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Igualdade eLiberdade

Norberto Bobbio

ìr r{ Tradução

\\. u$Sc"rlos Nelson Coutinhouw'

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Sumário

Prefacio 7

IGUALDADE

1. Igualdade e liberdade /l2.Igualdade e justiça 14

3. As situaçöes de justiça L6

4. Os critérios de justiça .18

5. A regra de justiça 20

6. A igualdade de todos 23

7. A igualdade diante dalei 25

8. A igualdade jurídica 29

9. A igualdade das oportunidades 30

10. A igualdade de fat'o 32

11. O igualitarismo 35

12. O igualitarismo e seu fundamento 38

13. Igualitarismo e liberalismo 40

14. O ideal da igualdade 43

Bibliografiø 46

LIBERDADE

1. Liberdade negativa 49

2. Liberdade positiva 5l3. Liberdade de agir e liberdade de querer 52

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4. Determinismo e indeterminismo 545. Liberdade do indivíduo e liberdade

da coletividade 576. Liberda.de em faæ d,e e liberd,ad.e de (ou pøra)7. Liberdade dos antþs e liberdade

dos modernos 62

8. Liberalismo e democracia 659. Qual é auerd,ødeirø liberdade? 6Z

10. Dois ideais de sociedade hwe Z0

11. A história como história da liberdade ZZ

12. A história da liberdade 75

13. Linhas de tendência dessa história ZB

14.Da liberdade em face do Estado à liberdadena sociedade 8l

15. Totalitarismo e tecnocracia 8316. As formas atuais da não-liberdade 8817. Os problemas atuais da liberdade 9218. Considera@o fînal g5

Bibliogrøfiø 95

Prefácio

Os dois valores da liberdade e da igualdade reme-

tem um ao outro no pensamento político e na história.Ambos se enraízam na consideraçäo do homem como

pessoa,. Ambos pertencem à determinaçáo do conceito

de pessoa humana, como ser que se distingue oü pr€:

tende se distinguir de todos os outros seres vivos. -Li-

berdød,e indica um estado; iguøIdod'e, uma relaçáo. Ohomem como.p.ZssãlìI ou para ser coñËiîlãîäõFffiof,éssoä-deve ser, enquanto indivíduo em s9,a.sir-r-ggþ

ridgdç,liy.rç;enqualitosersociat,dere-9ç!,,9¡""ç9^ç*-ç-{9";mais indivíduos numa Jgfagág {e igualda-d.-e"'---îî6ert¿ et ega[íté."A Frøternité pertence a uma ou-

tra linguagem, mais religiosa que política . I Suø!!fl3"f1- -"

freqüente_{rg¡tu-S-,¡.þttit"ídu prfq"i s-binômioínúfñî Liberdnde. Mas, nesse binômio, Justiçø pre-

cede Liberdade. Somente porque soa melhor? A prece-

dência de uma ou de outra palawa depende também do

contexto histórico. As vítimas de um poder opressivo

pedem, antes de mais nada, liberdade. Diante de umpoder arbitrário, pedem justiça. Diante de um poder

despótico, que seja ao mesmo tempo opressivo e arbi'trário, a exigência de liberdade náo pode se separar da

exigência de justiça.

Afirmar a liberdade e a igualdade como valores sig;

nificaque elas sáo, respectivamente, um estado do indi-

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vÍduo e uma relação entre indivíduos desejáveis demodo geral. Os homens preferem ser liwes a ser escra-vos. Preferem ser tratados de modojusto e náo injusto. .,Tanto mais que, nas sociedades que existiram histori-camente, nunca todos os indivíduos foram liwes ouiguais entre si. A qqqiede4e dgliylgç tp_tgtr+1._és,n_gÞta-

*_dqhiælátis9,jp-g_+-*l_ill9_+lede.Imaginadocomosesi-tuando ora no início, ora no fim da história, conformese tenha do curso histórico da humanidade uma visáoregressiva ou progressiva. Trata-se de uma sociedadena qual todo homem é liwe na medida em que obedeceapenas a si mesmo e, pelo fato de que essa liberdade édesfrutada por todos, todos sáo iguais pelo menos en-quanto sáo liwes. Ao contrario, uma sociedade históri-ca pode ser constituída de homens liwes mas não iguaisnas respectivas esferas de liberdade. assim como deiguais enquanto náo sáo liwes, ou, mais sucintamente,pode ser constituída de desiguais na liberdade e deiguais na escravidáo.

Liberdade e igualdade sáo os valores que servem defundamento à democracia. Entre as muitas definiçõespossíveis de democracia, uma delas - a que leva emconta náo só as regras do jogo, mas também os princÍpi-os inspiradores - é a definiçáo segundo a qual a demo-cracia é náo tanto uma sociedade de liwes e iguais (por-que, como disse, tal sociedade é apenas um ideallimi-te), mas uma sociedade regulada de tal modo que osindivíduos que a compõem sáo mais liwes e iguais doque em qualquer outra forma de convivência. A maiorou menor democraticidade de um regime se mede pre-cisamente pela maior ou menor liberdade de que des.frutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdadeque existe entre eles. Característica da forma democrá-tica de governo é o sufrágio universal, ou seja, a exten-sáo a todos os cidadáos, ou, pelo menos, à esmagadoramaioria (o universo jurídico é o universo do quase otdo nø maioriø das uezes), do direito de voto. O sufrágio

NORBERTOBOBBIO 9

universal é uma aplicaçáo do princípio da igualdade, namedida em que torna iguais com relaSo aos direitospolíticos - que sáo os direitos eminentes num Estadodemocrático - os homens e as mulheres' os ricos e os

pobres, os cultos e os incultos. Ao mesmo tempo, é tam'bém uma aplica@o do princípio de liberdade, entendi'da a liberdade, em sentido forte, como o direito de par'ticipar no poder político, ou seja, como autonomia. Os

cidadáos de um Estado democrático se tornam, através

do sufrágio universal, mais liwes e mais iguais. Onde o

direito de voto é restrito, os excluídos sáo ao mesmotempo menos iguais e menos liwes.

O fato de que liberdade e igualdade sejam metas

desejáveis em geral e simultaneamente náo significaque os indivíduos náo desejem também metas diame-

tralmente opostas. Os homens desejam mais ser liwesdo que escravos, mas também preferem mandar a obe-

decer. O homem ama a igualdade, mas ama também a

hierarquia quando está situado em seus graus mais ele-

vados. Contudo, existe uma diferença entre os valoresda liberdade e da igualdade e aqueles do poder e da hie-rarquia.

Os primeiros, embora sejam mais irrealistas do que

os segundos, náo sáo contraditórios. Náo é contraditó-rio imaginar uma sociedade de liwes e iguais, ainda que

de fato - ou seja, narcalizaçáo prática- jamais possa

ocorrer que todos sejam igualmente liwes e liwementeiguais. Ao contrário, é contraditório imaginar uma soci-

edade na qual todos sejam poderosos ou hierarquica-mente superiores. Uma sociedade que se inspira no ide-

al da autoridade é necessariamente dividida em pode-

rosos e náo-poderosos. LIma sociedade inspirada noprincípio da hierarquia é necessariamente dividida em

superiores e inferiores. Numa situaçáo originária emque todos ignorem qual será sua posiçáo na sociedade

futura - e, portanto, náo saibam se estaråo entre os

que mandam ou entre os que sáo obrigados a obedecer,

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e se estaráo no topo ou na base da escala social -, oúnico ideal que lhes pode atrair é o de desfrutarem damaior liberdade possÍvel diante de quem exerce o podere de terem a maior igualdade possível entre si. Podemdesejar uma sociedade fundada na autoridade e na hie-rarquia somente na condiçáo näo previsível de que es-tejam entre os poderosos e náo entre os impotentes,entre os superiores e náo entre os inferiores.

Apesar de sua desejabilidade geral, liberdade eigualdade náo sáo valores absolutos. Não há princípioabstrato que não admita exceções em sua aplicaçáo. Adiferença entre regra e exceçáo está no fato de que aexce@o deve serjustificada. Onde a liberdade é, aregra,sua limitaçáo deve ser justificada. Onde a regra é aigualdade, deve ser justificado o tratamento desigual.Mas o ponto de partida pode também ser oposto, comona escola ou num quartel, onde a regra é a discþlina e aliberdade é exce@o. Decidir o que é rrais 1e1.¡¡¿1, r" uliberdade ou a disciplina, a igualdade ou a hierarquia,náo é algo que se possa fazer de uma vez por todas. Li-berdade e igualdade sáo mais normais do que disciplinae hierarquia somente em sentido normativo, no univer-so do dever ser. Náo me resulta que, entre as váriaselucubrações sobre sociedades ideais, exista uma só naqual os cidadáos.náo sejam nem liwes nem iguais, em-bora uma sociedade de liwes e iguais náo conheça nemtempo nem lugar.

NORBERTO BOBBIO

Agosto de 1995

Igualdade

1. Igualdade e liberdade

A igualdade, como valor supremo de uma convivên-cia ordenada, felíz e civilizada - e, portanto, por umlado, como aspiraçáo perene dos homens vivendo emsociedade, e, por outro, como tema constante das ideo-

logias e das teorias políticas -, é freqüentemente aco-

plada com a liberdade. Assim comoliberdade,iguøIdø'de tem na linguagem política um significado emotivopredominantemente positivo, ou seja, designa algo que

se deseja, embora não faltem ideologias e doutrinas au-toritárias que valorizam mais a autoridade do que a li-berdade, assim como ideologras e doutrinas náo iguali-tárias que valorizam mais a desigualdade do que aigualdade. No que se refere ao significado descritivo do

termo liberdøde, a dificuldade de estabelecê-lo residesobretudo em sua ambigüidade, já que esse termo tem,na linguagem política, pelo menos dois signifrcados di-versos. Já no caso d e iguøIdnde; a difïctililade de esta. .

belecer esse significado descritivo reside sobretudo elnsua indeternrillaçáo; pelo'que dizer.que dois entes'sáorguais sem nenhuma outra determinaçáo nada signifi.ca na, linguagern política; é 'preeiso.que,,se espeeifique'com- que entes estamos tratando e'com relaçáo a' que

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T2 IGUAIDADEELIBERDADE

sáo iguais, ou seja; é preciso responder a duas pergun-tas: a) iguøId,ød,e entre quem?; eb) iguald,ade em quê? /

Mais precisamente: enquanto a liberdade é umaqualidade ou propriedade da pessoa (não importa se ft-sica ou moral) e, portanto, seus diversos signifieadosdependem do fato de que esta qualidade ou propriedadepode ser referida a diversos aspectos dapessoa, sobre-tudo à vontade ou sobretudo à açáo, a igualdade é purae simplesmente um tipo de relação formal, que pode serpreenchida pelos mais diversos conteúdos. Tanto isso éverdade que, enquanto X é liure é uma proposiçáo dota,da de sentido, X é igual ê uma proposição sem sentido,que, aliás, para adquirir sentido, remete à resposta àseguinte questão: igual a quem? Disso decorre o efeitoirresistivelmente cômico (e, na intençáo do autor, satí-rico) da célebre frase de Orwell: tod,os sõ,o iguais, porémølguns sã,o mais iguais do que outros.Ao contrário, se-ria perfeitamente legítimo dizer que, em determinadasociedade, todos sáo liwes, mas alguns sáo mais livres,já que isso simplesmente significaria que todos gozatrtde certas liberdades, enquanto um grupo mais restritode privilegiados goza, além disso, de algumas liberda-des particulares. Por outro lado, enquanto é sem senti-do a proposiçao X é,.igual, é sensata - e, aliás, muitousada, embora extremamente genérica - a proposiçáotodos os.homens.sã,o iguøis, precisamente porque, nes-se contexto, o atributo daigualdade se refere náo aumaqualidade do homem enquanto tal, como é ou pode sera liberdade em certos contextos, mas a um determina-do tipo de relaçáo entre os entes que fazem parte dacategoria abstrata humanidnde. O que pode tambémex¡plicar por que a liberdade enquanto valor, ou seja,enquanto bem ou fim a perseguir, é habitualmente con-siderada como um bem"ou um fîm para um indivíduoou para um ente coletivg (grupo, classe, nação, Estado)concebido como um superindivíduo, ao passo que a

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igualdade é considerada como um bem ou um fim paraos componentes singulares de uma totalidade na medi-da em que esses entes se encontrem num determinadotipo de rela@o entre si. Prova disso é que, enquanto aliberdade é em geral um valor para o homem como indi-víduo (razâopelaqual as teorias políticas defensoras daliberdade, ou seja, liberais ou libertárias, sáo doutrinasindividualistas, tendentes a ver na sociedade mais umagregado de indivíduos do que uma totalidade),'a igual,;dade é um valor para o homem como ser genérico, ouseja, como um ente pertencente a uma determinadaclasse, que é precisamente a humanidade (razão pelaqual as teorias políticas que propugnam a igualdade, ouigualitárias, tendem aver na sociedade umatotalidade,sendo necessário considerar o tipo de relaçöes que exis-te ou deve ser instituído entre as diversas partes do

todo). Diferentemente do conceito e do valor da liberda-de, o conceito e o valor da igualdade pressupõem, parasua aplicaçáo, a presença de uma pluralidade de entes,cabendo estabelecer que tipo de relaçáo existe entreeles: enquanto se pode dizer, no Iimite, que é possível

existir uma sociedade na qual só um é liwe (o déspota),

náo teria sentido afirmar que existe uma sociedade naqual só um é igual. O único nexo social e politicamenterelevante entre liberdade e igualdade se dá nos casos

em que a liberdade é considerada como aquilo em que

os homens - ou melhor, os membros de um determi-nado grupo social - sáo ou devem ser iguais, do que

resulta a catacteristica dos membros desse grupo de

serem iguøImente liures ou iguais nø liberdq.de: essa é

melhor prova de que a liberdade é a qualidade de umente, enquanto a igualdade é um modo de estabelecerum determinado tipo de rela@o entre os entes de umatotalidade, mesmo quando a única caract-erística co-

mum desses entes seja o fato de serem liwes.

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IGUAIDADE E LIBERDADE

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Enquanto liberdade e igualda.de sáo termos muitodiferentes tanto conceitual como axiologicamente, em-bora apareçam com freqüência ideologicanente articu-lados, o conceito e também o valor da igualdade mal se

distinguem do conceito e do valor da justiça na maioriade suas acepçöes, tanto que a expressáo liberda.de ejus-tiçø ê freqüentemente utilizada como equivalente daexpressáo liberdade e igualdade.

Dos dois significados clássicos de justiçaque remon-tam a Aristóteles, um é o que identifrcajustiçø comle-gali:d,ad,e, pelo que se diz justa a açþo realizada em con-formidade com a lei (náo importa se leis positivas ounaturais), justo o homem que observa habitualmenteas leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis hu-manas) na medida em que correspondem a leis superi-ores, como as leis naturais ou divinas; o outro signifrca-do é, precisamente, o que identiftcajustiça comigual-dad,e, pelo que se diz justa uma a@o, justo um homem,justa uma lei que institui ou respeita, uma vez institu-ída, uma relaSo de igualdade. Näo ê exata a opiniáocomum segundo a qual é possível distinguir os dois sig-nificados de justiça referindo o primeiro sobretudo àaçáo e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação se-

ria justa quando conforme a uma lei e uma lei seria jus:taquando conforme aoprincípio de igualdade: tanto nalinguagem comum como na técnica, costuma-se dizer

- sem que isto provoque a menor confusáo - que umhomem é justo não só porque observa a lei, mas tam-bém porque é equânime, assim como, por outro lado,que uma lei é justa náo só porque é igualitaria, mastambém porque ró conforme a uma lei superior. Náo édifTcil, de resto, remeter um dos dois significados aooutro: o ponto de referência comum a ambos é o de or-dem, ou equilíbrio, ou harmonia, ou concórdia das par-tes de um todo. Desde as mais antigas representaçóes

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da justiça, essa última foi sempre figurada como avir-tude ou o princípio que preside o oldenar-nento em umtodo harmônico.ou equilibrado tanto da sociedade hu:'maRa como do,cosmo (de resto, a ordem do cosmo é con-cebida, na visáo sociomórfïca do universo, como umaprojeçáo da ordem social). Qr3, qar4 q-_r191q¡4e a harm,g-nia no universo ou na ciuitas, é necessário: ø) que cad'd

.umâ das partes trinha seu lugar atribuído.segup-dorpque lhe cabe, o que é a,ap_lig4ç-4q.-d-o-p_rlUgÍp_ip _Ç!/-Ufrt çai-úe îùbnøe;-m-ráünïa expresság da juqtigg cqrno- igual',dadeú) que, uma vez que a cada parte foi.atribuído qgu

lugar próprio, o equ_ilíbrio alcançado p,9-ja mantido po1normas unive-rsalñìônte respeitadas.'Assim, ã instãu-raçäo dêïñu"irtuigualdadã entre as partes e o respei.to à legalidade sáo as duas condições para a instituiçáoe conservaçáo da ordem ou da harmonia do todo, que é

- para quem se coloca do ponto de vista da totalidade enáo das partes - o sumo bem. Essas duas condiçóessáo ambas necessárias para realizar a justiça, mas so-

mente em conjunto é que sáo também suficientes. Em,uma totalidade ordenada, a injustiça pode ser intro--duzida tanto pela alteração das relações de igualdadequanto pela nåo-observância das leis:, a alte¡açáo daigualdade é um desafio à lggalidadg.son-slituída,..assi:ncg_mo.a_ náo-observância das leis estabelecidas é umar"pi"¡" do princÍpio de ieualdádè no--qUde]Þi¡" iltËpi.ra. De todo mòdò, a igualdade consiste apenas numaiëIaçáo: o que dá a essa relaçáo um valor, o que faz delauma meta humanamente desejável, é o fato de ser jus-ta. Em outras palawas, uma relaçáo de igualdade é

uma meta desejável na medida em que é consideradajusta, onde porjøsúø se entende que tal relaçáo tem aver, de algum modo, com uma ordem a instituir ou arestituir (uma vez abalada), isto é, com um ideal de har:monia das partes de um todo, entre outras coisas por-que se considera que somente um todo ordenado tem apossibilidade de durar.

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16 IGUALDADEELIBERDADE

Pode-se repetir, como conclusáo, que a liberdade é ovalor supremo do indivíduo em face do todo, enquantoa justiça é o bem supremo do todo enquanto compostode partes. E¡n outras-palawas, a l'bgrdade é o bem indi-vidual por excelência, ao p¿¡sso que á jùiliça è--õiemsociàl þor eicelência (e, nesse sentido, virtude-È-oðfa"l,

\ como dizia Aristóteles). Se se quer conjugar os dois va-lores supremos davida civil, a ex¡rressáo mais correta éliberda.de e justiça e nãß liberdad,e e iguald,ade, já que aigualdade näo é por si mesma um valor, mas o é somen-te na medida em que seja uma condi@o necessária, ain-da que náo suficiente, daquela harmonia do todo, da-quele ordenamento das partes, daquele equilíbrio inter-no de um sistema que mereça o nome de justo.

3. As situações de justiça

Que duas coisas sejam iguais entre si náo é nemjus-to nem injusto, ou seja, náo tem nenhum valor em simesmo, nem social nem politicamente. Enquanto ajus-tiça é um ideal, a igualdade é um fato. Náo é em si mes.mo nem justo nem injusto que duas bolas de bilhar se-jam perfeitamente iguais entre si. A esfera de

-ôâ), ieguñdo a diÈtiäçádtr'aäiôiohal, que remonta-a-Aristótelès, entie justiça comutativa (que tem lugar narelaçáo entre as partes) e justiça distributiva (que temlugar nas relaçóes entre o todo e as partes, ou.vice-v.er-sa). Mais especificamente, as situações nas quais é rele-vanté'(ùè ijiistâ óù fáô igualdàdé sao sobròtudó duas:ø) âqrlela na qual estamos diante de uma açáo de dar(oiì fazei), dà quâl se deva estabòl"""t a correspon-dência anteiìù'éom um ter ou posterior com um re-ceber, de onde resulta a seqi.iência ter-dar-receber-ter;

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å) aquela na qual ngç. gggqntmmosdiantadoprohlema

{el{]b-u[.varÍjeç¡qÞ"-qu-desvantagenç,.be-nefi ciosour-l:ônus, direitos ou deveres (em termos jurídicos), a uma Iþtüralidáde dè indivÍduoå pertencentes a uma de,t-e¡lpi-

nàdà categoria. No primeiro caso, a situaçáo se caracte-riza þor uma relaçáo bilateral e recíproca; no segundo,por uma rela@o multilateral e unidireciord.Jlg*pffu*meiro caso, o problema da igualdade se apresenta cofnoproblilma de..equiuølênciø, de.,coisas (o que se dá deve

-Ëêr tliluivalente ao que se f,em, o que se recebe ao que se

tem); no segundo, como problema d9..9quiparaçã,o depessoas'(tiatâ-se, poi èiempio, de equipa"a", nã i¿Hj

"çáo entre cônjuges, a mulher ao marido, ou, na relaçáode trabalho, os operários aos empregados). Todosvêema diferença entre a igualdade que é in¡¡ocada.quando,Êepede que haja correspondência entrg q q¡g¡gedqriaæ"o*"piQoë aqlielaquè é ufvöCadá quando se pede que oF

direitos (e óÈ deveres) da mulher cgrrespondam.aos, do . "

mar!ìlo, ou que o e,st-ado jurídico dos operariop^p,.9jaequi.pq-f"adg.ag---dos empregados. De resto, as duas situaçõescorrespondem aos dois tipos fundamentais de relaçõesque podem ser encontrados em todo sistema social, as

relaçóes de troca e as relaçóes de convivência. Queren-do dar um nome às duas situaçóes de justiça, pode-se

falar, no primeiro caso, de justiça retributiva, e, no se-gundo, de justiça atributiva.

Náo é possível especificar ulteriormente os casos tí-picos de justiça atributiva, tantas e táo imprevisíveissáo as situações nas quais se exige uma equalizaçâonasrelaçóes entre os indivíduos. Os casos mais típicos dejustiça retributiva, isto é, de igualdade entre o que se

dá (ou se faz) e o que se recebe, sáo os quatro seguintes:rela@o entre mercadorias e preço, relaçáo entre paga-

mento e trabalho, relaçáo entre dano e indenizaçáo, re-laçáo entre crime e castigo. Desses quatro casos, os doisprimeiros sáo de retribuiçáo de um bem com um bem;os outros dois, de um mal com um mal. Também nesses

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du_j_g.fltlgl.,ou da igualdade social e pôlitiòamente rele-'vânte,

f a dqs relaçöessoçigis, ou dos indivíduos ou gru-pos entre si, ou dos indivíduos òom o grupo (e vièdver-

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18 IGUALDADEELIBERDADE

casos, a linguagem comum reconhece o nexo entre os

dois conceitos dejustþ e de igualdade, falando respec-tivamente de preço justo, de sa.ld.rio justo, de indeniza-

çõ,o justa e de penø justø.

4. Os critérios de justiça

IJma vez delimitada a esfera de aplieaçåo da justi-

ça como igualdade, ainda náo se disse nada sobre o quedistingue uma igualdade justa de uma injusta, que, de

resto, num discurso político, é a diferença essencial en-tre a igualdade desejável e a indesejável. Ainda náo dis-semos nada sobre o que torna desejável que duas coi-sas ou duas pessoas sejam iguais. Nesse ponto, o pro-blema da igualdade remete ao problema dos chamados

zadas sob muitos aspectos: a igualdade entre elas, ousua equalizaçáo, só tem a ver com a justiça quando cor-responde a um determinado critério (que é chamadode ðùiié¡io.:de ¡'ust!¡a), com base no qual se estabelecequal dos aspectos deva ser considerado relevante parao fim de distinguir entre uma igualdade desejável e

uma igualdade indesejável. O fato de que o malumpassionis seja igual ao malum a,ctionis náo é, em simesmo, nem justo nem injusto: torna-se justo se se es-

cqlhe como critério de justiça penal o critério do sofri-mento igual, ou seja, se se aceita o princípio de que cri-me e castigo devam ser iguais no sofrimento (causado

ou padecido, respectivamente). Se se adotar um outrocritério - por exemplo, o que inspira a lei de talião,segundo a qual o castigo deve se igualar ao crime náono sofrimento, porém, de modo mais grosseiro e mate.

NORBERTOBOBBIO 19

rial, no tipo de mutilação -, a equalizaçâo do crime ao

castigo ocorre de outra maneira. Ainda mais evidenteé o caso da equalizaçáo entre trabalho e pagamento:existem tantos modos de considerar o pagamento cor-respondente ao trabalho (e, portanto, de considerarrespeitada a relaçáo de igualdade entre um e outro)quanto sáo os critérios de retribuiçáo adotados em ca-

da oportunidade. Que o salario deva corresponder ànecessidade de reproduçáo da força de trabalho é umcritério retributivo perfeitamente cumprido quando se

respeita a igualdade entre o montante do que o operá-rio recebe em troca do seu trabalho e o que ele devegastar pâra o seu sustento. Mudando-se o critério, oque era justo conforme o primeiro critério se torna in-justo conforme o segundo.

Náo há teoria da justiça que náo analise e discutaalguns dos mais comuns critérios de justiça, que sáohabitualmente apresentados como especificações damáxima generalíssimaevazia: a cad,ø,um, o seu. Patadar alguns exemplos: ø ca.d,a um segundo o mérito, se-

gundo a capacidø;de, segundo o talento, segund,o o es-

forço, segundo o trøbalho, segundo o resultød,o, segun-_.

do a necessidade, segundo o posto etc. Nenhum desses

critérios tem valor absoluto, nem é perfeitamente obje-tivo, embora haja situaçóes nas quais um é mais aplica-do do que o outro: na sociedade familiar, o critério pre-dominante é o da necessidade (e, curiosamente, tam-'bém na sociedade comunista, segundo Marx); na esco-la, quando houver fïnalidades essencialmente seletivas,o critério é o mérito; numa sociedade anônima, o dascotas de propriedade; na sociedade leonina, é aforça (a

comunidade internacional é, em grande parte, uma so-

ciedade leonina) etc. Embora a escolha desse ou daque-le critério seja em parte determinada pela situaçâo ob-jetiva, depende freqüentemente - e, por vezes, em úl-tima instância, ainda que nem sempre conscientemen-te - das,diversas concepções gerais da ordem social,

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20 IGUALDADEELIBERDADE

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como é plenamente demonstrado por disputas ideológi-cas do seguinte tipo: é mais justa a sociedade onde a

- i . cada um é dado segundo o mérito, où aquela onde a ca-'-"dá up_ é d¿{o -se-gundo a aeçgpqidade? Nas situações' cõncretas, os vários critérios sáo freqüentemente tem-

perados uns com os outros: basta pensar na variedadeI de critérios com que sáo habitualmente selecionados os

candidados a concursos para obter um emprego públi-co, onde se mesclam, se superpóem e se confundem ocritério do mérito com o da necessidade, o critério daantigüidade com o do posto. A máxima "a cada um, oseu" náo enuncia nenhum critério, mas abrange e tole-ra, em cada oportunidade concreta, todos eles.

5. A regra de justiça

Para além das duas formas de justiça retributiva eatributiva, a igualdade tem aver com a justiça tambémem um outro sentido, ou seja, em rela@o à chamadaregrø de justiça. Por regra de justiçø,. entende-se a re.

, gra segundo a qual'se.devem tratai¡ bs iguais de modoigual e os desiguais de mgdo desiguáI. É supèiäuo su-blinhar a importância que essa regra assume em faceda determinaçáo dajustiça, concebida como o valor quepreside a conservaçáo da ordem social. O que convémsublinhar, ao contrário, é que o problema da justiçacomo valor social náo se reduz, como em geral pensâmosjuristas, à regra dejustiça, nem nela se esgota. Comefeito, a regra dejustiça pressupóe quejá tenham sidoresolvidos os problemas que pertencem à esferadajus-tiça retributiva e da justiça atributiva, ou seja, pressu-põe quejá tenham sido escolhidos os critérios para es-tabelecer quando duas coisas devem ser consideradasequivalentes e quando duas pessoas devem ser conside-radas equiparáveis. Somente depois que estes critériosforam escolhidos é que a regra dejustiça intervém para

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NORBERTOBOBBIO 2I

determinar que sejarn tratados do mesmo modo os quese encontram na mesma categoria. Se não tivesse sidopreviamente estabelecido o modo como deva ser trata-da essa ou aquela categoria, náo teria nenhum sentidoafìrmar que os pertencentes à categoria devam ser tra-tados de modo igual. Quem confunde o problema (oumelhor, os vários problemas) da justiçâ õärno igu'aldat4e

com a regra de justiça não parecö þèröèbei-que a pri-mtiiia tarefa de quem pieteädä'fazei obiá aejustîçaconsiste em establecer comoum determinado indivíduoäalvd¡ef tiätãdô-Þä¡a"S¿¡-fiatå¿o d"

"'odq j;lò. So-

mente depois que se estabelèCeu ô tratamento é quesurge a exigência de garantir que o tratamento igualseja reservado aos que se encontram na mesma situa-çáo. Em suma, aregrade justiça refere-se ao modo peloqual o princípio de justiça deve ser aplicado: com efeito,ela foi corretamente chamada de justiça na aplicaçáo.Com isso, quer-se dizer: na aplicaçáo do princþio de jus-tiça acolhido, ou -

já que esse ou aquele princípio dejustiça constituem geralmente o conteúdo das leis - naaplicaçao da lei. Desse ponto de vista, a relaçáo.entrêì'âjustiça retributiva e atributiva, por um lado, e a regradejustiça, por outro, pode ser concretizado do seguintemodo: a primeira é constitutiva ou reconstitutiva daigualdade social; a segunda tende a mantê-la segundoos modos e formas em que foi estabelecida. Dado que aregra de justiça náo diz qual seja o melhor tratamento,mas se limita a exigir a aplicaçáo igual de um determi-nado tratamento, qualquer que seja ele, é chamadatambém de justiça formal, na medida em que prescindecompletamente de qualquer consideraçáo sobre o con:teúdo. Pode ocorrer - e, de fato, é o que sucede fre-qüentemente em todo ordenamento jurídico onde asnorrnas envelhecem e se tornam injustas - que umanorma injusta seja aplicadajustamente; e, com cetteza,nâo é a aplicaçáo injusta que pode remediar isso, massomente, quando muito, a não-aplicaçáo.

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22 IGUAIDADEELIBERDADE

Mesmo tendo um valor subordinado ao valor ins-taurado pela justiça retributiva e atributiva, também ajustiça formal tem por si mesma, ou seja, independen-temente do valor de justiça da norma, e mesmo no casode norma injusta, um valor social, que é o de garantir avelha ordern até que esta seja substituída pela nova.Tem também a funçáo de tornar menos chocante a in-justiça ao partilhá-la entre muitos ("mal comum, con-solo de todos"). Pode-se ainda observar que o instru-mento mais idôneo parafazer com que a regra de justi-ça seja respeitada é a promulgaçáo, por parie de quemdetém o poder legislativo numa determinada socieda-de, de norrnas gerais e abstratas que estabeleçam comodeve ser tratada toda uma categoria de sujeitos. Quan-do existem normas desse tipo (e a maioria das leis for-mais sáo assim), o respeito à regra de justiça, isto é, àjustiça formal, resume-se pura e simplesmente à apli-caçáo escrupulosa e imparcial da lei: com efeito, apli-cando-se escrupolosa e imparcialmente uma lei atodosos sujeitos que fazem parte da categoria regulada pelalei e segundo o tratamento previsto, observa-se tam-bém a regra da justiça que determina que os iguais se-jam tratados de modo igual. Desse ponto de vista, a apli-caçao da regra de justiça coincide com o respeito à lega-lidade, embora não se deva confundir a realiza@o daregra dejustiça através do respeito à legalidade, por umlado, com a justiça como legalidade, à qual nos referi-mos no item 2; e, por outro, com o princípio de legali-dade, que é posto em defesa náo da igualdade, mas dacer:teza do direito. A regra de justiça exþ, para suaaplica@o, a virtude da imparcialidade em face dos des-tinatários da lei, ou seja, exige mais o princípio de lega-lidade do que a lealdade em face do legislador.

NORBERTOBOBBIO 28

6. A igualdade de todos

Ao contrário do que se poderia deduzir do que atéagora foi dito sobre a relaçáo entrejustiça e igualdade

- onde justiça sempre apareceu como um termoaxiologicamente significativo e igualdo'de como um ter-mo axiologicamente neutro, além de descritivamenteindeterminado -, pode-se constatar que, no debatepolítico, a igualdade constitui um valor, até mesmo umdos valores fundamentais em que se inspiraram as filo-sofias e as ideologias políticas de todos os tempos. Masisso resulta do fato de que, em todos os contextos nosquais a igualdade é invocada (e, naturalmente, tambémnaqueles em que é condenada), a igualdade em questáoé sempre uma igualdade determinada ou secundumquid, que recebe seu conteúdo axiológico relevante pre-cisamente daquele quid que lhe especifïca o signifïcado.

Decerto, uma das máximas políticas mais carrega-das de significado emotivo é a que proclama a igualda-de de todos os homens, cuja formulaçáo mais correnteé a seguinte: todos os homens sã'o (ou nascem) iguais.Esta máxima aparece e reaparece no amplo arco de

todo o pensamento político ocidental, dos estóicos ao

cristianismo primitivo, para renascer com novo vigordurante a Reforma, assumir dignidade filosófica emRousseau e nos socialistas utópicos, e ser expressa emforma de regra jurídica propriamente dita nas declara-

çöes de direitos, desde o frm do século XVIII até hoje.Mas, com freqüência, náo se dá atenção ao fato de que

aquilo que atribui uma carga emotiva positiva àenunciaçáo - euê, enquanto proposiçáo descritiva, é

excessivamente genérica ou até mesmo falsa - náo'élaproclamada igualdade, mas a extensáo da igualdade a

;todos. Com efeito, náo pode escapar o signifrcado polê-

mico e revolucionário deste todos, que é contraposto asituações ou ordenamentos nos quais nem todos, oumelhor, só poucos ou pouquíssimos, desfrutam de bens

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24 IGUAIDADEELIBERDADE

e direitos dos quais os demais sáo privados. Em outraspalawas, o valor da máxima náo está no fato de queevoque o fantasma da igualdade, que sempre pertur-bou o sono dos poderosos, mas no fato de que a igualda-de evocada, qualquer que seja sua natureza, devetiavaler para todos (e por "todos" náo está dito que se

deva entender a totalidade dos homens, já que bastaque se entenda a totalidade dos pertencentes a um de-

terminado grupo social no qual, até entáo, o poder per-maneceu nas máos de poucos). Por outro lado, já queuma máxima qualquer de justiça, como dissemos, deve

responder às perguntas sobre a igualdo.de entre quem e

aigua,ldade em quê, deve-se observar que a máxima da

igualdade de todos responderia, quando a interpreta-mos literalmente, apenas à primeira pergunta.

Na realidade, o significado axiológico da máximadepende também da qualidade, ainda que subentendi-da, com rela@o à qual se exige que os homens, todos os

homens, sejam considerados iguais. Em nenhuma dasacepçóes historicamente importantes, a máxima pode

ser interpretada como uma exigência de que todos os

homens sejam iguais em tudo. A idéia que a máximaexpressa é que os homens devem ser consideradosiguais e tratados como iguais com rela@o àquelas qua-

lidades que, segundo as diversas concepções do homeme da sociedade, constituem a essência do homem, ou anatureza humana enquanto distinta da natureza dosoutros seres, tais como o livre uso da tazâo, a capacida-

de ju:'ídica, a capacidade de possuir , a dignidode social(como reza o art. 3e da Constituiçáo italianafiou, maissucintamente, a dignidade (como reza o art. lq da De-claraçáo Universal dos Direitos do Homem) etc. Nestesentido, a máxima náo tem um significado unívoco, mastem tantos significados quantas forem as respostas àseguinte questáo: Todos iguais, sim, mas em quê? Umavez interpretado seu significado específico através daanálise das idéias morais, sociais e políticas da doutrina

NORBERTOBOBBIO 25

que a formulou, seu significado emotivo depende preci-samente do valor que cada doutrina atribui àquela qua-Iidade em relaçáo à qual se exige que os homens sejamtratados de modo igual. Até mesmo o campeáo doigualitarismo, J.J. Rousseau, náo exige que, como con-diçáo para a instauraçáo do reino da igualdade, todos os

homens sejam iguais em tudo: no início do Discursosobre ø origem da desigualdade entre os hnmens, ele fazuma distinçåo entre desigualdades naturais e desigual-dades sociais, ou seja, entre as desigualdades produzi-das pela natureza (e, enquanto tal, benéficas, ou, pelomenos, moralmente indiferentes) e as desigualdadessociais, produzidas por aquela mescla de relações de

domínio econômico, espiritual e político que forma a ci-vilizaçáo humana. O que Rousseau tem como meta é a

eliminaçáo das segundas, näo das primeiras. Numa daspassagens decisivas do Contrøto social, ele escreve: Opøcto fundømental, em lugør de destruir a iguald,ød,enøtural, pelo contró,rio substitui por uma iguøIdødemorøI e legítimø aquilo que ø natureza poderia tra,zerde desiguølda.de físicø entre os homens (I,9).

7. A igualdade diante da lei

Das várias determinações históricas da máxima queproclama a igualdade de todos os homens, a única uni-versalmente acolhida - qualquer que seja o tipo de

Constituiçáo em que esteja inserida e qualquer que sejaa ideologia na qual esteja fundamentada - é a que afir-ma que todos os homens sdo iguais perante a lei, ort,com outra formulaçáo , ø lei é igual para todos. O prin-clpio é antiqüíssimo e náo pode deixar de ser relaciona-do, ainda que esse relacionamento náo seja freqüente,com o conceito clássico de isonorniø, que é conceitofundamental, além de ideal primário, do pensamentopolítico grego, tal como aparece maravilhosamente

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26 IGUAIDADEELIBERDADE

ilustrado nas seguintes palawas de Eurípides: nødø émais funesto parø urna cidad,e d,o que um tira,no. Antesde mais nada, ndo etcistem leis gerais para todos e umsó homent detém o poder, føzendo ele mesmo e para. sirnesï¿o a lei; e nãn hó, de modo ølgurn igualdade. Aocontrório, quøndo existem leis escritas, o pobre e o ricotêm iguais direitos (As suplicantes, 429-34). Moderna-mente, o princípio se encontra enunciado nas Consti-tuiçöes francesas de 1791, 1793 e 1795; mais tarde, noart. 1e da Carta de l-814, no art. 6e da Constituiçáo bel-ga de 1830, no art. 24 do Estatuto albertino [que regeua monarquia italianal. Enquanto a Emenda XIV daConstituiçáo dos Estados Unidos (1868) quer assegu-rar a todo cidadáo a igual proteçã,o das leis, o princípioé retomado e repetido, no primeiro pós-guerra,-,tantopelo art. 109, $ le, da Constituiçáo de Weimar (1919)quanto pelo art. 7s, $ 1e, da Constituiçáo austríaca(1920) e, no segundo pós-guerra, para darmos exemplosde Constituições inspiradas em diferentes ideologias,tanto pelo art.7l da Constituição búlgara(L947) quan-to pelo art. 3q da Constituiçáo italiana (1948).

Apesar de sua universalidade, também esse princí-pio náo é de modo algum claro, tendo dado lugar a div€rsas,interpretações. Prescindo aqui da disputa, queinteressa mais propriamente à teoria jurídica, sobre adestinaçäo do princípio, ou seja, se ele está dirigido aosjtizes ou também ao legislador. No primeiro caso, na-da acrescentaria à regra de justiça que prescreve a im-parcialidade do juízo; no segundo, termina po¡ mudarinteiramente de natureza, jâ que - de prir/óípio queprescreve a igualdade perønte a lei - ele se transfor-maria num princípio inteiramente diverso, e bem maissignificativo, isto é, o que prescreve a igualdade "na"Iei. O princípio tem, antes de mais nada, um significa-do histórico. Mas, para entender este seu significado, épreciso relacioná-lo náo tanto com o que ele afîrma,

NORBERTOBOBBIO 27

mas com o que nega, ou seja, é preciso entender o seuvalor polêmico.

O alvo principal da afirmaçáo de que todos sãoiguais perante alei é o Estado de ordens ou estamentos,aquele Estado no qual os cidadáos sáo divididos em ca-tegorias jurídicas diversas e distintas, dispostas numarígida ordem hierárquica, onde os superiores têm privi-légios que os inferiores não têm, e, ao contrário, estesúltimos têm ônus dos quais aqueles sáo isentos: a pas-sagem do Estado estamental para o Estado liberal bur-guês resulta claro para guem examinar a diferença en-tre o Código prussiano de L794, que contempla trêsestamentos em que se divide a sociedade civil (campo-neses, burgueses e nobreza), e o Código napoleônico de1804, onde só existem cidadáos. No preâmbulo daConstituiçáo francesa de 1791,, pode-se ver que os cons-tituintes pretenderam abolir irceuogauelmente as insti-tuiçoes que feriam a liberdade e a igualdade de direitos;e, entre essas instituiçóes, incluíam-se todas as que ha-viam caracterizado o regime feudal. A frase com que se

encerra o preâmbulo - nd,o møis e*iste, para nenhumapøñe da naçõn ou para nenhum indiuíduo, qualquerpriuilégio ou exceçdo ao direito cornurn de todos os fran-ceses - ilustra ø contrario, melhor do que qualquer co-mentário, o significado do princípio da igualdade peran-te a lei. Nos casos em que, à enunciação do princípio,seguem-se uma ou mais especificações do conteúdo, ovalor polêmico resulta evidente. No art. 24 do Estatutoalberbino, segue-se, à enunciaçáo do princípio, a seguin-te especificaçáo: tod,os gozøm igualmente dos direitosciuis e políticos, e sõ,o ød,missíueis øos cargos ciuis e

militares, sa,Iuo as exceções determinadas pelas leis.Nada mais historicamente condicionado do que aadmissibilidade aos cargos civis e militares (por que náoà instruçáo e aos direitos políticos?): aquilo contra o quereage essa prescriçáo é a discriminaçáo com base no

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28 IGUAIDADEELIBERDADE

nascimento, que é o critério sobre o qual se fundam as

aristocracias. Outras formas de discriminaçáo perrna-necem fora da mencionada prescrição.

Se se prescinde desse significado polêmico ex¡pres-

so ou tácito, que é preciso identificar em cada caso con-creto, o princípio da þaldade perante aIeíé, tambémele, como todas as fórmulas igualitárias, genérico. Comefeito, a communis opinio o interpreta como prescre-vendo a exclusáo de qualquer discriminaçáo arbitrária,seja por parte dojuiz ou do legislador, onde por discri-minação ørbitrdria entende-se aquela introduzida ounáo eliminada sem umajustificaçáo, ou, mais sumaria-mente, umadiscriminaçáo náo justificada (e, neste sen-tido, injustø). Mas será suficiente aduzir razóes paratornar uma discriminaçáo justificada? Qualquer razâoou, ao contrário, determinadas razões mais do que ou-tras? Mas com base em que critérios se distinguem as

razões válidas das inválidas? Existem critérios objetivos, ou seja, critérios que se apóiam na chamadanatu-reza das coisas? A única resposta que se pode dar a taisquestóes é que existem, entre os indivíduos humanos,diferenças relevantes e diferenças irrelevantes com re-laçáo à sua inserçáo nessa ou naquela categoria. Masessa distinçáo náo coincide com a distinçáo entre dife-renças objetivas e náo-objetivas: entre brancos e ne-gros, entre homens e mulheres existem certamentediferenças objetivas, mas nem por isso relevantes. A re-levância ou irrelevância é estabelecida corn base emopções de valor. Enquanto tal, é historicamente condi-cionada. Se recordarmos as justificações adqpadas, emcada oportunidade concreta, para justificar ab sucessi-vas ampliaçöes dos'direitos políticos, compreendere-mos que uma diferença considerada relevante em umdeterminado período histórico (para excluir certas ca-

tegorias de pessoas dos direitos políticos) deixa de serconsiderada relevante num período posterior.

NORBERTOBOBBIO 29

8. A igualdade jurídica

É necessário distinguir de modo mais preciso aigualdade perante a lei da igualdade de direito, da igual-dade nos direitos (ou dos direitos, segundo as diversasformulações) e da igualdade jurídica. A expressáoiguøIda.de de direito é usada em contraposiçáo aiguøI-dade d,e fato, e.orrespondendo quase sempre à contra-posiçáo entre igualdade formal e igualdade substancialou material, sobre a qual voltaremos a seguir (cf., adi-ante, o item 10). A igualdade nos direitos (ou dos direi-tos) significa algo mais do que a simples igualdade pe-rante a lei enquanto exclusáo de qualquer discrimina-çáo náo justificada: significa o igual gozo, por parte doscidadáos, de alguns direitos fundamentais constitucio-nalmente assegurados, como resulta de algumas for-mulações célebres: Os homens nascen'L e permanecenlliures e iguais nos direitos (Declara@o de Direitos doHomem e do Cidadáo , L789); Todos os hornens nøscernliures e iguøis em d,ignidad,e e d,ireitos (Declaraçáo Uni-versal dos Direitos do Homem, 1948). A diferença entreigualdade perante a lei e igualdade nos direitos é subli-nhada em algumas formulações, como a do art. 2I daConstituiçáo iugoslava, na qual se diz que os homenssäo iguais perante a lei e nos direitos. A igualdade pe-rante a lei é apenas uma forma específîca e historica-mente determinada de igualdade de direito ou dos di-reitos (por exemplo, do direito de todos de terem acessoà jurisdiçao comum, ou aos principais cargos civis e mi-litares, independentemente do nascimento);já a igual-dade nos direitos compreende, além do direito de seremconsiderados iguais perante a lei, todos os direitos fun-damentais enumerados numa Constituiçáo, tais comoos direitos civis e políticos, geralmente proclamados (oque náo significa que sejam reconhecidos de fato) emtodas as Constituições modernas. Finalmente, porigualdade jurídica se entende, habitualmente, a igual-

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30 IGUALDADEELIBERDADE

dade naquele atributo particular q.u.e faz de todo mem-

bro de um grupo social, inclusive a criança, um sujeitojurídico, isto é, um sujeito dotado de capacidade jurídica. Enquanto a igualdade nos direitos tem um âmbito

mais amplo que o da igualdade perante a lei, a igualda-

de jurídica tem um âmbito mais restrito: o alvo polê-

mico do princípio da igualdade perante a lei é origina-

riamente, como vimos, a sociedade de estamentos,

enquanto o alvo polêmico da igualdade jurídica é a so-

ciedade escravista, isto é, aquela sociedade na qual nem

todos os membros sáo pessoasjurídicas' Numa socieda-

de de estamentos, todos podem ser sujeitos de direito,ter capacidade jurídica, embora nem todos sejam iguaisperante a lei (no sentido de que cada estamento é regu-

Iado por leis diferentes) e, com maior tazâo, nem todos

sejam iguais quanto aos direitos fundamentais.

9. A igualdade das oPortunidades

Um discurso náo muito diverso deve ser feito acer-

ca do outro princþio de igualdade, considerado como

um dos pilares do Estado de democracia social (tal como

o princípio da igualdade perante a lei representou umdos pilares do Estado liberal): o princípio da igualdade

de oporbunidades, ou de chances, ou de pontos de parti-da. Este princþio náo é menos genérico do que o ante-

rior, sempre que não seja especificado seu conteúdo

com referência a situaçóes específlrcas e historicamentedeterminadas. Por si mesmo, o princípio da igualdade

das oportunidades, abstratamente considerado, nada

tem de particularmente novo: ele náo passa $a aplica-

çáo da regra de justiça a uma situaçáo na qual'existem

várias pessoas em competição para a obtengo de umobjetivo único, ou seja, de um objetivo que só pode ser

alcançado por um dos concorrentes (como o sucesso

numa corrida, a vitória num jogo ou num duelo, o triun-

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NORBERTOBOBBIO 31

fo num concurso etc.). Náo hánada de particularmenteprogressista ou reacionário no fato de que osjogadoresde canastra ou de pôquer comecem o jogo com o mesmonúmeio de cartas, ou os jogadores de xadrez com o mes-mo número e o mesmo tipo de peças, ou que os duelan-tes disponham da mesma arma, os corredores partamda mesma linha, ou os participantes de um concursodevam ter o mesmo diploma, devam ler para o exameos mesmos liwos e sejam todos obrigados a náo conhe-cer o tema que cairá no exame.

O que mais uma vez faz desse princípio um princí-"pio inovador nos Estados social e economicamenteavançados é o fato de que ele se tenha grandemente di-fundido como conseqüência do predomínio de uma con-cepçáo conflitualista global da sociedade, segundo aqual toda a vida social é considerada como uma grandecompetiçáo para a obtençáo de bens escassos. Essa di-fusáo ocorreu, pelo menos, em duas direçöes: ø) na exi-gência de que a igualdade dos pontos de partida sejilaplicada a todos os membros do grupo social, sem ne.nhuma distinçáo de religiáo, de raça, de sexo, de classeetc.; b) na inclusáo, onde aregra deve ser aplicada, de

situações econômicae socialmente bem mais importan-tes do que a dosjogos ou concursos. É o caso, para daralguns exemplos, da competiçáo pela posse de bensmateriais, pela obtenção de metas particularmente de-sejadas por todos os homens, pelo direito de exercer cer-tas profissóes. Em outras palavras, o princípio da igual-dade das oportunidades, quando elevado a princípiogeral, tem como objetivo colocar todos os membros da-quela determinada sociedade na condiçáo de participarda competiçáo pela vida, ou pela conquista do que é vi-talmente mais significativo, a partir de posições iguais.li,supér{luo aduzir que varia de sociedade para socieda-de a defrniçáo de quais devam ser asr posições de partidaa serem consideradas como iguais, de quais devam seras condiçóes sociais e materiais que permitam conside-

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32 IGUALDADEELIBERDADE

)rar os concorrentes iguais. Basta formular perguntas

ido seguinte tipo: é suficiente o livre acesso a escolas

i iguais? Mas a que escolas, de que nível, até que ano dei idade? Já que se chega à escola a parbir da vida familiar,, náo será preciso equalizar também as condiçöes de fa-,' mília nas quais cada um vive desde o nascimento? Onde: pâr€rrros? Mas náo é supérfluo, ao contrário, chamar ar atençáo para o fato de que, precisamente a fim de colo-

car indivÍduos desiguais por nascimento nas mesmascondiçóes de partida, pode ser necessário favorecer os

, mais pobres e desfavorecer os mais ricos, isto é, intro-I duzir artificialmente, ou imperativamente, discrimina-

! ções que de outro modo náo existiriam, como ocorre, de

'. resto, em certas competições esportivas, nas quais se

i assegura aos concorrentes menos experlentes uma cer-

i ta vantagem em rela@o aos mais experientes. Dessej modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de

. igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desi-I gualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da

equiparaçáo de duas desigualdades.

10. A igualdade de fato

Dos princípios da igualdade perante a lei e da igual-dade de oportunidades, distingue-se a exigência ou oideal da igualdade real ou substancial' ou, como se lê naConstitui@o italiana, defato. O que se entende, generi-camente, por igualdade de fato é bastante claro: enten-de-se a igualdade com relaçáo aos bens materiais, ou

igualdade econômica, que é assim diferenciada da igual-dade formal ou jurídica e da igualdäde de oportunida-des ou social. Contudo, náo é nada claro - aliás, é mui-to controverso - determinar quais sejam as formas e

os modos específicos através dos quais se supõe que

essa igualdade possa ser pretendida e realizada. Igual-dade com relação aos bens materiais. Mas que bens? E

NORBERTOBOBBIO 33

por que náo também aos bens espirituais ou culturais?Se se definirem os bens com rela@o às necessidadesque eles tendem a satisfazer, a questáo da determina:.,r

çáo do que é ou do que não é um bem remete à questáo,da determinação de quais sáo as necessidades dignas deserem satisfeitas e em relaçáo às quais se considerajzs,.-úo que os homens sejam iguais. Todas as necessidadesou apenas aþumas? E, dado que não parece possívelresponder todas - e nem mesmo o mais conseqüente efanático igualitario jamais deu tal resposta -, entáosurge outra pergunta: qual o critério com base no qualé possível distinguir entre necessidades merecedoras e

náo merecedoras de satisfação? Seria, porventura, o

critério da utilidade social, segundo o qual se distin-guem as necessidades entre socialmente úteis e social-mente nocivas? Ou o critério, ainda mais vago, da cor-respondêncía à naturezø, pelo qual se distinguem as

necessidades entre naturais e artifïciais, espontâneas eprovocadas pelos produtores de bens de consumo? Anecessidade de escutar uma sinfonia de Beethoven é

natural ou arbificial, espontânea ou provocada? E a de

tirar férias, calçar sapatos ou lerjornais? Deste pontode vista, nada é mais indeterminado do que a fórmula ø

cada um segundo suo,s necessidades, usada tambémpor Mam e transformada, de resto, em ideal-limite dasociedade comunista, no célebre escrito Crítica ao pro-grdïLa. de Gotha.

uma vez determinada a natureza dos bens com re-laçáo aos quais os homens deveriam ser iguais, o pro-blema da igualdade ainda näo está resolvido: é precisotambém€labelecer os modos através dos quais os,ho-mens entram e permanecem em relaçáo com esses

bens. É necessária a posse ou basta o uso? É sufïcienteo gozo ou é necessária a disponibilidade? Ou será neces-sârio fazer uma outra distinçáo, entre um tipo de bens,como os instrumentos de produçáo, dos quais só deve-ria ser lícita a propriedade coletiva, e outros bens, como

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34 IGUAI,DADE E LIBERDADE

os produtos, dos quais seria lícita também a posse indi-vidual e até mesmo, eventualmente, a liwe disposiçao?Em terceiro lugar, náo parece que os defensores de umadoutrina igualitaria possam escapar de uma nova per-gunta: depois de ter sido determinado o tipo de bensdos quais é relevante a igualdade a fim de que uma so-

ciedade possa ser consideradajusta, depois de ter sidoestabelecido o tipo de relaçáo que deve existir entre os

membros do grupo e esses bens, a igualdade invocadaserá absoluta ou relativa? Ou, para retomarmos a fa-mosa distinçáo aristotélica, aritmética ou geométrica?Em outras palawas, os bens a serem distribuídos serãodistribuídos segundo a fórmula a cada un1. en'L partesiguais, ou segundo a fórmula a cada um na proporçõ,o

de..., ou seja, mediante uma fórmula que permita umadistribuiçáo diversa segundo o diverso grâu com quecada indivíduo possui o requisito exigido? Nada impedeque seja considerada igualitária uma doutrina que de-fende uma fórmula de igualdade proporcional.

Finalmente, deve-se notar que, entre os própriosprincípios de justiça comumemente considerados, al-guns sáo mais igualitários que outros: um princípio é

tanto mais igualitário quanto menores forem as dife-renças presumíveis entre os homens com relaçáo ao cri-tério adotado. O princípio a cada urn segundo a necessi-dade é considerado o mais igualitario de todos os prin-cípios (náo é por acaso que nele se inspira a doutrinacomunista), já que se consideraque os homens sáo maisiguais entre si (ou menos diversos) com relaçáo às ne-cessidades do que, por exemplo, com relaçáo às capaci-dades, Disto decorre que o caráter igualitário de umadoutrina náo está na exigência de que todos sejam tra-tados de modo igual com relaçáo aos bens relevantes,mas que o critério com base no qual esses bens sáo dis-tribuídos seja ele mesmo o mais igualitário possível.Mas será que existe um critério, se náo objetivo, pelomenos partilhado por todos, para distinguir os princí-

NORBERTOBOBBIO 35

pios de justiça com base em seu maior ou menor igua-litarismo? Trata-se de mais uma questáo à qual náop¿üece fácil dar uma resposta unívoca. De resto, se adeterminaçáo do que deve ser entendido por igualdadesubstancial náo levantasse tantas questöes, nâo teúa-mos conhecido, ao longo de todo o decurso histórico,tantas formas diversas de doutrinas igualitárias, fre-qüentemente em conflito umas com as outras; e, dadoque o igualitarismo é o aspecto mais constante e carac-terístico das doutrinas comunistas e socialistas, náo nosencontraríamos diante de comunismos e socialismostáo diferentes, entre os quais alguns totalmente e ou-tros parcialmente, alguns absolutamente e outros rela-tivamente igualitários.

11. O igualitarismo

De todo modo, quaisquer que sejam as diferençasespecíflrcas, o que caracteriza as ideologias igualitáriasem rela@o a todas as outras ideologias sociais que tam-bém admitem ou exigem esta ou aquelaforma parbicu-lar de igualdade ré a exigência de uma igualdade tam-bém material, enquanto distinta da igualdade perantea lei e da igualdade de oportunidades. Do mesmo modo,como seria ambíguo definir o liberalismo como a dou-trina que pöe o valor da liberdade acima de todos osdemais valores, se nã.o se definirem quais sáo as liber-dades que formam geralmente o conteúdo mínimo dadoutrina Iiberal (e se trata das liberdades pessoais e ci-vis), também seria genérico definir o igualitarismocomo a doutrina que põe o valor da igualdade acima detodos os demais valores se náo se especifïcar de queigualdade se está falando e em que medida ela deve seraplicada. Já,dissemos.que, para.determinar o.signifrca¡dq específico de umarelaçao de igualdade, é precisores;..ponder a pelo menos duas quest1es: iguøIda.de entre

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36 IGUAIDADEELIBERDADE

quern? eiguøldøde em quê? Limitando-se o critério deespecificaçáo à relaçáo entre o todo e a parbe, as r€spos:tas possíveis sáo quatro: ø) igualdade entre todos emtudo; b) igualdade entre todos em algo; c) igualdadeentre alguns em tudo; d) igualdade entre alguns emalgo. O ideallimite do igualitarismo se reconhece naprimeira resposta: igualdade de todos os homens sobtodos os aspectos. Mas se trata, precisamente, de umideal-limite inatingível na prática. Pode-se, quandomuito, redefinir o igualitarismo como a tendência aatingir esse ideal por aproximaçóes sucessivas. Ilistori-camente, uma doutrina igualitária é uma doutrina quedefende a igualdade para o maior número de homensno maior número de bens. E, dado que a igualdade ab-soluta entendida como a igualdade de todos em tudo é

um ideal-limite para o qual se pode tender medianteaproximações sucessivas, é lícito falar de doutrinasmais igualitárias que outras. De igualitarismo parcial elimitado, ao contrário, pode-se falar a respeito de dou-trinas que defendem a igualdade em tudo, mas limita-da a uma categoria de pessoas; é o caso da doutrina pla-tônica com relaçáo à classe dos guardiáes, ou de algu-mas regras de ordens religiosas. Fercebe-se que o

igualitarismo parcial ou limitado é perfeitamente com-patível com uma concepçáo náo igualitária da socieda-de como um todo. As outras duas possíveis respostas, aigualdade de todos em algo e a igualdade de alguns (per-tencentes a uma determinada categoria) em algo, sópodem ser consideradas exigências igualitarias se eli-minarem uma desigualdade anterior. Assim, chama-sede.igualitariauma lei que estende o sufrágio às mulhe-res; ou outra que elimina uma discriminaçáo racial.Mas nem a primeira nem a segunda resposta sáo típi:aas de uma concepçao igualitária de sociedade. Tomâ.das,,isoladamente, náo podem ser consideradas comorespostas características de formas históricas deigu4litarismo. A exigência da igualdade jurídica, enten.

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dida como igualdade de todos na capacidade jurídica, é

certamente uma exigência igualitaria com relaçáo àssociedades onde os homens se dividem em liwes e es-

cravos; mas é a expressáo da ideologia liberal, náo ain-da de uma ideologia igualitaria.

O que geralmente caracteriza as ideologias iguali-tárias é o acento colocado no homem como serg,enérico(ou seja, como ser que pertence a um determinadogenus) e, por conseguinte, nas características comuns a

todos os pertencentes ao genus e náo tanto nas caracte-rísticas individuais pelas quais um homem se distinguedo outro (que é, ao contrário, o que catacteriza as dou-trinas liberais); e náo importa, de resto, se o acento cainas características negativas do homem (os homens sõntodos pecodor¿s) ou nas positivas (o homem é um ani-mal naturalmente social), A essa natttteza comum doshomens, foi dada historicamente uma interpretaçáoreligiosa - os homens são irmáos entre si enquanto fi-Ihos do mesmo Pai - e uma interpretaçáo filosófica,que se funda geralmente na idéia de uma igualdadesubstancial primitiva ou nøturøL, corrompida e peryer-tida pelas instituições sociais, que introduziram e per-petuaram a desigualdade entre ricos e pobres, entregovernantes e governados, entre classe dominante e

classe dorninada. Com freqüência, mesclam-se e se re-forçam reciprocamente, na própria doutrina igualitá-ria, ambas as interpretações: o apelo religioso marchaao lado do argumento fTlosófico, enquanto o ideal daregenera@s-moral se rnescla com o darevoluçáo social.

Conforme o\acento seja colocado nas desigualdades eco-

nômicas ou nas políticas - e, por conseguinte, confor-me o fim último da igualdade seja buscado através daeliminaçáo da propriedade privada (comunismo) ouatravés da eliminaçáo de qualquer forma de poder polí-tico (anarquismo) -, as doutrinas igualitarias se dis-tinguem em socialistas (ou comunistas) e anarquistas.As primeiras buscam a igualdade política através da

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38 IGUAI,DADE E LIBERDADE

igualdade econômica, enquanto as segundas percorremo caminho inverso.

12. A Íguali4arismo e seu firndamento

Se é verdade que, historicamente, o ponto de parti-da das doutrinas igualitárias é sobretudo a consider.a-çáo da natureza comum dos homens, esse ponto de par-tida náo é logicamente suficiente para justifîcar o prin-cþio fundamental do igualitarismo, segundo o qual to-dos ou quase todos os homens devem ser tratados demodo igual em todos ou quase todos os bens desejáveis.Mesmo admitindo-se que seja factualmente verdadeiroque todos os homens são, pelo menos como genu4 maisiguais do que desiguais, se comparados a outra espéciede seres vivos, disso náo decorre - pela inderivabili-dade de uma proposiçáo normativa de uma proposiçáodescritiva - que todos os homens devam ser tratadosde modo igual. Esse princípio ético fundamental náoderiva da pura e simples constataçáo de que homenssáo de fato, pelo menos como genus, iguais, mas da ava-liação positiva deste fato, ou seja, do seguintejuízo devalor: "a igualdade (a maior igualdade possÍvel) entreos homens é desejável." A prova disso é que uma dou-trina náo igualitária, como a hobbesiana - que consi-dera como finalidade suprema dos homens que vivemem sociedade náo a maior igualdade possível, mas ex-clusivamente a paz social, e funda essa última na re-núncia à igualdade natural e na constituiçáo de umordenamento no qual é traçada uma nítida linha dedemarcaçáo entre os que têm o dever de mandar e osque só têm o direito de obedecer -, parte da constata-çáo de que, em estado de natureza, os homens sáoiguais. Mas, diferentemente dos teóricos do igualitaris-mo, Hobbes náo formula sobre a igualdade natural umjuízo de valor positivo; ao contrário, considera a igual-

NORBERTOBOBBIO 39

dade material dos homens, tal como se verifica no esta-

do de natureza,umadas causas dobellunt omnium con-

tra omnes, que torna intolerável a permanência naque-

le estado e obriga os homens a criarem a sociedade civil.A maior parte dos teóricos do igualitarismo e Hobbespartem da mesma verdade factual, mas chegam a con-

seqüências práticas opostas, já que avaliam de modo

oposto essa mesma realidade de fato. As conseqüênciaspráticas opostas derivam náo de uma constataçáo, mas

de uma avaliaçao.A rigor, a constataçáo da igualdade natural dos ho-

mens náo apenas náo é suficiente para fundamentar oigualitarismo, mas nem mesmo é necessária. Pode-se

perfeitamente considerar a máxima igualdade como

um bem digno de ser perseguido, sem paratanto tomarcomo ponto de partida a constataçáo de uma igualdade

natural, primitiva ou originária dos homens. O marxis-mo é uma doutrina igualitária, que abandonou comple-

tamente os pïessupostos naturalistas das formas maisingênuas de socialismo: aproposi@o normativaø igual'død,e é um bern digno de ser perseguido nâo deriva sub-

repticiamente, nesse caso, do juízo de fato os homens

na,sceratL ou sã,o por natureza iguais, mas do juízo de

valor ø desigualdade é um mal, ou seja, bem entendido,aquela desigualdade que se pode observar na históriaconcreta dos homens, que é a história de sociedades di-vididas em classes antagônicas e' por isso, profunda-

mente desiguais. Ainda que numa forma extremamen-te simpl_ifiç-ada, o procedimento mental que preside a

constituiqáo de uma teoria como esta é o completo opos-

to do procedimento hobbesiano: para Hobbes, os ho-

mens sáo de fato iguais, mas devem ser desiguais; para

os.teóricos do socialismo científico, os homens até ago'

ra foram de fato desiguais, mas devem ser iguais. Talcomo as doutrinas igualitárias, também as doutrinasnáo-igualitárias pressupóem náo tanto a consideraçáo

da fundamental e insuperável desigualdade humana,

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40 IGUAIDADE E LIBERDA.DE

rnasa'âvafiaçáo, positiva.dessa ou daquelaforma de,de_sigrraldade, seja êntre indivíduos mais ou menos dota-dos pela natureza em força fisica, inteligência ou habili-dade, seja,entre raças¡ estirpes ou nações; elas pressu-põem, em outras palawas, um juízo de valor oposto aodas doutrinas igualitárias, ou seja, o juízo segundo oqual essa ou aquela forma de desigualdade é favorávelou mesmo necessária ao melhor ordenamento social ouao progresso da civiliza@o e, portanto, a ordem socialdeve respeitar e náo abolir as desigualdades entre oshomens, ou, pelo menos, aquelas desigualdades que sáoconsideradas social e politicamente úteis ao progressosocial. Já que as sociedades até hoje existentes sáo defato sociedades de desiguais, as doutrinas näo igualitá-rias representam habitualmente a tendência a conser-var o estado de coisas existente: são doutrinas conser-vadoras. As doutrinas igualitárias, ao contrário, repre-sentam habitualmente a tendência a modifîcar o esta-do de fato: sáo doutrinas reformadoras. euando, alémdo mais, avaloúzagâo das desigualdades chega ao pon-to de desejar e promover o restabelecimento de desi-gualdades agora canceladas, o náo-igualitarismo se tor-na reacionário; ao contrário, o igualitarismo torna_serevolucionário quando projeta o salto qualitativo deuma sociedade de desiguais, tal como até agoraexistiu,para uma futura sociedade de iguais.

f3. Igualitarismo e liberalismo

Enquanto igualitarismo e náo-igualitarismo são to.talmente antitéticos, igualitarismo e liberalismo sáoapenas parcialmente antitéticos, o que não anula o fatode que, historicamente, tenham sido geralmente consi-derados como doutrinas antagônicas e alternativas. Onão-igualitarismo nega a máxima do igualitarismo, se-gundo a qual todos os homens d,euem ser (no limite)

NORBERTOBOBBIO 4I

iguais ern tudo, com rela@o à totalidade dos sujeitos,afirmando, ao contrário, que somente alguns homenssão iguais, ou, no limite, que nenhum homem é igual aoutro;já o liþeralismo nega 4 mesma máxima náo com

Jelaçaoätqtalidade dos sujeitos, mas àfotalida.dp (ou' quase totalidade) dos.bgns e dos malg¡.com relação

-ao-squais os homens deveriam ser iguais, óü!-ôjd:.4dJpifË ä

-þaldâde dô todos náo èm tùdo -(ou quase tudo), mas,,

somenteemølgg,wnalgocoistituídô,habiiï.uahêd,Uà;pelqçcþgmadosdireitosfundamentuþ",_q-q_lgtyf qÞ"gl¿,Bomqh-,oje,Áãdü;-hüniffi öilTËËesiliïeitosnäosàomäis'äo

que as várias forñäsùe"'Iiberdade pessoal, civil e po-lítica, enumeradas progressivamente pelas váriasContituições dos Estados nacionais desde o final do sé-

culo XVIII até hoje, e reconfirmadas, depois da Segun-da Guerra Mundial, em documentos internacionais,tais como a Declara@o Universal dos Direitos do Ho-mem (1948) e a Convenção Européia dos Direitos doHomem (1950). O ideal do Estado liberal. tal como foiparadigmaticamente expresso por Kant, é o ideal de umEstado no qual todos os cidadáos gozam de uma igualliberdade, isto é, sáo igualmente liwes, ou iguais nosdireitos de liberdade.

Todavia, o liberalismo é uma doutrina só parcial-mente igualitária: entre as liberdades protegidas inclui-se também, em geral, a liberdade de possuir e de acu-mular, sem limites e a título privado, bens econômicos,assim comp-a-liberdade de empreender operaçóes eco-

nômicas (abhamada liberdade de iniciativa econômica),liberdades das quais se originaram e continuam a se

originar as grandes desigualdades sociais nas socieda-des capitalistas mais avançadas e entre as sociedadeseconomicamente mais desenvolvidas e as do TerceiroMundo. As doutrinas igualitarias, de resto, sempre acu-saram o liberalismo de ser defensor e protetor de umasociedade econômica e, portanto, também politicamen-te náo-igualitária; para Marx, a igualdade jurídica de

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42 IGUAIDADEELIBERDADE

todos os cidadáos sem distinções de estamento, procla-i

\j mada pela Revolu@o Francesa, náo p¿tssou, na realida-l

* "r.l' pe, de um instrumento de que se serviu a classe bur-{

'ol lguesa com o objetivo de liberar e tornar disponível a¡

) , f força de trabalho necessária ao desenvolvimento do cd-i

f' ;t pitalismo nascente, através da ficçáo útil de um contralij\ to voluntário entre indivíduos igualmente liwes. Da\ crítica das doutrinas igualitarias contra a concepçáo-e S\.. ,þrática libu"¿ Aá, Br"tuao é que. n4qceram- as exigência$

t\ do direitos sociais, que transform¿rr¿rm profundamentÇ\-' o sistema de rela-ções entre o indivíduo e o Fstado e ¿ü

þiópriaorgarizryâo do Estâdo, até mesmo tror ""gioù*j'-quê Se consideram continuadores, sem alterações brusf

cas, datradição liberal do séculoXlX. Por outro lado, od,

. liberais sempre u".rr*u* os igualitarios de sacrificar a{

' liberdade individual, que se alimenta da diversidadedas capacidades e das aptidões, à uniformidade e ao

ì nivelamento impostos pela necessidade de fazer comque os indivíduos associados sejam táo semelhantesquanto possível: na tradiçáo do pensamento liberal, oigualitarismo torna-se sinônimo de achatamento dasaspirações, de compressáo forçada dos talentos, de

nivelamento improdutivo das forças motrizes da socie-dade. Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízesem concepções da sociedade profundamente diversas:individualista, conflitualista e pluralista, no caso do li-beralismo; totalizante, harmônica e monista, no caso

do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é

a expansão da personal.idade individual, abstratamen-te considerada como um valor em si; para o igualitario,essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da co-munidade. E diversos são também os modos de conce-ber a natuteza e as tarefas do Estado: limitado e ga-rantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o

Estado dos igualitários.Essa diversidade, contudo, náo exclui a proposta de

sínteses teóricas e soluções práticas de compromisso

NORBERTOBOBBIO 43

entre liberdade e igualdade, na meclida em que esses

dois valores fundamentais (untamente com a ordem)de toda convivência civilizada sáo considerados comosendo náo apenas antinômicos, mas também parcial-mente complementares. A Constituição italiana, paracitar uma entre muitas, estabelece em seu art. 3e, $ 2e,

que é tarefa da República renl.ouer os obstú,culos de or-dern econômicø e social que,limitando de fato a liberdø-de e a igualdade dos cidaddos, irnpedem o pleno desen-uoluimento da pessoa, humana e ø eþtiua participaçã,ode todos os traba.lhadores no, organizaçõ,o política, eco-

nômicø e social do país. Mesmo levando-se na devidaconta a imensa distância que existe entre declaraçõessolenes desse tipo e a realidade de fato, é significativoque liberdade e igualdade sejam consideradas, no mes-mo texto, como bens indivisíveis e solidários entre si.

14. O ideal da igualdade

A tendência no sentido de uma igualdade cadavezmaior, como já havia observado ou temido Tocquevilleno século XD(, é irresistível: o igualitarismo, apesar daaversáo e da dura resistência que suscita em cada revi-ravolta da história, é uma das grandes molas do desen-

volvimentor4r-ls'tórico. A igualdade entendida comoequalizaçäó dos diferentes é um ideal permanente eperene dos homens vivendo em sociedade. Toda supe-raçáo dessa ou daquela discriminaçáo é interpretadacomo uma etapa do progresso da civilizaçáo. Jam?ip*q9P9-.9.n.p"osl4epqçafq,-r.as0-psst-aç'e*m.d,tççuss?gê-s,tnês\

þ¡_tgt p"¡oçipaiq de d-esisr¡gl$4.$.9 e-r-rtry 9,'1"h9_gtgqgi-? \raça {ou, aé mòAo mais geral, ãparti-cjnasal num._grrpo létnico ou nacional), o sexo e äõlasse social.

Depois du trugiíËäääÏääiÄiñä-ääiËääo e quase

como uma desforra contra as abominações que ele pra-ticou, a opiniáo pública mundial redespertou para o

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44 IGUALDADEELIBERDADE

apelo daquele grande movimento rumo àigualdade que

é a superaçáo do ódio e da discriminaçáo raciais. O ra-cismo está se tornando cada vez mais, para quem oexerce ou apenas o tolera, uma marca de infâmia. Ne-nhum auditório estudantil no mundo poderia hoje es-

cutar sem revolta a liçáo sobre o homem negro (o ho-

mern naturøl em sua, total barbd,rie e desregramento)que Hegel, o grande Hegel, ministrava de sua cátedraem Berlim.

Como já se observou varias vezes, a revoluçáo silen-ciosa de nosso tempo, a primeira revoluçáo incruentada história, é a que conduz à lenta mas inexorável ate-nuaçáo, até a total eliminaçáo, da discrimina@o entreos sexos: a equiparaçáo das mulheres aos homens, pri-meiro na mais restrita sociedade familiar, depois namais ampla sociedade civil, através da igualdade emgrande parbe exigida e em parbe (ainda que em pequerraparte) já conquistada nas relações econômicas e políti-cas, é um dos sinais mais seguros e encorajadores damarcha da história humana no sentido da equalizaçãodos desiguais.

Há mais de um século a idéia comunista atua nadireçáo da luta contra a desigualdade das classes soci-

ais, considerada como a fonte de todas as outras desi-gualdades, rumo à meta última da sociedade sem clas-

ses, uma sociedade nø qual o liure desenuoluimento d,e

cøda urn seja a condiçãn pa,rd o liure desenuoluimentode todos.

Tal como a liberdade, também a igualdade aparece

cadavezmais como um téÀoç. Como tél.oç e, ao mesmotempo, como retorno à origem, ao estado de naturezados jusnaturalistas,* ou, ainda mais remotamente, àidade de ouro, ao reino de Saturno, reitãn justo que, sob

seu reinødo, nã,o hauia netL escro'uos nenx propriedøde

* Grupo de pessoas adeptas ou simpíticas ao naturalisrno. (N. do E.)

NORBERTOBOBBIO 4ã

priuøda, mas todas as coisas peñenciøm a todos semdiuisões, corno se todos os homens tiuessem urn sópatrimônio.

Bem mais do que a liberdade, é a igualdade - preci-samente a igualdade substancial, a igualdade dos igua-litários - que forma o traço comum e característico dascidades ideais dos utópicos (assim como uma feroz e

inflexível desigualdade é o signo da avertência e dapremoniçáo das utopias negativas de nosso tempo),tanto daquela de Thomas More, que escreve que en-quanto ela [ø propriedøde] perdurar, pesøró, setnpre so-

bre a parcela amplamente majoritd,ria e melhor dø hu-manidade o førdo angustiønte e ineuitd,uel da pobreza e

das desuenturas, como daquela de Tommaso Campa-nella, cuja Cid,ade do Sol é habitada por fi,hósofos queresoluem uiuer fiIosoficamente erL cotnunl,.Inspira tan-to as visões milenaristas das seitas heréticas que lutampelo advento do Reino de Deus, que será o reino dafraternidade universal, quanto os ideais sociais das re-voltas camponesas, nas quais Thomas Münzer - güê,

segundo Melanchton, ao ensinar que todos os bens de-viam ser possuídos em comum, tornarø ø ïLcLSsa td,o sel-uagenx que nãn queriø møis tra,balha.r - se liga aGerard Winstanley, que pregava: o gouerno do rei é ogouerno doqescribøs e dos fariseus, que só se conside-ram liures sQsã,o donos daterra e dos seus irm.ã,os; rnaso gouerno rþublicano é o gouerno da justiçø e do, pø2,que ndn fa.z distinçdo entre as pessoc,s. Constitui o ner-vo do pensamento social dos socialistas utópicos, desdeo Código dø naturezø de Morelly até a sociedade døgrande harmonia de Fourier. Anima, agita e torna te-mível o pensamento revolucionário de Babeuf: softLos

todos iguøis, nfi,o é uerdade? Este princípio é inconteste;pois, a nã,o ser que se esteja louco, ndo se pode dizer se-

rio,mente que é noite quando é dia,. Entã,o, pretendemosuiuer e morrer iguais como turscenxos: querenxos a iguøI-dade eþtiuø ou ø morte.

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46 IGUALDADEELIBERDADE

Do pensamento utópico ao pensamento revolucio-

nário, o igualitarismo percorreu um longo trecho do

caminho: contudo, a distância entre a aspiraçáo e a re-

alidade sempre foi e continua a ser táo grande que,

olhando para o lado e para trás, qualquer pessoa sensa-

ta deve náo só duvidar seriamente de que elapossa umdia ser inteiramente superada, mas também indagar se

ê razoâvel propor essa suPeração.

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