendo assim, era primordial

ter livre acesso ao acervo bibliográfico disponível, sentar em círculo, com flexibilidade

para deitar no chão em almofadas para ler, podendo se tocar, trocar de lugar, discutir

formas de apresentação de trabalho em grupo, manusear objetos, adereços, bonecos que

tornassem as atividades mais expressivas e significativas.

Pensar professores e alunos como narradores é, em primeiro lugar, pensar em

atividades e em ambientes que garantam o intercambiar de experiências. Para

compreender como esse fazer se dava na prática, tomo por empréstimo algumas

palavras de Kramer (2000):

Quando penso na Literatura como experiência (na escola, na sala de

aula ou fora dela), refiro-me a momentos em que fazemos comentários

sobre os livros e revistas que lemos, trocando, negando, elogiando ou

criticando, contando mesmo. (...) O que faz da Literatura uma

experiência é entrar nessa corrente em que a leitura é partilhada e,

tanto quem lê quanto quem propiciou a leitura ao escrever, aprendem,

crescem, são desafiados (KRAMER, 2000, p.108).

Com base nesta perspectiva, elaboramos um projeto de trabalho cuja proposta,

durante os cinco primeiros anos de escolaridade, visava propiciar a interação com

diferentes gêneros, autores e ilustradores cujas obras se direcionassem para o universo

da infância e juventude. Havia uma preocupação em alternar o foco, de um ano para o

outro, entre textos da tradição oral e textos autorais, além de estabelecer comparação

entre estilos e perceber o movimento intertextual na composição das variadas obras e

seus respectivos gêneros. A título de organização, estabelecemos temáticas para cada

ano do segmento e elegemos autores e livros que melhor atendessem às expectativas e

interesses da faixa etária em questão, sem, contudo, limitar o acesso a outras obras,

oferecendo dentro da seleção didática, um leque de opções diante do que poderia ser

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trabalhado.

Eram privilegiados textos típicos da tradição popular como acalantos, cantigas,

parlendas, trava-línguas, narrativas em cd recontadas por Bia Bedran e Antônio

Nóbrega, mitos, lendas, contos populares, bem como livros imagéticos de Roger Mello,

Eva Furnari, Juarez Machado, Rui Oliveira. Além disso, a proposta contemplava,

também, narrativas ou poemas de Monteiro Lobato, Mariana Massarani, Marina

Colasanti, Clarice Lispector, Bartolomeu Campos Queirós, Márcio Vassalo, Roberto

Torero, Ricardo Benevides, Luciana Sandroni, Lígia Bojunga, Fátima Miguez, Sylvia

Orthof, Vinícius de Moraes, Mário Quintana, Cecília Meireles, José Paulo Paes, Elias

José, dentre muitos outros.

Mais especificamente no 5º ano, a partir dos grandes clássicos da Literatura

Universal, de épocas e gêneros variados, era estabelecida uma teia de relações entre tais

obras e a literatura nacional explorada com grande ênfase nos anos anteriores. A

imagem do herói, colocada em evidência, era questionada e analisada em obras das

variadas mitologias, contos de fadas, contos de As Mil e Uma Noites, aventuras,

suspenses. Nessa tessitura, era possível perceber de que forma o global e o local se

relacionam na produção literária deixando seus influxos nos dias atuais.

De acordo com a fundamentação teórica em que nos apoiamos, já referendada

anteriormente pelas palavras de Sonia Kramer (2000), as aulas privilegiavam a troca de

experiências com base no texto literário: professores e alunos engajados em uma

proposta de leitura, discutiam, entravam no fluxo da corrente da comunicação verbal por

meio de diferentes formas de expressão – leitura, contação, expressão corporal, danças,

dramatização, reescritas, decalques, análise de imagens, de filmes e canções. Além

disso, encontro com autores, feira literária, organização de sebos, apresentação de

trabalho para a comunidade escolar, visitas às bibliotecas, centros culturais, museus,

Salão do Livro Infantil e Juvenil também integravam as ações que desenvolvíamos com

o fim de aproximar o fazer literário das práticas cotidianas de forma viva e sentida.

Essa dimensão estética no uso da linguagem, e mais especificamente, no uso da

linguagem literária, já apresentada com base nas referências de Walter Benjamin sobre

narrativa e experiência, pode ser evidenciada, também, por Mikhail Bakhtin, em sua

Teoria da Enunciação, ao defender que “cada enunciado é um elo de uma cadeia muito

complexa e ininterrupta de outros enunciados” (2000, p.291). Tal conceito, que o autor

traz reiteradas vezes, no texto em que aborda questões pertinentes à formação dos

gêneros do discurso, é a chave para compreender uma concepção histórica e viva da

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língua, centrada na interação verbal entre sujeitos falantes que, encontrando espaço de

criação, utilizam a linguagem como elemento primordial de expressão e aquisição de

conhecimento, num processo eminentemente dialógico, em que o Outro, em uma atitude

ativa-responsiva, tenha papel fundamental.

Sendo assim, a língua deixa de ser vista como um produto acabado, fruto de

elucubrações essencialmente individuais ou de abstrações estáveis que se impõem; ao

contrário, num processo de interação dialógica, caracteriza-se por um eterno

inacabamento, por um constante fazer e refazer. O que possibilita seu potencial

expressivo são os espaços existentes em sua estrutura, entre normas estáveis, com

possibilidades de serem preenchidos, transformados, subvertidos pelo sujeito. Ou seja,

diante dessa perspectiva, o discurso oferece uma plasticidade que supera as estruturas

estáveis da língua.

Bakhtin (2000) define essa qualidade como constituidora do discurso, mas,

sobretudo, do discurso literário. Nenhum outro gênero do discurso apresenta esse

aspecto dialógico tão marcante em sua constituição quanto a literatura. Tal abrangência

permite que suas formas de apropriação conduzam a uma maior aproximação do Outro

(leitor, ouvinte, interlocutor), esse Outro que está fora de mim, que não sou eu, mas que

tem papel fundamental na formação daquilo que eu sou. Esse Outro não representa

apenas um sujeito materializado com quem possa interagir no cotidiano, mas também

vários outros que manifestaram e deixaram suas marcas ao longo do tempo. Essa

interação significa se acercar e refletir sobre suas ideias, seus valores, seu pensamento, a

ideologia dominante em sua época, seus fazeres, suas formas de atuação.

A literatura, justamente por sua dimensão estética, permite esse mergulho no

Outro paralelamente ao mergulho no próprio eu. Não estaria aí, um dos pontos de

contato entre os dois autores contemplados neste artigo? Tanto a narrativa,

caracterizada, por Walter Benjamim, como prática indissociável do ato de intercambiar

experiências, quanto a enunciação, compreendida como expressão criativa e responsiva

entre sujeitos falantes, de acordo com Mikhail Bakhtin, lidam com a palavra

privilegiando seu caráter alteritário, interdiscursivo. Foi justamente esse caráter que se

tornou referência basilar para orientar as ações já apresentadas no relato de experiência

descrito anteriormente.

Durante os cinco primeiros anos de escolaridade, percebíamos um

envolvimento afetivo e significativo na relação com o livro, durante as aulas de

Literatura e, principalmente, no espaço da Biblioteca, para onde muitas crianças se

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dirigiam espontaneamente com o fim de dar continuidade e expansão ao que

vivenciavam nas aulas. Durante o exercício da coordenação desse trabalho, me

surpreendi com falas, atitudes, produções orais e escritas que demonstravam elaboração

das reflexões realizadas e que passavam a constituir um novo olhar sobre si, o outro e o

mundo.

Como exemplo do exposto acima, transcrevo, a seguir, o primeiro parágrafo de

uma carta de uma ex-aluna, escrita em 2012, quando já estava no Ensino Médio, na

mesma instituição de ensino onde teve aulas de Literatura do 1º ao 5º ano:

Literatura.... Bons anos em que tivemos essa matéria na época em que

consideravam que ela era importante para mim. Por algum motivo,

não acham mais importante que eu aprenda sobre isto, talvez porque

pensem que é coisa para criança, que não é necessário para o mundo

saber ouvir, aprender literatura. Mas é claro que discordo. Só posso

discordar, levando em conta que foram nas minhas primeiras aulas de

Literatura que tomei gosto pelos livros, de todos os tipos, que percebi

que eles eram fonte inesgotável de conhecimento infinito. Nas aulas

de Literatura, minha imaginação foi alimentada e, sinceramente, acho

que formou muito do que sou hoje. As histórias que ouvi me deram

lições que, com certeza, trago comigo até os dias de hoje. (Mariana,

2012)

Com o depoimento da Mariana, eis o nome da autora da carta, me encaminho

para o final deste artigo por compreender que, de forma simples e espontânea, há uma

declaração de amor às aulas de Literatura, fruto, talvez, de rememorações que nos levam

a crer que as atividades literárias, na perspectiva eleita para a sua realização, deixaram

marcas constituidoras em sua subjetividade, um atestado de que os encontros se

concretizaram como experiência. Mas, além disso, há, também, em suas palavras, um

pedido para que a escola, como um todo, assuma um compromisso para que esse tipo de

aula, que privilegia ações calcadas na arte de narrar, tenha desdobramentos pelos demais

anos e, por que não, nas demais disciplinas. Mariana refere-se, exclusivamente, às aulas

de Literatura, mas podemos estender seu pedido para abarcar outras áreas do

conhecimento. Sabemos que isso é possível. Muito já vimos e tomamos conhecimento

de ações que estabelecem interações discursivas, com professores e alunos narradores,

na Matemática, Física, Química, Biologia, História, Filosofia, em uma proposta que

privilegie a linguagem como elemento criador em sua dimensão estética e alteritária.

AINDA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Muitos relatos aqui apresentados (narrados) nos levam a questionar a forma

contundente com que Saramago e Benjamim expuseram suas preocupações quanto ao

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definhamento da linguagem, em seu aspecto expressivo, nas sociedades

contemporâneas. Talvez os autores tenham visto apenas um lado da questão. Mas os

últimos apontamentos, também nos mostram que muito ainda existe para ser feito no

que tange o uso estético da linguagem nas diferentes esferas sociais, principalmente na

escola.

Com base nas análises e reflexões expostas, proponho, bastante influenciada

pelos estudos de Bakhtin, a necessidade de possibilitar a convergência dos discursos na

arte e dos discursos na vida com os discursos realizados no âmbito escolar em suas mais

variadas instâncias. Se a enunciação é a base de uma concepção dialógica da linguagem

que, por princípio, é inseparável de seu caráter alteritário, por sua vez, a rememoração é

a base de toda ação narrativa que, também por princípio, se constitui em relações de

alteridade. Em ambas as ações, enunciar e narrar, percebo os sinais da dimensão estética

da linguagem movendo as relações interdiscursivas na constituição das diferentes

subjetividades, por meio da experiência. Tais sinais, entretanto, se estão pulsando em

muitas esferas da vida e na arte, precisam se tornar mais visíveis na escola. Creio que é

disso que nos fala Mariana.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas

Fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Hucitec,

1998.

______________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Livraria Martins Fontes

Editora, 2000.

BARROS, Manoel. Exercícios de ser Criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas vol.I: Magia e Técnica, Arte e Política. São

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