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Dossiê Dossier Cao Guimarães hambre março|marzo 2014

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DossiêDossierCao Guimarães

hambremarço|marzo

2014

Índice

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 3

hambremarço 2014

ÍndiceApresentação/Presentación

Escutando a Cao Guimarães: fragmentos de um diálogo silente… |Por Hambre | espacio cine experimental

Rua de Mão Dupla: documentário e arte contemporânea. |Por Consuelo Lins

Entre Folhas:Cao Guimarães y la poética de la micro­expresión. |Por Sebastian Wiedemann

Tempo e Dispositivo nos Filmes de Cao Guimarães. |Por Consuelo Lins

El caminar como génesis de la desobediencia. |Por Florencia Incarbone

Fugas perceptivas: la imagen en Cao Guimarães. |Por Sebastian Wiedemann

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Apresentação/Presentación

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hambremarço 2014

ApresentaçãoProvavelmente um dos cineastas mais notórios esignificativos no contexto latino­americano dadécada de 2010 e um dos expoentes daquilo queHambre | espacio experimental pretende eprocura.

Profundamente local e enraizado em nossaslatitudes ­ tanto assim que antes de latino­americano ou brasileiro, seu cinema é mineiro ­Cao Guimarães com sua poética sutil, frágil echeia de plasticidade faz a proposta radical deexpor­nos ao “ao tempo da vida” como elemesmo o define.

A vida é duração e em tempos onde a detenção ésinônima de tédio, o universo imagético de CaoGuimarães vem a dizer­nos que o tédio é só umaquestão de velocidade, que é a impossibilidade deentrar e deixar­se levar por outras velocidades.Passagens que claramente provocam e fazem quenossas percepções se aventurem e sintam o dramade umas formigas ou de uma simples folha.

Em 2013 tivemos o prazer de escutá­lo. Ocasiãoem que se deu um diálogo silente, quecompartilhamos com vocês como primeiraentrada ao universo ­ Cao Guimarães ­ e que demodo intempestivo sentimos que é essa outramargem com a que dialogarão os textos que aquireunimos.

PresentaciónProbablemente uno de los cineasta más notorios ysignificativos en el contexto latinoamericano de ladécada de 2010 y uno de los exponentes deaquello que Hambre | espacio experimentalpretende y busca.

Profundamente local y arraigado en nuestraslatitudes, tanto así que antes que latinoamericanoo brasilero, su cine es minero, Cao Guimarães consu poética sutil, frágil y llena de plasticidad, noshace la propuesta radical de exponernos al“tiempo de la vida” como él mismo lo define.

La vida es duración y en tiempos donde ladetención es sinónimo de tedio, el universoimagético de Cao Guimarães, viene a decirnosque el tedio es solo una cuestion de velocidad,que es la imposibilidad de entrar y dejarse llevarpor otras velocidades. Pasajes que sin más,provocan y hacen que nuestras percepciones seaventuren y sientan el drama de unas hormigas ode una simple hoja.

En 2013 tuvimos el placer de escucharlo. Ocasiónen que se dio un diálogo silente, que compartimoscon ustedes, como primera entrada al universo­Cao­Guimarães y que de modo intempestivosentimos que es esa otra orilla con la quedialogarán los textos que aquí reunimos.

Hambre | espacio cine experimental

Escutando a Cao Guimarãesfragmentos de um diálogo silente

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]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 7

1. O cinema nasceu na cozinha.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima1

2. A realidade é a superfície de um lago.Realidades: sobre “Da janela do meu quarto”,“Rua de mão dubla”, “Histórias do não ver”,“A alma do osso”, “Andarilho” e “O homemdas multidões”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima2

3. O grivo: o visual já estava por minha conta,precisava alguém do som.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima3

4. Sobre o processo criativo: descontrole,acaso, o que pode acontecer, candomblé eporos abertos. “Rua de mão dubla”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima4

5. A essência do cinema. Olhar o mundo, pelonão dito, pelo aparentemente não acontecenada. Aproximar a obra da vida. Ritmo, tempoe expressividade da vida. Tactilidade.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima5

6. Sobre “Sopro”, “O inquilino” e omicrodrama da forma.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima6

7. Sobre “Otto”, o encontro e o outro. Ficar nasuperfície da bolha, nem dentro nem fora.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima7

8. O tempo da vida, o estar ali. Sobre “A almado osso” e “Andarilhos”. Andar e pensar,viagens da percepção.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima8

9. Da fotografia e do cinema. Do ser mineiro,dos Andarilhos, de pensar duas vezes antes dedizer nada ou das armadilhas para que sempretudo seja diferente.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima9

10. O infilmavel, Sobre “Histórias do não ver”ou sobre como a imagem cansa. Os outrossentidos, o filme mental e a curiosidade poroutras formas de estar no mundo além de estarfilmando tudo.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima10

Escutando a Cao Guimarães:fragmentos de um diálogo silente ...por Hambre | espacio cine experimental

Rua de Mão Dupladocumentário e arte contemporânea

1. O cinema nasceu na cozinha.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima1

2. A realidade é a superfície de um lago.Realidades: sobre “Da janela do meu quarto”,“Rua de mão dubla”, “Histórias do não ver”,“A alma do osso”, “Andarilho” e “O homemdas multidões”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima2

3. O grivo: o visual já estava por minha conta,precisava alguém do som.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima3

4. Sobre o processo criativo: descontrole,acaso, o que pode acontecer, candomblé eporos abertos. “Rua de mão dubla”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima4

5. A essência do cinema. Olhar o mundo, pelonão dito, pelo aparentemente não acontecenada. Aproximar a obra da vida. Ritmo, tempoe expressividade da vida. Tactilidade.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima5

6. Sobre “Sopro”, “O inquilino” e omicrodrama da forma.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima6

7. Sobre “Otto”, o encontro e o outro. Ficar nasuperfície da bolha, nem dentro nem fora.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima7

8. O tempo da vida, o estar ali. Sobre “A almado osso” e “Andarilhos”. Andar e pensar,viagens da percepção.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima8

9. Da fotografia e do cinema. Do ser mineiro,dos Andarilhos, de pensar duas vezes antes dedizer nada ou das armadilhas para que sempretudo seja diferente.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima9

10. O infilmavel, Sobre “Histórias do não ver”ou sobre como a imagem cansa. Os outrossentidos, o filme mental e a curiosidade poroutras formas de estar no mundo além de estarfilmando tudo.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima10

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Rua de Mão Dupla:documentário e arte contemporâneapor Consuelo Lins1

Rua de Mão Dupla é o titulo de um dosdocumentários do artista mineiro Cao Guimarães,concebido inicialmente como videoinstalaçãopara a 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em2002, que teve como tema IconografiasMetropolitanas. Trata­se de um projeto queemerge de uma trajetória artística ligada àfotografia e à videoarte, mas em diálogo diretocom o campo do documentário, apostando namistura e contaminação de procedimentosestéticos como forma de invenção audiovisual. Datradição do documentário, Cao Guimarães retomaa questão do “outro”, a quem o filme é dedicado,mas subverte essa tradição com instrumentos depráticas artísticas contemporâneas; realiza assimuma espécie de documentário­jogo, no qual nãose propõe mais a filmar "o mundo", nem ainteragir ou conversar com seus personagens, masa estabelecer parâmetros de filmagem e regrasespecíficas a partir dos quais imagens e sonspodem ­ ou não ­ surgir.

Cao Guimarães imprime nesse filme umcuriosíssimo deslocamento em relação a todas asquerelas em torno da "voz do outro" queatravessam a história do documentário, através deum gesto à primeira vista pequeno: altera adireção do que se solicita aos personagens emgrande parte dos documentários baseados emconversas. Não quer que eles se voltem para si,que falem de suas vidas, que se revelem para acâmera; pede, antes, que falem de pessoasdesconhecidas e filmem casas alheias. O resultadoé surpreendente pois o que mais chama atenção aolongo do filme é a carga de "exposição de si"contida em imagens e depoimentos teoricamente"sobre os outros" ­ mas de viés, indiretamente,

quando menos se espera. Rua de Mão Duplaproduz ainda o efeito de “desprogramar” o queestava previsto não apenas no campo dodocumentário, mas no da produção de imagensmediáticas, retirando do jogo proposto o que háde mais definidor dos espetáculos de realismo: alógica competitiva e a exclusão.

Rua de Mão Dupla expressa um cruzamento euma circulação cada vez mais intensos entredomínios até pouco tempo distantes, e mesmohostis entre si: a arte contemporânea e odocumentário. Cineastas que trabalhamprioritariamente no documentário criaminstalações para serem expostas em galerias aomesmo tempo em que artistas expandem suascriações para o campo das imagens documentais.Não são poucos os exemplos dessa prática quedespontou com mais força a partir de meados dosanos 90: as videoinstalações de Maurício Dias eWalter Riedveg sobre porteiros nordestinos, OsRaimundos, os Severinos e os Fransciscos (Bienalde São Paulo ­1998), a de Karim Aïnouz eMarcelo Gomes sobre o carnaval, Se Fosse Tudosempre Assim (Bienal de São Paulo – 2004), eainda os trabalhos de Sandra Kogut, Eder Santos,Lucas Bambozzi, Kiko Goiffman, entre outros.Na França, Agnès Varda e Raymond Depardon,cineastas com obras majoritariamente ligadas aodocumentário, apresentaram recentementeinstalações em galerias parisienses. Diretores queampliam o caminho aberto pela cineasta ChantalAkerman que, desde 1995, reorganiza seus filmesem instalações em galerias e museus. Obras quese renovam a partir de estratégias extraídas da artecontemporânea e que propiciam outras maneirasde se relacionar com imagens em movimento

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redefinindo temporalidade, espaço, narrativa eimpondo modificações à interação mental ecorporal do espectador.

Duas precisões são importantes. Essa hostilidadeé menos fruto dos procedimentos artísticospropriamente ditos do que de praticasinstitucionais que visam, com bons e mausefeitos, defender determinados territórios. Alémdisso, relações íntimas entre esses dois camposnão são inéditas. Há, ao longo da história docinema, vários momentos em que artes plásticas edocumentário se misturam para produzir obrasfundamentais. Os anos 20 e os 60 são asreferências mais célebres: as vanguardascinematográficas e particularmente o cinemasoviético de Dziga Vertov e, a partir da década de60, o cinema experimental de Andy Warhol eespecialmente o de Jonas Mekas, entre outrasassociações possíveis. No Brasil, a história dessarelação é mais recente e tem na obra de ArthurOmar o exemplo mais contundente. Filmes,vídeos, fotografias, instalações que impuseram aodocumentário um movimento radical de“desprendimento de si”, fabricando um lugar atéentão inexistente no Brasil.

Na verdade, torna­se cada vez mais difícilidentificar um espaço exclusivo de atuação deuma obra, a tal ponto os trabalhos hoje sãoatravessados por diferentes práticas artísticas.Árdua também é a tarefa de tentar caracterizar deforma precisa o que se passa no campoaudiovisual contemporâneo. Inúmeras objetos seconstituem e são constituídos em meio adiferentes domínios e dispositivos técnicos,utilizando­se de elementos retirados de todos eles.Passam de um suporte a outro, de um tipo deexibição a outro, circulam em diferentes festivaise instituições pouco preocupadas com o que “defato” são. De toda maneira, mais do que o cinemade ficção, o documentário – entendido como umcampo de práticas diversificadas ­ tem

contaminado diferentes estéticas e se infiltra cadavez mais em múltiplos domínios das artes visuais,adquirindo uma nobreza artística que lhe foirecusada em grande parte de sua história – muitasvezes pelos próprios documentaristas, quequeriam se afastar da idéia do cinema como arteou diversão.

Contudo, o que nos interessa nos limites desseartigo é verificar o que há de específico e inéditonessa articulação. Não é portanto uma abordagemgeral desses cruzamentos; nos concentraremos naanálise de Rua de Mão Dupla e nas questões comas quais o filme se confronta.

O dispositivo: uma máquina de ver e fazer ver

Rua de Mão Dupla é fruto de um dispositivo defilmagem organizado com precisão pelo diretor,cujas linhas centrais são explicitadas para oespectador já nas primeiras imagens do filme. CaoGuimarães convidou seis pessoas pertencentes àscamadas médias da população ­ não há ricos nempobres, mas variações entre esses extremos ­,moradores solitários de Belo Horizonte, aparticipar de uma experiência inusitada: divididosem duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e,munidos de uma pequena câmera digital,filmariam o que bem lhes aprouvesse em casaalheia, tentando "elaborar uma "imagem mental"do outro (a) através da convivência com seusobjetos pessoais e seu universo domiciliar"2. Aofinal, dariam um depoimento para a câmera,contando como imaginaram esse "outro".

Para estruturar o filme de 75 minutos, CaoGuimarães editou o material filmado em trêsblocos, um para cada dupla, de 20, 25 e 30minutos respectivamente. O diretor interveio naredução do tempo de filmagem de cadaparticipante, mantendo porém a cronologia dafilmagem. Decidiu ainda em que ordem as duplasseriam inseridas no filme. A tela foi dividida ao

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meio, o que permitiu ao espectador acessosimultâneo às imagens e sons feitos pelosintegrantes de cada dupla ­ um produtor musical euma oficial de justiça, um construtor e umarquiteto, uma escritora e um poeta ­, trazendopara o documentário uma das dimensões dainstalação. No final dos blocos, assistimos, emuma das telas, aos depoimentos de cada um delese, na outra, a pessoa descrita, olhando em direçãoà câmera, como se também fosse espectadora doseu "retrato falado".

De imediato, o que podemos observar nessaestratégia de filmagem é a elaboração de uma"maquinação", uma lógica, um pensamento, queinstitui condições, regras, limites para que o filmeaconteça, assim como na construção de uma“maquinaria”3 para produzir concretamente aobra. O dispositivo se constitui das duasoperações, com regras temporais e espaciais pré­definidas. De certa maneira, a noção dedispositivo que utilizamos aqui tem pontos deconvergência com o conceito de dispositivoutilizado por Michel Foucault nos seus escritos apartir dos anos 70. Ao descrever o surgimento e ofuncionamento de diferentes dispositivos depoder, Foucault inventa uma « filosofia darelação”4 e nos faz ver múltiplas redes em queestamos envolvidos, a que somos assujeitados, eque nos constituem à revelia. Redes, ou relações,que se estabelecem entre discursos, instituições,espaços, técnicas, regras, o dito e o não­dito deuma época específica, produzindo “mundos”,“sujeitos”, “objetos” – eis o que Foucault definecomo dispositivo. Ao destrinchar tais mecanismosde dominação, Foucault enfatiza o caráter deartefato de toda e qualquer realidade, produzidapor praticas específicas, em um lugar e momentoespecíficos.

Em todos os dispositivos descritos por Foucault, adimensão visual é fundamental. Sãoprocedimentos que colocam em cena “técnicas de

visualização” próprias que nos induzem a verdeterminadas coisas e não outras. Vemos e cremosque o poder é exercido por um grupo, centrado naLei e baseado na proibição, quando, na verdade,ele é muito mais inventivo do que isso, e seexerce anonimamente por meio de diferentestécnicas. É parte de sua estratégia ser vistoessencialmente dessa forma, só assim ele étolerável5. Foucault identificou ao longo de suatrajetória dispositivos de poder que ninguém viu enos fez compartilhar dessa visão de forma tãocontundente que é difícil não vermos o quanto,em um regime disciplinar, uma prisão se parececom uma fábrica, escola, caserna, hospital ouasilo. Trata­se portanto de uma tarefa filosóficaimensa que reorganiza visibilidades e nos mostrao quão presos estamos a uma forma de ver. Avisão, a observação, não são, em absoluto,essências a serem descritas por umafenomenologia da percepção, mas construçõeshistóricas que traduzem, em diferentes épocas,diversos “modos de ver e de fazer ver”6.

O alcance dos dispositivos artísticos éevidentemente outro, mas o pensamento deFoucault nos ajuda a precisar essa noção que setornou central na crítica das artes audiovisuaiscontemporâneas. É como se alguns artistasretomassem por conta própria e de múltiplasformas a “maquinaria de incitação”7 que é umdispositivo e impusessem a ela uma outra lógica.É como se, diante das inúmeras máquinas que nosprogramam, submetem, vigiam e controlam, elesconcebessem estratégias de resistência, táticas deguerrilha e pontos de implosão, fabricando umainfinidade de dispositivos inusitados, engenhocasinéditas, mecanismos de excitação e produção deexperiências diversas; a “eficácia” artística epolítica dessas pequenas máquinas medindo­sepelo potencial produtor e transformador do que éproposto, pela possibilidade de deslocar visõesestabelecidas, criar novas maneiras de ver e ser,experimentar outras sensações, narrativas,

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espaços e temporalidades. Em suma, pelapossibilidade de reorganizar visibilidades. Nãomuito distante, portanto, da “arte de ver” deFoucault8.

Se os dispositivos de poder são frutos de práticasanônimas e dissimulam o que de fato são, osartísticos são construídos pelos artistas,individualmente ou coletivamente, e possuemuma dimensão “reflexiva”, ou seja, deixam claropara quem interage com eles, espectador e/oupersonagem, seu caráter de artefato pois faz partedo jogo revelar as estratégias utilizadas. De toda amaneira, a noção clássica de autoria é deslocada.Em Rua de Mão Dupla, o diretor não filma nemdirige, mas concebe um jogo, distribui cartas,determina regras, escolhe jogadores, fornececâmeras, transporte, comida. Provê o necessário esai de campo.

Trata­se de uma maquinação que implica aausência de controle do diretor sobre o materialfilmado, propiciando uma espécie de "retiradaestética" não propriamente do filme, mas dasimagens e sons que seu filme vai conter,atribuindo a seis outros indivíduos a tarefa defilmar e se auto­dirigir. Um gesto de mise­en­scène que se apaga em favor da auto­mise­en­scène do personagem, cedendo lugar ao outro,favorecendo seu desenvolvimento, lhe dandotempo e campo para se locomover. "Filmar torna­se assim uma conjugação, uma relação, onde sedeve enlaçar­se ao outro ­ até na sua forma."9 Nãose trata em absoluto de abdicar do filme em favordos personagens, mas de imprimir modificações àconcepção de autor, que deixa de lado afabricação das imagens para se concentrar naestruturação do dispositivo10.

"Um de olho no outro": a visibilidade comocondição de existência

À exceção dos depoimentos finais de cada dupla,tudo o que vemos no filme foi realizado pelospersonagens. Embora haja uma estética comumde vídeo amador (planos trêmulos, desfocados,mal­enquadrados, longos, rupturas abruptas nosom, luz estourada...), cada um deles imprimiusingularidades ao que filmou. O que filmam?Lixo de banheiro, a ponta de um baseado naprivada, livros, fotos, cesto de roupa suja, o quehá na geladeira, baratas na cozinha, instalaçõesdefeituosas, fotografias e filmes pornográficos,garrafas de bebidas... Realizam uma investigaçãodetalhada, registrando a intimidade alheia semconstrangimentos e fazem, em muitos momentos,comentários sincrônicos à imagem. Agem, àsvezes, como detetives na cena do crime à procurade vestígios, rastros, impressões, indícios, tudo oque possa identificar o culpado/a vítima/osuspeito.

São imagens amadoras mas deixam escapar aqui eali uma preocupação mais formal. A oficial deJustiça aciona o zoom rapidamente em quasetodas as imagens, como se tivesse recém­descoberto o procedimento. O produtor musicalse inclui nas imagens ­ é o único a fazer isso.Filma­se no espelho, simulando estar dormindo,ou lendo jornal no sofá. O construtor é o que maisse concentra na descrição do apartamento,fazendo um inventário dos problemas deconstrução. Mantém uma continuidade espaço­temporal na filmagem, o que raramente acontecenos outros materiais, cuja captação parece ter sidofeita de forma mais aleatória ao longo das 24horas. O arquiteto faz planos curtos de objetos emóveis com uma explícita intenção deenquadramento, desvelando uma pretensãoestética mais acentuada. O poeta e a escritorafilmam menos o interior do apartamento e maiscenas na rua.

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De todo o material filmado, as imagens realizadaspelo arquiteto chamam especialmente a atenção –ali explicita­se algo que atravessa em filigranatodo o projeto. A casa do engenheiroaparentemente o interessa pouco. Limita­se filmarde forma fragmentada móveis e roupas. O quedominantemente o atrai é a tela da TV, sejaexibindo imagens de um jogo de futebol, cenasdos programas Casa dos Artistas e Big Brother oufilmes pornográficos. Explora sem cerimônia tudoo que encontra de pornográfico na casa doparceiro (vídeos, fotos, revistas), a ponto desimular uma masturbação com o movimento dacâmera. Registra igualmente janelas deapartamentos vizinhos e atém­se à capa de umarevista com a frase: "Um de olho no outro". Essasimagens foram filmadas casualmente mas, decerta maneira, quase não poderiam deixar de estarno filme. Expressam dimensões cruciais da nossacondição contemporânea às quais a criaçãoaudiovisual, querendo ou não, tem de seconfrontar: o voyeurismo e o exibicionismo, avigilância e a exposição da vida privada.

É como se o filme se colocasse cara a cara com oestado do mundo e o incluísse na suas imagenspara tornar ainda mais visível a subversão queimpõe às regras do jogo mediático. Iniciativatemerária que enfatiza as convergências de Rua deMão Dupla com os espetáculos de realismo: afilmagem e a exibição da intimidade, o caráter dejogo, a desconexão entre visibilidade e sucessopessoal ­ os personagens são pessoas comuns enão celebridades. O diretor é também impelido alidar com o que move os personagens a aceitar aproposta e a abrir suas casas para serem filmadas.O motivo pode ser semelhante ao que leva aspessoas a falar na televisão e a expor o que têm depior: apelo ao reconhecimento, aspiração a umalegitimidade de comportamento. Em umasociedade em que “o olhar do outro deixa de serdado pelo coletivo”11, o olhar televisivo torna­seuma das formas mais potentes de reconhecimento.

De todos esses embates, o filme sai fortalecido.Primeiro, em Rua de Mão Dupla, nem tudo podeser mostrado, retomando uma moral preciosa docinema moderno que vai de encontro à injunçãode transparência, objetividade e visibilidade 24horas por dia dos espetáculos de realismo. Não setrata de um material produzido por câmerasanônimas de vigilância mas de imagensfragmentadas, em movimento constante, repletasde parcialidades, elipses, pontos obscuros12. Emseguida, não há como um participante ser melhorou pior do que outro, nem como o materialfilmado ser melhor ou pior, pois o que interessasão justamente as particularidades das imagens.Nenhum deles torna­se tampouco celebridade. Asupressão da competição, avaliação e julgamentoe a impossibilidade de exclusão são decisivas paradesprogramar a lógica dos reality shows.

O gosto do outro

No entanto, a grande invenção do filme,responsável pela solidez da proposta, é asolicitação do diretor de que os “outros” emquestão, os participantes do filme, se interessempor outros e não por eles mesmos, bloqueando odesejo de confessar, revelar segredos ou exportormentos íntimos que nos captura a partir domomento em que uma câmera é postada diante denós. Invenção que redireciona o desejo da “bestada confissão” em que nos transformamos, que nosfaz confessar crimes, pecados, pensamentos,desejos, doenças e misérias, “em público, emparticular, aos pais, aos educadores, ao médico,àqueles a quem se ama (...) a si próprios, noprazer e na dor (...)”13.

É verdade que podemos vislumbrar nesse “dar àcâmera ao outro”, extremamente facilitado pelastecnologias digitais, um exemplo a mais de umatendência cada vez mais forte na produçãodocumental contemporânea; tendência que, noBrasil, retoma em novo contexto experiências

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cinematográficas realizadas nos anos 60 e 70, emque se colocar à serviço do “outro de classe”significou também, em alguns casos, deixar o“outro” filmar. Tanto antes como agora, há umdesejo de “ver como o outro vê”, desejo da visãodo outro, algo que importa menos quandopressupõe uma visão “autêntica” a ser revelada14,mas ganha interesse quando parte do princípio deque a imagem realizada pelo outro é resultado deum turbilhão de antecipações e expectativas eadquire força quando revela justamente essamistura de base, como acontece em Rua de MãoDupla.

No filme, o "dar a câmera ao outro" produz defato uma novidade, um verdadeiro estranhamento,para além do que os personagens poderiam querermostrar. Há visivelmente uma impossibilidade decontrole dos efeitos que falas e imagensproduzem, uma “verdade” que se explicita sem oconhecimento deles. A mudança do foco do “eu”para o “outro” faz com que os personagensfiquem menos atentos a auto­controles, censuras efiltros que normalmente acionamos para oferecera imagem que desejamos de nós mesmos. Amaneira como se relacionam com o espaço alheio,o que escolhem filmar, o que dizem, como falam,palavras, sintaxes, entonações que colocam emcena, tudo isso revela muito mais deles mesmosdo que poderíamos esperar. São imagens do outrofortemente embebidas da visão de mundo e dosafetos daquele que filma. Trata­se de “ver como ooutro vê”, mas de forma impura e deslocada.

Na montagem precisa efetuada por CaoGuimarães, há uma hostilidade crescente daprimeira para a terceira dupla, a ponto da escritoradizer, na última parte do filme, ter achado“repulsivo” o cheiro do outro. As imagens ecomentários feitos pelo construtor na casa doarquiteto soam cômicas em função da atuaçãoprofissional deles. A amabilidade inicial ­ "umapessoa de bom gosto, um edifício chique, um

homem ligado à natureza", vai abrindo espaço auma irritação crescente nas observações sobre aarquitetura modernista do apartamento ­ o prédioé uma obra de Oscar Niemayer ­ ressaltadatambém nas imagens. "Problemas da arquiteturamoderna, a pia não cabe dentro do local... Aquievidencia­se claramente problemas que assolamprédios desse tipo.” Já o arquiteto chama aatenção para o “prédio de classe média”, situadoem “um bairro de classe média, de revestimentoclasse média, de média”. Há também uma tensãode “gênero” entre eles: o arquiteto enfatiza adimensão de “macho” do construtor e esse, porsua vez, se diz impressionado pela “ausência devestígio feminino” na casa, “uma ausência deAnita total”.

Apesar de ter achado a experiência “genial” entreoutras coisas por tê­la ajudado a desfazer­se de“preconceitos sérios” ­ “não ouvi pagode, nemaxé music, nem música baiana nem uma vez” ­, aescritora profere julgamentos sobre o outro queexibem de forma quase constrangedora como suavisão de mundo é impregnada de preconceitosmuito mais graves do que sua consciência poderiaadmitir, e que não se resumem a associar certasmúsicas a determinados locais. Preconceitos quenão são facilmente desfeitos, passando menospelo conteúdo do que é dito e bem mais pelamaneira como se expressa, pelas palavras usadas,ressalvas, evasivas, insinuações, indiretas,alfinetadas: “É um personagem muitocontraditório, que mora mal e tem mauscostumes, e eu não acho que ele mora mal porqueé pobre não... não sei se é pobre não, e tambémnão é despojado, acho que ele é desprovido, deidéia, de bom gosto, de atenção com ele mesmo.”Ela reclama ainda dos “rastros de ambigüidade”deixados na casa, quando, na sua visão, sua casa éo seu retrato. Uma fala que se torce ao pressentira palavra, a resposta ou a objeção do outro15. É oexemplo mais perturbador de que o filme fugiu aocontrole dos personagens.

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O que não quer dizer que Rua de Mão Duplaridicularize seus personagens. Nós, espectadores,"trabalhamos" ativamente e o material nos fazentender o ponto de vista deles, semnecessariamente lhes dar razão. O filme nãoresolve o “mundo”, não o interpreta, não o avalia;inversamente, abre para o espectador um campode possibilidades, uma multiplicidade de sentidos,forçando­o a pensar. Relacionamos de váriasmaneiras o que vemos e ouvimos e realizamosmentalmente, de forma selvagem, um retrato detodos esses personagens que se exibem às nossasvistas. Se isso fosse feito diante de uma câmeracertamente revelaria muito do que somostambém, e talvez nos ajudasse a constatar que“estamos” onde menos esperamos, nãoespecialmente no “conteúdo” do que dizemos oupensamos de forma consciente, tampouco em uma“interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladasde subjetividades”16 que se constituem e seexpressam na nossa relação com o mundo e como outro.

Não se trata portanto de uma identidade fixa oude um "eu" profundo a se revelar através damaquinação do diretor, muito pelo contrário. Oque o filme mostra de modo cristalino é o quãoencharcado de memórias e afecções corporais énosso olhar sobre o mundo, o quão arraigadossomos a determinadas maneiras de ver e sentir, otanto que ignoramos nossos preconceitos, o tantode impossibilidade de nos colocarmos no lugar dooutro, de aceitá­lo na sua diferença esingularidade. Sintomaticamente todos ressaltama dificuldade de viver na casa do outro, tecendocomentários a respeito do aspecto “provisório" e"improvisado" dos espaços ­ como se fossenecessário negar as características do parceiropara se auto­definir. O único a não fazerobservações dessa natureza é o poeta. É quemmenos fala, quem menos interpreta, quem de fatose permite experimentar encontros e misturas como que lhe é estranho. É mesmo comovente vê­lo

expressar o que sentiu, vê­lo chorar, ficar emsilêncio e também refletir sobre o que lhe foiproposto. Não é por acaso que o diretor inseriu odepoimento dele no final do filme, depois daspalavras da escritora, nos deixando pressentir apossibilidade de uma relação diferente com omundo.

***

Ao falar de seus trabalhos, Cao Guimarães osdivide em três “categorias”: os mais plásticos,contemplativos e formais, como Sopro, Hypnosis,Word/World, Nanofania; aqueles em que se deixalevar por um determinado objeto ou assunto,como nos filmes A alma do osso, O fim do semfim e Da janela do meu quarto; e os propositivos,como Rua de Mão Dupla e Volta ao mundo emalgumas páginas. Esses últimos lembram omovimento da artista francesa Sophie Calle emalgumas de suas obras, tal como em LesDormeurs (1979), em que propõe a vinte e novedesconhecidos dormir na sua cama. Como emmuitos trabalhos de Calle, há uma atração pelojogo e suas regras, uma submissão obediente aoarbitrário que ela mesma criou: a cama deveriapermanecer ocupada ao longo de oito dias; cadaconvidado dormiria oito horas, com direito a caféda manhã e lençóis limpos; eles responderiam aquestões, ela anotaria, e durante o sono, poderiafotografá­los à vontade. O conjunto de fotos enarrativas foi exibido na XI Bienal de Paris, em1980, e reunido, depois, em livro. Tanto em LesDormeurs quanto em Rua de Mão Dupla, não setrata de contar uma história já vivida, mas deviver uma história para contá­la17. A partir daí,muita coisa diferencia os dois artistas. CaoGuimarães trabalha com vídeo e cria dispositivospara se descolar de si; Calle fez apenas umdocumentário em 1992 com seu namorado deentão e a dimensão autobiográfica do seu trabalhoé fortíssima, mesmo se parcialmenteficcionalizada: ela joga com seu nome, sua vida,seus amigos e amores perdidos.

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Nos últimos anos, os trabalhos de Cao Guimarãestêm sido selecionados e premiados nos principaisfestivais internacionais de documentário e vídeoexperimental e exibidos em diversasmanifestações artísticas mundo afora. Um dosmais recentes, Da janela do meu quarto (2004),realizado em digital, filmado e editado pelopróprio diretor, foi selecionado para a Quinzenade Realizadores do Festival de Cannes, talvez omais importante festival de cinema da atualidade– aquele que mais conta para os autores docinema. Cao Guimarães não tem formação emcinema, nunca fez escola nem trabalhou no meiocinematográfico. A “sério”, estudou filosofia efotografia; cinema, ele começou em casa, quandomorava em Londres, com super 8, fazendo umaespécie de diário filmado, “um pequeno exercíciode observação solitária do mundo”, em uma“ampliação natural das possibilidades deexpressão”, diz, que inclui “vídeo, super 8, 35 ou16 mm, câmera fotográfica digital, caixa desapato, câmeras de plástico, caneta, lápis, laptop,máquina de escrever, gravador de som,microfone, projetor de slides, projetor de vídeo ede cinema e mais uma infinidade de coisas”.

Sua cinefilia é “digital e rizomática”18, própria auma forma contemporânea de se relacionar com ocinema que não passa, necessariamente, porfiliações, mas que não deixa de ser atravessadapor uma paixão e de reencontrar um certo espíritodo cinema, o da experimentação. Atitude que seconfronta tanto com uma postura conservadoraque vê o cinema como “patrimônio”, objeto desaber e reverência, quanto ao cinema comomercado. E faz filmes libertadores, que inventamnarrativas, dispositivos e novas percepções doreal, sugerindo, nesse movimento, que o cinematem muito a ganhar associando­se ao que lhe é, decerta forma, “exterior”. Tal como é hojedominantemente produzido (mercado, marketing,leis, lobbys, projetos intermináveis, distribuição,exibição), o cinema tem poucas chances de se

renovar; essa engrenagem o engessa e fossiliza,corroendo do interior suas possibilidades decriação.

1Este texto foi publicado no livro “Transcinemas”, organizado porKátia Maciel (Contra­Capa). Consuelo Lins é documentarista eprofessora do Programa de Pós­Graduação em Comunicação(ECO­UFRJ). Autora de O documentário de Eduardo Coutinho:televisão, cinema e vídeo (Jorge Zahar Editor).

2Cao Guimarães, em texto na contracapa do vídeo Rua de MãoDupla.

3Retomamos essas noções de Philippe Dubois, que as utiliza maisespecificamente para falar de filmes com dimensõesautobiográficas e relacionados à memória, mas que nos parecemférteis para pensar Rua de Mão Dupla, que trabalha com o "outro"e se insere no presente dos personagens.. “A foto­autobiografia”.In: Revista Imagens. Campinas : Ed. Unicamp. p. 64 a 76. Duboisamplia o uso dessas noções em Cinema, Vídeo, Godard. SãoPaulo: Cosac & Naif, 2004.

4Paul Veyne, “Foucault révolutionne l’histoire”, in Comment onécrtit l’histoire. Paris: Seuil, 1978.

5Michel Foucault, História da Sexualidade 1, A vontade de saber.Rio de Janeiro: Graal, 1984.

6John Rajchman, “L’art de voir de Foucault”, in Traffic, Revue deCinema, numéro 52, hiver 2004. Paris, P.O.L., p. 86.

7Michel Foucault, op. cit.

8John Rajchman chama atenção, no texto citado, para a arte deFoucault de “ver o impensado na nossa visão” e a extrair modos dever até então desapercebidos.

9Jean­Louis Comolli, “Carta de Marselha”, in Catálogo do 5Festival de Documentário de Filme Etnográfico. Belo Horizonte,novembro de 2001.

10A principal diferença entre o dispositivo de Rua de mão Dupla eos dispositivos dos documentários de Eduardo Coutinho ouFrederick Wiseman encontra­se na intensidade da dimensãoprodutora, que no caso do filme de Cao Guimarães é mais radical.Os personagens de Rua de Mão Dupla passam por umaexperiência corporal e uma interação mental complexas, distantedo que experimentam os personagens de Coutinho ou Wiseman. Aimplicação física e mental do espectador em certas instalações étrazida para dentro do filme e transferida para os seus personagens.

11Fernanda Bruno. "Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade esubjetividade nas novas tecnologias de comunicação e deinformação" in Famecos: mídia, cultura e tecnologia, No 24, 2004.Porto Alegre: EDIPUCRS.

12O material bruto filmado por cada participante não ultrapassouuma hora.

13Michel Foucault, op. cit., p. 59.

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14Em Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino, opersonagem principal realiza um terço das imagens que forammontadas, “sem qualquer interferência do realizador”, comoinformam os créditos iniciais. Observação que expressa asuposição de uma visão do outro depurada de influências. Ver emJ. C. Bernardet, in Cineastas e Imagens do povo São Paulo:Brasiliense, 2003, pp. 128­142. Trinta anos depois, Raulinoparticipa como fotógrafo de uma experiência distante dessapostura “purista’, ao lado do diretor Paulo Sacramento. Em Oprisioneiro da grade de ferro (2003) houve também uma divisãodas filmagens, mas na maior parte do tempo não sabemos quemestá filmando, se a equipe do filme ou os presidiários ­ com poucasexceções, que confirmam uma visão mais complexa da imagemfeita pelo outro. Na melhor seqüência do filme, filmada por umdos presos durante toda a noite, as imagens são claramenteproduzidas por uma mistura do que ele quer mostrar e do que eleacha que diretor, equipe, espectadores, querem ver. É justamenteessa mistura que torna a seqüência interessante e reveladora, e nãouma suposta autenticidade do olhar.

15Segundo M. Bakhtin, a maneira individual pela qual o homemconstrói seu discurso é determinada consideravelmente pela suacapacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios de reagirdiante dela. In Problemas da poética de Dostoievski. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1977, p. 197.

16Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital, Ensaios deBiopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.20.

17A narrativa literária de Bernardo Carvalho nos seus dois últimoslivros, Nove noites e Mongólia, tem semelhanças com essemovimento artístico. São histórias produzidas por um agir,previsto para que haja narrativa.

18Thierry Jousse, in Pendant les travaux, le cinema continue. Paris:Les Cahiers du Cinema, 2003.

Entre FolhasCao Guimarães y la poética de la micro­expresión

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Entre Folhas:Cao Guimarães y la poetica de la micro­expresiónpor Sebastian Wiedemann1

“Todas las imágenes son literales ydeben ser tomadas literalmente.”

Gilles Deleuze

Entre Folhas, en español Entre Hojas, es elnombre de uno de los pueblos que componen lasimágenes del film­poema “Accidente” de CaoGuimarães. En las imágenes correspondientes aeste lugar vemos una calle cubierta de hojas ypersonas que las barren. Viendo más finamente, loque vemos es una danza de escobas entre lashojas, vemos tan solo Entre Folhas.

Entre Folhas, entre Accidentes, entre Andariegos,entre la soledad y la naturaleza del mundo CaoGuimarães busca incesantemente destilar laimagen, y así desbanalizarla. En algún momentoél definió el universo como rojo, pues la luz dellaboratorio fotográfico se ha expandido por elmundo revelándolo sin reservas, haciendo de laimagen un hecho trivial y no fundamentalmenteexcepcional.

En filmes como “Accidente”, “El alma del hueso”y “Andariego”, no vemos mas que ese intento porpensar justamente entre hojas, entre las pequeñasexpresiones de la naturaleza y no las heroicas delhombre; entre lenguajes haciendo un pasaje deretorno del cine a la fotografía, de vuelta allaboratorio, al cuarto oscuro, donde el mundosiempre aparece como por primera vez y ensilencio, mostrándose, sin la necesidad denarrarse, revelándonos un misterio que hace tantoo mas sorprendente y expresivo un grillo queintenta cruzar una carretera, como un ermitañoque se funde con una gruta.

El mundo esta ahí, como un acontecimientoconstante, que no debe ser detenido al serrepresentado o narrado, y que tan solo debería sermostrado, para que pueda seguir fluyendo.Capturarlo y revelarlo sin traicionar su literalidad,su grado de real, su flujo vital, es lo que no hacela mirada espectacularizada, que detiene elmovimiento del mundo en pos de una imagenvelada y ya programada.

Destilar la imagen, como lo hace Cao Guimarães,parece entonces un arduo trabajo por quitarle lasveladuras y devolverla a su superficialprofundidad, algo que parece más posible del ladode la fotografía y pintura que atraviesan el cineque dura, donde entre hojas se puede hacer máspalpable el movimiento del mundo por su quietudy suspensión que por la grandilocuencia de losgestos de un hombre.

Fotografiar siempre es un acto silencioso, que leroba un instante único al mundo, imágenes mudasy misteriosas que al revelarse dejan escucharlo.Mientras que al pintar, las pinceladas siemprelogran abstraer de la figura un estado desensaciones. Por que al mostrar lo único quequeda es contemplar en la duración lassensaciones que nos devuelve el mundo en sumisterio. Es lo que Guimarães, nos devuelve consu esfuerzo.

A razón de esto hace falta no solo estar entre

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hojas, sino que también entre lenguajes que secontaminan unos a otros para así purificar laimagen. Por que si el mundo es una forma adeformación, el modo como es mostrado tambiéndebe serlo.

Deformar la mirada para que sea minima,deformar la expresión para que sea sutil, dejar deser causa y pasar a ser cuasi­causa de laexpresión, para que el mundo fluya libre en suinmanencia. Ser un mínimo de mediación, paraque la micro­expresión del mundo nos devuelvasu potencia reverberante y que quizás absorbetodo lo que toca.

Este movimiento donde el artista reduce suescritura, para paradójicamente fortalecerla ydejar continuar de este modo la vibración delmundo, es un esculpir en términos de generar lascondiciones, la zona, donde este simplementepueda estar ahí y aun. El ermitaño de “El alma delhueso” esta con su soledad ahí y aun con lanaturaleza sin intervenir en su fluir, elsimplemente dura y con ello hace durar elacantilado, el río, el agua, donde todo literalmentepasa a ser textura del devenir.

Cao con su sutil gesto, logra filmar con el espíritude un Doisneau que nos sorprende por haber vistode mas o en la medida justa para sorprendernos,sorpresa que no pretende ser tirada del mundosino contemplada en silencio desde una duraciónenvuelta por el espíritu de un Tarkovski, dondepor momentos el movimiento de la vida se hacesensación pura, eco de las pinceladas de unCézanne.

Espíritus de otros tiempos, cuando el mundo eramás pequeño, más silencioso y los hombrespodían caminar más libremente como lo hacen losde “Andariego”. Tiempos en que había unaintimidad con el mundo como en cada plano de“Accidente”, donde se siente esa cercanía

distante, ese misterio. ¿Acaso en un intentonostálgico Guimarães quiere devolverle el aura almundo, a la percepción que nos lo devuelve?

Esta pregunta, parece tener una resonancia en lossutiles tejidos sonoros de sus films, que abren yalivianan la imagen llevándola por caminosinesperados, que abren ese intervalo entre lashojas que dejan escuchar el acontecimiento quecuando se manifiesta se hace accidente, se haceun concierto para clorofila, donde cada susurrohace estremecer al mundo.

Hace falta entonces, que el mundo tome forma deaccidente para que se fugue, no por de las alas deun Hermes que deriva significaciones sin fin, sinoque por las rupturas que permiten posarse sobre lasuperficie, esa línea de flotación donde solo sesostiene lo que es literal, es decir, la imagen quees hecho, que es ser, que se conjuga en infinitivopara escapar a la fijeza del sentido.

Una fuga, que es un ir hacia el encuentro, comoen “Andariego” donde los caminantes por el calor,la intensidad del mundo, la superficie ferviente dela carretera, se hacen sfumato, se funden yencuentran con el mundo, haciéndose parte de él.Y es que los planos que tienden a la abstracción,son pinceladas de Guimarães, que reafirman esacondición plástica y permeable que constituyen alhombre­gruta de “El alma del hueso”, donde esuna sola alma y cuerpo que fluyen y deambulan,una sola soledad la del mundo filtrada en el frágilrespiro del hombre.

Esa fragilidad de las imágenes, las revitaliza, lasrescata del espectáculo banal. Una fragilidad quehace endeble la pantalla, agrietándola hasta llegaral espectador que quiere salir de su pasividad paratocar el mundo. Es justo una poética de la micro­expresión con su sutileza, con sus finos yminimalistas trazos, que hacen recordar a un PaulKlee, los que sacan del automatismo la mirada y

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la fuerzan a contemplan la belleza traslucida delmundo.

Fragilidades, que en cada tensión de quiebre, encada accidente, como dice Guimarães, construyenun micro­dramas de la forma. Pues “una hoja quecae al viento, es tan expresiva como un actor y losruidos del agua son tan expresivos como unasoprano en una opera”.

Este micro­drama de la forma, al renovar nuestromirar, justamente nos hace cuestionar sobrenuestros modos, nuestros límites, de cómo sontransgredibles. La piedra siente igual que elhombre, y ambos comparten un mismo ritmo,donde tan solo hay colores y sonidos, una mismavibración. Un micro­drama que con sus tenuesexpresiones ponen en tensión la forma hasta hacerindiscernible el caminar de un andariego y el deun grillo, la voz de un ermitaño y la de viento.

Un cine que se libera de sus formas, que prefiereser monstruoso antes que ciego por una artificialluz. Un cine que se remonta al simple hecho depercibir más allá de las formas, donde se puedenintuir los perceptos y afectos inéditos y puros,

donde nada se da por certeza, donde se parte de laoscuridad como al inicio de “Accidente”, dondevemos como pequeños destellos de luz que aun enla noche nos revelan una imagen, fulgores,pinceladas, sobre un lienzo aun vacante.

Entre Folhas, entre­imágenes literales, quesiempre están en un paso (no) mas allá,simplemente en la superficie, las micro­expresiones del cine de Cao Guimarães, nos dejanentrever esa luz roja que ya no baña al mundo porentero e indiscriminadamente, sino que descubresu misterio primigenio. Quizás ese rojo escondió,intuido es el que hace de laimagen ese acontecimiento…

La sala de cine, puede seguir siendo oscura, puesla imagen no se velara mientras que la luz roja,ese seguro e hilo de vida, la haga fluir para que nose apague el laboratorio de fotografías, deexperiencias, de instantes que se esparraman en laduración de unas hojas que entre barrida ybarrida, limpian y pintan, dejando ver siempreuna superficie inocente donde se puede caminarsolo y sin miedo, ser un andariego por el mundo,sin detenerlo, sin parar su danza. Entre Folhas.

“No lograr estar solo es la mayor soledad”Cao Guimarães

Estar entre hojas es entonces,estar en ese estado literal e intraducible de saudade,

estar frágil y cayendo entre soledad, nostalgia y añoranza,por reencontrarse con el mundo, por estar a solas con él, a su altura,

donde la grandeza de su movimiento es un micro­sentimientoSin peso, Soplo, Nanofania…

Una micro­expresión.

1Este texto fue publicado originalmente en Revista Extrabismos,Medellín­Colombia (2009).

Tempo e Dispositivonos Filmes de Cao Guimarães

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Tempo e Dispositivonos Filmes de Cao Guimarãespor Consuelo Linsi

Os filmes de Cao Guimarães expressam de formaexemplar um cruzamento e uma circulação cadavez mais intensos entre documentário e artecontemporânea, domínios até pouco tempodistantes, e mesmo hostis entre si. Cineastas quetrabalham prioritariamente no documentáriocriam instalações para serem expostas em museuse galerias ao mesmo tempo em que artistasexpandem suas criações para o campo dasimagens documentais. Os cinco longas metragensde Cao Guimarães são fortemente marcados pelafotografia, filmes experimentais e vídeosinstalações que o artista realiza desde o início dosanos 90. O fato de Andarilho, seu documentáriomais recente, ter sido escolhido para a abertura da27a Bienal de São Paulo (2006) é mais um indícioda fértil porosidade de fronteiras entre esses doiscampos artísticos.

Dois aspectos se destacam na passagem do artistade um campo a outro: primeiro, a observaçãosilenciosa do mundo praticada na fotografia e emfilmes experimentais e tão bem retomada pelocineasta ao filmar trabalhadores de ofícios emvias de extinção (O Fim do Sem Fim ­ 2001), umermitão (A Alma do Osso ­ 2003), três andarilhos(Andarilho ­ 2007) ou ainda o tempo que passanas pequenas cidades mineiras (Acidente ­ 2005);em seguida, a invenção de dispositivos paraproduzir uma obra, operação utilizada em certoscurtas­metragens e instalações e recuperada pararealizar filmes como Acidente e Rua de MãoDupla (2003).

É particularmente por meio desses procedimentosque o artista mineiro se confronta com estéticas,éticas e metodologias do documentário para

filmar personagens solitários, a maioria deles àmargem da modernidade capitalista, masatravessados por ela; em outras palavras, parafilmar o “outro”, questão central da tradiçãodocumental. E encontra assim, a seu modo e porconta própria, um certo cinema contemporâneofeito de planos­seqüências que duram, realizadopor cineastas que acreditam que, mais do que deimagens, o cinema se constitui de blocos deespaço­tempo (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami,Alexandre Soukourov, Mercedes Alvarez, entreoutros). As construções temporais contidas nessesfilmes privilegiam a acuidade sensorial doespectador, propõem novas experiências sensíveise imprimem mudanças em nossa percepção demundo.

O tempo como matéria do filme

Em O Fim do Sem Fim, A Alma do Osso eAndarilho, Cao Guimarães fabrica, através delongos planos­seqüências, imagens que perturbamas definições, habituais no cinema, de imagens“objetivas”, registradas do ponto de vista dacâmera e portanto do diretor, e imagens“subjetivas”, atribuídas aos personagens.Alterações que o cineasta obtém a partir deenquadramentos fotográficos precisos nos quaisele insufla tempo; imagens de texturas diferente,fruto da mistura de suportes (vídeo, super 8, 16mm) presente em quase todos os seus filmes. Sãoplanos menos ligados às temáticas do filme, maispoéticos, livres, frágeis.

Em Andarilho, por exemplo, o cineasta faz usodesse procedimento, levando­o ao limite. Extraidas estradas pelas quais perambulam os

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andarilhos efetivas visões: imagensexplicitamente objetivas ­ capturadas com acâmera fixa em um tripé durante longosmomentos ­ transformam­se pouco a pouco,ganhando uma estranha subjetividade, a ponto deadquirirem um caráter alucinatório que dissolvedistinções. É como se as imagens, inicialmentecapturadas do ponto de vista do diretor,contraíssem gradualmente a visão do personagematé o momento em que não pertencessem maisnem a um nem a outro, transformando ao mesmotempo a própria experiência do espectador.Objetivo e subjetivo, real e imaginário, ficção edocumentário perdem o sentido em imagens àbeira da abstração: caminhões e motos afundandono fundo da imagem, plantas evanescentes,estradas fumegantes, seres em dissolução.

Trata­se de um procedimento que favorece umaatenção inédita e concentrada às pequenas coisasdo mundo, aos seres, movimentos, gestos, sons,ruídos, conversas, utilizado desde o primeirodocumentário, O fim do sem fim, dirigido emparceria com Lucas Bambozzi e Beto Magalhães.Só que de forma atenuada: os planos­seqüênciasdesse filme são distribuídos entre os depoimentosde muitos personagens dispersos em todo oBrasil. Em A Alma do Osso, Cao Guimarãesrealiza uma espécie de depuração das opçõeséticas e estéticas do primeiro filme. Reduzpersonagens, situações, locações, e amplia o usode longos planos para acompanhar o ermitão. Ofilme nos desvela pouco a pouco que mesmoexistências aparentemente isoladas sãoperpassadas por questões centrais do mundo atual,tais como a mídia, o dinheiro e a lógica doespetáculo: depois de testemunharmos a solidãodurante boa parte do filme, vemos que o ermitão étambém ponto turístico. É como se não fosse maispossível uma ruptura com o “social”: o espetáculoconstitui o mundo e o próprio filme não deixa defazer parte dessa lógica, mesmo se a desloca ­ oermitão torna­se imagem e passa, assim, a circular

pelo mundo.

Dispositivo e jogo

Os filmes Rua de Mão Dupla, concebidoinicialmente como vídeo instalação para a 25ªBienal Internacional de São Paulo, em 2002, eAcidente, realizado em parceria com PabloLobato, são produzidos a partir da idéia dedispositivo. No primeiro filme, Cao Guimarãesconvidou seis pessoas pertencentes às camadasmédias da população de Belo Horizonte paraparticipar de uma experiência inusitada: divididosem duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e,munidos de uma pequena câmera digital,filmariam o que bem lhes aprouvesse em casaalheia, tentando "elaborar uma "imagem mental"do outro (a) através da convivência com seusobjetos pessoais e seu universo domiciliar"1. Aofinal, dariam um depoimento para a câmera,contando como imaginaram esse "outro".Portanto, o diretor não filma nem dirige, masconcebe um jogo, distribui cartas, determinaregras, escolhe jogadores, fornece câmeras,transporte, comida. Provê o necessário e sai decampo. Trata­se de uma maquinação que implicaa ausência de controle do diretor sobre o materialfilmado, propiciando uma espécie de "retiradaestética" não propriamente do filme ­ afinal odispositivo é dele, assim como a montagem dofilme ­, mas das imagens e sons que seu filme vaiconter, atribuindo a seis outros indivíduos a tarefade filmar e se autodirigir.

O dispositivo que “dispara” a filmagem deAcidente é, de certa maneira, mais conceitual.Não há inicialmente nenhum interesse particulardos cineastas por um aspecto concreto darealidade. É como se houvesse, antes de tudo,pairando no ar, uma questão imensa, questão devida, em que os cineastas se perguntassem comose relacionar com o mundo diante de tantaspossibilidades, de tantos filmes já feitos, de tantas

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imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nemaos clichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “comofazer para que haja filme”2? Cao Guimarães ePablo Lobato decidem se apegar às palavras:criam um dispositivo­poema e, de posse dele,começam a filmar. Mas não são palavrasquaisquer retiradas do dicionário – poderia ser,mas seria outro filme.

São nomes de cidades mineiras cuja lista elespesquisaram na internet. Selecionaram cem e asimprimiram. Espalharam os papeis sobre a mesa ecomeçaram a brincar com as palavras.Sonoridades, sentidos, materialidades,ressonâncias: foi isso que contou para os cineastase não um conhecimento prévio da realidade dascidades, das quais aliás eles ignoravam tudo.Chegam a um poema com 20 nomes que evocauma fábula de amor e dor: Heliodora, Virgem daLapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água. EntreFolhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos.Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto,Tiros, Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Doresde Campos.

O dispositivo­poema torna­se portanto umamáquina de produzir imagem e adquire, comotodo dispositivo, um certo poder sobre oscineastas. Decide por eles onde vão filmar; retiradeles o direito de recusar uma cidade caso nãogostassem dela, porque nesse caso o poemadeixaria de funcionar. Diminui o excesso deintencionalidade. É um jogo, que tem suas regras,às quais eles devem se submeter. Não se trata emabsoluto de adaptar palavras às coisas, nomes àscidades, mas construir uma forma de seconfrontar com o caos do mundo sem submergir,de imprimir uma direção inicial, abrindo aomesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos eimponderáveis do real.

Os documentários que resultaram dessesdispositivos são profundamente distintos entre si.

Acidente possui traços em comum com os filmesconstituídos de planos­seqüências, mas não hápropriamente personagens nem temas. São blocosde espaço­tempo que capturam a duração, emvárias camadas, nas cidades do interior de Minas,e nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo emestado puro”3, à maneira de Ozu. Onde Acidentemais parece se aproximar da imagem estática dafotografia, é justamente onde mais se distancia,em função da duração. Na cidade de Entre Folhas,por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão deum bar onde praticamente nada acontece, a nãoser os movimentos infra­ordinários do seuproprietário ou a rara circulação de carros epessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, ofilme se atém a uma ladeira em que os temposmortos se alternam com micro­acontecimentos.

O filme inteiro é capturado por uma espécie deinação, que contamina personagens e cineastas. Oespectador também é envolvido nesse circuito emque as conexões entre palavras e coisas, nomes ecidades, acontecimentos e personagens, sãotênues, frágeis e, finalmente, de poucaimportância. Trata­se de um filme em que adimensão propositiva se mistura à uma dimensãomais plástica, contemplativa e formal, mesclandoem um só tempo dois movimentos que CaoGuimarães identifica em sua trajetória, emtrabalhos diferentes.

Quanto à Rua de Mão Dupla, a grande invençãodo filme, responsável pela solidez da proposta, é asolicitação do diretor de que os “outros” emquestão, os participantes do filme, se interessempor outros e não por eles mesmos; atitude queredireciona o desejo da “besta da confissão”4 emque nos transformamos a partir do momento emque uma câmera é postada diante de nós. CaoGuimarães não quer que eles se voltem para si,que falem de suas vidas, que se revelem para acâmera; pede, antes, que falem de pessoasdesconhecidas e filmem casas alheias. A mudança

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do foco do “eu” para o “outro” faz com que ospersonagens fiquem menos atentos aautocontroles, censuras e filtros que normalmenteacionamos para oferecer a imagem que desejamosde nós mesmos. A maneira como se relacionamcom o espaço alheio, o que escolhem filmar, oque dizem, como falam, palavras, sintaxes,entonações que colocam em cena, tudo isso revelamuito mais deles mesmos do que poderíamosesperar. São imagens do outro fortementeembebidas da visão de mundo e dos afetosdaquele que filma.

O que o filme mostra de modo cristalino é o quãoencharcado de memórias e afecções corporais énosso olhar sobre o mundo, o quão arraigadossomos a determinadas maneiras de ver e sentir, otanto que ignoramos nossos preconceitos, o tantode impossibilidade de nos colocarmos no lugar dooutro, de aceitá­lo na sua diferença esingularidade. Em suma, nos mostra que“estamos” onde menos esperamos, nãoespecialmente no “conteúdo” do que dizemos oupensamos de forma consciente, tampouco em uma“interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladasde subjetividades”5 que se constituem e seexpressam na nossa relação com o mundo e como outro. Através de um gesto à primeira vistapequeno ­ alterar a direção do que se solicita aospersonagens em grande parte dos documentáriosbaseados em conversas – o cineasta imprime umestrondoso deslocamento em relação a todas asquerelas em torno da "voz do outro" queatravessam a história do documentário.

iPublicado no livro “Cao Guimarães, Edição Caja de Burgos,Espanha, 2007.

1Cao Guimarães, no texto na contracapa do vídeo Rua de MãoDupla.

2“Sob o risco do real”, in Catálogo do 5o Festival do filmedocumentário e etnográfico. Belo Horizonte: novembro de 2001,pp. 99.

3Gilles Deleuze, referindo­se ao cineasta japonês, em A Imagem­Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.

4Expressão de Michel Foucault em História da Sexualidade 1, Avontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

5Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital, Ensaios deBiopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.20.

El caminarcomo génesis de la desobediencia

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El caminarcomo génesis de la desobedienciapor Florencia Incarbone

“As a single footstep will not make a path on the earth,so a single thought will not make a pathway in the mind.To make a deep physical path, we walk again and again.

To make a deep mental path, we must think over and overthe kind of thoughts we wish to dominate our lives”

Henry David Thoreau

La insistencia del caminante reside en saber quedebe mantenerse en movimiento, que sólo así esposible sostener su existencia. A cada paso elcuerpo recorre la geografía y al mismo tiempo seinscribe en la mente la lógica perceptiva de unmundo transitorio. El exterior y el interior ya noson entidades separadas, la realidad de quiencamina está atravesada por la intensidad de surecorrido. Esa intensidad se da en la duración,como tiempo extenso que habilitaredescubrimientos y transformaciones vitales.Allí, el presente, el pasado y el futuro no son másque meras virtualidades que se actualizan en unpunto convergente: el paso. El paso es la unidadmínima de movimiento a partir de la cual sepuede realizar una sumatoria infinita de pequeñosdesplazamientos constantes, estableciendo redesde movilidad y recorriendo paisajes cambiantes.

En Andarilho el calor, la ruta y los vehículos quepasan articulan el transcurso de los días que no seubican en una temporalidad asignable. De hecho,el calor –como envolvente radical– ralentiza eltiempo, lo deforma, lo vuelve laxo y maleable. Laimagen sufre su fuerza, se doblega frente a supoder. Así, el paisaje se vuelve alucinatorio,gaseoso. Los camiones parecen ser tragados alfinal de la ruta y el esfuerzo de los cuerpos, inútil.Frente a esta lógica nace el tercer estado de laimagen, la imagen gaseosa, que va más allá de lo

sólido y de lo líquido, donde se trata de alcanzar“otra” percepción. Lo formal de la imagencinematográfica deja paso a la deformación de lafigura en tanto atravesada por una fuerza. Sinembargo, la fuerza no tiene forma. Por ello, no setrata de reproducir lo visible, se trata de volvervisible a partir de traer a la luz una imagen, uncuerpo y un espacio afectados por el territorio.

Así, la imagen gaseosa nos enfrenta a percibir elintersticio de intercambio que viven el paisaje y elcuerpo, su afectación recíproca, como un puentesin comienzo ni fin. El vagabundo se posiciona enalgún punto de este puente como el individuo quevive al margen, en la circulación constante y quesabe de las mutaciones del entorno, de loscompañeros efímeros y de las fuerzas de lanaturaleza. Sus travesías son eternas, sin descansoni tregua. La lucha se da contra la inmovilidad delcuerpo y del espíritu. Así, la mayoría de susdiálogos son interiores, aunque en ocasiones suvoz los exteriorice, y permiten desplegar aquellasideas que sintió encarnadas en el andar.

Pensada bajo estos criterios, la vida en tránsito esun modo de autoexclusión civil, un acto derebelión, de distancia, de locura. Frente a laincomprensión de la sociedad el vagabundo seautoexilia y emprende un camino sin retorno. Sila cultura es la regla, el andarilho se erige como la

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figura de la excepción. Como dice Thoreau “elhombre es rico en proporción a la cantidad decosas de las que puede prescindir”. Por eso surealidad es otra, y en tanto otra sólo encontramosuna vía para establecer una conexión: sumergirseen ella. Para Guimaraes se trata de zambullirse enel lago de la realidad y una vez dentro de éste

observar, ya no como espectador, sino bajo lalógica de quien participa de la experiencia. Laautonomía total exige ese gesto: la implicacióndel cuerpo en el acto de creación.

Fugas perceptivasla imagen en Cao Guimarães

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Fugas perceptivasla imagen en Cao Guimarãespor Sebastian Wiedemann

[Las siguientes son algunasreflexiones a propósito de los

cortos de Cao Guimarães:Drawing (2011). Sin peso (2007). O inquilino (2010).Peiote (2007). From the Window of my Room (2004).

Quarta, Feira de Cinzas (2006). Coletivo (2002).Inventario de raivinhas (2002). Brasilia (2011).

También se hace referencia a los siguientes trabajos:Nanofania (2003), Concierto para clorofila (2004),

Mestres da Gambiarra (2008), Sculpting (2009), Limbo (2011).]

Hemos nacido ya como imágenes. En el útero ya somos una imagen, una ecografía. Un hecho al queinevitablemente hay que oponerse. La imagen no debe ser un dato dado y naturalizado. Por el contrario un

esfuerzo de la percepción, que la construye.

*

Entre los tantos cineastas que han marcado miexperiencia de hacer cine, siempre dos vuelvenintempestivamente: Werner Herzog y AndreiTarkovski. Sin embargo desde que lo conocí en2007 al que más próximo siento, es a CaoGuimarães. Proximidad que ha dejado sin lugar aduda un contagio en mí, una resonancia, unaliento… y que dio origen a una primerareflexión sobre su obra en 2009 ­ Entre Folhas:Cao Guimarães y la poética de la micro­expresión – . Al día de hoy esa resonanciaperdura. Y puedo decir que es una red infinita ysubterránea de ecos y alientos, la que nos ayuda

a encontrar fugas perceptivas, a reinventarmiradas y escuchas, y la obra de Guimarãessigue estando en el epicentro de este movimiento.Movimiento punzante de hacer imágenes y dondeciertamente es poco el espacio que queda paralas palabras. Quizás en otro contagio secreto conBrakhage se empieza a estar antes del verbo ypor eso de esta vez solo me atrevo a escribir conlos resto, a saltos y por concentrados. Guimarãesprocura ir hacia lo esencial de la imagen y elsonido. Procurare entonces pasar por lo esencialque de su obra ha quedado en mí.

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La mirada agotada, el mundo vuelto chiche, reinventar una mirada.

*Agudizar la percepción: poner el ojo donde habitualmente no se podría. Ver las

­Gambiarras­. Disponer el ojo de modo inusual, para que improvise y vea relacionestambién de modo inusual.

*

Ir hacia esos –Limbo­s de la atención, donde la gente no mira. Ir hacia eso que la gente nonota, allí donde el vértigo del vacío se hace presente. Donde lo ínfimo, lo minúsculo anda

y hace el movimiento como las hormigas en una ­Quarta feira de cinzas­.

*

Tomar el riesgo e ir hacia eso micro, que es casi nada. La forma y la percepción puesta aprueba. El agua entra: ­Drawing­, la corriente sube y baja –Sculpting­. Se es mínimo se ha

perdido el peso. ­Sin Peso­.

*

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Mirar lo impensado, mirar lo que intranquiliza, eso que incomoda. ­Brasilia­ no es soloarmonía. Inusitado y extraño entre la contemplación y el sumergirse. En el medio,

el silencio.*

Silencio y ruido, hacer sonar al mundo, escuchar su música. Hacer expresivo el mundopor sus sonidos. Nada suena como parece. Ir más allá del sonido en sincro, liberar un universo

auditivo. ­Desde la ventana de mi cuarto­, escucho antes que nada ritmos e intensidades,que escapan a cualquier realismo. El riesgo de la forma. El riesgo de la percepción.

*Aventura de la percepción, antes que una narración. Cine sin guión, cine sin historia. Si esque se narra, se narra un modo de estar en el mundo. Un modo que inventa tiempos, que

se deja llevar por las derivas, que entiende que todo es expresivo en el mundo. “Umafolha ao vento é tão expressiva como uma cantante lírica”

*

­Concierto para clorofila­, ­Nanofania­, sentir la música, las sonoridades inaudibles y escondidas.Sentir su impulso. La imagen puede ser la fuga, pero el sonido es el camino de esa fuga.

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*Sin aprios, sin categorías, la imagen libre esculpe su forma. Forma de ver, forma de sonar.

Cine/exposición/museo/ficción/documental/… La imagen se fuga, siempre agrieta,se reinventa.

*Como en la cocina, cine de la cocina. Nada se toma simplemente, todo se hace,

todo se prepara, todo se cocina. Image­maker en vez de image­taker.Componer la imagen.

*Insisto: Mirar lo ínfimo, lo micro, aquello que nos conecta con lo macro, con el cosmos, que nos da una

fuga ante el hábito y nos hace sentir que realmente estamos yhabitamos el mundo.

*

Cada rincón, tiene el potencial de ser una fuga perceptiva: liberar su potencial, su expresividad.­Raivinhas­ que nos pueden desesperar, o un –Inquilino­ inesperado que flota y se va.

Bailar y hacer sonar la imagen como estando en estado de –Peiote­.

Recuerdo cuando en ese fugaz encuentro, a lahora de hablar, Guimarães prefirió presentar unfragmento de “Madre e hijo” de Sokurov.Entonces entendí: el tiempo para contar historias,para documentar realidades ya pasó. Solo nosresta agudizar la percepción; tener fe en laimagen como Tarkovski, para poder continuar enla búsqueda; tener el vigor épico de Werzog, paratener las fuerzas y la valentía de entrar en elmicro­cosmos de la expresión; aceptar quehacemos parte de la periferia, que somosprecarios y que debemos pensar como ­ Maestros

de Gambiarras­, para poder fugarse, escabullirsey reinventar en lo inusitado; concentrar entresutilezas y fragilidades, ser coleccionista de esosdestellos, como en un –Inventario de Raivinhas­.Ese ha sido el eco, el aliento que me ha dejadoCao Guimarães. Tan solo basta con compartiruna sensación, con compartir y hacer ver un otromodo de estar en el mundo. El resto es accesorio.

Como él nos recuerda “la imagen es simple”,pero hay que alcanzarla.

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Hambre | espacio cine experimental

Florencia IncarboneGeraldine Salles KobilanskiSebastian Wiedemann

DossiêDossierCao Guimarães

Florencia IncarboneConsuelo LinsGeraldine Salles KobilanskiSebastian Wiedemann

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Março | Marzo 2014