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    Arte e Revoluo na Rssia Bolchevique

    por Patrcia Danza Greco1

    Falar sobre o papel da arte nos perodos revolucionrios exige um esforo que vai

    alm do prprio perodo. Um esforo que necessita olhar para o momento anterior,

    percebendo quais as continuidades e as dissonncias que se colocam entre a antiga ordem

    que se finda e a nova que se pretende construir. E, com certeza, o estudo da Rssia

    revolucionria no foge a essa regra, o que faz com que, necessariamente, essas palavras

    iniciais se voltem para os sculos XVIII e XIX.

    Desde a converso da Rssia ao cristianismo no sculo X, a produo artstica

    esteve sempre muito associada religio, visvel nas igrejas, nos cones e nos utenslios

    eclesisticos. Sem, em absoluto, desmerecer toda a atividade artstica que tambm existia

    ligada vida campestre decoraes de casas, ovos coloridos de Pscoa, tecidos, cestas ,

    foi no sculo XVIII que se intensificou o contato com o Ocidente, cujo desdobramento

    para as artes foi a importao de estilos artsticos considerados eruditos. Isso porque

    Pedro, O Grande (1682-1725), amante dos estudos tcnicos e nuticos, foi o principal

    responsvel por considerar que o Ocidente era um paradigma de modernizao que deveria

    ser seguido pela Rssia. Dentre as inmeras reformas empreendidas em vista de

    modernizar esse pas segundo o padro ocidental, um marco importante foi a construo de

    um modelo de cidade, que, custa de milhares de vidas camponesas, se tornou a nova

    capital do Imprio, So Petersburgo. Para essa edificao, artistas os mais diversos foram

    trazidos da Europa, e acabaram conquistando um espao significativo na formao de

    jovens artistas russos, sejam eles arquitetos, pintores e escultores, a partir da fundao da

    Academia de Belas Artes de So Petersburgo. Assim, palcios e manses ao gosto europeu

    foram construdos, e a Rssia comeava, ento, a conhecer uma arte muito diferente da

    sobriedade dos cones e da simplicidade uma palavra utilizada aqui sem nenhuma

    conotao pejorativa dos utenslios domsticos produzidos pelos prprios camponeses.

    Estilos como o Barroco, o Classicismo e o Romantismo invadiram a Rssia com o passar

    dos anos, devendo-se ressaltar que eles foram reverenciados com obras de verdadeira

    maestria pictrica.

    1 Mestre em Histria pela UFF.

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    Dessa maneira, as cenas histricas, as paisagens e os retratos tpicos dessa Arte de

    Salo passaram a conviver com a tradicional arte crist, bem como, a partir dos anos 60

    do sculo XIX, com um novo movimento artstico que se opunha justamente aos

    embelezamentos conferidos pela Academia. Ao contrrio de maquiar o mundo ou de

    traduzir os encantos nele j existentes, o Realismo optava por retratar a vida da maneira

    como ela se mostrava e, por isso, buscava, por vezes, um retrato psicolgico de suas

    personagens. Mais do que isso, o Realismo acreditava na necessidade de uma funo social

    para a arte e, sem sombra de dvida, isso no pode ser compreendido sem relembrar as

    idias que a intelligentsia russa fazia circular na poca.

    Esta, assentada em valores como a igualdade e a solidariedade ainda presentes na

    estrutura social da Comuna Rural, defendia uma modernizao da Rssia que no

    abdicasse dessa tradio, pois s assim essa nao no sofreria o deletrio

    desenvolvimento industrial caracterstico do Ocidente, que trouxera, para seus pases,

    misria e proletarizao. A intelligentsia, no geral, defendia uma autenticidade no processo

    de modernizao russo, dito alternativo, j que a Rssia ainda dispunha de redutos com

    valores sociais e culturais que no haviam sido destrudos. A disseminao deles por entre

    a sociedade garantiria uma passagem direta da etapa atual para a socialista, sem com isso

    abdicar da modernizao do pas. Se esses valores fossem preservados, estaria consolidada

    nessa nao a possibilidade de uma via alternativa de modernidade; se as Comunas fossem

    desacreditadas, boicotadas e corrodas, como vinham sendo ao longo do tempo, era o fim

    da chance de construo do socialismo naquela nao. Em suma, a crena era basicamente

    a mesma no interior dos intelligenti, mas as tticas para alcanar o fim desejado variavam

    muito, e o Realismo na Rssia se apresentou exatamente como uma interpretao pictrica

    dessas idias em circulao, sentindo que a arte tinha um papel social a cumprir,

    denunciando as exploraes, revelando os valores artstico-culturais dos russos e

    auxiliando na educao e reeducao do povo.

    claro que no se pode esquecer que o Realismo tambm grassava na Europa

    desde fins da primeira metade do sculo XIX e, na Rssia, existiam vrios meios que

    promoviam esse intercmbio artstico, como revistas, colecionadores de arte russos e

    artistas que viajavam interessados em descobrir o que o Ocidente desenvolvia de novo.

    preciso observar que, em momento nenhum, a Rssia foi uma extenso artstica do

    Ocidente. Muitas influncias chegaram at ela, mas sempre trabalhadas de acordo com as

    necessidades especficas daquela sociedade, principalmente aps o nacionalismo

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    apregoado pelos pintores realistas, por meio da valorizao daquilo que eles consideravam

    autntico da cultura russa.

    Nesse vaivm, a msica, o teatro e as artes plsticas abrilhantaram o cenrio

    artstico russo e, em se tratando dessa ltima, nada menos do que o desenvolvimento da

    arte abstrata se deve a um moscovita, Vassli Kandnski, e a um ucraniano, Kazimir

    Malievitch. O primeiro, estudando e trabalhando na Alemanha, seguiu a vertente da

    abstrao lrica, tambm conhecida como informal; o segundo, na Rssia, escolheu as

    formas geomtricas como meio de representao de um mundo novo.

    O Suprematismo, nome dado teoria desenvolvida que justificava a pintura

    geomtrica, era a libertao da pintura para ela ser ela mesma. Aparentemente uma simples

    justificao da pintura enquanto pintura. Contudo, o Suprematismo propunha um novo

    mundo, no qual as relaes com o objeto se dariam intuitivamente. Isto , a sua totalidade,

    as imbricaes pictricas geradas pelos elementos constituintes do objeto s poderiam ser

    inferidas de maneira intuitiva, e a concretizao desse novo mundo se daria no plano

    plstico da tela. a supremacia de um mundo regido pela sensibilidade, pela capacidade

    criativa e cognitiva do homem. Uma verdadeira arte moderna para um mundo moderno.

    Em outras palavras, se o Realismo incorporara a realidade da segunda metade do sculo

    XIX na Rssia, o Suprematismo representava bem o sonho de libertao por que lutaria o

    povo russo mais incisivamente e coletivamente em 1917. O Suprematismo era a arte da

    revoluo porque consistia na prpria revoluo da arte. O sentido de libertao

    condensado pelo quadrado, que dava uma soluo para a busca interminvel da arte

    moderna de conferir autonomia ao espao pictrico, era o mesmo que movera o povo em

    fevereiro e em outubro do ano vermelho.

    No filme, de Dziga Vertov, Rquiem a Lenin, uma camponesa depe afirmando

    saber agora o que os lderes dizem, palavras valiosas que ela ento compreende e

    memoriza, para contar aos outros quando da sua volta para casa. Ela diz ter havido um

    tempo de misria, mas que, agora, este j faz parte do passado. preciso lembrar que,

    quela altura, o povo russo estava faminto e atormentado pelos desastres da Primeira

    Guerra Mundial se no morria no front de batalha, chorava pelos que l perdia. A

    revoluo era um aceno de esperana de fim daqueles horrores.

    Assim, o povo estava realmente comprometido com a revoluo, aspirava novos

    tempos, tempos de igualdade e liberdade, que pareciam se iniciar com os primeiros

    decretos do Governo. Lenin, presidindo o Conselho dos Comissrios do Povo e, portanto,

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    maior representante daqueles desejos ardentes, bem poderia ter assumido o quadrado

    vermelho de Malievitch como bandeira que anunciava essa nova era. O vermelho, smbolo

    de poder e de revoluo, tendo na sua palavra correlata russa krasni tambm o significado

    de belo, feliz, constitua o sentido que movia aquela sociedade, sentido esse que estava

    expresso na forma quadrangular que libertava a arte. No quadro Quadrado Vermelho.

    Realismo Pictrico de uma Camponesa em Duas Dimenses, estava estampado o

    significado daquele novo tempo, traduzido por aquela forma geomtrica vermelha

    irregular, que rompia com toda a rigidez das imposies do passado e prenunciava a sua

    libertao. Era a irregularidade da forma banhada pelo sangue da revoluo. Revoluo na

    arte e na poltica que alimentavam aquela populao.

    O Suprematismo representa uma concepo para um novo mundo, como aquele que

    se pretendia construir na Rssia a partir de 1917. Um mundo que no limita a relao entre

    homem e objeto sua necessidade material; um mundo que multiplica as relaes e

    identidades com o objeto, que o concebe apenas em estmulos, sensaes e intuies; um

    mundo que se torna realidade no plano pictrico, que atravs da pintura tem essas

    sensaes rtmicas traduzidas; um mundo em que a pintura se justifica enquanto pintura

    porque ela que transmuta a sensibilidade em formas dinmicas, flutuantes e libertas.

    O quadrado era para o artista a forma zero, isto , a forma da qual todas as demais

    derivam. Zero no de fim, mas de recomeo, assim como se concebia a Rssia

    bolchevique. Alm disso, uma forma que no existe na natureza e que, portanto, no

    pode ser associada a ela. Uma forma puramente mental, de criao do homem, um

    verdadeiro cone de uma arte do mundo das idias, das sensaes, das intuies. Com ela,

    dentre tantas transformaes que a acompanham, uma particularmente democrtico-

    social: a arte, agora, era cosa mentale, como disse Leonardo da Vinci, era muito mais a

    elaborao de um conceito do que a habilidade tcnica do artista. Ser artista era ser um

    pensador e no um especialista na capacidade de desenhar, na capacidade de representar a

    realidade precisamente, e isso tinha total conexo com a construo de uma nova sociedade

    que cria no trabalho e na necessidade de educao e de instruo do povo. E talvez resida

    exatamente a o motivo que fez com que tantos artistas apoiassem a Revoluo: a

    esperana de se construir uma sociedade distante dos moldes teocrticos e opressores que

    caracterizavam o Tzarismo. Uma nova realidade mais justa e mais igualitria, distante dos

    academismos e de suas regras e distines artstico-sociais. preciso ter em mente que ser

    um vanguardista significava estar, muitas vezes, margem dos sales expositivos oficiais,

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    bem como ser foco da crtica artstica mais ferrenha. Na revoluo, eles viram a

    possibilidade de construo de uma nova sociedade, menos autocrtica. A revoluo, por

    sua vez, via nesses artistas sua principal base de apoio, artisticamente falando, como se o

    novo sistema poltico, econmico e social que se almejava construir na Rssia exigisse

    tambm novos alicerces artsticos.

    Assim, desde que tomou o poder em outubro, o novo governo sabia bem que

    precisava de artistas para construir e consolidar o sonho do socialismo. Alm do interesse

    da vinculao da arte propaganda, j que muito da instruo do povo se daria pela

    imagem, existia tambm, no se pode negar, uma idia de que a revoluo cultural era

    condio premente para a sobrevivncia da revoluo poltico-econmica. Assim, logo de

    incio, o governo se preocupou com a questo do analfabetismo. Em 1918, foi assinado o

    decreto Sobre a Mobilizao, que institua que todos os cidados deveriam aprender a ler e

    a escrever. Em 1919, um outro, denominado A Liquidao do Analfabetismo, reforou o

    anterior, obrigando a alfabetizao do povo, com faixa etria entre oito e cinqenta anos,

    em lngua russa ou em lngua materna, sendo que aos empregados seriam cedidas duas

    horas do trabalho sem desconto de salrio. Alm de cuidar da educao num sentido

    restrito da palavra, o Narkompros, Comissariado do Povo para a Instruo Pblica,

    responsabilizava-se tambm pelas artes, pelo seu estmulo e conservao. Como j dito, o

    incentivo produo artstica era crucial, j que, com uma ampla populao analfabeta, a

    imagem constitua ferramenta necessria para a instruo e para aglutinao do povo em

    torno da Revoluo.

    Sobre o sistema propagandista, sua presena sempre lembrava o russo do campo, da

    cidade ou do front que a consolidao do processo revolucionrio era a sada para todos os

    males. Para essa propaganda revolucionria no existia superfcie que no pudesse ser

    trabalhada: barcas, trens, edifcios, utenslios domsticos, todos serviam de instrumento de

    contnua reiterao dos valores da revoluo, sendo o trabalho e o servio militar temas

    bastante difundidos nos cartazes durante os penosos anos de Guerra Civil. Em relao aos

    affiches (cartazes), a arte grfica foi sempre uma tnica na Rssia e, aps a revoluo,

    encontrou ainda mais espao, j que, atravs dela, o novo governo propagava e reavivava a

    ideologia revolucionria em todos os russos. Vale lembrar que a utilizao macia dos

    cartazes como veculos de propaganda durante o governo bolchevique supria a ausncia de

    outros meios de comunicao de massa.

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    Nesse sentido, os artistas tiveram seu lugar assegurado nessa sociedade, no

    importando, nesse primeiro momento, se eram figurativos ou abstratos, j que o

    fundamental que todos contribussem para sedimentar os alicerces da revoluo, seja

    colaborando nos trens e embarcaes de propaganda, nos cartazes, nas decoraes de rua

    durante os festejos revolucionrios ou nas exposies estatais.

    Com Anatoli Lunatcharski frente do Narkompros, a individualidade, a

    criatividade e a coletividade eram encorajadas. Anatoli trabalhava no sentido de resguardar

    o patrimnio j existente, mas tambm de estimular as novas tendncias artsticas. E,

    assim, esse Comissariado possibilitou a reformulao de todo o sistema oficial de ensino

    das artes, visando atender todos os grupos de artistas, desde o incentivo a correntes mais

    tradicionalistas at o apoio arte vanguardista. Dessa nova concepo de ensino, esperava-

    se criar meios de levar a arte a um maior nmero de pessoas (pela questo,

    fundamentalmente, da necessidade de instruo do povo) e fomentar o trabalho artstico de

    quem tivesse interesse em desenvolv-lo, no havendo mais prova para ingresso nas

    escolas de arte. Em outras palavras, promovia-se, por exemplo, novos tipos de propaganda

    e de decoraes de rua com base nas vanguardas, mas no se deixava de integrar a velha

    intelectualidade russa nova realidade vanguardista. Com isso, o Narkompros no tendia

    nem para o radicalismo dos que almejavam a implantao de uma imediata cultura

    proletria, nem para a simples aceitao de uma cultura burguesa. Seu intuito era o de

    conciliar, ainda que temporariamente, ambas as correntes, sendo o mediador o Partido

    Comunista no poder.

    No interior da IZO, seo de artes plsticas do Narkompros, alm das diferenas

    estticas, sejam elas figurativas ou abstratas, vanguardistas ou tradicionalistas, os artistas

    se dividiam em duas tendncias basicamente: uma que associava as artes ao Estado, seu

    mais novo subsidirio depois da nacionalizao das colees particulares, e outra que

    achava que as artes deveriam ser concentradas num rgo autnomo, que faria a ponte com

    artistas de outros pases. Muito embora houvesse espao para o desenvolvimento de ambas

    as correntes, o governo demonstrava uma certa predileo pela primeira, no sentido de que

    toda aquela efervescncia artstica que se desenrolava no cenrio russo desde 1910 seria

    mais bem vista se atrelada propaganda revolucionria at porque, preciso lembrar, a

    Guerra Civil j comeara e, em seu incio, ela aparentava muito mais uma vitria dos

    Brancos do que dos Vermelhos.

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    No entanto, embora essa determinao fosse verdadeira, ainda havia espao para a

    segunda das correntes, que prezava a liberdade de criao em si mesma, principalmente

    aps a substituio, em 1918, da Academia de Belas Artes de So Petersburgo, da Escola

    de Artes Aplicadas de Stroganov e da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de

    Moscou pelos Atelis Artsticos Livres (Svomas), os quais no possuam exame de

    admisso, bem como promoviam suas exposies nas ruas.

    Assim, a IZO conseguiu atender a todos os gostos, tanto no sentido de conservar o

    que de valor o passado trazia e o que de novo o sculo XX apresentava quanto no sentido

    de atrelar a arte propaganda e de dar liberdade de criao aos que mais contundentemente

    a desejavam. Cooptando e tentando equilibrar todas as tendncias artsticas, Lunatcharski

    estimulou sua produo imensamente, tornando a Rssia palco de inspirao no s no

    terreno da revoluo poltica como tambm da revoluo artstica. E uma das propostas

    que comprovava a tentativa de conciliao de todas as tendncias era a eliminao do jri

    que julgava a entrada de obras de arte nas exposies, chamadas de Exibies Livres

    Estatais, com o objetivo de tornar a arte livre para qualquer cidado russo.

    Com o passar do tempo, o Narkompros foi se estruturando a partir de um nmero

    enorme de rgos, departamentos, sees, instituies etc., que deveriam cuidar das artes e

    da educao desde o nvel mais bsico at o superior e o tcnico-profissionalizante.

    Tamanha abrangncia em suas funes acabou, de alguma forma, prejudicando seu

    trabalho, at porque o oramento que dispunha estava muito aqum das suas necessidades.

    Como se no fosse suficiente, com a instituio da NEP, a verba repassada para esse

    comissariado passou a ser muito inferior a dos anos anteriores: em 1918, o Narkompros

    disps de 11,5% dos recursos totais do governo; em 1919, de 15,5%; em 1920, de 9,4%;

    em 1921, de 2,2%; e nos dois anos seguintes, algo em torno de 2 a 4%. Mesmo assim, ele

    continuou bastante ativo durante a primeira metade da dcada de 20, mas encontrou um

    grande problema a ser enfrentado: uma insistncia maior por parte do Partido de controlar

    mais incisivamente todas aquelas sees que se multiplicaram no interior desse

    Comissariado.

    Mesmo no pertencendo ao Narkompros, o Proletkult, responsvel por estimular a

    criao de uma cultura proletria que fosse construda pelos prprios operrios, foi um dos

    primeiros organismos a sofrer com uma conduta mais repressora por parte do Partido.

    Segundo Lunatcharski, um dos fundadores do Proletkult, Lenin nunca viu com bons olhos

    a sua organizao, j que antipatizava com esse afastamento dos operrios do aprendizado

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    das cincias e da cultura j existentes. Alm disso, e talvez principalmente por isso, outro

    fundador desse rgo foi Alexandre Bogdanov, cujas concepes polticas divergiam

    bastante de Lenin, o que fazia com que este temesse o surgimento de um desvio poltico no

    interior do Proletkult. Assim, em 1920, Lenin recomendou a Anatoli que ele deveria fazer

    a vinculao dessa organizao ao Narkompros e, conseqentemente, ao Partido, j que,

    agora, esse Comissariado se reorganizava sob considervel vigilncia.

    Assim, quando foi necessrio uma conteno significativa das despesas do Estado

    organizada em torno da NEP em 1921, obviamente no foram as vanguardas que pregavam

    a autonomia da arte que receberam a verba disponvel. A NEP, ento, embora indicasse

    tempos de maior liberdade para os camponeses e suas comercializaes, com certeza no

    trazia boas novas para o desenvolvimento cultural. Embora ele continuasse a ser uma

    preocupao, as poucas somas eram direcionadas para tendncias artsticas mais

    condizentes com a velha idia de representao naturalista, fazendo com que aquela

    poltica conciliatria de todos os movimentos artsticos passasse a enfraquecer mais e mais

    a cada ano.

    Durante esse perodo, por exemplo, ganhou importncia uma corrente produtivista

    que associava arte e vida. Para Ttlin, maior expoente do Construtivismo russo, a

    verdadeira importncia da arte estava no cumprimento de um papel poltico-social no

    mundo e, por esse pensamento, fcil compreender o porque do movimento construtivista

    ter se voltado para uma arte funcional, comprometida tanto com a propaganda poltica

    quanto com uma nova esttica, a qual permearia a vida cotidiana atravs da sua

    aplicabilidade na indstria caracterstica essa que foi absorvida e propagada

    fundamentalmente pela Bauhaus, escola alem de design e de arquitetura, fundada por

    Walter Gropius em Weimar em 1919, cujo slogan era arte e tecnologia uma nova

    unidade.

    Em relao pintura, por exemplo, a 47 Exposio dos Ambulantes, aberta ao

    pblico em 1922, transformou-se na menina dos olhos do governo, incitando os desejos

    mais adormecidos nos membros do Partido, que desejavam voltar a ver na pintura os

    politicamente engajados temas realistas. A partir dessa exposio, nasceu a Associao dos

    Artistas da Rssia Revolucionria (Akhrr), que empreendeu inmeros embates pblicos

    com a vanguarda sovitica.

    No se pode nunca esquecer que a imposio do Realismo Socialista que se

    consolidou nos anos 1930 no foi obra exclusiva de revolucionrios que estavam no poder

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    e que precisavam utilizar-se da arte como ferramenta de manipulao e de convencimento

    do povo em meio queles tempos difceis de coletivizao dos campos. Sem dvida, a

    receptividade da sociedade era bastante amigvel diante daquelas temticas to claramente

    identificveis. A prpria Associao dos Artistas da Rssia Revolucionria comprova

    como no havia nenhum consenso tambm entre os artistas quanto ao papel que deveria

    desempenhar a arte num perodo revolucionrio. Alm disso, o Estado, sem nenhuma

    dvida, queria o melhor para o povo, mas isolou-se naquilo que ele considerava melhor,

    sem perceber que com isso condenava-o a muitas privaes. Por vezes, ouvia os gritos

    desesperados dos mujiks e concedia-lhes benefcios atenuantes daquela realidade.

    Entretanto, no geral, estava embebido pelo Marxismo da II Internacional e tomava decises

    respaldado por ele, afinal, a histria estava a favor da revoluo. Por isso, ao utilizar as

    artes como instrumento propagandista, o governo no pretendia puramente tornar a

    sociedade uma massa facilmente manipulvel; ele pretendia instruir, para que um dia todos

    pudessem ver o mundo do mesmo modo que ele, pensamento que constitui o grande

    equvoco de todo regime ditatorial.

    Assim, entre 1917 e 1922, uma cultura modernista acabou se consolidando, em

    geral vanguardista, coletivista e difundida. Dentre suas expresses mais notveis estavam o

    cinema revolucionrio, o teatro poltico, os grandes projetos urbansticos modernos, as

    artes grficas, o Construtivismo, com sua crena na utilizao de formas artsticas para fins

    utilitrios, e o Suprematismo. Entretanto, to-logo a governo viu-se forte e sozinho no

    poder, a liberdade que fora a tnica que regera os ltimos anos deu lugar suspenso dos

    subsdios boa parte das escolas de arte, que haviam se multiplicado. Em primeiro lugar

    porque os tempos de escassez urgiam pela conteno de despesas. Em segundo porque,

    diante de uma obra realista e de uma abstrata, os pensamentos mais conservadores

    prevaleceram tanto do governo quanto da sociedade , e os parcos recursos foram

    direcionados para as produes realsticas. A partir da morte de Lenin, em 1924, a situao

    agravou-se ainda mais e tornou-se insustentvel depois da renncia de Lunatcharski de seu

    cargo como comissrio do Narkompros. Com Litkens ocupando o lugar de Anatoli, as

    antigas aspiraes tornaram-se iluses e tanto o movimento por uma cultura proletria

    como por uma linguagem de vanguarda para as artes foram extirpados do cenrio cultural

    sovitico.

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    Karl Briullov, O ltimo dia de Pompia, 1830-33.

    Ili Ripin, Os rebocadores do Volga, 1870-73.

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    Detalhe da obra anterior.

    Kazimir Malievitch, Quadrado vermelho. Realismo pictrico de uma camponesa em duas dimenses, 1915.

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    Vassili Kandinski, A voz desconhecida, 1916.

    Embarcao de propaganda chamada a estrela vermelha, 1920.

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    UNOVIS, Decorao em Vtebski, 1920.

    El Lisstski, Derrotem os brancos com a cunha vermelha, 1919.

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    V. N. Deni, Camarada Lenin livra a Terra de todo lixo, 1920.

    S. Tchekhonine, O reinado dos operrios e dos camponeses sem fim, 1920.

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    Grgori Chegal, Lder, professor e amigo, 1937.

    Referncias bibliogrficas

    ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. BABURINA, N. Russia 20th Century: history of the country in poster. Moscou: Panorama, 2000. BERLIN, Isaiah. Pensadores Russos. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. BRITT, David. Art and Power; Europe under the Dictators, 1930-45. Eds. Londres: Hayward Gallery, 1995. DOUGLAS, Charlotte. Kazimir Malevich. Nova Iorque: Harry N. Abrams, Inc., 1994. DRUTT, Matthew (org.). Kazimir Malevich: Suprematism. Nova Iorque: Guggenheim Museum Publications, 2003. Catlogo de Exposio. DUNAEVA, Cristina Antonioevna. De Sistemas Novos na Arte de Kazmir Malivitch; da histria da arte anlise da linguagem artstica. Campinas, 2005. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Campinas.

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