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QUANDO O OUTRO NÃO É RECONHECIDO COMO TAL: O PAPEL DA

ALTERIDADE NAS INTERAÇÕES SOCIAIS

WHEN THE OTHER IS NOT RECOGNIZED AS SUCH: THE ALTERITY ROLE IN

SOCIAL INTERACTIONS

Gabriella Hauber1

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir a importância do outro para as interações sociais, partindo da noção do paradigma relacional da comunicação. O percurso escolhido será, em um primeiro momento, discutir o papel do outro para as interações sociais e, em seguida, as consequências da ausência de alteridade para as interações. Ao final, apontaremos uma possível alternativa que talvez possa favorecer a alteridade – as histórias de vida. Diante disso, discutiremos a importância do outro a partir, principalmente, do conceito de self utilizado por Mead (1967), mostrando como a construção do self se dá em constante interação. Apontaremos exemplos de quando a dificuldade de levar o outro em conta - devido a processos de socialização e experiências individuais bastante distintos - pode dificultar ou mesmo impedir a interação entre os sujeitos. Nesse sentido, apontaremos as histórias de vida como um possível facilitador para a alteridade.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Interações sociais 2. Alteridade 3. Histórias de vida 4. Pradigma relacional da comunicação

ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the importance of the other for social interactions, based on the notion of the relational paradigm of communication. At the first moment we will discuss the role of the other to social interactions and then the consequences of the absence of alterity for interactions. Finally, we will point out a possible alternative that might favor the alterity - the sotirytelling. Therefore, we will discuss the importance of the other from mainly the concept of self used by Mead (1967), showing how the construction of the self occurs in constant interaction. We will point out examples of when the difficulty of taking the other into account - due to socialization processes and very different individual experiences - can hinder or even prevent the interaction between subjects. In this sense, we will point out the stories of life as a possible facilitator for otherness.

Apresentação

1 Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais; [email protected].

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O objetivo deste ensaio é discutir a importância do outro para as interações sociais,

partindo da noção do paradigma relacional da comunicação. O percurso escolhido será, em

um primeiro momento, discutir o papel do outro para as interações sociais e, em seguida, as

consequências da ausência de alteridade para as interações. Ao final, apontaremos uma

possível alternativa que talvez possa favorecer a alteridade – as histórias de vida. Diante

disso, discutiremos a importância do outro a partir, principalmente, do conceito de self

utilizado por Mead (1967), mostrando como a construção do self se dá em constante

interação. Apontaremos exemplos de quando a dificuldade de levar o outro em conta -

devido a processos de socialização e experiências individuais bastante distintos - pode

dificultar ou mesmo impedir a interação entre os sujeitos. Nesse sentido, apontaremos as

histórias de vida como um possível facilitador para a alteridade.

O outro nos estudos sobre as interações sociais

O modelo praxiológico da comunicação parte de uma perspectiva interacionista, na

qual “a comunicação cumpre um papel de constituição e de organização – dos sujeitos; da

subjetividade e da intersubjetividade; da objetividade do mundo comum compartilhado”

(FRANÇA, 2012, p. 4). Esse mundo comum compartilhado é construído socialmente por

meio das interações entre os sujeitos e entre sujeitos e objetos, e a comunicação, por meio

da linguagem, tem um papel fundamental nesse processo. A linguagem, por sua vez, possui

uma concepção expressiva e constitutiva. “Compreender uma linguagem (...) é

compreender as atividades sociais da qual é parte integrante, compreender aquilo que

articula as práticas, as orientações e as relações das pessoas em uma ‘forma de vida’”

(QUÉRÉ, 1991, p. 7).

Esse modelo de comunicação tem suas bases no interacionismo simbólico e no

pragmatismo. Joas (1999) discute que o enfoque do interacionismo simbólico seria “os

processos de interação – ação social caracterizada por uma orientação imediatamente

recíproca -, ao passo que o exame desses processos se baseia num conceito específico de

interação que privilegia o caráter simbólico da ação social” (JOAS, 1999p. 130); e, em

relação ao pragmatismo, Joas diz que “é uma filosofia da ação” (JOAS, 1999, p. 132), que

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“desenvolveu o conceito de ação a fim de superar os dualismos cartesianos. [E] desse

empreendimento surgiu um componente da intencionalidade e da sociabilidade

radicalmente diferente da compreensão do utilitarismo”. (JOAS, 1999, p. 133).

Um dos mais relevantes teóricos do pragmatismo é John Dewey, que vê a

comunicação como assentada no desenvolvimento da linguagem, que, por sua vez, estaria

assentada na experiência dos sujeitos no mundo. Dewey (1980) busca trabalhar a ideia da

relação entre os sujeitos por meio da construção das significações e da linguagem, que é

formada justamente pelas significações – algo só se torna linguagem em um contexto em

que ganha significação. A significação para Dewey não é um fenômeno psíquico ou

neurológico, mas sim uma qualidade do comportamento distintivo. O sentido das coisas não

é dado de imediato, mas construído coletivamente, a partir do momento em que os

indivíduos experimentam as situações e dão significados a elas. A significação é atribuída

por um consenso construído coletivamente, a partir das experiências dos sujeitos em um

universo simbólico comum. Nesse contexto, a comunicação teria um papel fundamental:

O fundamental na linguagem não é a ‘expressão’ de algo antecedente, muito menos a expressão do pensamento antecedente. É a comunicação, o estabelecimento de cooperação em uma atividade na qual há parceiros, e na qual, a atividade de cada um é modificada e regulada pela relação de parceria. (DEWEY, 1980, p. 37)

Mead (1967), contemporâneo de Dewey e um dos pragmatistas que compõem a

base do paradigma relacional da comunicação, também discute essa afetação mútua entre

os sujeitos em interação. Ele parte de uma ideia de centralidade da intersubjetividade para a

compreensão da socialização, do habitar e interagir em um mundo compartilhado por meio

da linguagem, que organiza o mundo simbólico. Ele desenvolve a ideia de um self, que

seria a personalidade social do sujeito, cuja identidade se formaria sempre em relação ao

outro, em um processo de interação. Mead se preocupa em mostrar como se dá a formação

desse self a partir de uma reflexividade - quando o indivíduo se torna objeto para si mesmo,

o que só é possível a partir do momento em que você carrega consigo as atitudes e

possíveis respostas dos outros indivíduos, que compartilham do contexto social em que

você está inserido. Ou seja, existe uma afetação mútua entre os indivíduos que estão em um

processo interativo. Nesse ponto, Mead vê a comunicação como um importante elemento

para a reflexividade. É ela e seus símbolos significantes compartilhados socialmente que

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fornecem formas de comportamento que tornam possível o indivíduo se transformar em

objeto para si mesmo. Seria uma comunicação não direcionada apenas aos outros, mas

também ao próprio indivíduo.

Tudo isso se relaciona também à noção de role-taking - a capacidade dos indivíduos

de assumirem papeis dos sujeitos e dos objetos com o qual interagem, a fim de regular sua

própria conduta. É quando os sujeitos adquirem a capacidade do role-taking que o self se

forma. Essa noção está ligada à capacidade dos sujeitos de antecipar a resposta dos outros,

da capacidade de interpretar o significado do seu próprio gesto na perspectiva do outro – o

que só é possível por compartilharem um universo simbólico comum. A possibilidade de

“prever” como o outro vai responder faz com que os sujeitos conformem seus atos da forma

que julgarem melhor para a interação, a fim de corresponder as expectativas sociais em

relação a eles. Porém, é durante a interação de fato, quando há afetação mútua, que os atos

dos sujeitos em interação são conformados e ajustados. Mead também fala da capacidade

do role-taking dos sujeitos em relação aos objetos. Também existe uma antecipação do que

o objeto é antes de interagirmos com ele – suposições de peso e textura, por exemplo.

Porém, as relações interpessoais são mais complexas e a possibilidade de quebra de

expectativas e de necessidade de ajustamento é maior.

O papel do outro na construção do self

O self pode ser considerado uma estrutura social a partir do momento em que se

desenvolve nas experiências sociais, nas relações com o outro generalizado - conceito

central no pensamento de Mead. O filósofo americano faz uma distinção entre o outro

significativo, que seria o outro concreto, com o qual, de fato, conversamos; e o outro

generalizado, que não é um singular, mas sim um outro social. É o outro que está

internalizado no sujeito e que está relacionado aos quadros interpretativos de

comportamento e de valores compartilhados socialmente. Esse outro generalizado só é

possível devido à dimensão me do self.

Mead concebe a ideia de self constituído por um I e por um me. O I (“eu mesmo”)

seria o eu biológico, responsável pela individualidade e singularidade do sujeito – os

impulsos viriam desse eu biológico. O me (mim) seria o eu social, que compartilha o

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universo simbólico da sociedade da qual o indivíduo faz parte e carrega consigo todas as

expectativas dos outros sujeitos, a fim de correspondê-las e de auto realizar-se. É por meio

do me que o self se adéqua ao contexto social no qual o sujeito está inserido. O me e o I

estão em constante relação por meio do que Mead chama de Mind. O eu social (me), de

certa forma, controla os impulsos do I para que o indivíduo possa interagir e se auto realizar

em sociedade.

Contudo, o fato de a intersubjetividade ser central nos processos de socialização não

impede as transformações e os conflitos sociais ou os torna incomuns ou infrequentes. O

próprio Mead toca em questões que levariam a mudanças na sociedade, que seriam

possíveis por meio da expressão do I, que está diretamente relacionada às experiências e à

individualidade do sujeito. “O indivíduo não tem somente direitos, mas também dúvidas;

ele não é somente um cidadão, um membro de uma comunidade, mas ele reage a essa

comunidade e, nessa reação, como já vimos na conversação por gestos, ele a transforma”.

(MEAD, 1967, p. 197, tradução nossa)

Além disso, o fato de o self ser construído pelos processos de interação não excluí a

individualidade dos indivíduos. A estrutura e o comportamento social se refletem no sujeito

durante a formação do self, mas a partir de uma perspectiva que é individual, específica do

indivíduo. Dessa forma, a compreensão que o indivíduo tem do contexto social e da

sociedade pode fazê-lo contestá-los ou mesmo sugerir mudanças. A superioridade também

é discutida por Mead como algo que pode contribuir para mudanças na sociedade, mas é

uma superioridade numa perspectiva que leva à auto-realização dos sujeitos.

Alguém é um bom cirurgião, um bom advogado, e pode orgulhar-se de sua superioridade - mas é uma superioridade que da qual ele faz uso. Quando ele, na verdade, faz uso dela na própria comunidade a que pertence, perde o elemento de egoísmo que pensamos ao pensar que uma pessoa simplesmente gaba-se de sua superioridade sobre outro. (MEAD, 1967, p. 208)

Nesse sentido, a superioridade também é um elemento que pode modificar a

sociedade, a partir do momento em que um indivíduo possui capacidades que outros não

têm e ao utilizá-las pode, pode transformar as situações nas quais vive.

Outra possibilidade de conflito apontada por Mead é quando o me não consegue

controlar o I e os limites da auto-afirmação são deixados de lado, o que pode levar a

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situações de violência. Nessas ocasiões, o I se sobrepõe ao me e as condutas impulsivas

não são controladas, uma vez que o controle social se expressa por meio do me, o que pode

levar a situações agressivas.

A ausência da alteridade enquanto conflito

Ficam claras a importância e a centralidade do outro para as interações sociais na

perspectiva relacional da comunicação, que se apropriou da noção de um eu social de

Mead. Nesse modelo, os sujeitos se constroem em interação, sempre em relação ao outro. A

ideia de antecipar as respostas e reações do outro pressupõe a capacidade dos sujeitos de se

colocarem no lugar do outro significativo, com o qual de fato se relacionam. Isso só é

possível devido a um universo simbólico compartilhado, que advém dos processos de

socialização dos sujeitos. Mas e quando os processos de socialização e as experiências

individuais acontecem de maneiras tão distintas, mesmo existindo espaços comuns de

interação, e o universo simbólico não é constituído pelos mesmos valores e crenças?

O conflito que será discutido e focado aqui é exatamente quando o outro não é

reconhecido como tal em um processo de interação social e a reflexividade discutida por

Mead fica fragilizada - ou seja, quando a ausência da capacidade ou a disponibilidade de se

colocar no lugar do outro dificulta, impossibilita, fragiliza ou torna injusta a interação entre

sujeitos. Quando os sujeitos passam por processos de socialização diferentes por

experiências de vida muito distintas, a quebra de expectativas em relação ao outro se

tornaria um problema durante a interação? Seria possível dizer que quando o processo de

socialização se dá em ambientes tão distintos, mesmo que no mesmo território, a

construção do universo simbólico comum passa a possuir aspectos divergentes o que faria

com que a expectativa em relação ao outro fosse quebrada de tal maneira que dificultaria a

interação e o se colocar no lugar do outro?

Esse não se colocar no lugar do outro fica mais explícito e talvez tenha

consequências mais significativas quando estão em jogo discussões entre diferentes

sujeitos, sobretudo, em debates polêmicos, com uma audiência ampliada, na qual há

opiniões divergentes. Nesse sentido, a deliberação, na qual há controvérsias de opiniões, se

revela uma interessante interação para se discutir o papel da alteridade na relação com o

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outro. Maia (2008) aponta critérios para analisar a deliberação mediada: acessibilidade,

identificação e caracterização dos participantes; uso de argumentos; reciprocidade e

responsividade; reflexividade e revisibilidade de opiniões. Os quatro últimos estão mais

diretamente relacionados à importância de se levar o interlocutor em conta. A reciprocidade

e a responsividade se referem ao diálogo ou à possibilidade de respostas mútuas entre as

fontes com diferentes posicionamentos e reivindicações. A reflexividade e a reversibilidade

estão ligadas à revisão de opiniões para incorporar novos aspectos da questão e para

aperfeiçoar as razões. É a possibilidade de reavaliar os argumentos a partir do que o outro

diz.

Fica clara, então, a importância de levar o outro em conta e de se colocar no lugar

do outro para que a deliberação seja um processo justo e enriquecedor. O próprio conceito

de deliberação já parte do pressuposto de um outro com o qual interagimos. Maia (2008)

discute que a deliberação acontece em momentos em que há controvérsias de opiniões, nos

quais os interlocutores buscam resolver o conflito por meio da troca de razões

potencialmente aceitáveis pelo outro. Maia retoma Bohman e afirma que a deliberação

“trata-se de uma atividade cooperativa, ‘em prol do objetivo’, de acordo com Bohman

(1996, p. 27), ‘de resolver situações problemáticas que não podem ser resolvidas sem a

coordenação e a cooperação interpessoal’” (MAIA, 2008, p. 85).

Porém, em alguns momentos, percebe-se que o outro nem sempre é levado em

conta, principalmente durante debates em torno de temas considerados polêmicos, como

casamento gay e aborto, o que gera um conflito constante, que pode enfraquecer ou mesmo

impedir o diálogo, a comunicação. Outro momento em que normalmente percebe-se a

dificuldade em se colocar no lugar do outro é em relação às diferenças culturais. A

compreensão de costumes de culturas completamente distintas se torna difícil e complexa,

como seitas religiosas de povos não ocidentais e circuncisão feminina e masculina em

algumas regiões e tradições. A compreensão desses hábitos é mais complexa do que

comumente os enxergarmos - a partir da perspectiva da nossa própria cultura - e discutir a

noção de direitos humanos nessas situações, o que comumente acontece, se torna um

desafio.

Outro exemplo é a deliberação em torno da redução da maioridade penal no Brasil,

que se dá com forte contribuição dos media. A maior parte das matérias dos media de

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massa que abordam o assunto costuma focar no ato infracional em si, contando como foi,

geralmente destacando o fato de ter sido cometido por um adolescente. Outro aspecto

relevante é o fato de os media, frequentemente, explorarem a história de vida da vítima,

dando um tom de que ela foi interrompida injustamente por alguém que sairá praticamente

impune, o que contribui para a demanda da redução da maioridade penal.

Durante as discussões sobre o assunto, quem é a favor da redução também explora

as histórias de vida das vítimas e as pessoas, de maneira geral, tendem a se colocar no lugar

delas. As pessoas são capazes de se colocar no lugar da vítima, mas têm dificuldade para

compreender a situação dos adolescentes. Ou seja, pode-se dizer que possuem dificuldade

de enxergar os adolescentes como um outro, de enxergar o mundo a partir da perspectiva

deles – não para aceitar os atos infracionais, mas para complexificá-los, ao levar em conta a

trajetória desse adolescentes, as possíveis violações de direito pelas quais passaram e a falta

de políticas públicas direcionadas a essa faixa etária. Nesse caso, para os sujeitos que foram

socializados em ambientes completamente diferentes e passaram por experiências distintas

é uma tarefa árdua mudar de perspectiva e carregar com eles atitudes e respostas do outro

ou mesmo levar o outro em conta, a partir da reflexividade proposta por Mead, e encarar a

redução da maioridade penal e os atos infracionais cometidos por adolescentes de uma

maneira mais complexa e problematizadora.

Quando o outro não é aceito como tal as possibilidades de diálogo podem ficar

reduzidas. Nesses casos, o problema da alteridade pode estar relacionado a processos de

socialização diferentes, nos quais foram construídos e compartilhados valores morais e

culturais distintos. Seria possível falar de construções diferentes do self, nas quais o me, a

dimensão social do self, por ter sido formado em processos de socialização e experiências

individuais também bastante distintas. Isso dificultaria uma antecipação das respostas entre

os sujeitos em interação ou, ainda, se a antecipação for feita, a expectativa pode ser

quebrada e os sujeitos podem não conseguir ajustar sua conduta durante a interação por

terem dificuldade em lidar com as diferenças – surge aí um conflito complexo que pode não

se resolver por meio da deliberação pela possibilidade de os sujeitos não estarem dispostos

a levar a discussão adiante ou mesmo a levar o outro em consideração, naqueles

pressupostos de reciprocidade e responsividade, e reflexividade e revisibilidade.

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Nesse sentido, seria possível questionar se seria mais provável se colocar no lugar

do outro e levá-lo em conta quando este nos é semelhante ou quando passamos por

processos de socialização semelhantes, o que faz com que compartilhemos valores

parecidos e aproximados ou até mesmo iguais.

Histórias de vida, alteridade e deliberação

Como foi discutido nas outras seções, o outro possui papel fundamental para as

interações sociais, porém, nem sempre ele é levado em conta pelos sujeitos, o que pode

acarretar uma série de conflitos e injustiças. Nesse sentido, as histórias de vida podem ter

um papel importante para a alteridade. Pensando que os diferentes processos de

socialização e experiências individuais pelos quais os sujeitos passam possam ser um fator

que dificulta a alteridade, as histórias de vida se tornariam relevantes para que um sujeito

compreenda melhor a perspectiva, o comportamento e os valores do outro.

Por meio das histórias de vida, é possível que os sujeitos conheçam as experiências

individuais do outro e, talvez, tenham certo acesso às dimensões I e me do self. Steiner

(2011), ao fazer um panorama das discussões sobre o papel das histórias de vida para a

deliberação, discute que elas podem contribuir para que as pessoas se coloquem no lugar

uma das outras e, dessa forma, consigam levar o outro em conta. Além disso, as histórias de

vida podem contribuir para que as pessoas possam enxergar determinada questão sob outro

ponto de vista, do ponto de vista do outro – mesmo que não concorde com ele. Dessa

forma, as histórias de vida podem levar à reflexão e cultivar sentimentos morais. Conseguir

deslocar seu olhar para enxergar uma determinada questão sob o ponto de vista do outro é

de extrema importância para as interações sociais, sobretudo para aquelas que envolvem

situações conflituosas e, talvez, inaceitáveis para uma das partes, como as já citadas. Black

(2009) discute que as histórias de vida “não só incluem descrições de eventos passados,

mas também ajudam quem narra a história a avaliar os eventos narrados” (BLACK, 2009,

p. 4, tradução nossa).

É preciso ressaltar, porém, que existem posições que questionam o papel das

histórias de vida e das emoções para a deliberação. Steiner (2012) também contextualiza

algumas dessas ressalvas que problematizam a importância da emoção para a deliberação

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alegando que o apelo para a emoção durante uma discussão pode ser uma forma de

manipular e brincar com a emoção da audiência e que algumas histórias de vida podem ser

exageradas e desviar o tópico da discussão. POLLETTA (2006) também aponta alguns

posicionamentos contrários às contribuições das histórias de vida para a deliberação, antes

de argumentar o contrário. Tais críticas defendem que as histórias de vida devem ser

combinadas a princípios normativos para serem eficazes, e também negam a capacidade

das histórias de vida de registrar as diferenças, ao contrário, há argumentação de que elas

forjariam acordos em torno das diferenças.

Apesar das críticas, consideramos que as histórias de vida estão presentes em muitos

momentos de deliberação e podem contribuir para a alteridade durante essas interações, no

sentido de favorecer uma compreensão mútua dos diferentes pontos de vista.

Ao contar, ouvir e responder as histórias, membros de um grupo negociam suas identidades e chegam a um entendimento da perspectiva do outro sobre as áreas de desacordo entre eles. Esta negociação é possível porque as histórias permitem que as pessoas expressem suas visões de mundo e seus valores e ajudam os ouvintes a assumir a perspectiva de outros dos quais eles podem discordar. (BLACK, 2009, p. 6, tradução nossa)

Em outras palavras, ao possibilitar a exposição de visões de mundo e de valores a

partir das experiências dos sujeitos, as histórias de vida favorecem uma maior compreensão

do outro e, dessa forma, pode garantir a continuidade e a realização da interação. Mesmo

que as opiniões continuem divergentes, as histórias de vida permitem levar o outro em

conta e considerá-lo ao argumentar e defender seu próprio ponto de vista. Em seu

panorama, Steiner (2012) também discute que levar em conta as histórias de vida pode

contribuir para o processo deliberativo, a partir do momento em que abre espaço para mais

pessoas participarem da deliberação, sobretudo grupos geralmente marginalizados.

Nesse mesmo sentido, Polletta e Lee (2006) abordam o fato de que, ao contar suas

historias, grupos em desvantagens podem ganhar atenção dos outros e expor seus valores e

experiências particulares que são diferentes da maioria. Os autores discutem também o

caráter interativo das histórias de vida: “Histórias de vida integram descrição, explicação e

avaliação; elas são separadas dos discursos envolventes; e elas são interativas, no sentido de

que provocam mais histórias em resposta” (POLLETTA e LEE, 2006, p. 702).

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Considerações finais

O presente ensaio buscou discutir o papel do outro para as interações sociais e

problematizar as situações em que o outro não é reconhecido como tal e as consequências

disso para as interações. Escolhemos como foco as situações conflituosas em que os

diferentes processos de socialização e experiências individuais dos sujeitos tiveram como

consequência um compartilhamento de valores e um universo simbólico diferentes, talvez,

em alguma medida não correspondentes. Como uma das possíveis alternativas para a

ausência de alteridade nessas interações, avaliamos como interessante pensar no papel das

histórias de vida para o favorecimento da alteridade. Ao expor experiências individuais dos

sujeitos, as histórias de vida contribuem para que os indivíduos possam enxergar a partir do

ponto de vista de outro – mesmo que não concorde com tal ponto de vista, só esse

movimento já é favorável à interação.

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