BOLEIA SOLIDRIA

ENCHENDO O BANCO DE TRS

Modernizada, prtica da carona ganha flego entre universitrios e profissionais no Rio, e faz surgir servios a favor de sua popularizao

TEXTO THIAGO JANSEN

O universitrio Jos Guilherme Tavares d carona para as colegas Raissa Rocha e Hayla Miceli de Niteri ao Fundo: na UFRJ, alunos usam o Facebook pra combinar as viagens LEO MARTINS

Comumente associada imagem de viajantes mochileiros, a tradicional carona vem ganhando contornos modernos frente s dificuldades de deslocamento nas grandes cidades. Na ltima segunda-feira, por exemplo, em meio ao caos no trnsito do Rio provocado pelo fechamento definitivo da Perimetral, o prefeito Eduardo Paes recomendou aos cariocas justamente a carona

solidria o compartilhamento de carros por duas ou mais pessoas na hora do rush para minimizar os engarrafamentos. Auxiliada por novas tecnologias, e incentivada pelo surgimento de servios e campanhas, a prtica vem se tornando recurso comum entre universitrios e profissionais para contornar suas agruras no trnsito da cidade. Se popularizadas, garantem especialistas, as novas formas de carona podem render melhorias no fluxo de veculos do Rio.

Morador do bairro de Santa Rosa, em Niteri, o universitrio Jos Guilherme Tavares, de 20 anos, conhece bem os percalos de quem precisa atravessar o trnsito do Rio. Estudante de Engenharia da UFRJ, no campus da Ilha do Fundo, ele afirma que sua qualidade de vida mudou aps entrar para um grupo de carona solidria organizado no Facebook por alunos da universidade que moram em Niteri.

Costumava ir de nibus para a faculdade. Pegava duas condues e perdia cerca de uma hora e meia na ida, e o mesmo na volta. Era muito desgastante. A, h cerca de um ano, tirei a carteira e passei a querer ir de carro para o Fundo, s que esbarrava no custo da gasolina. Quando fiquei sabendo do grupo de caronas, vi que seria a soluo perfeita: poderia ir estudar de carro, ganhando tempo no trnsito e rateando o custo com outras pessoas conta ele, que hoje organiza sua escala de caronas em uma planilha, todo incio de perodo.

Com mais de 850 membros, e visvel apenas para usurios convidados, o grupo do Facebook Niteri UFRJ (Fundo) funciona como uma espcie de mural para otimizar a prtica da carona solidria entre os universitrios. Nele, quem tiver espao no carro anuncia o dia e o horrio em que vai para o Fundo (ou retorna de l) e deixa seu nmero de telefone e do WhatsApp o popular aplicativo de bate-papo para smart-phones para contato. Os interessados respondem no prprio grupo ou combinam a carona diretamente com a pessoa, fora da rede social.

Duas regras garantem o bom funcionamento do grupo e evitam desen-tendimentos entre os jovens: somente podem ser publicadas ofertas de caronas, nunca pedidos; e o valor de contribuio para o rateio do custo do transporte fixado em R$ 5 por pessoa, a cada viagem.

Acostumada a pegar caronas pelo grupo desde seu primeiro perodo na universidade, a estudante de engenharia Raissa Rocha, de 18 anos, afirma que a prtica benfica tanto para motoristas, que economizam nos custos com gasolina, como para os caroneiros, que ganham conforto e tempo no trajeto.

Normalmente pego carona com que estiver oferecendo no grupo, s vezes pouco antes de ir embora. Acho que j devo ter ido em mais de dez carros diferentes. O interessante que d pra conhecer muita gente nova, que normalmente voc no conheceria por ser de outros cursos ou perodos. J fiz algumas amizades assim afirma ela.

Sobre a possibilidade de insegurana ou desconforto ao andar de carona com desconhecidos, Raissa afirma que at isso atenuado pelo uso das redes sociais:

D sempre para consultar outros estudantes que j pegaram carona com a pessoa que est oferecendo. E como o contato feito pelo Facebook, sempre possvel ver se a pessoa tem algum amigo em comum com voc, o que facilita a confiana.

Adepta do grupo desde que entrou na UFRJ, em 2010, Hayla Miceli, de 22 anos, conta que nunca teve problemas com o sistema, exceto por uma situao curiosa:

Uma vez, a namorada de um menino que costumava dar carona pelo grupo o proibiu de levar meninas porque tinha cimes. Como s vezes eu ia com ele para a faculdade com outras pessoas, ele veio todo sem graa contar para ns. No teve jeito, tive que arranjar outra carona.

Essa prtica da carona no popular somente entre universitrios. Analista de sistemas do BNDES, no Centro do Rio, Iury Nellessen Lazoski reparou certo dia na quantidade de carros com apenas o motorista que o cercavam no trnsito. Do estalo da constatao, ele teve a ideia de enviar seu itinerrio para uma lista eletrnica interna do banco com o objetivo de preencher os bancos do seu automvel. Com o tempo, a iniciativa cresceu, e hoje j h um grupo fixo de pessoas que costuma se revezar ao volante semanalmente, levando outros funcionrios, gratuitamente.

Agora, s vou para o trabalho com o meu carro umas duas vezes por semana. No restante, vou e volto de carona. Comecei pensando no bvio: menos carros na rua, menos trnsito, menos poluio, menos gastos. Mas a coisa da socializao tambm bacana. Dessas caronas j saram parcerias para outras atividades, como vlei e escalada conta ele.

A uso cada vez mais comum da carona pode ser notado tambm pela quantidade de servios digitais que vm surgindo nos ltimos tempos e que buscam facilitar a prtica. Cocriador de um projeto de caronas entre os estudantes da PUC-Rio, lanado com sucesso no incio de 2013, Guilherme Porto notou o potencial da iniciativa e recentemente expandiu a ideia no portal Caronacomvc.com. Nele, funcionrios de uma mesma empresa podem cadastrar seus dados e itinerrios e receber gratuitamente sugestes de pessoas com quem podem compartilhar seus trajetos tudo calculado pelos algoritmos da plataforma.

De olho nos efeitos positivos que a prtica pode ter para a cidade, o movimento Rio Eu Amo Eu Cuido resolveu apoiar o servio e, em dezembro passado, lanou a campanha Pelo menos duas, junto com a agncia DM9Rio, com o objetivo de elevar para dois o nmero mdio de pessoas transportadas em cada carro no trnsito carioca de acordo com um levantamento da CET-Rio, atualmente esse nmero de 1,4, nos horrios de rush.

A CARONA E A LEGISLAOO advogado especializado em Direito e Legislao de Trnsito Rosan Coimbra diz que no h qualquer previso sobre a prtica das caronas no Cdigo de Trnsito Brasileiro. O que pode haver, ele afirma, algum tipo de fiscalizao pelas secretarias de Transporte locais, responsveis por regulamentar o transporte de passageiros, como servios de txi e lotao. No entanto, no caso das caronas remuneradas visando ao rateio de custos, Coimbra acha pouco provvel a ocorrncia de problemas com as autoridades:

Se a prefeitura encontra pessoas que fazem transporte coletivo fraudando as regulamentaes, essas pessoas podem ser autuadas, porque esto margem da lei. Agora, quando existem pessoas que combinam trajeto, fazem rodzio de veculos no transporte e rateiam as despesas, no acredito na interferncia do poder pblico.

J o Cdigo Civil, que disciplina o contrato de transportes de forma complementar ao Cdigo Brasileiro de Trnsito, estabelece em seu artigo 736 que no se subordina s normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.

Formado em Direito, Yonathan Yuri Faber, cocriador do aplicativo de caronas remuneradas Zaznu, afirma que seu servio se vale justamente dessa brecha do Cdigo Civil, em complemento ao artigo 538, que estabelece que considera-se doao o contrato em que uma pessoa, por liberdade, transfere do seu patrimnio, bens ou vantagens para o de outra, para atuar dentro da legalidade.

Como nosso sevio no cobrado, mas pago por meio de uma doao no obrigatria, no h problema. At o momento, no existe legislao que nos proba de exercer tal servio.

NA CALIFRNIA: FAIXAS EXCLUSIVAS E APPSO estado americano da Califrnia representa um grande exemplo de como a carona (car-pooling) pode ser implementada e naturalizada pela populao como opo contra con-gestionamentos. Por l, a prtica favorecida pela presena das chamadas faixas HOV (sigla em ingls para high-occupancy vehicle) nas rodovias, exclusivas para veculos de passeio com o mnimo de dois ou trs passageiros. O estado, inclusive, o que mais tem faixas HOV nos EUA: 88, de acordo com o ltimo levantamento do Departamento de Transporte americano, de dezembro de 2008.

Alm disso, a regio do Vale do Silcio a grande expoente dos aplicativos e servios de carona remunerada, em que um usurio solicita uma carona por seu smartphone e atendido por outro usurio que esteja mais prximo a viagem pode ou no ser cobrada, dependendo do servio escolhido. Expoentes desse modelo de negcios, os apps Sidecar e Uber surgiram e comearam a funcionar na regio de So Francisco, por exemplo.

De acordo com o engenheiro de Transporte Fernando Mac Dowell, h espao no Brasil para iniciativas como as faixas HOV, o que poderia no s favorecer o aumento do nmero de passageiros por carro mas tambm, como consequncia, agilizar o trnsito.

TOQUE PARA VER O VDEO DA CAMPANHA01:17MIN

A ideia fazer com que o carioca olhe para o lado e perceba que pode haver outras pessoas que fazem o mesmo trajeto que ele todos os dias e que poderiam estar compartilhando o automvel. Com isso reduz--se o nmero de veculos nas ruas e aumenta-se a qualidade de vida na cidade explica Ana Lycia, coordenadora do Rio Eu Amo Eu Cuido.

Divulgada em um site prprio, em cartazes e com aes nas redes sociais, a campanha conta tambm com o apoio da Prefeitura do Rio: mensagens estimulando a carona solidria j esto sendo exibidas em canais oficiais, como o perfil do Centro de Operaes no Twitter e painis da CET-Rio em ruas da cidade. Para o secretrio municipal de Transporte, Carlos Roberto Osrio, a expectativa que a campanha se reflita em resultados nas ruas do Rio.

Se cada carro no Rio levasse ao menos duas pessoas, isso j teria um impacto positivo no trnsito da cidade, alm de representar reduo de 25% na emisso de poluentes afirma o secretrio. A carona solidria, que j uma prtica regular nas grandes capitais do mundo, sem dvida vista com bons olhos pela Prefeitura do Rio.

Com promessa de lanamento a tempo do prximo carnaval carioca, o aplicativo Zaznu (inicialmente disponvel apenas para aparelhos iOS) outro servio que pretende aumentar o nmero de passageiros por carro nas ruas da cidade. Com um modelo de negcios baseado na carona remunerada, implementada nos EUA por apps como o Sidecar, o Zaznu conecta usurios dispostos a compartilhar seu carro e seu tempo para o transporte de outras pessoas mediante uma doao no compulsria, feita pelo app, e a partir de um sistema de avaliao entre os usurios.

Aqueles que desejam atuar como motoristas pelo Zaznu so selecionados pela equipe do app e devem cumprir determinados requisitos estabelecidos pela plataforma como ter a documentao de motorista e do carro em dia. Atualmente, o servio j funciona de forma experimental na cidade, com 20 motoristas cadastrados e 50 usurios. De acordo com o cofundador da plataforma Yonathan Yuri Faber, o objetivo expandir o servio futuramente para outras capitais que sero sedes dos jogos da Copa do Mundo.

O engenheiro de Transporte Fernando Mac Dowell atesta que, se popula-rizada, a prtica da carona solidria realmente pode ter um impacto positivo no trnsito da cidade ele estima que se o nmero de carros nas ruas for reduzido em 10%, o tempo mdio gasto no trnsito do Rio pode cair em um tero. Suas nicas ressalvas so: a prtica deve partir da prpria populao, e no como uma imposio das autoridades; e deve ser feita de forma segura, com a combinao prvia, de preferncia entre pessoas que j se conhecem.

algo que precisa, sim, ser estimulado, mas que tem que partir das prprias pessoas, num movimento natural. E, claro, deve-se tomar cuidado e evitar o transporte de completos desconhecidos. Acho difcil acabar com o hbito de as pessoas terem seus automveis, porque ainda so o melhor meio de transporte do ponto de vista do conforto para quem est dirigindo, mas possvel incentivar um uso mais consciente deles. A carona solidria uma dessas formas de uso afirma Mac Dowell. thiago.jansen@oglobo.com.br

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