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USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. Adolpho José MelfiVice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

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Humanitas FFLCH/USP – abril 2002

FFLCH/USP

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2002

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ISBN 85-7506-060-0

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

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Copyright 2002 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

S715 Souza, Geraldo Tadeu

Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev / Geraldo Tadeu Souza.- 2. ed. - São Paulo :Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

149 p.

Originalmente apresentado como dissertação (mestrado) doautor – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

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1. Lingüística 2. Metalingüística 3. Bakhtin, Mikhail

Mikhailovich 4. Enunciados 5. Gêneros narrativos I. Título

CDD 410

CDD 320.1

Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e capaMª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto Gráfico e DiagramaçãoSelma M. Consoli Jacintho – MTb n. 28.839

Revisãodo autor

HUMANITAS FFLCH/USP

e-mail: [email protected]. brTelefax.: 3091-4593

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A meus paisA Vera

A Kim e ao Caíque

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Este trabalho foi apresentado como dissertação de mes-

trado ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filoso-

fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,

em abril de 1997.

Gostaríamos de agradecer aos Professores Doutores Irene

Machado e José Luiz Fiorin pelas contribuições e apreciação crí-

tica enquanto membros da banca examinadora e, ainda, ao Prof.

Dr. Boris Schnaiderman pela ajuda no cotejo com a edição russa

de algumas obras do Círculo e pela prosa sempre enriquecedora.

Agradecemos também à CAPES (Coordenação de Aperfei-

çoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de estudos que

nos possibilitou executar esta dissertação e, especialmente, à Prof.

Dra. Elisabeth Brait que nos iniciou e orientou nas trilhas do

pensamento do Círculo.

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Introdução -------------------------------------------------------- 13

I - O Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev ----------------- 19

1. Os textos disputados ------------------------------------- 24

2. O percurso teórico ---------------------------------------- 28

3. O problema da tradução --------------------------------- 42

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1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstratoe o enunciado concreto ----------------------------------- 58

2. A frase e o enunciado concreto -------------------------- 68

3. O enunciado concreto como base material da

Metalingüística: o dialogismo ---------------------------- 73

III - A Teoria do Enunciado Concreto -------------------------- 85

1. Gêneros do Discurso ------------------------------------- 97

2. Tema ------------------------------------------------------ 108

3. Expressividade ------------------------------------------ 116

4. Estilos ---------------------------------------------------- 123

5. Entonações ---------------------------------------------- 129

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Considerações Finais ------------------------------------------ 137

Bibliografia do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev --- 143

Bibliografia Geral----------------------------------------------- 147

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Em meio às vozes que assediam Bakhtin, uma pes-quisa teórica pertinente e original

Beth Brait

(USP/PUC-SP)

A obra do pensador russo Mikhail Bakhtin tem sido, desdehá alguns anos, objeto da atenção em várias áreas do conheci-mento. Esse interesse, gradativo e multifacetado, advém da ri-queza de uma concepção de linguagem que pouco a pouco deixaver sua amplitude e suas aberturas para o contato com as infini-tas nervuras que constituem as relações homem-mundo. E é nesseconjunto que é preciso localizar a importância do trabalho deGeraldo Tadeu Souza, inicialmente uma tese de mestrado queagora, merecidamente, se transforma em livro, um objeto cultu-ral cujas formas de circulação possibilitam uma repercussão maiscompatível com a profundidade da pesquisa.

É preciso, antes de falar do trabalho em si, e aí todos sabemque o prefácio é uma pretensiosa antecipação do que está muitomelhor no texto, dizer que o interesse de Geraldo por Bakhtin e porseu círculo começa bem antes do mestrado e está tendo continui-dade no doutorado, o que pode dimensionar a motivação para esseolhar com lupa sobre uma obra que, na maioria das vezes, serve,especialmente num mestrado, como a simples pretexto para leitu-ras de diversos objetos. Já na graduação, que tendo sido feita emLingüística possibilitou a passagem por várias teorias da lingua-gem, por várias tendências dos estudos lingüísticos, o então estu-dante optou por Bakhtin e por um maior conhecimento de suaobra e das intrigantes assinaturas que aí surgiam.

No mestrado, integrado ao projeto maior “História dos Es-tudos Enunciativos no Brasil: o papel de Bakhtin e Benveniste”(CNPq/CAPES-COFECUB), por mim coordenado, passa a desen-

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volver pesquisas cujo objetivo principal era discutir a obra doCírculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev a partir do núcleo comumque une esses teóricos russos em torno de uma mesma concep-ção de linguagem e do seu produto: a obra verbal. De imediato atarefa mostrou as suas dificuldades, reveladas na questão dastraduções e da maneira como chegaram ao Ocidente e especial-mente ao Brasil, no enigma da autoria, e mesmo na especifici-dade conceitual apresentada por termos como sentido, significa-ção, enunciado, enunciação, metalingüística ou translingüística.A cada problema, Geraldo incluía, como bom pesquisador, umitem a seu trabalho, cada vez mais convencido de que realmenteum olhar com lupa se fazia necessário para uma melhor com-preensão da concepção de linguagem, das propostas e das pers-pectivas de análise abertas por Bakhtin e por seu círculo.

E é a partir desse mergulho reflexivo que Geraldo chega àhipótese, central em sua pesquisa, de que o núcleo bakhtiniano seempenha na elaboração de uma “Teoria do Enunciado Concreto ede sua arquitetônica conceitual, a qual funciona como uma engre-nagem dinâmica onde interagem, entre outros, os conceitos degêneros do discurso, tema, expressividade, estilo e entonação”. Paraatingir seu objetivo, o trabalho, em meio a muitos aspectos polêmi-cos e difíceis de serem elucidados, discute a questão da autoria,considerando a individualidade intelectual de cada um dos mem-bros, persegue a trajetória teórica do Círculo, levanta alguns pro-blemas de tradução, incluindo as formas de participação de dife-rentes pontos de vista científico com os quais o círculo vai dialogar,como é o caso da Lingüística, do Formalismo, da Estilística, daFenomenologia, da História, do Marxismo e da Estética.

Como conseqüência dessa perseguição teórica, desse verda-deiro trabalho de detetive que tanto pode colaborar para a discus-são dos trabalhos assinados por Bakhtin e por outros componen-tes do círculo, a reflexão sobre a metalingüística ou translingüísticaaparece como uma espécie de análise dialógica do discurso, semque essa expressão tenha sido mencionada, nem pelos pensado-res estudados e nem por Geraldo, para caracterizar a natureza dainvestigação e a construção dos princípios conceituais que hoje,das mais diferentes maneiras, tem penetrado os estudos sobre alinguagem.

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“Quando estudamos o homem, buscamos e encontra-mos o signo em toda parte e devemos tentar compreen-der a sua significação” (23, 341).

“a scientific work never ends: one work takes up wherethe others leaves off. Science is an endless unity. It cannotbe broken down into a series of finished and self-sufficientworks. The same is true of others spheres of ideology”

(7, 129-130).

“Life can be consciously comprehended only in concreteanswerability. A philosophy of life can be only a moralphilosophy. Life can be consciously comprehended only asan ongoing event, and not as Being qua a given” (2, 56)

Um estudo aprofundado das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev nos leva ao encontro de uma série de trans-formações sociais, científicas e culturais que tiveram curso naRússia no período em que elas foram elaboradas – anos 20 aosanos 70 deste século. Se tomarmos algumas observações cons-tantes na extensa obra desse Círculo e concordarmos com elas,perceberemos que “cada época e cada grupo social têm seu re-pertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica”(10, 43), e nosso intuito aqui, é de tentar observar o repertório dediscursos científicos com os quais o Círculo dialogava.

Nosso objetivo é tentar descobrir como um grupo de inte-lectuais, cujo líder Mikhail Bakhtin foi exilado durante o expur-

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go de 1928, promovido por Stalin, conseguiu manter viva a in-vestigação da heterogeneidade discursiva numa época dehomogeneidade1 , e penetrando nesse sistema como um vírus,metamorfoseando-se em caráter marxista, construir uma obrade tal qualidade que, ainda hoje, seus parâmetros teóricos per-manecem novos.

Para desenvolver essa dissertação tivemos que escolherum tema, dentre muitos, para perseguir o fio que leva a umareflexão em torno do todo concreto da obra do círculo. Nos deti-vemos, então, no percurso de elaboração de uma Teoria do Enun-ciado Concreto. Não devemos esquecer que a base de investiga-ção do círculo é o pensamento concreto. Nesse sentido, o enun-ciado que será a base deste texto é o enunciado concreto, dialógico– interior e exterior, cotidiano, artístico, o enunciado enquantoum acontecimento na existência, um acontecimento social.

Essa investigação dialógica nos incita a pensar o todo doobjeto de análise como um objeto vivo. Então, a sua natureza,além de dialógica, deve ser tridimensional obedecendo aos se-guintes aspectos que compreendem um todo orgânico:

1) o micro-diálogo, ou seja, o diálogo interior a cada umadas obras do Círculo;

2) o diálogo exterior, o diálogo com o outro composicio-nalmente expresso e que é inseparável do diálogo inte-rior;

3) o grande diálogo das obras como um todo.

Essa metodologia de análise vai nos ajudar a acompanharas características imanentes à cada obra; as relações que unemuma obra a outra, e, finalmente, a compreender as relações que,

1 Nos referimos aqui ao período posterior às manifestações concretasda heterogeneidade discursiva que dava o tom ao período revolucio-nário até o início dos expurgos stalinistas de 1928.

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existentes entre as obras, não foram objetificadas, e que se tor-naram um dos fortes argumentos para atribuir o todo das obras,ou como preferem outros, todas as obras, a Mikhail Bakhtin.

Mas a intenção de elaborar uma investigação concreta dosfatos da linguagem, ou seja, da vida verbal, traz no seu bojo acrítica a outras construções científicas, que se norteiam pelopensamento abstrato ou idealista na análise dos fatos da lin-guagem como: a lingüística, a psicologia, a estética e a estilística.Essas críticas têm uma característica importante: não retirar alegitimidade dessas ciências no interior de um pensamento abs-trato ou idealista, mas de complementá-las com uma aborda-gem de outra natureza – fenomenológica, histórica, sociológica,dialógica – no âmago da realização concreta da palavra, do sig-no, do discurso, enfim, do enunciado concreto.

A abordagem dos fatos concretos da linguagem implicauma série de dificuldades, visto que é preciso um mínimo deestabilidade para que o investigador encontre uma base paraapoiar sua interpretação desses fatos. Por outro lado, nós, en-quanto participantes de uma comunidade discursiva determi-nada, desenvolvemos uma capacidade de compreender os enun-ciados dos outros membros dessa comunidade, e sabemos comorespondê-los, ou seja, entendemos, em um certo nível, o funci-onamento dinâmico dessa comunidade e nos comunicamos comela, não passivamente, mas como um membro ativo.

O que as obras do Círculo nos mostram é o esforço de des-cobrir qual é o papel da linguagem em cada acontecimento daexistência humana: na vida cotidiana, na arte, na ciência, nareligião de uma época determinada. Essa compreensão sincrônicada linguagem nos permite identificar numa série diacrônica, peloconhecimento de fatos anteriores dessa sociedade, a evoluçãodessa sociedade, do ponto de vista econômico à realidade lingüís-tica, das relações sociais aos gêneros do discurso.

Embora a maioria das obras tratem do enunciado literário,os enunciados concretos que servem como base para as investi-gações do Círculo, que compõem os gêneros primários, são os

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enunciados cotidianos, tomadas as ressalvas feitas por Volochinovno ensaio “A estrutura do Enunciado”2 devido a recorrência aoenunciado cotidiano em sua representação literária: “o procedi-mento que consiste em analisar um enunciado como se ele fosseum enunciado cotidiano e atestado na história é, evidentemente,perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser utili-zado senão excepcionalmente. Mas na ausência de um registrono gramofone, que nos forneça um documento autêntico sobreas conversas de personagens vivos, se deve recorrer ao materialliterário, levando em conta, naturalmente sua natureza específi-ca” (16, 309). Atualmente, esse problema pode ser contornadocom a utilização de materiais gravados como os do projeto NURC/USP por exemplo, ou numa perspectiva mais contemporânea, osenunciados cotidianos virtuais, desenvolvidos concretamente porintermédio de INTERNET, telefones, etc.

Na hora de escrever a monografia que trata da obra dessesexcepcionais teóricos russos, alguma coisa ainda nos impede deiniciar a tarefa. Buscamos maiores referências, tornamos a leralgumas coisas, e mesmo assim, não nos damos por satisfeitos.Muito vai ficar de fora, pois o trabalho de pesquisador não encon-tra, ainda, um eco estável na escrita, não assumiu um gênero,um tom, um estilo, enfim, um enunciado concreto.

A hora da criatividade, de remexer o “dado” e transformá-lono criado, no ato fenomenológico, único, que tornará forma aseguir, reflete uma preocupação: levantar questões para discus-são da obra, primeiro no interior do Círculo (de uma maneira umtanto monológica, mas que se justifica para tentar perceber noseu mais alto grau a dimensão das idéias desses teóricos), e de-pois, deixar a impressão dialógica que modifica, transforma eretransmite idéias que, nos anos 20 deste século, principiaramno interior da União Soviética, e que se renovam agora na “grandetemporalidade” onde nada está morto.

2 Ou “A construção do Enunciado” [Constrúctzia viskázivania](33, 19).

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Nossa proposta, então, é de discutir no interior do todo daobra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev as seguintesabordagens:

1) a polêmica em torno da autoria das obras;

2) os pontos de vista que eles utilizam para investigar oenunciado concreto;

3) quais os conceitos que permitem uma interpretação doenunciado concreto.

A princípio, discutiremos o “Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev” e alguns pontos de vista de estudiosos franceses, ame-ricanos e brasileiros sobre esse tema, bem como os problemas deautoria dos textos, o percurso teórico e os problemas de tradu-ção. Na segunda parte, abordaremos o problema da linguagem ealgumas dificuldades conceituais em relação a esse estudo. E porfim, na terceira parte, trataremos da Teoria do Enunciado Con-creto que se articula, na obra desses teóricos, em torno dos con-ceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos eEntonações, numa perspectiva ética, fenomenológica, histórica,sociológica e dialógica.

Não temos o intuito de apresentar aqui uma investigaçãoaprofundada dos fatos que encontramos, e sim, dar uma intro-dução ao pensamento do Círculo nos limites de uma Teoria doEnunciado Concreto. Acreditamos ser essa uma forma de cha-mar a atenção para o todo da obra, ao invés de permanecer eminvestigações onde essa mesma obra tem um valor periférico –seja no estruturalismo francês ou na Análise do discurso de li-nha francesa, com o aproveitamento legítimo de uma ou outraobra do círculo. Nosso intuito é mesmo de provocar discussões,de dialogar, de polemizar, e se conseguirmos esse feito, essamonografia terá cumprido sua finalidade.

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“Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico so-

bretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata

de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária,

ou de alguma outra especialização. No tocante às razões

positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa

nas zonas limítrofes, nas fronteiras de todas as discipli-

nas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento”

(23,329).

O encontro de Bakhtin, Volochinov e Medvedev ocorreu,provavelmente, na Universidade de Petrogrado, ou São Peters-burgo3 . Nessa universidade, Bakhtin estudou no Departamentode Letras Clássicas, no período 1914-1918, e Volochinov e Med-vedev se formaram na Faculdade de Direito.

Era muito comum na Rússia, nessa época, a cultura dosCírculos. Bakhtin e Volochinov participaram do Círculo de Nevel(1918-1920), e Medvedev se juntou ao grupo no Círculo de Vitebsk(1921-1924), onde foi ser reitor da Universidade Proletária, de-pois de ter sido voluntário do Exército Russo na I Guerra Mun-dial. São dessa época as publicações da fase fenomenológica deBakhtin – “Arte e Responsabilidade” (1919) e “Sobre a Filosofia

3 A cidade de São Petersburgo teve seu nome alterado durante aRevolução Russa para Petrogrado, e posteriormente para Leningrado.Hoje, ela voltou a ser chamada pelo nome anterior a revolução.

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do Ato” (1919-1921)- os quais, numa abordagem ético-fenome-nológica, tratam das relações da vida cotidiana e da vida da artena unidade da pessoa responsável por seus atos.

Em 1922, Medvedev retorna a Petrogrado para trabalharna Editora do Estado. Mais ou menos no mesmo período,Volochinov volta a Universidade de Petrogrado para se graduarna Faculdade de Filologia. Bakhtin consegue ir para Petrogrado,em 1924, após receber uma pensão do estado devido às compli-cações de sua saúde, não sem antes terminar os ensaios “Oautor e o herói” (1922-1924) e “O Problema do conteúdo, doMaterial e da Forma na Criação Literária” (1924).

É em Leningrado, ou no Círculo de Leningrado (1924-1929)conforme aponta a biografia de Michael Holquist e Katerina Clark,que o Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev publica a maioriade seus livros e ensaios. E são, também, essas publicações quese tornaram, posteriormente, alvo da polêmica em torno da au-toria.

Algumas observações sobre Volochinov nessa biografia,levam-nos a duvidar de que ele não seja o autor dos ensaios eobras publicados com seu nome. Durante esse período do Cír-culo de Leningrado, ele se graduou na Faculdade de Filologia daUniversidade de Petrogrado, em 1927, e desenvolveu trabalhosde metodologia dos estudos literários no Instituto de HistóriaComparada de Literatura e Línguas do Oeste e do Leste. EsseInstituto “representava uma “aproximação marxista nova” aosestudos lingüísticos, que contestava outras formas de aborda-gem como a Formalista” (34, 110). Há, ainda, a informação deque Volochinov se tornou marxista no mesmo ano, embora nuncatenha sido membro do partido comunista, e que o tema de suadissertação tenha sido, provavelmente, o problema do discursocitado4 .

4 O problema do discurso citado – enunciado de outrem – é um doseixos fundamentais na articulação da Teoria do Enunciado Concretodesenvolvida pelo Círculo.

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As obras assinadas por Volochinov e Medvedev nesse pe-ríodo caracterizam-se, realmente, por uma aproximação marxis-ta nova dos estudos da linguagem, acrescentando aos estudoshistórico-fenomenológicos de Bakhtin – se pensarmos no todo daobra do Círculo – uma abordagem sociológica – o método socioló-gico- e ideológica – o marxismo- e também um aprofundamentodas críticas à psicologia, à lingüística e ao formalismo, como tam-bém, à aplicação da metodologia dessas disciplinas aos estudosliterários.

É no interior desse projeto que podemos compreender oslivros assinados por Volochinov – Freudianism. A critical Sketch(1927) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), bem como olivro assinado por Medvedev – The Formal Method in LiteraryScholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics (1928),sem nos esquecermos de que essa abordagem já se prenunciavano ensaio “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”(1926), o qual também era assinado por Volochinov. Todos essestextos, além dos outros ensaios de Volochinov – “Beyond the So-cial” (1925) e “The Latest Trends in Linguistic Thought in theWest” (1928) – formam o todo dos textos cuja autoria é atribuídaa Bakhtin, embora nunca tenha havido uma confirmação de suaparte quando indagado sobre esse problema5 .

Essa aplicação do método sociológico, no seu viés marxis-ta, presente nas obras de Volochinov e Medvedev, não aparece naobra de Bakhtin, caracterizada em interação com o marxismo.Ele reconhece a importância do método sociológico e sua aplica-ção à análise da obra literária – e é o que ele faz em Problemas daObra de Dostoievski (1929) e em “Rabelais na História do Realis-mo” (1940), mas não se encontram nessas obras, com sua assi-natura, referências ao marxismo. Talvez tenha sido esse um dosmotivos de sua prisão em 1929 e seu exílio para Kustanai em1930, por quatro anos. E também, o fato de, ao final do exílio, ele

5 No Prefácio de Marxismo e Filosofia da Linguagem, Jakobson incluio ensaio de 1930 – “A estrutura do enunciado” – entre as obras emdisputa (28, 9).

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ter que pedir permissão e obter autorização para qualquer movi-mentação no interior do país, no que contava com a ajuda deMedvedev para interceder em seu favor junto às autoridades.

Durante o período de exílio de Bakhtin, Volochinov de-senvolveu carreira acadêmica como professor do Instituto Peda-gógico Herzen, e como pesquisador senior do Instituto Estatalpara Dialetos Culturais. Com o agravamento da tuberculose,que o acompanhava desde 1914, ele veio a falecer em 1936.

Medvedev se tornou professor titular do Instituto Históri-co e Filológico de Leningrado, do Instituto Pedagógico Herzen –o mesmo onde Volochinov lecionou –, e da Academia MilitarTolmachev, onde foi chefe do Departamento de Literatura. Em1937, ele foi preso durante um expurgo, provavelmente, na Fa-culdade da Academia Militar e veio a falecer em 1941 em localdesconhecido (34, 264-265).

Bakhtin lecionou, a partir de 1936, no Instituto Pedagógi-co da Mordóvia, em Saransk, no Departamento de LiteraturaMundial, onde era o único professor. Apesar do seu passadopolítico, Bakhtin conseguiu fazer conferências sobre Shakespearena Casa da Literatura, em Moscou (1940), e sobre “O Discursono Romance” (1940)6 e “O romance como gênero literário (1941)7

no Departamento de Teoria Literária e Estética do Instituto Gorkida Literatura Mundial, também em Moscou (34, 262).

Em setembro de 1941, quando já era o único sobreviventedo Círculo a que se refere nossa pesquisa, Bakhtin começou alecionar alemão em Savelovo, sendo autorizado a lecionar russo,a partir de setembro de 1945. É nesse período – II Guerra Mun-

6 O ensaio sobre esse tema, com o mesmo nome, tinha sido escrito porBakhtin entre 1934 e 1935 (17).

7 Segundo a biografia de Holquist e Clark, esta conferência foi desdo-brada em dois artigos: “Da Pré-história do discurso romanesco” (1940)e “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)”(1941), que estão incluídos em Questões de Literatura e de Estética. Ateoria do Romance (1993) (20).

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dial – que ele escreve, entre outros ensaios, a sua dissertação dedoutorado para o Instituto Gorki de Literatura, com o título“Rabelais na História do Realismo”8. Holquist e Clark dizem:“Bakhtin nunca foi, formalmente, um estudante graduado peloinstituto, mas ele se beneficiou do direito que tinha de apresentarum trabalho para a pós-graduação, mesmo sem ter feito os estu-dos formais de graduação” (34, 263). Esse fato talvez tenha leva-do a banca examinadora a conceder-lhe o título de “candidato adoutor” (34, 324) quando da apresentação da referida disserta-ção.

Bakhtin retorna a suas funções de professor do InstitutoPedagógico da Mordóvia, em Sarank, no departamento de Litera-tura Geral, aí permanecendo de 1945 a 1961, quando se aposen-ta por problemas de saúde. É dessa época o ensaio “Os gênerosdo Discurso” (1952-1953).

A partir de 1960, um grupo de estudantes do Instituto Gorki,que tinham redescoberto o livro de Dostoievski e a dissertaçãosobre Rabelais nos arquivos deste instituto, começa a fazer es-forços para sua republicação. Ao descobrirem que Bakhtin aindavivia, entram em contato com ele e discutem a possibilidade derepublicação dessas obras. Bakhtin inicia, então, uma revisão dolivro sobre Dostoievski entre 1961 e 1962, o qual é publicadocom sucesso, em 1963, como Problemas da Poética de Dostoiévski.O mesmo ocorre com a sua dissertação sobre Rabelais, publica-da em 1965 com o título A cultura popular na Idade Média e noRenascimento: o contexto de François Rabelais.

Bakthin dedica seus últimos anos à revisão de seus textosque acabam sendo publicados postumamente em Questões deLiteratura e de Estética. A teoria do Romance (1975) e Estética daCriação Verbal (1979), vindo a falecer em 07 de março de 1975após sérias complicações de seu estado de saúde.

8 Uma versão revisada dessa dissertação foi publicada em 1965, com otítulo A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contextode François Rabelais (19)

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Há um assunto que permanece obscuro na história dasobras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a questão daautoria de algumas das obras. Intricados caminhos, que maisparecem uma empreitada para Sherlock Holmes, levam à ques-tão do “inacabamento”, deixando o “diálogo inconcluso” pelaimpossibilidade mesma da assinatura do autor para dar fim àpolêmica.

De um lado pesquisadores como Michael Holquist e KaterinaClark, que em sua biografia de Bakhtin – Mikhail Bakhtin (1984)– assumem que todas os textos disputados são de Bakhtin. Elesapresentam “provas” que confirmam essa hipótese, chegando adizer que não podem revelar certas fontes. Por outro lado pesqui-sadores como I. R. Titunik, Gary S. Morson e Caryl Emerson, quequestionam todas as argumentações de Holquist e Clark, referin-do-se à biografia deles como uma espécie de “hagiografia” e nãouma simples “biografia”, considerando que as obras “disputa-das” são de Volochinov e Medvedev, conforme publicadas na pri-meira edição das obras e artigos em disputa.

Assim, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem éatribuída apenas a Volochinov no original russo (8) e na versãoinglesa (11), e nas edições francesa (9) e brasileira (10) apare-cem com as duas assinaturas – Bakhtin (Volochinov). No prefá-cio dessa obra, Roman Jakobson diz: “Acabou-se descobrindoque o livro em questão e várias outras obras publicadas no finaldos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome deVolochinov – como, por exemplo, um volume sobre a doutrinado freudismo (1927)9 e alguns ensaios sobre a linguagem navida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado10

9 Ver Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch (6).10 Estes ensaios estão publicados em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le

principe dialogique. Suivi de écrits du cercle de Bakhtine: “Le discoursdans la vie e le discours dans la poésie” (5, 181-215); e “La structurede l’énoncé” (16, 287-316) com a assinatura de Volochinov.

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– foram na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975) […] Aoque parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologiada época e certos dogmas impostos aos autores” (28,9)11 .

Na introdução do mesmo livro, Marina Yaguello trata essaquestão como fonte de um desejo de Volochinov e Medvedev,discípulos de Bakhtin, em ajudá-lo, pois devido à oesteomielite,ele estava impossibilitado de trabalhar regularmente (29,11)12 .Valendo-se de argumentos do professor V.V. Ivánov, Yaguelodivulga dois motivos pelos quais Bakhtin aceitara a publicaçãode suas obras sob o nome de seus discípulos: “em primeiro lu-gar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo edi-tor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar doque mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam,então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem demotivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, aoseu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, pare-ce, à sua profunda modéstia científica” (29,12). De qualquermaneira, “é difícil afirmar com exatidão quais as partes do textoque se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov,que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas par-tes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov”(29,13).

Vejamos como alguns pesquisadores brasileiros têm seposicionado sobre essa questão polêmica. O professor BorisSchnaiderman conta que em sua viagem a Rússia, em 1972, teveoportunidade de visitar Bakhtin, acompanhado do semioticistarusso V. V. Ivanov – o mesmo citado por Jakobson e Yaguello.Após esse encontro, Ivanov transmitiu a ele “com muita convic-ção, a versão de que vários livros assinados por membros do

11 Jakobson não faz referência a obra The Formal Method in LiteraryScholarship que também é alvo de disputa. A edição americana aatribui a Bakhtin e Medvedev (7).

12 Os dados constantes da biografia revelam o contrário, Bakhtin sempre,apesar das condições políticas desfavoráveis, conseguiu continuar oseu trabalho.

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grupo de Bakhtin, seriam, na realidade, da autoria deste […] se-gundo Ivanov, no período em que Bakhtin caiu em desgraça13 , oslivros assinados pelos seus amigos propiciaram-lhe alguns re-cursos para a manutenção” (33, 10-11). Para o professor Boris,“esta tese encontrou também alguns opositores. Em todo caso,na minha opinião, torna-se difícil para nós outros, com a nossaindigência bibliográfica, o nosso desconhecimento das circuns-tâncias em que os fatos ocorreram, emitir opinião categórica so-bre este assunto, por mais que simpatizemos com esta ou aquelaversão” (33,20).

Flavio R. Kothe (1977), em “A não-circularidade do Círculode Bakhtine”, critica em nota a atribuição de Marxismo e Filosofiada Linguagem a Bakhtin na edição francesa. Segundo esse pes-quisador, “mesmo que tenha havido uma forte influência de Bakh-tine, há diferenças entre este e Volosinov, diferenças que seriamincoerências caso a tese francesa prevalecesse” (27,19)14 .

Em “Bakhtin e a sabedoria” (1988), Luiz Roncari apresentaa questão da autoria da seguinte maneira: “… creio que umaconsideração de princípio aqui também se faz necessária: é a darelatividade da autoria individual na concepção dialógica deBakhtin. Ele mesmo não se preocupa muito em enclausurar en-tre aspas todas suas citações […] Assume muitas delas, que de-pois encontramos em outros autores, principalmente entre críti-cos e teóricos russos da época, como “idéias do tempo”, idéiasdifundidas e comentadas e que já não se ligam mais a fontes eautores originais” (35,41).

Para Beth Brait (1994), “se restam pouquíssimas dúvidassobre a atribuição das obras a Bakhtin, especialmente por eleser o pensador do grupo, não há como negar que, mesmo a

13 Bakhtin foi preso, em 1929, por motivos religiosos, acusado de cons-pirar contra a revolução (34, 141).

14 O pesquisador se orienta pela edição alemã – Marxismus undSprachphilosophie – que, assim como a edição inglesa – atribui esselivro apenas a Volochinov (27,19)

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circunstância biográfica especial faz retornar, e de forma bas-tante concreta, a questão das vozes que estão disseminadas naconfiguração de um discurso” (41,14). Irene Machado (1995) nomapeamento das obras de Bakhtin revela: “além disso, há osescritos polêmicos que, embora tenham sido publicados com osnomes de V. N. Volochinov e P. N. Miedviediév, acredita-se se-rem de Bakhtin” (43,26).

A polêmica em torno da autoria consegue um feito quemerece destaque: tornar-se um exemplo concreto da própriateoria dialógica que envolve o todo da obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Nesse sentido, é importante consideraro que se chama hoje de Dialogismo como uma obra de váriasvozes – Mikhail Mikhailovich Bakhtin, Valentin NikolaevichVolochinov e Pavel Nikolaevich Medvedev, preservando a auto-ria sob a qual cada obra foi originalmente publicada, ou mesmoeditá-las como fruto do diálogo desses três pensadores comotem ocorrido com algumas dessas obras em edição francesa,inglesa e brasileira.

Embora essa polêmica nunca tenha sido definitivamenteresolvida, não há dúvida do prestígio de Bakhtin, hoje, como umdos mais importantes pensadores do século XX. É em torno desua personalidade que são publicadas biografias e estudos valio-sos sobre a obra do Círculo, buscando ora um princípio dialógico(Todorov), ora uma arquitetônica da respondibilidade ou respon-sabilidade (Holquist), ou, ainda, uma criação da prosaica (Morson),uma teoria da cultura, uma teoria da ideologia etc… enfim, umnúmero infinito de aproximações que só se tornam possíveis quan-do estamos diante da obra dos grandes filósofos.

De qualquer forma, não podemos esquecer da interaçãoorgânica que une Bakhtin, Volochinov e Medvedev, que para nósestá articulada no interior de uma Teoria do Enunciado Concre-to. Nesse sentido, não podemos apagar os nomes de Volochinov ede Medvedev do todo da obra, sob o risco de estarmos sendoprecipitados. Em primeiro lugar, porque eles continuam a apare-cer na capa das obras disputadas, nem que seja entre parênte-

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ses, bem como em outros ensaios de Volochinov que, mesmo nãosendo alvo de disputa, conservam, em grande parte, como todosos escritos do Círculo, uma relação dialógica com a evolução dopensamento teórico do grupo e com suas propostas básicas. Eem segundo lugar, se formos coerentes com a teoria da lingua-gem desenvolvida por esses três pensadores, devemos concordarque o nosso próprio enunciado é um enunciado citado de ou-trem, e a cada momento único em que criamos um enunciado,uma obra, mesmo que repetindo as mesmas palavras do outro,estamos assinando um ato responsável e renovando, não o prin-cípio adâmico da autoria, mas a palavra do outro numa relaçãodialógica de concordância e de evolução.

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O projeto do Círculo encontra suas primeiras formulaçõesem Toward a Philosophy of the Act (1919-1921). Nesse ensaio,Bakhtin investiga a natureza do ato ou da ação em sua realizaçãoefetiva, concreta e apreciativa, por um ato consciente, na realida-de única, concreta e irrepetível, ou seja, a compreensão do ato noseu sentido completo. Essa perspectiva, ética e histórico-fenomenológica, se opõe à divisão entre duas correntes de pensa-mento: a primeira – pensamento abstrato – que propõe uma in-vestigação do sentido objetivo, e a segunda – pensamento idealis-ta – que investiga o processo subjetivo que engendra um ato con-creto.

A interação orgânica entre essas duas correntes de pensa-mento vai encontrar eco no que Bakhtin chama de Arquitetônica.Para ele, o mundo é dividido em uma arquitetônica apreciativaentre o “eu” – o contemplador, que se situa fora da arquitetônicae – e os outros – fundados por esse “eu”, e que se encontram nointerior da arquitetônica. Nesse sentido, Bakhtin define o seuprojeto, que mais tarde será incorporado pelo Círculo, da seguin-te maneira:

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“Não é nossa intenção construir um sistema de valores logica-mente unificado com o valor fundamental – minha participaçãono ser – situada na cabeça, ou, em outras palavras, construirum sistema ideal de vários valores possíveis. Nem propomosfornecer uma transcrição de valores que têm sido realmente, ehistoricamente reconhecidos pela humanidade, com intuito deestabelecer tais relações lógicas entre eles como subordinação,co-subordinação, etc., isto é, com intuito de sistematizá-las. Oque pretendemos fornecer não é um sistema, e nem um inven-tário sistemático de valores, onde conceitos puros (idênticos emconteúdo) estão interconectados na base de uma correlação ló-gica. O que pretendemos fornecer é uma representação, umadescrição da arquitetônica concreta e real do mundo experien-ciado, governado por valores – não com uma base analítica nacabeça, mas com esse centro concreto, real (espacial e tempo-ral) no qual os valores, as asserções, e os atos acontecem ou sedão, e onde os membros constituintes são objetos reais,interconectados por relações de eventos concretos na única ocor-rência do evento do ser (nesse contexto as relações lógicas cons-tituem apenas um momento junto aos momentos concreto, es-pacial, temporal, e emotivo-volitivo)” (2, 61).

Esse projeto de buscar no acontecimento real os funda-mentos de sua teoria já embute uma reflexão em torno da rela-ção eu/outro na esfera de uma arquitetônica do valor, ou“arquitetônica apreciativa”. Nessa arquitetônica, o homem, a suaconsciência, é um centro concreto de valores. Sendo assim, oestético se complementa com o extra-estético, o verbal com oextra-verbal, na unidade do homem que experiencia a vida, aciência e a arte. Para Bakhtin, “tudo neste mundo adquire sig-nificação, sentido e valor somente em correlação com o homem– com isso que é humano” (2, 61). A arquitetônica de um acon-tecimento, por exemplo, um enunciado concreto, não é acabadanem rígida; ela possui estabilidade apenas na criação e narespondibilidade do meu ato.

Essa forma de se relacionar com o mundo, essa estéticaarquitetônica da relação eu/outro se desenvolve na obra do Cír-

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culo como uma Estética da Criação Verbal. A dimensão do criadoreside na esfera do enunciado único e concreto, que tem um au-tor – um criador que se utiliza do dado (a língua, os outros enun-ciados) –, um destinatário – real ou virtual, um gênero do discur-so relacionado com alguma atividade humana, um estilo e umaentonação determinadas no interior de um tema e em interaçãoorgânica com esse gênero do discurso.

Essa representação da arquitetônica real, que MichaelHolquist chama de Arquitetônica da Respondibilidade ou daResponsabilidade, nos fornece a natureza do projeto que serádesenvolvido pelo Círculo: a investigação do enunciado concre-to. É essa visão do particular, do evento único criado – estético– como um acontecimento ético, fenomenológico, histórico, so-ciológico, psicológico, dialógico, etc. que compõe, em linhas ge-rais, o projeto do Círculo e seus desdobramentos.

O eixo que nos permite aprofundar no percurso teórico doCírculo é a investigação do enunciado artístico concreto comoum acontecimento sociológico. É nesse sentido que, durante aleitura das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev,percebemos a presença de um “método sociológico” aplicado àliteratura – poética sociológica, à psicologia – psicologia objeti-va, e à ciência da linguagem – metalingüística. Esse método,anterior a Revolução de 1917, foi desenvolvido por, entre ou-tros, G. V. Plekhanov (1856-1918), com intuito de “fundar uma

nova ciência da literatura baseada nos estudos contemporâ-

neos em sociologia” (1,322-323). Participavam do grupo de

Plekhanov os seguintes críticos: V. M. Friche (1870-1929), P. N.

Sakulin (1868-1930), e V. F. Pereverzev (1882-1958).

Em 1924, no ensaio “O Problema do Conteúdo, do Mate-

rial e da Forma na Criação Literária”, Bakhtin reconhece a im-

portância de tal método, embora pense que seu significado cien-

tífico ultrapasse os limites de uma análise estética: “mas tanto o

elemento ético como também o cognitivo podem ser isolados e

transformados em objeto de uma investigação independente,

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ético-filosófica ou sociológica, o qual pode também tornar-se

objeto de apreciações atuais, morais ou políticas (apreciações

secundárias e não primárias, também indispensáveis para a con-

templação estética)” (4,43).

Ainda nesse ensaio, começam a aparecer referências ao

Método sociológico. Podemos dizer que esse ensaio se situa na

fronteira entre as discussões fenomenológicas e éticas da obra

de arte, isto é, do enunciado artístico concreto, e um enfoque

sociológico do acontecimento ético que transcende os limites daestética, ou seja, extra-estético. Esse método, na concepção deBakhtin, teria as seguintes tarefas:

a) transcrever o acontecimento ético no seu aspecto so-cial, já vivido e avaliado empaticamente na contempla-ção estética;

b) sair dos limites do objeto e introduzir o acontecimentoem ligações sociais e históricas mais amplas; e

c) ultrapassar os limites da análise propriamente estéti-ca. (4, 43).

Esse embrião de aplicação do método sociológico à poéti-ca, ou seja, ao enunciado artístico concreto, será retomado edetalhado nas obras posteriores do círculo, no desenvolvimentode uma poética sociológica, de uma estilística sociológica, deuma psicologia social objetiva, enfim, de uma Sociologia do Dis-curso. Esse ponto de vista exterior ao objeto será utilizado, tam-bém, na problematização de sua aplicação à ciência da lingua-gem.

Discutiremos a seguir alguns aspectos importantes daaplicação do método sociológico, como aparecem na obra deBakhtin, Volochinov e Medvedev, retomando o lugar de umaTeoria do Enunciado Concreto nesse ponto de vista de investi-gação da linguagem artística, científica e cotidiana.

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O ensaio de Volochinov, “Le discours dans la vie et lediscours dans la poésie” (1926) tem por subtítulo “Contributionà une poétique sociologique” e trata das possibilidades de apli-cação desse método aos problemas colocados pela “Poética his-tórica”, ou seja, ao “conjunto de problemas que tratam da formaartística vista sob seus diferentes aspectos (o estilo, etc.)” (5,181).Volochinov critica opinião partilhada por alguns marxistas, deque “o método sociológico é verdadeiramente legítimo quando aforma poética artística, enriquecida pelo aspecto ideológico –isto é, pelo conteúdo –, começa a se desenvolver historicamenteno quadro da realidade social exterior; quanto à forma, tomadanela mesma, ela possui sua natureza própria e se determinasegundo leis específicas, que são artísticas e não sociológicas”(5,181). Essa ruptura entre forma e conteúdo provoca, segundoVolochinov, uma ruptura entre teoria e história, que contraria opróprio fundamento do método marxista – o seu monismo, ouseja, o que se aplica ao todo pode ser aplicado às suas unida-des, e o seu historicismo. A forma e o conteúdo estão, na pers-pectiva do Círculo, sempre em interação orgânica.

Nesse mesmo ensaio, Volochinov analisa uma obra do pro-fessor Sakulin15 – O método sociológico nos estudos literários –de 1925, na qual Sakulin distingue dois pontos de vista paraestudar a literatura e sua história: 1) a série imanente (interior)– que possui uma estrutura e uma determinação específicas epróprias, e que evoluem de forma autônoma, segundo sua na-tureza; e 2) a série causal – ação do meio social extra-artístico. Oprimeiro deve ser estudado pelo método formal, e o segundo,que considera a literatura como um fenômeno social, deve ter asua causalidade estudada pelo método sociológico.

Volochinov propõe, então, um outro viés marxista para ométodo sociológico, no sentido de dotar a estrutura “imanente”do enunciado artístico de uma orientação sociológica. Para ele,“a ciência da ideologia, de acordo com a essência do objeto que

15 Como já informamos anteriormente, P. N. Sakulin fazia parte dogrupo de Plekhanov.

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ela estuda, não pode pretender o rigor e a precisão das ciênciasnaturais. Mas, voltada ao método sociológico, entendido segundosua acepção marxista, ela permite, pela primeira vez, que nosaproximemos bem perto de um estudo verdadeiramente cientí-fico das produções ideológicas… As formações ideológicas sãode natureza sociológica de maneira intrínseca e imanente. (5, 184).

Começa a se instaurar no percurso teórico do Círculo umaSociologia do Discurso, entendendo-se aqui “formações ideoló-gicas” como uma semente do que, mais tarde, será chamado deGêneros do discurso. A estética, entendida como uma formaçãoideológica, é para Volochinov, uma variedade do social. Assim, ateoria da arte só pode ser uma sociologia da arte (5, 185). Parauma aplicação correta e fecunda da análise sociológica na teo-ria da arte, Volochinov propõe que se renuncie a duas concep-ções redutoras da estética:

a) a fetichização da obra de arte como coisa; o criador eos receptores estão fora do campo de estudo, reduçãoao estudo do material;

b) o psiquismo individual do criador e do receptor.

No caso da primeira concepção estaríamos no interior dopensamento abstrato e de suas análises formalistas e lingüísti-cas; e na segunda, encontraríamos a abordagem estilística tra-dicional do pensamento idealista, as quais serão criticadas emquase todas as obras do Círculo.

Para se contrapor a essas duas concepções, que tentamdescobrir o todo na parte, Volochinov descreve, assim, a natu-reza da poética sociológica:

1) na realidade, o fato “artístico” considerado na sua to-talidade não reside nem na coisa nem no psiquismo docriador, tomado isoladamente, nem no psiquismo doreceptor, mas ele contém esses três aspectos. O fato

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artístico é uma forma particular e fixada na obra dearte por uma relação recíproca entre o criador e os re-ceptores;

2) a “comunicação artística” se enraíza na infraestruturaque ela reparte com as outras formas sociais, mas elaconserva, não menos do que essas outras formas, umcaráter próprio: ela é um tipo particular de comunica-ção que possui uma forma que lhe é própria e bem es-pecífica. Assim, a tarefa da poética sociológica é compre-ender esta forma particular de comunicação social quese encontra realizada e fixada no material da obra dearte.(5,187).

Toda essa problematização, visando compreender a obrade arte enquanto objeto de comunicação, enquanto um deter-minado gênero do discurso, aparecerá em toda a obra do Círcu-lo em torno de uma Teoria do Enunciado Concreto, na qualpodemos compreender o fato artístico como um enunciado ar-tístico concreto.

Ao inserir a obra de arte numa relação de comunicação“artística” – o todo da obra, Volochinov a define, sociologica-mente, pelas seguintes características:

� produto da interação criador/receptor;

� momento essencial do acontecimento que constitui essainteração;

� não é uma obra isolada, participa enquanto unidadedo fluxo da vida verbal;

� reflete a infraestrutura econômica geral;

� participa, juntamente com as outras formas de comu-nicação, de um processo de interação e de trocas deformas.16

16 Essas mesmas características estarão presentes na articulação dosconceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e

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Essa perspectiva de análise do todo, pelo método sociológi-co em seu viés volochinoviano, orienta a evolução do pensamentoético-fenomenológico desenvolvido anteriormente por Bakhtin e,também, as críticas formuladas pelo Círculo ao formalismo lin-güístico e às concepções psicológicas abstratas: “a essência con-creta, sociológica do discurso, que sozinha determina sua verda-de ou sua falsidade, sua baixeza ou sua grandeza, sua utilidadeou inutilidade, resta, ainda que abordada de uma ou outra ma-neira, incompreensível e inacessível” (5, 198). E é em busca dacompreensão dessa essência que os pensadores russos irãodespender esforços no sentido de encontrar formulações teóricasadequadas à investigação desse fenômeno.

Ainda nesse ensaio de 1926, começa a se definir o aspectoextralingüístico do enunciado concreto. O enunciado comporta,por um lado, um aspecto verbal – a língua, a palavra, e, por outrolado, um aspecto extra-verbal – o horizonte espacial comum (deum determinado grupo social); o conhecimento e a compreensãoda situação, e o valor comum. O aspecto extra-verbal, ou seja, asituação de produção do enunciado “se integra ao enunciado comoum elemento indispensável à sua constituição semântica” (5, 191).

Aparece aqui, também, a distinção entre enunciado cotidi-ano e enunciado artístico, fundamental para o desenvolvimentode uma poética sociológica e a articulação posterior entre gê-neros do discurso primários e secundários no interior de umaSociologia do Discurso e de uma Arquitetônica da Representação.

Um outro tema importante de uma Teoria do EnunciadoConcreto é a que trata desse enunciado como um acontecimentosubjetivo, ou seja, um enunciado interior. Isso implica num certoponto de vista em relação à psicologia. Esse viés da teoria orien-ta-se por uma crítica à teoria freudiana, realizada por Volochinovno livro Freudianism. A Critical Sketch (1927), cujo objetivo é apli-car um “ponto de vista dialético e sociológico” à psicologia, bus-cando compreender o comportamento humano a partir de um

Entonações, os quais, em conjunto, formam o alicerce do EnunciadoConcreto, seja ele artístico, científico ou cotidiano.

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viés sociológico objetivo, o que redunda numa “psicologia objeti-va”.

Para Volochinov , a psicologia freudiana orienta-se porum tipo especial de interpretação dos enunciados, que pretendepenetrar nos níveis profundos da alma. Ele faz as seguintes crí-ticas à psicologia freudiana:

1) não toma os enunciados no seu aspecto objetivo;

2) não procura raízes fisiológicas17 ou sociais nesses enun-ciados; e

3) procura encontrar os motivos do comportamento nointerior dos enunciados (o paciente dá informação so-bre o inconsciente). (6, 76)

Ele justifica da seguinte forma as suas críticas: “qualquerproduto da atividade do discurso humano – do simples enuncia-do cotidiano aos trabalhos elaborados da arte literária – derivaem forma e significação, em todos os seus aspectos essenciais,não das experiências subjetivas do falante, mas da situação so-cial na qual o enunciado aparece. A língua e suas formas sãoprodutos de uma prolongada comunicação social entre os mem-bros de uma dada comunidade discursiva” (6, 79).

Analisando a sessão psicanalítica como um tipo de rela-ção de comunicação entre um médico e um paciente, ou seja,um gênero de discurso determinado, Volochinov formula a se-guinte crítica ao produto dessa relação: “o que é refletido nessesenunciados não é a dinâmica da psique individual mas a dinâ-mica social das inter-relações entre o doutor e o paciente. Aquiestá a origem para o drama da construção freudiana” (6, 79-80).Ele propõe, então, que se atinja as raízes das reações verbais,ou seja, do comportamento, “com a ajuda de métodos objetivos-

17 Eles se referem aqui ao processos fisiológicos no sistema nervoso enos órgãos de fala e de percepção que compõem, no interior dapsicologia, as reações verbais. (6, 21).

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sociológicos que o marxismo criou para a análise de vários sis-temas ideológicos: lei, moral, ciência, mundo exterior, arte e re-ligião” (6,87). A concepção de psicologia que norteia as formula-ções teóricas do Círculo, traz no seu bojo, então, uma perspec-tiva sociológica.

Após essa crítica à psicologia, um outro livro do Círculo,The Formal Method in Literary Scholarship (1928), assinado porBakhtin/Medvedev, vai centrar suas críticas no formalismo e suaaplicação nos estudos literários. Como sempre que o Círculo vaidiscutir um enunciado secundário, ou como nesse caso, um enun-ciado literário, a base concreta da reflexão é o enunciado cotidia-no, aqui chamado enunciado prático. Para os teóricos russos, “aliteratura se funda na interação real e ativa com outras esferasda ideologia, no mínimo com todos os enunciados práticos” (7,103).

Essa outra obra tem por subtítulo “A Critical Introduction toSociological Poetics”. Aqui, Bakhtin/Medvedev reclama da faltade “uma doutrina sociológica desenvolvida das característicasdistintas do material, da forma, e propósitos de cada área dacriação ideológica” (7, 3).

A partir de uma base marxista, ele propõe o desenvolvi-mento de “um método sociológico específico que pode ser adapta-do às características de diferente áreas ideológicas, no sentido dedar acesso a todos os detalhes e sutilezas das estruturas ideoló-gicas” (7, 4). Esse também era o objetivo de Volochinov: cada áreada criação ideológica deve ser entendida, do ponto de vista deuma Sociologia do Discurso, como um gênero do discurso deter-minado, e a sua compreensão e análise deve levar em conta essaespecificidade.

Esse método sociológico, que já apresentamos anteriormentena concepção do professor Sakulin, o qual distingue duas con-cepções autônomas – a série imanente e a série causal –, se ca-racteriza aqui, como em Volochinov, pela interação entre a histó-ria da literatura e a poética sociológica. Essa formulação é im-possível para o professor Sakulin. Já para Medvedev, “a poética

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fornece direções à história da literatura na especificação da pes-quisa material e nas definições básicas de suas formas e tipos. Ahistória da literatura completa as definições da poética, tornan-do-as mais flexíveis, dinâmicas e adequadas à diversidade domaterial histórico” (7,30).

Esse caráter complementar entre pontos de vista, um utili-zando os resultados das análises do outro é uma característicaconstante das obras do Círculo e de sua articulação em torno deum pensamento concreto que leva em consideração as contribui-ções dos pensamentos abstrato e idealista.

As tarefas da poética sociológica, para Bakhtin/Medvedev,são as seguintes:

1) especificação: isolar a obra literária e revelar sua es-trutura;

2) descrição: determinar as formas possíveis e variaçõesdessa estrutura;

3) análise: definir seus elementos e suas funções. (7,33)18

Até aqui, o Círculo já direcionou suas críticas, sempre apartir de uma concepção específica do método sociológico, à esté-tica, à psicologia e ao método formal. Agora, uma outra ciência setorna alvo das indagações de Bakhtin/Volochinov/Medvedev: aciência da linguagem.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/Volochinov coloca um subtítulo – “Problemas fundamentais doMétodo Sociológico na Ciência da Linguagem” – que provoca umarelação dialógica com as obras anteriores. Definido o ponto devista – o método sociológico no seu viés marxista – os componen-tes do Círculo vão alternando os gêneros do discurso científicos a

18 Essas tarefas são devenvolvidas, posteriormente, nas duas obras deaplicação da poética sociológica: Problemas da Poética de Dostoiévskie A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto deFrançois Rabelais.

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serem criticados: ora a Estética, ora a Psicologia, agora a Filoso-fia da Linguagem19 .

Tendo como interlocutores o Marximo e a Filosofia da Lin-guagem, Bakhtin/Volochinov diz que “a única maneira de fazercom que o método sociológico marxista dê conta de todas as pro-fundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas“imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebi-da como filosofia do signo ideológico. E essa base de partida deveser traçada e elaborada pelo próprio marxismo” (10,38). Nessesentido, Bakhtin/Volochinov observa as seguintes regras meto-dológicas:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo(colocando-a no campo da “consciência” ou em qual-quer outra esfera fugidia e indefinível).

2. Não dissociar o signo das formas concretas da comuni-cação social (entendendo-se que o signo faz parte deum sistema de comunicação social organizada e quenão tem existência fora deste sistema, a não ser comoobjeto físico).

3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua basematerial (infra-estrutura) (10, 44).

Uma outra tarefa do marxismo se refere a uma concepçãonova da psicologia, ou seja, de uma psicologia objetiva: “uma dastarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir umapsicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus fundamen-tos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos, mas SOCIO-

19 Estamos levando em consideração o fato de cada um desses discursoscientíficos serem o tema central de um determinado ensaio ou livro.Mas não podemos esquecer que em todos eles há uma interaçãoorgânica no que se refere ao Enunciado concreto. Assim sendo, aofalar da Filosofia da Linguagem são abordadas também, dessaperspectiva, os outros discursos científicos como a Estética, aPsicologia, o Formalismo, a Sociologia, o Marxismo, etc.

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LÓGICOS” (10, 48). É com base nessa psicologia que o Círculovai analisar o enunciado interior.

Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve nesse livroa estrutura “sociológica” do enunciado, seja ele interior, exterior,ou de outrem, contrapondo-a ao ponto de vista lingüístico e esti-lístico então dominantes nos estudos da linguagem, e que repre-sentavam as correntes de pensamento abstrato e idealista, ouobjetivismo abstrato e subjetivismo idealista, respectivamente,como veremos mais tarde.

A coerência metodológica entre as obras do Círculo quantoà forma de aplicação do método sociológico fica evidente na intro-dução ao livro Problemas da obra de Dostoievski (1929). Bakhtindefine assim os propósitos de sua análise: “en la base de nuestroanálisis está la convicción de que toda obra literaria tiene interna-mente, inmanentemente, un caráter sociológico. En ella se cruzanlas fuerzas sociales vivas, y cada elemento de su forma está im-pregnado de valoraciones sociales vivas. Por eso también unanálisis puramente formal ha de ver en cada elemento de la es-tructura artística el punto de refracción de las fuerzas vivas de lasociedade, cual un cristal fabricado artificialmente cuyas facetasse construyeron y se pulieron de tal manera que puedan refractarlos determinados rayos de las valoraciones sociales, y refractarlosbajo un determinado ángulo” (12, 191), ou seja, um ponto de vistaconsideravelmente adequado ao viés marxista adotado pelos ou-tros dois membros do Círculo20 .

20 Em entrevistas publicadas no jornal Chelovek (1993) datadas de 1973-74, Bakhtin rememora sua juventude, na descrição de Caryl Emerson:“Bakhtin claims he had always wanted to be a moral philosopher, a“myslitel” (thinker); literary scholarship was for him a safe refuge frompolitics during those years when others were being harassed,“organized,” recruited. He insists that as a young college student inPetrograd he had been “absolutely apolitical.” He lamented not onlythe October Revolution but the prior February abdication as well; hepredicted that it would end badly and “extremely”; he went to nomeetings, profoundly distrusted Kerensky, and continued to sit in

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Problematizar uma poética sociológica implica considerarcomo sociológicos todos os elementos envolvidos no interior des-sa poética. É assim que, analisando o discurso no romance, noensaio de mesmo nome (1934-1935), Bakhtin diz que “a únicaestilística adequada para esta particularidade do gênero roma-nesco é a estilística sociológica. A dialogicidade interna do dis-curso romanesco exige a revelação do contexto social concreto, oqual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu“conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas dedentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, emtodos os seus elementos, sejam eles de “conteúdo” ou de “forma””(17, 105-106).

A união orgânica de uma poética sociológica com umaestilística sociológica permite a Bakhtin realizar um dos seus maisambiciosos projetos: um estudo sociológico da heterogeneidadediscursiva representada na obra literária e da heterogeneidadereal da cultura popular no seu livro A cultura popular na IdadeMédia e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1940;1965). Situando esse período histórico no limite de três línguas –latim clássico, latim medieval e as línguas nacionais, Bakhtinnos diz que “nos limites das três línguas, a consciência do tempodevia tomar formas excepcionalmente agudas e originais. A cons-ciência viu-se na fronteira das épocas e das concepções de mun-do, pôde, pela primeira vez, abarcar largas escalas para medir ocurso do tempo, sentir com cuidado o seu “hoje” tão diferente davéspera, as suas fronteiras e perspectivas. (20, 412).

E ainda, retomando a sua opção pelo pensamento concre-to, ele diz: “as línguas são concepções do mundo, não abstratas,mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema das aprecia-ções, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Porisso, “cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada aprecia-

libraries and read books. The image of a learned, apolitical, urbane,witty, fastidious and aristocratic young Bakhtin that emerges from thesememoirs is in some tension, of course, with the mass-oriented Bakhtinpopular in Western radical circles” (45, 108).

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ção, cada entoação, encontra-se no ponto de interseção das fron-teiras das línguas-concepções do mundo, é englobado numa lutaideológica encarnecida. Nessas condições excepcionais, torna-seimpossível qualquer “dogmatismo lingüístico e verbal”, qualquer“ingenuidade verbal” (20, 415).

Pelo percurso teórico aqui mencionado, podemos elaboraruma base teórica para reflexão em torno de uma Teoria do Enun-ciado Concreto, seja ele, cotidiano, artístico ou científico. Toda ainvestigação desses gêneros de enunciado, ou gêneros do discur-so, deve levar em conta os aspectos éticos, fenomenológicos, his-tóricos, ideológicos, sociológicos e dialógicos em interação orgâ-nica. Nesse percurso teórico, poderíamos dizer que se encontra ocronotopo21 para a construção da Metalingüística, ou seja, deuma disciplina que empreenda uma investigação verdadeiramentecientífica do enunciado concreto22 .

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Um problema que se coloca para quem estuda as obrasdos teóricos russos em português é o da tradução e da falta deuniformidade terminológica. Se estudamos a obra do interior delamesma, percebemos o sentido que aí adquire um determinadoconceito. Mas é na relação com as outras obras do círculo quealguns conceitos ficam comprometidos, visto que em uma obra

21 Para Bakhtin, o cronotopo (tempo-espaço), termo emprestado dasciências matemáticas, é “a interligação entre as relações espaciais eas relações temporais” (19, 211).

22 A busca de uma investigação científica do enunciado, ou num sentidolargo, de um determinado domínio da cultura, já era prenunciada emToward a Philosophy of the Act, quando Bakhtin dizia que uma “filosofiacientífica só pode ser uma filosofia particular, isto é, uma filosofiados vários domínios da cultura e de sua unidade na forma de umatranscrição teórica de dentro dos objetos da criação cultural e da leiimanente de seu desenvolvimento” (2, 19).

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ele é representado por x e em outra por y, o que de certa formapode dificultar a compreensão ativa do conjunto da obra.

Isso pode se dever ao fato de que cada edição brasileira temum tradutor diferente, além de derivar ora do original russo, orada tradução francesa, recorrendo, às vezes, à tradução inglesa,conforme apresentamos a seguir, em ordem cronológica de pu-blicação da primeira edição:

� Bakhtin, M. (Volochinov) (1979). Marxismo e Filosofiada Linguagem. Trad. do francês (edição de 1977) comrecorrências constantes à edição americana de 1973,por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira;

� Bakhtin, M. (1981). Problemas da Poética de Dostoiévski.Trad. do original russo (edição de 1972), por Paulo Be-zerra;

� Bakhtin, M. (1987). A cultura popular na Idade Média eno Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.da edição de francesa de 1970, por Yara Frateschi;

� Bakhtin, M. (1988). Questões de Literatura e de Estéti-ca. A teoria do romance. Trad. do original russo de 1975,por uma equipe de tradutores formada por Aurora F.Bernardini e outros; e

� Bakhtin, M. (1992) Estética da Criação Verbal. Trad.do francês, por Maria Ermantina G. B. Gomes Pereira.

Enquanto Bakhtin se diz interessado pela “variação ter-minológica” que abrange “um único e mesmo fenômeno”, asedições brasileiras revelam uma “variação terminológica” parauma única e mesma palavra russa, comprometendo a unidadetemática que orienta as formulações teóricas do Círculo, preci-samente no que se refere a uma Teoria do Enunciado Concreto.

A importância que o pensamento do Círculo vem adqui-rindo nos estudos lingüísticos brasileiros implica a necessidadede iniciar um processo de discussão em torno da terminologia e

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dos conceitos que articulam as suas formulações teóricas. Se,por um lado, a língua russa é inacessível para a maioria dospesquisadores, por outro, existe a possibilidade de comparartraduções em outras línguas, bem como comparar os conceitoscom as outras obras do Círculo publicadas em português.

Para demonstrar o problema, escolhemos as palavras rus-sas vyskazyvanie e rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quaisestão diretamente relacionadas ao tema de nossa dissertação. Aprimeira palavra foi traduzida, nas edições francesa e brasileiradas obras do Círculo, ora por enunciado ora por enunciação, e asegunda por gêneros do discurso – ou apenas gênero, além demodos de discurso, categorias de atos de fala, fórmulas, etc.

O que acontece nas edições brasileiras das três obras ondeencontramos esse problema é uma falta de critério quanto à tra-dução por um ou outro conceito. Isso acontece, provavelmente,porque cada obra tem um tradutor ou equipe de tradutores dife-rentes, o que de certa maneira dificulta um acompanhamentoaprofundado de outras obras do Círculo que não aquela que éobjeto da tradução.

A primeira obra que apresenta esse problema é Marxismo eFilosofia da Linguagem (1979), assinadas por Bakhtin eVolochinov. Nessa edição traduziu-se o conceito vyzkazyvaniepor enunciação, em todas as ocorrências, conforme justifica emnota a tradutora francesa Marina Yaguello:

Rappelons que le russe jazyk désigne le langage, la langue, et lalangue-organe, le russe rec désigne la parole, la langue, le langage,le discours. J´ai traduit jazyk tantôt par “langage” comme dans letitre, tantôt par “langue”. Cependant, por supprimer l´ambiguité,Bakhtine a fourgé un nom composé: jazyk-rec (le langage) qu’iloppose à jazyk kak sistema form (la lange) et vyskazyvanje(l’énonciation ou acte de parole) (N.d.t.) (9, 90).

Comparando as citações de Marxismo e Filosofia da Lin-guagem que localizamos na obra de Todorov Mikhail Bakhtine. Le

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principle dialogique. (1981)23 com as da edição de Yaguello, en-contramos no lugar de enunciação, o conceito enunciado, articu-lado no interior de uma Teoria do Enunciado que é desenvolvidano capítulo 4 do referido livro:

L’énoncé se construit entre deux personnes socialementorganisées, et s’il n’y a pas d’interlocuteur réel, on le présupposeen la personne du représentant normal, pour ainsi dire, du groupesocial auquel appartient le locuteur. Le discours est orienté versl’interlocuteur… (30, 70)

En effet, l’énonciation est le produit de l’interaction de deuxindividus socialement organisés et, même s’il n’y a pas uninterlocuteur réel, on peut substituer à celui-ci le représentantmoyen du groupe social auquel appartient le locuteur. Le mots’adresse à un interlocuteur… (9, 123)

Todorov reserva o conceito enunciação para se referir aocontexto de produção do enunciado, ao “contexto de enunciação”(30, 68), ou ainda à interação verbal24 , articulando, no interior daobra do Círculo, uma Teoria do Enunciado e não uma Teoria daEnunciação como aparece na tradução de Yaguello.

Na edição da obra de Bakhtin Problemas da Poética deDostoiévski (1981), traduzido do russo por Paulo Bezerra, encon-tramos os dois conceitos – enunciado e enunciação – sendo que,na comparação com a edição francesa – La Poétique de Dostoievski(1970)- descobrimos que aí enunciação se apresenta como énoncé

23 As traduções do russo constantes no livro de Todorov foram feitaspor Georges Philippenko com a coloboração de Monique Canto. (31,177)

24 Essa relação é apresentada no Prefácio de Estética da Criação Verbal:“é nos mesmos anos que Bakhtin se empenha em lançar as bases deuma nova lingüística, ou, como dirá mais tarde, “translingüística” (otermo em uso hoje seria antes “pragmática”), cujo objeto já não émais o enunciado, mas a enunciação, ou seja, a interação verbal”(39, 15)

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– enunciado – em quase todas as ocorrências, como mostra oexemplo abaixo:

Sempre que no contexto do autor há um discurso direto, ode um herói, por exemplo, verificamos nos limites de um con-texto dois centros do discurso e duas unidades do discurso: aunidade da enunciação do autor e a unidade da enunciação doherói. (13, 162)

La où, dans le texte d’un auteur, interviént le discours direct,celui d’un personnage par exemple, nous trouvons à l’intérieur d’unseul contexte deux centres, deux unités de discours: l’énoncé del’auteur et l’énoncé du héros. (14, 244-245)

Finalmente, no livro de Bakhtin Questões de Literatura ede Estética. A teoria do romance (1993), traduzido do russo, loca-lizamos no ensaio “O discurso no romance”, de 1934-1935, tam-bém, a presença dos dois conceitos: enunciado e enunciação.Nesse caso, comparamos com a edição francesa Esthétique etthéorie du Roman (1994) onde encontramos, também, os concei-tos énoncé e énonciation. O problema é que na maioria das ocor-rências não existe coincidência entre as duas traduções.

Há casos em que a ocorrência enunciação em portuguêsaparece como énoncé na edição francesa:

O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, éum plurilinguismo dialogizado, anônimo e social como lingua-gem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado comoenunciação individual. (17, 82).

Le véritable milieu de l’énoncé, lá ou il vit et se forme, c’est lepolylinguisme dialogisé, anonyme et social comme le langage, maisconcret, mais sature de contenu, et accentué comme un énoncéindividuel. (18, 96).

Também há ocorrências em que nas duas edições encon-tramos o conceito enunciação/énonciation, mas a ocorrênciaenunciado é a que aparece mais vezes:

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A filosofia da linguagem, a lingüística e a estilística postulamuma relação simples e espontanêa do locutor em relação à “suaprópria” linguagem, única e singular, e uma realização simplesdessa linguagem na enunciação monológica do indivíduo (17, 80).

La philosophie du langage, la linguistique et la stylistique,postulent une relation simple et spontanée du locuteur à “sonlangage à lui”, seul et unique, et une réalisation de ce langagedans l´énonciation monologique d’un individu (18, 94).

Nas duas outras obras do círculo, assinadas por Bakhtin,que estão publicadas no Brasil – A cultura popular na IdadeMédia e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987)e Estética da Criação Verbal (1992) não existe esse problema,sendo que nesta última, no ensaio “Os gêneros do discurso”,toda a segunda parte é dedicada ao enunciado, tendo por título“O enunciado, unidade da comunicação verbal”, não havendo aíqualquer ocorrência de enunciação:

O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade realda comunicação verbal, também deve permitir compreendermelhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis-tema): as palavras e as orações. (21, 287).

L’étude de l’énoncé, en sa qualité d’unité réelle de l’échangeverbal, doit permettre aussi de mieux comprendre la nature desunités de langue (de la langue en tant que système) – les motset les propositions. (21a, 272).

Enquanto conceito, ou seja, enquanto um elemento do dis-curso científico na tradição dos estudos lingüísticos a partir deBenveniste, enunciado e enunciação tem acepções diferentes:enquanto enunciado se refere ao produto do discurso, enuncia-ção se refere ao processo ou “situação” de discurso. Ou maisexplicitamente, como afirma Benveniste no artigo “O aparelhoformal da enunciação”: “é o ato mesmo de produzir um enuncia-do, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (36, 82). Essa

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distinção entre produto e processo não encontra eco na obra doCírculo, onde o todo do enunciado concreto compreende o pro-duto – o material verbal – e o processo – a situação – em interaçãoorgânica. Para o Círculo, o enunciado concreto é um elo da ca-deia de comunicação verbal, ou seja, ele é produto – um aconte-cimento único na existência – e processo – uma unidade da ca-deia de comunicação verbal – simultaneamente.

Embora esse contexto científico, a Teoria da Enunciaçãode Benveniste, seja posterior a maioria das obras do Círculo nasquais ocorre o problema, sem dúvida ele tem grande importânciano fluxo da obra do Círculo no Ocidente, e, principalmente, emtrês dos seus divulgadores na França: Julia Kristeva25 , MarinaYaguello e Tzvetan Todorov26 , todos eles com forte ligação e en-volvidos com as idéias de Benveniste em relação a enunciação.

O outro problema relacionado com a tradução, trata dapalavra russa rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais de-saparecem da obra de Bakhtin/Volochinov Marxismo e Filosofiada Linguagem (1929). Nesse obra, a interação orgânica entre osconceitos enunciado, diálogo e gêneros do discurso se desintegra.

Logo no segundo capítulo que trata da relação entre a infra-estrutura e as superestruturas, os teóricos russos dizem o se-guinte: “Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação edo diálogo, abordaremos, também, o problema dos gêneros lin-güísticos”(10, 43). Comparando com a tradução inglesa – “lateron, in connection with the problem of the utterance and dialogue,we shall again touch upon the problem of speech genres” (11,40), percebemos que enunciado – utterance – se torna enunciação

25 Foi Julia Kristeva que, em 1966, introduziu a obra de Bakhtin naFrança, como demonstra François Dosse em seu História doEstruturalismo vol. 2 (42, 74-76).

26 Todorov chega a promover uma relação dialógica entre o ensaio “Se-miologia da Língua” (1969), de Benveniste, e os “Apontamentos 1970-1971” (24), de Bakhtin, sugerindo que esse possa ter emprestado aBenveniste a noção de interpretante. (30, 81).

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e gêneros do discurso – speech genres – se torna gêneros lingüísti-cos, e mais tarde, modos de discurso, categorias de atos de fala,discursos menores, modelagem, fórmulas, fórmulas estereotipa-das, enfim, tantas acepções que a importância desse conceito nocontexto do interior dessa obra, e, mais ainda, na sua relaçãocom as outras obras do círculo se desintegram de sua interaçãoorgânica com o enunciado concreto.

Nesse sentido, resolvemos comparar as citações que apre-sentam essa dificuldade de tradução, recorrendo à forma queelas aparecem citadas em um outro ensaio de Volochinov “Lastructure de l’énoncé” (1930), deixando em nota, a forma queadquirem na edição americana:

(1) La question bien formée, l’exclamation, l’ordre, la prière, voilàles formes les plus typiques d’énoncés de la vie quotidienne,qui soient des totalités. Ils exigent tous – et, surtout, l’ordre etla prière – un complément extra-verbal, mais aussi bien uncommencement de nature elle-même extra-verbale. Chacun deces petis genres d’énoncés, qui ont cours dans le quotidien,suppose, pour être accompli, que le discours soit en contactavec le milieu extra-verbal, d’une part, et le discours d’autrui,d’autre part (16, 290).

(1a) Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido sãoenunciações completas típicas da vida corrente. Todas (parti-cularmente as ordens, os pedidos) exigem um complementoextraverbal assim como um início não verbal. Esses tipos dediscursos menores da vida cotidiana são modelados pela friçãoda palavra contra o meio extravebal e contra a palavra dooutro (10, 124)27 .

27 “The full-fledged question, exclamation, command, request – these arethe most typical forms of wholes in behavioral utterances. All of them(especially the command and request) require an extraverbalcomplement and, indeed, an extraverbal commencement. The very typeof structure these little behavioral genres will achieve is determinedby the effect of its coming up against the extraverbal milieu and againstanother word (i.e., the words of other people)” (11, 96).

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(2) Ainsi, la façon dont est formule un ordre est déterminée par leséléments qui peuvent faire obstacle à la réalisation de celui-ci,par le degré de soumission qu’il peut rencontrer, etc. Le genreprend donc sa forme achevée dans les traits particuliers,contingents et uniques, qui définissent chaque situation vécue(16, 290-291).

(2a) Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos queela pode encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. Amodelagem das enunciações responde aqui a particularida-des fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente”(10, 125)28

(3) Mais on ne peut parler de genres constitués, propres audiscours quotidien, que si l’on est en présence de formes decommunication qui soient, dans la vie quotidienne, quelque peustables et fixées par le mode de vie et les circonstances (16,291).

(3a) Só se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos nodiscurso da vida cotidiana quando existem formas de vidaem comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo usoe pelas circunstâncias” (10, 125)29 .

(4) Ainsi, on peut observer un type de genre constitué, tout à faitspécifique dans le bavardage de salon: cette conversationsuperficielle, qui n’engage à rien, entre gens du même monde,où le seul critère qui différencie ceux qui y ont part – l’auditoire– est la distinction entre hommes et femmes. Là s’élaborentdes formes spécifiques de discours: l’allusion, les sous-entendu,la répétition de petits récits connus de tous comme frivoles, etc.(16,291).

28 “Thus, the form of a command will take is determined by the obstaclesit may encounter, the degree of submissiveness expected, and so on.The structure of the genre in these instances will be in accord with theaccidental and unique features of behavioral situations” (11, 96).

29 “Only when social custom and circumstances have fixed and stabilizedcertain forms in behavioral interchange to some appreciable degree,can one speak of specific types of structure in genres of behavioralspeech” (11, 96-97).

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(4a) Assim, encontram-se tipos particulares de fórmulas estereo-tipadas servindo às necessidades da conversa de salão, fútil eque não cria nenhuma obrigação, em que todos os partici-pantes são familiares uns aos outros e onde a diferença prin-cipal é entre homens e mulheres. Encontram-se elaboradasformas particulares de palavras-alusões, de subentendidos,de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma im-portância, etc.” (10, 125)30 .

(5) Un autre type de genre constitué se forme aussi dans la con-versation entre mari et femme ou entre frère et soeur. Suppo-sons une file d’attente, où se trouvent réunis par hasard desgens de catégorie sociale différente, dans une administrationquelconque, ou en quelque lieu que ce soit, on entendra, danschaque cas, des déclarations et des répliques qui se distin-guent radicalement les unes des autres par leur début, leur finet la structure même des énoncés qui les composent. Les veillésvillageoises, les sautreies dans les villes, les entretiens desouvriers pendant la pause de midi connaissent des types degenre qui leur sont propres (16,291).

(5a) Um outro tipo de fórmula elabora-se na conversa entre mari-do e mulher, entre irmão e irmã. Pessoas inteiramente estra-nhas umas às outras e reunidas por acaso (numa fila, numaentidade qualquer) começam, constroem e terminam suas de-clarações e suas réplicas de maneira completamente diferen-te. Encontram-se ainda outros tipos nos serões no campo,nas quermesses populares na cidade, na conversa dos operá-rios à hora do almoço, etc.” (10, 125-126)31 .

30 “So, for instance, an entirely special type of structure has been workedout for the genre of the light and casual causerie of the drawing roomwhere everyone “feels at home” and where the basic differentiationwithin the gathering (the audience) is that between men and women.Here we find devised special forms of insinuation, half-saying, allu-sions to little tales of an intentionally nonserious character, and so on.”(11,97).

31 “A different type of structure is worked out in the case of conversationbetween husband and wife, brother and sister, etc. In the case wherea random assortment of people gathers – while waiting in a line or

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(6) Toute situation de la vie quotidienne possède un auditoire, dontl’organisation est bien précise, et dispose donc d’un répertoirespécifique de petits genres appropriés. Dans chaque cas, legenre quotidien s’adapte au sillon que la communication so-ciale paraît avoir tracé por lui – et cela, pour autant qu’il repré-sente le reflet idéologique du type, de la structure, du but et de laconstitution propres aux rapports de communication sociale (16,291).

(6a) Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui umauditório organizado de uma certa maneira e conseqüente-mente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. Afórmula estereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canalda interação social que lhe é reservado, refletindo ideologica-mente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composição social dogrupo” (10, 126)32

(7) Le genre quotidien est un élément du milieu social: qu’il s’agissede la fête, des loisirs, des relations de salon, d’atelier, etc. Ilcoïncide avec ce milieu, il s’y trouve limité et il est aussi déter-miné par lui en tous ses composants internes” (16, 291).

(7a) As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social, sãoelementos da festa, dos lazeres, das relações que se travam nohotel, nas fábricas, etc. Elas coincidem com esse meio, são poreles delimitadas e determinadas em todos os aspectos” (10,126)33 .

conducting some business – statements and exchanges of words willstart and finish and be constructed in another, completely differentway. Village sewing circles, urban carouses, workers’ lunchtime chats,etc., will all have their own types.” (11, 97).

32 “Each situation, fixed and sustained by social custom, commands aparticular kind of organization of audience and, hence, a particularrepertoire of little behavioral genres. The behavioral genre fitseverywhere into the channel of social intercourse assigned to it andfunctions as an ideological reflection of its type, structure, goal, andsocial composition” (11, 97).

33 “The behavioral genre is a fact of social milieu: of holiday, leisuretime, and of social contact in the parlor, the workshop, etc. It mesheswith that milieu and is delimited and defined by it in all its internalaspects” (11, 97).

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Poderíamos apresentar mais uma série de exemplos nosquais enunciado e enunciação concorrem para uma expressãomais adequada da expressão russa vyskazivanie, bem como gê-nero do discurso, ou apenas gênero é a tradução mais coerentepara rechevye zhanry – ou apenas zhanry, mas com isso perderí-amos o objetivo de nossa dissertação que é de discorrer de ma-neira introdutória sobre a Teoria do Enunciado Concreto desen-volvida pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Nesse sen-tido, deixaremos a resposta à questão que intitula este capítuloem aberto, lançando mão de outros argumentos para contextua-lizar mais francamente a nossa opção pelos conceitos enunciadoe gêneros do discurso.

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“A interação verbal é a realidade fundamental da

linguagem” (30, 71).

A investigação dos conceitos que articulam a Teoria doEnunciado Concreto implica em cada um deles preencher umacerta extensão de sentido: ele tem de ser dinâmico, histórico-fenomenológico, sociológico, ideológico e, finalmente dialógico.Se tomarmos alguma definição de linguagem, dada pelo Círcu-lo, encontraremos, em cada uma delas, todas as característicasacima citadas.

A linguagem é dinâmica, ou seja, “é um produto da vidasocial que não é de nenhum modo congelado ou petrificado: elaestá em perpétuo vir a ser e, em seu desenvolvimento, ela segue aevolução da vida social” (16, 288). Ela é um fenômeno histórico-fenomenológico e sociológico: “a essência verdadeira da lingua-gem é o acontecimento social que consiste em uma interaçãoverbal, e se encontra concretizada em um ou mais enunciados”.(16, 288)34 . A linguagem é ideológica, ela “procede da organizaçãosocial do trabalho e da luta de classes” (16,287). E como todo

34 Esse enunciado já havia aparecido em MFL (1929), quando da críticaao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista: “A verdadeirasubstância da língua [linguagem] não é constituída por um sistemaabstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação [enunciado]monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção,mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através daenunciação [enunciado] ou das enunciações [enunciados]” (10, 123).

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conceito do Círculo, ela também é dialógica: “a linguagem viveapenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É preci-samente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeirocampo da vida da linguagem” (13, 158), “o diálogo – a troca depalavras – é a forma mais natural de linguagem” (16,292).

Se promovermos uma relação dialógica entre essas pro-postas teóricas do Círculo e as dificuldades encontradas porSaussure em torno de uma trabalho científico da linguagem – oque o obriga a criar a dicotomia língua/fala e escolher a primeiracomo objeto da lingüística – encontraremos, nesse último, al-guns princípios sobre a linguagem:

a) A linguagem tem um lado individual e um lado social,sendo impossível conceber um sem o outro (44, 16);

b) A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempoum sistema estabelecido e uma evolução: a cada ins-tante, ela é uma instituição atual e um produto do pas-sado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre es-ses sistemas e sua história, entre aquilo que ele é e oque foi; na realidade, a relação que une ambas é tãoíntima que se faz difícil separá-las (44, 16);

c) se estudarmos a linguagem sob vários aspectos aomesmo tempo, o objeto da Lingüística nos aparecerácomo um aglomerado confuso de coisas heteróclitas,sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-sea porta a várias ciências – Psicologia, Antropologia,Gramática Normativa, Filologia etc. –, que separamosclaramente da Lingüística, mas que, por culpa de ummétodo incorreto, poderiam reivindicar a linguagemcomo um de seus objetos (44, 16).

A primeira e a segunda observação de Saussure implicamuma relação de concordância do Círculo para com o teóricogenebrino, na medida em que todos os elementos do todo do enun-ciado concreto se encontram em interação orgânica. Já a terceira

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observação não encontra eco nas formulações teóricas do Círcu-lo, cujo percurso teórico observa a linguagem sob vários aspectosao mesmo tempo, todos esses aspectos em interação orgânica.Nesse sentido, as portas são abertas para uma Psicologia Objeti-va, uma Antropologia Filosófica35 , uma Sociologia do Discurso, e,finalmente, uma Metalingüística.

Saussure vai eleger a língua como “norma de todas as ou-tras manifestações da linguagem” (44, 16-17), como uma partedeterminada e essencial da linguagem que é “a parte social dalinguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nemcriá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude dumaespécie de contrato estabelecido entre os membros da comu-nidade” (44, 22).

Essa visão estática e abstrata da linguagem que Saussureutiliza para constituir a Lingüística não se confunde com a abor-dagem dinâmica e concreta da vida da linguagem promovida peloCírculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Para Bakhtin, por exem-plo, “toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo deemprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artísti-ca, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüísti-ca estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica espe-cífica na sua generalidade, como algo que torna possível a comu-nicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as relaçõespropriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo dodiscurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais rela-ções devem ser estudadas pela metalingüística, que ultrapassaos limites da lingüística e possui objeto autônomo e tarefas pró-prias” (13, 158-159).

Todas essas observações nos servem de parâmetro inicialpara a discussão das críticas formuladas pelo Círculo não só à

35 Ver Cap. 7 “Anthropologie Philosophique” em Todorov, T. MikhaïlBakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine.(31, 145-172), e Faraco, C. A. “O dialogismo como chave de umaantropologia filosófica” (47, 113-126).

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lingüística, mas também à estilística tradicional. Considerar alinguagem enquanto um fenômeno vivo, concretizado em enun-ciados, vai exigir do Círculo o estudo de outros gêneros científi-cos de investigação desse mesmo objeto, os quais vão ser carac-terizados aqui como oriundos de um pensamento abstrato – ob-jetivismo abstrato – e de um pensamento idealista – subjetivismoidealista, contrapondo-se ao pensamento concreto que orienta asinvestigações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev.

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Quando procuramos compreender o todo da obra do Cír-culo Bakhtin/Volochinov/Medvedev nos encontramos no inte-rior de uma arquitetônica, que reflete e refrata, ao mesmo tempo,as concepções monológicas do pensamento abstrato e do pensa-mento idealista, no que se refere ao enunciado concreto. É comose a crítica promovida pelo Círculo penetrasse no mais íntimoaspecto de cada disciplina científica investigada – o outro, e ani-masse os conceitos interiores de um ponto de vista exterior. Eessa investigação complementar, ou situada na fronteira das dis-ciplinas, como eles costumam dizer, que possibilita a percepçãodo enunciado concreto, do acontecimento real da linguagem, éfundamental para compreender o “relacionismo”, ou o “dialogismo”entre o pensamento concreto, o pensamento abstrato e o pensa-mento idealista, e suas respectivas tarefas autônomas.

A forma como cada um desses pensamentos – concreto,abstrato, idealista – se defrontam sobre o material verbal vai im-plicar num determinado gênero. Esses gêneros científicos – me-talingüístico, estético, lingüístico, formalista, psicológico, estilís-tico, etc. – vão dar um acabamento específico a esse material,considerando-o sob diferentes formas e conteúdos.

Desde a obra do período fenomenológico de Bakhtin, Towarda Philosophy of the Act (1919-1921), já existe uma abordagem

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dos pensamentos abstrato/concreto/idealista, no sentido de bus-car uma compreensão do ato concreto em oposição à pureza lógi-ca do pensamento abstrato, ou à criatividade idealista. Para oteórico russo, “qualquer expressão é muito mais concreta do queuma significação pura – ela distorce e embota a pureza e a valida-de do sentido em si mesmo. É por isso que nós nunca entende-mos uma expressão, em seu sentido total, no pensamento abs-trato” (2, 31).

Um dos medos de Bakhtin era que uma Filosofia do Atoresponsável se revertesse em uma abordagem psicologista ousubjetivista: “o subjetivismo e o psicologismo são diretamentecorrelatos do objetivismo (objetivismo lógico) e [uma palavra ilegí-vel36 ] apenas quando o ato responsável é dividido abstratamenteem seu sentido objetivo e no processo subjetivo de sua realiza-ção. Do ponto de vista do ato, tomado em seu todo indivisível,não há nada que seja subjetivo e psicológico. Na sua responsabi-lidade [respondibilidade], o ato apresenta em si sua própria ver-dade [pravda] como algo para ser acabado – uma verdade queune os momentos subjetivo e psicológico, da mesma forma queune o momento do que é universal (válido universalmente) aomomento do que é individual (real). Essa verdade [pravda] unitá-ria e única do ato responsável realizado é posto como algo paraser acabado qual uma verdade [pravda] sintética” (2, 29).

Essa busca da interação orgânica entre o subjetivo e o psi-cológico, ao mesmo tempo que entre o universal e o individualtambém permeia a crítica ao racionalismo quando esse pensa-mento contrapõe o que é objetivo, como sendo racional, ao que ésubjetivo, individual, singular considerado esses últimos comoirracionais e fortuitos: “a racionalidade inteira de um ato respon-sável ou ação é atribuído aqui […] ao que é objetivo, ao que foi

36 Algumas palavras ou grupos de palavras de Toward a Philosophy ofthe Act estavam ilegíveis no manuscrito original, o qual segundoBocharov, seu editor russo, encontra-se em condições precárias (2,XVII).

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separado abstratamente do ato responsável, enquanto tudo queé fundamental e que sobra após essa subtração, é consideradocomo um processo subjetivo. Entretanto, a unidade transcendentalinteira da cultura objetiva é, na realidade, irracional e elementar,totalmente divorciada do centro unitário e único constituído porum ato consciente. Evidentemente, um divórcio total é, na reali-dade, impossível, e até onde pensarmos, realmente, essa unida-de brilha com uma luz emprestada da nossa responsabilidade.Somente um ato ou ação tomado, do exterior, como um fato fisi-ológico, biológico, ou psicológico, pode se apresentar como ele-mentar e irracional, como qualquer ser abstrato. Mas do interiorde um ato responsável, o único que responsavelmente, realiza oato, conhece uma luz clara e distinta, na qual ele realmente ori-enta a si mesmo” (2, 30).

Nos dois parágrafos anteriores, tivemos uma amostra dascríticas formuladas ao subjetivismo idealista e ao objetivismoabstrato, a partir do ponto de vista do ato concreto, da constru-ção do enunciado concreto como um todo. E os elementos cons-tituintes desse todo já aparecem aqui numa concepção ética-fenomenológica que já sugere os pontos de vista sociológico, ide-ológico e dialógico, que serão aplicados mais tarde ao enunciadoconcreto.

Para Bakhtin, “o evento inacabado pode ser claro e distin-to, em todos os seus momentos constituintes, para um partici-pante no ato ou ação que ele realiza” (2, 30). O autor desse atoconhece as pessoas e os objetos presentes a esse acontecimentoconcreto, ao mesmo tempo que os valores reais e concretos des-sas pessoas e objetos. Segundo o teórico russo, “ele [o autor] intuia vida interior deles [os outros participantes da situação] comotambém os seus desejos; ele compreende o sentido real e neces-sário da inter-relação entre ele e essas pessoas e objetos – a ver-dade [pravda] do estado de relações dada – e compreende a ne-cessidade de seu ato realizado, isto é, não a lei abstrata desseato, mas a necessidade real e concreta condicionada pelo seuúnico lugar no contexto dado do evento inacabado. E todos esses

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momentos, que compõe o evento em sua totalidade, estão pre-sentes para ele como algo dado e, também, como algo para seracabado numa luz unitária, numa consciência responsável, uni-tária e única, e eles são realizados num ato responsável, único eunitário” (2, 30).

As implicações do todo do enunciado concreto – do ato –nos seus elementos vão adquirindo outros desdobramentos nasdiscussões em torno do problema do conteúdo, do material e daforma, e da interação orgânica entre esses problemas. Pensarcada um desses problemas isoladamente implica em não perdera visão do todo. E essa é uma das críticas que o Círculo direcionaregularmente à lingüística e a sua concepção abstrata do atoconcreto, do enunciado concreto.

Para o teórico russo, a lingüística opera com enunciadosneutros, “vê neles somente o fenômeno da língua, relaciona-osapenas com a unidade da língua, mas não com a unidade deconceito, de prática de vida, da História, do caráter de um indiví-duo, etc. (4, 46). Em oposição a esses enunciados neutros dalingüística, Bakhtin diz que “o enunciado isolado e concreto sem-pre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (cientí-fico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isola-da da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isoladoé vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disfor-me, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim pordiante” (4, 46).

Essa busca da verdade, da compreensão do todo do enun-ciado concreto, adquire contornos sociológicos e ideológicos emMarxismo e Filosofia da Linguagem. Nessa obra, Bakhtin/Volochinov tece, de um ponto de vista sociológico e ideológico,críticas às concepções abstratas e idealistas, denominando-asObjetivismo Abstrato e Subjetivismo Idealista. Para os teóricosrussos, as posições fundamentais da primeira – Subjetivismo Ide-alista (A) – e da segunda – Objetivismo Abstrato (B), são antítesesuma da outra, conforme apresentamos a seguir:

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1A – A língua é uma atividade, um processo criativoininterrupto de construção (“energia”), que se materia-liza sob a forma de atos individuais de fala. (10, 72)

1B – A língua é um sistema estável, imutável, de formaslingüísticas submetidas a uma norma fornecida talqual à consciência individual e peremptória para esta.(10, 82)

2A – As leis da criação lingüística são essencialmente asleis da psicologia individual. (10, 72)

2B – As leis da língua são essencialmente leis lingüísticasespecíficas, que estabelecem ligações entre os signoslingüísticos no interior de um sistema fechado. Estasleis são objetivas relativamente a toda consciência sub-jetiva. (10, 82)

3A – A criação lingüística é uma criação significativa, aná-loga à criação artística. (10, 72).

3B – As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver comvalores ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros).Não se encontra, na base dos fatos lingüísticos, ne-nhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentidonão existe vínculo natural e compreensível para aconsciência, nem vínculo artístico. (10, 82).

4A – A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquan-to sistema estável (léxico, gramática, fonética), apre-senta-se como um depósito inerte, tal como a lava friada criação lingüística, abstratamente construída peloslingüistas com vistas à sua aquisição prática como ins-trumento pronto para ser usado. (10,73).

4B – Os atos individuais de fala constituem, do ponto devista da língua, simples refrações ou variações fortui-tas ou mesmo deformações das formas normativas.Mas são justamente estes atos individuais de fala queexplicam a mudança histórica das formas da língua;enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sis-

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tema, irracional e desprovida de sentido. Entre o sis-

tema da língua e sua história não existe nem vínculo

nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre

si. (10, 83).

Tanto as teses do Subjetivismo Idealista – a língua enquantocriação – quanto as do Objetivismo Abstrato – a língua enquantonorma – não são suficientes para dar conta do projeto do Círculo,ou seja, de uma investigação do enunciado concreto. É nessesentido que vamos apresentar as críticas formuladas por Bakhtin/Volochinov a cada uma dessas orientações do pensamento lin-güístico, aproveitando, ao mesmo tempo, para construir o pontode vista específico da investigação promovida pelo Círculo.

Bakhtin/Volochinov formula as seguintes críticas aoObjetivismo Abstrato:

a) a compreensão que o indivíduo tem de sua língua nãoestá orientada para a identificação de elementosnormativos do discurso, mas para a apreciação de suanova qualidade contextual (10, 103).

b) a enunciação [enunciado] monológica fechada consti-tui, de fato, uma abstração. A concretização da palavrasó é possível com a inclusão dessa palavra no contextohistórico real de sua realização primitiva. Na enuncia-ção [enunciado] monológica isolada, os fios que ligam apalavra a toda a evolução histórica concreta foram cor-tados (10,103).

c) a reflexão lingüística de caráter formal-sistemático foiinevitavelmente coagida a adotar em relação às línguasvivas uma posição conservadora e acadêmica, isto é, atratar a língua viva como se fosse algo acabado, o queimplica uma atitude hostil em relação a todas as inova-ções lingüísticas. A reflexão lingüística de caráter for-mal-sistemático é incompatível com uma abordagemhistórica e viva da língua (10,104).

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d) as formas que constituem uma enunciação [enunciado]completa só podem ser percebidas e compreendidasquando relacionadas com outras enunciações [enunci-ados] completas pertencentes a um único e mesmo do-mínio ideológico. (10, 105).

e) a forma lingüística somente constitui um elemento abs-tratamente isolado do todo dinâmico da fala, da enuncia-ção [enunciado]… A enunciação [enunciado] como umtodo não existe para a lingüística (10, 105).

f) o sentido da palavra é totalmente determinado por seucontexto. […] os contextos possíveis de uma única emesma palavra são freqüentemente opostos […], encon-tram-se numa situação de interação e de conflito tensoe ininterrupto (10, 106-107).

g) o objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo dacomunicação verbal […] Entretanto, a língua éinseparável desse fluxo e avança justamente com ele.Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e per-dura sob a forma de um processo evolutivo contínuo.Os indivíduos não recebem a língua pronta para serusada; eles penetram na corrente da comunicaçãoverbal; ou melhor, somente quando mergulham nessacorrente é que sua consciência desperta e começa aoperar (10, 107-108).

h) o objetivismo abstrato […] não sabe ligar a existência dalíngua na sua abstrata dimensão sincrônica com suaevolução. […] Torna-se, assim, impossível a conjunçãodialética entre necessidade e liberdade e até, por assimdizer, a responsabilidade lingüística. Assenta-se, aqui,o reino de uma concepção puramente mecanicista danecessidade no domínio da língua (10, 108).

i) na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abs-trato estão as premissas de uma visão do mundoracionalista e mecanicista, ao menos favoráveis a uma

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concepção correta da história; ora, a língua é um fenô-meno puramente histórico (10, 108-109).

O principal aspecto das críticas reside na incapacidadedessas duas tendências do pensamento lingüístico – o objetivismoabstrato e o subjetivismo idealista – em perceber, ou querer en-frentar a realidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica,e enfim dialógica do enunciado concreto, incluindo aí o proble-ma da criatividade lingüística e da teoria da expressão subja-cente ao subjetivismo idealista – ou subjetivismo individualista–, o qual é criticado pelo Círculo nos seguintes termos:

a) a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo indivi-

dualista deve ser completamente rejeitada. O centro or-

ganizador de toda enunciação [enunciado], de toda ex-

pressão, não é interior, mas exterior: está situado no

meio social que envolve o indivíduo. […] A enunciação

[enunciado] enquanto tal é um puro produto da intera-

ção social, quer se trate de um ato de fala determinado

pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que

constitui o conjunto das condições de vida de uma de-

terminada comunidade lingüística. (10, 121).

b) o subjetivismo individualista tem razão em sustentar

que as enunciações [enunciados] isoladas constituem a

substância real da língua e que a elas está reservada a

função criativa da língua. Mas está errado quando igno-

ra e é incapaz de compreender a natureza social da

enunciação e quando tenta deduzir esta última do mun-

do interior do locutor, enquanto expressão desse mun-

do interior. (10, 122)37 .

37 Um trecho desse enunciado aparece em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtin.Le principe dialogique: “… Mais le subjectivisme individualiste a torten ce qu’il ignore et ne comprend pas la nature sociale de l’énoncé, et

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c) A estrutura da enunciação e da atividade mental a ex-primir são de natureza social38 . A elaboração estilísticada enunciação [enunciado] é de natureza sociológica e aprópria cadeia verbal, à qual se reduz em última análisea realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia ésocial, assim como toda a dinâmica de sua evolução.(10, 122).

d) O subjetivismo individualista tem toda a razão quandodiz que não se pode isolar uma forma lingüística do seuconteúdo ideológico. Toda palavra é ideológica e todautilização da língua está ligada à evolução ideológica.Esta errado quando diz que esse conteúdo ideológicopode igualmente ser deduzido das condições dopsiquismo individual. (10, 122).

e) o subjetivismo individualista está errado em tomar, damesma maneira que o objetivismo abstrato, a enuncia-ção [enunciado] monológica como seu ponto de partidabásico. (10, 122).

As formulações teóricas das duas orientações e a formacom que se debruçam sobre a linguagem não servem aos propó-sitos de Bakhtin, Volochinov e Medvedev em relação a uma in-vestigação científica do enunciado concreto.

Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov chama atenção para ofato de que “ao considerar que só o sistema lingüístico pode darconta dos fatos da língua [linguagem], o objetivismo abstrato re-jeita a enunciação [enunciado], o ato de fala, como sendo indivi-dual. Como dissemos, é esse o proton pseudos, a “primeira men-tira”, do objetivismo abstrato” (10, 109).

qu’il essaie de le déduire du monde intérieur du locuteur, commeexpresssion de ce monde intérieur.” (31, 56).

38 Idem, “La structure de l’énoncé, ainsi que celle de l’experienceexprimable même, est une structure social” (31,56)

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Pelo mesmo motivo, para explicar a realidade concreta dalinguagem, os teóricos do Círculo irão rejeitar a outra corrente depensamento lingüístico: “o subjetivismo individualista, ao con-trário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considerao ato de fala como individual e é por isso que tenta explicá-lo apartir das condições da vida psíquica individual do sujeito fa-lante. E esse é o seu proton pseudos” (10, 109).

Rejeitando tanto a tese quanto a antítese, resta ao Círculopromover uma síntese dialética: “na realidade, o ato de fala, ou,mais exatamente, seu produto, a enunciação [enunciado], nãopode de forma alguma ser considerado como individual no senti-do estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condiçõespsicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação [enunciado] éde natureza social” (10, 109).

Não podemos esquecer que o enunciado que serve de basepara as formulações do ponto de vista do Círculo é o enunciadoconcreto, que tem um autor e um interlocutor, ou seja, que éuma unidade da comunicação verbal. É na estrutura ética, histó-rico-fenomenológica, sociológica e dialógica desse enunciado queeles irão fundamentar as seguintes formulações teóricas:

a) A língua com sistema estável de formas normativamenteidênticas é apenas uma abstração científica que só podeservir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essaabstração não dá conta de maneira adequada da reali-dade concreta da língua [linguagem].

b) A língua constitui um processo de evolução ininterrup-to, que se realiza através da interação verbal social doslocutores.

c) As leis da evolução lingüística não são de maneira algu-ma as leis da psicologia individual, mas também nãopodem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leisda evolução lingüística são essencialmente leis socioló-

gicas.

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d) A criatividade da língua não coincide com a criativida-de artística nem com qualquer outra forma de criativi-dade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, acriatividade da língua não pode ser compreendida in-dependentemente dos conteúdos e valores ideológicosque a ela se ligam. A evolução da língua, como todaevolução histórica, pode ser percebida como uma ne-cessidade cega de tipo mecanicista, mas também podetornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”,uma vez que alcançou a posição de uma necessidadeconsciente e desejada.

e) A estrutura da enunciação [enunciado] é uma estruturapuramente social. A enunciação [enunciado] como talsó se torna efetiva entre falantes. O ato de fala indivi-dual (no sentido estrito do termo “individual”) é umacontradictio in adjecto. (10, 127).

É a partir de uma concepção sociológica do enunciado con-creto, como a realidade material da linguagem, ou seja, com umato que se constitui organicamente de uma parte verbal – a língua– e uma parte extraverbal – a situação – que Bakhtin/Volochinov/Medvedev podem distinguir entre esse enunciado e o enunciadomonológico isolado – a frase, a sentença, a oração – bem como,conceber a criatividade lingüística não como um ato puramenteindividual, mas como uma criatividade sociológica e dialógica,realizada na interação verbal, ou seja, na dimensão do diálogoentre falantes de uma determinada comunidade lingüística.

�, + !&����$($"�!��"�$" �%�É fundamental distinguir, na compreensão do todo da obra

do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, o enunciado concre-to da frase, sentença, oração lingüísticas, bem como do ato defala individual (o ponto de vista do subjetivismo idealista). Essadistinção é um dos eixos das críticas formuladas ao pensamentoabstrato, ou objetivismo abstrato, que norteia as investigações

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lingüísticas e formalistas, por exemplo, visto que o pensamentodo Círculo não vai investigar a frase enquanto uma unidade lin-güística pura, como uma unidade independente do todo dinâmi-co do enunciado. Por outro lado, essa mesma investigação dotodo dinâmico do enunciado não vai considerar o enunciado con-creto – o ato de fala – como sendo individual, como é próprio aopensamento idealista – ou subjetivismo idealista – de que falaBakhtin/Volochinov.

Em 1924, ao tratar do problema do material verbal no inte-rior da lingüística, Bakhtin diz: “… até hoje a lingüística aindanão ultrapassou cientificamente a oração complexa: este é o maislongo fenômeno da língua já explorado lingüística e cientifica-mente: tem-se a impressão de que a língua precisamente lingüís-tica e metodicamente pura de repente termina ali e de repentetem início a ciência, a poesia, etc.; entretanto a análise lingüísti-ca pura pode ser levada mais adiante, por mais difícil que pareçae por mais tentador que seja introduzir aqui pontos de vista alheiosà lingüística” (4, 47). Portanto, é importante distinguir entre asformas da língua e as formas do enunciado concreto.

A frase é percebida pelo Círculo como um enunciado mo-nológico, fechado, que não tem relação com o exterior, não temautor, não tem conceito. Ela é retirada do funcionamento realpara ser desconstruída em unidades menores como palavra,fonemas, morfemas, etc. E essas categorias lingüísticas “só sãoaplicáveis no interior do território da enunciação [enunciado]; elasdeixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O mesmose dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: “a cate-goria oração é meramente uma definição da oração como umaunidade dentro de uma enunciação [enunciado], mas de nenhu-ma maneira como entidade global” (10, 140). Segundo Bakhtin/Volochinov é impossível encontrar na oração os elementos que aconverte em um enunciado concreto.

Para os teóricos russos, a lingüística promove um estudodo enunciado monológico isolado com as seguintes caracte-rísticas:

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a) procura as relações imanentes no interior do enuncia-do;

b) o alcance máximo da análise é a frase complexa;

c) as relações exteriores aos limites do enunciado são ig-noradas;

d) há um fosso entre a sintaxe e os problemas de compo-sição do discurso;

e) a frase, a oração são unidades convencionais.

Em contraposição aos estudos puramente lingüísticos, oestudo promovido pelo Círculo, com base no enunciado concreto,é um estudo complementar, ou seja, metalingüístico. ParaBakhtin, “o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidadereal da comunicação verbal, também deve permitir compreendermelhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis-tema): as palavras e as orações” (21, 287). Ele considera que aabstração científica da lingüística não pode ser tomada como umfenômeno real e concreto, porque assim ela pode cair na ficção.Podemos dizer, então, que a natureza abstrata da reflexão lin-güística não consegue refletir o todo do enunciado concreto, per-manecendo aí, no interior de uma reflexão objetiva-abstrata.

No ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953) são expli-citadas as diferenças entre a oração (unidade da língua) e o enun-ciado (unidade da comunicação verbal), as quais distinguem tam-bém, por um lado, a natureza do pensamento abstrato da natu-reza do pensamento concreto, e por outro, o estudo do híbridodesses dois pensamentos, isto é, a passagem da oração ao enun-ciado completo, onde ela se torna uma resposta ou uma com-preensão responsiva de outro locutor.

A distinção entre a frase e o enunciado se torna mais claranessa citação de Bakhtin, onde ele esboça a síntese entre o dado– a oração, a frase, a sentença – e o criado – o enunciado: “aspessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras(numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de

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palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unida-des da língua – palavras, combinações de palavras, orações; mes-mo assim, nada impede que o enunciado seja constituído de umaúnica oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de umaúnica unidade da fala (o que acontece sobretudo na réplica dodiálogo), mas não é isso que converterá uma unidade da línguanuma unidade da comunicação verbal” (21, 297).

Mas quais são as características da frase, sentença, ora-ção que as impedem de se tornar uma enunciado? Para respon-der a essa questão, precisaríamos encontrar características dis-tintas entre uma e outra categoria. Vejamos com quais caracte-rísticas podemos definir a frase, a oração e a sentença:

1) é um fato gramatical, é dado;

2) é uma unidade da língua;

3) tem um acabamento gramatical, abstrato do elemento,pode ser reproduzida ilimitadamente;

4) não é marcada pela alternância de sujeitos falantes, ouseja, não leva em conta a comunicação verbal real e viva;

5) o contexto da oração é o contexto do discurso de umúnico e mesmo sujeito falante (o locutor).

6) não pertence a ninguém e não se dirige a ninguém, ouseja, não tem autor nem destinatário.

Todas essas características não permitem a investigaçãodo enunciado concreto, visto que as categorias frase, oração, sen-tença se encontram no eixo de abstração, retiradas do funciona-mento real e concreto da linguagem, sendo produtos da constru-ção teórica abstrata. Já o enunciado concreto se define por carac-terísticas distintas:

a) é um fato real, é criado;

b) é uma unidade da comunicação verbal, isto é, umaunidade do gênero;

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c) apresenta um acabamento real, ou seja, são irrepro-duzíveis (embora possam ser citados);

d) as suas pausas são pausas reais;

e) tem autor (e expressão) e destinatário.

Essas características, presentes na investigação do tododo enunciado concreto, refletem também a necessidade de se dis-tinguir entre língua e discurso. No ensaio “O problema do texto”(1959-1961), Bakhtin resume, de maneira bastante clara, a rela-ção entre língua e discurso, entre oração e enunciado: “O sujeitofalante (a individualidade “natural” generalizada) e o autor doenunciado. A alternância dos sujeitos falantes e alternância doslocutores (dos autores de um enunciado). Pode-se estabelecer umprincípio de identidade entre a língua e o discurso, porque nodiscurso se apagam os limites dialógicos do enunciado, mas ja-mais se pode confundir língua e comunicação verbal (entendidacomo comunicação dialógica efetuada mediante enunciados). Épossível a identidade absoluta entre duas ou mais orações (so-brepostas, como duas figuras geométricas, elas coincidem). Hámais: qualquer oração, mesmo complexa, dentro do fluxo ilimita-do do discurso pode ser repetida ilimitadamente e de uma formaperfeitamente idêntica, mas, enquanto enunciado (ou fragmentode enunciado), nenhuma oração, ainda que constituída de umaúnica palavra, jamais pode ser repetida, reiterada, duplicada: sem-pre temos um novo enunciado (mesmo que em forma de citação)”(23, 334-335). É, talvez, por isso que o fenômeno do discursocitado – o enunciado de outrem – é tão importante nas formula-ções teóricas do Círculo.

O sentido fenomenológico do enunciado concreto, criadono momento único de sua existência, implica num esforço paracompreender a dinâmica da sua construção, da sua arquitetônica:“dentro dos limites de um único e mesmo enunciado, uma oraçãopode ser reiterada (repetição, autocitação), porém, cada ocorrên-cia representa um novo fragmento de enunciado, pois sua posi-ção e sua função mudaram no todo do enunciado” (23, 335), ou

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seja, a noção do enunciado como um acontecimento, como umacriação única, implica a adoção de um ponto de vista dinâmicopara sua investigação.

O material que serve de base de investigação para o pes-quisador é sempre um material representado, isto é, o enunciadode outrem. Em outras palavras, todo discurso é um discurso ci-tado. Portanto, resta ao pesquisador encontrar um ponto de vistapara investigar esse discurso citado, e esse ponto de vista nósacreditamos que pode ser encontrado se considerarmos o enun-ciado concreto, seja ele de qual gênero for, como a base materialcom a qual pode interagir uma Arquitetônica da Representação.

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Um dos conceitos mais importantes da obra do Círculo é odiálogo. Talvez seja esse mesmo conceito a base de toda investi-gação do enunciado concreto desencadeada por Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Se pensarmos em conceitos como enun-ciado, comunicação – verbal, social, ideológica, dialógica, artística–, interação verbal, situação, encontraremos em sua base concre-ta a dimensão de um diálogo, pois “o todo do enunciado se cons-titui como tal graças a elementos extra-lingüísticos (dialógicos), eeste todo está vinculado aos outros enunciados” (23, 335-336),ou seja, é na dimensão do criado – o enunciado enquanto umacontecimento, uma interação verbal entre sujeitos falantes, queencontramos a natureza dialógica da linguagem.

Pensar o enunciado como unidade real, concreta, da co-municação verbal significa tomar os elementos dialógicos comofonte de uma compreensão ativa e científica. Um dos problemascolocados pelo Círculo é de saber se a ciência “pode tratar deuma individualidade tão absolutamente irreproduzível como oenunciado, que estaria fora do âmbito em que opera o conheci-

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mento científico propenso a generalização” (23, 335). SegundoBakhtin, isso é possível, e ele nos dá três argumentos:

a) qualquer ciência, em seu ponto de partida, lida comsingularidades irreproduzíveis e, em toda a sua traje-tória, permanece ligada a elas;

b) a ciência, e acima de tudo a filosofia, pode e deve estu-dar a forma específica e a função dessa individualidade;

c) esse estudo científico do particular deve levar em con-ta “a absoluta necessidade de uma correção perma-nente que previna de uma pretensão a uma análiseabstrata totalmente exaustiva (lingüística, por exem-plo) de um enunciado concreto” (23,335).

O campo desses estudos situa-se na fronteira entre a aná-lise da língua (o enunciado isolado) e a análise do sentido (o enun-ciado dialógico). E esse campo “é uma campo que pertence aciência” (23, 335). Bakhtin chama esse campo de estudo de Me-talingüística.

Para ele, “as pesquisas metalingüísticas, evidentementenão podem ignorar a lingüística e devem aplicar os seus resulta-dos. A lingüística e a metalingüística estudam um mesmo fenô-meno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, maso estudam sob diferentes aspectos e de diferentes ângulos devisão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Naprática, os limites entre elas são violados com muita freqüência”(13, 157).

Esse caráter de complementaridade entre as disciplinas éenfatizado por Bakhtin: “a lingüística conhece, evidentemente, aforma composicional do “discurso dialógico” e estuda as suasparticularidades sintáticas léxico-semânticas. Mas ela as estudaenquanto fenômenos puramente lingüísticos, ou seja, no planoda língua, e não pode abordar, em hipótese alguma, a especifici-dade das relações dialógicas entre as réplicas. Por isto, ao estu-

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dar o “discurso dialógico”, a lingüística deve aproveitar os resul-tados da metalingüística” (13, 158).

Tudo o que, anteriormente, era chamado de aspecto extra-verbal, extra-lingüístico, subentendido do enunciado e que, ge-ralmente, compreendia o conceito situação, encontra na Metalin-güística uma expressão mais adequada, e esses aspectos, pelaprópria tradição de estudos de um campo de fronteira de discipli-nas, passam a ser chamados de aspectos metalingüísticos, e maisprecisamente, relações dialógicas.

O objeto de estudo da Metalingüística caracteriza-se, en-tão, como relações dialógicas. Essas relações são extralingüísticas,“ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campodo discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral con-creto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daque-les que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica queconstitui o verdadeiro campo da vida da linguagem” (13, 158). Épor se situar no campo do discurso, que é por natureza dialógico,que as relações dialógicas “devem ser estudas pela metalingüísti-ca, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autô-nomo e tarefas próprias” (13, 159) Eis algumas dessas tarefas:

a) estudo dos aspectos e das formas da relação dialógicaque se estabelece entre os enunciados e entre suas for-mas tipológicas (os fatores do enunciado): a forma doenunciado;

b) estudo dos aspectos extra-lingüísticos e não significan-tes (artísticos, científicos e outros) do enunciado: a fun-ção social do enunciado;

c) estudo da palavra de outrem: “a orientação da palavraentre palavras, a sensação distinta da palavra do outroe os diversos meios de reagir diante dela” (13, 176).

Numa definição mais específica do conceito relaçõesdialógicas, Bakhtin diz que ela “é uma relação marcada por umaprofunda originalidade e que não pode ser resumida a uma re-

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lação de ordem lógica, lingüística, psicológica ou mecânica, ouainda a uma relação de ordem natural. Estamos perante umarelação específica de sentido cujos elementos constitutivos sópodem ser enunciados completos (ou considerados completos,ou ainda potencialmente completos) por trás dos quais está (epelos quais se expressa) um sujeito real ou potencial, o autor dodeterminado enunciado” (23, 354).

Ao estudar o discurso, os enunciados completos e concre-tos, que são as unidades da comunicação verbal, e que são, tam-bém, irreproduzíveis (embora possam ser citados), estamos narealidade, por uma necessidade científica, estudando o enuncia-do no interior de alguma relação dialógica, na qual necessaria-mente, o pesquisador tem um papel exterior, o papel de terceirono diálogo. É nesse sentido que, para o pesquisador, só existemenunciados citados.

Pensando o diálogo como uma grande unidade de reflexãodo pensamento concreto, ou seja, o todo do diálogo encontramos,em interação orgânica, de um lado, a comunicação social e suabase econômica, e de outro, a comunicação verbal ou interaçãoverbal realizada em enunciados concretos.

Como já vimos anteriormente, o todo do enunciado concre-to é o produto da interação entre falantes num determinado con-texto e no interior de uma situação social complexa. Este é ocenário, onde o enunciado concreto, o discurso deve ser compre-endido. Segundo Volochinov, “o discurso é como que o “cenário”do ato imediato de comunicação no processo no qual ele é engen-drado, e esse ato de comunicação é, por sua vez, um fator dolargo campo de comunicação da comunidade da qual provém osfalantes” (6, 79).

O enunciado é dialógico, o discurso é dialógico, a comuni-cação é, também, dialógica. Nesse sentido, é importante salientarque todo o projeto de investigação dialógica do enunciado concre-to é uma investigação dinâmica. Conseqüentemente, o seu con-ceito de comunicação difere daquele – completamente pronto eestático, e segundo o Círculo, radicalmente incorreto – desenvol-

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vido pelos formalistas nos anos 20. Vejamos a comparação entreuma e outra perspectiva:

Formalistas: Dados dois membros da sociedade. A (o autor) e R(o leitor); a relação social entre eles são constantese estáveis num momento dado; é dado tambémuma comunicação pronta X, que será simplesmentetransmitida de A para R. O “que” (conteúdo) dessamensagem X difere do seu “como” (forma), e a“orientação pela expressão” (“como”) é caracterís-tica da palavra artística.

Círculo: “Na realidade, a relação entre A e R está mudando e sedesenvolvendo constantemente, e ela muda no proces-so comunicativo.

E não existe uma comunicação X pronta. Ela se desen-volve no processo de comunicação entre A e R.

Além disso, X não é transmitida de um para outro, masé construída entre eles como um tipo de ponte ideológi-ca, ela é construída no processo da interação deles. Eesse processo causa ao mesmo tempo: a unidade temá-tica do trabalho desenvolvido e a forma de sua realiza-ção real. Isso não pode ser separado…

Se separarmos objetos, trabalhos prontos do processosocial vivo e objetivo, nós nos encontraremos com abs-trações que prescindem de qualquer movimento, cria-ção e interação” (7, 152).

Pensar a linguagem, em sua configuração dialógica, signi-fica considerá-la como um acontecimento social, fruto de algumaatividade de comunicação social (trabalho) realizada na forma deuma comunicação verbal determinada, isto é, da interação verbalde um ou mais enunciados construídos num processo dialógicode alternância dos sujeitos envolvidos, e não na concepção está-tica apresentada, como vimos, pelos formalistas neste período.Nesse sentido, é importante compreender como o Círculo articu-la as relações de comunicação social que vão ser um dos funda-mentos do “cenário” que compreende o todo do enunciado con-creto.

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Numa tipologia geral de relações de Comunicação Social,Volochinov sugere a seguinte:

a) a comunicação artística;

b) as relações de produção (nas usinas, nos ateliers, nos

kolkhoses, etc.);

c) as relações de negócios (nas administrações, nos orga-

nismos públicos, etc.);

d) as relações cotidianas (os encontros e conversas na rua,

nas cantinas, consigo mesmo, etc.); e

e) as relações ideológicas strictu sensu: propaganda, es-

cola, ciência, a atividade filosófica sobre todas as suas

formas. (16, 289).

Assim sendo, encontramos na estrutura arquitetônica doenunciado o abrigo para diferentes tipos de atividade humana,ou seja, de comunicação social. Devemos enxergar no enunciadoespaços organizados e animados, ou seja, dinâmicos, compostosde uma certa atividade humana (Comunicação Social) e de umacerta atividade de linguagem (Comunicação Verbal) – gênero dodiscurso – engendradas num determinado enunciado ou enun-ciados na dimensão de um diálogo. Para o Círculo, todos os dis-cursos são dialógicos.

Para melhor compreender a linguagem, precisamos com-preender que a sua verdadeira substância “não é constituída porum sistema abstrato de formas lingüísticas nem pelo enunciadomonológico isolado, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção,mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada atravésdo enunciado ou dos enunciados” (10, 123).

Essa perspectiva dialógica, sociológica, fenomenológica ehistórica, nos leva a uma outra observação de Bakhtin/Volochinov:“a compreensão é dialógica por natureza”, ou seja, “a compreen-são está para o enunciado assim como uma réplica está para a

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outra no diálogo” (10, 132). Em um outro ponto, eles dizem “oproblema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atençãodos lingüistas e, algumas vezes, torna-se mesmo o centro daspreocupações em lingüística. Isso é perfeitamente compreensí-vel, pois, como sabemos, a unidade real da língua que é realizadana fala (Sprache als Rede) não é a enunciação [enunciado]monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menosduas enunciações [enunciados], isto é, o diálogo” (10, 145-146).

Toda essa discussão, realizada na dimensão dialógica, podeser resumida no seguinte esquema, apresentado no ensaio “Lastructure de l’énoncé” (1930), o qual implica uma interação orgâ-nica entre os seus elementos, e, ao mesmo tempo, preenche anatureza ideológica, sociológica, dialógica e lingüística envolvi-das no todo do enunciado concreto:

Organização econômica da sociedade

⇓A comunicação social

⇓A interação verbal (comunicação verbal)

⇓Os enunciados

⇓As formas gramaticais de linguagem

Após apresentar esse esquema, Volochinov diz que ele “ser-virá de fio diretor no estudo dessa unidade concreta, que relevada parole e que nós chamaremos enunciado” (16, 289). É, então,o enunciado concreto que se torna a unidade de base para acompreensão do esquema estruturado acima.

A interação orgânica entre o enunciado concreto e a intera-ção verbal é um dos princípios básicos do pensamento do Círcu-lo. É na interação verbal (comunicação verbal) que eles encon-tram a realidade fundamental da linguagem. Para Volochinov,

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“toda comunicação, toda interação verbal se realiza sob a formade uma troca de enunciados, isto é, na dimensão de um diálogo”(16, 292). Esse é um dos motivos da crítica à lingüística e ao seuobjeto – a língua – formulada por Bakhtin: “o objeto da lingüísticaé formado pela matéria isolada, pelos meios da comunicação verbalsozinhos – mas não pela comunicação verbal, nem pelos enunci-ados enquanto tais, nem pelas relações (dialógicas) que existementre eles, nem pelas formas da comunicação verbal nem pelosgêneros verbais” (30, 79).

Mergulhando no todo da obra podemos aproximar os con-ceitos discurso, comunicação e diálogo, e encontrar os seus pon-tos de convergência para com o objetivo de explicar o funciona-mento do enunciado concreto. Nesse sentido, apresentamos trêscitações: a primeira de Volochinov, a segunda de Bakhtin/Medvedev e a terceira de Bakhtin/Volochinov:

“O discurso verbal, não no sentido estreito da lingüística, mas noseu sentido sociológico largo e concreto – este é o meio objetivo noqual o conteúdo da psique é apresentado” (6, 83).

“Se tomarmos a palavra “comunicativo” no seu sentido mais lar-go e mais geral, então, todo enunciado é comunicativo… A comu-nicação, compreendida nesse sentido largo, é um elemento cons-titutivo da linguagem como tal.” (7, 93-94)

“O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro,senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, dainteração verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo”num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação emvoz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicaçãoverbal, de qualquer tipo que seja” (10, 123).

Essa compreensão, tanto do discurso, como da comunicaçãoe do diálogo, no sentido largo, reflete a necessidade de compreen-der o enunciado concreto em três dimensões. Podemos dizer queno interior do enunciado concreto, que no todo de sua articula-ção, os conceitos têm sempre um caráter tridimensional, e nesse

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caso, existem três dimensões para se pensar as suas relaçõesdialógicas:

a) o micro-diálogo: o diálogo interior;

b) o diálogo no sentido estrito: o diálogo exterior realizadonuma determinada situação;

c) o diálogo no sentido largo, ou seja, o grande diálogo: odiálogo infinito em que não há nem a primeira nem aúltima palavra.

Se observarmos atentamente o todo da obra, veremos queos conceitos principais atuam dessa maneira e, então, podemosformular o seguinte esquema de reflexão:

enunciado concreto diálogo tempo

interior micro-diálogo pequena temporalidade

exterior diálogo imediato

de outrem grande-diálogo grande temporalidade

A vida do enunciado concreto se encontra realizada nes-sas três dimensões de diálogo. Do ponto de vista do pesquisa-dor, podemos dizer que:

a) A primeira não é acessível ao pesquisador, embora elesaiba de sua existência concreta por experiência própria.Sendo assim, ela só pode ser observada em sua repre-sentação literária no diálogo do herói com ele mesmo.

b) A segunda compreende o diálogo de duas ou mais pes-soas onde a resposta é, em geral, imediata, existealternância de sujeitos. Nesse caso, o pesquisador é oterceiro, cujo olhar exterior consegue perceber a relaçãoeu/outro efetivada no diálogo;

c) A terceira corresponde a dimensão de resposta não ime-diata, onde as relações dialógicas entre os enunciados

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concretos, vivos, constrói o fenômeno, estudado exaus-tivamente pelo Círculo, do discurso de outrem – do enun-ciado de outrem – que adentra a estrutura do enun-ciado, isto é, o interior do meu discurso. Essa dimensãoaparece também em um ponto da obra sob a denomina-ção de “diálogo inconcluso”.

Derivado do conceito de diálogo e de uma concepçãorelacionista do mundo, da natureza dialógica da consciência e davida humana, Bakhtin nos diz que “el diálogo inconcluso es laúnica forma adecuada de expresión verbal de una vida humanaautêntica. La vida es dialógica por su naturaleza.Vivir significa par-ticipar en un diálogo: significa interrogar, oír, responder, esta deacuerdo, etc. El hombre participa en este diálogo todo y con toda suvida: con ojos, labios, manos, alma, espíritu, con todo el cuerpo, consus actos. El hombre se entrega todo a la palavra y esta palavraforma parte de la tela dialógica de la vida humana, del simposiouniversal. Las imágenes cosificadas, objetuales, son profundamen-te inadecuadas tanto para la vida como para la palavra. El modelocosificado del mundo se está sustuyendo por el modelo dialógico.Cada pensamiento y cada vida lheam a formar parte de un diálogoinconcluso. Tambíen es impermisible la cosificación de la palavra:sua naturaleza también es dialógica” (24, 334).

Essa busca pela não coisificação da palavra é necessáriapara fugir ao procedimento puramente mecânico, o qual, segundoBakhtin, não permite perceber as relações dialógicas. Ainda se-gundo o mesmo teórico, “não se podem contemplar, analisar edefinir as consciências alheias como objetos, como coisas: comu-nicar-se com elas só é possível dialogicamente. Pensar nelas im-plica em conversar com elas, pois do contrário elas voltariam ime-diatamente para nós o seu aspecto objetificado: elas calam, fe-cham-se e imobilizam-se nas imagens objetificadas acabadas”(13, 58). Essa fuga da coisificação, da fetichização, encontra econas observações de Volochinov aqui citados na segunda parte doprimeiro capítulo dessa dissertação.

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De acordo com Bakhtin, “o enunciado existente, surgidode maneira significativa num determinado momento social e his-tórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicosexistentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de umdado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participanteativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seuprolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele seaproxima desse objeto” (17, 86)39 .

Para que o enunciado toque pelo menos alguns desses fiosdialógicos e ideológicos, é necessário haver, por parte do pesqui-sador, uma atitude responsiva ativa, visto que “a compreensãode uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhadade uma atitude responsiva ativa […]; toda compreensão é prenhede resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz:o ouvinte torna-se o locutor” (21, 290), ou seja, o pesquisador é oobservador que se situa no exterior, no grande diálogo, lugar etempo – grande temporalidade – onde pode promover as maisvariadas relações dialógicas, e promovendo essas relaçõesdialógicas acaba criando um novo elo nessa cadeia da comunica-ção verbal.

É por isso que o caráter humanista, de negação da coisifi-cação como explicação das ciências humanas, sempre encontraum lugar ativo e importante no interior de cada obra do Círculo,como por exemplo nesta citação de Bakhtin/Volochinov: “a vidacomeça apenas no momento em que uma enunciação [enunciado]encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmoque não seja direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pelaliteratura” (10, 179), ou como aparece ainda em outra obra, assi-

39 Em francês, não há a ocorrência enunciação: Un énoncé vivant,significativement surgi à un moment historique et dans un milieu socialdéterminés, ne peut manquer de toucher à des milliers de fils dialogiquesvivants, tissés par la conscience socio-ideologique autour de l’objet detel énonce et de participer activement au dialogue social. Du reste,c’est de lui que l’énoncé est issu: il est comme sa continuation, saréplique, il n’aborde pas l’objet en arrivant d’on ne sait où…. (18, 100).

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nada por Bakhtin; “ser significa comunicarse” (24, 327). É a in-vestigação da vida da língua, dos gêneros do discurso, enfim dalinguagem viva que está sendo, a todo momento, instigada peloCírculo.

Podemos dizer que o que Bakhtin formula é um ponto devista da linguagem, que leva em consideração os aspectos cientí-ficos da língua na sua generalidade, mas que insiste numa abor-dagem do funcionamento real da linguagem, onde podemos en-contrar a “verdade” do acontecimento particular e único de umenunciado concreto. Essa linha de pensamento vai atravessartodo o desenvolvimento da obra do círculo, desdobrando-se nosconceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos eEntonações que orientam a investigação do enunciado concreto eque também vão adquirindo uma extensão de sentido adequadoà cada obra, seja de Bakhtin, Volochinov ou Medvedev, no senti-do de construção de uma nova disciplina: a metalingüística. Essemesmo escopo teórico que adentra às obras dos três pensadoresrussos é, também, um dos argumentos utilizados para requerera autoria de todas elas para Bakhtin, como já foi tratado ante-riormente nessa dissertação.

Buscar a verdade do enunciado concreto implica compre-ender a arquitetônica de sua representação em sua natureza éti-ca, histórico-fenomenológica, sociológica e dialógica. O que pre-tendemos no terceiro capítulo dessa dissertação é procurar a ver-dade desse enunciado concreto na dimensão dos conceitos prin-cipais definidos pelo Círculo com essa finalidade.

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“A língua penetra na vida através dos enunciados con-

cretos que a realizam, e é também através dos enuncia-

dos concretos que a vida penetra na língua”.

(21, 282)

Para discutir a Teoria do Enunciado Concreto do CírculoBakhtin/Volochinov/Medvedev, tornou-se importante uma inves-tigação da evolução do pensamento do círculo, ou seja, uma aná-lise diacrônica do todo da obra no que se refere ao conceito enun-ciado. Esse conceito estável intercambia-se e se une a outrosconceitos: palavra-enunciado, signo-enunciado, ato de fala-enun-ciado, obra-enunciado, texto-enunciado, discurso-enunciado,expressão-enunciado, idéia-enunciado, enfim, uma série de con-ceitos que aqui se encontram na fronteira de várias disciplinasque tratam da linguagem e que recobrem pontos de vista históri-co-fenomenológico, sociológico, ideológico, ético, estético e meta-lingüístico, num processo de interação orgânica.

Essa estratégia de escolher um conceito – enunciado – paradialogar com todas as outras disciplinas que se debruçam sobre alinguagem, e que nas edições francesas e brasileiras aparece tam-bém como enunciação, se revela altamente produtiva no sentidode facilitar a compreensão do caráter dinâmico do pensamento deBakhtin, Volochinov e Medvedev. O que procuraremos, a seguir, élevantar algumas dessas relações dialógicas com intuito, também,de justificar a nossa opção pelo conceito enunciado.

Cada conceito do Círculo é um “eu” da Arquitetônica, cadadefinição de conceito permite enxergar a extensão do todo, ou

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seja, os outros conceitos. É por isso que há uma interação orgâ-nica entre os conceitos no interior desse todo. A importância in-dividual do conceito reflete e refrata as suas relações com todosos outros, a partir do interior – da reflexão metalingüística, ética,ideológica e sociológica, e também, no exterior, pela comparaçãodo mesmo com sua definição lingüística, estética, psicológica,formalista, etc. .

Num primeiro momento, vamos nos debruçar no percursoque o conceito enunciado desenvolve na obra do Círculo, tentan-do abarcar todas as definições com que ele é definido, mesmoque ainda não com esse nome.

Um dos primeiros textos do Círculo, Toward a Philosophyof the Act (1919-1921), já prenunciava a preocupação com o todo.Nesse texto, Bakhtin nos dá a dimensão da palavra completa, daunidade da palavra enquanto todo, a qual, segundo ele, compre-enderia os seguintes aspectos:

a) aspecto conteúdo/sentido: conceito – a designação deum objeto;

b) aspecto expressivo: imagem;

c) aspecto emotivo-volitivo: entonação – expressa minhaatitude valorativa sobre o objeto.40

Esses aspectos já indicam que, para o Círculo, não há enun-ciados neutros. Eles consideram que “um enunciado isolado econcreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto deuma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos oenunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro oufalso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, au-toritário e assim por diante” (4, 46).

40 Esses aspectos do todo da palavra vão encontrar, posteriormente,um lugar dentre as caractéristicas do enunciado concreto.

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Voltando ao problema da palavra, do material verbal, en-contramos no ensaio, “Le discours dans la vie et le discours dansla poésie” (1926), assinado por Volochinov, o lugar onde ela setorna elemento integrante do enunciado. Tratando aqui do enun-ciado cotidiano, Volochinov nos diz que o todo do enunciado écomposto de uma parte verbal – a palavra (forma composicional)e de uma parte extra-verbal que corresponde à situação (formaarquitetônica). Essa parte extra-verbal – a situação – “se integraao enunciado como um elemento indispensável à sua constitui-ção semântica” (5, 191).

A situação, a forma arquitetônica do enunciado, compre-ende os seguintes elementos:

a) elemento espacial: horizonte espacial comum;

b) o elemento semântico: o conhecimento e a compreen-são da situação (Tema);

c) o elemento axiológico: o valor comum.

Esses elementos extra-verbais do enunciado concreto, ali-ados aos aspectos composicionais da palavra – o conceito, a ima-gem, a entonação – se tornam uma unidade orgânica. A investi-gação da parte verbal, imanente ao enunciado, deve ser relacio-nada a esses elementos extra-verbais. O horizonte social (valor) éque organiza, por um lado, a forma – a escolha da palavra e a suadisposição, e também, por outro, a entonação.

Um outro aspecto importante desse ensaio é que, no funci-onamento da sociedade, alguns valores não precisam ser enun-ciados: “na verdade, os principais valores sociais, que enraízamimediatamente nas particularidades da vida econômica do gruposocial dado não são mais enunciados: eles entram na carne e nosangue de todos os representantes deste grupo; eles organizamas ações e condutas das pessoas; eles são de algum modo solda-dos às coisas e aos fenômenos correspondentes; é por isso queeles não requerem uma formulação verbal particular” (5, 193), de

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qualquer maneira esses valores se realizam em algum materialsemiótico, seja pela mímica, gestualidade, expressão facial e ou-tros, que são também de natureza extra-verbal.

A abordagem do Círculo nasce do esforço de aplicar o mé-todo sociológico à forma composicional do enunciado concreto,de maneira a promover uma análise imanente e encontrar neleos elementos que permitem a sua interação orgânica enquantoum todo concreto. Para Volochinov, “toda a estrutura formal dodiscurso depende em larga medida da relação entre o enunciadode uma parte, e de outra parte a comunhão de valores que supo-mos existir no meio social ao qual o discurso é dirigido” (5, 195).

Para compreendermos todos os aspectos do enunciadoverbal – como eles se organizam e tomam forma – precisamosobservar a dupla orientação do locutor: 1. em direção ao ouvinte,e 2. em direção ao objeto do enunciado – o tema. SegundoVolochinov, “toda palavra realmente pronunciada – e não sepul-tada no dicionário – é a expressão e o produto da interação socialde três participantes: o locutor (o autor), o ouvinte (o leitor) e istode que se fala (o herói)41 ” (5, 198).

Perseguindo a noção de enunciado concreto, tema de nossadissertação, percebemos já nesse ensaio uma explicação dessaunidade da comunicação verbal que serve de base para as refle-xões do Círculo: “O enunciado concreto (e não a abstração lin-güística) nasce, vive e morre no processo da interação social dosparticipantes do enunciado. Sua significação e sua forma sãodeterminadas, essencialmente, pela forma e pelo caráter dessainteração” (5, 198).

Se vimos até agora a estrutura do enunciado exterior, ouseja, na relação locutor/ouvinte, como o Círculo resolveria, en-tão, o problema do enunciado interior, ou seja, a dimensão psico-lógica e subjetiva do enunciado?

41 Ou o tema, como aparece em Marxismo e Filosofia da Linguagem.(10, 128-136)

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Como podemos compreender, então, um discurso monoló-gico como, por exemplo: o discurso de um orador, o curso de umprofessor, o monólogo de um autor, as reflexões em voz alta deum homem sozinho, o cinema, a televisão?

Segundo as formulações do Círculo, todos os discursossão dialógicos pela sua estrutura semântica e estilística. A opo-sição entre um discurso dialógico e um discurso monológico sóé possível na perspectiva da forma exterior, ou seja, se no mo-mento da sua realização a resposta não é imediata, e o todo doenunciado, do diálogo, se completa na grande temporalidade,no grande diálogo.

A mesma orientação se reflete no discurso interior, ou seja,no funcionamento concreto do enunciado interior. SegundoVolochinov, por exemplo, há um elemento sociológico inerente àconsciência humana, a suas “emoções” e a sua expressão. Nessesentido, o discurso interior reflete e refrata a sociedade, na qual oindivíduo vive, criando um ouvinte virtual, uma sociedade vir-tual. Esse auditório virtual pode refletir o ponto de vista pessoal –a visão de mundo própria ao grupo social ao qual pertenço; adivisão em ideologias diferentes – quando duas classes sociaisdisputam com igual força a minha consciência –; ou, ainda, asituação onde o indivíduo perdeu seu ouvinte interior – ocorrên-cia da desagregação da consciência devido a conflitos violentosentre discurso interior e discurso exterior.

O discurso interior, o enunciado interior, assume, da mes-ma forma que o enunciado exterior “um ouvinte e se orienta emsua construção em relação a esse ouvinte. O discurso interior éum tipo de produto e expressão da comunicação social como é odiscurso exterior” (6, 79). Ele pressupõe um ouvinte virtual, como qual trava um diálogo interior.

Não podemos esquecer das críticas formuladas porVolochinov à psicanálise freudiana. Para ele, em primeiro lugar,“todo enunciado concreto reflete sempre o pequeno evento socialimediato – o evento de comunicação, de troca de palavras entrepessoas – do qual ele procede diretamente” (6, 86). Nesse sentido,

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42 Bakhtin/Medvedev critica a distinção, feita pelos formalistas, entrelinguagem prática e linguagem poética: “nós sabemos que a construçãoprática não existe, e que os enunciados da vida, a realidade que subjaza natureza das funções comunicativas da linguagem, se formam emvárias direções, dependendo das diferentes esferas e propósitos dacomunicação social” (7, 93).

Volochinov faz a seguinte observação em relação a sessão psica-nalítica e sua análise do discurso interior: “o que é refletido nes-ses enunciados não é a dinâmica da psique individual mas adinâmica social das inter-relações entre o doutor e o paciente.Aqui está a origem para o drama que é a construção freudiana.”(6, 79-80). O teórico russo não acredita no acesso ao inconscien-te, e, sim, na consciência: “o conteúdo da psique humana – umconteúdo que consiste de pensamentos, sentimentos e desejos –é dado numa formulação feita pelo consciência e, conseqüente-mente, na formulação do discurso verbal humano” (6, 83).

Há também no todo da obra do Círculo, uma série de refle-xões em torno do enunciado cotidiano. Para analisar um enun-ciado prático42 , ou cotidiano, devemos ter em mente: as caracte-rísticas sociais da comunidade discursiva e a complexidade con-creta do horizonte ideológico – conceitos, crenças, etc. onde cadaenunciado prático é formado. O enunciado para Bakhtin/Medvedev é uma construção comunicativa, diferentemente da lin-güística que o toma como uma construção abstrata onde formaseus conceitos de língua e seus elementos para seus própriospropósitos teóricos e práticos.

Numa crítica ao formalismo, Bakhtin/Medvedev diz que“todo enunciado concreto é uma unidade fonética compacta esingular” (7, 101). Ele acredita que o corpo fonético da obra, otodo fonético é organizado em tempo e espaços reais e sociais eque esse tempo e esse espaço são eventos da comunicação so-cial. Por isso, propõem uma “sociologia do som significativo”,onde “o estudo da organização do corpo fonético da obra nãopode ser separado do estudo da comunicação social organizadaque o implementa” (7, 103).

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O enunciado concreto é “um material individual complexo,fonético, articulado, complexo visual e, simultaneamente, é tam-bém uma parte da realidade social” (7, 120). Mais uma crítica àlingüística, ciência piloto da época, é formulada aqui: “a palavra,a forma gramatical, a sentença, e todas as definições lingüísticasem geral, tomadas em abstração do enunciado histórico e con-creto, se tornam signos técnicos de uma significação que é so-mente possível e ainda não individualizada historicamente” (7,121). Para Bakhtin/Medvedev, “se tomarmos o enunciado con-creto fora de sua criação histórica, em abstração, estaremos nosdesviando do que estamos procurando” (7, 126).

E o que o Círculo está procurando? O que vamos perce-bendo, na medida em que vamos evoluindo na leitura das obras,é que essa noção de enunciado concreto serve de base para queBakhtin, Volochinov e Medvedev reflitam sobre a realidade dapalavra-enunciado e os vários gêneros do discurso engendradospor ela no processo da comunicação verbal a partir de uma cer-ta relação de comunicação social: o enunciado poético, o enun-ciado prático, o enunciado cotidiano, o enunciado científico, oenunciado interior, etc. É considerando o enunciado concretocomo uma unidade da comunicação verbal que podemos anali-sar cada uma dessas manifestações do material verbal, ou seja,cada um desses gêneros do discurso.

A obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), assinadapor Bakhtin/Volochinov discute o enunciado sob os seus maisvariados aspectos: o enunciado enquanto signo ideológico, pala-vra, enunciado interior, enunciado dialógico/monológico e enun-ciado de outrem. Todos esses aspectos são discutidos a partir doenunciado concreto – vivo, real e humano – conforme as váriasdireções para as quais se encaminham as investigações dinâmi-cas do Círculo. É esse tipo de investigação dinâmica que irá serefletir na definição do conceito signo. O signo é de natureza inte-rindividual e a sua relação com a consciência é a seguinte:

“a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidademediante a encarnação material em signos. Afinal, compreender

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um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outrossignos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é umaresposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criati-vidade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo emsigno para um novo signo; é única e contínua: de um elo de natu-reza semiótico (e, portanto, também de natureza material) passa-mos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamen-te idêntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhumponto ela penetra a existência interior, de natureza não materiale não corporificada em signos” (10, 34).

O signo, o material semiótico, que tem como característi-cas: a pureza semiótica, a neutralidade ideológica, a implicaçãona comunicação humana ordinária, a possibilidade de interiori-zação, a presença obrigatória, como fenômeno acompanhante,em todo ato consciente, é o fenômeno ideológico por excelência, éa PALAVRA. Essas características permitem que a palavra sejaum material flexível, veiculável pelo corpo, tanto no interior – odiscurso interior – como exterior – o diálogo com outrem e o diá-logo de outrem.

Segundo Bakhtin/Volochinov, “a única maneira de fazercom que o método sociológico marxista dê conta de todas as pro-fundidades e todas as sutilezas das estruturas ideológicas“imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebi-da como “filosofia do signo ideológico”” (10, 38), ou seja, comouma “filosofia da palavra”: “a palavra, como signo, é extraída pelolocutor de um estoque social de signos disponíveis” (10, 113), e “aprópria realização deste signo social na enunciação [enunciado]concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais” (10,113).

Temos, então, o material necessário para a construção deuma Teoria do Enunciado Concreto: o enunciado ideológico, ouseja, a palavra ideológica, como também o método para investi-gar a sua estrutura imanente: o método sociológico. Nesse senti-do, “a filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar

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como base de sua doutrina a enunciação [enunciado] como reali-dade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica” (10, 126).

A natureza ideológica do enunciado concreto revela a açãode forças centrípetas e centrífugas no seu interior: “o verdadeiromeio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilingüismodialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto,saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual”43

(17, 82).

O procedimento dinâmico com que os conceitos principaisdo Círculo são definidos dá a dimensão dos elementos envolvidosna investigação do enunciado concreto. Se ele é concreto, é histó-rico; se ele é histórico, é humano; se ele é humano, é social; se eleé social, é ético; se ele é ético, é consciente, tudo isso em interaçãoorgânica. Por isso existe a necessidade de uma estrutura sociológi-ca bem determinada para dar conta do enunciado concreto e desua especificidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica edialógica. É também necessário levar em conta que o enunciadoconcreto é uma unidade da comunicação verbal, pois paraVolochinov é impossível “compreender como se constitui um enun-ciado qualquer, tenha ele a aparência da autonomia e do acaba-mento, se não o encaramos como um momento, como uma sim-ples gota nesta rio da comunicação verbal da qual o momentoincessante é aquele mesmo da vida social e da História” (16, 288).

Tomar o enunciado como unidade da comunicação verbalé o objetivo do segundo capítulo do ensaio “Os gêneros do discur-so” (1952-1953). As discordâncias com Saussure, em relação aforma de utilização da língua, são aqui explicitadas: “a utilizaçãoda língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou dou-tra esfera da atividade humana” (21, 290).

43 Na edição francesa enunciação aparece como énoncé: “Le veritablemilieu de l’énoncé, là ou il vit et se forme, c’est la polylinguismedialogisé, anonyme et social comme le langage, mais concret, maissature de contenu, et accentué comme un énoncé individuel” (18, 96).

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A interação orgânica entre a língua e a vida se dá por inter-médio de enunciados concretos. E quais seriam, então, as parti-cularidades constitutivas do enunciado concreto? Para Bakhtin,elas são as seguintes:

a) a alternância dos sujeitos falantes;

b) o acabamento específico do enunciado:

b.1 o tratamento exaustivo do sentido do objeto (tema);

b.2 o intuito, o querer-dizer do locutor;

b.3 as formas típicas de estruturação do gênero do aca-bamento;

c) a relação do enunciado com o próprio locutor (com o au-tor do enunciado), e com os outros parceiros da comuni-cação verbal.

É importante considerar todas essas particularidades eminteração orgânica, uma sendo indissociável da outra. Assimsendo, vejamos como Bakhtin explica cada uma delas.

A primeira particularidade é explicada da seguinte manei-ra: a alternância dos sujeitos falantes “compõe o contexto do enun-ciado, transformando-o numa massa compacta rigorosamentecircunscrita em relação aos outros enunciados vinculados a ele”(21, 298-299).

Já a segunda, além de ser uma das particularidades cons-titutivas do enunciado, é determinada por três fatores, os quais,da mesma forma que as particularidades constitutivas, estão li-gados, de maneira indissolúvel, ao todo orgânico do enunciado.Começando pela particularidade, Bakhtin nos diz que “o acaba-mento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitosfalantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamenteporque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer numpreciso momento e em condições precisas (21, 299). Nesse senti-do, “o primeiro e mais importante dos critérios de acabamento doenunciado é a possibilidade de responder” (21, 299).

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Essa “possibilidade de responder” é determinada pelos trêsfatores apresentados acima em relação ao acabamento específicodo enunciado concreto. Todos esses fatores – o tema, o intuito –elemento subjetivo, e o gênero do discurso, que como já dissemossão ligados indissoluvelmente, permitem que observemos nasexplicações teóricas de Bakhtin, a articulação dinâmica dessainteração orgânica.

Portanto, o tratamento exaustivo do objeto de sentido éexplicado do seguinte modo: “teoricamente, o objeto é inesgotá-vel, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obracientífica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em con-dições determinadas, em função de uma dada abordagem do pro-blema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde oinício ele estará dentro dos limites de um intuito definido peloautor” (21, 300).

Esse intuito discursivo – ou o querer-dizer do locutor – queBakhtin considera o elemento subjetivo do enunciado, “entra emcombinação com o sentido do objeto – objetivo – para formar umaunidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta(única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias in-dividuais, pelos parceiros individualizados e suas intervençõesanteriores: seus enunciados” (21, 300).

Completando essa engrenagem, do ponto de vista das for-mas típicas de estruturação do gênero do acabamento, chega-mos aos gênero do discurso: “o querer-dizer do locutor se realizaacima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolhaé determinada em função da especificidade de uma dada esferada comunicação verbal, das necessidades de uma temática (dosentido do objeto), do conjunto constituído dos parceiros, etc.Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este re-nuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se eajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na for-ma do gênero determinado” (21,301).

Nos resta explicar, ainda, a terceira particularidade consti-tutiva do enunciado: a relação do enunciado com o próprio locutor

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(com o autor do enunciado), e com os outros parceiros da comuni-cação verbal. Considerando o enunciado como um elo na cadeiada comunicação verbal, Bakhtin diz que esse enunciado “repre-senta a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do ob-jeto do sentido. Por isso o enunciado se caracteriza acima de tudopelo conteúdo preciso do objeto do sentido. A escolha dos recur-sos lingüísticos e do gênero do discurso é determinada principal-mente pelos problemas de execução que o objeto de sentido im-plica para o locutor (o autor)” (21, 308). Essa escolha dos recur-sos lingüísticos e do gênero do discurso, aliada a “necessidade deexpressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado”, com-põem as particularidades que determinam o estilo e a composi-ção do enunciado, ao mesmo tempo que explicita a relação doenunciado com o seu autor.

Não podemos esquecer, também, da relação do enunciadocom os outros parceiros da comunicação verbal. Para Bakhtin,“ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidadeconstitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderiahaver, enunciado. As diversas formas típicas de dirigir-se a al-guém e as diversas concepções típicas do destinatário são as par-ticularidades constitutivas que determinam a diversidade dosgêneros do discurso” (21, 325).

Das particularidades constitutivas do enunciado e de seusfatores de acabamento, destacamos alguns conceitos que julga-mos importante apresentar de uma maneira mais aprofundada:Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e Entonações.

O que nos propomos, a seguir, é eleger cada um dessesconceitos principais, que em interação orgânica, permitem inves-tigar o enunciado concreto, tomando cada um como centro denossas atenções por motivos exclusivamente didáticos. É claroque esses conceitos não são nenhuma novidade terminológica,mas a extensão de sentido que adquirem no interior do todo daobra do Círculo se revela absolutamente nova.

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O conceito Gêneros de Discurso aparece, pela primeira vez,na obra de Bakhtin/Medvedev The Formal Method In LiteraryScholarship (1928)44 , como crítica à definição mecânica desseconceito pelos formalistas.

Como acontece com os outros conceitos do Círculo,Bakhtin/Medvedev procura entender o sentido desse conceito,que representa, no interior da obra dos formalistas, uma expres-são do pensamento abstrato, em sua relação com o enunciadoconcreto. Para os teóricos russos, o problema da investigação dogênero no pensamento formalista é que ele só é abordado “quan-do todos os outros elementos básicos da construção já estão es-tudados e definidos, e a poética formalista está terminada” (7,129), ou seja, o gênero só é investigado no fim da análise, meca-nicamente, como um composto de esquemas.

A proposta do Círculo é que a análise do todo da obra poé-tica, do todo desse enunciado artístico concreto, deve ser iniciadapelo gênero, pois ele representa a forma típica dessa construçãopoética. Mais uma vez, a crítica se dirige a uma análise da cons-trução poética cujo percurso se orienta pelos elementos abstra-tos da língua, propondo, por outro lado, uma definição para esseconceito no interior do enunciado concreto. Bakhtin/Medvedev

44 Morson e Emerson em seu Creation of a Prosaics, fazem a seguinteobservação: “Perhaps still more surprising, the Bakhtin group’s firstserious discussion of genre belongs not to Bakhtin himself, but toMedvedev. The Formal Method in Literary Scholarship devotes achapter to demonstrating that any good sociological approach toliterature must be grounded in genres, which, Medvedev argued, carryand shape social experience for individual people. Although it ispresently impossible to determine priority of discovery, Bakhtin seemsto have been impressed and influenced by Medvedev’s argument,enough so to have refined, extended, and recast it. Over the next fewdecades and with varying degrees of success, Bakhtin was to pass allhis favorite concepts and concerns through the prism of genre and thenovel” (38, 272).

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considera que “o sentido construtivo de cada elemento só podeser compreendido em conexão com o gênero” (7, 129).

O gênero é “a totalidade típica do enunciado artístico, euma totalidade vital, um todo acabadado e resolvido” (7, 129).Para o Círculo, “o problema do acabamento [zavershenie] – é umdos problemas mais importantes da Teoria do Gênero” (7, 129),pois “todo gênero representa um caminho especial de construçãoe acabamento de um todo, acabá-lo essencialmente etematicamente (repetimos), e não apenas condicionalmente oucomposicionalmente” (7, 129).

De qualquer forma, é importante salientar que paraBakhtin/Medvedev “o acabamento composicional é possível emtodas as esferas da criação ideológica, mas o acabamento temáticoreal é impossível” (7, 129), devido a concepção fenomenológica eparticular que orienta sua concepção de enunciado concreto, ouseja, do ponto de vista da comunicação verbal a abordagem te-mática está sempre em evolução e em interação com a evoluçãodos gêneros do discurso.

A análise mecânica, segundo o Círculo, que norteia o pen-samento formalista impede a percepção do problema do todo cons-trutivo tridimensional, a interação orgânica entre o problema dotodo, o problema do gênero e o problema do acabamento temáticona construção da obra poética, bem como nos outros gêneros dodiscurso.

Qualquer gênero se orienta em relação à realidade em duasdireções:

a) ao ouvinte ou receptor em conjunto com as condiçõesprecisas de performance e percepção;

b) à vida pelos seus conteúdos temáticos. (acontecimen-tos, problemas, etc.).

Para Bakhtin/Medvedev, “cada gênero é capaz de contro-lar apenas certos aspectos precisos da realidade. Cada gêneropossui princípios precisos de seleção, formas precisas para ver e

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conceptualizar a realidade, e uma extensão e profundidade depenetração” (7, 130).

Como já demonstrado anteriormente, em relação aos con-ceitos enunciado e diálogo, o conceito gênero interage, também,com o problema da consciência e do gênero interior. Para o Cír-culo, “são as formas do enunciado, e não as formas da língua,que têm o papel mais importante na consciência e na compreen-são da realidade” (7, 133). Nesse sentido, “a consciência humanapossui uma série de gêneros interiores para perceber econceptualizar a realidade. Uma consciência determinada é ricaou pobre em gêneros, dependendo do seu desenvolvimento ideo-lógico” (7, 133).

Um outro aspecto da base do pensamento concreto doCírculo é a proposta de que uma poética genuína do gênero sópode ser uma sociologia do gênero. Para eles, “a realidade dogênero e a realidade acessível ao gênero são inter-relacionadasorganicamente. Mas temos visto que a realidade do gênero é arealidade social de sua realização no processo da comunicaçãoartística. Portanto, o gênero é o agregado de sentidos da orienta-ção coletiva na realidade, com a orientação através do acaba-mento. Esta orientação é capaz de subjugar novos aspectos darealidade. A conceptualização da realidade se desenvolve e secria no processo da comunicação social ideológica” (7, 135).

Sendo assim, os gêneros do discurso se tornam os modelospadrões da construção de um todo verbal, como que uma tipolo-gia estilístico-composicional das produções verbais. De qualquerforma, devemos levar em conta que “esses modelos do gênero sedistinguem por princípio do modelo lingüístico das orações” (23,357).

Embora o conceito Gêneros do discurso só tenha aparecidoem 1928, as obras anteriores do Círculo já refletem um encami-nhamento para esse conceito. Já no seu primeiro texto “Art andAnswerability” (1919), Bakhtin divide a cultura humana em trêsdomínios: a ciência, a arte e a vida, lembrando que esses trêsdomínios “ganham unidade somente na pessoa individual que os

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integra dentro de sua própria unidade” (1, 1). Para ele, “a arte e avida não são uma unidade, mas elas devem se unir em mim – naunidade de minha responsabilidade” (1, 3). Nesse sentido, o con-ceito Gêneros do Discurso vai ser construído no interior de cadaum desses domínios, sendo que a vida cotidiana será constituídapelos Gêneros Primários e a vida da ciência e a vida da arte, pelosGêneros Secundários.

Essa noção de domínio cultural vai estar presente, tam-bém, no ensaio de 1926, “Le discours dans la vie et le discoursdans la poésie”, onde Volochinov busca a compreensão de umgênero primário – o discurso na vida – como fundamento parauma explicação do funcionamento do gênero secundário – a poe-sia, no interior do todo da sociedade e de sua vida econômica.Referindo-se ao primeiro – o discurso na vida – como enunciadoda vida cotidiana, encontramos aqui uma primeira referência agênero: “todas as avaliações desse gênero, qualquer que seja ocritério – ético, gnoseológico, político ou outro – que lhes oriente,englobam muito mais que o conteúdo no aspecto propriamenteverbal, lingüístico do enunciado: elas englobam, ao mesmo tem-po, a palavra e a situação extra-verbal do enunciado” (5, 189)45

O estudo da problema dos Gêneros do Discurso deve seranalisado em interação orgânica com o problema da língua e oproblema da Comunicação Social. Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov propõe que “uma análise fecunda das formas do con-junto de enunciações [enunciados] como unidades reais na ca-deia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enuncia-ção [enunciado] individual como um fenômeno puramente socio-lógico” (10, 126).

45 Na edição inglesa desse ensaio não há referência a gênero nessacitação: “All these and similar evaluations, whatever the criteria thatgovern them (ethical, cognitive, political, or other), take in a good dealmore than what is enclosed within the strictly verbal (linguistic) factorsof the utterance. Together with the verbal factors, they also takein the extraverbal situation of the utterance” (6, 98). Talvez porisso, Morson e Emerson não considerem referência a esse conceitonesse ensaio.

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Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve a seguinteordem metodológica para o estudo da língua:

1. the forms and types of verbal interaction in connection

with their concrete conditions;

2. forms of particular utterances, of particular speech

performances, as elements of a closely linked interaction

–i.e., the genres of speech performance in human behavior

and ideological creativity as determined by verbal

interaction;

3. a reexamination, on this new basis, of language formsin their usual linguistic presentation. (11, 95-96)46

Essa ordem metodológica não esconde a interação orgâ-nica entre as suas proposições, assim como, a sua articulaçãodinâmica: “as relações sociais evoluem (em função das infra-es-truturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluemno quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evolu-em em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolu-ção reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua” (10,124).

A relação entre o tipo de comunicação social, o tipo de inte-ração verbal e os gêneros do discurso é explicada da seguinte

46 Na edição brasileira, o conceito gêneros do discurso é substituídopor “categorias de atos de fala”, e a ordem metodológica do estudo dalíngua é a seguinte:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condiçõesconcretas em que se realiza.

2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, emligação estreita com a interação de que constituem os elementos,isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológicaque se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretaçãolingüística habitual (10, 124).

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forma: “toda situação da vida cotidiana possui um auditório, cujaorganização é bem precisa, e dispõe de um repertório específicode pequenos gêneros apropriados. Em cada caso, o gênero cotidi-ano se adapta à linha que a comunicação social parece ter traça-do para ele – no sentido de representar o reflexo ideológico dotipo, da estrutura, da finalidade e da constituição própria às rela-ções de comunicação social” (16,291).

Em “La structure de l’énoncé” (1930), Volochinov tambémdá sua definição de gênero: ele é um tipo de comunicação socialque “organiza, constroi e acaba, de maneira específica, a formagramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura dotipo do qual ele depende” (16, 290). Nesse mesmo ensaio ele dis-cute o gênero cotidiano representado no discurso literário, ouseja, no enunciado poético.

Antes de continuar nossas observações sobre o desenvolvi-mento do conceito gêneros do discurso na obra do Círculo, é im-portante lançar algumas observações sobre o seu funcionamen-to:

a) ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substi-tui quaisquer gêneros já existentes;

b) qualquer gênero novo nada mais faz que completar osvelhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existen-tes;

c) cada gênero tem seu campo predominante de existênciaem relação ao qual é insubstituível;

d) cada novo gênero essencial e importante, uma vez sur-gido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novogênero torna os velhos, por assim dizer, mais conscien-tes, fá-los melhor conscientizar os recursos e limitações,ou seja, superar a sua ingenuidade;

e) a influência dos novos gêneros sobre os velhos contri-bui, na maioria dos casos, para a renovação e o enri-quecimento destes. (13, 237-238).

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Todas essas características mantêm a coerência dinâmicados conceitos que articulam as formulações teóricas de Bakhtin/Volochinov/Medvedev, o que também irá se refletir na distinçãoentre gêneros primários e gêneros secundários. E é no ensaio “Osgêneros do discurso” (1952-1953) que encontramos todas as de-finições que orientam esse conceito no todo da obra do Círculodesenvolvidos em seu mais alto grau de acabamento teórico. Aqui,os gêneros do discurso são divididos em gêneros primários e gê-neros secundários e, também, esses conceitos são orientadosdentro de uma perspectiva dinâmica com base no enunciado con-creto cotidiano.

Os gêneros do discurso são aqui definidos como “tipos re-lativamente estáveis de enunciados” que uma determinada co-munidade utiliza no processo de interação verbal. Para Bakhtin,“a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas,pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, ecada esfera dessa atividade comporta um repertório de gênerosdo discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medidaque a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (21,279). Essa heterogeneidade dos gêneros do discurso – desde osgêneros da vida cotidiana, passando pelas formas variadas deexposição científica, e de todos os modos literários – poderiainviabilizar o seu estudo, visto que “a diversidade funcional pare-ce tornar os traços comuns a todos os gêneros do discurso abs-tratos e inoperantes” (21, 280).

Mas, então, como Bakhtin resolve esse problema? O teóri-co russo vai definir o caráter genérico do enunciado concreto le-vando “em consideração a diferença essencial existente entre ogênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso se-cundário (complexo)” (21, 281), ou seja, o enunciado concreto é,em relação aos enunciados anteriores, um enunciado típico daorganização social da linguagem em gêneros do discurso de umaou outra esfera – primária ou secundária.

Para Bakhtin, “uma concepção clara da natureza do enun-ciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular(primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do dis-

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curso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a suaorientação específica”47 (21, 282). Ele fala que o que esclarece anatureza do enunciado e sobretudo “o difícil problema da corre-lação entre língua, ideologias e visão do mundo” (21, 282) é, porum lado a inter-relação entre os gêneros primários e secundári-os, e por outro o processo histórico de formação dos gêneros se-cundários. E o que são gêneros primários e gêneros secundários?

Os gêneros primários são aqueles que compreendem ostipos de diálogo oral: linguagem de reuniões sociais, dos círculos,linguagem familiar, cotidiana, linguagem sociopolítica, filosófica,etc.. A sua esfera de realização concreta é a da comunicação verbalcotidiana onde eles se apresentam em infinita variedade: em in-teração com as formas de autor, ou seja, “comunicamos fatosque achamos interessantes ou que são íntimos, pedimos e recla-mamos todas espécies de coisas, fazemos declarações de amor,discutimos e brigamos, trocamos amabilidades, etc”(25, 395); eminteração com uma certa hierarquia social – esfera de familiari-dade, a esfera oficial, e suas variantes. Esses gêneros são fenô-menos da vida cotidiana.

Ao refletir sobre esses fenômenos da vida cotidiana, o enun-ciado cotidiano, o Círculo se vale do enunciado literário como umarepresentação do enunciado real. Segundo Volochinov, “podemos,[…] sem risco de erro, supor que a relação de dependência queexiste entre a “infra-estrutura” econômica – a base econômica dasociedade – e o tipo de comunicação cotidiana reproduzida no “poe-ma” de Gógol, é medido segundo a proporção que ele tenha ocorri-do na vida real; diremos a mesmo coisa da dependência que existeentre um tipo de comunicação cotidiana e o modo de interaçãoverbal que se inscreve no seu quadro” (16, 310)48 .

47 O enunciado concreto encontra seu lugar nas relação com enunciadosanteriores do mesmo tipo. Nesse sentido, o conjunto de enunciadotípicos, ou seja, que pertence a uma determinada esfera de sentido, éo que o Círculo chama de gêneros do discurso.

48 Essa relação entre o enunciado real e o enunciado representado édiscutida, também, nas obras de Bakhtin Problemas da Poética de

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Os gêneros secundários – o romance, o discurso científico,o discurso ideológico – são aqueles que “durante o processo desua formação […] absorvem e transmutam os gêneros primários(simples) de todas as espécies, que se constituíram em circuns-tância de uma comunicação verbal espontânea” (21, 281). É im-portante observar, então, que a presença do gênero primário nogênero secundário implica uma representação, visto que o pri-meiro é um fenômeno da vida cotidiana, e o segundo, da vida deum determinado gênero secundário – romance, discurso científi-co, discurso religioso, etc.

Essa distinção entre gêneros primários e gêneros secundá-rios é de importância capital para a compreensão da distinçãoentre a heterogeneidade de gêneros do discurso da vida cotidianae a representação desses gêneros no romance, concebido comoum fenômeno da vida artístico-literária49 . Segundo Bakhtin, “anatureza do enunciado deve ser elucidada e definida por umaanálise de ambos os gêneros. Só com esta condição a análise seadequaria à natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeriaseus aspectos essenciais” (21, 282).

De acordo com Bakhtin, “todos os gêneros secundários (nasartes e nas ciências) incorporam diversamente os gêneros primári-os do discurso na construção do enunciado, assim como a relaçãoexistente entre estes (os quais se transformam, em maior ou me-nor grau, devido à ausência de uma alternância dos sujeitos falan-tes)” (21, 295). Os gêneros secundários simulam a comunicaçãoverbal, ou seja, o diálogo, e os gêneros primários do discurso noque se refere a posição responsiva do enunciado. Ocorre, então,que “nos limites do enunciado, o locutor (ou escritor) formula per-guntas, responde-as, opõe objeções que ele mesmo refuta, etc. (21,295), ou seja, opera simulando as réplicas do diálogo.

Dostoievski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Ocontexto de François Rabelais.

49 No seu primeiro escrito – “Arte e Responsabilidade” (1919), Bakhtinjá dizia: “Quando um ser humano está na arte, ele não está na vida,e vice-versa” (1, 1)

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Não é só a distinção entre gêneros primários e gêneros se-cundários que vai nos ajudar a analisar as sutilezas do enuncia-do. É preciso, também, considerar o enunciado concreto comouma unidade da comunicação verbal, seja ele um enunciado co-tidiano, científico ou artístico.

Nesse sentido, podemos compreender a obra-enunciadorealizada por um gênero secundário, também como um “elo nacadeia da comunicação verbal; do mesmo modo que a réplica dodiálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: comaquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e,ao mesmo tempo, nisso semelhante à réplica do diálogo, a obraestá separada das outras pelo fronteira absoluta da alternânciados sujeitos falantes” (21, 298), ou seja, todas as particularida-des constitutivas do enunciado concreto, que apresentamos naintrodução desse capítulo, funcionam tanto para a análise dogênero primário como do gênero secundário, e permitem colocarno mesmo terreno comum tanto os enunciados concretospertencentens a um ou outro gênero.

Falta ainda apresentar uma última distinção, do ponto devista do enunciado enquanto unidade da comunicação verbal: aoposição entre as formas da língua e os gêneros do discurso –formas do enunciado concreto. Bakhtin diz que Saussure ignora“o fato de que, além das formas da língua, há também as formasde combinação dessas formas da língua, ou seja, ignora os gê-neros do discurso” (21, 304). O dado, o que compreende os re-cursos para a construção de um enunciado concreto – o criado –se compõem, então, das formas da língua e dos gêneros do dis-curso (formas do enunciado).

Para Bakhtin, “os gêneros do discurso são, em compara-ção com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar,mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de terum valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. Épor isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de suaindividualidade e de sua criatividade, não pode ser consideradocomo uma combinação absolutamente livre das formas da língua,do modo concebido, por exemplo, por Saussure (e, na sua estei-

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ra, por muitos lingüistas), que opõe o enunciado (a fala), comoum ato puramente individual, ao sistema da língua como fenô-meno puramente social e prescritivo para o indivíduo”50 (21, 304).

Mas é importante ressaltar que para o Círculo, os gênerosdo discurso e a língua materna são anteriores à gramática, com-preendendo a gramática como fruto do pensamento abstrato. Nes-se sentido, “a língua materna – a composição do seu léxico e suaestrutura gramatical – não a apreendemos nos dicionários e nasgramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos queouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva quese efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as for-mas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado ejuntamente com essas formas. As formas da língua e as formastípicas do enunciado, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente esem que sua estreita correlação seja rompida” (21, 301-302).

A dinâmica do funcionamento real do enunciado concretoganha, na relação com o gênero do discurso, uma explicação maisparticular. Se antes o enunciado era uma unidade da comunica-ção verbal, agora, ele vai ser um “elo na cadeia da comunicaçãoverbal de uma dada esfera” (21, 316), ou seja, de um gênero dodiscurso determinado. Segundo Bakhtin, “as fronteiras desseenunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes.Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-semutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhesdeterminam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lem-branças de outros enunciados, aos quais está vinculado no inte-rior de uma esfera comum da comunicação verbal” (21, 316), ouseja, de um determinado gênero do discurso, seja ele primário ousecundário.

Aquela reflexão que deixamos de fazer em Marxismo e Fi-losofia da Linguagem por problemas de tradução, ou seja asrelações existentes entre o enunciado concreto, o diálogo e o

50 Essa distinção entre língua e fala já foi tratada no capítulo anterior,quando tratamos do “objetivismo abstrato”.

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gênero do discurso, ganham no ensaio “Os Gêneros do Discur-so” uma articulação que permite recuperar a unidade do círcu-lo. De um ponto de vista dialógico, o enunciado concreto é, an-tes de mais nada, uma resposta, ou seja, uma réplica a enun-ciados anteriores dentro do mesmo gênero: “refuta-os, confir-ma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e,de um modo ou de outro, conta com eles” (21, 316), ou seja, noacontecimento único e não-reiterável do enunciado concreto háuma interação orgânica entre o gênero do discurso ao qual elepertence e a sua natureza dialógica, seja do ponto de vista domicro-diálogo – diálogo interior, do diálogo na presença de in-terlocutores, ou do grande diálogo, onde todo ato verbal huma-no pode ser colocado em relação dialógica.

É no interior de um gênero do discurso determinado queo enunciado concreto ocupa uma posição definida em relação aum determinado tema. Desta forma, “o enunciado é repleto dereações-resposta a outros enunciados numa dada esfera da co-municação verbal” (21, 316), mas esse é o assunto que tratare-mos a seguir, e se refere às relações entre o enunciado de outreme a expressividade expressa pelo estilo e pela entonação.

�,��#!O tratamento exaustivo do tema é, como vimos anterior-

mente, um dos fatores do acabamento específico de um enun-ciado concreto enquanto unidade da comunicação verbal. Mascomo esse conceito foi tratado no percurso teórico do CírculoBakhtin/Volochinov/Medvedev? Quais são as características queele apresenta na relação com outros conceitos como gêneros dodiscurso, situação, significação, relações dialógicas? Como inse-rir o tema na engrenagem dinâmica que move o todo do enun-ciado concreto?

Se o princípio monístico que caracteriza o pensamento doCírculo permanecer válido para esse conceito, encontraremosnele todas as características já mencionadas em relação ao enun-

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ciado e aos gêneros do discurso. Em primeiro lugar, vamos par-tir de uma definição de tema dada pelo Círculo, para depoispercorrer o todo da obra, procurando outras relações que esseconceito possa ter adquirido nesse percurso.

Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) há umcapítulo destinado a esse conceito. O capítulo 7 – Tema e Signifi-cação na Língua – apresenta uma série de características com asquais podemos definir o tema. Para Bakhtin/Volochinov, o temaé:

a) uma propriedade que pertence a cada enunciado comoum todo;

b) o sentido do enunciado completo;

c) individual e não reiterável;

d) expressão de uma situação histórica concreta que deuorigem ao enunciado;

e) determinado não só pelas formas lingüísticas que en-tram na composição (as palavras, as formas morfológicasou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmentepelos elementos não verbais da situação;

f) tão concreto como o instante histórico ao qual pertenceo enunciado;

g) irredutível à análise, ou seja, não pode ser segmentado;

h) um sistema de signos dinâmico e complexo, que procuraadaptar-se adequadamente às condições de um dadomomento da evolução; e

i) “uma reação da consciência em devir ao ser em devir”,ou seja, é uma resposta51 (10, 128-129).

51 O problema da tradução aparece mais uma vez aqui. Em Marxismo eFilosofia da Linguagem não existe a ocorrência enunciado, e simenunciação completa, enunciação como um todo. Decidimos manter oconceito enunciado por dois motivos: 1) é o tema de nossa dissertaçãoe 2) encontramos argumentos favoráveis nas citações dessa obra que

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Antes de traçar um paralelo entre as distinções enuncia-do/frase (ou oração) e as que são feitas nesse capítulo de Mar-xismo e Filosofia da Linguagem entre tema – o sentido único enão reiterável do enunciado concreto – e significação – o sentidodas palavras que compõe o enunciado concreto na sua acepçãolingüística – é importante voltar um pouco no tempo, e procuraroutras relações com as quais o conceito tema é apresentado.

Em “Discours dans la vie et dans la poésie”(1926) pode serestabelecida uma relação dialógica entre tema – aquilo de que sefala na vida – e herói- aquele de que se fala na obra literária: “todapalavra realmente pronunciada […] é a expressão e o produto dainteração social de três participantes: o locutor (ou autor), o ou-vinte (ou leitor) e aquilo (ou isso) de que falamos (ou herói)” (5,198). Esses três participantes – o locutor, o ouvinte, o tema –interagem organicamente. Sendo assim, os dois últimos – o ou-vinte e o tema (herói), aos quais o locutor orienta seu enunciadoconcreto, “participam constantemente no acontecimento da cria-ção, o qual não cessa de ser, um instante sequer, o acontecimen-to de uma comunicação viva entre eles” (5, 201).

Bakhtin/Medvedev aponta um outro aspecto na definiçãode tema. Para eles, é importante distinguir entre uma concepçãolingüística do tema, a significação da palavra e da frase, da que édefendida pelo Círculo, onde o tema é o sentido do todo do enun-ciado concreto. O tema não é composto dessas significações, ou

se encontram em Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique, comosegue:

“Appelons le sens de l’énoncé entier son thème. […] En fait, le thèmede l’énoncé est individuel et non réitérable, comme l’est l’énoncé lui-même. Il est l’expression de la situation historique concrète que aengendré l’énoncé… [..] Il s’ensuit que le thème de l’énoncé estdéterminé non seulement par les formes linguistiques qui le composent– mots, forms morphologiques et syntaxiques, sons, intonation – maisaussi par les aspects extra-verbaux de la situation. Si nous omettonsces aspects de la situation, nous ne saurions comprendre l’énoncé,comme si nous en avions omis les mots les plus importants” (30, 73).

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seja, ele não é um elemento da língua. Mesmo sendo construídocom a ajuda desses elementos, o tema transcende a língua, “é aotodo do enunciado como um ato discursivo que está direcionadoo tema, não à palavra, à frase, ou ao período” (7, 132). Os teóricosrussos consideram o tema como “um ato sócio-histórico preciso.Conseqüentemente, ele é inseparável da situação total do enun-ciado da mesma forma que é inseparável dos elementos lingüísti-cos” (7, 132), ou seja, em todo enunciado concreto existe umaparte verbal e uma parte extra-verbal, e o tema pertence a essaúltima, enquanto um dos fatores de acabamento do enunciadoconcreto.

A relação entre o tema e o gênero do discurso é explicitadada seguinte maneira: “a unidade temática da obra e seu lugarreal na vida desenvolvem-se conjuntamente, organicamente, naunidade do gênero” 52 (7, 133). Uma visão mais ampla dessarelação é dada na seguinte citação: “dentro do horizonte ideoló-gico da cada época, há um centro de valores que é seguido portodos os caminhos e aspirações da atividade ideológica. Essecentro de valores torna-se o tema básico ou, mais precisamenteo complexo de temas da literatura de uma dada época. Os te-mas dominantes estão conectados, também, como sabemos, comum repertório específico de gêneros”53 (7, 157).

Voltando a Marxismo e Filosofia da Linguagem, encontra-mos essa mesma articulação: “a cada etapa do desenvolvimentoda sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e li-mitados que se tornam objetos da atenção do corpo social e que,

52 Entenda-se obra aqui como uma obra-enunciado, ou seja, a obracomo uma unidade da comunicação verbal de um gênero secundário,nesse caso, da literatura.

53 Essa relação do centro de valores com os temas de um gênero dediscurso específico – a literatura (gênero secundário) pode tambémser derivada para os gêneros primários (vida cotidiana), bem comopara outros gêneros secundários. Ver os objetivos de Bakhtinexplicitados anteriormente neste trabalho no que se refere à Arquite-tônica Apreciativa e ao centro de valores.

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por causa disso, tomam um valor particular. Só este grupo deobjetos dará origem a signos, tornar-se-á um elemento da comu-nicação por signos” (10, 44). O signo a que Bakhtin/Volochinovse refere aqui é o signo ideológico, ou seja, o signo povoado porvalores sociais. Nesse sentido, os teóricos russos chamam “a rea-lidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo”(10, 45), isto é, “cada signo constituído possui seu tema” (10, 45),ou melhor, cada enunciado concreto, cada manifestação verbaltem seu tema específico.

O tema é, então, um tema ideológico, o qual possui sempreum índice de valor social de natureza interindividual. O signoideológico, o tema, o valor se constroem entre os indivíduos, ouseja, eles são de natureza sociológica, ideológica e dialógica. ParaBakhtin/Volochinov, “o tema e a forma do signo ideológico estãoindissoluvelmente ligados, e não podem, por certo, diferenciar-sea não ser abstratamente” (10, 45).

Nesse sentido, as relações entre forma – gêneros do discur-so – e conteúdo – tema – adquirem vida sob as mesmas forçassociais e condições econômicas. De acordo com os teóricos rus-sos, “são as mesmas condições econômicas que associam umnovo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornamsocialmente pertinente, e são as mesmas forças que criam asformas das comunicações ideológicas (cognitiva, artística, reli-giosa, etc.), as quais determinam, por sua vez, as formas da ex-pressão semiótica”54 (10, 46).

Essa explicação extra-verbal da natureza do tema precisaser compreendida também na sua relação com o verbal, ou seja,com a palavra, visto que o enunciado concreto, como já fala-mos, se compõe de uma parte verbal – as palavras – e de uma

54 Essas forças sociais e a organização econômica da sociedade sãofundamentais para a compreensão ativa de qualquer conceito doCírculo. Elas aparecem no todo da obra com as seguintesdesignações: horizonte social, apreciação social, expressividadee outras.

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parte extra-verbal – a situação. Bakthin/Volochinov formula,então, a inter-relação entre o tema – extra-verbal – e a significa-ção – verbal – da seguinte maneira:

“o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüísti-ca de significar. De fato, apenas o tema significa de maneiradeterminada. A significação é o estágio inferior da capacidadede significar. A significação não quer dizer nada em si mesma,ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar nointerior de um tema concreto” (10, 131).

Os teóricos russos distinguem aqui a relação entre a signi-ficação contextual de um enunciado concreto – o tema – e a signi-ficação da palavra, frase, oração no sistema da língua, ou seja, ainvestigação abstrata dos elementos lingüísticos55 . A naturezasemântica e a natureza lingüística, ou seja, o extra-verbal e overbal que compõem o enunciado concreto se completam na se-guinte dinâmica: “a significação, elemento abstrato igual a simesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradi-ções vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova signifi-cação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provi-sórias” (10, 136).

Essa relação do tema com o enunciado concreto, único, enão reiterável, ajuda a compreender o discurso de outrem, fenô-meno que é estudado amplamente pelo Círculo. A relação entre odiscurso do autor e o discurso citado envolve, também, uma abor-dagem do tema. O discurso citado é um tema do nosso discurso.Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema,e assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discur-so: “o tema autônomo então torna-se o tema de um tema” (10,144). O estudo do fenômeno do discurso citado exige que se es-

55 Pode ser feita um analogia entre essa inter-relação entre tema esignificação e a que foi feita no capítulo anterior entre enunciado efrase (e oração), visto que o tema corresponde a uma forma doenunciado e a significação à forma da língua.

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56 Na edição francesa aparece enunciado e não enunciação: “Le senslinguistique d’un énoncé donné se conçoit sur le fond du langage, sonsens réel, sur le fond d’autres énoncés concrets sur le même thème,d’autres opinions, points de vue et appréciations en langages divers…”(18, 104).

tabeleça uma relação dialógica entre o tema do enunciado do au-tor e o tema do enunciado citado. Segundo Bakhtin, “o significadolingüístico de uma enunciação dada é conhecido sobre o fundo deuma língua e o seu sentido atual, sobre o fundo de outrasenunciações concretas do mesmo tema, sobre o fundo de opiniõescontraditórias, de pontos de vista e de apreciações…”56 (17, 90).

No ensaio “O discurso no romance”, Bakhtin dedica umcapítulo à pessoa que fala no romance, buscando a relação entreessa pessoa – representada no gênero secundário (romance), e apessoa que fala na vida cotidiana – gênero primário. Nesse últi-mo, ele mostra como nossa fala está cheia de palavras de outrem,ou seja, o tema de nossos discursos é o tema dos discursos deoutrem: “fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que osoutros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou jul-gam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, asinformações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-sedelas, refere-se a elas, etc. Se prestarmos atenção aos trechos deum diálogo tomado ao vivo na rua, na multidão, nas filas, no hall,etc., ouviremos com que freqüência se repetem as palavras “diz”,“dizem”, “disse”, e freqüentemente escutando-se uma conversarápida de pessoas na multidão, ouve-se como que tudo se juntarnum único “ele diz”, “você diz”, “eu digo… E como é importante o“todos dizem” e o “ele disse” para a opinião pública, a fofoca, omexerico, a calúnia, etc.” (17, 139).

É importante ressaltar quantas características o tema jáadquiriu nesse percurso. O tema é ideológico, histórico-fenomenológico, sociológico e dialógico, ou seja, preenche o prin-cípio monístico que rege todos os conceitos formulados pelo Cír-culo. A engrenagem dinâmica que move o enunciado concretomove também todos os seus elementos constitutivos.

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Assim sendo, o tratamento exaustivo do tema do enuncia-do é, em conjunto com o gênero do discurso e o intuito discursivodo locutor, um dos três fatores que em interação orgânica dãoacabamento específico ao enunciado concreto e proporcionamsua capacidade de responder a enunciados anteriores.

Para Bakhtin, o objeto do discurso “é inesgotável, porém,quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica,por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições de-terminadas, em função de uma dada abordagem do problema, domaterial, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele esta-rá dentro dos limites de um intuito definido pelo autor” (21, 300).Nesse sentido, o objeto do discurso – o tema – de um enunciadoconcreto “não é objeto do discurso pela primeira vez neste enun-ciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele” (21, 319). Se-gundo o teórico russo, “o locutor não é um Adão, e por isso oobjeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde seencontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa con-versa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento davida cotidiana) ou então as visões de mundo, as tendências, asteorias, etc. (na esfera da comunicação cultural)” (21, 319-320).

O tema, como um dos fatores de acabamento do enunciadoconcreto, exige que o percebamos dentro do mesmo princípiodialógico que orienta esse enunciado, ou seja, para uma com-preensão ativa do tema não podemos nos esquecer que “o enun-ciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode serseparado dos elos anteriores que o determinam, por fora e pordentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma res-sonância dialógica”57 (21, 320).

57 No ensaio “O problema do Texto”, Bakhtin fornece uma outra dimen-são do princípio dialógico que orienta o tema, no interior da grandetemporalidade: “dois enunciados distintos confrontados um com ooutro, ignorando tudo um do outro, apenas ao tratar superficialmen-te um único e mesmo tema entabulam, inevitavelmente, uma relaçãodialógica entre si. Ficam em contato, no território do tema comum,de um pensamento comum” (22, 342).

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Para concluir nossas observações acerca do tema – o sen-tido do enunciado concreto – vamos tomar tema e sentido comosinônimos e apresentar mais uma peça da engrenagem dinâmi-ca que move as formulações teóricas do Círculo:

“O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contatocom outro sentido (o sentido do outro), mesmo que seja apenas nocontato com uma pergunta no discurso interior do compreendente.Ele deve sempre entrar em contato com outro sentido para revelaros novos momentos de sua infinidade (assim como a palavra reve-la suas significações somente num contexto). O sentido não seatualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram eentram em contato. Não há um “sentido em si”. O sentido existe sópara outro sentido, com o qual existe conjuntamente. O sentidonão existe sozinho (solitário). Por isso não pode haver um sentidoprimeiro ou último, pois o sentido se situa sempre entre os senti-dos, elo na cadeia do sentido que é a única suscetível, em seu todo,de ser uma realidade. Na vida histórica, essa cadeia cresce infini-tamente; é por essa razão que cada um dos elos se renova sempre;a bem dizer, renasce outra vez” (25, 386).

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Para compreender o enunciado concreto na cadeia da co-municação verbal é necessário perseguir o conceito que organizaessa comunicação, e esse conceito aparece com vários nomes notodo da obra do Círculo, preenchendo as concepções ética, histó-rico-fenomenológica, sociológica, ideológica e dialógica por eledesenvolvida: avaliação social, apreciação social, orientação so-cial, horizonte social, expressividade, enfim, uma série de termospara recobrir um elemento comum – a noção de valor que preen-che a relação do autor com o seu enunciado concreto.

Nesse sentido, decidimos levantar alguns aspectos do per-curso do conceito apreciação social no interior do todo da obra doCírculo, reservando para última parte as observações em torno

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do conceito expressividade, desenvolvida por Bakhtin no ensaio“Os gêneros do discurso” (1952-1953), o qual representa, paranós, a articulação do conceito de valor no interior do enunciadoconcreto em seu mais alto grau.

Os conceitos que articulam a Teoria do Enunciado Concre-to acabam, como sabemos, se situando, por um lado, sempre nafronteira entre o verbal e o extra-verbal, e por conseqüência, hásempre uma interação orgânica entre eles. É o que acontece, porexemplo, com o conceito apreciação social. A apreciação social, ovalor de uma determinada relação social numa comunidade dis-cursiva, define:

� a escolha do tema, palavras, forma e sua combinaçãoindividual nos limites de um enunciado dado;

� a escolha do conteúdo, a seleção da forma e a conexãoentre forma e conteúdo.

Segundo Bakhtin/Medvedev, “a apreciação social” unificao minuto da época e as novidades do dia com a intenção histó-rica. Isso determina a fisionomia histórica de todo ato e de todoenunciado, sua fisionomia histórica individual, de classe, de épo-ca” (7, 121).

Em relação a esse mesmo conceito, Bakhtin/Medvedev dizque se trata de uma instância intermediária entre a língua en-quanto sistema abstrato de possibilidades – o ponto de vista dasformas lingüísticas – e a língua enquanto realidade concreta – oponto de vista do sentido: “apenas para o enunciado dado, emsuas condições históricas particulares é que a unidade de senti-do, signo e realidade é realizada através da apreciação social. Setomarmos o enunciado concreto fora de sua criação histórica, emabstração, estaremos longe do que estamos, precisamente, pro-curando” (7, 125-126). A apreciação social compõe, então, o eixoético com o qual opera qualquer enunciado concreto.

Por tudo isso, “é impossível compreender um enunciadoconcreto sem nos acostumarmos aos seus valores, sem com-

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preender a orientação de suas apreciações no meio ideológico”(7, 121). Ou como aparece em Marxismo e Filosofia da Lingua-gem, “toda enunciação [enunciado] compreende antes de maisnada uma orientação apreciativa” (10, 135).

Os conceitos apreciação social ou orientação apreciativa vãoestabelecer uma relação dialógica de concordância com o con-ceito expressividade, desenvolvido por Bakhtin mais extensamen-te, como já falamos, no ensaio “Os gêneros do discurso”. De qual-quer maneira, não podemos esquecer que o conceito expressivi-dade já aparece no ensaio “O discurso no romance” (1934-1935),na discussão da palavra bivocal, ou seja, da relação entre o enun-ciado do autor e o enunciado de outrem: “no campo de quasetodo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre asua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou deesclarecimento dialógico mútuo. Desta forma o enunciado é umorganismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, senão se considerar apenas sua orientação objetal e sua expressivi-dade unívoca direta”58 (17, 153). É esta natureza complexa edinâmica do enunciado concreto e sua relação com a expressivi-dade que passará a ser, agora, nosso objeto de reflexão.

Antes de nos determos sobre o conceito expressividade,vamos recapitular as três particularidades constitutivas do enun-ciado concreto. Em primeiro lugar, o enunciado concreto é umelo na cadeia de comunicação verbal, portanto, ele se constituipela alternância dos sujeitos falantes. Em segundo, o enunciadoconcreto se constitui por um determinado acabamento, cujo in-terior se constitui, por sua vez, de três fatores ligados indissolu-velmente: um gênero do discurso determinado, um tema – trata-do exaustivamente no processo da comunicação verbal, e o intui-

58 Bakhtin considera que “na composição de quase todo enunciado dohomem social – desde a curta réplica do diálogo familiar até as grandesobras verbal-ideológicas (literárias, científicas e outras) existe, numaforma aberta ou velada, uma parte considerável de palavrassignificativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo”(17, 153).

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to do locutor – a sua expressividade individual para com esseenunciado. Finalmente, o enunciado concreto se constitui na re-lação com o seu autor e com os seus outros parceiros – destina-tários – da comunicação verbal.

Todas essas particularidades constitutivas do enunciadoconcreto se caracterizam, no processo da comunicação verbal,por uma expressividade determinada. Mas o que seria essa ex-pressividade? Qual é a sua relação com essas particularidades,ou seja, com o gênero do discurso, com o tema, com a entonaçãoe com o estilo, assim como com o autor e com o enunciado deoutrem? E qual é a diferença entre a expressividade do enun-ciado concreto e a expressividade da oração?

Antes de mais nada, vamos responder a essa última ques-tão. No ensaio “Os gêneros do Discurso” (1952-1953), Bakhtinfaz as seguintes perguntas: “Pode-se considerar que o princípioexpressivo do discurso é um fenômeno da língua enquanto sis-tema? Pode-se falar de aspectos expressivos quando se trata deunidades da língua, ou seja, de palavras e de orações?” (21, 308).Segundo o teórico russo, essas perguntas só podem ter uma res-posta negativa: “a língua enquanto sistema dispõe, claro, de umrico arsenal de recursos lingüísticos – lexicais, morfológicos e sin-táticos – para expressar a posição emotivo-valorativa do locutor,mas todos esses recursos na qualidade de recursos lingüísticos,são absolutamente neutros no plano dos valores da realidade”(21, 308), ou seja, no acontecimento de um enunciado concretonão há espaço para neutralidade.

De qualquer maneira, não podemos esquecer que a expres-sividade do enunciado concreto, único, e não reiterável, éconstruída com a ajuda do material verbal, isto é, dos recursoslingüísticos. E com isso concorda Bakhtin: “apenas o contato entrea significação lingüística e a realidade concreta, apenas o contatoentre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca olampejo da expressividade. Esta não está no sistema da língua etampouco na realidade objetiva que existiria fora de nós” (21,311).

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De acordo com o teórico russo, “o sistema da língua possuias formas necessárias (isto é, os recursos lingüísticos) para ma-nifestar a expressividade, mas na própria língua as unidadessignificantes (palavras e orações) carecem, por sua natureza, deexpressividade, são neutras. É isso que possibilita que elas sir-vam de modo igualmente satisfatório a todos os valores, os maisvariados e opostos e a todas as instâncias do juízo do valor”59 (21,315).

A expressividade deve ser relacionada, então, com o acon-tecimento único de um enunciado concreto, ou seja, com toda areflexão em torno da realidade concreta da linguagem desenca-deada pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. É em tornodessa reflexão sobre o particular, e não das reflexões do objetivismoabstrato e do subjetivismo idealista, que podemos compreenderde maneira ativa a análise do acabamento específico que um enun-ciado concreto, realizado, adquire na comunicação verbal.

É no interior da noção de acabamento específico do enun-ciado concreto que vamos tentar perceber a natureza da relaçãoexistente entre os três fatores desse acabamento, os quais estãoem interação orgânica – o tema, o gênero do discurso e a expres-sividade, bem como a relação da expressividade com o enun-ciado de outrem.

Para Bakhtin, a expressividade é, num primeiro momento,a relação valorativa do locutor para com o tema – o objeto dodiscurso, ou seja, ela corresponde ao intuito, ao querer-dizer dolocutor no ato de criação do enunciado concreto. Como já vimosanteriormente, a unidade temática de um enunciado concreto se

59 Essa relação de neutralidade da palavra já foi desenvolvida anterior-mente por Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia da Lingua-gem, quando da distinção entre o signo ideológico – aquele que temexpressividade – e a palavra. Para os teóricos russos, o signo “é cria-do por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela.A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideo-lógica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideoló-gica: estética, científica, moral, religiosa” (10, 37).

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desenvolve organicamente na unidade do gênero. Nesse sentido,segundo o teórico russo, “o gênero do discurso não é uma formada língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe dogênero uma expressividade determinada, típica, própria do gêne-ro dado” (21, 312).

No interior da comunicação verbal, o gênero é algo que édado. Portanto, “os gêneros do discurso correspondem a circuns-tâncias e temas típicos da comunicação verbal e, por conseguin-te, a certos pontos de contato típicos entre as significações dapalavra e a realidade concreta […] Essa expressividade típica dogênero, claro, não pertence à palavra como unidade da língua enão entra na composição de sua significação, mas apenas refletea relação que a palavra e sua significação mantêm com o gênero,isto é, com os enunciados típicos” (21, 312).

Assim sendo, podemos compreender porque na engrena-gem dinâmica do enunciado concreto os três fatores do seu aca-bamento específico – a expressividade, o tema e o gênero do dis-curso – estão indissoluvelmente ligados.

Mas, segundo Bakhtin, “a expressividade de um enuncia-do nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levarem conta somente o teor do objeto do sentido” (21, 317), isto é, sepermanecermos apenas no interior da intenção do locutor em re-lação ao tema – dois dos fatores de acabamento, ou mesmo nainteração orgânica existente entre o tema, o gênero do discurso eesse intuito discursivo do locutor.

É preciso mais, é necessário, dentro da engrenagem dinâ-mica que move o enunciado concreto, considerá-la como umaresposta: “a expressividade de um enunciado é sempre, em me-nor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifestanão só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas tam-bém a relação do locutor com os enunciados do outro” (21, 317).Esse aspecto da expressividade corresponde a sua relação com aterceira particularidade constitutiva do enunciado concreto: a re-lação desse enunciado com o seu autor e com aqueles a que eleresponde, os destinatários.

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Para o teórico russo, “a experiência verbal individual dohomem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua epermanente com os enunciados individuais do outro” (21, 314).Nesse sentido, “as palavras dos outros introduzem sua própriaexpressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestru-turamos, modificamos” (21, 314).

No interior da comunicação verbal não estamos mais nointerior dos recursos lingüísticos sozinhos, e sim, na cadeia deenunciados concretos que a compõem em evolução permanente.É por isso que o enunciado de outrem tem tanta importância nasreflexões do Círculo, e também que um enunciado concreto éuma síntese dialética entre as minhas palavras e as palavras dosoutros.

Segundo Bakhtin, “a expressividade da palavra isolada nãoé pois propriedade da própria palavra, enquanto unidade dalíngua, e não decorre diretamente de sua significação. Ela se pren-de quer à expressividade padrão de um gênero, quer à expressivi-dade individual do outro que converte a palavra numa espécie derepresentante do enunciado do outro em seu todo – um todo porser instância determinada de um juízo de valor” (21, 314).

Se considerarmos que todo enunciado concreto, enquantouma expressão típica, um gênero do discurso determinado, seconstrói no interior dos enunciados dos outros60 e responde aesses enunciados61 , estaremos mais próximos de uma compreen-são ativa das formulações desenvolvidas por Bakhtin, Volochinove Medvedev em torno da cadeia da comunicação verbal, e dosenunciados concretos que são as unidades dessa comunicaçãoverbal.

60 A experiência verbal do homem pode ser definida, segundo Bakhtin,“como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, daspalavras do outro (e não das palavras da língua)” (21, 314).

61 Para Bakhtin, “a resposta transparecerá nas tonalidades do sentido,da expressividade, do estilo, nos mais ínfimos matizes da composição”(21, 317).

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Resta-nos ainda tratar da relação da expressividade com oestilo e a entonação, o que realizaremos a seguir nas duas últi-mas partes deste capítulo. Por ora, deixamos mais uma obser-vação de Bakhtin acerca da interação orgânica entre as particu-laridades constitutivas do enunciado concreto:

“o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados peloobjeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relaçãovalorativa que o locutor estabelece com o enunciado” (21, 315).

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O que nos interessa discutir neste tópico são as carac-terísticas que o conceito estilo adquire no todo da obra do Círcu-lo, no interior de uma Teoria do Enunciado Concreto, e sua rela-ção com os outros conceitos que articulam essa teoria como gê-nero do discurso, tema, expressividade e entonação, bem como arelação do estilo com o fenômeno do discurso de outrem.

Com esse intuito, vamos buscar no todo da obra do Circulouma definição de estilo. Em 1926, no ensaio “Le discours dans lavie et dans la poésie”, Volochinov nos dá a seguinte definição deestilo: “ ‘O estilo é o homem’; mas podemos dizer que o estilo é,pelo menos, dois homens, ou mais exatamente, um homem e umgrupo social representado pelo ouvinte que participa permanen-temente no discurso interior e exterior do homem e encarna aautoridade que o grupo social exerce sobre ele” (5, 212), ou seja,o estilo, como todos os outros conceitos do Círculo se define pelainteração dialógica entre duas ou mais pessoas. O estilo é, damesma maneira que o enunciado concreto, uma construção dia-lógica, sociológica e ideológica, ou seja, sempre que nos referimosao enunciado concreto e seus elementos estamos no domínio docriado.

No interior de um gênero do discurso secundário – a obraliterária –, Volochinov define dois aspectos da relação entre oautor e o herói que definem o estilo:

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a) o valor hierárquico do herói;

b) seu grau de proximidade em relação ao autor. (5, 208)

Transportando esses aspectos para o gênero primário, dirí-amos que o estilo é determinado pelo valor hierárquico do interlo-cutor, e o grau de proximidade que existe entre o autor do enun-ciado e esse interlocutor no que se refere a um tema determina-do62 . Nesse sentido, podemos aproveitar a mesma explicação queBakhtin dá para o grau de proximidade entre o autor e o herói:“esse aspecto tem, em todas as línguas, uma expressão gramati-cal imediata: o emprego da primeira, da segunda ou da terceirapessoa, e a modificação da estrutura da frase em função de seusujeito (“eu”, “tu” ou “ele”)” (5, 207). Para o teórico russo, “a estru-tura da linguagem reflete aqui a relação recíproca dos locutores”(5, 207).

Para Bakhtin/Volochinov, “a individualização estilística daenunciação [enunciado] […] constitui justamente este reflexo dainter-relação social, em cujo contexto se constrói uma determi-nada enunciação [enunciado]” (10, 113). É “a situação e os parti-cipantes mais imediatos que determinam a forma e o estilo ocasi-onais da enunciação [enunciado]” (10, 114). Os teóricos russosconsideram que “a elaboração estilística da enunciação [enun-ciado] é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qualse reduz em última análise a realidade da língua, é social” (10,122).

Essa abordagem sociológica do estilo permeia a tipologiado enunciado citado, desenvolvida pelo Círculo na obra Marxis-mo e Filosofia da Linguagem. Essa tipologia do estilo é desenvol-vida no interior de um gênero secundário: o romance. Pela orien-tação dinâmica da inter-relação verbal entre o enunciado do au-tor e o enunciado citado, ou o discurso de outrem, Bakhtin/Volo-chinov classifica os estilos em: linear, pictórico e monumental.

62 Essas características vão ser utilizadas posteriormente para a distinçãoentre estilo familiar, estilo íntimo e estilo objetivo.

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No estilo linear, as fronteiras entre o discurso do autor e odiscurso citado são nítidas e invioláveis: “a tendência principaldo estilo linear é criar contornos exteriores nítidos à volta do dis-curso citado, correspondendo a uma fraqueza do fator individualinterno” (10, 150). Já no estilo pictórico acontece o oposto. Nessetipo, as particularidades lingüísticas são apreendidas e ocorreuma coloração do enunciado: a tendência do estilo pictórico “éatenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem”(10, 150). E no último, o estilo monumental, que compreende odiscurso direto, ocorre a transposição primitiva e inerte do enun-ciado de outrem.

O fenômeno do enunciado de outrem é amplamente inves-tigado pelo Círculo porque, como vimos, no interior da comuni-cação verbal ocorre uma interação tensa entre o enunciado doautor – o meu enunciado – e o enunciado dos outros, aquelesenunciados que formaram e formam a minha consciência. Omaterial que constitui o enunciado concreto – meu ou dos outros– é a palavra viva: “a palavra não é um objeto, mas um meioconstantemente ativo, constantemente mutável de comunicaçãodialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Suavida está na passagem de boca em boca, de um contexto paraoutro, de um grupo social para outro, de uma geração para ou-tra. Nesse processo ela não perde o seu caminho nem pode liber-tar-se até o fim do poder daqueles contextos concretos que inte-grou” (13, 176)63 .

É essa palavra viva que permite ao Círculo desenvolver aMetalingüística e encarar o estilo dentro desse ponto de vista. Deacordo com Bakhtin, “a estilística deve basear-se não apenas enem tanto na lingüística quanto na metalingüística, que estuda apalavra não no sistema da língua e nem num “texto” tirado dacomunicação dialógica, mas precisamente no campo propriamentedito da comunicação dialógica, ou seja, no campo da vida autên-

63 Bakhtin considera que “o exame do discurso do ponto de vista da suarelação com o discurso do outro é de excepcional importância para acompreensão da prosa artística” (13, 173).

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tica da palavra” (13, 176), isto é, na cadeia da comunicação ver-bal e no interior de sua unidade: o enunciado concreto.

No ensaio “Os gêneros do discurso”, Bakhtin fornece umavisão completa e objetiva de todas as inter-relações do estilo comos elementos do enunciado concreto, assim como uma reflexãoem torno desse conceito enquanto um fato gramatical – fenôme-no da língua – e um fato estilístico – fenômeno do enunciadoconcreto.

Em primeiro lugar, vamos verificar a relação entre o estilo eo gênero do discurso. Segundo Bakhtin, “o estilo estáindissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enun-ciado, isto é, aos gêneros do discurso” (21, 283). Para o teóricorusso, “a definição de um estilo em geral e de um estilo individualem particular requer um estudo aprofundado da natureza doenunciado e da diversidade dos gêneros do discurso” (21, 283),pois cada esfera da atividade e da comunicação humana “conheceseus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais corres-pondem determinados estilos” (21, 284).

Nesse sentido, vamos apontar algumas características darelação entre o estilo e as particularidades constitutivas do enun-ciado concreto:

a) o estilo é indissociavelmente vinculado a unidades te-máticas determinadas e, o que é particularmente im-portante, a unidades composicionais: tipo de estrutura-ção e de conclusão de um todo, tipo de relação entre olocutor e os outros parceiros da comunicação verbal (21,284);

b) o estilo entra como elemento na unidade de gênero deum enunciado (21, 284);

c) o enunciado, seu estilo e sua composição são determi-nados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ouseja, pela relação valorativa que o locutor estabelece como enunciado (21, 315).

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d) uma análise estilística que queira englobar todos os as-pectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o tododo enunciado e, obrigatoriamente, analisá-la dentro dacadeia da comunicação verbal de que o enunciado éapenas um elo inalienável (21, 326).

Depois de inserir o estilo na engrenagem dinâmica do enun-ciado concreto, resta-nos complementá-lo com a tipologia do es-tilo engendrada por Bakhtin, a qual distingue entre estilo famili-ar, estilo íntimo e estilo objetivo-neutro. Como, para o teóricorusso, a análise estilística deve ser feita no interior da comunica-ção verbal, é necessário perceber, então, como as relações decomunicação social vão se integrar a esse processo.

Segundo Bakhtin, “a estrutura da sociedade em classesintroduz nos gêneros do discurso e nos estilos uma extraordiná-ria diferenciação que se opera de acordo com o título, a posição, acategoria, a importância conferida pelo fortuna privada ou pelanotoriedade pública, pela idade do destinatário e, de modocorrelato, de acordo com a situação do próprio locutor (ou escri-tor)” (21, 322). A partir da interação orgânica entre o gênero dodiscurso e o estilo, e do grau de proximidade entre o destinatárioe o locutor, podemos compreender a tipologia de estilos – íntimo,familiar, objetivo – definida na esfera da vida cotidiana ou da vidaoficial.

Os dois primeiros estilos – íntimo e familiar – em interaçãoorgânica com seus respectivos gêneros – se caracterizam pelocaráter pessoal, isto é, por se realizarem “fora dos âmbitos dahierarquia e das convenções sociais (em maior ou menor grau),“sem a graduação”, poderíamos dizer” (21, 323). No primeiro háuma tendência para a fusão entre o locutor e o destinatário, ouseja, “os gêneros e os estilos íntimos repousam numa máximaproximidade interior entre o locutor e o destinatário da fala”64

64 Segundo Bakhtin, “o discurso íntimo é empregnado de uma confiançaprofunda no destinatário, na sua simpatia, na sensibilidade e na boa

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(21, 323). Já no segundo existe uma tendência para a expressãode uma atitude pessoal, informal, para com a realidade, isto é,ele é usado para “destronar os estilos e as visões de mundo quegozam de um estatuto tradicional e oficial, que se necrozam eficam convencionais” (21, 323).

O terceiro tipo de estilo – objetivo ou neutro – representa oestilo que é compreendido pela estilística tradicional. A compreen-são do estilo, nesse perspectiva, caracteriza-se por subestimar arelação do locutor com o destinatário, baseando suas análisesapenas no tema do enunciado e na relação do locutor para comesse tema, ou seja, rompendo a interação orgânica entre o autore o destinatário. Para Bakhtin, “quando se subestima a relaçãodo locutor com o outro e com seus enunciados (existentes oupresumidos), não se pode compreender nem o gênero nem o esti-lo de um discurso” (21, 324). De qualquer forma, esse estilo nãodeixa de levar em conta uma certa idéia de destinatário. A dife-rença é que, ao contrário do estilo íntimo, a expressividade noestilo objetivo é reduzida ao extremo, ou seja “o estilo objetivo-neutro pressupõe uma espécie de identificação entre o destinatá-rio e o locutor, uma comunhão de pontos de vista, o que ocorre àcusta de uma recusa de expressividade”65 (21, 324).

A complementaridade entre o verbal e o não-verbal, as for-mas da língua e as formas do enunciado concreto é uma dascaracterísticas principais das formulações teóricas do Círculo.Nesse sentido vamos concluir a nossa abordagem do conceitoestilo com uma citação de Bakhtin que reafirma esse caráter com-plementar:

“Pode-se dizer que a gramática e a estilística se juntam e se sepa-ram em qualquer fato lingüístico concreto que, encarado do pon-to de vista da língua, é um fato gramatical, encarado do ponto de

vontade de sua compreensão responsiva. Nesse clima de profundaconfiança, o locutor desvela suas profundezas interiores” (21, 323).

65 O discurso científico tem a pretensão de ser uma expressão desseestilo objetivo-neutro.

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vista do enunciado individual, é um fato estilístico. Mesmo a se-leção que o locutor efetua de uma forma gramatical já é um atoestilístico. Esses dois pontos de vista sobre um único e mesmofenômeno concreto da língua não devem porém excluir-se mutu-amente, substituir-se mecanicamente um ao outro, devem com-binar-se organicamente (com a manutenção metodológica de suadiferença) sobre a base da unidade real do fato lingüístico. Ape-nas uma compreensão profunda da natureza do enunciado e dasparticularidades dos gêneros do discurso pode permitir a solu-ção desse complexo problema de metodologia” (21, 287).

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Onde há gênero há estilo, onde há estilo, há entonação,onde há entonação há gênero. É esse o motivo que leva o pensa-mento do Círculo a propor uma Sociologia do Gênero, umaEstilística Sociológica, e também a perceber a entonação na suainteração orgânica com os outros dois – gênero e estilo – em suaorientação social: “a entonação é social par excellence” (5, 194).

No todo da obra do Círculo, esse conceito aparece com asseguintes acepções: entonação, entoação, tom, acento, tonalida-de, sempre em correlação com o conceito de valor – horizontesocial, apreciação social, expressividade –, que anima a Arquite-tônica apreciativa da teoria. A entonação é a forma sonora daexpressão axiológica, ou seja, a forma de representação do ele-mento ético no enunciado concreto.

Num primeiro momento, no ensaio “Sobre a Filosofia doAto” (1919-1921), a definição de entonação está relacionada coma palavra viva expressa num acontecimento único da existência,portanto, numa perspectiva fenomenológica: “o tom emotivo-volitivocircunfundi o todo de conteúdo/sentido de um pensamento no atorealmente realizado e o relaciona à ocorrência única do ser comoacontecimento” (2, 34) . Portanto, a entonação ocupa, no todo dapalavra, o aspecto emotivo-volitivo, em interação orgânica com oaspecto de conteúdo/sentido (a palavra como conceito) e o aspec-to palpável-expressivo (a palavra como imagem).

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A entonação é um elemento constituinte da palavra e ex-pressa a atitude de valor do indivíduo em direção ao objeto66 , oque é desejável ou indesejável nele: “por aspecto entonacional dapalavra compreendemos a sua capacidade de exprimir toda amultiplicidade das relações axiológicas do indivíduo falante comoconteúdo do enunciado (no plano psicológico a multiplicidadedas ações emocionais e volitivas do falante), além disso, mesmoque este aspecto fosse expresso numa entonação real durante aexecução, ou fosse experimentado simplesmente como uma pos-sibilidade, ele teria igualmente uma dimensão estética” (4, 64).

Volochinov acrescenta a essa perspectiva estética, umaperspectiva sociológica, discutindo a essência social da entona-ção, a qual se situa na fronteira entre o verbal e o não-verbal,conduzindo o discurso para fora dos limites verbais. Como umdos elementos do enunciado concreto, a entonação têm as mes-mas características que orientam o todo desse enunciado:

a) a natureza social;

b) a orientação ao ouvinte (o segundo participante);

c) a orientação ao objeto do enunciado (o tema).

Para Volochinov, “a entonação se encontra na fronteira davida e da parte verbal do enunciado, ela transmite a energia dasituação vivida no discurso, ela confere a tudo o que é lingüisti-camente estável um movimento histórico vivo e um caráter desingularidade” (5, 199). Nesse sentido, a entonação apresentacaracterísticas histórico-fenomenológica e sociológica.

Bakhtin/Medvedev considera a entonação – condicionadapelo sentido único (tema) e não-repetível do enunciado – comoentonação expressiva, a qual ele distingue da entonação sintáticaou entonação em geral: “A entonação expressiva, distinta da en-tonação sintática que é mais estável, colori todas as palavras doenunciado e reflete sua singularidade histórica […] É claro que a

66 Como já falamos essa é uma das particularidades constitutivas doenunciado concreto.

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entonação expressiva não é obrigatória, mas, quando ela ocorre,é a mais distinta expressão da apreciação social” (7, 122). Essatipologia da entonação irá refletir na tipologia estilística – estilolinear, estilo pictórico, estilo monumental – apresentada pelo Cír-culo.

No livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/Volochinov explica a relação entre a entonação expressiva e aapreciação social – expressividade – da seguinte maneira: “o nívelmais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreci-ação social contida na palavra, é transmitido através da entoaçãoexpressiva” (10, 132). Para justificar essa afirmação, ele nos dáum exemplo retirado do Diário de um Escritor, de Dostoiévski:

“Certa vez, num domingo, já perto da noite, eu tive ocasião decaminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados, esubitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquerpensamento, qualquer sensação, e mesmo raciocínios profun-dos, através de um só e único substantivo, por mais simples queseja [Dostoiévski está pensando aqui numa palavrinha censura-da de largo uso]. Eis o que aconteceu. Primeiro, um desses ho-mens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para ex-primir, a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes, asua contestação mais desdenhosa. Um outro lhe responde repe-tindo o mesmo substantivo, mas com um tom e uma significaçãocompletamente diferentes, para contrariar a negação do primei-ro. O terceiro começa bruscamente a irritar-se com o primeiro,intervém brutalmente e com paixão na conversa e lança-lhe omesmo substantivo, que toma agora o sentido de uma injúria.Nesse momento, o segundo intervém novamente para injuriar oterceiro que o ofendera. ‘O que há, cara? quem tá pensando queé? a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa abronquear!’ Só que esse pensamento, ele o exprime pela mesmapalavrinha mágica de antes, que designa de maneira tão simplesum certo objeto; ao mesmo tempo, ele levanta o braço e bate noombro do companheiro. Mas eis que o quarto, o mais jovem dogrupo, que se calara até então e que aparentemente acabara deencontrar a solução do problema que estava na origem da dispu-ta, exclama com um tom entusiasmado, levantando a mão…:

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‘Eureka!’ ‘Achei, achei!. Ele simplesmente repete o mesmo subs-tantivo banido do dicionário, uma única palavra, mas com umtom de exclamação arrebatada, com êxtase, aparentemente ex-cessivo, pois o sexto homem, o mais carrancudo e mais velho dosseis, olha-o de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jo-vem, repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom ra-bugento… sempre a mesma palavra, interdita na presença dedamas para significar claramente: ‘Não vale a pena arrebentar agarganta, já compreendemos!’ Assim, sem pronunciar uma úni-ca outra palavra, eles repetiram seis vezes seguidas sua palavrapreferida, um depois do outro, e se fizeram compreender perfei-tamente” (10, 133).

Bakhtin/Volochinov observa que “em todos esses casos, otema, que é uma propriedade de cada enunciação [enunciado](cada uma das enunciações [enunciados] dos seis operários ti-nha um tema próprio), realiza-se completa e exclusivamente atra-vés da entoação expressiva, sem ajuda da significação das pala-vras ou da articulação gramatical” (10, 134), o que vem de encon-tro ao aspecto emocional do intuito discursivo do locutor, um dosfatores de acabamento específico do enunciado concreto.

Podemos estabelecer uma relação dialógica entre esse exem-plo e a seguinte observação que aparece no ensaio “Observaçõessobre a epistemologia das ciências humanas” (1974): “há queobservar que a expressão emocional dos valores pode não ter umcaráter explicitamente verbal e pode estar implícita, manifestar-se pela entonação. As entonações mais substanciais e mais está-veis constituem um fundo entonacional determinado por um gruposocial (uma nação, uma classe social, uma classe profissional,um meio, etc.). Em certa medida, pode-se falar apenas porentonações, tornando quase indiferente, relativa e intercambiável,a parte do discurso verbalmente expressa. É freqüente o empregode palavras inúteis em sua significação verbal, ou então a repeti-ção de uma única e mesma palavra, de uma única e mesma fra-se, que então servem somente de suporte material para a entona-ção desejada” (26, 409-410).

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A engrenagem dinâmica que orienta um enunciado con-creto faz com que o Círculo não descuide de nenhum de seuselementos um momento sequer. Segundo Volochinov, “a situa-ção e o auditório que lhe corresponde determinam antes de tudoa entonação, e é através desta que são escolhidas e dispostas aspalavras”67 (16, 305). A modificação de um desses elementos –situação e auditório – provoca uma modificação imediata da ento-nação.

A natureza da interação orgânica entre a entonação – tom,o tema – sentido, e o diálogo é explicitada no ensaio “O discursono romance” (1934-1935): “a réplica de qualquer diálogo real en-cerra esta dupla existência: ela é construída e compreendida nocontexto de todo o diálogo, o qual se constitui a partir das suasenunciações [enunciados] (do ponto de vista do falante) e dasenunciações [enunciados] de outrem (do partner). Não é possívelretirar uma única réplica deste contexto misto de discursos pró-prios e alheios sem que se perca seu sentido e seu tom, ela é umaparte orgânica de um todo plurívoco”68 (16, 93).

Toda essa interação orgânica entre as particularidades cons-titutivas do enunciado concreto obrigam a distinção entre as for-mas do enunciado concreto e as formas da língua. Sempre que oconceito a ser definido concorre com uma outra definição – lin-güística, por exemplo – é próprio ao pensamento concreto do gru-po dar uma definição complementar a esses conceitos.

67 Volochinov dá a seguinte ordem para a organização da forma doenunciado: “os elementos fundamentais que organizam a forma doenunciado são em primeiro lugar a entonação (o timbre expressivo deuma palavra), depois a escolha das palavras, enfim, sua disposiçãono interior de um enunciado completo” (16, 304).

68 Em francês: “Cette vie double est également celle de la réplique de toutdialogue réel: elle se construit et se conçoit dans le contexte d’un dialogueentier, composé d’éléments << à soi >> (du point de vue du locuteur), et<<à l’autre>> (du point de vue de son “partenaire”). De ce contextemixte des discours <<siens>> et <<étrangers>>, on ne peut ôter uneseule réplique sans perdre son sens et son ton. Elle est partie organiqued’un tout plurivoque” (18, 106).

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Nesse sentido, Bakhtin, no ensaio “Os gêneros do Discur-so” (1952-1953), desenvolve a seguinte tipologia da entonação:

1) entonação gramatical (da língua): marca a conclusão,a explicação, a demarcação, a enumeração, etc.

2) entonação narrativa, exclamativa, exortativa: cruza-mento da entonação gramatical com a entonação dogênero;

3) entonação expressiva: a entonação do gênero no tododo enunciado. (21, 315)

Essa última se caracteriza como pertencente não à formada língua mas à forma do enunciado concreto. Nesse sentido,vamos apresentar algumas características da entonação expres-siva:

a) ela é um dos recursos para expressar a relação emotivo-valorativa com o objeto do discurso (tema);

b) não existe fora do enunciado concreto;

c) uma palavra com entonação expressiva já é um enun-ciado completo. Ex. “Ótimo!”, “Ânimo!”, etc. (21, 309-310).

d) ela se relaciona com o todo do enunciado concreto, coma expressividade da palavra, com a expressividade dogênero na palavra, ou seja, “a expressividade e asentonações típicas que lhe correspondem não possuema força normativa própria das formas da língua” (21,312).

Vamos terminar nossas observações sobre a entonação comum citação de Bakhtin, na qual esse conceito adquire o princípiodialógico que orienta a engrenagem dinâmica do enunciado con-creto. Aqui, a entonação – tonalidades dialógicas – vai interagircom os enunciados de outrem, que como já sabemos, é indispen-sável para qualquer reflexão em torno da comunicação verbal,

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que leve em conta as formulações teóricas de Bakhtin, Volochinove Medvedev:

“As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemoslevá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilodo enunciado. Pois nosso próprio pensamento – nos âmbitos dafilosofia, das ciências, das artes – nasce e forma-se em intera-ção e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixarde refletir nas formas de expressão verbal de nosso pensamen-to” (21, 317).

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É chegada a hora de dar um acabamento relativo a estadissertação, procurando pontuar alguns aspectos que conside-ramos importante repetir, ou complementar, de um lugar dife-rente. Ao tecer nossas considerações finais, temos a intenção deretomar as abordagens que pretendíamos imprimisse o caráterdeste trabalho: a polêmica em torno da autoria da obras; os pon-tos de vista utilizados pelo Círculo para investigar o enunciadoconcreto; e a engrenagem conceitual que orienta essa investiga-ção. Gostaríamos, também, de ressaltar a coerência do percursoteórico do Círculo e a responsabilidade crítica com a qual essestrês teóricos russos discutiram os discursos científicos com osquais dialogavam para construir o ponto de vista da Metalingüís-tica, cuja base material é o enunciado concreto.

Para a construção desta dissertação-enunciado, cujo temapretendeu dar uma introdução à Teoria do Enunciado Concretodo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, partimos de uma in-vestigação do todo orgânico da obra do Círculo, tendo como basesua concepção de linguagem articulada sobre a base do enun-ciado concreto. Por um lado pudemos perceber a heterogeneida-de de discursos científicos que se debruçam sobre a linguagemcom intuito de revelar um ou outro aspecto de sua existência, epor outro, observar o caráter de complementariedade que carac-teriza as investigações do Círculo.

Com relação aos pontos de vista que articulam as investi-gações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev, é importante salien-tar quatro princípios. O primeiro a ser ressaltado é o princípioético que rege as formulações teóricas do Círculo, tanto na críticaaos outros gêneros do discurso científicos como na articulação

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de sua Teoria do Enunciado Concreto. Aliados a esse princípioético, outros três princípios orientam a engrenagem dinâmica dateoria desenvolvida por eles: um princípio sócio-ideológico – asociologia da consciência, do discurso, do som significativo, aestilística sociológica e a poética sociológica –; um princípiodialógico – as relações dialógicas do micro ao grande-diálogo; eum princípio temporal histórico-fenomenológico – o acontecimentoúnico da pequena à grande temporalidade. Não podemos esque-cer que nessa engrenagem dinâmica os quatro princípios estãoem interação orgânica.

Esses princípios, predominantes no pensamento do Círcu-lo, se apresentaram já nas definições dos conceitos, ou seja, elesconstruíram a estrutura viva na qual os conceitos foram articula-dos no interior desse pensamento: seu conteúdo, sua imagem eseu tom. A arquitetura dessa visão teórica nos conduziu a umareflexão intrinsecamente, imanentemente, estruturada na basedo enunciado concreto, e de sua construção. Para qualquer ladoque olhávamos o enunciado concreto, no interior do todo da obrado Círculo, pretendíamos enxergar o real, a vida, o homem e seusvalores, seja no discurso literário, científico, cotidiano ou de qual-quer outro gênero primário ou secundário.

O que Bakhtin inicia, e os seus discípulos – Volochinov eMedvedev – co-participam, é a tentativa de promover uma descri-ção da arquitetônica apreciativa concreta e real do mundo, a qualvai ganhando, no percurso das obras-enunciados do Círculo, osseus membros constituintes, a sua engrenagem conceitual, ouseja, os seus objetos reais – locutor, ouvinte, palavra, tema, gêne-ro do discurso, estilo, entonação, expressividade –, todos eles eminteração orgânica para propiciar uma compreensão ativa do even-to único da existência, representado pelo enunciado concretoenquanto um elo da cadeia de comunicação verbal, ou seja, en-quanto um objeto vivo de algum domínio cultural, seja ele a vidacotidiana, a arte ou a ciência, que responde a enunciados ante-riores do mesmo gênero do discurso.

Nos “Apontamentos 1970-1971”, Bakhtin nos dá um enig-ma para tentar compreender de maneira ativa o todo da obra:

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“meu fraco pela variação e pela variedade terminológica que abran-ge um único e mesmo fenômeno. As variedades das sínteses.Aproximações remotas sem indicações dos elos intermediários”(25, 397). Por que tantos conceitos para a investigação de ummesmo fenômeno?

Ora, o que mais atrai no estudo da obra do Círculo é, real-mente, a busca desses elos intermediários, nos quais muitas ve-zes nos perdemos, para mais tarde nos encontrarmos e nos per-dermos novamente69 . A aventura dessa busca pelas fronteiras,nos umbrais, se revela, de qualquer maneira, extremamente en-riquecedora, deixando rastros, por um lado, das concepções dopensamento abstrato e do pensamento idealista desenvolvidaspela lingüística, pela filologia, pela estilística, psicologia, etc., e,por outro lado, nos educando para uma investigação do enunci-ado concreto, instigando nossos sentidos para a observação domínimo ato concreto de linguagem – o enunciado concreto únicoe não-reiterável – como uma experiência aberta de nossa vida,uma experiência que só terminaria se tivéssemos conhecimentodo fim do mundo, ou pelo menos, do fim de nosso próprio mundoindividual.

Um outro problema que dificultava a nossa compreensãodo todo da obra do Círculo era, como observamos, o problema datradução. Nesse sentido, tomamos uma observação de Irene Ma-chado, “como no Brasil tradutores de Bakhtin nem sempre sãoos estudiosos de sua obra, lemos Bakhtin através das mais vari-adas versões que foram chegando às nossas mãos pelas maisvariadas vias. Praticamos a mais autêntica leitura hipertextual:

69 Como diz o prof. Boris Schnaiderman em seus estudos literáriosreferindo-se à obra de Bakhtin sobre Dostoiévski: “Em minha tese,pus em discussão diversas afirmações suas [de Bakhtin] no livro sobreDostoievski, mas é preciso discutir mais ainda, pôr tudo em dúvida,balançar de uma vez o coreto. De outro modo, a literatura se estancanas certezas acadêmicas e didáticas. Mobilidade, contradição dialética,construção/desconstrução, eis os elementos com que temos detrabalhar. O resto é acomodação e rotina” (33, 88).

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quando lemos um texto de Bakhtin em português navegamos poruma versão que é uma camada de signos organizada a partir deoutros discursos-línguas que se constituíram a partir dos ma-nuscritos e dos arquivos de Bakhtin” (48, 267).

Ao nos debruçarmos sobre essas dificuldades de tradução,iniciamos um processo de discussão em torno dos conceitos enun-ciado/enunciação e gêneros do discurso, os quais julgamos fun-damentais no todo da engrenagem conceitual do Círculo. Paranós, a compreensão ativa do todo da obra do Círculo implica emtomar os conceitos enunciado e enunciação – traduções do únicoconceito russo vyskazyvanie – como sinônimos, visto que é desseponto de vista que os três teóricos russos articulam não só a suaTeoria do Enunciado Concreto no interior da Metalingüística, comotambém dialogam com outros gêneros de discurso cientificos comoa lingüística – a fala-enunciado, a estilística – o ato de fala-enun-ciado ou a expressão-enunciado, e também as ciências humanasem geral – o texto-enunciado.

É o enunciado – ou enunciação – concreto, real, completo,vivo que é o elo da comunicação verbal, que responde aos enun-ciados anteriores e aponta para os enunciados concretos futu-ros. É, também, o enunciado concreto, particular, único na exis-tência e não-reiterável, que se constrói, a partir de um tema espe-cífico, no interior de um gênero do discurso determinado e pelaalternância dos sujeitos falantes que compõem a situação na qualele é engendrado. Esse enunciado é a manifestação do intuitodiscursivo desses sujeitos nessa construção comunicativa, atra-vés de um estilo e uma entonação particulares, seja do ponto devista do micro-diálogo ao grande-dialógo, da pequena temporali-dade à grande temporalidade, movimentando o todo do enun-ciado concreto com seus princípios ético, sócio-ideológico, dialógicoe temporal (histórico-fenomenológico).

Finalmente, gostaríamos de ressaltar que a mais impor-tante lição de nossa imersão na obra do Círculo é não considerarum de seus membros – Mikhail Bakhtin – como um Adão mítico,o primeiro a falar das idéias aqui expostas, mas sim, como um

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ser inserido profundamente nos diálogos de seu tempo e na his-tória dos vários discursos científicos com que dialogava, os quaispropiciaram a criação desse ponto de vista novo – metalingüísti-co – com base nos enunciados anteriores, no interior da evoluçãoda ciência, e nas próprias relações dialógicas entre as suas obrase a de seus discípulos: Valentin Volochinov e Pavel Medvedev. Éassim que podemos compreender algumas linhas de uma cartade 1961, de Bakhtin a V. Kozhinov, na qual ele faz a seguinteobservação sobre sua relação com os outros elementos do Círcu-lo aqui citados, preservando os princípios ético, sócio-ideológico,dialógico e histórico-fenomenológico que orientam sua visão demundo:

“those books [i.é, os livros assinados por Volochinov e Medvedev]as well as my study of Dostoevski are based on a commonconception of language and of the verbal work… I should note thatthis common conception and our contact during our work do notdiminish the independence and originality of each of the threebooks… To this day I hold to the conception of language and speechthat was first set forth, incompletely and not always intelligibly, inthose books, although the concept has of course evolved in thepast thirty years” (47, 119).

Neste sentido, a concepção comum de linguagem e da obraverbal – do enunciado concreto – formaram a base sobre a qualtentamos discutir as obras-enunciados do Círculo neste trabalho.É na evolução do todo da obra do Círculo que pudemos compre-ender o seu conceito de linguagem. Como observa Beth Brait, “oconceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensadorrusso está comprometido não com uma tendência lingüística ouuma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justa-mente na busca das formas de construção e instauração do sen-tido, resvala pela abordagem lingüística/discursiva, pela teoriada literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica dacultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda nãointeiramente decifradas” (46, 71). Acreditamos que essa obser-

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vação estabelece uma relação dialógica de concordância para comos outros componentes do Círculo – Volochinov e Medvedev –, eque, também, ela retoma o caráter de inacabamento com o qualtodas as ciências humanas em geral e as obras do Círculo emparticular devem ser tecidas, na tentativa de escapar da coisifica-ção dos objetos humanos, ou de uma abordagem psíquica docriador ou do receptor desses objetos.

Assim sendo, esta dissertação ganha como epílogo umacitação de Problemas da Poética de Dostoiésvki que orienta, paranós, todo o desenvolvimento das concepções teóricas do CírculoBakhtin/Volochinov/Medvedev, bem como, o movimento queousamos dar ao próprio desenvolvimento deste trabalho, cujoacabamento relativo é mais um elo na cadeia das idéias do Círcu-lo, e condiciona uma atitude responsiva para com os outros par-ceiros da comunicação dialógica engedrada por esse tema:

“Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com asidéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a for-mar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressãoverbal, a gerar novas idéias. O pensamento humano só se tornapensamento autêntico, isto é, idéia, sob as condições de umcontato vivo com o pensamento dos outros, materializado navoz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa napalavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências quenasce e vive a idéia […] a idéia é interindividual e intersubjetiva,a esfera de sua existência não é a consciência individual mas acomunicação dialogada entre as consciências. A idéia é um acon-tecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entreduas ou várias consciências” (13, 73).

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(2) Bakhtin, M. (1919-1921) Toward a Philosophy of the Act. trad.Vadim Liapunov. Austin, University of Texas Press, 1993.

(3) Bakhtin, M. (1922-1924) “O autor e o herói” In:0 Bakhtin, M.Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria ErmantinaG. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 23-220.

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(5) Voloshinov, V. N. (1926) “Le discours dans la vie et le discoursdans la poésie” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principedialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditionsdu Seuil, 1981. p. 181-215.

(6) Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch. trad. I. R.Titunik. Indiana, Indiana University Press, 1987.

(7) Bakhtin, M. / Medvedev (1928) The Formal Method in LiteraryScholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics. trad.Albert J. Wehrle. Baltimore e London, The Johns Hopkins Press,1991.

(8) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the philosophy of language

70 Para uma bibliografia completa das obras do Círculo ver Todorov, T.Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique (31, 173-176) e Faraco, C. A.;Tezza, C. e Castro, G. de (orgs) Diálogos com Bakhtin. (49, 15-20).

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(edição do original russo). Paris, Mouton, 1972.

(9) Bakhtine, M. (V.N. Volochinov) (1929) Le marxisme et laphilosophie du langage. trad. Marina Yaguello. Paris, Les Éditionsde Minuit, 1978.

(10) Bakhtin, M. (Volochinov) (1929) Marxismo e Filosofia da Lingua-gem. trad. do francês de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.São Paulo, Hucitec, 1986, 3a. edição.

(11) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the Philosophy of Language.trad. Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Cambridge, Massachusetts;London, England, Harvard University Press, 1986.

(12) Bakhtin, M. (1929) “Del libro Problemas de la obra de Dostoievski”In: ” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México, SigloVeintiuno Editores, 1982. p. 191-199.

(13) Bakhtin, M. (1929;1961-1962) Problemas da Poética deDostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Ed. Forense-Universitária, 1981.

(14) Bakhtine, M. (1929; 1961-1962) La poétique de Dostoïevski. Trad.Isabelle Kolitcheff. Paris, Éditions du Seuil, 1970.

(15) Voloshinov, V. N. (1930) “Les frontières entre poétique etlinguistique” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principedialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditionsdu Seuil, 1981. p. 243-285

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(17) Bakhtin, M. (1934-1935) “O discurso no romance” In: Bakhtin,M. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. trad.do russo de Aurora Fornoni Bernardini e outros. São Paulo,UNESP, 1993, 3a. edição. p. 71-210.

(18) Bakhtine, M. Esthétique et Théorie du Roman. trad. Daria Olivier.Paris, Gallimard, 1978.

(19) Bakhtin, M. (1937-1938) “Formas de Tempo e de Cronotopo noRomance (Ensaios de poética histórica) In: Questões de Litera-tura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de AuroraFornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edi-

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ção. p. 211-362.

(20) Bakhtin, M. (1940; 1965) A cultura popular na Idade Média e noRenascimento: o contexto de François Rabelais. trad. do francêsde Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editorada Universidade de Brasília, 1993.

(21) Bakhtin, M. (1952-1953) “Os gêneros do discurso” In: Bakhtin,M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de MariaErmantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 277-326.

(22) Bakhtine, M. (1952-1953) “Les genres du discours” In: Bakhti-ne, M. Esthétique de la Creátion Verbale. Trad. A. Aucouturier.Paris, 1979.

(23) Bakhtin, M. (1959-1961) “O problema do texto” In: Bakhtin, M.Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria ErmantinaG. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 327-358.

(24) Bakhtin, M. (1961) “Para una reelaboración del livro sobreDostoievski” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México,Siglo Veintiuno Editores, 1982. p. 324-345.

(25) Bakhtin, M. (1970-1971) “Apontamentos 1970-1971” In: Bakhtin,M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de MariaErmantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 369-397.

(26) Bakhtin, M. (1974) “Observações sobre a epistemologia das ciên-cias humanas” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad.do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, MartinsFontes, 1992. p. 399-414.

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(27) Kothe, Flávio R. (1977) “A não-circularidade do Círculo de Bakh-tine”. revista Tempo Brasileiro 51, Rio de Janeiro, Edições TempoBrasileiro Ltda.

(28) Jakobson, Roman (1978) “Prefácio” In: Bakhtin, M. (Volochinov)(1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês deMichel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986,3a. edição. p. 9-10.

(29) Yaguello, M. (1978) “Introdução” In: Bakhtin, M. (Volochinov)(1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês deMichel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986,3a. edição. p. 11-19.

(30) Todorov, Tzvetan. (1981) “Théorie de l’énoncé” In: Todorov, TzvetanMikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cerclede Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 67-93.

(31) Todorov, Tzvetan (1981) Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique.suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil.

(32) Schnaiderman, Boris (1982) Dostoiévski. Prosa. Poesia. “O se-nhor Prokhartchin”. São Paulo, Perspectiva.

(33) Schnaiderman, Boris (1983) Turbilhão e Semente. Ensaios sobreDostoiévski e Bakhtin. São Paulo, Duas Cidades.

(34) Clark, Katerina e Holquist, Michael (1984) Mikhail Bakhtin.Cambridge, Massachusetts; London, England, Harvard UniversityPress.

(35) Faraco, Carlos Alberto e outros (1988) Uma introdução a Bakhtin.Curitiba, Hatier.

(36) Benveniste, E. (1989). Problemas de Lingüística Geral II. Campi-nas, Pontes.

(37) Holquist, Michael (1990) Dialogism. Bakhtin and his world. Lon-

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(38) Morson, Gary Saul e Emerson, Caryl (1990) Mikhail Bakhtin:creation of a prosaics. Stanford, Stanford University Press.

(39) Todorov, T. (1992) “Prefácio” In: Bakhtin, M. Estética da CriaçãoVerbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. SãoPaulo, Martins Fontes, 1992. p. 1-21.

(40) Barros, Diana Luz Pessoa de. e Fiorin, José Luiz. (orgs.) (1994)Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP.

(41) Brait, Beth “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso” In:Barros, Diana L. P. e Fiorin, José Luiz (orgs.) (1994) Dialogismo,Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP.

(42) Dosse, François (1994) História do estruturalismo, v.2: o canto docisne de 1967 aos nossos dias. trad. Álvaro Cabral. São Paulo,Ensaio; Campinas, Editora da UNICAMP.

(43) Machado, Irene A. (1995) O romance e a voz: a prosaica dialógicade M. Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago; São Paulo, FAPESP.

(44) Saussure, Ferdinand (1995) Curso de Lingüística Geral. trad. An-tônio Chelini e outros. São Paulo, Cultrix.

(45) Emerson, Caryl (1995) “Bakhtin at 100: Looking Back at te VeryEarly Years” In: The Russian Review, vol. 54, Janeiro/1995, TheOhio State University Press. p. 107-114.

(46) Brait, Beth. “A natureza dialógica da linguagem: formas e grausde representação dessa dimensão constitutiva” In: Faraco, C. A.;Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin.Curitiba, Ed. da UFPR. p. 69-92.

(47) Faraco, Carlos Alberto. “O dialogismo como chave de uma antro-pologia filosófica” In: Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de(orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p.113-126.

(48) Machado, Irene. “Os gêneros e a ciência dialógica do texto” In:Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogoscom Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p. 225-272.

(49) Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogoscom Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR.

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Divulgação LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO

Ilustrações da capa Composição de ilustrações do livro

Museum Jean Tinguely Basel

Mancha 10,5 x 18,5 cm

Formato 14 x 21 cm

Montagem Charles de Oliveira e Marcelo Domingues

Tipologia Bernard Mod e Bookman Old Styler

Papel miolo: off-set 75 g/m2

capa: cartão branco 180 g/m2

Impressão da capa Vermelho, preto e cinza

Impressão e acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP

Número de páginas 152

Tiragem 1.000 exemplares

Ficha técnica


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