Transcript
Page 1: Débora Meira dos Santos

1

Canibalismo Tupinambá: um discurso para escravização.

Débora Meira*

Resumo:

Tenho por objetivo fazer uma reflexão sobre os discursos acerca da prática da

antropofagia das tribos Tupinambás no século XVI na América Portuguesa. Para isto,

utilizo como documento principal o diário escrito e publicado em 1557 pelo alemão Hans

Staden, conhecido com Duas viagens ao Brasil. Considero que a divulgação de tais

discursos puderam ser utilizados a favor de ações ofensivas contra os indígenas, como a

Guerra Justa e a escravização.

Como propósitos da comunicação: (a) Destacar as referências ao canibalismo no

diário de Hans Staden, (b) analisar a imagem construída dos indígenas como

devoradores de carne humana e (c) avaliar como tais elementos legitimavam ou

justificavam ações contra os indígenas, especialmente sua escravização para a utilização

como mão de obra, num momento em que a empresa colonial precisava se estabelecer

no território colonial, não só para defesa, mas também para enriquecimento da

metrópole.

Palavras chave:

Hans Staden; índios Tupinambás; escravidão indígena; Guerra Justa; imaginário colonial

Page 2: Débora Meira dos Santos

2

*Aluna cursando o 10º período de graduação em bacharelado e licenciatura em História na Pontifícia

Universidade Católica, bolsista CNPq no Programa de Educação Tutorial (PET) desde agosto de 2011.

Introdução

Em um domingo visitando o Museu Nacional localizado na Quinta da Boa Vista, vi e

fiquei encantada com pinturas em uma das salas. As pinturas estavam associadas ao

nome de Hans Staden e retratavam indígenas adultos e crianças, alguns pintados com

peles de animais e penas, outros nus. Alguns dançavam e outros sentados no chão

comiam partes do corpo de um homem que assava em numa espécie de grelha.

Tais pinturas foram feitas por Theodóre de Bry a partir de xilogravuras

apresentadas no diário de um viajante e arcabuzeiro alemão: Hans Staden. O intuito de

Staden em seu diário era o de ilustrar sua experiência na capitania de São Vicente em

1554, quando fora preso na sua segunda viagem ao Brasil por uma tribo de índios

chamados por Tupinambás.

A partir do diário escrito e publicado por Hans Staden em Marburg em 1557, cujo

titulo é: História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores

de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de

Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de

Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria e agora a traz a público com

essa impressão; mais conhecido pelo título de: Duas viagens ao Brasil. Considero este

relato importante em vista do momento de sua circulação, pois na metade do século XVI

há a formalização de práticas de escravização indígena propostas pelos governos

metropolitanos.

Em Duas Viagens ao Brasil, Staden apresenta uma visão religiosa da história, onde

os acontecimentos narrados se ajustam a um plano divino que se constitui a partir do

encontro com os homens bestiais, nus e cruéis comedores de seres humanos - como já

aparece no título da obra - numa dicotomia, na qual o autor contrapõe a imagem do

europeu civilizado à do indígena selvagem.

Mesmo que a narrativa de Staden tenha a marca de um olhar religioso, este

caminha em direção oposta de uma proposta política missionária, para qual estava sendo

Page 3: Débora Meira dos Santos

3

feito investimento por religiosos de diferentes ordens mendicantes católicas - como

franciscanos e jesuítas - a partir de interesses da Coroa Portuguesa. Hans Staden tornou

o Novo Mundo uma zona repulsiva onde os europeus hesitariam a pôr os pés,

recomendado por ele apenas se duvidasse da veracidade da sua obra.

“Se houver agora um moço, a quem minha descrição e

estes testemunhos não bastem, que empreenda então êle

próprio, com a ajuda de Deus, a viagem, e a dúvida se lhe

dissipará. Dei-lhe, nêste livro, informações suficientes.”1

Considerando, seu Diário de viagem como primeiro livro publicado sobre o Novo

Mundo e suas múltiplas reedições, tenho por objetivo mostrar que a leitura de Hans

Staden pode ter levado a uma afirmação de uma percepção negativizada dos índios

tupinambás. Onde a ritualização realizada pelos índios de comer a carne humana de

seus inimigos fortaleceria uma construção simbólica e imagética européia dos indígenas

como selvagens - que já vinha sendo feito desde Colombo com a criação do próprio

termo canibal2 -. A caracterização do indígena como selvagem legitimaria a ocupação e

proveito das terras americanas, além de fornecer uma resposta para lidar com as

populações “selvagens” como força de trabalho ou mesmo seu extermínio. Como

sabemos a chamada Guerra Justa fora fortemente defendida e realizada na América

Portuguesa.

“Se a liberdade é sempre garantia aos aliados e aldeados, a

escravização é, por outro lado, o destino dos índios inimigos”3

A Guerra Justa foi um dos casos em que a escravização indígena se tornou legal, a

outra “justa razão de direito” para escravização foi o resgate4 -. No século XVI e XVII esta

ação foi motivo de muita discussão em diferentes segmentos da sociedade européia,

1STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 198.

2 LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

Pp. 285.

3PERRONE-MOISÉS. Beatriz. “Índios livres e índios escravos”. In: História dos índios nos Brasil. Org. Manuela

Carneiro da Cunha. 2ª edição. São Paulo: FAPESP/Companhia das letras, 1992. Pp. 123. 4Ibdem.

Page 4: Débora Meira dos Santos

4

como também na sociedade portuguesa. Todavia, me interessa salientar que as causas

em que a Guerra Justa foi legitimada como ação na América Portuguesa seria quando da

recusa à conversão ao catolicismo levando ao impedimento da propagação da Fé cristã;

a quebra de pactos celebrados e a prática de hostilidade contra vassalos e aliados dos

portugueses.

Pensando meu objetivo na leitura do Diário de Hans Staden, ressalto o último

motivo destacado: o que legitimaria a ação da Guerra era a existência de hostilidades

prévias por parte dos indígenas.5 Já em 1548, Tomé de Souza, primeiro governador geral

da América Portuguesa, recomendava que os Tupinambás teriam de ser castigados com

muito rigor, já que estes haviam atacado os portugueses. Como Hans Staden o faria, a

descrição dos povos indígenas como bárbaros, cruéis e inimigos, configuraria a imagem

desse outro e legitimaria ações justas contra tais hostilidades. Dentre estas hostilidades,

a antropofagia dos indígenas também seria compreendida como uma ameaça aos

colonizadores.

A busca pelo canibal: a escrita de Hans Staden.

O primeiro livro sobre o que hoje chamamos de Brasil foi publicado em 1557 em

Marburg, em Hesse. A primeira edição deste foi impressa na “Folha de Trevo”, por André

Kolbe, e rapidamente alcançou sucesso editorial tendo sido publicada mais uma edição

no mesmo ano na mesma cidade e mais duas em Frankfurt. O livro que ficaria conhecido

por Duas viagem ao Brasil, teve como título original alemão Wahrhaftige Historia, e fora

escrito por Hans Staden logo após sua volta da experiência no país dos trópicos à pátria

alemã, como ele mesmo define, em 1557.

O primeiro livro sobre a terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres

humanos obteve 39 edições entre 1557 e 1715. Essas edições vão, desde a circulação

na esfera intelectual européia, com sua tradução em 1592 para o Latim– em 1567 a obra

havia sido inserida na segunda coleção de relatos de Sebastian Frank, intitulada

5 Principal justificativa segundo Beatriz Perrone-Moisés no subcapítulo: “Índios livres e índios escravos”.

Page 5: Débora Meira dos Santos

5

Weltbuch, sendo concedido o status de pertinência ao contexto científico da geografia6 - à

esfera da literatura infanto-juvenil européia através de Johann Ludwig Gottefried, escritor,

compilador e tradutor, que fora responsável por três edições da obra no século XVII.

Houve, ainda, produções de obras satíricas baseadas no livro de Staden, como:

“Encontro curioso e peculiar no reino dos mortos entre Cristóvão Colombo, o famoso

descobridor do novo mundo, e João Staden, marinheiro alemão igualmente famoso,

contendo descrições dignas de espanto e admiração” de 1729, ou “De como Hans

Stieglitz fez fortuna numa terra alheia” de Ewald G. Seeliger publicada em 1920.

As primeiras edições no Brasil só ocorreriam no final do século XIX, e mostraria

segundo Zinka Ziebell um caráter de polarização. Pois, na primeira edição, lançada em

1892 na Revista Trimensal do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro sob o título:

“Relação verídica e sucinta dos uzos e costumes dos Tupinambás por Hans Staden”,

teria sido conferido um valor científico que procurava ressaltar a descrição etnográfica.

Enquanto a segunda, de 1900 sob o título “Hans Staden: Suas viagens e captiveiro entre

os selvagens do Brazil”, evidenciaria o protagonista e sua história e teria, para Ziebell, um

caráter mais popular.7Mais tarde seria adaptado e publicado para o público infanto-juvenil

por Monteiro Lobato.

Assim, ao longo dos séculos vemos um sucesso editorial conquistado pela obra de

Hans Staden, seja do lado de um campo erudito ou na literatura européia “popular”.

Segundo Francisco de Assis Carvalho e Franco a obra de Hans Staden o tornou

secularmente célebre e se fixou como uma das mais autorizadas fontes da etnografia sul-

americana.

Zinka Ziebell afirma que este sucesso editorial estaria vinculado por um lado pelas

inúmeras xilogravuras feitas sob supervisão de Staden, que dariam maior legitimidade a

sua obra e por outro pela sua atuação como testemunha ocular do canibalismo e sua

consequente salvação concedida por Deus. As xilogravuras de Staden seriam

posteriormente reproduzidas por Theodore de Bry a partir de uma técnica mais

sofisticada e dispendiosa que a anterior. Identificamos semelhanças entre as xilogravuras

de Staden e imagens produzidas posteriormente para os diários de viagem de

aventureiros como, André Thevet, Jean de Lery e Pero Gândavo. Destaco a seguir, duas

6ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 244.

7Idem. Pp. 246.

Page 6: Débora Meira dos Santos

6

xilogravuras publicadas no original de Staden e suas reutilizações. Mas nas obras de

Frank Lestringant e Zinka Ziebell podemos identificar outros.8

8 LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

ZIEBELL, Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002.

Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá - Xilografia de

Hans Staden (1557).

Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá – Ilustração de

André Thevet (1575).

Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá – Ilustração de Pero Magalhães Gândavo (1576).

Page 7: Débora Meira dos Santos

7

Podemos sugerir outra leitura dos elementos que compõe o discurso de Staden,

além das xilogravuras e das inúmeras edições do Diário e que levariam a uma

reconstrução9 da imagem dos indígenas do litoral brasileiro, em especial dos

Tupinambás, inimigos dos portugueses e aliados dos franceses. Inimigo de uns e aliados

de outros, o que importaria para Staden era afirmar sua visão cristã de mundo em

contraposição a Terra habitada por seres bárbaros e, assim sem fé, sem religião.

Ao contrário de como seria posteriormente exposto por André Thevet, a vingança

se constituiria um dos elementos principais na construção da imagem do canibal que

praticaria tal ato não por “fome de carne” e/ou como ato sem razão, mas como parte da

honra e do cosmo Tupinambá. Na metade do século XVI Hans Staden constrói seu

discurso negativando os índios Tupinambás, contribuindo à um imaginário europeu sobre

os indígenas e a Terra Brasil como espaço perigoso, onde habitam seres que estão longe

da salvação cristã.

Assim, identificamos o lugar de fala religioso na obra de Staden como base na

legitimação do seu discurso, sendo Deus seu protetor e salvador, e graças unicamente a

Ele o alemão havia retornado à sua pátria. A escrita de Staden difere de uma política

9 Pensando reconstrução no sentido explorado por Serge Gruzinski em: GRUZINSKI, Serge. A colonização do

imaginário. 2003.

Cena do ritual Tupinambá– Xilogravura de Hans Staden (1557) Cena do ritual Tupinambá– Ilustração de Theodóre de Bry (1592)

Page 8: Débora Meira dos Santos

8

católica missionária num momento em que protestante e católicos discutiam sobre a

religião cristão. O calvinista Staden encarnava os sofrimentos de Jesus Cristo diante da

ameaça do canibalismo, pondo em si a imagem de sofredor diante dos cruéis indígenas.

“Tiravam-me umas pelos braços, outras pelas cordas atadas ao pescoço,

tão fortemente que eu quase não podia respirar. (...). pensei então nos sofrimentos

do nosso salvador Jesus Cristo, como foi inocentemente torturado pelos vis judeus.

Consolei-me neste pensamento e, mais resignado tudo aceitei.”10

O sucesso editorial de Duas Viagens, como vimos, pode estar vinculado ao

imaginário colonial – tendo elementos como a demonologia e a antropofagia -, ao uso das

xilogravuras, da religiosidade do autor, e estes elementos forneceram substrato à

construção de discurso de Hans Staden, constituindo sua escrita através de figuras de

linguagem como o uso da retórica na argumentação.

As bases das políticas indigenistas no século XVI podem ser visualizados para

além dos decretos, regimentos e as leis, outras mobilizações faziam parte das “disputas

retóricas implicadas nas mais acaloradas querelas públicas do período”11, envolvendo

também conceitos filosóficos, teológicos e jurídicos para formulação de ações políticas.

Como afirma Guilherme Luz, um diálogo como o de Juan Giné Sepúlveda sobre a

servidão natural dos índios, uma história como a de Bartolomeu de Las Casas, uma

relectio como a de Francisco de Vitória – que irá defender a ação de uma Guerra Justa

caso os indígenas repudiem ações missionárias -, tem por objetivo convencer o ouvinte

e/ou leitor de uma teoria de ação política que seja eficaz do ponto de vista estratégico e

prudente do ponto de vista teológico. Pensando a escravização de indígenas e a Guerra

Justa, destaco um fragmento do livro de Guilherme Luz:

“(...), qualificar a ação política como justa torna-se

um elemento importantíssimo para a prudência do

feito, envolvendo a mobilização dos termos

10

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 89.

11LUZ, Guilherme Amaral. Carne Humana. Canibalismo e retórica jesuítica na América Portuguesa (1549-

1587).Uberlândia: EDUFU, 2006. Pp. 95.

Page 9: Débora Meira dos Santos

9

jurídicos mais adequados.”12

Entendendo a escrita de Hans Staden a partir dos elementos que constituem seu

discurso e seu sucesso editorial, e atentando à afirmação destacada do historiador

Guilherme Luz dos outros diálogos além dos judiciais - como as leis e os decretos – e

que foram de suma importância na proposição de políticas indigenistas, sendo a Guerra

Justa uma delas. Podemos compreender a importância do relato de Staden para os

europeus, ressaltando que a partir do século XVI intensificou-se a colonização européia

no continente Americano, onde a Coroa – seja de Portugal ou da Espanha –,

colonizadores e a Igreja, queriam legitimar suas ações, para eficácia e desenvolvimento

do empreendimento colonial.

Assim, seja através do seu lugar de fala religioso ou da sua posição de testemunha

ocular, que confere veracidade ao seu relato, Hans Staden denomina seu discurso de

História verídica. Onde o relato estava sendo narrado não apenas pelo observador, mas

pelo participante sofredor, que através de milagre e ameaças, perigo e salvação,

conseguira sair do mundo da selvageria e barbárie para reencontrar o seu mundo

civilizado, com fé, lei e Rei.

“Aproximaram-se de mim então e apalparam-me a carne.

Um dizia que o couro da cabeça lhe pertencia, outro que a coxa lhe cabia.

Tive que cantar-lhes alguma cousa, e entoei cantos religiosos,

que precisei explicar-lhes em sua língua. Disse: ‘cantei sobre o meu Deus’.

Responderam que o meu Deus era imundíce, em sua língua: teóuira.”13

Sua fala circulará já no século XVI entre os meios intelectuais, que estavam

refletindo formas de agir politicamente e economicamente sobre este Novo Mundo. E

pensando um agir sobre as terras e habitantes americanos, distinto de uma ação

missionária como será defendido por jesuítas, franciscanos e carmelitas, mas uma “ação

justa” para o empreendimento colonial. Ação que defendia a apropriação das terras

ocupadas por “índios hostis”, e sua utilização como mão de obra escrava.

12

Idem. Pp. 95/96.

13STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 100.

Page 10: Débora Meira dos Santos

10

Convivendo com os canibais: o discurso sobre o selvagem.

A obra de Staden no Brasil teve, no século XX, grande importância para os

imigrantes alemães. Para a Zinka Ziebell podemos observar, em relação à recepção de

Staden no Brasil, a existência de “certo orgulho nacional e a busca da preservação de

valores do que poderíamos designar como Deutschtum, ou sentimento de ‘germanidade’

nos círculos de descendência alemã no Brasil”14

Em 1941, em plena segunda Guerra Mundial, Karl Fouquet edita a obra de Staden,

afirmando no posfácio a sua intenção de reforçar, através da obra, a identidade teuto-

alemã através da publicação do documento mais antigo da relação Brasil – Alemanha. A

instituição responsável pela edição de Karl Fouquet, e que tem expresso as mesmas

intenções de Fouquet, é o Instituto Hans Staden fundado em 1935, tendo por nome

original Clube Hans Staden até 1938, ano que se torna proibido por lei o uso da língua

alemã .

A presente edição que utilizo também é de tradução responsável do Instituto Hans

Staden, publicado pela editora Itatiaia em 2008 como parte da coleção: Coleção

reconquista do Brasil. Da estrutura do documento original15, para a organização feita pela

editora, diferencia-se pela alocação das xilogravuras, que no original localiza-se reunidos

ao fim do documento e a editora organizou-as conforme a narrativa do diário. Na edição

que utilizo há uma introdução escrita por Francisco de Assis Carvalho Franco em outubro

de 1941, ou seja, a mesma introdução já presente na edição de Karl Fouquet.

Como no original, a edição da Itatiaia traz a dedicatória de Hans Staden ao príncipe

Felipe I, escrita em junho de 1556, e o prefácio do professor de matemática e anatomia

da universidade de Marburg Dr. Johann Eichmann – mais conhecido como Dryander -,

escrito, como ele faz referência, no dia de São Tomás de 1556.16 Na dedicatória de

Staden ao príncipe, ele afirma a salvação de Deus que retirou do abismo, longa miséria e

supremos perigos, e o trouxe de volta ao principado de Vossa Serena Alteza, minha

14 ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 247.

15Disponível online pela Biblioteca Nacional.

16Corresponde ao dia 21 de dezembro.

Page 11: Débora Meira dos Santos

11

muito querida terra natal. Felipe I fundou a primeira universidade protestante da Europa

em Marburg no ano de 1527, o que explicaria a criação da primeira gráfica da cidade

onde seria publicado o livro de Staden.

Como no caso da utilização das xilogravuras, prefácio do Dr. Dryander evidencia

outra forma pelo qual Staden busca legitimar sua História verídica. E o intelectual, que foi

amigo de infância do pai de Staden como ele mesmo afirma no documento, acaba dar um

atestado de boa conduta à Staden. E certamente Dryander teve papel importante na

produção do livro.

“Primeiro por que conheci seu pai, que nasceu e foi educado na mesma cidade que eu, em

Wetter, há cerca de cinquenta anos, (...), em Héssia, onde ainda mora, de ser um cidadão reto, pio

e valoroso, e que dispõe de boa cultura. Se a maçã, como se diz no provérbio, sabe ao tronco,

pode-se esperar que o filho dêste honrado homem se assemelhe ao pai em seu valor e piedade.”17

O livro de Hans Staden está dividido em duas partes e em duas formas de escrita,

já que, na primeira parte ou livro primeiro, Staden conta em forma de uma narrativa sua

experiência no Novo Mundo, estando neste primeiro livro suas duas viagens. No livro

segundo Staden expõe de forma expositiva a terra e seus habitantes, contendo também

um pequeno relato verídico sobre a vida e costumes dos Tupinambás. Nesta segunda

parte, é importante ressaltar, que identificamos o conhecimento que o alemão tinha de

astronomia, que era considerado importante neste período - a construção de novos

estudos como da latitude, longitude, dos ventos e estrelas que garantissem segurança

aos viajantes- e que conferia um lugar social dentro da Europa, como afirma Patrícia

Seed.18As citações que expus no primeiro subcapítulo estão situadas no livro primeiro,

assim, fazem parte da narrativa da viagem do autor.

O autor inicia a primeira parte do livro contando que se propôs a conhecer as Índias

em 1547, partindo da Holanda para Portugal. E a partir desta primeira exposição o autor

vai pontuando os locais pelos quais passaria, afirmando que o colocaram como artilheiro

do navio cujo capitão chamava-se Penteado. Nesta primeira viagem o autor já expõe

elementos do imaginário colonial, afirmando que havia cardumes voadores perto da

17

Fala de Dryander em: STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 29.

18SEED, Patrícia. “Novo céu e novas estrelas”. In: Cerimónias de posse na conquista Européia do Novo

Mundo (1492-1640). São Paulo: UNESP/Cambridge, 1999.

Page 12: Débora Meira dos Santos

12

região do Marrocos. Percebe-se que apesar do conhecimento de cosmografia já existente

antes do século XVI, permanecia no pensamento europeu símbolos de um imaginário

medieval, neste caso na narrativa de Staden havia seres monstruosos nos mares. Está

presente na escrita de Staden a ideia de que além do continente europeu existem seres

monstruosos, selvagens, e comedores de carne humana.

Podemos identificar dois elementos distintos na fala do viajante, já nesta primeira

parte da obra, haveria um jogo entre verdade e ficção na escrita de Staden. O autor

afirma a veracidade da sua descrição dos acontecimentos a partir de alguns elementos já

destacados, como a religião, as xilogravuras, o prefácio de Dryander, e com o próprio

título que dá a obra. Mas joga também com as expectativas dos futuros leitores da obra

e/ou, como Zinka Ziebell chama atenção, com “noções pertinentes à cultura do autor do

mesmo”19, escrevendo de forma ficcional afim de criar uma narrativa compreensível ao

pensamento europeu.

Este primeiro momento da narrativa é muito breve já que, o autor não chega as

Índias como desejado, mas no porto de Pernambuco, em Olinda. Logo após, se dirigiria

para a Paraíba, a terra dos Potiguaras, encontrariam embarcações francesas que

recolhiam Pau-Brasil e após ataque sem sucesso, seu navio retornaria a Portugal.

De Portugal Hans Staden retornaria ao Novo Mundo, desta vez com o objetivo de

explorar o Peru, terra que era muito rica em ouro que foi descoberta há poucos anos, e

afirma que o Peru e o Brasil constituem um só continente.20Partindo de São Lucas no

quarto dia depois da páscoa de 154921, alcançaria a terra da América, a 28 graus de

latitude – mostrando seu conhecimento de cosmografia – em 18 de novembro do mesmo

ano. E a partir de sua chegada o autor narra os problemas encontrados pela tripulação –

como tempestades, fome, sede, encontro com naus inimigas, por haver muitos recifes no

litoral americano, as embarcações várias vezes chocaram-se com os recifes e

naufragaram -. Porém, não caberia aqui toda esta descrição, nem é este o objetivo -, até

sua estabilização no forte na Ilha de Santo Amaro onde foi-lhe pedido que servisse na

segurança no forte como arcabuzeiro, que aceitou porque o Rei de Portugal iria

agradecer-lhe. Staden ainda afirma que Tomé de Souza, primeiro governador geral do

19

ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 63.

20STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 52.

21 O “quarto dia depois da páscoa” corresponderia ao dia 10 de abril.

Page 13: Débora Meira dos Santos

13

Brasil, desejava narrar tais fatos ao Rei e que seria recompensado quando retornasse a

Portugal.Após quatro meses na Ilha, fez um novo contrato com a Câmara de ficar

encarregado por mais dois anos da segurança do forte.

Hans Staden que afirma na narrativa possuir um índio da Tribo Carijó que

apanhava caça para ele, porém ele não expõe como “adquiriu” o indígena, deixando sem

explicações uma indicação que pode ser de escravização desses indígenas carijós, ou

um estabelecimento de relações entres os índios e os portugueses em que haveria uma

relação de troca entre essas populações; por exemplo, os indígenas poderiam realizar o

serviço de caça e pesca em troca de armamento. Penso nessa possibilidade pela

referência que Staden apresenta no momento do aprisionamento de Staden, em que os

índios Tupiniquins da Ilha Santo Amaro tentam atacar os Tupinambás, após o índio carijó

de Staden avisar aos Tupiniquins do aprisionamento de Staden.

“Êles, os tupinambás, então retrocederam.Da terra atiravam com espingarda

e flechas sobre nós, e os índios nas canoas respondiam com tiros.”22

Contudo, no capítulo 25 da sua obra – neste momento já estava vivendo entre os

Tupinambás como prisioneiro -, Hans Staden narra uma história contada pelos

Tupinambás em que um dos seus membros havia sido capturado pelos Tupiniquins e

vendido a um português:

“Havia lá, nessa ocasião, um moço da sua tribu que tinha vivido como

escravo junto aos portugueses. Numa expedição contra os tupinambás, subjugaram

os tupiniquins uma aldeia inteira. Aos velhos devoraram, comerciando com os

portugueses alguns dos jovens, entre os quais se contava o mencionado moço, que

fora adquirido da região de Bertioga, um galego por nome Antonio Agudin.”23

Embora este não seja meu objetivo principal, identificar dados de escravização no

período colonial na obra de Staden, mas sim através do imaginário do canibalismo, torna-

22

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 83. Grifo meu. Há aqui

também um dado de que os Tupinambás tinham armamento, e na narrativa Staden afirma que os franceses

havia lhes dado o armamento e a pólvora.

23 Idem. Pp. 94.

Page 14: Débora Meira dos Santos

14

se relevante para vermos através da sua escrita uma dinâmica social, as relações sociais

entre os índios e não índios num momento de estabelecimento dos portugueses, e

também de franceses, na colônia. Mostrando um jogo de interesses desses agentes, já

que, no fragmento anterior além da informação de escravização dos índios inimigos, são

os próprios índios, neste caso os Tupiniquins, que fazem comercialização dos índios

capturados.

A partir do episódio de captura, Hans Staden viveria durante nove meses entre os

Tupinambás, e numa via de mão dupla compartilharia de seus costumes e conheceria os

dos indígenas, entre eles as festas antropofágicas. Um dos costumes que o alemão

vivenciou foi a participação nas festas em que bebera o cauim, uma bebida alucinógena

feita a partir da fermentação muitas vezes de frutas como caju, como ressaltado por João

Fernandes, e era produzida pelas mulheres da tribo para grandes rituais. 24

“Conduziu-me então ao sítio do chefe, que aí se achava sentado com

outros a beber. Haviam-se embriagado com cauim, olharam-me irados, e

disseram: ‘Vieste como inimigo nosso?’ Respondi: ‘Vim, não porém como

vosso inimigo’. Com isto, deram me tambem de beber.”25

Não comer o inimigo, capturado em conflitos entre tribos, alterava a ordem do

cosmo na visão Tupinambá, com isso podemos identificar uma forma de acesso ao divino

no cosmo indígena. Para o cativo ser sacrificado e comido pelos seus inimigos também

seria importante, demonstraria sua honra e não medo diante do inimigo. Dentro de uma

lógica própria, cativo e guerreiro26se enfrentavam e garantiam desta forma o dinamismo e

as relações sociais das tribos envolvidas. As tribos aliadas participavam das festas

24

FERNANDES, João A. Sobriedade e embriaguez: a luta dos soldados de Cristo contra as festas dos

tupinambás. Revista Tempo,Rio de Janeiro. Nº 22, Pp. 98-121. 25

Idem. Pp. 98.

26Entendendo guerreiro aqui como o sujeito que iria quebrar o crânio do cativo e com isto ganhar um novo

lugar social dentro da tribo, ganhando um novo nome e uma nova marca na pele que segundo Hans Staden

era uma “arranhadura” com dente de algum animal selvagem, e a cicatriz criada pelo corte na pele

conferia-lhe como um guerreiro honroso. Quanto mais nomes e marcas na pele o índio obtivesse mais

importante seria seu lugar social na tribo. Ver: CUNHA, Manuela Carneiro. CASTRO, Eduardo Viveiros.

Vingança e temporalidade: os Tupinambás. 1985.

Page 15: Débora Meira dos Santos

15

antropofágicas, por isso o ritual demorava vários dias para se realizar, já que o inimigo só

era sacrificado quando chegassem os convidados. Assim, os rituais eram também uma

forma de renovação das alianças estabelecidas entre as tribos. Destaco agora

fragmentos da obra em que mostra a relação entre cativos e guerreiros, e/ou os que

estão vingando sua tribo conferindo-lhes honra e trazendo de volta ordem ao cosmo.

“Consideram isto uma honra. A seguir retoma o tacape aquele que vai matar o prisioneiro e

diz: ‘Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente tambem matou

e comeu muitos dos meus amigos’. Responde-lhe o prisioneiro: ‘Quando estiver

morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me.”27

“Guerreiros valorosos morrem na terra de seus inimigos. E a nossa terra é grande.

Os nossos logo nos vingarão em vós”28

Neste fragmento identificamos uma relação sociocultural estabelecida pela

antropofagia que ultrapassaria a visão defendida por Hans Staden do ritual como ato de

imensa hostilidade entre os indígenas. O ritual, que expressava a visão de mundo dos

Tupinambás – o sentido de ser e estar no mundo, pois o sacrifício conferia ao cosmo

Tupinambá29 uma lógica que é contrária à visão dada pelo europeu, que lê o canibalismo

como exemplo da barbárie e selvageria dos indígenas.

“(...) Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de

uma perna, seguroum’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘Um

animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?’

Mordeu-a então e disse: ‘Jauáraichê’. ‘Sou um jaguar. Está gostoso.’ Retirei-me dêle, à vista

disto.”30

27

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 182.

28Idem. Pp. 132.

29LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

Pp. 98-99.

30STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 132.

Page 16: Débora Meira dos Santos

16

Neste fragmento o indígena figura um ser selvagem e irracional, onde ato de comer

a carne humana o tornaria um ser diferente do europeu. Esta parte do documento

mostra-nos a forma de escrita do autor, além da dicotomia criada por Staden entre

europeus e americanos, cristãos e não-cristãos, apresentando-os como seres sem fé, lei

e Rei e lhes atribuindo a condição de irracionais, bárbaros e cruéis. Tornando sua fala

contrária a dos religiosos que propunham a cristianização desses povos. Para Staden, a

alteridade Tupinambá pode e deve ser eliminada pelos povos ditos civilizados.

Destaco outra parte do diário em que vemos a afirmação religiosa do autor por

oposição aos indígenas pagãos, sem fé, e também a tentativa de criação de uma imagem

do indígena como o cruel, demoníaco31, e que deve estar longe de todo europeu

civilizado e cristão.

“(...) porque queria contar apenas o início,, como caí em poder da cruel gente selvagem.

Quis mostrar com isso, como o Salvador de todos os males, nosso Senhor e Deus, de modo

patente e sem que eu o pudesse esperar, me livrou do poder dos gentios. Cada qual deve ouvir

que o Deus todo-poderoso preserva e conduz, ainda agora, tão maravilhosamente, seus cristãos

fiéis, entre o povo ímpio dos pagãos, como sempre o fez, desde o começo.”32

O canibalismo era um ponto fundamental que distanciava os europeus dos

indígenas do Novo Mundo, destaco uma xilogravura onde Hans Staden, com as mãos em

atitude prece assiste ao festim antropofágico, distanciando-se do ato canibal como o

europeu, civilizado e cristão. Criando uma hierarquia entre os que são cristão, civilizados

e não comedores de carne humana e os índios selvagens, cruéis e comedores de carne

humana.

31

Pensando aqui na criação de uma dicotomia no imaginário europeu que opõem o sagrado ao demoníaco.

32STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 197. Grifo meu.

Page 17: Débora Meira dos Santos

17

O discurso construído por Hans Staden, como vemos, tem elementos como a

retórica e um imaginário europeu que fazia parte da escrita do Diário. Nesta xilogravura

destacada acima notamos outro elemento: no centro da xilogravura há um tipo de

caldeirão, onde boia a cabeça do inimigo dos Tupinambás. O caldeirão como posto pelo

autor traria ao leitor europeu uma referência que lhe é familiar: o caldeirão das bruxas,

que para o cristianismo são seres demoníacos.

Assim, o diário de viagem de Hans Staden traz elementos do imaginário europeu

para narrar sua experiência na América Portuguesa terra dos canibais. O imaginário e

simbolismo, criados a partir deste contato entre índios canibais e não índios cristãos,

envolveria a escrita da obra – a própria escrita já teria a priori um imaginário sobre

canibalismo na Europa - e faria parte das propostas de ações da Europa no Novo Mundo.

Frank Lestringant ressalta esta relação entre o imaginário sobre os canibais do Novo

Mundo e ações consideradas “justas” no lugar de fala do colonizador.

““Se essa condensação imaginária pode tão prontamente formar-se, é porque ela correspondia,

por outro lado, a considerações políticas e econômicas bem precisas. Como resposta, [as

incursões européias fracassadas no Caribe] massacres e deportações maciças foram legitimados.

(...)Por um decreto real de 1501, Isabel, a Católica, declarava que guerra contra os caribes era

Page 18: Débora Meira dos Santos

18

justa e que os prisioneiros podiam ser vendidos como escravos. Sem dúvida, o decreto de 1501 e

todos aqueles que sublinharam esse princípio até o início do século XVII designavam para essa

guerra justa uma área geográfica restrita – Santa Lúcia, Dominica, São Vicente -, e uma região de

terra firme ao redor de Cartagena. Na prática, contudo, e a despeito do controle severo da justiça

real, a avidez de traficantes e encomienderos não conheceu limites a tais exações. (...). Graças

ao amálgama entre Colombo e Vespúcio, uma perfeita confusão estabelecera-se entre os caribes

antilhanos, os da Guiana, os da parte oriental da Venezuela e os tupinambás do litoral brasileiro,

considerados também antropófagos.”33

Conclusão

Quando pensamos as relações estabelecidas entre índios e não índios na América

Portuguesa ao longo dos séculos XVI e XVII pode-se identificar fracassos de políticas

que tentam ser aplicadas pelos portugueses colonizadores. A missão jesuítica foi um dos

projetos de colonização que acabou por não alcançar os objetivos desejáveis pela Coroa

portuguesa, onde a proposta do Marquês de Pombal acabaria por substituir a anterior.

Embora a missão jesuítica tenha se expandido por territórios da América

Portuguesa além do litoral e adentrando o sertão - criando colégios, fazendas e

aldeamentos com o propósito de cristianizar os povos que desconheciam a verdadeira fé

-, o empreendimento religioso deixaria de ser eficaz aos propósitos da Coroa e dos

colonizadores. O objetivo da Companhia de Jesus no controle dos indígenas através dos

aldeamentos, da catequese e do batismo não conseguiu, na maioria dos casos, produzir

o efeito desejado. Ocorriam fugas dos índios nos aldeamentos, a recusa à missão

catequética e a Companhia foi criticada por colonizadores ao utilizar os índios aldeados

no trabalho nas fazendas. A política do Marquês de Pombal retiraria o poder concedido à

33LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

Pp. 51-52.

Page 19: Débora Meira dos Santos

19

Companhia nas terras portuguesas frente aos povos indígenas e legitimou ações que

tentavam controlar e eliminar as populações nativas.

Como afirma Luciano Campos Brunet, a mão de obra nativa foi muito importante no

desenvolvimento do empreendimento colonial. Embora na historiografia tenhamos muitos

trabalhos sobre a escravização negra no Brasil não podemos esquecer que

primeiramente a mão de obra indígena seria utilizada pelos europeus colonizadores.

Posteriormente sua mão de obra seria desvalorizada e suas terras passariam a ter maior

importância; consequentemente criaram-se políticas para que indígenas fossem retirados

de suas terras, e caso houvesse relutância era justa uma Guerra contra estes povos – já

que, na fala do colonizador as terras seriam utilizadas por estes de forma a garantir o

progresso e desenvolvimento da civilização -.34

“A ação sucessiva de guerras justas na segunda metade do século XVII tinha como objetivo

central destruir ou dominar as aldeias indígenas do sertão, abrindo caminho para uma nova forma

de colonização no território conquistado.”35

Como obra de referência, tendo várias edições ao longo dos séculos XVI e XVII,

lida por um público formal e informal, ou seja, dos círculos intelectuais ao infanto-juvenil e

da sátira; o Diário de Hans Staden fora legitimado como verídico e de importância para a

civilização europeia. O diário fora importante para os leitores europeus, mais as

xilogravuras davam aos iletrados uma forma de conhecer sobre o Novo Mundo e seus

costumes canibais. Vemos a importância conferida por Theodore de Bry, que publicara as

imagens sob uma nova técnica. E que também foram utilizadas por outros viajantes,

como Jean d’ Lery e André Thevet.

Destaquei vários elementos que constitui o diário de Staden e que legitimam seu

discurso sobre os povos indígenas Tupinambás, como o uso de figuras de linguagem, da

retórica, o conhecimento de astronomia, as várias xilogravuras, o prefácio e dedicatória

do autor, que buscavam conferir à obra um caráter científico e/ou uma história verídica do

Novo Mundo.

34BRUNET, Luciano Campos. De aldeados a súditos: viver, trabalhar e resistir em Nova Abrantes do Espírito

Santo Bahia 1758-1760. Bahia: Departamento de História da UFBA, 2008. 147 p.

35 NEVES, Juliana B. B. Colonização e Resistência no Paraguaçu – Bahia, 1530 – 1678. Bahia: Departamento

de História da UFBA, 2008. 142 p.

Page 20: Débora Meira dos Santos

20

A obra de Hans Staden foi editada na Europa e fora dela, por vários anos, e

circulou entre diferentes segmentos sociais, e inicialmente num período de

estabelecimento e ampliação do empreendimento colonial. Num momento que a proposta

de evangelização das populações indígenas era vistas como ineficazes, e ampliava-se o

espaço para políticas mais opressoras como a Guerra Justa.

A visão do mundo indígena, das suas práticas e costumes, contidos no diário de

viagem sem dúvida correspondia a um imaginário europeu que antecedeu a escrita de

Hans Staden.36 E que correspondiam aos ideais de civilização defendidos pela Igreja,

pela Coroa, e pelos futuros colonizadores. Sua obra alcançava um público amplo, ia além

dos círculos científicos, podendo legitimar a proposta de políticas indigenistas frente

diferentes segmentos da sociedade européia, quando a missão religiosa não mais

correspondia aos ideais da Coroa Portuguesa.

Alguns anos após a escrita do diário Duas Viagens ao Brasil, mudanças

ideológicas no campo político e econômico apontariam a necessidade de criação de uma

nova sociedade, onde a Companhia de Jesus – enquanto uma instituição que tinha por

objetivo a missão e não eliminação destes povos, como os franciscanos também teriam -,

não teria mais espaço. E a época Pombalina marcaria a tentativa de inovação,

modernização e transformação de Portugal. E o espaço ocupado pelas políticas que

visavam a cristianização e não eliminação dos povos indígenas – tornando estes povos

súditos da coroa portuguesa - dariam lugar ao Diretório Pombalino, sendo a primeira

gestão direta, efetiva e centralizada da Coroa para administrar a questão indígena.

Referências Bibliográficas

36

Sobre imaginário europeu acerca do canibalismo, ver: LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e

decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

Page 21: Débora Meira dos Santos

21

PERRONE-MOISÉS. Beatriz. “Índios livres e índios escravos”. In: História dos índios nos

Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 2ª edição. São Paulo: FAPESP/Companhia das

letras, 1992.

BRUNET, Luciano Campos. De aldeados a súditos: viver, trabalhar e resistir em Nova

Abrantes do Espírito Santo Bahia 1758-1760. Bahia: Departamento de História da UFBA,

2008.

CUNHA, Manuela Carneiro. CASTRO, Eduardo Viveiros. Vingança e temporalidade:

osTupinambás. 1985.

FERNANDES, João A. Sobriedade e embriaguez: a luta dos soldados de Cristo contra as

festas dos tupinambás. Revista Tempo,Rio de Janeiro. Nº 22, Pp. 98-121.

GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário. Sociedades Indígenas e

Ocidentalização no México espanhol: séculos XVI-XVIII.São Paulo: Companhia das

letras, 2003.

LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade

de Brasília, 1997.

LUZ, Guilherme Amaral. Carne Humana. Canibalismo e retórica jesuítica na América

Portuguesa (1549-1587). 2006

NEVES, Juliana B. B. Colonização e Resistência no Paraguaçu – Bahia, 1530 – 1678.

Bahia: Departamento de História da UFBA, 2008.

PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora

Autêntica, 2008.

SEED, Patrícia. Cerimónias de posse na conquista Européia do Novo Mundo (1492-

1640). São Paulo: UNESP/Cambridge, 1999.

ZIEBELL, Zinka. Terra de canibais.Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS,

2002.

Page 22: Débora Meira dos Santos

22

Fonte

STADEN, Hans. Diário de duas viagens. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008.


Top Related