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EDITORIAL

Você tem em mãos a Revista Hermenêutica 2003. Nesta edição,

Joaquim Azevedo, faz um estudo lingüístico, contextual e teológico sobre

Gênesis 4:7, com ênfase na sentença “à porta do Paraíso”, em ligação com

a obra redentora de Deus. O autor mostra indícios da correspondência entre

elementos com a cultura do Antigo Oriente Próximo e com o Santuário

israelita.

O artigo de William H. Shea, “Quem sucedeu Xerxes no trono

da Pérsia?”, aborda o tema do ano de ascensão de Artaxerxes, que é de

importância crucial para a interpretação dos elementos temporais das

profecias de Daniel 9:24-27e 8:14.

A seguir, um importante aspecto de Malaquias 3:8-10 é explorado por

Demóstenes Neves, onde analisa, entre outras coisas, se o texto tem “uma

ênfase congregacional ou aplica-se a uma instituição mais ampla”. Este

tema controvertido será analisado à luz do contexto da passagem, levando-

se também em conta o legado de Ellen G White, escritora e pioneira da

Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Evandro Luiz da Cunha, versando sobre a afi nidade entre Religião

e Filosofi a, demonstra que a realidade é abarcada pela Ciência, Religião e

Filosofi a. Analisa como um modelo holístico e eclético mostra as facetas

da verdade ao invés do modelo dicotômico

Adiante, Ozeas Moura discorre sobre o discipulado exemplar de

Bartimeu no que diz respeito ao reconhecimento das prerrogativas de

Jesus, a sua fé e prontidão em seguir após Ele. Finalizando, Luiz Nunes

analisa os “métodos evangelísticos mais usados para implantação de uma

nova igreja e para o crescimento dela”, com base em amostragens do

evangelismo levado a cabo nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Estes

métodos são avaliados pelos resultados em igrejas com alto, médio e baixo

crescimento.

O Editor

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À PORTA DO PARAÍSO.

UMA INTERPRETAÇAO CONTEXTUAL DE GEN 4:71

Joaquim Azevedo2

al{ ~aiw> taef. byjiyTe-~ai aAlh]

`AB-lv'm.Ti hT'a;w> Atq'WvT. ^yl,aew> #bero taJ'x; xt;P,l; byjiyte

Resumo

Alguns problemas lingüísticos parecem obscurecer a compreensão de Gn 4:7, tais como: o lugar de Gn 4:7 no restante da narrativa, a má compreensão da Concordância de gênero concernente à relação dos sufixos pronominais com seus antecedentes, os significados da palavra taJ'x; geralmente traduzida como “pecado” em Gn 4:7, o particípio masculino do verbo #bero - “deitar estirado, descansar” - em relação ao substantivo feminino taJ'x;, e a importância da expressão xt;P,l; “à porta” para o restante da narrativa. O propósito deste artigo é tomar fazer uma boa tradução de Gn 4:7 baseada neste cenário contextual e comparada com o pano de fundo do Antigo Oriente Próximo (AOP).

Abstract

Some linguistic problems seem to obscure the understanding of Gn 4:7, such as: the place of Gn 4:7 in the rest of the narrative, the misunderstanding of the gender regarding the relationship of the pronominals suffixes with its antecedents, the meanings of the word taJ'x; generally translated as “sin” in Gn 4: 7, the masculine participle of the verb #bero “to lie stretched, to rest” in relation to the feminine noun taJ'x; and the importance of the expression xt;P,l; “at the door” for the rest of the narrative. The purpose of this article is to try to do a good

1 Esta é uma tradução do artigo “At the Door of Paradise. A Contextual Interpre-tation Of Gen 4:7”, publicado em Biblische Notizen l00 (2000): 45-59.

2 Joaquim Azevedo, ex-professor do Salt Iaene, é Ph. D. em Religião pela An-drews University.

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translation of Gn 4:7 based on this contextual scenery and compared with fl ue Ancient Near East (ANE) background.

Introdução

A compreensão das difi culdades listadas no resumo acima é crucial para traduzir Gn 4:7. O dados-base são a forma literária fi nal do texto hebraico ao invés de discussões contestáveis da alta crítica e transmissão do texto. Embora tenha examinado todo o material que conheço sobre esse assunto, não pretendo apresentar um resumo da história da interpretação desta passagem.3

Dividi este artigo em três seções. A primeira trata do discurso lingüístico do texto, que é o primeiro problema lingüístico da lista acima; a segunda lida com os demais problemas lingüísticos da mesma e a terceira apresenta um paralelo da descrição do Paraíso (Gn 1-3) com o posterior Santuário Levítico e com o fundo mitológico do AOP.

1. A Relação de Gn 4:7 com o Restante da Narrativa

Um discurso lingüístico do texto é apropriado neste ponto para esclarecer a relação literária de Gil 4:7 para a perícope inteira. Esta seção foi divida em duas partes: a primeira está no nível do texto, delineando a história de acordo com o modelo tagmêmico, a segunda está ao nível da sentença de acordo com

3 Para posterior discussão deste assunto, ver: M. Ben Yashar “Sin Lies for the Firstborn,” (Heb) Beschwerde-Management in Kreditinstituten (BMik) 7(1963): 166-119; G R. Castellino, “Gen 4:7,” Vetus Testamenti (VT)10 (1960): 442-445; M. S. Enslin, “Cain and Prometheus,”Journal of Biblical Literature (JBL) 886 (1966): 88-90; S. Levin, “The More Savoring Offering: A Key to the Problem of Gn 4:1-16,” VT26 (1976): 70-78: L. Ramoroson, “A Proposed Gen 4:7,” Bib 499 (1968): 233-237;B. K. Waltke, “Cain and H is Offering,” The Westminster Theological Journal (WTJ) 48.(1986): 363-372; E. A. Mangan, “A Discussion of Gen 4:7,” CBQ 6 (1944): 91-93”; A. Dillmann, Genesis (Edinburgh:T. & T. Clark, 1897); John Skinner, Genesis, in International Critical Com-mentary, vol. 1 (New York.: Charles Seribner’s Sons, 1910); E. A. Speiser, Genesis, in Anchor Bible, vol. 1 (Garden City, New York: Doubleday & Company, 1987).

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a gramática funcional de Buth.

A. Nível do Texto

Ao nível superfi cial da estrutura do texto pode-se observar onde este verso pode ser colocado no contexto da perícope inteira (4:1-16). Esquematizarei isto como segue:

(1) A perícope está sem a abertura tagmeme.

(2) Estágio: (Gn 4:1-2) A oração inicial w [x] qatal4 no fundo da formação de Gn 4:1 ([d:y" ~d'a'h'w>, “e o homem conheceu...”) marca o limiar de um novo parágrafo com uma nova cena e novos personagens em vez da construção mais-que-perfeita.5 Neste caso, ainda que ~d'a'h' - “o homem”- esteja na posição pragmática (P1), não é um fator contextualizante, pois o autor prossegue escrevendo sobre Eva e seus dois fi lhos, em vez de Adão, “o homem”. A implicação aqui é: quem era o primogênito? E nenhuma dúvida foi deixada sobre esse assunto (ver 4: 1). Portanto, neste caso a formação w [x] qatal (Gn 4:1) marca o começo de um novo parágrafo, além de indicar o tempo mais-

4 O símbolo [x] está aí por causa de urna oração constituinte como um sujeito, complemento, ou algum modifi cador na posição inicial.

5 Rnall Buth, “Functional Grammar, Hebrew and Aramaic: An Integrated, Tex-tlinguistic Approach to Syntax”, em Discourse Analysis of Biblical Literature: What It Is and What It Ofers, ed Walter R. Bodine (Atlanta Scholars Press, 1995), 89; de acordo com Buth, “é bastante freqüente na narrativa hebraica alguém encontrar substantivos na posição P1 [pragmática] que não provê organização temática específi ca para as orações subseqüentes, mas simplesmente serve para desligar a oração da seqüência principal de orações. Elas são usadas como uma estrutura descontínua para quebrar e marcar o fi m do tempo, parágrafo, ou divisões de episódios”; Pedro J. Gentry, “The System of the Finite Verb in Classical Biblical Hebrew”, Hebrew Studies 38 (1997). Em relação ao discurso gramatical e pragmático, Gentry argumenta que “as formas consecutivas, wayyiqtol e weqatal, são empregadas para codifi car ou para priorizar a informação no discurso. Por defi nição, as formas requerem inicial posição do verbo; por isso o primeiro plano de uma narrativa é a cadeia de eventos. Sinais não-seqüênciais são uma quebra na linha do evento indicada tanto por uma oração coordenada sindética e um par diferente de verbos deter-minando tempo e qualidade, isto é, [x] qatal e [x] yiqtol”, 13p.

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que-perfeito (Buth, p. 89). Ele também distingue esta função da formação w [x] qatal em Gn 4:1.

Com relação ao trabalho de Abel e Caim, Gn 4:2 afi rma que hm'd'a] dbe[o h"yh' !yIq;w> !aco h[ero lb,h,-yhiy>w:, “e Abel foi pastor, mas Caim fora um agricultor”. Aqui, o uso da formação w [x] qatal (perfeita, de acordo com Zevit, p. 22) indica que Caim fora agricultor muito antes de Abel ter ingressado no pastoreio.6 De acordo com Niccacci, “se o autor tivesse continuado [em Gn 4:2] a série de WAYYQTOLs, os dois personagens teriam sido introduzidos próximos um do outro, como links do mesmo canal”.7 O caso aqui é diferente. A ênfase aqui está no contraste deles. O tipo de profi ssão dos personagens tem um papel importante na história, pois disto eles trouxeram suas ofertas.

(3) Evento: (Gn 4:3-7) É introduzido pela sentença ~ymiy" #QEmi yhiy>w: “e aconteceu no decorrer do tempo...”8 O contraste entre Abel e Caim,

6 Ziony Zevit, The Anterior Construction in Classical Hebrew, The Society of Biblical Literature, Monographic Series vol. 50 (Atlanta: Scholars Press, 1998). 15. “Quando o autor da narrativa em prosa quis determinar inconfundivelmente 1) mais que perfeito, i.e., que uma ação dada no passado tinha começado e terminado antes de outra ação no passado, ou 2) perfeito, i.e., que uma dada ação no passado tinha começado mas não necessariamente terminado no passado antes do começo de outra ação, eles empre-garam urna particular formação para expressar esta seqüência, um tipo de oração cir-cunstancial... A estrutura destas orações é nós + S (sujeito) + gatal. Portanto, a condição necessária é um verbo no passado, (w)yqtl ou qtl, na narrativa da oração anterior”.

7 Alviero Niccacci, The Syntax of the Verb in Classical Hebrew Prose, supplement series vol. 86 (Sheffi eld:JSOT Press, 1990), 31.

8 R. E. Longacre, Joseph, A Story os Divine Providence: A Text Theoretical and Textlinguistic Analysis of Gn 37 e 39-48 (Winona Lake: Eisenbrauns, 1989), 70, 71: Lon-gacre afi rmou que “em geral [impessoal] wayhi com frase temporal marca um lapso de episódio na narrativa em prosa” e “a introdução de tal expressão temporal no fl uxo do passado pode indicar um lapso de parágrafo ou do evento...”. A. F. den Exter Blokland, In Search of Text Syntax: Towards a Syntactic Text-Segmentation Model for Biblical He-brew (Amsterda: VU Uitgeverij, 1995), 47: De acordo com Blokland “expressões como hL,aeh' ~yrIb'D.h; rx;a; ~ymiy" #QEmi yhiy>w: são marcos de acontecimentos, porque eles estão mais regu-larmente envolvidos na formação de quebra de parágrafo ou fatos do que outros casos de yhiy>w: com expressões temporais”.

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iniciado no tagmeme inicial, continua aqui ligando e desenvolvendo ambos tagmemes - estágio e evento - em uma construção de eventos sucessivos que culminarão no clímax do enredo.

Note que Gn 4:3-5 hw"hyl; hx'n>mi hm'd'a]h' yrIP.mi !yIq; abeY"w: ~ymiy" #QEmi yhiy>w:aWh-~g: aybihe lb,h,w>

“e aconteceu no decorrer do tempo, que Caim trouxe uma dádiva para Yahwev dos frutos da terra, mas Abel trouxera (formação w [x] qatal, com o tempo perfeito) das primícias do seu rebanho...”. Neste caso, Abel foi quem trouxe a oferta primeiro e então Caim trouxe a sua. Assim a amargura de Caim fi cou ainda pior quando ele viu a oferta do seu irmão mais novo sendo aceita e a sua sendo rejeitada, mesmo tendo mais experiência (em seu trabalho), sendo mais velho e, sobretudo, sendo o primogênito (o futuro patriarca de direito). Estas formações w [x] qatal contrastantes apresentam uma informação básica deixando à mostra o clímax iminente.

Gn 4:6-7 pode ser classifi cado como o anteápice. É um discurso direto, um monólogo envolvendo Yahweh e Caim. O verso sete introduz a solução para a perda de autoridade e status quo hierárquico de Caim. Caim silencia, porém, mostra sua determinação que é consumada no ápice da trama, a saber, fratricídio (ver 4:8).

(3) Ápice: Gn 4:8 introduz o pico ou clímax. Caim coloca um fi m na vida de seu rival em prol do “seu” direito de primogênito.

(4) Pós-ápice (do evento): Gn 4:9-10 introduz fatos descendentes fi nais da história. Somente aqui o silêncio de Caim é quebrado por palavras carregadas de ira, eludindo a si mesmo como o criminoso.

(5) Fechamento: Gn 4:11-15 contém um discurso de admoestação (moral) descrevendo a conseqüência do ato de Caim.

(6) Fim: A perícope de Gil 4:16 termina com a partida de Caim

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para longe da porta do Paraíso.

O discurso lingüístico da narrativa inteira indica que Gn 4:7 pode ser classifi cado como um parágrafo comportamental (pré-ápice).9 Como tal, Caim recebeu exortação para corrigir suas ações. Isto implica que ele, Caim, deveria voltar atrás e fazer como seu irmão mais novo, o que, aos olhos dele, era muito humilhante.

B. Nível de Oração

Agora, focando a atenção no verso sete, vários elementos do discurso lingüístico podem ser analisados ao nível de oração a fi m de lançar luz sobre a compreensão desta passagem: (1) Desde Cm 4:7 há um monólogo envolvendo dois personagens, ambos - o que fala e o ouvinte - estão vivendo o ocorrido, conseqüentemente alguns elementos da sintaxe podem ser considerados informados, ou, em outras palavras, conhecidos por ambos, i.e., o assunto e usualmente conhecido e o predicado é o que contém a nova informação desconhecida por um dos dois personagens.10 Em Gn 4:7 o substantivo taJ’äx; conhecido ou acessível para Yahweh e Caim. Este nome traz à lembrança de Caim o que tinha acabado de acontecer algum tempo atrás (seu descumprimento com o ritual do sacrifício prescrevido e a perda do seu direito de primogenitura), assim não existe necessidade para outra especifi cação do assunto.11 O particípio #bero introduz

9 O modelo tagmêmico defi ne oito tipos de texto nacionais: NARRATIVA (pro-fecia e história), PROCESSUAL(como-fazer e como-foi-feito), COMPORTAMENTAL (exortação e elogio) e EXPOSITÓRIO (ensaio futurista e papel científi co). Ver David Allan Dawson, Text-Linguistics and Biblical Hebrew, JSOT Supp. Series 177 (Sheffi eld: Sheffi eld Academic Press, 1994), 98.

10 Wallace Chafe, Discourse, Consciousness, and Time (Chicago: The University of Chicago Press, 1994), 6:85,108 e 145.

11 Jacob Neusner, Introduction to Rabbinic Literature (New York: Doubleday, 1994), 36: Um dispositivo lingüístico comum usado no Mishnah, que é um texto transmi-tido por tradição oral, referente à unidade cognitiva como afi rmação completa do pensa-mento é aquele “no qual o assunto da sentença está cortado do verbo, que se refere a seu próprio assunto, e não aquele com o qual a sentença começa, e.g., ele que faz assim e assim ..., isto [as coisas que fez) é tal e tal”. Neste caso Gn 4:7 pode ser traduzido como “uma oferta de purifi cação, ...isto jaz à porta [do Paraíso]”.

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algo do que possivelmente Caim não estava ciente ou algo que eleestava recusando-se a reconhecer. (2) Por defi nição, em uma oração condicional, a conjunção (protasis) introduza condição (ou negativa ou positiva) e a conseqüência (apodosis) a conseqüência da sua protasis.12 Em Gn 4:7 esta seqüência normal é quebrada. A protasis (negativa) é encontrada na abertura esperada, mas uma oração nominal (#b;ro taJ'x; xt;P,l;) é introduzida entre ela (a protasis, byjiyte al{ ~aiw>, “mas se você não agir corretamente”) e sua apodosis (AB-lv'm.Ti hT'a;w> Atq'WvT. ^yl,aew>, “então seu desejo será para você e você o dominará”). Funcionalmente, a quebra (a sentença nominal) implica num imperativo indireto.13 Em outras palavras, “se você não faz o que é certo, corrija--se com a oferta do sacrifício que está à porta do Paraíso, então seu desejo será para você e você o dominará novamente”. Assim, a apodosis é a conseqüência do imperativo indireto implícito ao invés da sua protasis, que seria o normal. (3) A respeito da própria estrutura interna da oração nominal, a frase preposicional (xt;P,l; “à porta”) ocupa a posição inicial pragmática. A formação desta frase preposicional pode indicar um componente contextualizante, ligando a sentença condicional inteira ao tópico de sua perícope, a saber, descumprimento com o dever do ritual “à porta do Paraíso” e como conseqüência a perda do seu direito de primogenitura.14 O substantivo feminino taJ'x;, porém, parece ser o enfoque da oração e não o componente contextualizante. Isto é devido ao fato de que taJ'x; implica numa correção do procedimento do ritual, que é o foco da oração condicional inteira (ou do pré-

12 Para outros tipos de orações condicionais, em relação ao discurso lingüístico, ver Niccacci, The Syntax of the Verb, 138.

13 Com relação à gramática pragmática e funcional, Buth diz que “uma afi rmação como ‘It’s could here’ poderia funcionar como um imperativo ‘Turn on the heater’”. Buth, 79.

14 “Na GF [Gramática Funcional] um tópico é um constituinte de uma sentença que recebeu uma formação especial (ou por ordem de palavras, uma partícula especial, ou entonação, dependendo da linguagem) a fi m de dar indício da perspectiva pretendida na relação da sentença com o contexto maior. Um tópico (Constituinte Contextualizante - C.C.) não precisa ser o assunto de uma oração, e um tópico (C.C.) está funcionalmente com enfoque tão distinto quanto o dia da noite. Sua proposta é ajudar o ouvinte a entender como e em qual base algumas orações estão agrupadas” (Buth, 84).

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ápice inteiro).

Estes elementos do discurso lingüístico mostram a concordância do verso sete com a narrativa inteira e fornecem um sentido sacrifi cal a taJ'x;, ao invés de um “demônio” ou “pecado” pronto para devorar sua vítima.15

2. Análise Gramatical e Sintática de Gn 4:7

Vários elementos gramaticais do verso sete e suas funções sintáticas são de extrema importância para a compreensão de Gn 4:7. Eles estão enumerados na introdução deste artigo.

A. Os Sufi xos Pronominais e Seus Antecedentes Comuns

O antecedente comum dos sufi xos pronominais acoplados a Atq'WvT.,”seu desejo”, e AB-lv'm.Ti, “você dominará sobre ele”, não é encontrado em Gn 4:7.16 Os sufi xos pronominais são masculinos e o único antecedente provável, omitido em algumas traduções da Bíblia Hebraica,17 é o substantivo

15 Se o foco deve ser traduzido como “pecado” ou “demônio”, então não se de-veria ajustar ao desenvolvimento do ocorrido que monta o clímax com o tópico do “não cumprimento com o ritual prescrevido e a perda de autoridade (direito de primogenitu-ra)”.

16 Todas as traduções foram feitas para o Inglês pelo autor, a não ser que a fonte seja indicada.

17 Veja por exemplo: NRSV, If you do well, vill you not be accepted? And if you do not do well, sin is lurking ar the door; its desire is for you, but you must master it”; NKJV Aif you do well, will you not be accepted? And if you do not do well, sin lies at the door. And its desire is for you, but you should ruler over it,” João Ferreira de Almeida, “Se bem fi zeres, não haverá aceitação para ti? E se não fi zeres bem, o pecado jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás”; L. Alonso Schökel and Juan Mateos “Por qué te enfureces y andas cabizbajo? Cierto, si obraras bien, seguro que andarías con la cabeza alta; pero si no obras bien, el pecado acecha a la puerta. Y aunque viene por ti, tú puedes dominarlo”; Cipriano de Valera “Como, no serás ensalzado si bien hicieres: y si no hicieres bien, no estarás echado por tu pecado à la puerta? Con todo esto, á ti será su deseo; y tú te enseñorearás de el.”

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taJ'x;.18 Este substantivo, porém, é feminino e conseqüentemente não concorda com os dois sufi xos pronominais masculinos.

O lugar mais provável para se encontrar o antecedente dos sufi xos pronominais é no contexto de Gn 4. Uma avaliação da primeira parte deste capítulo (vv. 1-7) mostra que Caim era o primogênito. Ele supostamente deveria ser o sacerdote, líder e o futuro patriarca, por assim dizer, do clã de Adão. Por não efetivar o ritual do sacrifício, ele pode ter perdido seu direito de primogenitura,19 causando nele ira para com seu irmão Abel. Portanto, o antecedente mais provável para ambos os sufi xos, o e seu, seria o único substantivo masculino que se encaixa no fl uxo literário do tópico de Gn 4:1-16, a saber, “Abel”.20

B. taJ'x;

O segundo problema lingüístico é a palavra ambígua taJ'x;, que tem sido traduzida como “pecado” em Gn 4:7. Ela tem, porém, dois signifi cados

18 Francis Brown, The New Brown-Driver-Briggs-Gesenius Hebrew and English Lexicon [BDB](Peabody, Massachusetts: Hendrickson, 1979), 308.

19 Gordon J. Venham, Genesis 1-15, in Word Biblical Commentary, vol. 1, ed. David A. Hubbard (Waco, Texas: Word Books, 1987): “Embora o fi lho mais velho tendo certos privilégios legais (ver, e.g., 25:32; 27:1-40; Dt 21:15-17), a narrativa bíblica re-gularmente mostra Deus escolhendo o irmão mais novo (e.g., Isaque e não Ismael; Jacó, não Esaú; Efraim, não Manassés; Davi, o mais novo de Jessé). Já neste verso, existem indicações de que Abel é o escolhido”, p. 102.

20 J. Oscar Boyd, The Octateuch in Ethiopic, in Bibliotheca Abessinica (Leiden: E. J. Brill, 1909), 10: Aversão Etiópica tem dois MSS, C e G, com uma palavra adicional para o texto, que não é encontrada na LXX ou no Texto Massorético. A palavra adicional é laehuka “de seu irmão” após megâehu “retorno dele”. Isto pode implicar que eles - os escribas do MSS C e G - compreendiam que os pronomes masculinos sufi xados se refe-rem a Abel; John W. Wevers, Notes on the Greek Text of Genesis, Septuagint and Cognate Studies n. 35 (Atlanta: Scholars Press,1993), 55: Weves diz, concernente ao texto da LXX (Wevers usa Gênesis para a LXX), que “o antecedente singular masculino (ou neutro) mais aceitável seria Abel. Se isto é o que Gn [LXX] quer dizer, então esta é uma promessa de reconciliação; Abel acuará e você (uma vez mais) exercerá autoridade sobre ele”.

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básicos, que são “pecado” e “pecado-purifi cação-sacrifício”.21 A aplicação de um ou de outro signifi cado dependerá exclusivamente do contexto da passagem específi ca onde a palavra está localizada.

Vários pontos no texto indicam que taJ'x; carrega um sentido de sacrifício. De acordo com Jacob Milgrom, taJ'x; deveria ser traduzida como “sacrifício-purifi cação” em vez de “sacrifício-pecado”, em passagens relacionadas com o ritual do sacrifício. Ele assevera que,

morfologicamente, aparece como um Pi’el derivado. E mais, sua forma verbal correspondente não é o Qal “pecar, errar” mas sempre o Pi’el (e.g. Lv 8:15), que não leva outro signifi cado além de “limpar, expurgar, desinfectar” (e.g. Ez 43:22, 26; Sl 51:9). Finalmente, as “águas de ḥattat”(Nm 8:7) servem exclusivamente para uma purifi cação (Nm 19:19; ver Ez 26:25). “Purifi cação-oferta” certamente é a tradução mais acurada. De fato, o breve comentário de Rashi (em Nm 19:19) é tudo o que é preciso para dizer que “ḥattat pertence literalmente à linguagem de purifi cação”.22

Milgrom discute sobre dois tipos de taJ'x; com relação ao ritual de purgação. Um é para impurezas em geral e outro para pecados por ignorância.23 Ele distingue esses dois tipos pelas seguintes características:

O ofensor inadvertido nunca é chamado de “impuro” e por isso não é requerido abluções. Neste caso, a fórmula conclusiva diz, ... o sacerdote fará o rito da expiação ... e este poderá ser perdoado (Lv 4:20, 26, 31, 35), enquanto que para a pessoa impura a fórmula diz, ... o sacerdote fará o rito da purifi cação ... e ele será purifi cado (12:6,8; 14:9,20). Assim o impuro precisa de purifi cação e o pecador precisa

21 Para os vários signifi cados de taJ’x;, ver David J. A. Clines; ed., The Dictionary of Classical Hebrew, vol. 3 (Sheffi eld: Sheffi eld Academic Press, 1996), 198.

22 Jacob Milgrom, Leviticus 1-16, in Anchor Bible vol. 3 (New York: Doubleday, 1991), 253; ver também idem, “A Sin-offering or Purifi cation-offering”, VT21 (1971): 237- 239.

23 Ibid., “Two Kinds of Haat”, VT26 (1976): 333-337.

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de perdão.24

O escritor desta narrativa (Gn 4:1-16) parece saber muito bem os regulamentos levíticos do ritual do sacrifícios. Portanto, ele poderia muito bem classifi car a falta de Caim como pecado por ignorância, embora em um estágio embrionário em relação ao elaborado sistema levítico. Conseqüentemente, Caim precisava de um taJ'x; para ser perdoado, como implícito no v. 7.

Uma evidência a mais de um signifi cado sacrifi cal é que o contexto da primeira parte do capítulo quatro (vv. 1-7) pinta uma cena de ritual indicando que o sentido mais provável de taJ'x; é “purifi cação-oferta”, ao invés de “pecado”. A LXX parece seguir esta linha de pensamento:

Já que o contexto geral é de oferecimento de sacrifícios, Gn [LXX] dá uma interpretação cultual na primeira parte do verso. Tomando taef. no sentido de alçar um sacrifício e byjiyte adverbialmente, o tradutor resulta em “se tu sacrifi casse corretamente”. Este contraste com overqw/j de. mh. die,lh|j “mas não deverias dividir corretamente”, i.e., dividir ou esquartejar o sacrifício. O autor de Gênesis considerou inaceitável diante de Deus o sacrifício de Caim, porque ele não tinha realizado o sacrifício corretamente.25

Assim, o verso sete apresenta a solução para o erro de Caim. Ele poderia oferecer um taJ'x; com o objetivo de obter perdão para sua falha, e então o desejo do seu irmão seria para ele e, novamente, teria a preeminência como primogênito.

C. #bero

O particípio masculino de #bero, signifi ca “jazendo, repousando,

descansando”.26 É uma evidência extra para considerar taJ'x; como 24 Milgrom, Leviticus 1-16, 256.25 Wevers, 55.26 BDB 818; Koehler, Ludwig, and Walter Baumgartner, Hebräisches und

Aramäisches Lexikon zum Alter Testament, ed. by Johann Jakob Stamm (Leiden: J. E.

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sacrifício. Ela é uma forma cognata da palavra acadiana “jazer, deitar”, da palavra ugarítica trbṣ- “estábulo, cocheira, aprisco de ovelhas”.27 Alguns eruditos, porém, têm identifi cado este particípio como o “croucher” ou “demônio”, baseado no particípio acadiano rābiṣu.28

No uso deste particípio no Pentateuco não cabe a interpretação como “demônio” (Gn 49:14, Ex 23:5, Dt 22:6). O particípio #bero é usado em relação à ovelha (Gn 29:2), leopardo e cabra vivendo juntos pacifi camente (Is 11:6), e usado como para referir-se fi guradamente para uma pessoa sendo comparada com uma ovelha (S1 23:2); ou ao povo como ovelha (Ez 34:14); em outro caso aplicado é a um rebanho ou aprisco de ovelhas (Is 13:20). Somente uma vez fora das trinta passagens no AT, esta palavra é usada no sentido de besta feroz (Gn 49:9). Isto pode signifi car que um sacrifício-purifi cação; quer um carneiro, cabra, ou algum animal macho for empregado para sacrifício estava jazendo ou descansando à porta do Paraíso. Assim, o gênero masculino do particípio #bero, se refere diretamente ao gênero do animal macho para o sacrifício-purifi cação ao invés do substantivo feminino taJ'x; (Lv 4:4; 4:23). Isto pode resolver o problema do discordância de gênero.

Brill,1990), 1102: Adie Sünde ist ein Lauerer, die Sünde lauret.27 Köehler-Baumgartner 1958, 871; DBD 918; Wolfram von Soden, Akkadisches

Hanwörterbuch, band 2 M-S (Wiesbadeen: Otto Harrassovitz, 1972), 933,935: Para robāu ele tem “sich largem,” e para rābiu “der lagert, lauert”; John Huehnergard, Ugaritic Vo-cabulary in Syllabic Transcription (Atlanta: Scholar Press, 1987), 176: Ele lança algumas dúvidas na palavra robāsu como originária de uma palavra Acadiana emprestada. Pam ele isto seria uma palavra nativa ugarítica (trb)sinniticando “estábulo” ou “aprisco de ovelhas” encontrada em alguns documentos legais e.g. É-tu

4: ta-ar-bá-sí u É-tu

4 GUDmeš

a-na ša-šu-ma “the stable and the cattle-pen are likewise his,” (PRU 3 91f.:17).28 Speiser, Genesis: “Aqui o termo rb‹‹ em hebraico signifi ca ‘expressar’. Um

substantivo, relacionado, que ao contrário, não é usado nesta linguagem, mas é bem co-nhecido cm Acadiano como rābiṣu, um termo usado como ‘demônio’. Estes seres foram descritos respectivamente como benigno e maligno, geralmente espreitando à entrada de uma construção para proteger ou ameaçar seus ocupantes”, p.33; Koehler-Baumgartner, 1958, 871; sobre a mesma opinião ver também Hermann Gunkel, Genesis, trad. Mark E. Biddle (Macon: Mercer University Press, 1997), 44.

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À Porta do Paraíso. Uma Interpretação Contextual de Gn 4:7 15

Além do mais, o verso sete apresenta uma repreensão e uma prescrição para a correção da falta de Caim na realização do ritual requerido. Ele deveria oferecer um animal macho “das primícias do seu rebanho das suas porções” como Abel fez (!h<bel.x,meW Anaco tArkoB.m i, Gn 4:4) e não “dos frutos da terra (hm'd'a]h' yrIP.m i, Gm 4:3).29

D. xt;P,l;

Para uma melhor compreensão de xt;P,l;, o capítulo quatro deve ser interpretado à luz da acontecimento inteiro do Paraíso (Gn 2:4-3:24). No relato bíblico antediluviano, o Paraíso é descrito como um santo lugar onde não pode se tolerar o pecado. Assim, após a desobediência, Adão e Eva foram expulsos do Jardim. Não obstante, Yahweh fez provisão para eles, preparando vestes de peles para cobrir sua nudez, implicando que animais foram abatidos (Gn 3:21).30 Isto pode ser uma indicação de um sacrifício, o primeiro relatado em Gênesis. Provavelmente este sacrifício foi oferecido à porta do Paraíso, porque a entrada do jardim é imaginada no enredo literário como a fronteira entre o mundo sem pecado e o mundo pecaminoso. Este era o lugar de separação entre Yahweh e suas criaturas, o lugar mais perto da árvore da vida onde às criaturas caídas era permitido se aproximar (Gn 3:21-24).

Note que estas são indicações no texto da presença do Paraíso na história de Gn 4. Parece que Gn 4:1-16 foi intencionalmente colocado entre duas citações do Paraíso. O capítulo três termina com o querubim guardando o caminho, a entrada do Paraíso, que leva até a árvore da vida.

29 Existe muitos exemplos no Velho Testamento nos quais a palavra taJ'x; é asso-ciada com um sacrifício animal; “touro da oferta pelo pecado” Lv 4:9, 20; 8:2, 14; 16:6, 11, 27; Ez 43:21; 45:22, novilho em Lv 9:8, bode of Lv 9:15; 10:16; 16:15, 27; Nm 18:22; 29:22,28,31, 34 38; Ez 43:25, bodes em 2 Cr 29:23; Ed 8:35. Ver David J. A. Clines, ed., The Dictionary 0f Classical Hebrew, vol. 3 (Sheffi eld: Sheffi eld Press, 1996), 199.

30 Laurence A. Turner, Announcements of Plot in Genesis, JSOT vol. 96 (Shef-fi eld: Sheffi eld Academic Press, 1990), 46.

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16 Hermenêutica 3, 2003

Enquanto Gn 4:16 menciona a direção que Caim tomou após ter matado seu irmão, baseada na localização geográfi ca do Paraíso “Caim saiu da presença do Senhor e viveu na terra de Node, ao leste do Éden” (4:16, NIV). Entre as duas citações do Paraíso, é introduzida a perícope de Caim e Abel, surgindo o lance de suspense a esta altura da narrativa; porque a desobediência de Caim tomou lugar à entrada do Paraíso.

Outra evidência da presença do Paraíso na perícope de Caim e Abel é que Gn 4:1-16 apresenta uma estrutura literária paralela a Gn 2:4-3:24:31

Caps. 2:24-25 (no Paraíso) 4:1-2 (à porta do Paraíso)

Caps. 3:1-22 (desobediência)4:3-15 (desobediência à porta do Paraíso)

Caps. 3: 23-24 (partida do Paraíso)

4:16 (partida para longe da porta do Paraíso)

Por esta razão, o Paraíso tem seu papel na história de Gn 4:1-16. Isto é claramente implícito pela menção do jardim do Éden como o limite literário que indica o começo e o fi m dos eventos narrados em Gn 3:24-4:1-16, e pela estrutura paralela entre as narrativas da desobediência de Adão e Eva no Paraíso e a desobediência de Caim à porta do Paraíso.

3. Pano de Fundo do AOP em Gn 4:1-16

Se o AT não foi escrito num vácuo cultural, o paralelo evidente entre

31 Wenham, Gênesis 1-15: Wenham reconhece esta estrutura literária paralela em seu comentário; ele afi rma “determinando o caráter das histórias no capítulo [4: 1 -16], uma comparação com Gn 2-3 é mais instrutiva. Estruturalmente, tematicamente, e ver-balmente existem paralelos íntimos entre a perícope de Caim e Abel (4:2b-16 e a história do jardim do Éden em Gn 2-3”, p. 99; A. J. Hauser, “Linguistic and Thematic Links between Gn 4:1-16 e Gn, 2-3,” Journal of me EvangelicalTheological Spciety (JETS)23 (1980):297-305: Hauser também reconhece a existência deste paralelo entre Gn 4:1-16 e Gn 2-3.

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À Porta do Paraíso. Uma Interpretação Contextual de Gn 4:7 17

o relato do Paraíso e o posterior Santuário Levítico se encaixa na religião e mitologia do AOP. Esta comparação é apresentada abaixo seguida pela sua relação com as crenças mitológicas e religião do AOP que são análogas às de Gn 1-3 (e 4). A única intenção desta seção é conscientizar o leitor da existência da analogia entre ambas tradições, ao invés de um estudo per se destas afi nidades.

A. Paraíso e Posterior Santuário Levítico

Não é minha intenção proporcionar um estudo exaustivo da analogia entre Paraíso e santuário levítico, pois isso já foi observado por muitos.32 Minha única preocupação é mostrar que esta analogia existiu, e que isto é importante para a compreensão da narrativa de Gn 4.

O vocabulário e a exposição dos fatos em Gn 4:1-7 indicam que o escritor estava ciente do ritual levítico. Evidências do texto ratifi cam esta afi rmação.

(a)A narrativa apresenta Caim e Abel como conhecedores dos requisitos do sacrifício: o que trazer, corno agir e onde fazê-lo.

(b) O vocabulário de Gn 4:1- 1 6 alude a um futuro ritual de culto.

32 The Book of Jubilees identifi ca o jardim do Éden com o lugar do templo, a casa de Deus (Jz 8:19); Gordon J. Wenham, “Sanctuary Symbolism in the Garden o Eden Story, em Studied Inscriptions from Before the Flood, Ancient Near Eastern, Literary, and Linguistic Approaches to Genesis 1-11, eds. Richard S. Hess and David Toshio Tsu-mura (Winona Lake: Eisenbrauns, 1994): De acordo com Wenham “o jardim do Éden não é visto pelo autor de Gênesis simplesmente como um lugar da terra cultivável da Mesopotâmia, mas um arquétipo do santuário, isto é, um lugar onde Deus habita e onde o homem deveria adorá-Lo. Muitas das características do jardim do Éden podem também ser encontradas em santuários posteriores, particularmente no Tabernáculo ou no Templo de Jerusalém. Estas comparações sugerem que o próprio jardim é tido como um tipo de santuário”, p. 399: Para posterior comparação do jardim com o santuário, veja Gary Anderson, “Celibacy or Consummation in the Garden? Refl ection on Early Jewish and Christian Interpretations of the Garden of Eden, HTR 82:2 (1989)121-148; and Phyllis Trible, God and the Rhetoric of Sexuality (Philadelphia: Fortress Press, 1978)144-164.

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18 Hermenêutica 3, 2003

Por exemplo, o verbo “trazer” (abeY"w:, ele trouxe, Gn 4:3) é usado em passagens cultuais para o oferecimento de sacrifícios (Lv 2:2, 8) a palavra hx'n>mi (Gn 4:3, 4), de acordo Milgrom, indica usualmente oferta de cereais (Lv 2:7),33 mas em alguns casos raros hx'n>m i pode se compor de animais (Gn 4:7; 33:10; I Sm 2:17,29); a nomenclatura “primícias/primogênito do seu rebanho” (Anaco tArkoB.mi, Gn 4:4) é também usada no contexto levítico (Lv 27:26, Nm 18:17); o fato de um sacrifício animal ser queimado no altar “e com sua gordura” (!h<bel.x,meW, Gn 4:4, e também em Lv 1:12; N, 18:17); as palavras “aceito, movido, perdoado” (taef., Gn 4:7) tem algo a ver com o processo inteiro de reconciliação entre as duas partes (Gn 50:17; Ex 32:32; Nm 14:18); porém, o fator levítico mais claro é a frase “à porta ...” (xt;P,l;, Gn 4:7). Uma expressão similar a xt;P,l;, é usada muitas vezes em Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio (sem a preposição l.) aludindo à porta do santuário, e ao local onde os sacrifícios eram oferecidos diante de Yahweh à entrada de Sua casa;34 e o uso da palavra taJ'x;: (Gn 4:7) como oferta de purifi cação.35

(c) Outra fi gura do santuário é a presença sobrenatural do querubim leste do Jardim (Gn 3:24), que está na mesma orientação geográfi ca da

33 Milgron, Leviticus 1-16,197.34 Em 44 passagens á associado com d[eAm lh,ao, “a tenda do encontro”. Veja por

exemplo: “Ex 29:4; 29:11,32,42:33:9,10:35:15;36:37;38:8,30;39:38; 40:5,6,12,28,29; Lv 1:3,5;3:2;4:4,7,18; 8:31;14:11, 23;15:14,29;16:7;17:4, 5,6, 9; 19:21;Nm 3:25,26; 4:25,26; 6:21, 13, 18; 10:3; 11:10; 12:55; 16:18, 19, 27; Dt 31:15 etc. para ver outros exemplos: Gerhard Lisowsky, Konkordonz zum Henräischen Alten Testament (Stuttgart: Dantsche Bibelgesellschaft, 1981,)1197.

35 Para posterior comparação entre o vocabulário de Gn 4 e Gn 2-3 ver: M. Eliade, Patterns in Comparative Religion (London: Sheed and Ward, 1958), 367-408; U. Cas-suto, A Commentary on the Book of Genesis (Jerusalem: Manger Press, 1961), 174; C. L. Meyers, The Tabernacle Menorah (Missoula: Scholars Press, 1976); D. J. A. Clines, “The Tree of Knowledge and the Law of Yahweh,” VT 24 (1974): 8-14: M. Weinfeld, Sabbath, Temple and the Enthronement of the Lord, The Problem of the Sitz in Leven of Gn 1:1-2:3, “Mélanges bibliques et orientaux en l’honneur de H. Cazelles” (Neukirchen: Neukirchener Verlag, 1981),501-512.

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À Porta do Paraíso. Uma Interpretação Contextual de Gn 4:7 19

entrada do tabernáculo levítico de “frente para o oriente” (Ex 38:13).36 Várias passagens em Êxodo indicam uma presença sobrenatural à porta do santuário. O autor ressalta que37 (Ex 33:9): “Quando Moisés entrava na tenda, a coluna de nuvem desceria e permaneceria à entrada da tenda, e o SENHOR falaria com Moisés”; Ex 33:10, “Quando o povo via a coluna de nuvem permanecendo à entrada da tenda, todo o povo levantava e se prostrava de joelhos, todos eles, à entrada das suas tendas”; Nm 12:5, “Quando o SENHOR desceu em uma coluna de nuvem, e permaneceu à entrada da tenda, e chamou Arão e Mídia, ambos vieram à frente” (NRSV).

A entrada do santuário era o lugar para onde o ofertante traria sua oferta de sacrifício diante do Senhor para ser colocada sobre o altar, que estava localizado na frente da porta da tenda do encontro.38 A. M. Cooper e B. R. Goldstein reconhecem os níveis progressivos da importância que a entrada da tenda do encontro (d[eAm lh,ao) tinha na história de Israel. Os dois primeiros níveis bastam para nosso desígnio no panorama pré-literário “a entrada da tenda do chefe da tribo é o local de teofania ocasional e das deidades ancestrais da tribo”; na era mosaica “a entrada para o mosaico

36 David Chilton, Paradise Restared (Tyler: Reconstruction Press, 1985), 29: Chilton também notou o paralelo existente entre os santuários vindouros e o Jardim do Éden com respeito à orientação da sua entrada.

37 Wenham, Sanctuary Symbolism: Acerca do querubim ele diz: “que o fato de a entrada do Jardim ser guardada por um querubim é outra indicação de que é visto como um santuário, pois kì rû bîm, kuribu acadiano, eram os tradicionais guardiões dos lugares santos no Antigo Oriente Próximo”, p. 401.

38 Milgrom, Leviticus 1-16, 147: “A palavra petaḥ da casa (14.38; Gn 19:11; Dt 22:21; 2 Sm 11:9) e o petaḥ do portão ( I Kgs 22:10; 2 Kgs 7:3; Ez 46:3) designam - nes-tes casos citados - a área imediatamente frontal à entrada (N.B. I Kgs 22:10, onde o petaḥ do portão é designado como o gōren “o chão batido”). Assim, o pátio inteiro, desde a sua entrada até a entrada da tenda era acessível para o pecador. Para lá ele era conduzido para a realização dos atos vitais corretos com o sacrifício do animal, em preparação para o ritual do altar feito pelo sacerdote.

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20 Hermenêutica 3, 2003

d[eAm lh,ao é o local para uma possível teofania”.39 Embora parcialmente aceite seus argumentos acerca do desenvolvimento da religião de Israel, eles não deveriam ter avaliado o estágio que precede a história de Israel como nação. Se for considerado a narrativa inteira do Pentateuco, então um estágio primitivo deve ser colocado antes do panorama pré-literário. Este estágio remoto seria encontrado no relato antediluviano onde a entrada para o Jardim era considerada como o local de uma eventual teofania.

Assim o vocabulário de Gênesis quatro e a narrativa descritiva dos eventos apóiam conclusivamente a existência de um paralelo entre a descrição do Paraíso e Santuários vindouros. Conseqüentemente, a porta do Paraíso era considerada, nas crônicas antediluvianas, como o lugar mais sagrado para o oferecimento de um sacrifício, a porta sagrada que levava ao lugar onde Yahweh habitava na Terra, e o centro de atividades religiosas descritas nesta comparação com a mitologia do AOP.

B. Fundo do Antigo Oriente Próximo

De acordo com o Épico sumério do Paraíso, a Suméria é descrita como uma região onde havia um jardim chamado kùr-dilmun que pode ser interpretado como “Montanha de Dilmun”, onde animais e homens viviam juntos pacifi camente.40 Os sumérios referiam-se à terra de Dilmun como o jardim do Paraíso e o centro das atividades religiosas da Suméria, de onde o deus-água Enki governou a humanidade e em cujo templo revelava seus segredos.41 Assim, na mitologia do AOP o Paraíso é associado com a casa

39 Alan M. Cooper and Bernard R. Goldtein, “At the Entrance to the Tent: More Cultic Resonances in Biblical Narrative, JBL 166(1997): 212.

40 James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (Princeton: Princeton University Press, 1969), 37-41.

41 S. Langdon, Sumerian Spic of Paradise, the Flood and the Fall of Man, The University Museum Publication of the Babylonian Section, vol. 10, n. 1 (Philadelphia: University Museum, 1915), 14: E. A. Speiser, “The Rivers of Paradise, in Oriental and Biblical Studies: Collected Writings of E. A. Speiser, ed. J. J. Finkelstein an M. Greenberg (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1967): Com relação ao lugar geográfi co do Paraíso, Speiser afi rma que: “o próprio texto bíblico contém duas pistas semíticas que apontam inconfundivelmente para a terra e tradição da Suméria. Uma é o limite geográfi -co do Éden, que difi cilmente pode ser separada da planície suméria. Acoita é o ēd of Gn

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À Porta do Paraíso. Uma Interpretação Contextual de Gn 4:7 21

ou santuário da divindade.

Uma analogia com esta crença é vista no AT no uso da expressão “Montanha de Deus”, que é encontrada em Is 2:3, “muitas pessoas virão e dirão, ‘Vinde, subamos à Montanha do SENHOR, à casa do Deus de Jacó...” (veja também 2 Sm 21:6; Mq 4:2; Zc 8:3, NRSV). A expressão “Montanha de Deus” é claramente análoga à casa de Yahweh, sua casa-templo, como a “Montanha de Dilmun” é a equivalente para a casa do deus-água, Enki.42 Portanto, em ambas tradições — AT e Épico sumério do Paraíso - os termos paraíso, montanha e santuário se referem às mesmas instituições respectivas, a saber, a casa das suas divindades. Assim, o enredo de Gênesis sobre o Paraíso encontra eco na religião e mitologia do AOP.

4. Conclusão

Por conseguinte, o panorama literário de Gn 4:7 é de um ambiente de um ritual que encontra paralelo na futura imagem do santuário e também na mitologia do AOP. O verso sete se encaixa perfeitamente no desenvolvimento literário da narrativa (Gn 4:1-16) e sua tradução contextual pode ser feita colocando juntas todas as peças do quebra-cabeça lingüístico acima: “... uma oferta de purifi cação [um sacrifício de animal macho] jaz à porta [do Paraíso], e para você será o seu [de Abel] desejo e você dominará [novamente como o primogênito] sobre ele [seu irmão]”.

2:6, o termo para a água da terra que irrigava a terra. Se alguém deriva a palavra, como W. F. Albright, de id ‘river,’ ou de a.de.a (AKK. edû) ‘terra de correntes,’ sua origem deveria ser suméria de algum modo. Próximo ao inicio do Golfo Pérsico jaz o celebrado Dilmun que, como Kramer mostrou, era a “terra do que vive”, um lugar onde não se conhecia o pecado nem a morte, uni jardim dos deuses - ou numa palavra, o Paraíso (p. 26).

42 Wenham, Sanctuary Symbolism: Concerning the verb hithallek A to walk to and from (Gn 3:8) Wenham afi rmou que: “o mesmo termo é usado para descrever a presença divina nos futuros santuários em Lv 26:12, Dt 23:15, 2 Sm 7:6-7. O Senhor caminhou no Éden como ele subseqüentemente caminhou no tabernáculo” (p. 401).

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QUEM SUCEDEU XERXES NO TRONO

DA PÉRSIA1

Willian H. Shea2

Resumo

Este artigo discute as evidências históricas para se considerar Dario, o fi lho mais velho de Xerxes e herdeiro do trono, com tendo sido o sucessor de seu pai por um curto período de tempo, até ser assassinado por um complô arquitetado por seu irmão mais novo, Artaxerxes, e um ofi cial da corte, Artabanus.

Abstract

This article discusses the historical evidences to be considered Darius, the oldest son of Xerxes and heir of the throne, having been its father’s successor for a short period of time, until to be murdered by a plot made by his youngcst brother, Artaxerxes, and an offi cial of the court, Artabanus.

Introdução

Uma interpretação padrão da história da antiga Pérsia em meados do quinto século a.C. é que Artaxerxes I seguiu seu pai no trono após o

1 Traduzido do original: “Who Succeeded Xerxes on the Throne of Pérsia?”, pub-licado no Journal of the Adventist Theological Society, 12/1 (Spring, 2001: 83-88).

2 Aposentado recentemente de uma posição assumida por muito tempo com dire-tor associado do Biblical Research Institute at the General Conference of the Seventh-day Adventists. Anteriormente, ensinou no Old Testament Department od the SDA Theologi-cal Seminary at Andrews University e foi um missionário na América Latina. Ele recebeu o título de M. D. pela Loma Linda University e um Ph.D. em Estudos do Oriente Próximo da University of Michigan. Shea tem produzido duzentos artigos e quatro livros, com aten-ção especial para o livro de Daniel. Um festschrift em sua honra foi publicado em 1997.

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assassinato de Xerxes. Esta interpretação tem sido desenvolvida à partir de escritores clássicos, de lista de reis, e das linhas de tempo em tabletes de contratos em Babilônia que seguem esta ordem. Desde que existem textos astronômicos helenistas que datam o assassinato de Xerxes no quinto mês persa-babilônico, ou seja agosto, a transição entre os dois reis têm sido datados no verão de 465 a.C., cerca de quarenta dias antes do ano novo judeu em 1° de Tishri.

Se os Judeus como Esdras, usaram um calendário de outono a outono e contaram o ano de ascensão, aqueles quarenta dias devem ter servido como o período da ascensão de Artaxerxes ou ano zero, e seu primeiro ano completo deve ter começado no 1° dia do mês de Tishri em 465 a.C. Isto deveria fazer também seu sétimo ano de reinado se estender do fi nal de 459 ao fi nal de 458, não do fi nal de 458 ao fi nal de 457, como intérpretes adventistas têm sustentado.

Mas este problema é complicado por dois fatores. Primeiro, houve um tumulto político após o assassinato de Xerxes. Segundo, inexistem fontes datadas para Artaxerxes no segundo semestre de 465 a.C.

As fontes de Artaxerxes podem ser reexaminadas como seguem:

1. Fontes persas. Antigos tabletes de Persépolis datam o terceiro e quarto mês do primeiro ano de Xerxes, isto é, Junho e Julho de 464 a.C.3

2. Fontes babilônicas. Antigos textos pertencentes ao período de Artaxerxes em Babilônia vieram de Nipur e Borsippa, e ambos datam do sétimo mês do seu primeiro ano: outubro de 464 a.C.4

3. Fortes egípcias. O problema é ainda mais difícil no Egito, onde um papiro aramaico escrito em 2 de janeiro de 464 a.C. está duplamente datado para o ano de ascensão de Artaxerxes e ano 21 de Xerxes.5 Neste

3 Parker and Dubbestern, Babylonian Cronology 626 B.C.-A.D. 75 (Providence: Brown U, 1956), 17.

4 Ibid., 18. S. H. Hom e L.11. Wood, 77w Chronology of Ezra 7 (Vvrashinton, D.C.: Review and Hera1c1), 135-138.

5 S. H. Horn e L.H. Wood, The Chronology of Ezra 7 (Washinton, D.C.: Review and Herald), 135-138.

Page 24: Filosofia e religiao

Quem Sucedeu Xerxes no Trono da Pérsia? 25

caso, o ano de reinado de Xerxes foi artifi cialmente prolongado após sua morte em agosto por causa de irregularidades na sua sucessão. Desde que Horn documentou que os judeus em Elefantina estavam usando um calendário de outono a outono, é interessante que a data do reinado de Artaxerxes é seu ano de ascensão, e não seu primeiro ano, como deveria ter sido o caso, se ele chegou ao trono antes de 1° de Tishri.

Esta datação incomum é confi rmada por Maneto, o cronologista egípcio do segundo século a.C., que coloca um sétimo mês de reinado para Artabanus entre Xerxes e Artaxerxes.6

4. Sumário das fontes cronológicas. Destas considerações das fontes egípcias, persas e babilônicas é evidente que não existem textos datados para a ascensão de Artaxerxes da última metade de 465 a.C., após o assassinato de Xerxes Antigos textos datados destas três áreas vieram do Egito, onde seu ano de ascensão é mencionado em Janeiro de 464 a.C. Este primeiro ano de reinado é então mencionado na Pérsia no verão de 464 a.C., e seu primeiro ano é também mencionado no outono de 464 em Babilônia

Existem duas explanações possíveis para este fenômeno. Primeiro, pode ser simplesmente um acidente de preservação (ou não-preservação). Após a repressão da revolta em Babilônia por Xerxes, textos desta região tomaram-se menos freqüentes.

Por outro lado, essa ausência pode ter-se originado do curso dos eventos políticos no Império Persa após o assassinato de Xerxes. Aqueles eventos requerem uma explicação mais detalhada.

Antigas Fontes dos Eventos do Final de 465 a.C.

Nossa principal fonte para os eventos desse período é Ctesius. Ele foi um médico grego que serviu na corte de Artaxerxes II, o neto de Artaxerxes I. Viveu na Pérsia, falava a língua, e tinha acesso aos registros

6 Neuffer, 68.

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26 Hermenêutica 3, 2003

ofi ciais do palácio. Sua narração está como segue.7

Com a ajuda de um camareiro do palácio, Artabanus, um poderoso

cortesão, assassinou Xerxes. Xerxes tinha um fi lho mais velho chamado

Dario. Artabanus acusou Dario do assassinato do seu pai a Artaxerxes, o

fi lho mais novo, e com seu apoio, ele executou Dario. Ele intentou fazer a

mesma coisa com Artaxerxes ... Informado por Megabyzus do complô de

Artabanus, Artaxerxes matou Artabanus, depois, três dos seus fi lhos foram

mortos numa batalha, após seu pai ser executado. A província de Bactria

revoltou-se então contra Artaxerxes, mas após duas vitórias em batalha, o

rei sufocou a revolta.8

Diodorus da Sicília (primeiro século a.C.) conta-nos praticamente

a mesma história: Xerxes foi assassinado por Artabanus, que então

responsabilizou Dario pelo assassinato e ofereceu a ajuda da guarda do rei

para Artaxerxes punir seu irmão. Após matar o irmão mais velho, Artabanus

colocou seus olhos no irmão mais jovem quando “ele viu que seu plano

estava prosperando”. Artaxerxes, porém, o puniu com um golpe fatal e

“tomou o controle do reinado”. Diodorus data estes eventos de acordo com

o sistema romano na segunda metade do ano 464 a.C.9

O terceiro historiador clássico que se refere a esses dois eventos

é Trogus Pompeius (1° séc. a.C. a 1° séc. d.C.). Ele diz que Artaxerxes

ouvindo da traição de Artabanus, ordenou que suas tropas saíssem para uma

revista. O jovem rei pediu para Artabanus trocar de roupa com ele nesta

ocasião, e ele o fez, e quando estava desarmado, Artaxerxes o apunhalou

para a morte.10

Em grande medida, Diodorus e Trogus Pompeius devem suas

narrações à Ctesius ou fontes similares; mas eles também adicionam seus

próprios detalhes.

7 Reviewed by Neuffer, 64-65.8 Ctesius, Persica (resumo por Photius, Brussels, 1947), 33-35.9 Diodorus Siculus, xi.69.1-6, xi.71.1 (Leob Classical Library), IV, 304-307, 308-309.10 Transmitido por Sculus Frontinus, History of World Extracted From Trogus

Pompeius, xiii.1 em John Selby Watson, trans., Justin Cornelius Nepos, e Entropius (Lon-

don, 1876), 37-38. Eu devo as duas referências anteriores a Neuffer, 64-66.

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Quem Sucedeu Xerxes no Trono da Pérsia? 27

Propalação Tendenciosa da Nobreza Persa

Deveria ser notado cuidadosamente que Ctesius não era uma testemunha ocular daqueles eventos, mas ouviu como relatado a ele duas gerações depois, fi ltrado através da família de Artaxerxes. Eles não eram observadores imparciais, eles queriam fazer Artaxerxes ser tão bem visto quanto possível e Artabanus e Dario serem vistos tão maus quanto possível. Isto era um padrão técnico empregado por muitos reis antigos, incluindo persas. Note por exemplo, a justifi cação de Dario I na inscrição de Behistun por dominar o reino persa após a morte de Cambyses, e a justifi cação de Ciro para a conquista da Babilônia em sua inscrição num cilindro de argila.11 Assim, enquanto há indubitavelmente, um cerne de uma verdade histórica naquilo em que cada um desses escritores relata, seus registros tem sido colhidos através de uma visão favorável a Artaxerxes. Precisamos descer a um nível mais profundo do acontecimento para detectar o que realmente aconteceu.

Maiores discrepâncias

As três fontes concordam que Artabanus foi quem assassinou Xerxes. Isto é o ponto de partida dos eventos descritos acima. A questão então é: quem ocupou o trono após a morte de Xerxes? A resposta é óbvia: foi o primogênito Dario que era o príncipe herdeiro do trono. Artaxerxes era o fi lho mais novo e não estava em linha sucessória. As fontes de Ctesius procuram minimizar este ponto, mas na realidade este é o curso que eventos naturalmente teriam tomado e certamente tomaram. As fontes de Ctesius não queriam admitir que Dario tornou-se rei antes de Artaxerxes, porque teriam que refl etir negativamente sobre Artaxerxes.

O fato seguinte foi que Artabanus acusou o primogênito do assassinato do pai deles ante o fi lho mais novo, o que ele, Artabanus, realmente havia

11 Esta propensão para propaganda entre os primeiros reis persas tem sido vista recente e acuradamente por S. Doutas Whaterhouse em seu excelente artigo “Why Was Darius the Mede Expunged of History?” em To Understand the Scriptures, ed. D. Merling (Berrien Springs, MI: Horn Archaelogical Museun of Andrews U, 1997), 173-190.

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feito. A posição dos dois fi lhos deveria ser cuidadosamente notada. Dario era o primogênito que tinha ocupado o trono. Artaxerxes era o fi lho mais novo cujo status como príncipe não tinha ainda mudado.

Isto não era o caso de acusar um irmão contra outro irmão. Isto era um caso de acusação ao rei vigente por seu irmão mais novo, que era ainda um príncipe. O que estava realmente fazendo aqui era um complô para assassinar o rei então governante. A trama foi urdida por Artabanus e prontamente aceita por Artaxerxes, pois assim ele pôde ver como tomar o reinado do seu irmão. Isso não foi uma prática legítima do reinado por Artaxerxes, mas uma traição à qual deliberadamente anuiu com a intenção de tomar o reinado do seu irmão. Dario, não Artaxerxes, era o legítimo rei que veio ao trono após Xerxes.

Do ponto de vista de Artabanus, a trama falhou. Ele tinha matado Xerxes. Ele tinha matado Dario. Ele planejou assassinar Artaxerxes. Artaxerxes pôde ver a direção em que os eventos estavam indo. Ele era somente um obstáculo que restava para Artabanus colocar a si mesmo no trono, o que claramente era o intento de Artabanus. Nesta batalha de matar ou ser morto, Artaxerxes saiu vitorioso.

Um Novo Rei Dario

Sabe-se que, os seguintes reis de nome Dario são conhecidos que ocuparam o trono do Império Persa.

1. Dario I Hystaspes (522-486 a.C.);

2. Dario II Northus (423-404 a.C.) e

3. Dario III Codomanus (336-330 a.C.).

Não incluindo Dario, o Medo, do livro de Daniel, agora precisamos adicionar um quarto à linha dos governantes persas: Dario, o fi lho de Xerxes. Desde que os Darios II e III governaram depois dele, suas designações precisam ser mudadas para III e IV.

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Quem Sucedeu Xerxes no Trono da Pérsia? 29

Quanto tempo este fi lho mais velho de Xerxes governou após a morte do seu pai em agosto de 464? Dois ou três meses seria uma proveitosa estimativa. Ele certamente governou menos de cinco meses, desde que Artaxerxes foi reconhecido rei do Egito em Janeiro de 464 a.C. Se ele não viveu ao tempo de ultrapassar o ano novo em 464 a.C., ele deve ter tido somente um ano de ascensão pelo reconhecimento persa-babilônico e não viveu para completar o primeiro ano de reinado.

Pode ser objetado que nós não temos evidência escriturística direta do seu reinado. É baseado somente numa inferência das deduções de Celsius, Deodoro, e Trogus Pompeius. Mas o mesmo também é também verdade de algum período de ascensão de Artaxerxes I, no fi nal de em 465 a.C. A dedução dos escritores clássicos é também mais direta para Dario do que para Artaxerxes, porque os autores reconhecem Dario como o primogênito de Xerxes e herdeiro do trono. Uma vez que ele viveu depois da morte de Xerxes, até ser assassinado por Artabanus, ele, e não Artaxerxes, deveria ter sido rei por pelo menos uma parte do segundo semestre de 465 a.C.

Evidências Potenciais de Documentos em Tabletes

Uma objeção notada aqui é que não existe, no presente, evidências escriturísticas contemporâneas de Dario, o fi lho de Xerxes, como rei. Pode ter existido alguma, mas deve ter sido suprimida por Artabanus ou Artaxerxes, ou ambos. Devido ao fato de ter governado por um breve tempo, não deve ter sido difícil esconder aquelas pistas. Por outro lado, evidências desse reinado podem existir entre os tabletes de contratos da Babilônia. Eles podem ser classifi cados do seguinte modo Aqueles documentos comuns de negócios não fazem distinção entre os Darios neles mencionados: Dario I,II ou III; Hystaspes, Northus ou Codomanus. Estas designações adicionais não eram usadas nas linhas daqueles tabletes, eles somente mencionam o dia, o mês, o ano de reinado com o nome Dario e o título real “Reis da Terras”.

Tabletes do reinado de Dario III, o rei conquistado por Alexandre,

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30 Hermenêutica 3, 2003

virtualmente não existem. É trabalho do historiador, portanto, classifi car os tabletes que informam de Dario “Rei das Terras”, para ver se eles pertencem a Dario I, II, ou agora, ao fi lho de Xerxes. É necessário somente checar o ano de ascensão para achar este Dario adicional, pois ele foi assassinado antes de seu primeiro ano de reinado. Várias coleções desses tabletes e seus catálogos têm sido publicados. Eu listei uma poção deles nos dois primeiros estudos.12

Uma vez que uma apropriada datação dos tabletes é feita, eles precisam ser atribuídas ao Dario certo por um estudo dos nomes pessoais no texto. À partir dos anos de ascensão desses três governantes nomeados Dario que foram, respectivamente, 522,465 e423 a.C., não deve haver signifi cante sobreposição entre o pessoal deles, e eles podem estar relacionados a pessoas em outros textos daqueles tempos.

Pode ser que mesmo seguindo este procedimento nenhum texto correspondente a Dario, o fi lho de Xerxes, seja encontrado, porque este curso de eventos pode ter sido conhecido apenas na Pérsia e a narração deles pode não ter alcançado Babilônia. Por outro lado, a evidência pode estar ali, mas ainda não foi reconhecida. Fora os tabletes da Fortaleza de Persépolis, textos da Pérsia Antiga não são tão comuns quanto são os da Babilônia.

Sumário

O modo preferível para ler Ctesius, Diodorus, e Trogus Pompeius, é tomar Dario, o primogênito e herdeiro do trono de Xerxes, como tendo realmente ascendido à posição de rei após a morte de seu pai. Contudo, Seu breve reinado foi interrompido por um complô urdido contra ele por Artabanus e seu irmão mais novo, Artaxerxes. Na luta pelo poder após a morte de Dario, Artaxerxes venceu e Artabanus foi derrotado. Artaxerxes, um jovem rei, ocupou o trono pelos próximos quarenta anos, até 423 a.C.

12 “An Unrecognized Vassal King of Babylon in the Achaemenid Period”, partes I e II, AUSS9 (1971):51-67,100-128.

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Quanto tempo Dado reinou entre Xerxes e Artaxerxes? Sem dúvida, não por muito tempo, mas se seu breve reinado durou só tão pouco quanto seis semanas, em agosto ou setembro, isto deveria colocar a ascensão de Artaxerxes após 1° de Tishri de acordo com o calendário de outono a outono. De acordo com este tipo de cálculo, seu primeiro ano completo de reinado deveria ter se estendido do fi nal de 464 ao fi nal de 463, e seu sétimo ano do fi nal de 458 ao fi nal de 457. Qualquer que seja o curso preciso que ocorreu durante este tempo problemático, é razoável estimar o curso cronológico descrito aqui. A falta de documentação entre os meses de 465 a.C. pode não ser justamente um acidente de (não-) descoberta, mas pode ter ocorrido por causa da supressão real feita por Artaxerxes. Este foi o ponto de vista que Ctesius e outros escritores clássicos receberam daquelas histórias.

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MALAQUIAS 3:10 NO CONTEXTO BÍBLICO E NOS ESCRITOS DE ELLEN G. WHITE

Demóstenes Neves da Silva1

Resumo

A expressão “casa do tesouro”, em Malaquias 3:8-10, dá margem para, no mínimo, duas interpretações: seria uma referência à congregação local ou a uma instituição mais ampla? Para o leitor consciente de suas responsabilidades para com Deus, com relação ao uso do dízimo, é importante compreender qual das duas propostas está mais de acordo com o contexto da passagem bíblica em questão. Neste trabalho, pretende-se analisar qual a idéia que se encontra por trás da referida expressão no Antigo Testamento, como também qual a aplicação da frase nos escritos de Ellen G. White - pioneira e co-fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Abstract

The expression “storehouse”, in Malachi 3:8-10, gives margin for, in the minimum, two interpretations: it would be a reference to the local congregation or a major institution? For the conscious reader of his responsibilities to God regarding the use of the tithe, it is important to understand which is more faithful with the context of the biblical passage of the two proposals. In this article, we intend to analyze which idea is behind the referred expression in the Old Testament, as well as which application of the sentence in the writings of Ellen G. White - pioneer and co-founder of the Seventh Day Adventist Church.

Introdução

Neste artigo, analisaremos três aspectos que consideramos ligados à

1 Demóstenes Neves da Silva, Mestre em Teologia, é atualmente professor do SALT/ IAENE

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expressão “casa do tesouro”.2 O primeiro deles é o conceito de organização religiosa que está por trás dessa expressão; o segundo é a defi nição de quem custodiava e administrava o tesouro da casa e, fi nalmente, o terceiro, como se aplicava esse tesouro.

Aceitando-se que o dízimo e as ofertas, como naqueles tempos, devam ser devolvidas pelo adorador à igreja hoje, conforme Malaquias 3:10,3 e, considerando o seu contexto e o do pensamento pioneiro de E. G. White, este artigo pretende demonstrar, onde devem fi nalmente ser custodiados, quem deve administrar e em que devem ser aplicados os dízimos e as ofertas.

O Conceito de Organização

Em Israel

O ministério de Malaquias está localizado por volta do ano 432-424 AC. Seu livro descreve os problemas de infi delidade entre os israelitas para com os serviços da casa de Deus. Contemporâneo de Neemias (444 AC), e tendo desenvolvido seu ministério durante ou imediatamente após este, Malaquias, evidentemente, está se referindo à “casa do tesouro” como deixada após a organização e reforma do sistema do Templo, feita por Neemias, logo depois do retomo do Cativeiro. É para esse sistema restaurado por Neemias (Ne 12:44-47; 13:10-13), que o pesquisador deve se voltar para entender para onde, segundo o profeta, deveriam ser trazidos

2 HARRIS, R. Laird, Gleason L. Archer & Bruce K. Waltke. Dicionário Interna-

cional de Teologia do Antigo Testamento. SP, Vida Nova, 1998. 113. A expressão usada para defi nir “casa do tesouro” em Malaquias 3:10 é “beth ôtsar” e signifi ca “tesouro, estoque, depósito”, aparece cerca de 80 vezes no AT e literalmente refere-se ao tesouro do rei, do templo ou mesmo um tesouro particular. Outras nove palavras são utilizadas no AT além de ôtsar.

3 BARKER, Kenneth L. and John Kohlenberger III. NVI Bible Commentary. Vol I. Grand Rapids, Michigan, Zondervan Publishing House, 1994, 1547-1548. “Malaquias refere-se ao décimo de toda a produção bem como dos rebanhos e gado, que pertenciam ao Senhor e foi por Ele destinado para o serviço dos levitas.”

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Malaquias 3:10 no Contexto Bíbllico... 35

os dízimos e as ofertas.

É importante lembrar que os livros de I, II Crônicas, Esdras e Neemias formam um todo, evidenciando uma obra e um autor comum. Assim, Malaquias 3:10 poderá ser melhor compreendido através do contexto da “casa do tesouro” (ôtsar) apresentado principalmente nesses livros e revelando que eles lidavam com a mesma situação:4

É possível que a desobediência do povo induziu algumas das queixas dos sacerdotes às quais Malaquias já havia se referido. Neemias lida com o mesmo problema (Ne 10:32-39; 13:10). Se Malaquias é anterior aos eventos de Neemias 13, talvez as palavras de Malaquias no verso 8 tenham sido atendidas.5 (grifo suprido)

Naquele sistema organizado por Neemias, segundo as informações bíblicas, acontecia o seguinte:

1. A distribuição era centralizada6 e controlada a partir de Jerusalém

4 Para uma abordagem da localização histórica do livro de Malaquias e sua relação com I e II Crônicas, Esdras e Neemias veja Seventh-Day Adventist Bible Commentary. Vol. IV. Whashington DC, Review and Herald Publishing Association, 1976. 1121. Tam-bém Vol. III,73-79.

5 BARKER, Kenneth L and John Kohlenberger III. NIV Bible Commentary. Vol I., 1547-1548. Que Malaquias e Neemias lidavam com o mesmo problema também concor-da: SMITH, Ralph L. in Wrod Biblical Commentary. Vol. 32. Waco, Texas, Word Books Publishers, 1984. 333.

6 VANGEMEREN, Willem A., ed. New International Dictionary of Old Testa-

ment Theology and Exegesis (NIDOTTE). Vol.1. Grand Rapids, Michigan, Sodervan Publishing House, 1997, 448. “ôtsar” [tesouro] “Está especialmente em conexão com o segundo templo para o qual o povo era exortado a ‘trazer todo o dizimo à casa do tesouro’(Ml 3:10). Para outras referências sobre o colocação dos dízimos nos depósitos do Templo, veja Neemias 10:37-40; 12:44; 13:12-13. Neemias usa três palavras hebraicas para depósitos: liska (10:37-39) conf. II Cr 31:11 ;Niska (12:44); e Otsera (13:12, 13).” O dízimo aqui referido é o destinado aos levitas conforme Nm 18, diferente do “segundo dízimo” mencionado em Dt 12, 14, 26 que era retido pelo adorador e usado para festas religiosas e para atendimento especial aos pobres e os que não tinham “herança na terra” como era o caso do estrangeiro e dos levitas (uma referência à partilha dos territórios das tribos). Sobre este segundo dízimo veja Demóstenes, “Origem e Propósito do Dízimo”, Revista Teológica do SAL/IAENE, vol n ° 2 Julho-Dezembro de 1997.

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36 Hermenêutica 3, 2003

e de lá os recursos eram repartidos por todos os levitas do país (2Cr 31:4-6; Ne 12:44).

2. Uma equipe era encarregada da distribuição para Jerusalém e outra equipe para o resto do país (Ne. 13:13).

3. Havia câmaras para nelas “ajuntarem das cidades, as porções designadas pela lei para os sacerdotes e para os levitas” (Ne 12:44).

4. Havia cuidadosa separação entre os dízimos e as ofertas (12:44)

5. Havia tesoureiros específi cos para cada depósito como nos dias de Ezequias (2Cr 31:19).

6. Os encarregados eram representantes dos próprios levitas,7 assim não seriam vítima do jogo de interesses alheios à função. Se eram dignos de serem ministros do santuário também o seriam para administrar os fundos para seu próprio sustento “com fi delidade” (2Cr 31:12-15)

7. Havia necessidade de evitar que os levitas fugissem para atividades seculares. Deviam dedicar-se especialmente ao ministério (Ne 13:10-11).

8. Como os levitas eram assistidos conforme o registro de suas famílias, mulheres e crianças (2Cr 31:18, 19), a assistência fi nanceira e material não considerava como prioridade os lugares que eram os maiores doadores, para que ali fi cassem retidos os dízimos, mas as necessidades de manutenção dos indivíduos e da obra em Israel como um todo. Assim que, todos os levitas recebiam sua manutenção de acordo com as necessidades de suas famílias (2Cr 31:17-19).

7 VANGEMEREN, Willem A., ed. (NIDOTTE). Vol.I, 448. “Há apenas uma ima-ginária contradição entre vasos como Neemias 10:38-39 que declaram que os levitas de-vem trazer os dízimos aos depósitos e os versos 12:44; 13:12 e Malaquias 3:10, os quais falam dos leigos trazendo os dízimos aos depósitos. É o povo quem faz as contribuições enquanto o pessoal do templo é quem as transporta para dentro das câmaras, uma prática apoiada pela tradição rabínica.” (grifo suprido)

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Malaquias 3:10 no Contexto Bíbllico... 37

9. O “tesouro” de Deus envolvia não somente dízimo mas também ofertas (2Cr 31:12; Ml 3:8). Estes eram entregues em produtos ou dinheiro conforme o doador.8

O mesmo padrão e outros detalhes adicionais podem se encontrados nas grandes reformas espirituais do povo de Deus sob Joás (835-796 AC); em 2Cr 24:1-14 e 2Rs 12:4,5; sob Ezequias (729-686 AC), 2Cr 31:2-21; e no tempo de Josias (640-609 AC), 2Rs 22:1-7 e 2Cr 24:8-10 e 31:14. Em todas elas as construções e reformas do Templo eram feitas exclusivamente com outras ofertas e jamais com os dízimos.

Pode-se depreender dos registros bíblicos que essa unifi cação do sistema gerido pelos próprios levitas: 1) proporcionava igualdade de tratamento e proporcionalidade na manutenção do ministério; 2) concedia uma visão global unifi cada gerando um senso nacional de missão e unidade entre os sacerdotes; 3) Procurava evitar ambições fi nanceiras na liderança espiritual da igreja israelita.

Portanto, na Bíblia, os dízimos e ofertas dos sacerdotes não fi cavam

8 Não há motivo para se entender que os dízimos e ofertas eram devolvidos apenas em produtos devido à cultura agro-pastoril no antigo Israel. Basta lembrar que as moedas ou seu equivalente antecedem o cativeiro egípcio e que Moisés já recomendava que o imposto do templo fosse pago com um “shekel” que era uma “moeda de prata pura” que cada um pagava para as despesas de manutenção do templo e para sacrifícios para perdão do povo” (Conf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. In Novo dicionário brasi-

leiro da língua portuguesa. RJ, Nova Fronteira, 1986. 1582; também Hugo Schlesinger. In Pequeno vocabulário do judaísmo. SP, Paulinas, 1987 (verbete “shekel”). Referências a dinheiro são comuns ao longo da Bíblia e mesmo nos dias de Joás (2Cr 24:1-14) e em diante uma caixa foi posta para recolher ofertas em dinheiro. O dinheiro era comum em Israel nos tempos de Neemias e Malaquias havendo, inclusive, referências relacionadas ao tesouro do templo no NT entre as quais está a da famosa moedinha da viúva, ofertada em contraste com as grandes somas de dinheiro lançadas no tesouro pelos ricos. Outro exemplo são as moedas de prata da traição de Jesus que não puderam ser postas no “te-souro”. (Mc 12:41,43; Lc 21:1; Jo 8:20; Mt 27:6)

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em cada vila ou cidade, ou na posse do próprio adorador.9 Os relatos bíblicos disponíveis indicam que tanto no período pré como pós-exílio, sempre que o sistema de manutenção dos sacerdotes foi reformado, sob direção profética, a casa do tesouro foi uma tesouraria centralizada em Jerusalém e administrada pelos próprios levitas. Para esta “casa do tesouro” Malaquias apelava para que fossem conduzidas todas as dádivas. A partir desse centro administrativo todos os levitas recebiam auxilio conforme o registro de “suas famílias” (2Cr 31:17-19).

A casa do tesouro, portanto, segundo os relatos das Escrituras, é um centro organizado c estruturado como sede da ação religiosa em Israel. Um centro de unidade dentro de um conceito amplo de organização religiosa no qual não se concebe ações independentes ou separadas. Tudo converge para o templo e dele para as partes. A obra é entendida com um todo unido.

Em E. G White

Nos escritos de E. G. White a expressão é usada para as tesourarias locais, de instituições e das associações, uniões e Associação Geral, indistintamente. Adicionado a isso está, em seus ensinos, a idéia de que a obra é uma unidade e não uma dispersão congregacional. A unidade das igrejas em associações é por ela reconhecida. Essas associações, em vários níveis, são consideradas as “responsáveis” pela promoção e gerência dos dízimos, através dos presidentes eleitos pelas igrejas. Segue-se algumas dessas mensagens que reproduzem os mesmos princípios bíblicos já apresentados anteriormente. Os anos das declarações ao fi nal de algumas declarações ajudarão a perceber a persistência desses princípios ao longo dos anos através dos quais ela escreveu:

1. A obra de Deus deve ser considerada como uma unidade mundial

9 A aplicação do texto de Malaquias na descrição histórica feita por E. G. White é de que os dízimos e ofertas deveriam ser dados com “Interesse altruística na edifi cação de Sua obra em todas as partes do mundo” (WHITE, E. G. Profetas e Reis. 708).

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Malaquias 3:10 no Contexto Bíbllico... 39

e não como unidades “independentes.”10

▪ “Deve-se considerar a obra em todo o mundo.”11 “Sua obra é um grande todo”,12 que deve estar unido em todas as frentes com as escolas, ministério e o trabalho médico.13 Deus clama por uma ação unida.14 Uma frente unida contra o inimigo,15 o mundo16 e para a vitória).17

10 Alguns têm apresentado a idéia de que, ao aproximarmo-nos do fi m do tempo, cada fi lho de Deus agirá independentemente de qualquer organização religiosa. Mas fui instruída pelo Senhor de que nesta obra não há isso de cada qual ser independente. WHI-TE, E. G. Obreiros Evangélicos, 487.

11 Ibid., 454. “Deve-se considerar a obra em todo o mundo. Novos campos têm de ser penetrados. Lembrem-se nossos irmãos de que se exigem muitos meios e muito trabalho árduo para levar a obra avante em novos campos.”

12 Ibid., 456. (grifo suprido). “O Senhor não faz acepção de pessoas nem de luga-res. Sua obra é um grande todo.”

13 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, Vol. 9, 169, I 70. “...O Senhor tem falado a mim. Ele fala quando eu digo que os obreiros engajados nas frentes educacionais, nas frentes do ministério e no ministério médico — missionário, devem permanecer como uma unidade, todos trabalhando sob a supervisão de Deus”.

14 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 399,27 “O Senhor exige uma ação unida. Devem-se fazer esforços bem organizados para conseguir obreiros”... “Ninguém acaricie o pensamento de que podemos dispensar a organização. A construção dessa es-trutura custou-nos muito estudo e orações, em que rogávamos, sabedoria e as quais sabe-mos que Deus ouviu”.

15 WHITE, E. G. Evangelismo, 693. “O povo de Deus unir-se-á, apresentando frente unida ao inimigo. ... O amor de Cristo, o amor de nossos irmãos, testifi cará ao mundo que estivemos com Jesus e dEle aprendemos. Então, a mensagem do terceiro anjo se avolumará num alto clamor, e a Terra inteira será iluminada com a glória do Senhor”.

16 WHITE, E. G. Atos dos Apóstolos, 91 “Somente enquanto estivessem unidos com Cristo podiam os discípulos esperar possuir o poder acompanhante do Espírito Santo e a cooperação dos anjos do Céu. Com o auxílio desses divinos instrumentos, apresen-tariam ao mundo uma frente unida, e seriam vencedores no confl ito que eram forçados a manter incessantemente contra os poderes das trevas”.

17 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 505 “Quão importante é, então, que nos guardemos cuidadosamente de tudo que possa desanimar ou enfraquecer a infl uên-cia de uma alma que está fazendo uma obra que Deus quer que seja feita! Há vitórias a ganhar, se apresentarmos uma frente unida e individualmente buscarmos ao Senhor para obter força e orientação”.

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40 Hermenêutica 3, 2003

Ou seja, a igreja deve ser um “grande organismo”.18 Esse organismo está estruturado em associações, estaduais que houve necessidade de serem estabelecidas19 e precisam ter meios para sustentar novos campos.20 Essas associações existem para unir-nos e revelar o poder de Deus produzindo frutos.21

▪ “À medida que nossos membros foram aumentando em número, fi cou evidente que sem alguma forma de organização haveria grande confusão e a obra não se realizaria com êxito. A organização era indispensável para proporcionar o sustento do ministério, para dirigir a obra a novos territórios, para proteger tanto a igreja como os ministros dos membros indignos, para o registro das propriedades da igreja, para a publicação da verdade por meio da imprensa, e para muitos outros objetivos.”22

▪ A participação de cada membro, nas diversas instâncias, desde a igreja local passando pelas associações, uniões e associação geral é o plano de Deus.23

18 WHITE, E.G. Testimonies for the Church, Vol. 8, 174. “Todos devem ser unidos como parte de um grande organismo. A igreja do Senhor é composta de agentes traba-lhadores, que derivam de Seu poder para agir partindo do Autor e Consumador de nossa fé”.

19 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, Vol. 1, 715. “... mesmo ainda após este passo, havia permanecido com alguns, uma relutância em adentrar com relação a organização da Igreja, e o assunto continuou sendo discutido. Contudo com a extenção da maioria favorecendo a organização, o movimento procedeu primeiro pela organização das igrejas , então a associação estadual, e fi nalmente em 1863, a Conferência Geral”.

20 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, Vol. 9, 76 “Os presidentes de nossas Associações e outros em posição de responsabilidades têm um dever a cumprir em seus negócios; que os diferentes ramos de nossa obra precisam receber igual atenção”

21 WHITE, E. G. Life and Sketshes, 387. “As Associações que são formadas são para apegar-se poderosamente no Senhor; através delas Ele pode revelar o seu poder fa-zendo deles excelentes representações na produção de frutos”.

22 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 2623 WHITE, E. G. Testimonies for the Church Vol. 8, 236, 237. “Deus sabe o futuro.

Ele é o único a quem nós devemos nos guiar. A divisão da conferência Geral em Distritos e Associações - Uniões foi Plano de Deus”.

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Malaquias 3:10 no Contexto Bíbllico... 41

▪ A organização da igreja em uniões foi um arranjo de Deus.24 E através

delas Deus seria acessível para realizar a Sua obra.25

A obra é uma “causa”, incluindo “nossas várias instituições” e os

“numerosos outros departamentos” (1886).26

▪ Escolas, instituições e igrejas são parte desse todo que é a igreja

(1899).27

2. O tesouro, segundo ela, envolve “dízimos e ofertas”. O desejo de

se apropriar do dízimo para uso não recomendado é o resultado de não

haver igual fi delidade nas ofertas.28

3. Referindo-se às associações, ela menciona a tarefa da sede da obra

para o direcionamento dos recursos em benefício de uma causa unifi cada:

Aqueles que se encontram à testa dos negócios na sede da causa,

têm de examinar detidamente as necessidades dos vários campos; pois

eles são os mordomos de Deus, destinados a estender a verdade, a todas as parte do mundo. Eles são inescusáveis, se permanecerem

em ignorância com respeito às necessidades da obra...”. São esses

mordomos que “têm que destinar às necessidades da obra do Senhor

24 Ibidem, 232, 233.25 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 375. “O Senhor é o único em quem

podemos confi ar com segurança; e Ele é acessível em todo o lugar e a cada igreja da

União”.26 WHITE, E. G. Mensagens Escolhidas, vol.2, 190. “De quando em quando te-

nho-me sentido impelida pelo Espírito do Senhor a apresentar um testemunho aos nos-

sos irmãos, a respeito da necessidade de conseguir o melhor de todos os talentos para

trabalhar em nossas várias instituições e nos numerosos outros departamentos de nossa

causa”.27 Ibid., 196. “Este é o mal que hoje ameaça nossas escolas, nossas instituições,

nossas igrejas. A menos que seja corrigido, porá em perigo a alma de muitos... A abnega-

ção deve caracterizar os homens empregados em posições de responsabilidade no escri-

tório, e devem ser um exemplo a todos os obreiros...”28 WHITE, E. G. Conselhos sobre Mordomia. 198-200. “Quanto mais ansioso

deve-ria estar cada fi el mordomo quanto a aumentar a proporção das dádivas a serem co-

locadas no tesouro do Senhor, do que de diminuir suas ofertas um jota ou um til que seja”.

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os meios de Seu tesouro...29

Dirigindo-se aos administradores da organização, E. G White declara que: “Devemos compreender mais e mais que os meios trazidos ao tesouro do Senhor nos dízimos e ofertas de nosso povo, devem ser empregados para a manutenção da obra, não somente na pátria, mas nos campos estrangeiros.”30

Às associações do seu tempo que, na administração do dízimo e ofertas, na época, não adotavam a partilha dos recursos com outros campos, afi rma: “Em algumas associações tem-se considerado louvável o economizarem-se meios, e apresentar um grande excesso no tesouro. Deus não tem sido honrado com isso.”31 Mesmo o “tesouro” das instituições é para ajudar os campos missionários também.32

Portanto, para E. G. White, a igreja é um grande todo, uma unidade que deve manter-se em apoio mútuo das partes. Essa unidade se dá através do sistema de associações sobre quem recai, como veremos mais detidamente, a responsabilidade gerencial dos dízimos e parte das ofertas da igreja. Essa organização é essencial para que a igreja não se fragmente,

29 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos, 455. (grifo suprido). “Aqueles que se encontram à testa dos negócios na sede da causa, têm de examinar detidamente as neces-sidades dos vários campos; pois eles são os mordomos de Deus, destinados a estender a verdade, a todas as partes do mundo.”

30 Ibid. “Devemos compreender mais e mais que os meios trazidos ao tesouro do Senhor nos dízimos e ofertas de nosso povo, devem ser empregados para a manutenção da obra, não somente na pátria, mas nos campos estrangeiros.”

31 Ibid., 456,. (grifo suprido) “Em algumas associações tem-se considerado louvá-vel o economizarem-se meios, e apresentar um grande excesso no tesouro. Deus, porém, não tem sido honrado com isso.”

32 Ibid., 457 “...Teria sido preferível que o dinheiro assim depositado houvesse sido sabiamente empregado em manter obreiros diligentes e capazes em campos necessi-tados.

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e não deve ser dispensada ao nos aproximarmos do fi m dos tempos.33

Os Administradores do Dízimo e das Ofertas

Nesta parte veremos mais algumas citações de E. G. White nas quais as expressões “tesouro” e “casa do tesouro” associadas direta ou indiretamente a Malaquias 3:10 são aplicadas à igreja.

Segundo ela, Deus, no que diz respeito aos dízimos e ofertas, “nunca mudou os planos que Ele próprio ideou.”34 Por outro lado, os ancião e ofi ciais são desafi ados a cumprir a missão que Deus lhes deu de levar o povo a ser fi el nos dízimos, ofertas e votos.35 Enfaticamente, ela declara que a “casa do tesouro” de Ml. 3:8 a 10 está sob a responsabilidade dos presidentes de Associações que precisam orientar os anciãos e diáconos a trazerem os dízimos ao tesouro “para a sua obra em todo o mundo”.

33 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos, 487 “Alguns têm apresentado a idéia de que, ao aproximarmo-nos do fi m do tempo, cada fi lho de Deus agirá independentemente de qualquer organização religiosa. Mas fui instruída pelo Senhor de que nesta obra não há isso de cada qual ser independente. As estrelas do céu estão todas sujeitas a leis, cada uma infl uenciando a outra a fazer a vontade de Deus, prestando obediência comum à lei que lhes dirige a ação. E, para que a obra do Senhor possa avançar sadia e solidamente, Seu povo deve unir-se”.

34 WHITE, E.G. Testemunhos para Ministros. 3a ed. Tatuí: Casa Publicadora Bra-sileira, (1993), 305, 306. “O Senhor sempre exigiu essa resposta em Seus arranjos para levar avante Sua obra em nosso mundo. Ele nunca mudou os planos que Ele próprio ideou”.

35 WHITE, E. G. Conselhos Sobre Mordomia, 106, 107. “Nomeie a igreja pastores ou anciãos que sejam dedicados ao Senhor Jesus, e cuidem esses homens de que se esco-lham ofi ciais que se encarreguem fi elmente do trabalho de recolher o dízimo... Devemos mensageiros do Senhor cuidar de que os membros da igreja Lhe cumpram fi elmente as ordens... É o dever dos anciãos e ofi ciais da igreja instruir o povo nessa importante ques-tão, e pôr as coisas em ordem. Como coobreiros de Deus, devem os ofi ciais da igreja ser corretos nesse assunto claramente revelado. Devem os próprios pastores ser estritos quanto a executar ao pé da letra os preceitos da Palavra de Deus”.

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Seu apelo, no contexto de Malaquias 3:10, é para que os presidentes de associação cumpram o “dever” de ensinar ao povo a ser fi el nos dízimos. Por outro lado é dever dos anciãos de igreja trabalhar para que o dízimo e as ofertas sejam trazidas à igreja e em seguida repassados à associação.36

Segundo Ellen White os presidentes de Associação devem estar atentos às fi nanças dos campos e tem como responsabilidade: “...ver que anciãos e diácono das igrejas nelas realizem seu trabalho, cuidando de que um fi el dízimo seja trazido para o tesouro.37

O dízimo não é uma propriedade egoísta de alguma igreja local mas é o recurso para enviar mensageiros de Deus “às partes mais distantes da Terra.”38 E que, através da associação, cada ramo da obra receba igual atenção.39

36 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros. 306. “Anciãos de igrejas, cumpri vosso dever. Trabalhai de casa em casa a fi m de que o rebanho de Deus não seja remisso neste magno assunto, o qual envolve tão grande bênção ou maldição”.

37 Ibidem, 305. “Muitos presidentes de Associações do Estado não cuidam daquilo que é seu trabalho - ver que os anciãos e diáconos das igrejas nelas realizem seu trabalho, cuidando de que um fi el dízimo seja trazido para o tesouro”.

38 WHITE, E. G. Conselhos Sobre Mordomia, 71; Testemunhos para Ministros, 306. “Reclama o dízimo como Seu, e este deve ser sempre considerado uma reserva sa-grada, a ser colocada no Seu tesouro para o bem de Sua causa, para o avanço de Sua obra, para enviar Seus mensageiros às partes mais distantes da Terra” (CSM,71). “...O Senhor sempre exigiu essa resposta em Seus arranjos para levar avante Sua obra em nosso mun-do” (Testemunhos para Ministros, 306).

39 WHITE, E. G. Testimonies for the Church. Vol. 6, 329 “Cada membro tem uma voz na escolha dos ofi ciais da igreja. A Igreja escolhe os ofi ciais da Associação Estadu-al. Delegados escolhidos pela Associação Estadual escolhem os ofi ciais da Associação - União; e delegados da Associação - União escolhem os ofi ciais da conferência Geral. Por este modo cada associação, instituição de cada, igreja de cada, e cada indivíduo; dire-tamente ou através de representantes, tem uma voz na eleição dos homens que conduzirão o chefi ar das responsabilidades na conferência Geral”.

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É dever dos presidentes de associação e dos pastores educar o povo a ser fi el e, nas palavras de E. G. White, “não roubar a Deus”, a fi m de haver recursos no tesouro da obra.40

Os membros devem cuidar das igrejas e liberar os pastores para desenvolverem a pregação em novos campos e ainda, segundo ela, “mandar” ofertas e dízimos para obreiros nos “campos” mais necessitados.41 A oposição à organização para impedir que o dízimo seja trazido, conforme Malaquias, ao tesouro, contraria os meios ordenados por Deus, e é obra do inimigo.42 O dízimo deve ser devolvido à igreja, conforme Malaquias.43

40 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, Vol. 5, 372, 376. WRITE, E. G. “As Igrejas precisam ser impressionadas com o fato que é seu dever proceder honestamente com a causa de Deus; não consentindo que a culpa do roubar descanse sobre eles; rouban-do a Deus nos dízimos e nas ofertas”. “Se os meios entrassem no tesouro exatamente de acordo com o plano de Deus - um décimo de toda renda - haveria abundância para levar avante a Sua obra” Evangelismo, 252.

41 WHITE, E. G. Evangelismo, 381 382. “Devem ser ensinados a dar fi elmente o dízimo a Deus, para que os possa fortalecer e abençoar. Devem ser postos em ordem de trabalho... Em vez de conservar os pastores trabalhando pelas igrejas que já conhecem a verdade, digam os membros das igrejas a esses obreiros: “Ide trabalhar pelas almas que perecem nas trevas. Nós mesmos levaremos avante os trabalhos da igreja. Nós realizare-mos as reuniões, e, estando em Cristo, manteremos vida espiritual. Trabalharemos pelas almas que estão ao nosso redor, e elevaremos nossas orações e mandaremos nossas ofer-tas para manter os obreiros nos campos mais necessitados e destituídos de auxílio.”

42 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 53. “Os que estão levando esta mensagem errada, ... opõem-se à clara ordem de Deus pronunciada por Malaquias com relação a trazer todos os dízimos ao tesouro da casa de Deus, e imaginam ter uma obra a fazer no sentido de advertir aqueles a quem Deus escolheu para levar avante Sua men-sagem de verdade. Esses obreiros não estão trazendo maior efi ciência à causa e ao reino de Deus, mas estão empenhados numa obra idêntica àquela em que o inimigo de toda a justiça se empenha”.

43 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, 59, 60. “Compreendo que também estai; proclamando que não devemos dar o dízimo. Meu irmão, tirai o sapato de vossos pés, pois o lugar em que estais é terra santa.

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Portanto, a gerência dos dízimos, de acordo com Ellen White, deve estar sob a administração das associações. Estas recebem os recursos dos membros através das igrejas locais para uma ação organizada de evangelização do campo. Os presidentes como representantes dos campos devem agir junto aos pastores e anciãos a fi m de que os dízimos e ofertas sejam entregues para o trabalho da associação e abertura de novos campos.

A Aplicação do Dízimo e das Ofertas

O dízimo é um fundo que, dentro da fi losofi a da Igreja Adventista do Sétimo Dia, deve ser aplicado para a manutenção do ministério pastoral como indicado nos princípios encontrados na Bíblia e nas diretrizes dadas por E. G. White, que são consideradas inspiradas no âmbito da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Os dízimos devem ser aplicados como segue:

1. Pastores.44 No pagamento de salários e despesas diretamente ligadas à sua atividade pastoral.

2. Missionários em campos estrangeiros.45

3. Médicos missionários.46

44 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, vol. 9, 52; Obreiros Evangélicos, 226. “O dízimo é sagrado, reservado por Deus para Si mesmo. Tem de ser trazido ao Seu tesouro, para ser empregado em manter os obreiros evangélicos em seu trabalho”.

45 WHITE, E. G. Testemunhos para Ministros, vol. 9,52; Conselhos Sobre Mor-domia, 71; Obreiros Evangélicos, 455. “Manifeste-se uma desinteressada igualdade no tratar com o corpo de obreiros na pátria e no estrangeiro. Devemos compreender mais e mais que os meios trazidos ao tesouro do Senhor nos dízimos e ofertas de nosso povo, de-vem ser empregados para a manutenção da obra, não somente na pátria, mas nos campos estrangeiros”.

46 WHITE, E. G. Medical Ministry. (Moutain View, California: Pacifi c Press Pub-lishling Association, 1932), 245. “Eu desejo falar acerca da relação existente entre o mis-sionário médico e o ministro do evangelho... não há divisão entre o ministério e o trabalho médico”.

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4. Professores de Bíblia.47

5. Irmãs que sejam obreiras bíblicas.48

6. Um fundo de aposentadoria para pastores.49

7. Assistência em eventual invalidez de obreiros.50

8. Um plano de saúde para obreiros.51

47 WHITE, E. G. Conselhos Sobre Mordomia, 103.48 WHITE, E. G. Evangelismo. 2a ed. (Santo André: Casa Publicadora Brasileira,

1978), 492. “Os adventistas do sétimo dia não devem, de forma alguma, amesquinhar a obra da mulher. Se esta entrega seu serviço doméstico nas mãos de uma auxiliar fi el e pru-dente, e deixa seus fi lhos em boa guarda ao passo que ela se ocupa na obra, a associação deve ter a sabedoria de compreender a justiça de remunerá-la”.

49 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos, 430. “Deve-se instituir um fundo para os obreiros que não podem mais trabalhar. Não podemos estar livres de culpa diante de Deus, a menos que façamos todo esforço que é justo a esse respeito, e isso sem demora”. Nos dias de Jesus os trabalhadores do Templo deveriam ter suas necessidades supridas em caso de desemprego. Veja Joachim Jeremias, Jerusalém no Tempo de Jesus. (São Paulo: Edições Paulina, 1983), 4.

50 Ibid., 426. “Deve-se tomar alguma providência quanto ao cuidado para com os pastores e outros fi éis servos de Deus, que, devido a se exporem ou a trabalharem em excesso em Sua causa, adoeceram e necessitam de repouso e restauração, ou que, devido à idade e à perda de saúde não são mais capazes de levar encargos e suportar o calor do dia”.

51 Ibid., 427 “Esses fi éis obreiros de Deus que, por amor de Cristo renunciaram às perspectivas oferecidas pelo mundo, preferindo a pobreza aos prazeres ou fortuna; que, esquecidos de si mesmos, trabalharam ativamente para atrair almas a Cristo; que deram liberalmente para fazer avançar vários empreendimentos na causa de Deus, tombando na baralha, fatigados e doentes, e sem meios de subsistência, não devem ser deixados a lutar na pobreza e no sofrimento, ou sentir-se como pobres. Ao sobrevir-lhes doença ou enfermidade, não se deixem nossos obreiros sentir-se sobrecarregados com a ansiosa interrogação: “Que será de minha esposa, de meus fi lhos, agora que não posso mais tra-balhar e suprir-lhes as necessidades?” É simplesmente justo que se tomem providências para satisfazer às necessidades desses obreiros fi éis, e dos que deles dependem.

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9. Despesas de mudança dos obreiros.52

10. A orientação inspirada também declara que os dízimos devem ser usados para sustentar as instituições da igreja, pagando despesas coerentes com as fi nalidades desse fundo sagrado, pois estas são “instrumentos para levar avante Sua obra na terra”.

O Uso Especial do Dízimo por E. G. White

Mesmo que, disse ela, ministros indignos venham a receber parte de nossos dízimos e ofertas não devemos deixar de contribuir para a causa de Deus.53 E “não deixes de dar à causa de Deus, e seja achado fi el, porque outros não estão agindo corretamente.”54 Um exemplo importante ocorreu em 1870 quando administradores foram advertidos por E. G. White:

Os fundos nem sempre têm sido empregados como designaram aqueles que doaram com grande sacrifício. Homens ambiciosos e egoístas, faltos de espírito de sacrifício e renúncia têm administrado infi elmente os meios trazidos à tesouraria.

52 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos. 450, 451. “O missionário escolhido por Deus não pode ter residência fi xa, mas tem de levar a família de um lugar para outro, mui-tas vezes de um para outro país. A natureza de seu trabalho assim o exige. Essas freqüen-tes mudanças, porém, obrigam-no a sérias despesas... Esses obreiros são muitas vezes obrigados a hospedar os irmãos, e ao mesmo tempo que isso lhes é um prazer, é também uma despesa adicional .É uma terrível injustiça uma comissão de salários decepcionar um digno pastor que se acha em necessidade de cada moeda que tem sido levado a esperar... Ele quer que Seu povo manifeste um espírito liberal em todo o seu trato com seus compa-nheiros. O princípio que serve de base a Sua ordem ao antigo Israel: “Não atarás a boca ao boi que trilha o grão” (I Cor. 9:9; Deut. 25:4),é um princípio que nunca deve ser posto de lado por alguém que tenha de tratar da remuneração dos que se dedicaram à divulgação da causa de Deus no mundo, e que empregam suas forças em elevar o espírito dos homens da contemplação das coisas terrestres à das celestiais”.

53 WHITE, E. G. Special Testimonies, Serie A, n ° 1, 52, 53.54 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, vol. 9, p. 249

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E, apesar disso, ela disse sobre os doadores:

As pessoas sacrifi cadas, consagradas, que devolvem a Deus o que lhe pertence, como ele exige, serão recompensadas de acordo com suas obras. Ainda que os meios assim consagrados sejam mal utilizados de modo que não realizem o objetivo que o doador tinha em vista - a glória de Deus e a salvação das almas - os que fi zeram o sacrifício com sinceridade de alma e com sinceridade de propósito para a glória de Deus não perderão a sua recompensa.55 ( 1868)

Em 1890 ela admitiu:

Se os assuntos da associação não são manejados de acordo com a ordem de Deus, isso é pecado dos que cometem o erro. O Senhor não culpará ninguém que faz o que está ao alcance para corrigir o mal. Mas você não cometa o pecado de reter de Deus o que é Sua propriedade.56

Esta posição, apesar dos desvios da administração, permaneceu a mesma até 1909, próximo ao fi m de sua vida, quase vinte anos mais tarde.57

E. G White procedeu do mesmo modo que falou, como declarou seu fi lho: “Desde minha conexão com os assuntos de minha mãe em 1881, a maior parte do tempo, um dízimo completo de seu salário era colocado nas

55 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, vol. 2, 518 e 165. “Aqueles que sa-crifi cando a si próprios consagrando-se, e os que devolvem a Deus as coisas que são dEle, conto Ele requer, serão recompensados de acordo com seu trabalho... os que se sacrifi cam em sinceridade de alma, com uma visão separada para a glória de Deus, não perderá a sua recompensa”.

56 WHITE, E. G. Special Testimonies, Serie A, n°1, p. 2757 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos, 227. “Alguns se têm sentido malsatisfei-

tos, e dito: “Não devolverei mais o dízimo; pois não confi o na maneira por que as coisas são dirigidas na sede da obra.” Roubareis, porém, a Deus, por pensardes que a direção da obra não é correta? Apresentai vossa queixa franca e abertamente, no devido espírito, e às pessoas competentes. Solicitai em vossas petições que se ajustem as coisas e ponham em ordem; mas não vos retireis da obra de Deus, nem vos demonstreis infi éis porque outros não estejam fazendo o que é correto”.

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mãos do tesoureiro da igreja ou da associação.”58

Quando se apelou à Associação do Colorado para socorrer os pastores que estavam idosos ou mal remunerados e que não recebiam sufi ciente para se manter, o Pr. Watson reagiu contra a coleta em uma igreja de 400 dólares entre ofertas e dízimos para os ministros negligenciados. Nessa situação F. G White escreveu-lhe uma carta em 22 de janeiro de 1905 declarando a necessidade de não esquecer aqueles ministros. 0 conteúdo da carta está reproduzido a seguir:

Moutain View, Califórnia, 22 de janeiro de 1905.

Meu irmão, desejo dizer a você: seja cuidadoso com o modo como age. Você não está agindo sabiamente. Quanto menos você falar sobre o dízimo que é destinado para o mais necessitado e aos Campos mais carentes no mundo, mais sensível você será.

Durante anos tem sido mostrado a mim que meu dízimo deveria ser remetido para ajudar os ministros brancos e negros que eram negligenciados e não recebiam o sufi ciente, necessário para sustentar a família. Quando minha atenção se voltava para os ministros idosos, brancos ou negros, era minha especial tarefa investigar suas carências e suprir suas necessidades. Esta deveria ser minha obra especial, e tenho feito isto com inúmeros casos. Nenhum homem deveria dar notoriedade ao fato de que em ocasiões especiais o dízimo é usado desta maneira.

Com respeito à obra entre as negros no Sul, aquele Campo foi e ainda está sendo roubado dos meios que deveriam chegar até seus obreiros. Se têm existido casos nos quais nossas irmãs têm destinado seus dízimos para o sustento de ministros que trabalham por pessoas negras no Sul, conserve-se cada homem, se for sábio, calado.

Tenho destinado meu dízimo panos casos mais necessitados que são trazidos ao meu conhecimento. Fui instruída a fazer assim; e como dinheiro não é retirado da tesouraria do Senhor, não é um assunto que

58 Citado por Arthur L. \fl itc. E. C. White: The Early Ehnsheaven Years, 1900- 1905, p. 393.

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deveria ser acompanhado por comentários, pois tornaria necessário meu envolvimento com essas coisas, o que não desejo fazê-lo, porque não é o melhor.

Alguns casos têm sido mantidos diante de mim durante anos, e tenho suprido suas necessidades do dízimo, conforme Deus me instruiu a fazer. E se qualquer pessoa me disser: irmã White, você poderá destinar o meu dízimo para onde você sabe que ele será mais necessário, eu direi: sim, farei; e tenho agido assim. Elogio essas irmãs que têm aplicado seu dízimo onde é mais necessário para ajudar a realizar uma obra que está sendo negligenciada, e se a esse assunto for dado publicidade, fortalecerá um ponto de vista que seria melhor se fosse deixado como está. Não tenho interesse em dar publicidade a essa obra que o Senhor me indicou realizar, e a outros também.

Envio-lhe essa explicação para que você não cometa nenhum erro. As circunstâncias alteram os casos. Não aconselharia ninguém a realizar uma prática de arrecadação do dinheiro do dízimo. Mas durante anos e ainda hoje, há tantas pessoas que perderam a confi ança no método da aplicação do dízimo e têm colocado seu dízimo em minhas mãos, e dito que senão o pegasse, eles mesmos o encaminhariam para as famílias de ministros mais carentes que encontrassem. Tenho recebido dinheiro, dado um recibo por ele, e dito a eles como foi aplicado.

Escrevo-lhe considerando que isso o ajudará a se manter quieto em vez de provocar estardalhaço e dar publicidade ao assunto, para que muitos outros não sigam seu exemplo.59

Sobre a carta ao Pr. Watson:

59 WHITE, Arthur L., The Early Elmshaven Years (Whashington, DC: Review adn Herald Publishing Association, 1981), 396, 397. (grifos supridos).

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1. Ela declara que o dízimo recolhido por ela e o seu próprio eram dirigidos ao pagamento de pastores e aos campos mais carentes (associações, missões) e não para ser usado pela igreja local em suas despesas de trabalho missionário o que seria uma distorção de todo o seu ensino.

2. Evidentemente ele estava sendo coerente com o seu ensino geral sobre o tema, de que as associações não deveriam acumular recursos em prejuízo de outros campos mais necessitados de “outras partes do mundo”, exatamente contrariando os que pensam que o dízimo deve ser usado localmente. 60

2. Existia, o que não é o caso hoje, uma distorção no cuidado com os pastores, “ministros brancos e negros” e “ministros idosos” que estavam sem receber sua manutenção enquanto trabalhavam para a obra em outros campos, pois “eram negligenciados e não recebiam o sufi ciente para sustentar suas famílias”.

3. Era um procedimento que, apesar de o dinheiro estar indo para pastores e campos (associações), ela “não aconselharia ninguém a realizar urna prática de arrecadação do dinheiro do dízimo.” Isto é, não era um procedimento a ser seguido pela igreja.

4. Ela não queria que fosse dada “publicidade” e nem que se fi zesse “estardalhaço” para não reforçar “o ponto de vista que seria melhor que fosse deixado como está”, para que outros não fi zessem exploração desse ato e lhe dessem divulgação como, infelizmente, hoje está acontecendo. As pessoas estavam entregando a ela o dízimo por acharem que não seria

60 WHITE, E. G. Obreiros Evangélicos, 455, 456. “Os lugares da vinha do Senhor em que pouco ou nada se tem feito, pedem àqueles em que já se acham estabelecidas instituições, que compreendam a situação. Que os homens dos campos que, segundo a indicação de Deus, já têm sido em grande parte trabalhados, e onde a causa se acha so-lidamente estabelecida, restrinjam sua ambição de estender-se. Não pensem nas grandes coisas que desejariam fazer, continuando a aumentar suas comodidades, ao passo que ou-tras partes da vinha fi cam desprovidas. É ambição egoísta que leva os homens a exigirem mais para um campo já possuidor de amplos recursos, ao passo que campos missionários se encontram em necessidade”.

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bem empregado pelo campo local (que já tinha muito e não estava sendo sensível às necessidades de outros campos). Não se tratava de reter o dízimo de forma alguma na igreja local mas, ao contrário, desejava enviá-lo para longe, outros campos e pastores carentes.

5. Também sustentar idosos, que, apesar de não trabalharem mais, precisavam ser mantidos.

6. Esse dízimo estava indo diretamente do adorador, o irmão, para o pastor ou campo necessitado e não tinha sido nem mesmo entregue na igreja local e nem tinha chegado à “tesouraria do Senhor”. Ou seja, os cofres da associação, ou seu caminho normal, através da tesouraria da igreja local; não estava havendo nenhum problema real de retenção ou desvio do dízimo do seu propósito original. Seria como qualquer membro entregar seu dízimo em outro campo que acha mais carente. Sempre respeitando o princípio bíblico e do Espírito de Profecia, de entregar ao campo para pagamento de pastores.

7. Quanto a seu envolvimento pessoal numa “irregularidade”, é bom lembrar que ela declarou que “fui instruída a fazer assim” e não era para ser dada “publicidade” a algo que em uma orientação particular de Deus para ela, “essa obra que o Senhor me indicou a realizar, e a outros também”, que a ela confi avam seu dízimo.

8. Se alguém recebesse 1) instrução específi ca de Deus para enviar seu dízimo para outro campo contanto que fosse 2) para uma família de ministro que estivesse passando necessidade em algum campo distante em crise, estaria de acordo com o que diz a carta. Não há nenhuma base para usar tal carta como pretexto para fazer o contrário da orientação inspirada por Deus.

É interessante relembrar que, nem mesmo na construção e reforma do tabernáculo de Deus no deserto e do Templo construído por Salomão, se usou o dízimo, mas ofertas à parte tiveram que ser providas para a construção, conforme vemos em Êx 30:11-16; Lv 27:1-15. Quanto aos reparos e manutenção do Templo de Deus, nenhum dízimo foi usado

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conforme os exemplos já apresentados de Joás, Ezequias, Josias e Neemias.61

Essa atitude de E. G. White, além das razões já apresentadas, justifi cava-se naquela ocasião (1905) pois o sistema de jubilação para manutenção de aposentados somente existiria em 1911 por solicitação dela mesma (mesmo o governo dos EUA somente implantou o Seguro Social em 1935). Além disso, não havia ainda o sistema de auditoria interna da igreja, que reduziria muito os erros no manejo dos fundos da igreja, implantado em 1914.62 Mas mesmo durante aquele período em que ela agia como mantenedora dos pastores carentes, no que ela chamou de “minha obra especial” (não é para outros fazerem o mesmo), sua ação, ajudada por seu fi lho, continuava coerente com seus conselhos sobre o uso do dízimo, conforme declara seu fi lho J. Edson White: “Mantemos uma conta separada das pequenas somas de dízimos que nos chegam dessa forma e as usamos inteiramente para sustentar os ministros que trabalham em favor das pessoas de cor.” 63

Quando em 1911 o seguro social da igreja e as defi ciências de atendimento aos pastores foram sanadas, desaparecendo a necessidade original de 1905, ela respondeu ao ser procurada para aceitar dízimos:

Vocês me perguntam se aceitaria dízimo de vocês para usá-lo onde mais se necessita na causa de Deus. Em resposta direi que não recusaria fazê-lo, mas quero dizer que há um caminho melhor. É melhor depositar confi ança nos ministros da associação onde vocês vivem, e nos dirigentes da igreja onde vocês freqüentam. Aproximem-se dos seus irmãos.”64

61 WRITE, E. G. Conselhos Sobre Mordomia, 102, 103. “Foi-me mostrado que é um erro usar o dízimo para atender a despesas ocasionais da igreja. Neste ponto, tem havido um desvio dos métodos corretos... Seu povo de hoje precisa lembrar que a casa de culto é propriedade do Senhor, e que deve ser escrupulosamente cuidada. Mas o fundo para essa obra não deve provir do dízimo”.

62 Revista Adventista, maio, 1993, Frank B. Holbrook “Preguntas acerca del diez-mo y de las ofrendas”, p. 14

63 Carta de J. EdsonWhite a Arthur G. Daniels, 26 de março de 1905.64 WHITE, E. G. Manuscripts Releases, Vol. 1, p. 196.

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Conforme E. G. White ainda declara:

Igrejas devem ser erigidas, escolas estabelecidas, e casas publicadoras equipadas com condições para fazer a grande obra na publicação da verdade a ser enviada para todas as partes do mundo. Essas instituições são ordenadas por Deus e devem ser sustentadas pelos dízimos e ofertas liberais. Ao a obra aumentar, meios serão necessários para levá-la avante em todos os seus ramos.65

Mas o órgão legítimo para gerir os dízimos e as ofertas missionárias é, como vimos anteriormente, a associação, organizada pelos membros através dos ofi ciais por eles eleitos.

Evidentemente, dentro de cada instituição adventista deve desenvolver-se a atividade pastoral e evangelística e os obreiros e suas despesas diretamente ligadas ao trabalho devem ser custeadas pelos dízimos. Porém, mesmo projetos missionários, feitos por famílias na igreja, não deveriam requerer fundos da associação, salvo se um pastor for necessário.66

Portanto, E. G. White entendia que a “casa do tesouro” eram as sedes da obra organizada e que as igrejas locais, também chamadas assim, deveriam fazer o papel de recolher os dízimos e ofertas e repassá-los à organização imediata como Associações e Uniões. Também notamos um forte sentimento unifi cador e uma visão todo abrangente do conceito de missão mundial que está diante da igreja como instituição e, por isso, esta não pode prescindir de todos os recursos que possa dispor para a ampliação da obra em todos os seus ramos.

65 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, vol. 4., 464. (grifo suprido).66 WHITE, E. G. Testimonies for the Church, Vol. 6,442. “Se famílias se situarem

em lugares obscuros da terra, lugares onde as pessoas são envolvidas em melancolia e tristeza espirituais, e deixassem a luz de Cristo brilhar através delas, um grande e pode-roso trabalho é efetuado... sem depender dos fundos da Associação até que o interesse venha a ser tão extenso que eles não podem conduzir mais o trabalho sem a ajuda minis-terial”.

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Conclusão

Os relatos bíblicos tratam da questão dos dízimos para manutenção sacerdotal e as ofertas como recursos que eram totalmente administrados no templo e a partir dele. O templo funcionava como a sede da obra que exercia controle unifi cador tanto na área religiosa como administrativa e fi nanceira.

Não há registro de o dízimo do sacerdote levita ser administrado em nível local ou individual. Não havia mistura de fundos oriundos de dízimos e ofertas. Tanto o dízimo como as ofertas entregues tinham uma fi nalidade diferente. Não se misturava os recursos e nem os destinos desses recursos.

E. G. White, refl etindo uma destacada voz dentre os pioneiros adventistas, declara que a obra não é local mas mundial e sustenta uma forte visão institucional reagindo contra as tendências à fragmentação organizacional.

Para ela, como vimos, a “casa do tesouro” é a tesouraria da igreja em todos os níveis, mas que a administração dos recursos deve ser feita a nível organizacional através das associações e uniões e não pela igreja local. O responsável pessoal por essa promoção, esclarecimento e administração das ofertas destinadas à associação e especialmente os dízimos é o presidente do campo. Os ofi ciais das igrejas locais são parte vital na conscientização e transferência dos recursos.

A obra de Deus, tanto nos relatos bíblicos apresentados, como em E. G White é descrita como um “grande todo” e “uma só”. Apresenta-se como sistema organizacional e não há evidências de uma estrutura ou administração congregacional ou fragmentada por regiões. Ou seja, em ambos os modelos, tanto o bíblico como o de E. G. White, a “casa do tesouro” tem caráter institucional e mais amplo não se referindo à igreja, comunidade local ou cidade, mas ao centro administrativo de uma única e coesa organização.

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RELIGIÃO E FILOSOFIA:MODOS DE COMPREENSÃO DA REALIDADE

Evandro Luiz da Cunha1

Resumo

Este artigo pretende analisar como Religião e Filosofi a podem ser vistos como modos de se compreender a realidade imanente. Uma isolada da outra não consegue abranger a totalidade do real nem esgotá-lo. Um dos grandes equívocos epistemológicos foi a separação Religião-Filosofi a. Quando bem compreendidas ambas podem lançar luz na complexidade dos fenômenos que marcam a existência humana. Nas palavras de Albert Einstein: “A ciência sem religião é paralítica; a religião sem ciência é cega”.

Abstract

This article intends to analyze as Religion and Philosophy can be seen as manners of understanding the immanent reality. One isolated the other they can’t embrace the totality of the real neither to exhaust it. One of the great epistemologic mistake was the separation religion-philosophy. When well understood both can throw light in the complexity of the phenomena that mark the human existence. In Albert Einstein’s words: “The science without religion is paralytic; the religion without science is blind”.

Introdução

Os fi lósofos dão um mesmo berço ontológico à Filosofi a e à Religião: o assombro. Platão afi rmava que “esta emoção, a admiração, é própria do

1 Evandro Luiz da Cunha é pastor do distrito central de fortaleza/CE, Mestrando em Teologia e Pós-graduado em Filosofi a (Ética e Política) — UFAL.

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fi lósofo: nem tem a Filosofi a outro principio além deste”.2 Semelhantemente, Aristóteles advogava: “pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do fi losofar”.3 Entretanto, como analisou Heidegger, “seria muito superfi cial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quiséssemos pensar que Platão e Aristóteles apenas constatam que o espanto é a causa do fi losofar. Se esta fosse a opinião deles, então diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre o ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, começaram eles a fi losofar. Tão logo a Filosofi a se pôs em marcha, tomou-se o espanto supérfl uo como impulso, desaparecendo por isso. Pôde desaparecer já que fora apenas um estímulo”.4 A admiração (o assombro) foi o primeiro passo nesse processo cognitivo.

A Religião por sua vez eclode quando diante do assombro da natureza busca uma “explicação” para tais fenômenos. “As religiões, diz Spencer, diametralmente opostas por seus dogmas, concordam em reconhecer tacitamente que o mundo, com tudo que contém e tudo o que o cerca, é um mistério que pede uma explicação”.5 Na opinião de Rudolf Otto, a Religião foi construída quando o homem deparou-se com o numinoso (o sagrado). “A esse dado peculiar de um ‘Totalmente Outro’, ele chama o ‘numinoso’, do latim numen, que signifi ca a força divina ou poder, atribuído a objetos ou a seres para quem se olha com reverência”.6 Mondin comenta que “o numinoso, por sua vez, assume dois aspectos que o caracterizam de modo inequívoco: a) o aspecto de mysterium tremendum e b) o aspecto de mysterium fascinans”.7

2 Platão, Teeteto 155d in Arcângelo R. Buzzi, Introdução ao Pensar (Petrópolis-RJ: Vozes, 1983), 160.

3 Aristóteles, Metafísica 1,2, 832b, 12 in Arcângelo R. Buzzi, idem.4 Marfi n Heidegger, Que é Isto —A Filosofi a? ln Os Pensadores (São Paulo: Nova

Cultural, 1999), 37-38. 5 Émile Durkheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa (São Paulo: Mar-

tins Fontes, 2000), 5.6 Paul Johnson, Psychology of Religion (New York: Abingdon Press, 1959), 55 in

Merval Rosa, Psicologia da Religião (Rio de Janeiro: Juerp, 1979), 27.7 Battista Mondin, Introdução à Filosofi a (São Paulo: Edições Paulinas, 1981), 86.

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Desta forma, o numinoso causaria dois sentimentos antagônicos: o medo e a devoção. Foi esse sentimento de estranhamento do sujeito em face da realidade que gerou a Religião e a Filosofi a. A Religião teria como objetivo reestabelecer uma unidade ontológica que foi rompida “A palavra Religião vem do latim: religio, formada pelo prefi xo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). A Religião é um vínculo”.8 A Religião delimita dois domínios metafísicos: o sagrado e o profano. Outros teóricos como Freud, Marx, Feuerbach, Nietzsche, Hegel, Kant propuseram suas hipóteses para explicar o fenômeno da Religião.9 Nessa tentativa de elucidar o fenômeno da Religião a Filosofi a assume um papel relevante.

A Filosofi a passou a ser importante até mesmo àqueles que defendem uma postura antifi losófi ca. Como observou Aristóteles, “ou se deve fi losofar ou não se deve: mas para decidir não fi losofar é ainda e sempre necessário fi losofar; assim, pois, em qualquer caso, fi losofar é necessário”.10 Entretanto, para fi losofar é imperioso dominar as regras do jogo. Para Immanuel Kant (1724-1808) só se aprende a fi losofar fi losofando.11 “O melhor meio de se aproximar da Filosofi a é fazer perguntas fi losófi cas”, observa Jostein Gaarder.12 A mais importante pergunta diz respeito as origens primeiras. Para Aristóteles tudo que existe possui causas. Ele “deixou também a classifi cação das causas em quatro gêneros, que fi cou tradicionalmente na fi losofi a escolástica. As causas podem ser ou princípios internos à coisa causada ou externos a ela. Os princípios internos são a causa material,

8 Marilena Chauí, Convite à Filosofi a (São Paulo: Ática, 1995), 298.9 Para uma exposição das interpretações fi losófi cas e psicológicas da Religião

vide Urbano Zilles, Filosofi a da Religião (São Paulo: Edições Paulinas, 1991). Sigmund Freud, “O futuro de Uma Ilusão” e “Moisés e o Monoteísmo” in Obras Completas. Vol. XXI e Vol. XXIII (Rio de janeiro: Imago, 1996); Para uma interpretação sociológica e antropológica: Émile Durkheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2000).

10 Aristóteles, Protréptico, fr. 51 in Arcângelo R. Buzzi, Introdução ao Pensar (Petrópolis —RJ: Vozes, I983),155.

11 Aranha e Martins, Filosofando, 44.12 Jostein Gaarder, O Mundo de Sofi a (São Paulo: Cia. Das Letras, 1999), 25.

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o sujeito ou a matéria de que uma coisa é feita, e a causa formal, o ato ou forma que determina o que a coisa é. Os princípios externos são a causa efi ciente, pela ação da qual tem início o movimento e a coisa é ou se muda, a causa fi nal, o escopo, o fi m, que move o agente a agir”.13 Só quando encontramos as causas primeiras é que estamos em condições de interpretar qualquer fenômeno.

Historicamente, a Religião foi num primeiro momento, a única forma de transcender a realidade imediata. Religião e Filosofi a nos primórdios estavam amalgamadas. O tempo cirurgicamente separou esses dois universos do saber deslocando-os para pólos extremos. Tanto a Religião quanto a Filosofi a visam não apenas “explicar a realidade” mas exercer domínio sobre a natureza — incluindo o homem. O fi lósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) vociferava que os fi lósofos governam o mundo. Após diferenciar os “trabalhadores fi losófi cos” que seriam aqueles que compactavam o saber, dos “criadores de valores” - os fi lósofos efetivos, ele pondera: “Os fi lósofos propriamente ditos, porém, são comandantes e legisladores: eles dizem ‘Assim deve ser!’; são eles que determinam o Para-onde? do homem e para isso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores fi losófi cos, de todos os dominadores do passado — estendem sua mão criadora em direção do futuro, e tudo o que é e foi se toma para eles meio, instrumento, martelo. Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é uma legislação, sua vontade de verdade é — vontade de potência”.14 Para Francis Bacon (1561-1626 d.C.) conhecer a Natureza era o mesmo que exercer o domínio profetizado no Éden (“Façamos o homem... e domine sobre...” — Gênesis 1:26), e que o progresso científi co seria uma árdua luta do homem para dominar a natureza.15

13 Filippo Selvaggi, Filosofi a do Mundo — Cosmologia Filosófi ca (São Paulo: Edições Loyola, 1988), 304.

14 Friedrich Nietzsche, “Para além de Bem e Mal” — Prelúdio de lima Filosofi a do Porvir § 221(1885 - 1886) in Os Pensadores — Obras Incompletas (São Paulo: Nova Cultural, 1999), 326.

15 Francis Bacon, “Nova Atlântida” in Os Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1999). Para Bacon o homem sofreu duas quedas: (1) quando desejou estabelecer seu próprio padrão ético olvidando o oráculo divino. (2) após receber domínio sobre a Natu-

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O primado da razão não era uma idéia nova. Platão (428-348 a.C.) advogava que o Estado deveria ser administrado por sábios (fi lósofos).16 Na Filosofi a de Hegel (1770-1831) a realidade é a culminância de um processo histórico chamado dialética (tese, antítese e síntese) onde toda a existência complexa era o fruto de mudanças (confl itos de idéias). “A tese central de Hegel era muito parecida com a de Heráclito. Via tudo como tendo se desenvolvido. Tudo o que existe é o resultado de um processo; portanto, pensava ele, entender, em qualquer área ampla da realidade, envolve sempre entenderam processo de mudança”.17 Hegel negava o conceito liberal (Hobbes, Locke e Rousseau) de história como sendo um estado de natureza.18 Segundo Hegel, “o que dá origem ao movimento da História é, em seu sentido imediato, o choque dialético; porém por detrás do mesmo está o poder do ‘Absoluto’ (mente, verdade ou idéia) que exerce uma força ou poder de impulso, sendo, por conseguinte, a verdadeira força subjacente ou determinante do curso dos acontecimentos históricos”.19 Karl Marx tomará emprestado a dialética hegeliana e a amputará de sua dimensão metafi sica. Para Marx, a história não seria o ápice de contradições impulsionadas pelas idéias ou abstrações similares, para ele a história é um processo concreto, tendo como força motriz as lutas de classes. Cabe ao homem como sujeito da história não apenas interpretá-la, mas acima de tudo construí-la. Esse sistema fi cou conhecido como materialismo

reza quis ser iguala Deus. A Nova Ciência seria um restabelecimento do domínio sobre a Natureza submetendo-se humildemente aos preceitos divinos. “Portanto, o divórcio de Bacon entre ciência e teologia não era o divórcio entre Ciência e Religião. Ao contrário, a essência de seu profético anúncio do Reino do Homem era a sua fé no Reino de Deus”. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna (Brasília-DF: Editora da Universidade de Brasília, 1988), 95.

16 Platão, A República in Os Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1997).17 Bryan Magee, História da Filosofi a (São Paulo: Edições Loyola, 1999). 159.18 Gildo Marçal Brandão “Hegel: o Estado como Realização Histórica da Liber-

dade” in Francisco C. Weffort (org), Os Clássicos da Política (São Paulo: Editora Ática, 1998). 2:1061.

19 J. Thomas, Razão, Ciência e Fé (São Paulo: Editora Vida Cristã, 2001),33-34.

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histórico ou dialético.20

A despeito das correntes fi losófi cas divergentes, com exceção de Marx,21 há um ponto em comum que devemos considerar: as idéias em suas múltiplas manifestações norteiam nossas ações.

No campo religioso são as idéias que dão sustentação ao imaginário simbólico e ritualístico. Sendo a Filosofi a a ciência das idéias, deve-se encontrar as causas primeiras dos fenômenos observáveis.22 “A fi losofi a, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”.23 Tanto a Religião quanto a Filosofi a conceituam a realidade tentando dá-lhe um sentido. A Religião utiliza a linguagem mítica (com forte teor interpretativo) e a Filosofi a a Razão.

Isso não signifi ca que a linguagem mítica seja irracional, nem que a linguagem formal não possua seu aspecto mítico.24 A Religião busca na Filosofi a uma forma de dar sentido aos ritos e símbolos que compõem seu universo místico. Desta forma, “a Fé e a Razão (fi des et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”.25 Assim, a Filosofi a é vital à Religião.

20 Maria Lúcia de Amada Aranha e Maria Helena Pires Martins, Filosofando (São Paulo: Editora Moderna, 1992), 275.

21 Diferenciando-se do Idealismo (crença na existência de conceitos abstratos que governam o mundo), ele (Marx) defendia o Materialismo Dialético —os dados da cons-ciência tem origem na matéria.

22 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofi a (Rio de Janeiro: Agir Editora, 1970),71.

23 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Que é a Filosofi a? (Rio de Janeiro: Editora 34, 1997), 13.

24 Vide O Mito da Caverna de Platão e o conceito de estado de natureza dos fi ló-sofos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau).

25 João Paulo II, Fides et Ratio — Carta Encíclica do Sumo Pontífi ce aos Bispos da Igreja Católica sobre as Relações entre Fé e Razão (São Paulo: Edições Paulinas, 1998), 5.

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Filosofi a e Cristianismo

O judaísmo teve seu encontro com a Filosofi a durante a Diáspora. Filo de Alexandria (ca 20 a.C. —42 d.C.) tentou uma síntese da tradição judaica com o platonismo, principalmente utilizando-se da concepção estóica do Logos. “O conceito do Logos é utilizado por Filo em aplicações diversas, a fi m de prover um conceito de um mediador entre o Deus transcendente e o universo, um poder imanente ativo na criação e na revelação”.26

O Cristianismo quando expandiu suas fronteiras além da Palestina e do Oriente, confrontou-se com a Filosofi a no centro intelectual do inundo: Atenas (embora nesta época a cidade já desse sinais de decadência). O discurso de Paulo no Areópago sobre o “deus desconhecido” prova que o apóstolo estava familiarizado com a fi losofi a e a história gregas (Atos 17). Para entender melhor essa tertúlia é mister conhecer o contexto histórico. Diógenes Laércio, autor grego do século III d.C., em sua obra clássica The Lives of Eminent Philosophers (“As Vidas de Filósofos Eminentes”), volume 1, página 110,27 relata um incidente que clarifi ca o discurso de Paulo em Atenas.

Era o sexto século antes de Cristo. Atenas estava sendo dizimada por uma praga. Os sacerdotes e sábios ofereceram diversos sacrifícios a todos os deuses conhecidos sem obter nenhum resultado. Neste ínterim, uma sacerdotisa recebeu um oráculo que dizia que a praga poderia cessar se um sábio da ilha de Creta chamado Epimênides intercedesse pela cidade. Após longa discussão o conselho deliberou buscar o incógnito profeta.

Quando Épimênides chegou à cidade, fi cou estupefato diante de tantos deuses conhecidos. Ele exclamou: “Aqui é mais fácil encontrar deuses do que homens!” Após inteirar-se da situação, o profeta de Creta aconselhou que selecionassem algumas ovelhas de cores diferentes e as

26 Ladd, Georne Eldon. Teologia do Novo Testamento (Rio de Janeiro: JUERP, 1984), 225.

27 Don Richardson, O fator Melquisedeque (São Paulo: Edições Vida Nova, 1981), 15.

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deixassem dormir sem comer. No dia seguinte deveriam soltá-las. Aquelas que se deitassem antes de comer deveriam ser oferecidas em sacrifícios. Ao amanhecer, libertaram os animais na expectativa do que poderia ocorrer. A maior parte das ovelhas correu, para alimentar-se como era previsto. Outras poucas se deitaram antes de comer— era o sinal. Imediatamente construíram altares e à tardinha reuniram-se para o ritual. Naquele momento uma questão é levantada: “Quais dos deuses conhecidos haveremos de sacrifi car?”, perguntaram a Epimênides. Ele prontamente respondeu: “Não a esses deuses conhecidos que nada puderam fazer. Mas ofereceremos o sacrifício a agnosto theo (“ao deus desconhecido”)”. Após o sacrifício a praga cessou e Epimênides voltou a Creta.

Na época de Paulo o povo parecia ter olvidado este ato de intervenção divina. O deus desconhecido, já era conhecido historicamente pelos atenienses. Neste incidente, Paulo demonstra conhecer bem a fi losofi a grega. Principalmente o estoicismo. Como a Filosofi a não foi muito simpática as idéias do cristianismo incipiente, a partir daí começou haver uma tensão histórica no cristianismo entre Filosofi a e Revelação. Uma leitura meticulosa do texto sagrado percebemos algumas infl uências gregas na Teologia do Novo Testamento,28 principalmente em Paulo e em João. Todavia, admitimos que a mensagem cristã transcende à lógica grega formal.

Justino Martin era fi lósofo antes de converter-se. Para ele, a Filosofi a era um tipo de revelação, embora inferior à bíblica: “Porque todos aqueles escritores puderam ver a realidade obscuramente, através da semente do

28 As opiniões dos eruditos estão divididas entre aqueles que advogam que não há infl uência e aqueles que esposam que há:. Russell Norman Champlin, O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo (São Paulo-SP: Candeia, sid), 3: 364; William Bar-clay, As Obras da Carne e o Fruto do Espírito (São Paulo: Vida Nova, 1985), Palavras Chaves do Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 1985); George Ladd, Teologia do Novo Testamento (Rio de Janeiro: Juerp, 1993); Werner G. Kümmel, Introdução ao Novo Testamento (São Paulo: Edições Paulinas, 1982); Mario Veloso, Comentário do Evange-lho de João (Tatuí-SP: Casa Publicadora Brasileira, s/d).

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Verbo implantada dentro deles”.29 Justino foi martirizado em Roma em 166 d.C..30 Antagonicamente, Tertuliano atacava a Filosofi a por ser esta o instrumento utilizado pelos hereges para opor-se a fé cristã. Declamava: “Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que tem a academia a ver com a igreja? (...) a mim pouco importa, quem quiser que produza um cristianismo estóico, platônico e dialético. Visto como o evangelho de Cristo nos foi proclamado, não precisamos mais inquirir ou perscrutar esses assuntos”.31

Foi com Agostinho (353 —430 d.C.) que a Filosofi a ganhou ares de sacralidade. Afi rmava: “Os que são chamados fi lósofos, especialmente os platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e compatíveis com a nossa fé, é preciso não somente não serem eles temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso, como alguém que retoma seus bens a possuidores injustos”. “Bem ao contrário, todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do Senhor”.32 Durante a Patrística e a Escolástica, a Filosofi a e a Religião governaram em regime de co-regência.

Filosofi a e Religião na Modernidade

A Religião cristã foi colocada no ostracismo pelos intelectuais iluministas.33 Eles criam num progresso que fosse capaz de gerar uma

29 II Apologia 13. in Tony Lane, Pensamento Cristão (São Paulo: Abba Press, 1999), 1:18.

30 Jesse Lyman Hurlbut, História da Igreja Cristã (São Paulo: Vida, 1992), 52.31 De praescrit., 7. in Bengt Hãgglund, História da Teologia (Porto Alegre-RS:

Concórdia Editora, 1986), 43.32 Santo Agostinho, A Doutrina Cristã (São Paulo: Edições Paulinas, 1991), 149 e

122.33 Os iluministas “procuravam uma explicação racional para todas as coisas, rom-

pendo com todas as formas de pensar até então consagradas pela tradição. Rejeitava a submissão cega à autoridade e a crença na visão medieval teocêntrica. Alceu L. Pazzinato e Maria Helena V. Senise, História Moderna e Contemporânea (São Paulo: Editora Áti-ca, 1992), 98. Vide ainda Ellen G. White, O confl ito dos Séculos (Santo André-SP: Casa Publicadora Brasileira, 1980), 268.

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nova ordem mundial capaz de substituir o quadro de valores que até então havia ditado os costumes. A educação, a ciência e outras formas de saber poderiam concretizar o ideal de Liberdade e Igualdade. Através da Razão poderiam criar até mesmo uma nova religião mais humana que divina, mais pública do que privada. Essa seria a vitória do reinado da razão. “Sobre a questão de como realizar essa futura vitória, os fi lósofos foram omissos. Queriam uma sociedade liberal, mas temiam as massas e seu potencial revolucionário”.34 Entretanto, eles haveriam de infl uenciar os experimentos religiosos dos séculos subseqüentes. A Teologia Liberal haveria de beber nas fontes do racionalismo.35

Não podemos olvidar que nem todos os iluministas eram ateus. Sua posição anticlerical deveu-se em parte aos abusos do poder católico na Europa. Se por um lado a razão foi endeusada por alguns (Kant, Voltaire, Diderot, etc) par outro, vozes como de Rousseau (1712-1778) não passaram desapercebidas. Para o genebrino, a razão não é capaz de explicar tudo, como queriam os enciclopedistas. Mas uma forma de compreensão limitada. Rousseau chegou a ponto de criticar o otimismo na ciência36 e contradizer o postulado cartesiano.37

O pessimismo epistemológico de Rousseau foi suplantado pelo otimismo do Positivismo Lógico. Auguste Comte (1798-1857), em sua teoria dos estágios evolutivos do saber, coloca a Religião num estágio

34 Marvin Perry (org), Civilização Ocidental- Uma História Concisa (São Paulo: Martins Fontes, s/d), 415.

35 Battista Mondin, Os Grandes Teólogos do Século Vinte (São Paulo: Edições Paulinas, l980), volumes 1 e 2; William Hodern, Teologia Protestante ao Alcance de To-dos (Rio de Janeiro: Juerp, 1986); Ernest Renan, Vida de Jesus (São Paulo: Martin Claret, s/d); Leonardo Boff, Jesus Cristo ( Petrópolis-RJ: Vozes, 1986); Francis Schaeffer, A Morte da Razão (São Paulo: Fiel. 1997).

36 Jean-Jacques Rousseau, “Discurso sobre as Ciências e as Artes” in Os Pensado-res (São Paulo: Nova Cultural, 1997), 179-214.

37 O racionalismo moderno é fundamento na fi losofi a de René Descartes que afi r-mava: “cogito, ergo sun” (“penso, logo existo”). Descartes cria no primado da razão. Instituiu a dúvida metódica - questionar tudo e depois selecionar aquilo que pode ser comprovado racionalmente. O que não é racional não é verdadeiro. Flanklin Leopoldo e Silva, Descartes- a Metafísica da Modernidade (São Pauto: Editora Moderna, 1998).

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primitivo suplantada pela Ciência. Secundo ele, três estados vividos pela humanidade: (1) Teológico, (2) Metafi sico e (3) Positivo.38 No terceiro estado, a Ciência ocuparia o lugar outrora preenchido pela Religião.

Em 1859, dois anos após a morte de Comte, o debate Religião-Filosofi a-Ciência foi intensifi cado com a publicação do livro A Origem das Espécies39 de Charles Darwin (1809-1882).40 Durante cinco anos (1831-1836) Darwin viajou a bordo do navio Beagle contornando a América do Sul. Visitou o Brasil: Pernambuco (Fernando de Noronha), Bahia e Rio de Janeiro (onde fez observações antropológicas nada lisonjeiras sobre nosso país).41

Se Newton, no dizer Max Weber, “desencantou o mundo”, Darwin desmistifi cou o homem. Galileu (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1950) e Newton (1642- 1727) tinham concebido o homem distinto da natureza e superior a ela — o organicismo dava lugar ao mecanicismo.42 Darwin propôs uma inserção do homem na natureza, idealizando-o como o que há de mais avançado na cadeia evolutiva. O imanetismo naturalista de Darwin questionava as origens e o destino do homem. A aceitação do postulado darwinista pressionou a Religião a fazer uma releitura dos fenômenos da natureza. Os livros de Jacques Arnould:43 A

38 Augusto Comte, “Curso de Filosofi a Positiva” in Os Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1996), 22.

39 Charles Darwin, A Origem das Espécies (São Paulo: Hemus, 1979).40 John Dillenberg e Claude Welch, Protestant Christianity (New York: Charles

Scribner’s Sons, 1959). 201.41 Charles Darwin, O Beagle na América do Sul (São Paulo: Paz e Terra, 1996):

“Os proprietários de vendas têm modos muito indelicados e desagradáveis; suas casas e suas pessoas são freqüentemente imundas: a falta de garfos, facas e colheres é comum; e tenho certeza de que é impossível achar algum chalé ou choupana na Inglaterra num esta-do de tal carência de conforto”, 17. Mais adiante menciona o uso de armas pela população como um fator de violência. (p. 26).

42 Mauro Grün, Ética e Educação Ambiental - a Conexão Necessária (Campinas-SP: Papirus Editora. 1996). 15-58.

43 Jacques Arnould, A Teologia Depois de Darwin (São Paulo: Edições Loyola, 2001) e Darwin, Teilhard de Chardin e Cia - a Igreja e a Evolução (São Paulo: Paulus, 1999).

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Teologia Depois de Darwin e Darwin, Teilhard de Chardin e Cia - a Igreja e a Evolução, exemplifi cam como a teoria evolucionista forçou a igreja a rever sua posição criacionista. João Paulo II coroou esse processo ao publicar o manifesto pró-evolucionista em 1996: Truth Cannot Contradict Truth - Address to lhe Pontifi cal Academy of Sciences (“A Verdade não pode contradizer a Verdade”).44

Ainda no mesmo século Karl Marx (1818-1883) entrou em contato com a teoria evolucionista darwinista: “Em 1860 estudou os escritos de Charles Darwin e acerca do livro Natural Selection (Seleção Natural) escreveu: ‘É o livro que, no que diz respeito à história natural, contém a base de nossa fi losofi a’. Enviou a Darwin uma cópia do primeiro volume de Das Kapital e mais tarde solicitou a Darwin permissão para dedicar o volume dois a ele (Darwin não aceitou)”.45 Infl uenciado por Feuerbach. Marx concebe a Religião como alienação. Uma visão distorcida do mundo. Ela neutraliza a força revolucionária latente no proletariado. Para ele, para afi rmar o homem é necessário negar a Deus.46

O Teocentrismo medievo deu lugar ao Antropocentrismo manifestado em diferentes escolas do saber, tais como: Naturalismo evolucionista, Humanismo e Materialismo histórico, correntes fi losófi cas que aqueceram as discussões acerca da relação Fé e Razão durante todo o século XX.

44 His Holiness Pope John Paul II, Truth Cannot Contradict Truth - Address to the Pontifi cal Academy of Sciences (“A Verdade não pode contradizer a Verdade”) October 22, 1996 From the October 30 issue of the English edition of L’Osservatore Romano in http://www.newadvent.org/docs/jp02tc.htm

45 Josh McDowell e Don Stewart, Entendo os Religiões Seculares (São Paulo: Candeia, 1982), 42.

46 Para melhor compreender o pensamento de Marx vide: Marx in Os Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1990); Márcio Bilharinho Naves, Marx — Ciência e Revolu-ção (São Paulo: Editora Moderna, 2000).

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Filosofi a, Religião e Hodiernidade

A despeito dos ataques do Capital47 e da Cibernética,48 a Filosofi a e a Religião têm sobrevivido. Na modernidade, Deus era uma hipótese desnecessária: “Quando o matemático, físico e astrônomo francês Pierre Simon de Laplace (1749-1827) apresentou a Napoleão Bonaparte sua Mecânica Celeste, o imperador comentou: ‘escreveste este enorme livro sobre o sistema do mundo sem mencionar uma só vez o Autor do universo’. Laplace respondeu com frase que fi cou famosa: ‘Senhor, não senti necessidade dessa hipótese’. Esse episódio ilustra bem a grande mudança que ocorreu na passagem do século 18 para o 19: a ciência, que até então guardava judiciosamente um lugar para Deus no concerto do universo, passava a proclamar, sem meias palavras, que Ele já não era mais necessário. A razão era uma ferramenta que se bastava para explicar a realidade. Essa visão ultramaterialista daria o tom da teoria do conhecimento que permaneceria até o alvorecer do século 20”.49 No dizer de Nietzche: “O maior dos acontecimentos recentes — que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.50 A metáfora da morte de Deus “signifi ca o fi m do modo tipicamente metafísico de pensar, na medida em que, para ele, o

47 Entenda-se por “ataque do Capital” a mudança ocorrida no mundo religioso europeu após a Revolução Francesa e a introdução do “senhorio” do capital sobre a Re-ligião. Para um estudo mais aprofundado deste tema vide Leo Huberman, História da Riqueza do Homem (São Paulo: LTC editora, 1986); Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1997).

48 Como a tecnologia tem afetado a espiritualidade e a visão de mundo vide: Peter & Paul Lalonde, Você Está Pronto Poro o Novo Milênio? (Belo Horizonte-MG: Editora Betânia, 1999); Tony Schwartz, Mídia: O Segundo Deus (São Paulo: Summus Editorial, 1985).

49 In “Deus Está de Volta”, Revista Globo Ciência. Ano 4- Número 43. Fevereiro de 1995, 27.

50 Friedrich Nietzsche, “Gaia Ciência”. Livro V. §343 in Os Pensadores - Obras Incompletas (São Paulo: Nova Cultural, 1999), 195. Para conhecer outros posicionamen-tos anti-cristãos de Nietzche vide O Anticristo —A Maldição do Cristianismo (Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil Ltda, 1996).

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Cristianismo, tanto como Religião quanto como doutrina moral, constitui uma versão vulgarizada do platonismo, adaptada às necessidades e anseios de amplas massas populares”.51

Hodiernamente o inundo tem presenciado a “ressurreição metafísica” — Deus está de volta.52 Se essa ressurreição não é da carne (crença numa entidade corpórea, inteligente e inteligível), pelo menos é do “espírito” (admissão da existência de um Ser Superior— mera energia ou inteligência cósmica).53 Isso não signifi ca que a Religião e a Filosofi a voltaram a ser Soberanas, mas é visível sua presença e diversas camadas sociais. “Os números não deixam dúvidas de que o poder da fé é global e que, ao contrário do que se acreditava no início do século 20, nem mesmo a secularização da educação, aliada ao avanço da ciência e da tecnologia, foram sufi cientes para diminuir a presença de Deus na vida humana”.54

Tanto a modernidade quanto a pós-modernidade profetizavam a falência da Religião. Mesmo agonizante, a Religião conseguiu sobreviver aos ataques do racionalismo, do naturalismo, do materialismo histórico e do secularismo. Por mais irônico que possa parecer foi o ateu Nietzsche

51 Oswaldo Giacoia Junior, Nietzche. Folha Explica (São Paulo: Publifolha, 2000), 24.52 Fritjof Capra, O Ponto de Mutação (São Paulo: Cultrix, 1982); “Deus Está de

Volta”, Revista Globo Ciência. Ano 4- Número 43. Fevereiro de 1995, 27; “De Onde Vem a Fé?” in Revista Galileu Online. Edição 132, julho de 2002. http://revistagalileu.globo.com/Galileu/o,6993,ECT328778-1719,00.html.

53 Russell Chandler, Compreendendo a Nova Era (São Paulo: Bom Pastor, 1993); Leila Amaral, Gottfried Küenzlen), Godfried Danneels, Nova Era — Um Desafi o Para os Cristãos (São Paulo: Paulinas, 1994); Elizeu C. Lira, Radiografi a da Nova Era (Tatuí-SP: Next Comunicação, 1995); M. Basilea Schlink, Nova Era à Luz da Bíblia (Curitiba-PR: Irmandade Evangélica de Maria no Brasil, 1992); Walter Martin, Como Entender a Nova Era (São Paulo: Editora Vida, 1994); Leonardo Boff, Nova Era: A Civilização Planetária (São Paulo: Editora Ática, 1994); A Águia e a Galinha (Petrópolis-RJ: Vozes, 1999); O Despertar da Águia (Petrópolis-RJ: Vozes, 1999).

54 Fernanda Colavitti, “De Onde Vem a Fé?” in Revista Galileu Online. Edição 132, julho de 2002. http://revistagalileu.globo.com/Galileu/0.6993.ECT328778-1719,00.html.

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que elaborou, na modernidade, o mito do eterno retorno.55 Se ele estava certo, a Religião depois do exílio voltaria para reinar. A. complexidade deste retomo metafísico foi elaborada por Jacques Derrida: “Por que é tão difícil pensar esse fenômeno, apressadamente denominado ‘retorno das religiões’? Por que é surpreendente? Por que deixa atônicos em particular aqueles que acreditam, ingenuamente, que uma alternativa opunha, de um lado, a Religião e, do outro, a Razão, as Luzes, a Ciência, a Crítica (a crítica marxista, a genealogia nietzscheana, a psicanálise freudiana e respectivas heranças), como se a existência de uma estivesse condicionada ao desaparecimento da outra? Pelo contrário, seria necessário partir de outro esquema para tentar pensar o dito ‘retomo do religioso’”.56 Esse regresso ao sagrado não signifi ca voltar a uma religião específi ca. Mas evoca o sobrenatural como hipótese de trabalho.57

55 “Tudo já existiu e tornará a existir. Cada instante retorna um número infi nito de vezes, cada instante traz a marca da eternidade. O universo é animado por um movimento circular que não tem fi m”. Scarlett Marton, Nietzsche - A Transvaloração dos Valores (São Paulo: Editora Moderna, 1999), 31. Essa não era um conceito original. Os gregos antigos já havia elaborado idéia semelhantes. Vide os ófi cos, pitagóricos, jônicos e estói-cos (a doutrina do palingenesia = “denovo gerado” - eterno retorno).

56 Jacques Derrida, “Fé e Saber” in Jacques Derrida e Gianni Vattimo (org), A Religião (São Paulo: Estação Liberdade, 2000), 15.

57 “Para uma melhor compreensão da evolução científi ca e sua relação íntima com a Religião e a crítica à Ciência, vide: Marcelo Gleisler, A Dança do Universo (São Paulo: Cia das Letras, 1999): Alexandre Koiré, Estudos de História do Pensamento Filosófi co (São Paulo: Forense Universitária, 1991); Do Mundo Fechado ao Universo Infi nito (São Paulo: Forense Universitária, 2001); Estudos de História do Pensamento Científi co (São Paulo: Forense Universitária, 1991): Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1995); Rubem Alves, Filosofi a da Ciência (São Paulo: Loyola, 2000); Peter James Cousins, Ciência e Fé - Novas Perspectivas (São Paulo: ABU 1997); Anel A. Roth, Origins - Linking Science and Scripture (Hagertown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1998); Colin Mitchell, Creationsim Revisited (Alma Park, Grantham: Autumn House Limited, 1999); Karl Popper in Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1980); Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientifi c Revolutions (Chicago: The University of Chicago Press, 1962); Michael Behe, A Caixa Preta de Darwin - O Desafi o da Bioquímica à Teoria da Evolução (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997); Alan Sokal e Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais - O abuso da ciência pelos fi lósofos pós-modernos (São Paulo: Record, 1999).

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Conclusões

Religião e Filosofi a são modos de compreensão da realidade imanente. Uma isolada da outra não consegue abranger a totalidade do real. Um dos grandes equívocos epistemológicos foi a separação Religião-Filosofi a. Quando bem compreendidas ambas podem lançar luz à complexidade dos fenômenos que marcam a existência humana. Uma aliança entre Religião, Filosofi a e Ciência58 é o que sugere Carl Sagan. Segundo ele, esse pacto tem funcionado, embora reconheça que seus postulados são, em certos aspectos, excludentes.59 A Religião torna-se essencial num mundo em transformação que gera confl itos existenciais e epistêmicos. Ela traz em si duas dimensões: a ontológica e a ética. Para William James, “a ciência diz que as coisas são; a moralidade diz que algumas coisa são melhores do que outras; e a religião diz, essencialmente, as duas coisas”.60 Albert Einstein compreendeu esse princípio de complementariedade, quando disse: “A ciência sem religião é paralítica; a religião sem ciência é cega”.61

Etimologicamente, o termo fé (pistis) está intimamente relacionado à ciência (epistemi). Sem querer ser redundante, a ciência é uma crença, apriorística, na possibilidade do conhecimento. Enquanto a fé admite uma dimensão que transcende a lógica formal, embora carregue em si elementos lógicos como observou Agostinho: intellige ut credas, crede ut

58 Entenda-se por “ciência” um estágio evolutivo da Filosofi a, ou seja, uma dis-tinção entre o saber especulativo (metafísica) do saber empírico (a verdade comprovada logicamente). Não confundir com a distinção platônica entre “opinião” (doxa) da “verda-de-ciência” (epistémi) Vide Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da Filosofi a (São Paulo: Paulus, 1990), 1:148-149.

59 Carl Sagan, Bilhões e Bilhões - refl exões sobre vida e morte na virada do milê-nio (São Paulo: Cia das Letras, 1998), 150-161.

60 William James, A Vontade de Crer (São Paulo: Edições Loyola, 2001), 42.61 In Humberto Rohden, Einstein - O Enigma do Universo (São Paulo: Alvorada,

1989), 200.

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intelligas (“compreender para crer e crer para compreender”).62 Em outras palavras, a fé não é uma inimiga da razão. Não é um suicídio intelectual.63 A Fé e a Razão devem procurar conviver pacifi camente. Como ponderou João Paulo II: “A ciência pode purifi car a religião, livrando-a do erro e da superstição; a religião pode purifi car a ciência, livrando-a da idolatria e dos falsos absolutos. Cada uma pode introduzir a outra num mundo mais amplo, num mundo em que ambas consigam fl orescer [...] essa cooperação deve ser alimentada e encorajada”.64

Teologicamente, o cristão reconhece que “Deus é o fundamento de todas as coisas. Toda ciência verdadeira está em harmonia com as Suas obras”.65 Segundo a tradição canônica judaico-cristã, após o lapso adâmico, homem e a natureza sofreram processo de degenerescência (Gênesis 3). O homem assumiu a condição de vir-a-ser ad infi nitum. Uma tricotomia ontológica foi estabelecida: O Divino, o humano e o natural. Segundo o relato do Gênesis, uma “inimizade” foi formada. Daí em diante, a Religião assume o papel de confortadora e mediadora nessa relação metafísica confl itante. Nesse cenário beligerante o homem é pressionado constantemente a tomar decisões que nem sempre atenderá satisfatoriamente as dimensões da realidade (a natural, a humana e a espiritual) - gerando os confl itos éticos.

Quando o cristão é forçado a fazer urna opção entre as “evidências científi cas” e os fatos da fé, não deve sentir-se constrangido. Platonicamente falando, está-se discorrendo sobre dois mundos distintos, mas inter-relacionados. No sentido amplo esses confl itos são apenas “aparentes”.

62 José Américo Motta Pessanha “Vida e Obra”, Santo Agostinho- Os Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1996), 13. Textos que comprovam a importância da inteligibilidade nos fatos bíblicos (Hebreus 11:1-3; Ma-teus 22:37; II Timóteo 1:12; João 8:32).

63 Josh McDowell, Evidências Que Exigem um Veredito (São Paulo Candeia, 1992), 4; John R. W. Stott, Crer É Também Pensar (São Paulo: ABU, 1978).

64 In Carl Sagan, Bilhões e Bilhões, 153.65 Ellen G. White, Mente, Caráter e Personalidade (Tatuí-SP: Casa Publicadora

Brasileira, 1999), 2:741.

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Pois “o homem que acredita deve saber que Jesus Cristo nada tem que possa ser considerado em confl ito com a Ciência por um motivo extremamente simples e sobre o qual tanto insistimos. A esfera da nossa existência transcendental não se contrapõe nem à Lógica nem à Ciência, sendo estas atividades o resultado do uso da razão no Imanente”.66 A não compreensão desses mundos ontologicamente antagônicos gera debate inócuo, embora criativos, como o registrado no livro Em Que Crêem os Que Não Crêem? Coletânea de artigos-dialogais entre Umberto Eco e Canos Maria Martini67 Os articulistas são cidadãos de pólis diferentes. É o mesmo que ocorre na mídia lógico-ocidental tentando compreender o sentimentalismo islâmico — não são apenas civilizações em choque, são mundos antagônicos. Por esse ângulo, o argumento de Tertuliano acerca da ressurreição é válido: credo guia absurdum (“creio porque é absurdo”).68

Em suma, a realidade é mais ampla do que qualquer sistema religioso, fi losófi co ou científi co. Apenas um modelo eclético e holístico que respeite o diferente e o oposto poderá elaborar uma melhor compreensão da realidade.

66 Antonino Zichichi, Porque Acredito Naquele que Fez o Mundo (São Paulo: Ob-jetiva, 2000), 219.

67 Umberto Eco e Carlos Maria Martini, Em Que Crêem os Que Não Crêem? (São Paulo: Record, 2000).

68 in Bengt Hãgglund, História da Teologia, 43.

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BARTIMEU: O DISCÍPULO-MODELO (MC 10:46-52)

Discipulado e Seguimento de Jesus no Evangelho de Marcos1

Ozeas Caldas Moura, Th.D.2

Resumo

Entre as muitas narrativas de milagres, no Evangelho de Marcos, está a da cura de Bartimeu - o cego mendigo de Jericó. O reconhecimento e a confi ssão de que Jesus de Nazaré é o Filho de Davi, a fé em Seu poder para salvar, a prontidão em atender-Lhe o chamado e em segui-Lo, com destemor, no caminho que leva à Paixão e à Cruz, fazem de Bartimeu o Discípulo-modelo. O exemplo deixado por este discípulo, continua servindo de inspiração a todo seguidor de Jesus.

Abstract

Among the several miracles ‘narratives, in the Marcos’ Gospel, is the healing of Bartimaeus - the blind beggar of Jericho. The acknowledge and the confession that Jesus of Nazareth is the Son of David, the faith in His power to save, the promptness to attend His calling, and to follow Him with fearless along the road that takes to the Passion and the Cross, make of Bartimaeus the Model disciple. The example left by tris disciple, has been serving of inspiration to the all Jesus’ follower.

1 Este artigo está baseado na Dissertação de Mestrado em Teologia do Dr. Ozeas Caldas Moura, defendida em julho de 1997, na Pontifícia Católica do Rio de Janeiro, e ainda não publicada.

2 0zeas Caldas Moura é Doutor em Teologia Bíblica, pela PUC-Rio. Desde janei-ro de 2003 é o Diretor do Seminário Adventista Latino-americano de Teologia com sede em Cachoeira, BA.

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Introdução

Dentre os relatos de milagres, no Evangelho de Marcos, está o da cura de Bartimeu (10,46-52), cego mendigo de Jericó. Sua fé no poder de Jesus salvou-o de sua cegueira física, bem como o capacitou a ver em Jesus de Nazaré, o Filho de Davi. Este “ver” de Bartimeu não foi passivo: ele segue Jesus “no caminho” que demandava a Jerusalém, onde Jesus seria traído, condenado e morto.3 Segue o Salvador, de maneira resoluta, sem se importar com os riscos desse seguimento.

O exemplo de fé no poder de Cristo, que o leva a ir a Ele “de um salto”, o desvencilhar-se da capa que lhe atrapalhava os passos, sua visão de quem era Jesus: não um simples carpinteiro de Nazaré, mas o Messias enviado por Deus, sua prontidão e destemor em juntar-se a Jesus no caminho que levava à Cruz, fazem de Bartimeu “o discípulo perfeito, no Evangelho de Marcos - o cego que checou a ver e a caminhar.”4

O autor procura, através de uma análise exegética, extrair da Perícope elementos que justifi quem a afi rmação de que Bartimeu é o discípulo-modelo de Jesus, tornando-se, assim, num exemplo digno de imitação no seguimento de Jesus. São também apontados elementos Cristológicos, Soteriológicos, Eclesiológicos e Antropológicos, presentes na Perícope, e como eles podem contribuir para indicar como deve ser o seguimento de Jesus hoje, orientando a igreja de Cristo e seus membros no trato com os desvalidos e marginalizados da comunidade.

Na atualização da mensagem da Perícope para os cristãos hodiernos, é desejo do autor que todos se sintam inspirados e estimulados como exemplo de fé, testemunho e seguimento de Jesus, demonstrados por Bartimeu, procurando seguir-lhe o exemplo.

3 WHITE, E. G. Vida de Jesus, 55. ed. Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1984, p.104.

4 DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 109.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 77

1. Situação Geográfi ca: Jericó.

Jesus e seus discípulos “estavam a caminho, subindo para Jerusalém” (Mc 10,32), subida esta, que O levaria à morte (10,33-34). Nessa caminhada, passam por Jericó, cidade cujo nome signifi ca “lugar de suave odor”.5 Conhecida como a “cidade das palmeiras” (Jz 3,13), Jericó estava situada ao norte do Mar Morto, a 272 metros abaixo do nível do Mar Mediterrâneo. Estando habitada desde a Era Neolítica, antes de 4500 a.C.,6 pode ser considerada uma das cidades mais antigas da Palestina. Foi tomada e destruída por Josué, quando os Israelitas conquistaram a Palestina (Js 6), sendo, mais tarde, reconstruída por Hiel de Betel, durante o reinado de Acabe (1Rs 16,34).

A região de Jericó era de clima tropical, sendo um lugar de palmeiras e sicômoros (Jz 3,13; Lc 19,4). Herodes, o Grande, fez de Jericó sua capital de inverno, embelezando-a com estruturas de estilo helênico. Este foi, ainda, o local de seu falecimento.7 Contava com um palácio de inverno, com uma fortaleza, um teatro e um hipódromo.8 Nessa cidade encontrava-se, também, uma guarnição romana.9

A estrada de Jerusalém a Jericó foi o teatro da cena descrita por Jesus na Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 30-37). Em Jericó Jesus curou dois cegos, sendo um deles Bartimeu (Mt 20,29-34). Foi ali, também, que Zaqueu encontrou a salvação, recebendo Jesus em sua casa (Lc 19,1-10).

Tanto a versão de Marcos (10,46-52), quanto a de Mateus (20,29-34), e também a de Lucas (18,35-43), apontam Jericó como o lugar dessa

5 DAVIS, J. Dicionário da Bíblia, 8. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 305.6 UNGER, M. F. Arqueologia do Velho Testamento, São Paulo: Imprensa Batista

Regular, 1985, p.74.7 BÍBLIA DE JERUSALÉM, Nova Edição Revista. São Paulo: Paulus, 1995. p.

2342.8 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado, Vol. I. São Paulo: Can-

deia, 1995, p.506.9 TAYLOR, V. The gospel according to St. Mark. London: Macmillan Press,

1974, p.447.

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cura: os evangelistas querem chamar a atenção do leitor para o fato de que Jesus se aproximava de Jerusalém, a “Cidade de Davi”, (2 Sm 5,7.9), onde Jesus, o “Filho de Davi”, faria sua entrada triunfal (Mc 11,1-9). A cidade de Jericó era o lugar aonde os peregrinos, oriundos da Galiléia, que vinham pelo caminho a Leste do Jordão10, atravessavam este rio para entrarem na Judéia.11

Além de ser um importante local histórico, Jericó era um local de importância também simbólica: foi a primeira cidade de Canaã a ser capturada por Josué, cujo nome hebraico Yehoshuaʽ corresponde ao grego vIhsou/j. No relato da cura de Bartimeu, vê-se outro “Josué”, “a caminho de Jerusalém, a fi m de conquistar a redenção para o povo que Deus vai salvar.”12 Nesta cidade, tem lugar a última cura milagrosa de Jesus narrada pelos evangelhos sinóticos.13

Chegando ou saindo de Jericó? A versão de Mateus diz que o encontro de Jesus com o(s) cego(s) deu-se “Enquanto saíam de Jericó” (Kai. evkpreuome,nwn auvtw/n avpo. vIericw, - Mt 20,29). A narrativa de Lucas situa o episódio “quando ele se aproximava de Jericó” – evn tw|/ evggi,zein auvto.n eivj vIericw, -18,35). Já a versão de Marcos concorda com a de Mateus: o encontro deu-se “ao sair de Jericó” – kai. evkporeuome,ou auvtou/ avpo. vIericw, (Mc 10,46).

Uma possível explicação para esta aparente discrepância, é que Mateus e Marcos se referem à cidade antiga, conquistada por Josué, pela qual Jesus acabava de passar, ao passo que Lucas fala da nova Jericó,

10 DAVIS, falando da Palestina dos dias de Cristo, diz que havia dois caminhos acompanhando o Jordão, da Galiléia para a Judéia - um a Leste e outro a Oeste. Ambos se encontravam em Jericó (DAV1S, J., op. cit., p. 655).

11 HURTADO, L. W. Marcos. Florida: Editora Vida, 1995, p. 186.12 Ibid, p. 186.13 SCHIMID. J. El Evangelio Segun San Marcos. Barcelona: Herder, 1967, p.

293.

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edifi cada por Herodes, o Grande, na qual Cristo seria recebido por Zaqueu (Lc 19,1-10). Assim, o milagre teria ocorrido no caminho entre estas duas localidades.14

Segundo Gundry,15 a sugestão de que a cura de Bartimeu ocorreu no caminho que saía da velha Jericó e entrava na nova, soluciona a aparente discrepância entre Marcos e Mateus (“Saindo de Jericó”) e Lucas (“Ao aproximar-se de Jericó”).

Já Burnier,16 diz que um pormenor desses de localização não interfere de modo algum no valor da mensagem nem na sua qualidade teológica, e, pode-se dizer, com acerto, que, no caso do cego de Jericó, Marcos é quem conservou mais fi elmente a lembrança exata do ocorrido, seguido, então, por Mateus.

No entanto, pode-se dizer ser realmente desprovido de sentido teológico afi rmar que Jesus “entrava” ou “saía” de Jericó? Tendo-se em vista a importância dada por Marcos ao tema da caminhada e seguimento de Jesus, a menção do sair coloca em relação mais estreita o relato de Mc 10,46-52 com o caminhar em direção a Jerusalém por Jesus e aqueles que o seguem, incluindo-se, agora, mais um novo discípulo - Bartimeu, o cego curado.

O colega de Bartimeu: O relato de Marcos concorda com o de Lucas, no fato de mencionarem apenas um cego (Mc 10,46 e Lc 18.35). Já Mateus menciona dois cegos (Mt. 20,30). É possível que “tal como na história dos endemoninhados gerasenos, Marcos e Lucas mencionam apenas o porta-voz, Bartimeu, dentro do par mencionado por Mateus.”17

14 ORCHARD), B. et al. Verbum Dei - comentário a La Sagrada Escritura, Vol. III. Barcelona: Herder, 1960, p. 526.

15 GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 194.

16 BURNIER, M. P. Perscrutando as Escrituras - São Marcos (V). Petrópolis: Vozes, 1969, p, 61.

17 GUNDRY, R N., op. cit., p. 194.

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2. Situação Social de Bartimeu: cego e mendigo.

Bartimeu é apresentado no Evangelho de Marcos (10,46) como “cego mendigo”- tuflo.j prosai,thj - (Mc 10,46), que “estava assentado à beira do caminho” - (evka,qhto para. odo,n).

A cegueira era bastante comum no Oriente Próximo, sendo que o brilho do sol, a poeira e a sujeira podem ser apontados como as causas principais que podiam causar a infl amação dos olhos e levar à cegueira.18 Muitas crianças já nasciam cegas (Jo 9,1). Esta doença fazia avultar o número de mendigos (Mt 9,27; 12,22; 20,30; 21,14), pois, estando incapacitados para outros trabalhos, restava-lhes pedir esmolas.19 Tal era a situação de Bartimeu.

Era proverbial a incapacidade dos cegos: “Ficarás tateando ao meio-dia, como o cego que tateia na escuridão...” (Dt 28,29); “Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como os que não têm olhos, andamos às apalpadelas, tropeçamos ao meio-dia como se fosse no crepúsculo...” (Is 59,10); “Erram como cegos pelas ruas...” (Lm 4,14).

Estando os cegos entre os mais fracos e necessitados entre o povo, estavam sob a proteção especial da Legislação Mosaica, que continha artigos muito humanitários a favor deles: “Não amaldiçoarás o mudo e não porás obstáculo diante de um cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou Iahweh” (Lv 19,14). Uma das maldições que o povo deveria proferir no monte Ebal, era: “Maldito seja aquele que extravia um cego no caminho! E todo o povo dirá: Amém!” (Dt 27,18).

A pessoa piedosa ajudava os cegos. Em sua apologia da vida que até então levara, Jó lembra aos seus amigos que cuidara dos desvalidos e servira de “olhos para o cego” (Jó 29,15).

Batimeu estava entre as camadas mais carentes da sociedade de seus

18 BROWN, C. O novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. Vol. I. São Paulo: Vida Nova, 1989, p.396.

19 DAVIS, J. op. cit., p. 113.

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dias. Rohrbagh20 diz que este cego estava na classe social dos degradados, impuros, pródigos, mendigos; no baixo status das prostitutas, dos pobres trabalhadores diaristas e dos curtidores. Difíceis eram as condições de vida dessas pessoas e pouco ou nada se podia fazer para melhorá-las.

Estando entre os mais carentes da sociedade, Bartimeu sobrevivia da bondade dos transeuntes que passavam no caminho para Jericó. Pouca ou nenhuma perspectiva tinha de sair de tal situação. O encontro com Jesus de Nazaré, no entanto, acabaria por tirá-lo da condição de cego mendigo, dando, assim, um novo rumo à sua vida.

3. Situação Religiosa e Cultural da Palestina nos dias de Jesus - a questão da cegueira.

Em contraste com a lei penal babilônica e de outros povos (p. ex.: os Assírios), o cegar não era um castigo usado pelos israelitas.21

A cegueira, em Israel, era vista como um defeito, capaz de impedir alguém que o tivesse de atuar como sacerdote. Iahweh ordenou a Moisés que dissesse a Aarão: “Nenhum dos teus descendentes, em qualquer geração, se aproximará para oferecer o pão de seu Deus, se tiver algum defeito. Pois nenhum homem deve se aproximar, caso tenha algum defeito, quer seja cego, coxo, desfi gurado ou deformado... Nenhum dos descendentes de Aarão, o sacerdote, poderá se aproximar para apresentar oferendas queimadas a Iahweh, se tiver algum defeito; tem defeito, e por isso não se aproximará para oferecer o pão do seu Deus” (Lv 21,17.18.21).

Animais cegos não podiam ser oferecidos em sacrifício. Moisés deveria advertir o povo sobre isso: “Não oferecereis a Iahweh animal cego, estropiado, mutilado, ulceroso, com dartros ou purulento. Nenhuma parte de tais animais será colocada sobre o altar como oferenda queimada

20 ROHRBAUGH, R. L. “The social location of the Markan audience”, In: Inter-pretation, number 4, octuber, 1993, p. 387. Richmond: Union Theological Seminary in Virginia.

21 BROWN, C., op. cit., p. 396.

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a Iahweh” (Lv 22,22).

O judeu considerava a cegueira como um castigo divino contra o pecado humano, porque impedia o estudo da Lei. Ao ver um cego, a bênção pronunciada era: “Bendito seja o Juiz verdadeiro!”, dando a entender que a cegueira era um julgamento justo de Deus contra os pecados da pessoa cega ou contra os pecados de seus pais, que se revelavam nos fi lhos.22

O caso do cego de nascença, curado por Jesus, cuja cura é relatada no capítulo 9 do Evangelho de João, ilustra bem a questão de ser a cegueira encarada como resultado do pecado. Ao verem um cego, os discípulos perguntaram a Jesus: “Rabi, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego? (Jo 9,2). Provavelmente, baseavam-se em Ex 20,5: “... porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os fi lhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam”, ou em Dt 28,28. 29, onde a cegueira é mencionada ao lado de outros males, como castigo divino, pela desobediência do povo às ordenanças divinas: “Iahweh te ferirá com loucura, cegueira e demência; fi carás tateando ao meio-dia como o cego tateia na escuridão.”

Os cegos e as pessoas portadoras de outros defeitos eram excluídos da comunidade de Qumran (cf. 1 Qsa 2,5s; 1 QM 7,4-5). Provavelmente, a comunidade baseava-se em Levítico 21,18s, embora a justifi cativa ofi cial era a de que “os anjos da santidade estão em sua congregação.”23

Assim, Bartimeu sofria duplamente: era cego, e, conseqüentemente, pobre e mendigo, e era visto como alvo do castigo divino (por seu pecado ou pelos pecados de seus pais e antepassados).

22 BROWN. C., op. cit., p. 396.23 Ibid. época em que Pôncio Pilatos (26-36 d.C.) era o procurador da Judéia e

Herodes Antipas (4 a.C. - 39 d.C.) o tetrarca da Galiléia, sendo sumo-sacerdote Caifás (18- 36 d.C.).

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4. Situação Política: a espera do Messias e sua obra.

Bartimeu viveu nos dias do imperador Tibério César (14-37 d.C.), na época em que Pôncio Pilatos (26-36 d.C.) era o procurador da Judéia e Herodes Antipas (4 a.C. -39 d.C.) o tetrarca da Galiléia, sendo sumo-sacerdote Caifás ( I 8-36 d.C).24

Como todo o povo de Israel, Bartimeu aguardava a chegada do Messias, que faria com que uma nova era de glória raiasse para a nação Israelita, então subjugada pelos romanos. Assim, os Evangelhos sinóticos apresentam as curas, entre elas a de cegos, como uma prova de que a nova era raiou, do modo predito pelos profetas.25

Isaías mencionara que uma era nova raiaria para Jerusalém. Seria uma era de bênçãos, quando, então, os olhos dos cegos seriam abertos (Is 35,5). Na promessa de libertação proclamada por Jeremias, os cegos são mencionados explicitamente: “Eis que os trago da terra do Norte, reúno-os dos confi ns da terra. Entre eles há o cego e o aleijado, a mulher grávida e a que dá à luz, todos juntos: é uma grande assembléia que volta” (31,8).

João diz que, “vendo os sinais que [Jesus] fazia, muitos creram em seu nome” (2,23). Com a cura de cegos, leprosos: paralíticos, endemoninhados, e mortos ressuscitados, “muitos judeus creram em Jesus como o Messias de Israel.”26 Cada milagre operado por Jesus, foi um sinal que Ele “estava fazendo a própria obra predita acerca do Messias.”27

24 DAVIS, J., op. cit., pp. 95, 115, 116, 270, 477 e 485.25 BRUCE, F. F. João - introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1990,

p.191.26 FELLFR, M. Jerusalém - cidade do Grande Rei. Recife: Instituto da Herança

Judaica, 1989.p. 235.27 WHITE, E. G. O Desejado de todas as nações, 8. ed. Santo André: Casa Publi-

cadora Brasileira, 1976, p. 392.

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Os milagres, no Segundo Evangelho, ocupam uma parte maior em seu curto relato do que nos outros evangelhos. Lagrange28 diz que não há nada de improvável na História a não ser os milagres, mas, sem os milagres, muitas coisas na história de Jesus são extremamente improváveis: o entusiasmo do povo, o fato de muitos acreditarem que Ele era o Messias - apesar dele nunca ter dito isto, a fé em sua pessoa, demonstrada por seus discípulos e pelo povo que os acompanhavam, questiona o “improvável.” Os milagres realizados por Cristo estavam testemunhando essa realidade, por si só. João, mais tarde, vai usá-los nesse sentido: eles apontavam para além daquilo que Marcos registrava: para o fato de que Jesus de Nazaré é o enviado do Pai. “Este evangelho faz supor a existência divina de Cristo em toda a extensão de seu texto e também relata algumas tremendas manifestações desta divindade.”29

Certamente, Bartimeu já ouvira falar acerca dos milagres de Jesus. Esses relatos de curas confi rmavam-lhe a crença em Jesus como o Messias. Não é sem razão, então, que se dirige a Jesus chamando-o por duas vezes de “Filho de Davi” (Mc 10, 47.48). Tal título aparece aqui, em Marcos, pela primeira vez- Marcos, aliás, é bastante parcimonioso no uso desse título. “Deveria ser o título messiânico mais caro ao povo, que esperava ansiosamente a restauração do reinado e da dinastia de Davi.”30

28 Citado por WARD, M. Eles viram a Sua gloria - introdução aos Evangelhos e Atos dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 131. Improvável na História a não ser os milagres, mas, sem os milagres, muitas coisas na história de Jesus são extremamente improváveis: o entusiasmo do povo, o fato de muitos acreditarem que Ele era o Messias - apesar dele nunca ter dito isto, a fé em sua pessoa, demonstrada por seus discípulos e pelo povo que os acompanhavam, questiona o “improvável.” Os milagres realizados por Cristo estavam testemunhando essa realidade, por si só. João, mais tarde, vai usá-los nesse sentido: eles apontavam para além daquilo que Marcos registrava: para o fato de que Jesus de Nazaré é o enviado do Pai. “Este evangelho faz supor a existência divina de Cristo em toda a extensão de seu texto e também relata algumas tremendas manifestações desta divindade.”

29 WARD, M., op. cit., p.139.30 BATTAGLIA, O., et all. Comentário ao Evangelho de São Marcos. Petrópolis:

Vozes, 1978, p. 103.

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5. O Propósito da Perícope no Evangelho de Marcos.

Marcos, com certeza, tem um objetivo em relatar a cura de Bartimeu e sua confi ssão de ser Jesus “o Filho de Davi”, na caminhada fi nal de Jesus em direção à Jerusalém, rumo à cruz.

A cura de Bartimeu (e também a de seu companheiro, cf. Mt 20,29-33) deve ter sido a última cura de cegos, atribuída a Jesus,31 dentre as muitas que realizou. Se se omite a história da fi gueira amaldiçoada (Mc 11,12-14. 20- 25), que, na verdade, não é uma história de milagre semelhante às demais, no Evangelho de Marcos, a cura do cego Bartimeu é o último milagre relatado por este evangelista.

A cura de Bartimeu é um milagre que representa um clímax, e, por isso, merece toda a atenção. Constitui o encerramento de uma série de Perícopes (8,27-10,52), onde Jesus ensinou a respeito de Seus sofrimentos próximos e da senda do discipulado. Em Marcos, esse milagre é usado como veículo para a comunicação dessas lições sobre Jesus.32

Os dois relatos de curas de cegos em Mc 8,22-26 e em 10,46-52, funcionam como símbolos ou pilares-estruturas. Os capítulos 8-10 do Evangelho de Marcos são devotados ao descortínio do destino de Jesus em Jerusalém, o verdadeiro signifi cado de Sua missão e a tentativa de iluminar os discípulos (e também os leitores deste Evangelho), “quanto à pessoa de Jesus e o papel que devem desempenhar Seus seguidores.”33

31 Alfonso Garcia Rubio afi rma que “Jesus não se dedica a fazer milagres, não pretende ser um taumaturgo (realizador de portentos maravilhosos), não toma a iniciativa de realizar curas: atende a quem dele se aproxima pedindo ajuda.” (RUBIO, A. G. O en-contro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 69). Béda Rigaux, no entanto, diz que Jesus de Nazaré não é, para Marcos, um homem entre os demais. Segundo ele, a imagem mais clara que o leitor retém de Jesus e o seu poder taumatúrgico: só no seu Evangelho, Marcos apresenta Jesus operando 20 milagres. (RIGAUX, B., op. cit., pp. 121-2).

32 HURTADO, L. W., op. cit., p. 186.33 Ibid.

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Os numerosos milagres realizados por Cristo, entre os quais a restauração da vista aos cegos, mostram que, de fato, Jesus de Nazaré é o Filho de Deus,34 o Messias que viera recuperara vista tanto aos cegos físicos (Mt 15, 30-31), quanto aos cegos espirituais (cf. Jo 9,39-4 I ).

O relato da cura de Bartimeu está situado na terceira parte do Evangelho de Marcos, que trata da caminhada de Jesus rumo à Jerusalém e Sua Paixão naquela cidade. Marcos deve tem como propósito, ao relatar esse milagre, a caminhada e o seguimento de Jesus, pela comunidade leitora de seu Evangelho: o exemplo de prontidão do ex-cego em seguir Jesus sem se importar com as difi culdades (deve-se lembrar que Jesus caminhava para a morte), deveria motivar cada pessoa dessa comunidade, bem como a quantos viessem a ler seu Evangelho.

Mas, para que haja caminhada e seguimento, faz-se necessário “ver”, no sentido de se compreender Jesus e Sua missão. A comunidade de Marcos não deveria imitar os próprios discípulos de Jesus - tão lentos em compreender Sua missão e futura paixão (Mc 8,31-32; 9,31-32, 10, 32-45), mas fazer como Bartimeu: tão logo recobrou a visão, tornou-se um discípulo de Jesus, seguindo-O “no caminho” (Mc 10,52).

“O real milagre na história de cura do cego de Jericó parece ser, o dom do discernimento propiciado pela fé.”35 Pode-se dizer, então, que “a chave de leitura do Evangelho de Marcos é a descoberta do Messias.”36 O Evangelho pode ser chamado de “o itinerário do discipulado”, no qual os discípulos precisam discernir a missão e o seguimento de Jesus.37 Na perícope da cura de Bartimeu, vê-se que ele discerne em Jesus de Nazaré o Messias e O segue.

34 CAIRNS. E. E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 1992, p. 43.

35 CARROL, J. T. Interpretation, number 2, april 1995, p. 132.36 MAZZAROLLO, I. A Bíblia em suas mãos. 2. ed. Porto Alegre: Est Edições,

1996, p.116.37 Ibid.

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6. Exegese do Texto.

Numa primeira observação da Perícope (Mc 10,46-52), vê-se bem destacada a situação miserável do cego (v. 46), seu grito por ajuda (v. 47), a repreensão que sofre por parte da multidão (v. 48a), a insistência, por parte do cego, em pedir ajuda (v. 48b), o chamado de Jesus ao cego (V. 49), a ida de Bartimeu a Jesus (v.50), a cura efetuada (vv. 51-52a ) e o seguimento de Jesus por parte do cego curado (v. 52b).

Tendo como ponto central a humana necessidade e desesperança e a compaixão de Cristo, se encontram:

- Da parte do cego: seu grito por ajuda; seu reconhecimento da Messianidade de Jesus;38 sua insistência em pedir auxílio, mesmo quando é repreendido pela multidão; sua prontidão em ir ter com Jesus, demonstrando, assim, sua fé no poder do Salvador; seu seguimento de Jesus, “no caminho” que leva à cruz.

- Da parte da multidão: sua indiferença e repreensão ao cego que clamava por ajuda; sua mudança de atitude para com o cego, após Jesus tê-lo chamado, o que demonstra a volubilidade da multidão em seu comportamento e atitudes. Daí o perigo de se seguir a multidão.

- Da parte de Jesus: Seu interesse pela situação do cego, ao parar a caminhada, chamá-lo e perguntar o que ele queria; Seu louvor à demonstração de fé, por parte do cego; A cura da cegueira de Bartimeu.

6.1 - O Pedido de Bartimeu - 10,46-48:

6.1.1 - O cego Bartimeu. “...estava sentado à beira do caminho, mendigando, o cego Bartimeu...” (10,46). O vocábulo grego tuflo,j, de

38 Bartimeu crê que Jesus de Nazaré é o “Filho de Davi” (designação judaica do Messias). Jesus louva-lhe a fé dizendo: “A tua fé te salvou” (Mc 10,52a). Não é uma fé totalmente acrisolada ainda, mas o sufi ciente para crer na bondade e no poder de Jesus em salvá-lo de sua vida desesperançada. (SCHNACKENBURG. R., op. cit., p. 121).

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Homero em diante, signifi ca “cego.”39 É empregado literalmente para homens e animais, e também no sentido fi gurado dos outros sentidos e da mente. É ainda aplicado “a coisas escuras e obscuras e também a rios e portos entupidos com lama. É bem atestado o costume bárbaro de cegar por vingança ou castigo.”40

Na LXX, a cegueira também é empregada metaforicamente. As propinas podem cegar as pessoas de tal modo que elas não enxergam a injustiça: “Não aceitarás presentes, porque os presentes cegam até os perspicazes e pervertem as palavras dos justos” (Ex 23,8); “Não perverterás o direito, não farás acepção de pessoas e nem aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos do sábio e falseia a causa dos justos” (Dt 16,19). Deus permite que o desobediente acabe não vendo o que é reto e verdadeiro: “Embota o coração deste povo, torna pesados os seus ouvidos, tapa-lhe os olhos, para que não veja com os olhos, e não ouça com os ouvidos, e não suceda que o seu coração venha a compreender, que ele se converta e consiga a cura” (Is 6,9).

Os profetas do AT falam do estado de cegueira do povo de Israel, que, deixando a proteção de Iahweh, se voltava pare os ídolos (cf. Is 42,17.18; 43,8.10-13).

A cegueira também é empregada metaforicamente no NT. Jesus chama os Fariseus de “guias cegos” que conduzem outros cegos (Mt 15,14). Paulo (Rm 2,18.19) menciona que os judeus, treinados na Lei, consideravam-se “guias de cegos” (ovdhgo.n tuflw/n) em relação aos pagãos que não conheciam a Lei. Achavam que somente eles, judeus, poderiam trazer luz e oferecer a verdade e o entendimento aos “cegos” pagãos.

Jesus não mostrou simpatia pela cegueira dos Fariseus. Pelo contrário: condenou-os, pois a cegueira em não reconhecer os sinais do Reino e da chegada do Messias, tornava-os endurecidos (cf. Mt 16,1-4; Mc 8,11. 12).

39 BROWN. C. ed. O novo dicionário internacional de teologia do Novo Testa-mento. Vol, I. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 396.

40 Ibid.

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Marcos coloca a cura do cego Bartimeu, que conseguiu ver (no sentido físico e espiritual) precedendo a rejeição fi nal de Jesus e sua condenação à morte. Ao fazer isso, quer Marcos apresentar o contraste entre a atitude deste cego, que vê em Jesus o Messias, e a atitude negativa dos líderes que estavam cegos para a pessoa e missão de Jesus. Salvo alguns, como Nicodemos (Jo 3,2), Zaqueu (Lc 19,1-10), o Centurião, junto à cruz (Lc 23,47), as autoridades permaneceram cegas quanto ao fato ser Jesus de Nazaré o Enviado de Deus. No Evangelho de João está escrito que “apesar de ter realizado tantos sinais diante deles, não creram nele”( 12,37).

Mas o estado de cegueira não se limitava só às autoridades. Os próprios discípulos eram tardios em compreender a natureza do messianismo de Jesus. Mesmo após Sua ressurreição, Jesus teve que dizer a dois deles, no caminho para Emaús: “insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas anunciaram! Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24, 25. 26).

6.1.2 - Bartimeu, fi lho de Timeu. Dos três sinóticos, só Marcos menciona o nome do cego curado: trata-se de “Bartimeu, fi lho de Timeu” (o uio.j Timai,ou Bartimai/oj). É o único nome próprio numa história sinótica de milagre (com exceção de Mc 5,22, onde Jairo é mencionado, em relação à ressurreição de sua fi lha).41

A menção estranha e desusada do nome do cego, “prova de que se trata de uma autêntica tradição histórica.”42 Marcos tão raramente recorda nomes, que este relato merece crédito.43

41 BULTMANN crê que é possível que o nome “Bartimeu”, que falta em Mateus e em Lucas, foi colocado mais tarde no Evangelho de Marcos, e que este Evangelho, em suas forma atual é de uma formação tardia. (BULTMANN, R. L’Histoire de la tradition synoptique. Paris: Éditions du Seuil, 1973, p. 264). CRANFIELD diz que a frase explica-tiva “o fi lho de Timeu”, antes do nome aramaico “Bartimeu”, sugere a possibilidade que ela seja uma glosa de um escriba. (CRANFIELD, C. E. B., op. cit., p.344).

42 SCHMID, J. El Evangelio según San Marcos. Barcelona: Herder, 1967, p. 293.43 TAYLOR, V. The gospel according to Saint Mark. 2. ed. London: Macmillan

Press, 1974, p.446.

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Há várias conjecturas sobre as razões para a menção do nome deste cego: 1) Bartimeu teria sido o porta-voz, dentre os dois cegos curados em Jericó, mencionados por Mateus (20, 29-34);44 2) A menção do nome do cego, em Marcos, poderia dar-se pelo fato de que Bartimeu (um dos dois cegos curados) foi quem se tomou discípulo de Jesus, e, mais tarde, um membro da Igreja - a conclusão da narrativa aponta para isso: “...e o seguia no caminho” (Mc 10, 52b);45 3) Bartimeu em mais célebre e conhecido que seu companheiro curado;46 4) Marcos teria conservado mais fi elmente a lembrança exata do ocorrido,47 daí lembrar-se do nome de um dos cegos curados em Jericó.

Quanto à derivação do nome de Bartimeu, não se tem muita certeza. Pode ser derivado da forma grega Timaio/j, nome familiar na obra Timeu, de Platão.48 Mais provavelmente, pode ser um patronímico de origem aramaica, signifi cando “fi lho de Timeu (Bartime’ai), ou “fi lho impuro” (tame’). Ser derivado de samya (cego) é altamente duvidoso.49 Timai/oj é, muito provavelmente, o nome grego para Timay. (Um Rabi Josué Bartimay é mencionado num Midrash sobre o Eclesiástico).50

A menção de seu nome sugere que Bartimeu deveria ser bem conhecido na Igreja de Jerusalém51 “adquirindo uma certa notoriedade entre os primeiros cristãos.”52 Provavelmente, o cuidado em mostrar

44 GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 194.45 DIBELIUS, M. From tradition to gospel. London: Redwood Press Limited,

1971, pp. 52-3.46 LAGRANGE, M.-J. Sinossi dei Quattro Evangeli. 4. ed. Brescia: Morceliana,

/ s.d./, p. 174.47 BURNIER, M. P. Perscrutando as Escrituras - São Marcos (V). Petrópolis:

Vozes, 1969, p. 61.48 TAYLOR, V., op. cit., pp. 447-8.49 Ibid.50 CRANFIELD, C. E. B., op. cit., p. 344.51 TAYLOR, V., op. cit., p. 448.52 LONGTON, J. Dictionnaire encyclopedique de la Bible. Maredsous: Brepols,

1987, p. 188.

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quem era seu pai (Timeu), mostra que ambos (e, talvez a família toda) se tornaram elementos da Igreja Cristã, conhecidos nos dias de Marcos. Não é impossível que Bartimeu tenha podido narrar aos evangelistas a história do episódio, a qual aparece nos Evangelhos sob diversas formas, por razões desconhecidas.53

6.1.3 - Cego e mendigo. Bartimeu era “cego e mendigo” (tuflo,j prosai,thj). Como cego, difi cilmente lhe restaria outra opção, a não ser a de pedir esmolas. Dessa maneira, estava na mesma classe social dos degradados, impuros e pródigos, dos pedintes, das prostitutas, dos pobres trabalhadores diaristas e dos curtidores54 (estes últimos eram tidos por cerimonialmente impuros “devido ao seu continuo contato com animais, razão pela qual sua companhia devia ser evitada”).55 As condições de vida das pessoas dessa classe social eram aterradoras, e suas oportunidades virtualmente reduzidas a zero.56

Além de ser um defeito cúltico (cegos não podiam atuar como sacerdotes - cf. Lv 21,18), a cegueira era vista como um castigo divino ao pecado humano (cf. Jo 9, 1-2). Era considerada maldição porque impedia o estudo da Lei. Pessoas cegas não eram admitidas na comunidade de Qumran.57

Deveras deplorável era a situação deste cego de Jericó: era, não somente um cego (e, conseqüentemente, tido como um amaldiçoado por Deus), mas também um mendigo - duas circunstâncias que, freqüentemente, vão lado a lado: Para sobreviver, dependia da misericórdia alheia.58

53 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado. Vol. I. São Paulo: Can-deia, 1995, p. 754.

54 ROHRBAUGH, R. L. “The social location of the Markan audience”, In: Inter-pretation, number 4, p. 387, octuber, 1993. Richmond: Union Theological Seminary in Virginia.

55 GUNDRY, R. L., op. cit., p.248.56 ROHRBAUGH, R. L., op. cit., p. 387.57 BROWN, C. Vol. I, op. cit., p. 396.58 HENDRIKSEN, W. The gospel of Mark. Edinburg: Banner, 1975, p. 420.

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6.1.4- O grito por ajuda. “Quando percebeu que era Jesus, o Nazareno, que passava, começou a gritar: ‘Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim!’”(10,51).

Marcos, ao relatar a passagem de Jesus por Jericó, parece ter em mente a perspectiva do Êxodo e da conquista da Palestina.59 Como Josué, mais de um milênio antes, Jesus também passa por Jericó, antes de subir à Jerusalém.

Em Jericó, é aceito como Messias (o “Filho de Davi”) pelo cego Bartimeu (Mc 10,47-48), e como Salvador por Zaqueu, o coletor de impostos (Lc 19, 1-10). Marcos poderia estar fazendo, nesta perícope, uma crítica profética à não recepção messiânica de Jesus, ao contrapor Sua aceitação em Jericó (simbolizada pelo discernimento e pela visão) e Sua rejeição e condenação à morte em Jerusalém (simbolizada pela falta de discernimento e cegueira quanto à Sua pessoa e missão).60

Ao ouvir que era Jesus, o Nazareno quem passava, Bartimeu começou a gritar61: “Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim!” Pela maneira com que se dirigiu a Jesus, pressupõe-se de que já ouvira falar dEle. Certamente já ouvira a respeito de outras curas de cegos, efetuada por Jesus de Nazaré. Deve ter-se perguntado se não seria Ele o Messias, uma vez que, dele se esperava que desse vista aos cegos.62 Certamente, nutria a esperança de algum dia poder encontrar-se com Jesus e receber dele a cura. Mas, passaria Jesus por aquele caminho? Mas naquele dia os conselhos de Deus estavam em seu favor, como sempre acontece com os que reconhecem sua necessidade e cegueira.63

59 HURTADO, L. W. Novo comentário bíblico contemporâneo - Marcos. Florida: Editora Vida, 1995,p. 186.

60 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 121.61 O verbo grego para “gritar” é kra,zw, “que tem uma derivação onomatopaica,

kr+vogal+gutural, o que refl ete o grasnido rouco do corvo. Krazo é comum nos sinóticos,

e se emprega, primariamente, para gritos por socorro, que brotavam da necessidade e/ou

do medo (Mt 9,27; 14261). (BROWH, C., op. cit., Vol. I. pp. 439-40).62 CHAMPLIN, R. N., op. cit., pp. 293-4. 63 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 506.

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O grito por ajuda, da parte de Bartimeu, provê um quadro perfeito de como alguém vai a Deus: ansiando por uma vida plena e cônscio de sua situação miserável, grita por ajuda.64 “Bartimeu é o eterno quadro de alguém em necessidade.”65 Seu clamor não caiu em ouvidos moucos - Jesus não somente passou pelo caminho onde estava o cego, como também curou-o, dando-lhe novo rumo à vida.

6. 1.5 - A repreensão da multidão.

“E muitos o repreendiam para que se calasse. Ele, porém, gritava mais ainda: ‘Filho de Davi, tem compaixão de mim!’” (10,48).

Repreenderam o cego e o mandaram calar (simwpa,w = guardar

silêncio, calar-se, fi car mudo).66 Foi bastante cruel, da parte de muitos da multidão quando, à cegueira de Bartimeu, quiseram acrescentar-lhe a mudez. “As multidões, com sua imediata intolerância, com suas emoções indisciplinadas, podem fazer coisas cruéis e sem dó.”67 Para ela, o mendigo não tinha importância: era apenas um cego que, naquele momento, incomodava a caminhada.

Usualmente, as multidões demonstravam o desejo de ver Jesus realizar algum milagre; porém, no episódio do cego Bartimeu, em Jericó, todos se sentiam ansiosos para que Jesus logo chegasse a Jerusalém, a fi m de inaugurar o reino de Deus, de acordo com o conceito político que dele tinham. Parecia indiscutível que a sua determinação por subir à Jerusalém, apesar de toda a oposição das autoridades, signifi cava que Ele estava prestes a declarar guerra, esmagar os Seus inimigos e estabelecer o reino visível.68

64 MOULE, C. F. D. The gospel according to Mark. London: Cambridge Univer-sity Press, 1976, p. 85.

65 COLE, A. Mark. Leicester: Inter-Varsity Press, 1977, p. 172.66 TAYLOR, W. C. Dicionário do Novo Testamento grego, 5. ed. Rio de Janeiro:

JUERP. 1978, p. 199.67 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 754.68 GUNDRY, R. H. op. cit., p. 193-4.

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É possível que tivessem repreendido o cego por acharem que nenhum esmoler cego fosse digno da atenção de Jesus. Reis, geralmente, não dão atenção a esmoleres cegos.69 Jesus, entretanto, era um tipo diferente de rei: recebia os cegos em Sua comunhão, “dando-lhes, assim, a participação no reino de Deus.”70

Adam Clarke observa, com grande propriedade, que “sempre que uma alma começa a clamar por Jesus, rogando luz e salvação, o mundo e o diabo se aliam para sufocar esse clamor e obrigá-la ao silêncio.”71

A interrupção de Bartimeu deve ter aborrecido a multidão, que estava interessada em Jesus - o foco da atenção do momento. O fato de Bartimeu lançar, confi antemente, sua insignifi cância no meio do palco era um transtorno. “Enfrentaram isso com indiferença de pedra e com a ordem de calar-se. A reprimenda deles tem ecoado através... dos séculos.”72

Os que repreenderam o cego representam os indiferentes, os que não se sensibilizam com o sofrimento do outro. Hoje, ainda, a resposta de muitos aos clamores dos necessitados é para que se calem. Bartimeu, no entanto, “gritava mais ainda...” (Mc 10,48). “Ele tem a graça da perseverança”,73 e esta não foi desapontada.

6.2 - A Cura - 10,49-52:

6.2.1 - O chamado de Jesus.

“Detendo-se, Jesus disse: ‘Chamai-o!’ Chamaram o cego, dizendo-lhe:

‘Coragem! Ele te chama. Levanta-te’” (10,49)

69 CHAMPLIN. R. N., op. cit., pp. 506-7.70 BROWN, C., op. cit., p. 396.71 Citado por CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 507.72 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 754.73 COLE, A., op. cit., p. 172.

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O grito por ajuda fez Jesus deter-se. Agindo diferentemente dos que repreenderam o cego, Ele parou e mandou chamá-lo. Para Jesus, todos são importantes, especialmente os que sofrem, os carentes e necessitados. Atendendo e curando Bartimeu, Jesus estava cumprindo Sua missão messiânica de evangelizar os pobres, proclamar a remissão aos presos e dar vista aos cegos (cf. Is 61,1-2 / Lc 4,18).

Curiosa é, aqui, a atitude da multidão.74 Aqueles que antes repreendiam o cego e ordenavam que ele se calasse, agora o animam a ir a Jesus. Percebe-se como as emoções de muitos, numa multidão, podem ser indisciplinadas, mudando ao sabor dos acontecimentos. Daí o conselho para se evitar tomar o partido da multidão ou de se inclinar para a maioria (cf. Ex 23,5).

João menciona que as multidões estavam divididas até quanto ao messiado de Jesus (cf. 7,40-43). Certamente que seguir a multidão pode ser perigoso – ora ela pode clamar: “Hosana! Bendito o que vem em nome

do Senhor! Bendito o Reino que vem, do nosso pai Davi!” (Mc 11,9-10),

ora pode ser persuadida pelos Sacerdotes e Anciãos a pedir a soltura de

Barrabás e a morte de Jesus (cf. Mt 27,20). Felizmente, para Bartimeu, a

mudança ocorrida com a multidão foi positiva: graças ao interesse de Jesus

em atender o cego, passaram da repreensão à animação.

6.2.2 – Lançou de si a capa

“Deixando a sua capa, levantou-se e foi até Jesus” (10,50). A

palavra grega para “capa” é ima,tioj – “roupa, em geral; capa, túnica da

74 A palavra grega para multidão é o;cloj – no grego Clássico signifi ca “multidão, aglomeração, turba sem líder e sem freios, massa popular sem importância política e cultural.” No Novo Testamento, usualmente, é uma “turba de pessoas”, sem se formar ou caracterizar por qualquer tradição ou costume especial. (BROWN, C. ed. O Novo di-cionário internacional de teologia do Novo Testamento, Vol. III. São Paulo: Vida Nova, 1989, pp. 625-6).

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roupa exterior.”75 Era uma “peça do vestuário, ordinariamente larga e sem mangas, para uso sobre outra roupa.”76

Em sua condição de cego e mendigo, Bartimeu devia usar uma velha e surrada capa. Seu modo de trajar mostrava a todos sua condição miserável. Essa capa devia servir-lhe, também, de esteira, onde dormia. “Atirá-la longe, sugere que o homem acreditava que não precisaria mais dela, que fi caria curado.”77

Como a roupa identifi ca a condição social e a situação da pessoa,78 deixar a capa, além de desembaraçar-lhe os movimentos, sugere também mudança de vida: estava deixando as trevas da cegueira e o opróbrio da mendicância, e tornando-se um discípulo de Jesus. O ato de Bartimeu, em desfazer-se da capa (similar ao da Samaritana, quando deixou seu cântaro junto ao poço e correu à cidade anunciar sua descoberta do Messias - Jo 4, 28), indica à comunidade que, no seguimento de Jesus, deve desfazer-se de tudo o que atrapalha esse seguimento. Deve lançar fora toda indiferença, descrença e descompromisso. Deve, audazmente, seguir o Salvador, testemunhando dEle em palavra e ação, como fez o cego curado.

Bartimeu “levantou-se de um salto.”79 Foi o salto do seguimento, do “deixar tudo”, dá entrega plena, sustentado pela graça de Cristo.80 Foi “um salto da alma, e não apenas das pernas.”81

75 GINGRICH, W. F. Léxico do Novo Testamento grego/português. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 101.

76 DAVIS, J. Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 106.77 HURTADO, L. W., op. cit., p. 192.78 É o caso do fi lho pródigo (Lc 15,22). O pai ordenou que vestissem o fi lho com a

“melhor roupa” – stolh.n th.n prw/thn. Stolh., é vestimenta da aristocracia do Oriente. In: TAYLOR, W. C., op. cit., p. 205.

79 “Levantou-se” — avnaphdh,saj - particípio 1o Aoristo, nominativo, masculino, singular, de avnaphda,w = saltar. (TAYLOR, W. C., op. cit., p. 21).

80 VON BALTHAZAR, H. U. Ensaios teológicos, Vol. II. Madri: Guadarrama, 1965, p. 121.

81 CHAMPLIN, R. N., op. cit., p. 754.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 97

“Lançando de si a capa, levantou-se de um salto, e foi ter com Jesus.” Aqui se sente a imensa emoção do momento. Antes, o cego se mantinha imóvel, sentado. Não podia correr atrás de Jesus porque lhe faltava a vista. Podia apenas fi car ali sentado... Sabendo que Jesus estava disposto a atender ao seu clamor, o cego saltou sobre os pés e lançou de si a capa... Sem qualquer pejo... ele expôs o seu pedido. A saída triunfal de Jericó, por parte de Jesus, não teria sido triunfal para Bartimeu, se Jesus tivesse passado por ele, e ele continuasse cego. Bartimeu resolveu fazer aquele dia ser realmente triunfante, e sabia que Jesus era capaz disso.82

6.2.3 – “Que queres que eu te faça?”

“Então Jesus lhe disse: ‘Que queres que eu te faça?’ O cego respondeu: ‘Rabbúni! Que eu possa ver novamente’” (10,51).

Óbvia era a necessidade do cego. Mas, por que Jesus fez a pergunta? Talvez porque, como bom mestre e pastor que era, desejava encorajar o cego a expressar seus desejos, esperanças e aspirações e propiciar-lhe a oportunidade de exprimir sua fé, sobre a qual, então, o Salvador poderia agir.83

Fosse outro quem fi zesse a pergunta, ou fosse outra a ocasião, Bartimeu, certamente, teria pedido uma esmola, pois, para isso assentava-se à beira do caminho. Mas esse era um dia especial, e quem fazia a pergunta também: era o “Mestre”, o “Filho de Davi.” Então, Bartimeu pediu algo muito melhor: que pudesse ver novamente, e não foi desapontado quanto ao que pediu.

O cego dirige-se a Jesus, chamando-O de “Mestre” (Rabbouni), termo que signifi ca “Meu Senhor,”84 “Meu Mestre.”85 Ao chamá-lo dessa

82 Ibid., op. cit., p. 507.83 CHAMPLIN, R. N., p. 754.84 TAYLOR, V., op. cit., p. 449.85 CRANFIELD, C. E. B., op. cit., p. 346. Segundo a Bíblia de Jerusalém, p. 2038,

Rabbouni é tratamento mais solene do que Rabbi, e, muitas vezes, usado quando se dirige a Deus.

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98 Hermenêutica 3, 2003

forma, Bartimeu expressava seu profundo respeito ao Messias, enviado por Deus.86

Banimeu pediu para “ver novamente.” A palavra grega para “ver novamente” é àavnable,yw (futuro de avnable,pw = olhar para cima, ver novamente, recobrar a vista).87 O substantivo feminino avnable,yij signifi ca “recuperação da visão”,88 e a preposição avna,, além de signifi car “acima, para cima”,89 pode signifi car, também, “de novo.”90 Isso pode signifi car que Bartimeu não era cego de nascença91, como o cego que foi curado por Jesus, mencionado no Evangelho de João, capítulo 9, mas já enxergara anteriormente, e, por alguma razão acabara fi cando cego. Assim, muitas Versões da Bíblia traduzem avnable,yw por “ver novamente.”

Se Bartimeu já enxergara anteriormente, como parece ser o caso, deveria sentir grande desejo de ser curado: poderia experimentar novamente a alegria de poder ver as coisas e pessoas ao seu redor. Poderia voltar a se locomover, orientando-se por si mesmo.

6.2.4- Fé e cura:

“Jesus lhe disse: ‘Vai, a tua fé te salvou.’ No mesmo instante ele recuperou a vista e seguia-o no caminho” (10,52).

“A tua fé te salvou.” O mesmo elogio é feito à mulher que tinha fl uxo de sangue (Mc 5,34). Em Mc 2,5, é mencionada a fé que os amigos

do paralítico demonstraram. Estas são as únicas pessoas cuja fé é elogiada

86 Maiores detalhes sobre a palavra Rabbouni são dados no item 7.3.2.87 THE ANALYTICAL GREEK LEXICON. Michigan: Zondervan, 1975, p. 20.88 GINGRICH, W. F. op. cit., p. 19.89 REGA, L. S. Noções do grego bíblico. 2. ed. São Paulo: Vida Nova. 1978, p. 52.90 TAYLOR, W C. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. 9. ed. Rio de

Janeiro: JUERP, 1990, p. 254.91 NOLLI, G. Evangelo secondo Marco. 2. ed. Cittá del Vaticano: Vaticana, 1980,

p. 272 Evangelho de João, capítulo 9, mas já enxergara anteriormente, e, por alguma ra-

zão acabara fi cando cego. Assim, muitas Versões da Bíblia traduzem avnable,yw por “ver novamente.”

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 99

em Marcos.92 (Talvez, poder-se-ia incluir também a fé que demonstrou a mulher siro-fenícia - Mc 7,29).

Fé93 no poder c na pessoa de Jesus foi necessária para que Bartimeu fosse curado. Muitos outros entraram em contato com Jesus, mas nem todos experimentaram a vida restaurada do Reino. “A salvação física exigia a resposta da fé. Ela não entrava em função ex opere operato... Era necessária uma resposta espiritual para receber a bênção física.”94 No Evangelho de Marcos, “a fé é o meio... no qual o homem pode (mediante a entrega). O sobrenatural pode acontecer ao homem que pode entregar-se tal como Cristo quer, mais ainda, como Cristo o faz.”95 (Grifos do autor citado).

De preferência, emprega-se [fé] nos casos em que pessoas vêm a Jesus em busca de ajuda; aí a fé... consiste na certeza de que Jesus pode ajudar, porque tem poder sobre... as doenças. Esta certeza, porém, é mais do que mera fé em milagres, pois envolve uma tomada de posição para com a missão e a pessoa de Jesus, que se expressa, por exemplo, nas interpelações de rabbi..., rabbunai, fi lho de Davi, que são mais do que títulos de cortesia.96

É interessante o confronto entre a cura do cego de Betsaida (Mc 8, 22- 26) e a de Bartimeu. A cura de Betsaida foi progressiva, em duas etapas (Jesus cuspiu nos olhos cegos e depois colocou as mãos sobre eles). O

92 HURTADO, L. W., op. cit., p. 192.93 Fé - gr. pi,stij SOUTER, defi ne-a como signifi cando “a atitude pela qual a in-

teira personalidade humana descansa sobre Deus ou o Messias, em absoluta confi ança e dependência em seu poder, bondade e sabedoria.” (Citado por TAYLOR, W. C., op. cit., p. 174). Às vezes, pi,stij é usada para convicções intelectuais ou crenças doutrinárias. Este tipo de fé não salva, sendo comum aos homens e demônios, cf. Tg 2,19.

94 LADD, G E. Teologia do Novo Testamento. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1985, p. 73.

95 VON BALTHAZAR. H. U., op. cit., p. 119.96 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento: a pregação de Jesus. São Paulo:

Paulinas, 1977, pp. 250-1.

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cego de Betsaida vê “as pessoas como se fossem árvores andando” (Mc 8, 24), para depois “ver tudo nitidamente e de longe” (8, 25). A seguir, recebe de Cristo a ordem para voltar para casa e não entrar no povoado (8, 26).

A cura de Bartimeu, no entanto, é caracterizada por um diálogo que coloca, explicitamente, em relevo a fé que faz saltar e ir ter com Jesus. Após a cura efetuada num instante, Bartimeu segue o Mestre “no caminho” (Mc 10,52).

As diferenças entre essas duas curas de cegos, relatadas por Marcos, não podem ser fruto do acaso. Entre as duas narrativas, está a confi ssão de Pedro e a subida de Jesus e Seus discípulos a Jerusalém (Mc 8,27-30; 10, 1.17.32-34). Como progressiva foi a cura do cego de Betsaida, assim, também foi a fé dos discípulos, a qual deveria chegar ao nível da fé confi ante e comprometida de Bartimeu - que é indispensável para que a gratuidade da salvação seja manifestada pela solicitude do Salvador. Marcos sabe que, no grupo assustado de discípulos, a comunidade eclesial da fé está gradualmente se formando.97

Os dois episódios nos quais Jesus curou homens cegos (8,22-26; 10, 46-52) desempenham um papel importante no Evangelho de Marcos. Esses episódios agrupam uma seção pivotal, na qual os discípulos, depois de Jesus lhes ter revelado seu destino como o Filho do Homem sofredor, que devia morrer e ressuscitar, falharam em compreendê-Lo (8,31-32; 9,31-32; 10,35-45). Na verdade, o primeiro desses episódios (8,22-26) é agrupado à cena característica dos discípulos, que falham em compreendê-Lo (8,14-21.27-33). Claramente, a imagem da cegueira e restauração da vista tem um papel simbólico aqui, servindo como comentário à falta de percepção espiritual. Como o homem cego de Betsaida, os discípulos irão ver plenamente somente em estágios, com o evento divisório (cruz e ressurreição) ainda por vir. A confi rmação da conexão é feita entre “cegueira”, “visão” e “discipulado.” Marcos retrata o cego mendigo Bartimeu, como aquele que, imediatamente depois da restauração de sua

97 FAUX, J. M. La foi du Nouveau Testament. Bruxelles: Institut d’Etudes The-ologiques, 1977, p. 157.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 101

visão, torna-se um discípulo de Jesus.98

A fé é o ponto de partida para que ocorra a cura (salvação). As palavras ditas, naquele então, a Bartimeu, devem se repetir na vida de cada discípulo de Cristo, em todos os tempos: “a tua fé te salvou.” Semelhante fé não somente salva, mas impele ao seguimento, como no caso de Bartimeu. O fato do nome dele ter sido lembrado mostra que ele tornou-se um discípulo de Jesus.99

Quando Marcos relata que Bartimeu seguia Jesus “no caminho” (evn th/| wdw/|), indubitavelmente refere-se ao seguimento de Jesus no caminho para Jerusalém. Mas é possível, também, que o evangelista tivesse em mente a signifi cação profunda de avkoluqei/n (Mc 1,18; 2,14; 8,34), que seria o de tornar-se discípulo, conformar-se com o exemplo de alguém, na vida ou na morte; imitar alguém.100

Bartimeu deve, não só ter seguido Jesus no caminho para Jerusalém, mas durante toda a sua vida, a tal ponto de se tornar alguém conhecido na comunidade cristã de seus dias e ser mencionado por nome no Segundo Evangelho. O relato inteiro da cura deste cego deve ter atingido Marcos e aqueles que relataram a história antes dele.101 Bartimeu é, dessa maneira, apresentado no Evangelho de Marcos como o discípulo perfeito, aquele que chegou a ver e a caminhar.102

6.3 - O Testemunho

6.3.1- Jesus, o Nazareno:103

98 CARROL, J. T. Interpretation, number 2, april 1995, p. 132.99 CRANFIELD, C. E. B., op. cit., p.346.100 TAYLOR, W. C., op. cit., p. 14.101 CRANFIELD, C. E. B., op. cit., p.346.102 DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 109.103 Optou-se, neste artigo, pela variante mais familiar Nazarhno,j, por ser a que

aparece no texto grego utilizado neste artigo.

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102 Hermenêutica 3, 2003

Segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém, Bartimeu “percebeu” que era Jesus, o Nazareno, quem passava (Mc 10,47). O termo grego para “perceber”, usado por Marcos é avkou,saj (nominativo, masculino, singular, particípio, 1o Aoristo de avkou,w = ouvir, compreender, perceber). O mesmo verbo é, também, usado por Mateus e Lucas. Neste caso, seria melhor traduzir Mc 10,47 por: “E ouvindo que era Jesus, o Nazareno quem passava...” Mateus diz que os dois cegos (Bartimeu e seu companheiro de infortúnio) “ouviram” que Jesus passava (20,30). Lucas, por sua vez, dá maiores detalhes: o cego “ouvindo os passos da multidão que transitava, perguntou o que era. Intentaram-no de que Jesus, o Nazareu [Nazwrai/oj], estava passando” (18,36-37). A maneira como se dirige a Jesus indica que já ouvira falar dele.104 Certamente, porque, em Jericó, deviam chegar notícias das muitas curas efetuadas por Jesus, inclusive a de cegos - uma vez que por Jericó passavam muitas pessoas vindo da Galiléia para a Judéia, ou fazendo o caminho inverso.

Muitos devem ter crido na missão messiânica de Jesus. A exclamação dos cegos: “Senhor, Filho de Davi...” refl ete essa crença. ... A despeito da oposição das autoridades religiosas, não fenecia entre o povo a opinião de que o Messias estava em seu meio. Aqueles cegos tinham ouvido falar em Jesus e em seu grande poder de curar, e esse poder era aceito por eles como prova positiva da missão messiânica de Jesus, pelo que não percebiam razão para que ele não os curasse de sua cegueira.... É possível que [Bartimeu] tivesse participado de muitas conversas acerca de Jesus, e mesmo que tivesse nutrido a esperança de ser curado por ele...105

A expressão “Jesus de Nazaré”, em suas variadas formas, ocorre 20 vezes no Novo Testamento, mas somente nos Evangelhos e nos Atos.106 “Marcos menciona 81 vezes o nome pessoal de Jesus... O adjetivo ‘Nazareno’ aparece em 1,24; 10,47; 14,67 e em 16,6.”107

104 SCHIMID, J., op. cit., p. 293.105 CHAMPLIN, R. N., Vol. I, op. cit., p. 506.106 WIARDA,T. New Testament Studies, Vol. 40, number 2, april 1994, p. 202.107 REGAUX, B. Témoignage de l’évongile de Marc. Bruges: Desclée de Brouwer,

1972, p. 118.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 103

O nome “Jesus” (Josué, em hebraico) era de uso corrente nos locais palestinos.108 Era muito comum entre os judeus, já desde o período grego.109 “Jesus, o Nazareno”, tem função de diferenciar Jesus, de três maneiras:

a. Distingue Jesus de outros com o mesmo nome;

b. Provê informação sobre Sua procedência;

c. Adiciona uma nota de formalidade ou intensidade;110

Pode, ainda, indicar Sua condição social, já que Nazaré era uma pequena vila da Caldéia.111

Pelo fato de haver se criado em Nazaré, Jesus era conhecido como “Nazareno.” Sua procedência não o recomendava muito: além de pequena, tinha má fama. Quando Filipe mencionou a Natanael que havia encontrado “aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, fi lho de José, de Nazaré” (Jo 1,45), Natanael prontamente perguntou: “De Nazaré pode vir algo de bom?” (Jo 1,46). Apesar disso, Bartimeu não se escandalizou com a procedência de Jesus, e, confi ante, dirige-se a Ele, reconhecendo-o como o Messias prometido.

6.3.2 - Jesus, o Mestre: (Rabbouni).

Marcos emprega “Rabbi” (gr. rabbi,) 3 vezes (9,5; 11,21 e 14,45) e uma vez “Rabbouni” (10,51). Tanto um termo quanto o outro são traduzidos por “Mestre.” Marcos refl ete a tradição primitiva de colocar na boca de um

108 WIARDA, T., op. cit., p.202.109 DAVIS. J. D., op. cit.,110 WIARDA, T., op. cit., p. 202.111 BELO, F. Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Paris: Du Cerf, I 975, p.

241.

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104 Hermenêutica 3, 2003

homem do povo (caso de Bartimeu), o tratamento de “Mestre”, atribuído a Jesus.112

Sobre a uma possível distinção entre “Rabbi” e “Rabbouni”, Davis113 menciona que as escolas judaicas continham três graus de honra: “Rab”- Mestre (grau inferior), “Rabbi” - Meu Mestre (grau médio) e “Rabbouni” - Meu Senhor, Meu Mestre (o grau mais elevado de todos).

Viviano,114 no entanto, comentando o uso de “Rabbouni”, em Mc 9,5, afi rma que:

Rab = grande. Rabi (com sufi xo pronominal “meu”) = Meu grande;

A diferença é apenas lingüística: no hebraico é Rabbi e no aramaico Rabbouni;

As duas formas são usadas intercambiavelmente nos Evangelhos de Marcos e de João;

Rabbi representa urna adaptação de Rabbouni - primitiva palavra aramaica;

Rabbi / Rabbouni / Ribboni têm signifi cação equivalente a Senhor.

A hipótese de Viviano é que Rabbi é um título de majestade. A Bíblia de Jerusalém, por sua vez, diz que Rabbouni é “um tratamento mais solene e, muitas vezes usado quando se dirige a Deus” (nota sobre Mc 10,51).

Já no relato de Mateus (20,30), os cegos dirigem-se a Jesus, chamando-O de “Senhor” (gr. ku,rioj, termo grego que pode ser usado para um senhor humano (Jo 15,20) ou a Deus mesmo (2 Tm 4,8). No caso de Bartimeu, talvez não se possa igualar sua confi ssão à de Tomé, quando exclamou, ao ver as mãos e os pés traspassados: “Meu Senhor e Deus meu” - gr. o ku,rio,j mou o qeo,j mou - (Jo 20,28), nem, talvez, ainda, à de Maria Madalena: “Rabbouni!” (Jo 20,16), pois a cura de Bartimeu é pré-

112 RIGAUX, B., op. cit., p. 118.113 DAV1S, J., op. cit., p. 501.114 VIVIAN0, B. T. “Rabbouni and Mark 9,5”, In: Revue Biblique, abril 1990, pp.

208-9. Paris: Gabalda.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 105

pascal - sua concepção do Messias é judaica. Mas utiliza “Rabbouni” para expressar seu profundo respeito ante o Messias, o “Filho de Davi”, e para demonstrar sua fé no poder taumatúrgico de Jesus.115

6.3.3 - Jesus, o Filho de Davi:

O nome Davi ocorre somente em quatro contextos no Evangelho de Marcos:116 em 2,25 - em conexão com a “violação” do sábado pelos discípulos (arrancavam e comiam espigas nesse dia); em 10:17-48 - onde Bartimeu chama Jesus, por duas vezes, “Filho de Davi”; em 11,10 - na Entrada triunfal em Jerusalém (“Bendito o Reino que vem, do nosso Pai Davi”), e em 12,35-37 - onde Jesus questiona sobre como o Messias poderia ser Filho de Davi.

Com respeito à confi ssão de Bartimeu, poder-se-ia perguntar sobre que ligação poderia haver entre Davi e a recuperação da vista. Pode-se dizer, em resposta, que a recuperação da visão é uma importante faceta da rica imagem de Davi na literatura profética tradicional tardia.117

Nos oráculos de Isaías de Jerusalém sobre o reino restaurado de Davi (9,6), “o povo que andava nas trevas” veria “uma grande luz” (9,1). Em Is 29, no oráculo dirigido à cidade Jerusalém - a Cidade de Davi (cf lCr 11,5), é dito que viria o dia em que Iahweh faria com que “os olhos dos cegos, livres da escuridão e das trevas” tornariam a ver (Is 29, 18). Deus restauraria a Monarquia Davídica (Is 32,1) em Sião, quando, então, se abririam os olhos dos cegos (Is 35,5) - uma importante característica da renovação cósmica, que deveria acompanhar o cumprimento da promessa do rei Davídico.118 Também no chamado Dêutero-Isaías, o reinado do

115 SCHMID, J., op. cit., p. 294.116 KEE, H. C. Community of the new age - studies in Mark’s gospel. Philadelphia:

The Westminster Press, 1977, p. 125.117 Ibid.118 KEE, H. C., op. cit., p.126.

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Servo-Rei é caracterizado pela luz para os cegos (42,7; 42,16).119

No Evangelho de Marcos, este (10,47-48) é o único lugar onde alguém chama Jesus de “Filho de Davi.”120 Marcos prefere os títulos de “Cristo” (1,1; 8,29; 9,41; 14,61; 15,32) e “Filho de Deus” (1,1.11; 3,11; 5,7; 9,7; 14,61; 15,39).121

Por que, então, Marcos teria colocado nesta parte de seu Evangelho a história da cura de Bartimeu e o título “Filho de Davi?” A resposta poderia vir da constatação de que o capítulo 10 de Marcos é transicional.122 A seção seguinte é preparada pelo título que Bartimeu dá a Jesus, de “Filho de Davi.” Esta seção seguinte apresentará o debate entre Jesus “Filho de Davi” e a “Cidade de Davi” - Jerusalém, que não O aceita. Este é o tema dos capítulos 11-13.123

O fato de Marcos usar tão pouco o título messiânico “Filho de Davi”, é explicado tendo-se em vista que, sendo sua obra escrita dentro da comunidade cristã de Roma e para os romanos,124 “Filho de Davi” “teria menos signifi cado para uma audiência gentílica do que para leitores judaicos.”125

Na tentativa de determinar como “Filho de Davi” deveria ser entendido, os eruditos tem estudado o emprego deste título e de outros semelhantes, na literatura judaica antiga. Pelo menos já se pode ter certeza de duas coisas:

1. Há evidências de que o “Filho de Davi” era uma designação do Messias (Salmos de Salomão 17; Mc 12,35) na época de Jesus;

119 KEE, H. C., op. cit.. p. 126.120 HURTADO, L. W., op. cit., p. 187.121 Ibid.122 KERTELGE, K. In: SCHREINER, J. Forma y propósito del Nuevo Testamento.

Barcelona: Herder, 1973 p. 200.123 DELORME, J. Leitura do Evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas,

1982, p. 111.124 MAZZAROLLO, I. A Bíblia em suas mãos 2. ed. Porto Alegre: Est Edições,

1996, p.117.125 LADD, G. E., op. cit., p. 134.

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2. Passagens do Novo Testamento vindicam ascendência davídica para Jesus e são usadas para comprovar que Jesus é o Messias (cf. Rm 1,1-4; Mt 1,1; 12,23; 2 Tm 2,8; Ap 3,7; 22,16).126

Conquanto possa haver alguma evidência de que “Filho de Davi” pudesse representar outras coisas, como, por exemplo, poderes exorcistas e de cura, o peso maior das evidências é de que “o termo seria uma designação do Messias de Israel.”127

Pode-se perguntar se Marcos teria aprovado o uso de “Filho de Davi”, aplicado pelo cego a Jesus. É certo que Marcos considerava Jesus como o Messias (Cristo), como mostram as seguintes passagens: 1,1; 8,29: 14,61-62. No entanto, também é certo de que, para Marcos, o termo “Messias”, em si, não comunicava de forma plena o signifi cado verdadeiro de Jesus, principalmente se tal título fosse tomado no sentido comum judaico - de um grande e justo Líder, enviado por Deus para restaurar e governar Israel, dando-lhe preeminência espiritual e física entre as demais nações. Contudo, para Marcos, a expressão “Filho de Davi” era apropriada para aplicar-se a Jesus, apesar de sua limitação no que toca à totalidade de sua pessoa.128

Deve-se lembrar que a confi ssão de Bartimeu é anterior à entrada triunfal, à cruz e à ressurreição. “Filho de Davi”, aqui, refl ete ainda o

ambiente judaico, não à compreensão completa quanto à messianidade

de Jesus,129 que se daria após a ressurreição, quando o título “Filho de

Davi” adquiriu uma importância tal, que se inseriu nas confi ssões de fé, tal como a que se encontra em Rm 1,3: “...seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido Filho de Deus, com poder por sua

126 HURTADO, L. W., op. cit., p. 87.127 Ibid.128 Ibid., pp. 187-8129 O centurião, ao ver o modo como Jesus morreu, exclamou: “verdadeiramente

este homem era fi lho de Deus” (Mc 15,39). Embora esse ofi cial romano não tivesse a possibilidade de dar à essa confi ssão todo o sentido que a Igreja Cristã lhe daria, “Marcos vê nela, certamente, o reconhecimento, por um pagão, da personalidade sobre-humana de Jesus.” (Bíblia de Jerusalém, p. 1923).

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108 Hermenêutica 3, 2003

ressurreição dos mortos...”130

À semelhança da proclamação de Pedro, em Mc 8,29, (“Tu és o Cristo”), o clamor do cego deve ser corretamente compreendido apenas à luz dos acontecimentos que se darão em Jerusalém. Os leitores de Marcos “deverão entender, à medida que vão lendo e discernindo esta passagem, que o título ‘Filho de Davi’ apenas começa a dar indícios da verdadeira glória de Jesus.”131

Ao se dirigir a Jesus, chamando-O de “Filho de Davi”, o mais conhecido entre os nomes do Messias,132 Bartimeu não tem, ainda, bem acrisolada sua fé, mas, a exemplo da mulher que tocou as vestes de Jesus (Mc 5,25-34), crê em Sua bondade e em Seu poder.133 Em completa simplicidade e de forma franca, Bartimeu crê que Jesus é o “Filho de Davi”, o descendente ideal do rei de Israel, o rei libertador, que deveria resgatar seu povo. Faz seu pedido, cheio de expectativa e esperança. Recebe novamente a visão, e segue Jesus, cheio de gratidão.134

É interessante, aqui, colocar em paralelo a confi ssão de Bartimeu e a de Pedro (relatada em Mc 8,27-30): A confi ssão do apóstolo Pedro deu-se de maneira privada e num lugar remoto nos caminhos dos povoados de Cesaréia de Filipe (Mc 8,27), enquanto que a de Bartimeu acontece em Jericó e perante uma grande multidão (Mc 10,46); Jesus proíbe Pedro e seus condiscípulos de divulgarem o fato de ser Ele o Messias (Mc 8,30), ao passo que não proíbe Bartimeu de proclamá-Lo “Filho de Davi” (o Messias), mas louva-lhe a fé (10,52).

130 CULLMANN, O. Cristologie du Nouveau Testament. Neuchatel: Delachaux et Niestlé, 1968, p. 116.

131 HURTADO, L.W., op. cit., p. 188.132 LAGRANGE, M. J. Évangile selon Saint Marc. Paris: Gabalda, 1966, p. 285.133 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 121.134 MOULE, C. F. D. op. cit, p. 85.

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Pedro e seus condiscípulos foram advertidos de que não divulgassem o fato de que Jesus era o Messias. É o chamado “Segredo Messiânico.” As razões pelas quais Jesus não quis revelar-se ao público em geral como o Messias, podem ser as seguintes: 1) Ele sabia que o povo entretinha uma falsa idéia sobre o Messias - esperavam que aparecesse um “rei-messias”, uma fi gura política, um herói na luta contra Roma (ver Jo 6,15, sobre como desejavam vir e tomar Jesus à força, para fazerem dele rei); e, 2) há, também, a questão da “regulagem” do tempo apropriado, no plano divino para a manifestação de Jesus como o Messias. “Sua hora” ainda não havia chegado (cf Jo 7,30 e 13,1).135

Se Jesus deixou que Bartimeu expressasse abertamente sua fé, é porque se aproximava a “Sua hora”, o momento de Sua Paixão. Marcos, deliberadamente, coloca a história do cego curado antes de começar a narrativa da Paixão, para contrastar um homem cego que é capaz de ver com aqueles que diziam ver, mas ainda continuavam cegos quanto à Sua pessoa (e Jo 9, 39-41).136

Assim, tanto o cego de Betsaida (Mc 8, 22-26), quanto Bartimeu e também os discípulos, necessitavam, para ver (seja no sentido físico ou espiritual, ou nos dois sentidos) da mão taumaturga de Cristo.137

Bartimeu, ao contrário dos discípulos que haviam convivido com Jesus, por cerca de três anos, e O tinham visto realizar tantos milagres, mesmo não dispondo de muitas evidências quanto à messianidade de Jesus, crê e confessa. Nesse sentido torna-se em modelo de quantos haveriam de crer em Jesus e confessá-Lo. Tal atitude contrasta fortemente com a incredulidade de Tomé, ao exigir evidências para crer (cf. Jo 19,24-29).

135 CHAMPLIN, R. N., O Novo Testamento interpretado, Vol. II. São Paulo: Can-deia, 1995, p. 93.

136 NEIL, S. Jesus through many eyes. Philadelphia: Fortress Press, 1978, pp. 83-4.

137 DE LA CALLE, F., op. cit., pp. 109-10.

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Pedro e os seus condiscípulos não se constituem no melhor modelo a seguir. O caminho deles após o Mestre estava tecido de entrega e incompreensão, seguimento e abandono. O discípulo-modelo, no Evangelho de Marcos, é Bartimeu, o cego que chegou a ver e a caminhar. “Como resumo magistral das exigências de Jesus, o evangelista colocou a história da sua cura, como arremate da seção ‘do caminho’, já às portas de Jerusalém (10, 46-52).”138

6.4- O Seguimento - a mudança que se processa:

No instante em que recupera a vista, Bartimeu segue Jesus “no caminho” para a cruz - um tema do discipulado.139 “Jesus passou por entre os homens com uma fi nalidade precisa: possibilitar-lhes o seguimento.”140 E entre os Seus seguidores está Bartimeu, o qual, desde o início, responde com rapidez e sem vacilação ao chamado de Jesus: deixa tudo o que tem - sua capa de mendigo - e, de um salto, vai ter com Jesus.

Ao perguntar Jesus: “Que queres que eu te faça?” (Mc 10,51) - a mesma pergunta feita a Tiago e a João (Mc 10,36) - o cego não pede posições no Reino, como fi zeram os dois discípulos, mas pede para ver. Ao receber a cura, não pode fazer menos que os discípulos: segui-Lo no caminho.”141

Bartimeu, o cego que viu a Jesus e o seguiu sem dúvidas, é o protótipo do seguidor perfeito, que, sem nunca ter visto a Jesus, ouve dizer que Ele passa por perto, é chamado pelos outros seguidores, encontra-se pessoalmente com Cristo e termina unindo-se à comitiva que sobe à Jerusalém.142

138 DE LA CALLE, F. op. cit., p. 109.139 TELFORD, W. R. ed.The interpretation of Mark. 2. ed. Edinburgh: T & TClark,

1995, p.184.140 DE LA CALLE, F., op. cit., p. l08.141 DE LA CALLE, F., op.cit., p. 110.142 Ibid.

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6.4.1 - Fé e Seguimento:

Bartimeu torna-se, também, modelo quanto à fé que leva ao seguimento. Jesus revela-se àqueles que estão dispostos a acompanhá-lo, cura-lhes a cegueira, desperta-lhes a fé que possibilita segui-Lo. Bartimeu começou vendo pela fé, e por ela segue Jesus no caminho do Calvário. Para seguir Jesus é preciso que se abrace o paradoxo da cruz:143 Quem perder a sua vida, acha-la-á, e quem a preserva, perdê-la-á (Mc 8,34-37).

Bartimeu não parou para pensar no que teria a ganhar se seguisse Jesus, como fi zeram os discípulos, certa ocasião (cf. Mt 19,27; Mc 10,28). Seguiu pela fé, crendo na bondade e no poder de Jesus. Para ele, o maior ganho seria estar com o Mestre, mesmo que isso importasse em sofrimento, pois não existe discipulado “seguro”, sem perigos (cf. Jo 16,33). Seguir Jesus “envolve o risco de se perder a própria vida, em oposição à segurança desfrutada por quem preserva sua vida.”144

O seguimento de Jesus implica em seguir-Lhe o exemplo de renúncia: Ele sofre e dá a vida. Assim, a experiência do seguimento, por vezes com dor, leva o discípulo a compreender Jesus em seu verdadeiro signifi cado.145

Tal seguimento só pode dar-se pela fé, que é sempre uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que se não vêem (Hb 11,1). Pela fé os antigos deram o seu testemunho (Hb 11,2), como também o fez Bartimeu - não só naquela viagem de subida à Jerusalém, mas, provavelmente, enquanto viveu. Seu exemplo de fé confi ante e seguimento resoluto “ainda fala” (Hb 11,4), mesmo tendo-se passado tantos séculos.

6.4.2 - Ver e seguir no contexto da Descoberta e do Seguimento:

Marcos menciona que Bartimeu “recuperou a vista e seguia-o no

143 SLOYAN, G. S. Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1975, pp. 74-5.144 GUNDRY, R. H., op. cit., p. 195.145 KERTELGE, K., op. cit., p.201.

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caminho” (10,52). Para que se consiga perceber toda a profundidade teológica desta afi rmação, deve-se atentar para o fato de Marcos, nas perícopes anteriores a da cura do cego de Jericó, falar da necessidade de “ver”146 para seguir.147

Em Mc 8,18, Jesus reprova a inabilidade dos discípulos para ver:148 “Tendes olhos e não vedes...” Mesmo Pedro, não entendeu o primeiro anúncio da Paixão. Não podia ver o que ele e seus companheiros ganhariam com a morte de Cristo (Me 8, 3l-32). O apóstolo, bem como os demais discípulos, ainda não pensava “nas coisas de Deus, mas nas dos homens” (Mc 8,33). Deveria “ver” que negar-se a si mesmo e tomar a cruz, são as condições para o verdadeiro seguimento de Jesus (Mc 8,34).

Em Mc 9,33-36, há o relato da falta de visão quanto ao Reino de Deus, por parte dos discípulos. Discutiam no caminho sobre “quem seria o maior.” O moço rico (Mc 10,17-22) também não pode ver em Jesus e em Seu Reino algo valioso o bastante para desfazer-se de seus “muitos bens”, e não foi capaz de seguí-Lo. Logo antes da cura de Bartimeu, está o relato do pedido de Tiago e João: queriam ocupar as maiores posições no Reino (que pensavam ser deste mundo - Mc 10,35-45). Estavam cegos para o fato de que, no Reino de Cristo, a verdadeira grandeza consiste em servir (10,42-43). Grande é quem mais serve - à semelhança do Mestre, que “veio para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).

Bartimeu é apresentado, por Marcos, como o modelo do discípulo que não pode seguir a Jesus por si próprio, antes de ser curado (salvo), tal como não podiam fazê-lo Pedro e os seus condiscípulos. Antes de “seguir”, precisavam “ver.” “Mas Jesus cura e ilumina seus discípulos, os quais se tornam capazes de seguido.149

146 Em grego, ble,pw = “discernir, perceber, compreender, considerar, contemplar, examinar.” (TAYLOR, W. C., op. cit., p. 45).

147 Em grego, avkolouqe,w = “seguir, acompanhar, tornar-se discípulo, conformar-se como o exemplo de alguém, na vida ou na morte, imitar.” (Ibid., p. 14).

148 TELFORD, W. R., op. cit., p. 184.149 DELORME, op. cit., p. 111.

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7. Linhas Hermenêuticas do Texto.

7.1 - Perspectivas Cristológicas:

Quem é Jesus? O propósito de Marcos, ao relatar a cura de Bartimeu é indicar que Jesus de Nazaré, o “Filho de Davi”, não é meramente um descendente deste rei, mas o Senhor de Davi (Mc 12,35-37), e, de fato, o Filho de Deus.150

Nas outras confi ssões anteriores sobre Sua messianidade (a do apóstolo Pedro - Mc 8,27-30; a declaração dos demônios sobre a Sua pessoa - Mc 1,24-25.34) Jesus impôs sobre Sua identidade, uma recomendação de silêncio - podia ser confundido com um messias nacionalista e guerreiro. Agora, porém, no caminho que o leva à cruz,151 não repreende o cego, nem lhe impõe silêncio, “mas dá-lhe as boas vindas e o cura com um elogio.”152

O “segredo inessiânico” (a não revelação sobre a verdadeira identidade de Jesus, até momento oportuno) estava prestes a ser suspenso. O que fora dito “às escuras”, deveria, após a Paixão e morte, ser dito “à luz do dia”; o que fora “dito aos ouvidos”, deveria , então, ser proclamado “dos eirados” (Ml 10,27).

A declaração de fé do cego Bartimeu é como que uma antecipação (não totalmente aprofundada ainda, é verdade) do que fará a Igreja, após a ressurreição de Jesus: Ele não é meramente o Nazareno, nem somente o Mestre, nem ainda o messias nacionalista e guerreiro que muitos esperavam, mas é o Salvador, o Enviado do Pai (Jo 3,16).

Certamente, o objetivo de Marcos, ao escrever seu Evangelho, era que, com os olhos iluminados pela fé (tal qual Bartimeu), seus leitores pudessem ver no carpinteiro de Nazaré, o Filho de Deus - o qual, além

150 HENDRIKSEN, W. The gospel of Mark. Edinburg: Banner, 1975, p.425.151 CABA, J. El Jesús de los Evangelios. Madri: La Editorial Católica. 1978, p.

33.152 HURTADO, L. W. Marcos. Florida: Editora Vida, 1995, p. 188.

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de poder curar cegos físicos, pode também iluminar as pessoas que estão cegas quanto às coisas espirituais, tirando da prisão do pecado o cativo e iluminando a caminho dos que jazem nas trevas do erro (cf. Is 42,7).153

O salto de fé do cego Bartimeu deve, também hoje, repetir-se na vida de cada pessoa: todos são desafi ados a olhar com fé a Jesus de Nazaré, e ver nele o “Emanuel, Deus conosco” (Mt. 1, 23), que pode trazer iluminação divina a todo o ser humano, dando-lhe sentido para a vida e forças para o seguimento.

7.2 - Perspectivas Soteriológicas:

Marcos escreveu para os cristãos gentios, e, particularmente, para romanos, por isso apresenta Cristo com o poder para salvar - poder este, confi rmado por Seus milagres. No entanto, o poder salvador de Jesus só era manifestado na vida dos que, à semelhança de Bartimeu, exerciam fé nEle. Para o recebimento de uma bênção física era necessária uma resposta espiritual.154 Jesus afi rmou ao pai do epilético endemoninhado que “tudo é possível ao que crê” (Mc 9.23). Por isso é que, em sua visita a Nazaré, “não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles” (Mt 13,58).

As narrativas dos milagres freqüentemente contêm referências à fé da pessoa doente, ou das pessoas que a cercavam (Mc 2,5; 5,34.36; 10,52; Mt 8,10). O que se tem em mente é a confi ança na missão de Jesus e no Seu poder para livrar das afl ições. Estes atos salvífi cos se levam a efeito

no serviço da Sua comissão, e visam confi rmar uma fé existente. A questão

da fé claramente se vincula com estas histórias de milagres. Jesus não

somente procurava libertar as pessoas de afl ições físicas, como também

transformar homens em testemunhas da Sua obra salvífi ca. Não se trata

de se fazer uma decisão, mediante a qual Ele agirá. Pelo contrário, Ele se

ocupa com o alvo que está além do processo físico. Sua intenção não era

153 RICHARDSON, A. Introdução à teologia do Novo Testamento. São Paulo:

ASTE, 1966, p. 99.154 LADD, G. E. Teologia do Novo Testamento. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP,

1985, P. 73.

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meramente ser um “curador”, mas, sim, um Ajudador, em nome de Deus. Estava, portanto, mais interessado em pedir fé do que exigí-la. A confi ança do homem representa a possibilidade de Deus fazer a Sua obra.

Jesus disse a Bartimeu: “Vai, a tua fé te salvou” (Mc 10,52). (Quanto à mesma expressão, ver Lc 7,50; 8,48 e 17,19). No Novo Testamento, a fé pode ser “objetiva” (quando aponta para o credo, aquilo em que se crê, ou mesmo o cristianismo em contraste com as fés ou falsas religiões), e “subjetiva” (confi ança da alma em Cristo).155

A fé manifestada por Bartimeu é do tipo “subjetiva” – “outorga da alma a Cristo, em total dependência a ele, para fazer o que é mister para a própria salvação e para a vida diária.”156 Tal fé “é um sentimento de confi ança e de abandono, pelo qual o homem desiste de contar com os seus próprios pensamentos e com suas forças, para se entregar à palavra e ao poder daquele em quem crê.”157 Tal como no passado, Jesus requer de Seus seguidores esse mesmo tipo de fé, da qual Bartimeu tornou-se modelo.

7.3 - Perspectivas Eclesiológicas e Antropológicas:

A Igreja perante os desvalidos e marginalizados: Cegos, à semelhança de Bartimeu, “são os representantes da humana necessidade e desesperança.”158 Bartimeu representa o ser humano, com suas carências e angústias. Representa especialmente o pobre, os desvalidos, os miseráveis, os marginalizados pela sociedade. Os gritos do cego representam a tentativa de encontrar uma solução para a situação de penúria na qual se encontram. Cabe, então, a cada um ir ao encontro do outro, especialmente dos mais necessitados, procurando minorar-lhes os problemas físicos e espirituais.

155 CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado, Vol. II. São Paulo: Can-deias. 1995, p. 181.

156 Ibid.157 A BÍBLIA DE JERUSALÉM, op. cit., p. 1852.158 SCHNACKENBURG, R. O Evangelho segundo Marcos. 2. ed. Petrópolis:

Vozes, 1985, p. 120.

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Assim o fazia Cristo,159 e o mesmo se espera de Seus seguidores. Agir com indiferença para com o sofredor é imitar os indiferentes dentre a multidão, que repreenderam o cego e mandaram que ele se calasse (Mc 10,48).

Quando os cristãos procuram ministrar aos pobres (não que estes tenham mais méritos, mas porque são os mais necessitados)160 imitam a vida e obra dAquele que andou entre os homens “fazendo o bem” (At 10,38).

Além de procurar minorar o sofrimento dos cegos físicos, cabe a cada membro do corpo de Cristo levar luz aos que estão cegos pela falta de conscientização, cegos pela intimidação ou acomodação, cegos para a possibilidade de uma condição de vida digna de um ser criado à imagem de Deus.

A Igreja também tem que desempenhar sua missão junto aos cegos quanto à justiça social, junto aos que detêm o poder e agem com indiferença quanto ao bem que podem e devem realizara todos, mas, especialmente, aos mais fracos e desassistidos. E, por fi m, cada cristão, qual “luz do mundo” (Mt 5,14), deve procurar levar a luz das boas novas aos que estão cegos para a salvação que há em Cristo e para as realidades eternas, uma vez que vive-se, hoje, quase que somente para as coisas terrenas e temporais (cf. 2 Cor 4,4).

7.4 - Dimensão profética do texto:

Crença, Testemunho e Seguimento: Bartimeu representa a comunidade dos que crêem em Jesus, tornando-se num “exemplo dum

159 DIBELIUS, M. afi rma que toda a ênfase do relato da cura de Bartimeu está na compaixão de Jesus, que chama o cego e o cura. (DIBELIUS, M. From tradition to gospel. London: Redwood Press Limited, 1971, p. 52). HURTADO, por sua vez, diz que este relato “demonstra o poder misericordioso de Jesus” e que “os leitores, sem dúvi-da deverão ver sua própria iluminação e salvação prefi guradas na cura desse homem.” (HURTADO, L. W., op. cit., p. 189).

160 CF 96- Fraternidade Política - Justiça e Paz se abraçarão. CNBB, SàoPaulo: e Editora Salesiana Dom Bosco, 1996, p. 58.

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confessor impertérrito, e num discípulo que segue a Jesus em seu caminho da Cruz.”161 Representa os que, a despeito da pobreza, das afl ições, da repreensão dos indiferentes, seguem o Mestre, mesmo que esse seguimento importe em sofrimento e até mesmo em morte. A prontidão de Bartimeu em seguir Jesus, demonstra o tipo de confi ança que cada discípulo deve ter no Salvador.

A comunidade é chamada a seguir Jesus como fez Bartimeu: ao desfazer-se de sua capa de mendigo, deu o exemplo, mostrando que no seguimento de Jesus, deve-se desfazer-se de tudo aquilo que possa atrapalhar a caminhada: descrença, indiferença e descompromisso. Deve, de maneira audaz, seguir Jesus, testemunhando dEle em palavras e ações, como fez o cego curado.

Deste texto da cura de Bartimeu, fi cam bem atualizados, para as comunidades de hoje, os seguintes elementos:

1.O interesse divino na salvação e no bem-estar de cada pessoa, não importando a que classe social pertença;

2. A importância da fé que leva ao reconhecimento e ao testemunho de Jesus de Nazaré como o ‘Filho de Davi’, o Filho de Deus, o Messias Salvador, que o Pai enviou para a cura (salvação) do ser humano. Fé que pode salvar, dar novo alento, enobrecer a vida, fortalecer nas adversidades a todo aquele que, sentindo-se necessitado, vai a Jesus em busca de ajuda;

3. O interesse e cuidado que a comunidade seguidora de Jesus deve ter para com os necessitados e sofredores, físicos ou espirituais.

No seguimento de Jesus, a comunidade é solicitada a estar aberta às necessidades do outro, especialmente dos que têm condições ínfi mas de vida, como era o caso do cego Bartimeu.

Cada membro da comunidade deve engajar-se, efetivamente, na luta por acabar com tudo o que impede o ser humano “de viver uma vida

161 SCHNACKENBURG, R., op. cit., p. 121.

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humana digna, participativa e comunicativa”,162 rompendo com a “cultura da indiferença”,163 representada pelos que repreenderam o cego e procuraram abafar-lhe o grito por ajuda.

Deve, também, a comunidade perceber e valorizar a pessoa humana, tendo como modelo o trato de Jesus para com o cego Bartimeu - alguém que era excluído da sociedade, por ser visto como pecador e estando sob os juízos de Deus.

Todos na comunidade devem ser levados a reconhecer o poder de Jesus para salvar os que, sentindo sua necessidade, vão a Ele em busca de auxílio, sabendo que Seu convite, ainda hoje, continua sendo: “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo, e eu vos darei descanso” ( Mt 11,28). Devem, ainda atentar para a misericórdia de Deus para com o ser humano, alegrando-se ante as maravilhas de Deus.164

A comunidade seguidora de Cristo deve, fi nalmente, estar pronta a seguir Jesus da mesma forma resoluta e destemida, como o fez Bartimeu, sem temer os riscos desse seguimento.

Conclusão

O estudo do relato da cura de Bartimeu permite que se perceba: 1) Bartimeu como representante daqueles que estão em miseráveis condições e que pouca ou nenhuma chance têm de sair dessas situações - a não ser que sejam alcançados por Cristo, representado, hoje, pelos Seus seguidores; 2) Bartimeu como exemplo daqueles que exercem fé salvífi ca em Jesus, fé que leva à ação do seguimento; 3) Bartimeu como discípulo de coragem, que não mede esforços nem sacrifícios para seguir o Filho de Davi - mesmo

162 GORGULHO, M. L. “Exegese de Lucas 13,10-17”. In: Apostila fornecida na Disciplina: Introdução à Hermenêutica do Novo Testamento. Rio de Janeiro: PUC, 1996, P. 21.

163 CNBB - CF 96. Fraternidade e Política: Justiça e Paz se abraçarão. São Pau-lo: Editora Salesiana Dom Rosco, 1996, p. 20.

164 GORGULHO, M. L. op. cit., p. 21.

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Bartimeu: o Discípulo Modelo (MC 10: 46-52) 119

que esse seguimento leve à Cruz; 4) Jesus como o compassivo Salvador, o Messias de Deus, que, prontamente, se detém para atender um grito por ajuda.

A história da cura de Bartimeu tem sido de grande proveito para a vida das comunidades seguidoras de Cristo, em todos os tempos. Mostra como o interesse de Cristo para com os pobres e sofredores, bem como Sua solicitude em procurar minorar o sofrimento, podem servir de modelo para o seguimento de Jesus, onde cada um deve interessar-se pelo bem-estar do outro.

O exemplo negativo de muitos da multidão, ao repreenderem o cego e tentarem frustrar-lhe a realização de suas aspirações, deve levar cada membro da comunidade a refl etir sobre qual tem sido sua prática em relação aos “pequeninos irmãos” de Cristo (cf. Mt 10,42; 25,34-40).

O exemplo de Bartimeu, ao reconhecer em Jesus de Nazaré o Messias enviado por Deus, ao exercer fé em Seu poder salvador, ao confessá-lo perante a multidão e ao seguí-Lo no caminho da Cruz, constitui-se num paradigma para as comunidades de todos os tempos, onde todos devem fazer o mesmo: Seguir Jesus sem temer as conseqüências que envolvem esse seguimento, sem se importar com os riscos da caminhada.

A persistência em se buscar a cura (salvação) - a despeito das repreensões recebidas -, a fé que possibilitou reconhecer no carpinteiro de Nazaré o “Filho de Davi”, o Messias enviado por Deus - apesar de não conhecê-Lo pessoalmente nem ter tido o privilégio de vê-Lo em ação (como os discípulos, por cerca de 3 anos), seu testemunho de que Jesus é o “Filho de Davi”, o Messias (foi assim que se dirigiu a Ele), sua confi ança no poder de Jesus para ajudá-lo a sair de seu estado deplorável, e, fi nalmente seu ato de seguir Jesus estrada fora, fazem de Bartimeu o discípulo-modelo.

O exemplo de Crença, Testemunho e Seguimento de Jesus, deixado pelo cego de Jericó, que, certamente, inspirou os cristãos da comunidade de Marcos, continua sendo motivo de inspiração aos atuais discípulos de Cristo: o mesmo Mestre que salvou Bartimeu e possibilitou-lhe o seguimento,

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pode e quer fazer o mesmo por todos quantos anseiam salvação, pois Ele “é o mesmo ontem e hoje; ele o será para a eternidade” Hb 13,8).

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IMPLANTAÇÃO E CRESCIMENTO DE IGREJAS NAS UNIÕES NORTE BRASILEIRA E

NORDESTE BRASILEIRA

Luiz Nunes1

Introdução

Nas últimas décadas, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) no Brasil tem experimentado diferentes metodologias na realização de missão. Algumas delas de duração passageira e outras mais permanentes. No afã de se modernizar a abordagem evangelística tem-se descoberto metodologias mais efi cientes, por outro lado, formas de trabalhar efi cientes ao longo dos anos são descartadas ou menos enfatizadas às vezes, com prejuízo para o exercício da missão. Isto tem ocorrido sem uma análise mais séria ou até por preferências pessoais.

A presente pesquisa foi realizada com 50 pastores que cursam o Mestrado em Teologia no Instituto Adventista de Ensino do Nordeste (IAENE) desde o ano 2000. A fonte das informações baseou-se no relatório que fi zeram para a matéria de Crescimento de Igreja, ministrada pelo Dr. Daniel Rhode. Os pastores que participaram da pesquisa foram quinze (15) da União Norte Brasileira (UNB) e trinta e cinco (35) da União Nordeste Brasileira (UNeB). O objetivo da pesquisa é verifi car quais são os métodos evangelísticos mais usados para implantação de uma nova igreja e para o crescimento dela. Para uma melhor avaliação, as igrejas foram divididas em três (3) grupos:

a) Igrejas com alto índice de crescimento (+TCD2 — acima de 1000%)

1 Luiz Nunes é Doutor em Ministério pelo Unasp, SP, e professor da Faculdade de Teologia no SALT-IAENE.

2 Taxa de Crescimento Decenal (TCD).

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b) Igrejas com médio índice de crescimento (+ TCD) — entre 150% e 630%)

c) Igrejas com baixo índice de crescimento (-TCD) — abaixo de 150%)

Todas as igrejas foram avaliadas durante um período de dez anos pelos seus próprios pastores, que usaram os registros de secretarias, entrevistas pessoais e eles próprios estiveram envolvidos diretamente nas atividades de implantação ou crescimento destas igrejas.

Implantação de Igrejas numa Visão Geral da Pesquisa

Em uma visão geral das diferentes formas de implantação e dos diversos níveis de crescimento, com base no levantamento real indo por estes pastores, fi ca demonstrado que três métodos sobressaem entre os demais. (ver Gráfi co 1)

Métodos de Implantação mais Utilizados nas Igrejas Pesquisadas

Gráfi co 1

Fonte: Relatório dos pastores do mestrado da UNB e UNeB.3

3 Todos os gráfi cos deste presente artigo são de mesma fonte e estabelecem a intensidade em que essas atividades foram utilizadas em percentagem.

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Implantação e Crescimento de Igrejas na UNB e UNeB 123

a) Conferências Públicas, com 34,8% aparece como o método mais usado, sendo este também o de maior incidência na implantação de novas igrejas.

b) Estudos Bíblicos, com 28,3% de incidência. Este método que continua sendo decisivo, haja vista que nenhuma conferência tem resultado efi caz sem o programa de estudos bíblicos. Na verdade, o sucesso de um investimento missionário deve conjugar os dois métodos, pois eles (a,b) estão amalgamados na vivência prática da Igreja e nas conferências públicas; e

c) Projeto Pioneiro4, com 19,6% de incidência é o terceiro método mais efi ciente. Embora antigo e hoje pouco falado, continua bem vivo na igreja, como o demonstra a pesquisa.

Deve-se, ainda, acrescentar que o método do Calvário5 (8,7%), por ser bem específi co do departamento do Ministério Pessoal foi posto separadamente, mas, na verdade, ele é um processo de conferência relâmpago, que se centraliza mais na semeadura. Não se trata de conferência de colheita, mas de semeadura. Este método é usado pelo Dr. Billy Graham, e todos que o seguem. Em nossa igreja, especifi camente, o Calvário funciona como semeadura para uma colheita posterior, geralmente feita pelos estudos bíblicos e conferências públicas.

A conferência do Calvário tem a vantagem de agilizar a evangelização, contudo demonstra-se incapaz em declarar toda a mensagem adventista, não identifi cando assim a igreja a que o novo membro será incorporado. Outro perigo desta metodologia é conduzir ao batismo pessoas que ouviram só um aspecto da mensagem. O novo converso é um membro sem o perfi l da mensagem presente de Apocalipse 10, 12 e 24. Esta falta de identidade doutrinária enfraqueceria a igreja da qual viesse participar. Tal pessoa pode deixar a igreja que primeiramente o recebeu com certa facilidade, como

4 O Projeto Pioneiro é um programa estabelecido pela Divisão Sul-Americana (DSA) que propõe que uma unidade de ação deixe a igreja para estabelecer uma nova congregação.

5 Apresentação de temas bíblicos durante a Semana Santa.

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costuma acontecer. Dessa forma, o empenho missionário é desacreditado e a igreja enfraquecida.

Outro cuidado que se deve ter é que na implantação de novos métodos, não se enfraqueça, ou até se tente cancelar aqueles que, sobejamente, têm dado e estão dando bons resultados. A ênfase nos treinamentos deve continuar, visando preparar evangelistas e instrutores bíblicos na igreja local e no ministério. O treinamento não é só ensinar a fazer, mas levá-los a favor e lazer junto com eles. Para isso, é preciso fornecer material e defi nir o local a se trabalhar. Não podemos esquecer que o nosso propósito é proclamar a tríplice mensagem evangélica de Apocalipse 14.

Crescimento da Igreja numa Visão Geral da Pesquisa

Depois que a Igreja foi implantada, ela precisa crescer orgânica, numérica e qualitativamente para permanecer. Na visão geral deste documento de crescimento da igreja local, fi ca claro que os métodos que mais fazem a igreja crescer são: (ver Gráfi co 2)

a) Conferência pública, 53,8%;

Métodos de Crescimento Utilizados

Gráfi co 2

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b) Estudos bíblicos, 20,5% e

c) Evangelismo voluntário, 10,3%.

De novo, precisamos ensinar os novos membros a aprender tais metodologias, como sendo o carro chefe da evangelização. Não se pode, contudo, descuidar da organização dos membros conforme os dons espirituais recebidos na conversão ou durante a incorporação do novo membro na igreja local. Para tal, não basta apenas uma verbalização, mas o envolvimento direto dos que lideram em todos os níveis de realizarem um destes programas, uma vez que seus exemplos educam mais o povo do que suas palavras.

O terceiro item, evangelismo voluntário (10,3%), é, como se pode constatar, um elemento importante. Esta metodologia iniciada na década de 60, com os treinamentos nas igrejas locais ou distritos pelos departamentais, da respectiva área, em fi ns de semana, tem ainda trazido seus resultados até hoje na vida da igreja local. Embora esse método esteja quase descartado, ou pelo menos muito evitado, ele parece ser ainda útil c efi ciente em fazer a igreja crescer, como demonstra a pesquisa.

Assim, qualquer líder da igreja não pode deixar de enfatizar tais metodologias, pelo simples fato de serem antigas. Ao mesmo tempo, precisa-se buscar novos métodos melhor aplicáveis ao momento presente da igreja. Deve-se, contudo, ter o cuidado de ao se enfatizar as novas formas de evangelizar, não se esquecer das atividades missionárias que continuam funcionando, embora sem receber muita promoção.

Análise das Igrejas com Alto Índice de Crescimento

Nas igrejas com o maior índice de TCD (acima de 1000%) a implantação e o crescimento de igreja apresentam uma pequena mudança em relação ao padrão geral visto anteriormente. O método mais efi ciente para se implantar igreja é Estudos Bíblicos, com uma taxa de 40%; enquanto o Evangelismo Público vem em segundo lugar, com 30% (ver Gráfi co 3).

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Métodos de Implantação das 10 Igrejas com Maiores TCD

Gráfi co 3

Noutras igrejas, aparece um programa intitulado “Reunião nos Lares”, com uma signifi cativa taxa de 20%. Trata-se de um programa semelhante a Pequenos Grupos, mas difere destes pelo seu estilo mais evangelístico e menos metódico. Esta atividade tem uma relevante taxa de 20% na implantação de novas igrejas. Também continua ainda aparecendo como método responsável para se estabelecer novas igrejas o antigo Projeto Pioneiro (10%). É válido ressaltar que uma ênfase deveria ser dada a esta programação.

Nestas mesmas igrejas de alto índice na TCD, continua a evangelização pública ocupando um lugar importante (com 60%) como o principal programa de crescimento de igreja (ver Gráfi co 4).

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Métodos de Crescimento das 10 Igrejas com Maiores TCD

Gráfi co 4

Crescimento Natural ou Biológico6 apresenta uma incidência de 20%, o que é signifi cativo para estas igrejas. Tal crescimento, que na literatura especializada não é considerado crescimento evangelístico, é, apesar de tudo, um programa muito importante nos arraiais da IASD, no Brasil. Este programa identifi cado especialmente pelo Batismo da Primavera completou 40 anos de existência, desde que foi criado no Rio de Janeiro pelo Pr. Ademar Quint.

Já começam a aparecer os sinais do programa de Pequenos Grupos, que é uma roupagem nova das unidades evangelizadoras e das Koinonias trazidos pelo departamento do Ministério Jovem.7 Este programa, com

6 Entende-se por Crescimento Natural os batismos realizados entre os familiares dos membros da igreja.

7 Na década de 70, através do Ministério Jovem da DSA foram es-tabelecidos as koinonias em todo território da DAS, sob liderança do Pr. Mário Veloso.

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forte ênfase na conservação precisa se transformar em uma atividade mais evangelizadora, ou fortalecer esta sua natural qualidade para resolver o grave problema da apostasia em nosso meio. Por outro lado, pode-se tentar os dois aspectos neste único programa, sem que haja perda de sua natural função de conservação. É interessante notar a queda dos estudos bíblicos (10%), vistos corno uma atividade solitária desassociada da evangelização pública. Repete-se, à guisa de ênfase, que os estudos bíblicos estão sempre presentes na decisão fi nal de uma pessoa para abraçar a fé cristã.

Análise das Igrejas com Médio Índice de Crescimento (150% a 630%)

Naquelas igrejas com índice médio de TCD, a implantação é realizada principal e predominantemente pelos Estudos Bíblicos, com 60% de atividade mais empregada, seguida por Conferências Públicas e Culto Familiar, com um índice de 20% cada (ver Gráfi co 5).

Métodos de Implantação

Gráfi co 5

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Por isso que Ellen White declarou que “a tarefa agora é a de convencer as pessoas com a verdade. A melhor maneira de fazer isto é por meio de esforço pessoal, levando a verdade à suas casas, orando com elas, e abrindo-lhes as escrituras.”8

É notório que neste tipo de igreja o Evangelismo Público diminui de importância consideravelmente, enquanto Reunião nos Lares (Culto Familiar) mantém-se no mesmo nível (20%). Por outro lado, nestas mesmas igrejas já implantadas, é o sistema do Evangelismo Público o principal método para fazê-las crescer, com 60% do índice (ver Gráfi co 6). Já os Estudos Bíblicos e o Crescimento Biológico se mantém numa média de 20%, como métodos que estão fazendo a igreja crescer.

Taxa de Crescimento em Relação aos Métodos Mais Utilizados em Igrejas com Médio TCD

Gráfi co 6

8 Ellen G. White, Meditação Matinal (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1986), 237.

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O que se percebe sempre, até este ponto, é o predomínio de Evangelismo Público e Estudos Bíblicos. É necessário pensar que cada vez mais se deve investir no treinamento dos membros da igreja nestas atividades. Estes são métodos que precisam ser popularizados no seio da igreja, através da ênfase dada a estas atividades, sem prejuízo das demais já existentes, nem das novas metodologias. O perigo que se corre é que no afã de introduzir um novo programa é esquecer a relevância dos já existentes, que são os principais responsáveis pelo estabelecimento e crescimento de novas igrejas como demonstrado na pesquisa.

A evangelização pública não é trabalho para poucos superdotados em homilética ou excelentes oradores. O trabalho principal no estabelecimento e crescimento de igrejas não pode e não deve ser apanágio de uma casta. Ao contrário, ele deve ser ensinado ao maior número possível de pessoas. Não pode ser relegado a um segundo plano, ou quase extinto nos diversos níveis administrativos da denominação. Voltar a fortalecer a evangelização pública é uma necessidade urgente, não só entre pastores, mas entre a força missionária dos membros em geral.

A obra bíblica que perdeu, ao longo dos anos, o status de Obreiro Regular, tornando-se um sub-emprego e muito mal remunerado, precisa ser reativada entre os de dedicação exclusiva, como entre os membros das igrejas, sob pena de se ver enfraquecida a capacidade evangelística da igreja. Além disso, há uma necessidade urgente de ensino mais profundo das doutrinas da igreja aos candidatos para o batismo como dantes, senão ter-se-á muito em breve uma IASD sem identidade própria.

Análise das Igrejas com Baixo índice de Crescimento (menor que 150%)

Há uma mudança considerável na implantação e crescimento da igreja entre aqueles que têm TCD baixo. Conferências Públicas encabeçam a lista dos métodos mais usados na implantação (40% - ver Gráfi co 7). O que é inusitado é o índice para Projeto Pioneiro nestas igrejas (também com 40%).

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Métodos de Implantação por Igrejas com Baixo TCD

Aparece nesse nível o papel dos Pequenos Grupos, aliados ao Calvário, com 10% de índice cada. Nesses quatro métodos, três deles estão ligados às Conferências. O Projeto Pioneiro aparece de novo e com um alto índice de preferência, mostrando que ele deve ser enfatizado novamente.

Com respeito ao crescimento nestas igrejas (ver Gráfi co 8), fi ca evidenciado o crescimento biológico, que corresponde a uma grande fatia (60%). Esta metodologia não é vista como crescimento evangelístico, pois se considera obrigação missiológica mínima o fato de uma igreja batizar seus membros naturais. Apesar deste posicionamento, não se pode deixar de recomendar um forte programa de evangelismo interno, para buscar os fi lhos da igreja. O que tem acontecido na prática é que o crescimento evangelístico e o biológico têm sido mutuamente excludentes. Este processo não necessita ser obrigatório como às vezes parece ser. Por isso, a igreja local deve desenvolver uma estratégia que alcance os dois objetivos. Isto só redundará num crescimento mais signifi cativo.

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Taxas de Crescimento em Relação aos Métodos Mais Usados em Igrejas com Baixo TCD

Gráfi co 8

Conclusão

Pelo presente trabalho fi ca demonstrado que os antigos métodos de evangelização pública e estudos bíblicos quando menos enfatizados trazem urna perda evangelística considerável. Por isso as novas metodologias, ao serem implantadas, não podem deixar de enfatizar fortemente as formas antigas de se trabalhar, sem que isso traga uma diminuição considerável no número de batismos.

Percebe-se ainda que crescimento evangelístico de uma igreja é inversamente proporcional ao crescimento biológico. Isto é, quando uma igreja tem um número considerável de batismos entre seus familiares o seu crescimento evangelístico é acentuadamente menor. Conclui-se, portanto,

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que a nova metodologia de Pequenos Grupos, embora importante em si mesma, não pode levar ao esquecimento da relevância do Evangelismo Público, Estudos Bíblicos c Projeto Pioneiro. Aconselha-se aos Campos e Uniões que no afã de estabelecer Pequenos Grupos lembrem-se marcadamente da obra de evangelização pública e pessoal na forma que foi legada pelos pioneiros dessa área. Caso contrário amargar-se-á resultados menores devido a uma ênfase exagerada numa só metodologia em detrimento daquelas que sobejamente dão verdadeiros resultados. Outrossim, sugere-se a urgência de se transformar os Pequenos Grupos numa ponta avançada da evangelização, ou então se aceitar a sua natureza intrínseca de conservação.


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